valĂŠria scornaienchi
Reencontrar um lugar da memória pode parecer algo fácil, mas ao me deparar com cada um desses lugares um filme foi voltando a minha memória reconstruindo os espaços, e, ao ver os espaços repletos, vieram as sensações e as imagens que me habitam. Reviver é viver de novo, e de novo e de novo. E me parece que cada uma dessas vezes é sempre a primeira vez. O calor do abraço de pai, o cheiro de banho, a ausência, a presença, as palavras proferidas sem dó nem piedade que se instalaram em eco dentro de mim. Elas continuam aqui, mesmo as que pareciam boas, como dizer que você suporta porque é forte. Elas continuam impregnadas no meu corpo e eu continuo suportando mesmo quando não quero mais suportar. Carrego comigo as palavras de Cecília Meireles, e Carlos Drummond de Andrade, e a minha voz interna dizendo o quanto ainda me pertencem. As pessoas daquela casa quase não existem mais. Perdas que me fizeram ausentes de mim mesma. Perdas que me fizeram compreender o quanto a solidão me basta. As histórias mal contadas, as conversas de corredores, as verdades escondidas agora estão desnudas em mim. Mesmo que eu preferisse que fossem mentiras agora são vivas. Casa que me habita. Que transborda o sentido de ser eu mesma. E que permite que todos os outros reflitam no meu caminho para ser quem eu sou. A rampa, a garagem, o jardim, o quintal, a sala de estar, a sacada, a sala de jantar, os quartos, o escritório, os banheiros, a cozinha, cada um desses lugares vem com imagens da memória. Vem carregado de peso ou leveza, vem carregado de saberes, do que eu sou hoje e do que fui um dia. Do que eu pude transformar e de como a minha casa hoje ainda carrega a primeira casa. Desnudo a mim mesma e compartilho meus mais profundos sentimentos. Me sinto nua. Desprovida de proteção. Talvez isso seja a maior liberdade. Estar vulnerável e livre.
O portão da minha casa era branco. Branco de ferro com grades arredondadas. Abria manualmente, um lado, depois o outro, ocupando a calçada, que era larga o suficiente para se parar um carro estacionado embaixo da árvore que ali fazia sombra. A frente da casa tinha uma rampa, por onde o carro subia, e alguns degraus no meio. Um muro chamuscado separava a nossa da casa do vizinho. A rampa abrigava os carros a noite. Cabiam 2 carros. A rampa era lugar de brincar, de descer correndo e subir andando. De subir em quatro apoios, com os pés e as mãos no chão. Era lugar de brincar de esconder quando os carros estavam lá. O portão tinha um cadeado. Me separava do mundo lá fora. Me mantinha dentro da casa. A garagem ficava logo acima da rampa. Era um chão de cerâmica vermelho terra e tinha duas portas. Uma dava para a sala e outra para o quintal. A garagem virava casinha. Virava lugar de jogar, virava lugar de dançar com a vassoura e pista de dança nas festinhas da adolescência. Na subida da rampa tinha um banco de pedra mineira. Cabiam três pessoas sentadas, minha mãe, a Paola e eu. Não me lembro de ter sentado ali outras vezes. A foto de criança com minha mãe e minha irmã levou todas as outras memórias embora. Eternizou aquele lugar. Colado ao muro, tinha a laje que cobria a entrada do quintal da vizinha, a Dona Cordélia. Eu subia ali e ficava olhando o movimento na Lagoa do Taquaral. Via as pessoas passando, os carros, mas também deitava e olhava o céu. Na casa da vizinha tinha 2 pinheiros altos, mas eles não me impediam de ver o céu. Outras vezes eu deitava ali e ficava quietinha, em silêncio. Nesses momentos eu sabia que os vizinhos moravam ali. Ninguém nunca me pediu para descer dali. Eu também nunca quis pular.
Ainda na frente da casa tinha o jardim. O jardim era o lugar mais movimentado da casa. Tinha Azaleia e Hortência na frente da varanda. Ora tinha uma florzinha colorida ora tinha cenoura. A horta morava no jardim. O Godofredo, o nosso sapo, também morava no jardim, embaixo da sacada. No jardim também morava uma ilha de plantas, tinha coqueiro, tinha samambaia, e tinha outras folhagens. Algumas pedras faziam um caminho no jardim, que dava a volta na ilha. Colado ao muro do outro vizinho também tinha um banco de cimento revestido de pedra. Acima dela uma muretinha que separava o jardim de lá fora. O jardim também tinha uma grade menorzinha, que o separava da rua. A grama contornava tudo. No jardim, meu pai cuidava das plantas, regava, podava, plantava. Era lugar de correr, de jogar capoeira, de virar estrela e de sentar para ver o mundo se deslocar lá fora. Além disso tinha um poste com uma luminária quadrada, com peças de vidros nos quatro lados e que usava chapéu. Sempre achei que a luminária era a guardiã do jardim. Ela e o coqueiro. Aquele que era dono dos mandruvás que surgiam de tempos em tempos andando pelo quintal. O Godofredo estava lá. Embora só o tenha visto uma ou duas vezes, sabia que ele estava lá. Era o guardião da sacada. Acho que ele ficava feliz quando chovia e o jardim ficava encharcado. Tem as fotos do jardim. Elas eram sempre divertidas. Tem da minha avó materna, tem as minhas vizinhas do lado do jardim, tem algumas amigas que vinham estudar em casa, a Paola e eu sentadinhas no banco fazendo careta e meu pai mexendo na terra. Eita jardim movimentado! A frente da minha casa vivia cheia de gente. Amigos, vizinhos, um entra e sai danado. Jogo de bola, bicicleta, patins, cachorro e muito papo. Ah como era bom. A frente da minha casa era viva, guardava as conversas da calçada, os namorinhos escondidos, os cochichos entre amigas... As memórias de lá continuam vivas. O jardim da minha casa e a rampa já não existem mais, mas em mim hão de perdurar.
O quintal dava a volta na casa através de uma porta na garagem e um portão lateral no jardim. Caminhando pelo portão do jardim um corredor estreito e silencioso. Logo abria-se uma área que dava para a porta da cozinha e o muro da outra vizinha. As janelas da cozinha e do banheiro davam para essa arinha. Ali ficava os vasos de planta do meu pai. Quando ainda não tinha vizinho vez ou outra aparecia uma cobrinha verde. Era um escândalo danado. Mas a maior lembrança eram as conversas intermináveis através daquele muro. Às vezes começava com o pedido de alguma coisa, mas logo virava confidência, ou papo divertido. Todo mundo conversava no muro, menos a minha mãe. Andando para o fundo do quintal tinha uma escada, um outro jardim com a árvore de mexerica murcote que veio da casa da minha avó paterna, uma graminha e um parte de chão revestido de pedra onde a gente costumava tomar sol. A janela de dois dos quartos dava para o fundo da casa, uma veneziana de duas folhas que no início não tinha grades, mas o tempo trouxe as grades às janelas e eu não pude mais pular a janela. Me lembro de correr e brincar nesse quintal que parecia tão grande quando eu cheguei na casa e tão pequeno quando eu a deixei. A última parte do quintal era um pouquinho mais larga. Tinha uma rede, e para lá ficava a janela do escritório do meu pai e as duas portas, uma que separava a garagem do quintal e outra de entrada na sala de jantar. De novo o muro chamuscado que dava para a casa da vizinha. Esse pedacinho da casa tinha histórias que agora são engraçadas, mas na época foram um horror. Nós tínhamos uma cachorrinha chamada Catita, que era um vira latinha meia Cocker e meia fox, era uma graça e muito levada. Certo dia ela pegou uma almofada e a rasgou todinha deixando a espuma espalhada pelo quintal. Pois caiu uma chuva forte e alagou aquela parte do quintal. A Catita latia e quando fomos ver o que estava acontecendo, abrimos a porta e alagou a sala de jantar. Não me esqueço da cara dela de não tenho nada a ver com isso. Meus pais ficaram furiosos. Ter uma rede em casa sempre me deixou alegre, acho que eu vim do mesmo lugar de onde nasceram as redes. O balanço da rede me transposta, e eu me sinto abraçada. Útero de mãe. Era também um lugar de brincar, depois com o tempo virou o lugar das confidências e de namorar. Ninguém podia ficar sozinho com o namorado na rede. Esta era a regra. O quintal da minha casa era grande e carregava com ele as histórias de criança, a bola, os jogos de pega-pega, queimada e a energia dos amigos. O quintal da minha casa também tinha uma edícula no fundo. Era uma lavanderia, quarto e banheiro. Era lá que a Elza passava a roupa. Cuidava da roupa do meu pai como ninguém. Tinha olhos azuis e contava sempre as histórias das suas três filhas. Eu adorava ficar lá com ela. A lavanderia tinha um tanque que era onde meu pai dava banho na Catita. Carrego comigo o chão alaranjado, a sombra da árvore, ficar abaixadinha embaixo da janela para ouvir alguém falando e a solidão de toda uma infância. Uma solidão da alma que foi acolhida pelas vidas que me atravessaram.
A porta da garagem dava na sala. Uma porta escura de treliças separava a sala de estar da sala de jantar, mas eu gostava mesmo quando essa porta estava aberta. Significava que a casa estava cheia. Duas poltroninhas, uma mesa entre elas, um sofá, uma mesa de centro, um baú, o tesouro dos vinis de música clássica e MPB, que descansava logo abaixo de um poster do retrato da Monalisa e uma reprodução do quadro Arearea, de Paul Gauguin. Acho que essas foram as minhas primeiras referências artísticas. Uma mesinha de centro, que virava mesinha de truco e, do lado do aparelho de som duas namoradeiras de vime, uma de frente para outra. Duas portas com venezianas e vidros separavam a sala da varanda e entre elas o móvel de vime onde a Paola subia e dizia que ia voar e, a Neuza, que ficava com a gente ligava para minha mãe desesperada no trabalho "D. Ivanise a Paola está em cima do armário dizendo que quer voar"... essa é a cena icônica da memória da sala. A sala era lugar de conversas, de reunir amigos, de assistir sessão da tarde, e de ouvir música. As portas da sacada abertas viravam lugar de brincar, de correr entrando e saindo, fugindo uma da outra. As memórias da sala vão das mais divertidas às mais trágicas. Foi ali que minha mãe quebrou a perna, fez uma fratura exposta e não havia mais adultos em casa, somente eu e a Paola, foi um Deus nos acuda. Mas a memória mais divertida é meu pai dançando balé. Ele fazia isso na frente dos nossos amigos e a gente morria de vergonha. Lembro da música que saia das caixas de som nos almoços de domingo: Elis Regina, Chico Buarque, Maria Betânia, Supertramp, Pink Floyd, e algumas vezes música clássica. As músicas permeavam a vida em família. Também me lembro de assistir 1000 vezes Flashdance e Dirty Dance, deitada no tapete da sala. Os sofás de vime serviam de lugar de cantar. Eu colocava música na vitrola, pegava as letras e cantava até enjoar. Às vezes passava horas ali. Dizem que quem canta seus males espanta. Talvez fosse esse meu intuito. A sala era simples e aconchegante. Tinha um lustre de vidro e luminária na parede. Enxergo o retrato da nossa sala. Sempre cheia de gente. Das músicas clássicas aos filmes de terror tudo acontecia ali. E agora ficam as lembranças. Carrego comigo a música e a alegria que um dia esse lugar carregou para dentro de mim. Permanecentes.
A sala de jantar tinha quatro portas, uma que dava para fora, onde havia a rede, outra que ligava a sala de estar e outra que dava para o corredor, mas a mais divertida ia para cozinha, era uma porta tipo porta de bar de faroeste, que balançava abrindo e fechando e só cobria metade da abertura da porta. Na sala tinha um armário grande, com louças, taças e alguns enfeites, um bar com rodinhas onde ficavam bebidas, uma mesinha de telefone acoplada em um banco e uma mesa de 4 lugares. Nas paredes uma pera e uma arara pintadas pela minha mãe e uma aquarela de paisagem do Egas. A sala de jantar era o lugar das refeições e das jogatinas. O almoço e o jantar eram postos e tínhamos que comer o que estava ali: arroz, feijão, uma carne, uma salada, verduras refogadas e frutas de sobremesa. Eu jamais podia imaginar que essa não era a realidade da maioria das pessoas. Meu pai fez 11 grandes hortas comunitárias orgânicas ao redor da cidade quando trabalhou na prefeitura, acho que ele também se incomodava com isso. Todos sentados até que todos terminassem de comer. Isso mudou quando minha mãe não pôde levantar mais. Não me lembro como foi depois, mas sei que mudou. A mesa era o lugar de jogos: baralho, War, Detetive, Lince, tínhamos muitos jogos de tabuleiro, e recebíamos amigos para jogar, e meus pais também costumavam jogar com a gente. Era sempre divertido, mas havia muita competição, o que me impedia de relaxar. Talvez por isso hoje eu não goste de competir prefiro compartilhar. Os jogos eram intermináveis, viravam a noite. Ali também era o lugar de estudar com as amigas, o que também era comum quando eu estava no colegial. A mesa de jantar era mesa de pintar. Meu pai tinha duas caixas de lápis de cor da Staedtler, que eu tenho até hoje, uma normal e uma aquarelável e costumávamos sentar para desenhar juntos. Ele fazia desenhos lindos de paisagens multicoloridas. Os tenho ainda na memória. A sala de jantar era lugar de jogar o jogo da verdade com os amigos, o jogo do copo, invocar espíritos, quem nunca? Se eu soubesse o que sei hoje jamais teria feito isso, mas na época foi apenas divertido. Coisas de adolescente. As festas eram muitas, quase todo final de semana tinha gente em casa, ou nossos amigos, ou dos meus pais. Casa cheia, boemia, bebida e diversão. Era sempre gostoso, divertido e sem conflitos. A sala de jantar era o lugar do compartilhar.
Parece que o corredor não tem muita importância na casa, mas pra mim tinha. O corredor era estreito e eu adorava andar com pés e mãos apoiada nas paredes de um lado para o outro. Ficava de cabeça pra baixo, fazendo parada de mão, continuava tentando olhar as coisas de outras maneiras para ver se ficavam diferentes. Mas nunca ficavam! Às vezes eu fechava todas as portas e ficava ali no escuro, falando coisas e ouvindo o eco da minha voz. Gostava de experimentar sons, sensações, e o fato de não ver. Acho que já era artista e não sabia. O corredor era pequeno, mas tinha cinco portas, a da sala de jantar, a do banheiro, a do escritório do meu pai e as dos dois quartos. E na final tinha um armário onde ficava guardado as roupas de camas e toalhas da casa. O corredor era vivo. Às vezes ouvia vozes ali, mas nunca contei pra ninguém. Ainda assim gostava de ficar ali no escuro sentia que havia alguém ali que me protegia quando eu precisava. Invocava meus anjos da guarda e eles sempre apreciam. Só hoje tive certeza que era isso que eu fazia ali.
O quarto de dormir. Quarto de brincar. Escrivaninha de estudar. Armário de bagunçar. Duas camas de madeira maciça, um criado mudo, uma escrivaninha que abria e ficava uma mesa, e uma cortina cor de rosa e branca que cobria a janela. Ah, a janela. Aquela que me ligava a solidão do quintal. O quarto de dormir era também de brincar. Quantas cabaninhas de lençol, quantas vezes brincamos de gato mia, de pular de uma cama para outra. O prazer do brincar, com o aconchego protegido do quarto. Quarto dos infindáveis diários, agendas. Quarto de trocar de roupas, de ficar sem roupas, uma intimidade dividida com minha irmã. Companheira de viagem. Eu fiz xixi na cama até uns 8 anos, uma vez levei uma bronca tão grande da minha mãe que levantei fiz xixi na Paola e voltei a dormir sequinha na minha cama. Nem preciso dizer que foi mais uma grande confusão. Me lembro de me esconder embaixo da mesa e desenhar quando os conflitos me aborreciam. Eu tinha medo dos gritos, mas eu também gritava, não era da minha natureza gritar, mas eu precisava me sentir pertencente. Talvez por isso procure não gritar com minha filha, ou com quem quer que seja. A minha cama era refúgio onde eu me escondia sob os lençóis, achava que ninguém saberia que eu estava lá. Me sentia invisível. O quarto também era lugar de confissões entre amigos. Eu adorava deitar com as pernas pra cima apoiada na parede ou fazia parada de cabeça e ficava um tempão olhando o mundo de cabeça pra baixo para ver se as coisas ficavam diferentes, mas nunca ficaram, só pareciam momentaneamente. Eu tinha medo de não sobreviver ao sofrimento então eu cantava, eu desenhava, eu corria, eu brincava, eu fazia qualquer coisa que pudesse me fazer esquecer. Que me anestesiasse da realidade. Eu crio histórias até hoje, mas hoje através da arte. Quarto me traz memórias íntimas, obscuras, verdadeiras, aprendi a me conectar comigo no meu quarto. A caixa dos meus diários e cadernos não me deixa mentir. Todo o conforto de fora não conseguia fazer o conforto ficar dentro. Me afastar desse quarto me fez esquecer quase tudo. Mas agora olhando pra dentro eu me lembrei. Eu compreendi o quanto de quarto ainda existe em mim.
O quarto dos meus pais dava de frente para o nosso. Tinha uma cama, um criado mudo e uma cômoda. Um abajur em cima do criado mudo e sempre algum livro, minha mãe adorava ler. Os encontros familiares mudaram de lugar quando minha mãe ficou impossibilitada de levantar. Costumávamos ficar com ela. Conversávamos conversa de mãe e filha. Levávamos jogos, livros para ler juntas, e ouvíamos as histórias que ela costumava contar. A inesquecível é a da Filomena. Filomena era a formiga que morava embaixo da cama. Virava e mexia ela aparecia. E achávamos que minha mãe sabia que era ela. Cresci ouvindo histórias de contos de fadas trocadas e só aprendi de fato as histórias verdadeiras quando as contei para minha filha. Acho que contar histórias trocadas é como querer reescrever a própria história. Eu também faço isso. A cama dos meus pais era o lugar preferido das manhãs de domingo, acordávamos e íamos nos aboletar em cima deles. Era uma delícia! Dormir com a minha mãe era bom, ela coçava minhas costas e eu adormecia feliz. O quarto da minha mãe também traz lembranças difíceis. Traz memórias de dor, de raiva e de perda. Embora minha mãe estivesse viva, muitas vezes eu sentia que ela não estava lá. Era presença ausente. Eu me lembro de cada lágrima, de cada momento, de como eu gostaria de poder ter feito alguma coisa para fazê-la se sentir melhor. Mas hoje eu sei que nada seria suficiente para curar uma alma triste. Nem mesmo a alegria de uma criança. Carrego as cicatrizes no meu corpo. Sou para minha filha, a mãe que não senti ter. O quarto dos meus pais traz com ele a aura escura das noites tristes que eu apaguei da memória por tantos anos, e hoje posso falar porque já não são assim dentro de mim. Guardo comigo a Filomena, as histórias contadas e a voz suave da minha mãe.
O escritório do meu pai era forrado de estantes de ferro com uma infinidade de livros. Livros de direito, livros de filosofia, livros de cinema, livros de literatura e clássicos. Tinha uma escrivaninha de madeira onde morava a máquina de escrever que ele usava para dar os pareceres nos processos. A máquina escrevia em letra cursiva. E meu pai era muito exigente. Se errasse a última letra da folha, amassava e começava tudo novamente. Ali também ficava o seu armário de roupa. Ternos, camisas, gravatas, tudo em degrade. Arrumação impecável. Já não posso dizer o mesmo da mesa de trabalho. Costumava trabalhar a noite, dizia que gostava do silêncio. O escritório era o lugar mais sério da casa. Mas também o mais interessante. Eu tenho estantes de livros até hoje que me lembram esse lugar. As estantes da casa da minha tia, irmã do meu pai, também são assim, mas de madeira como as minhas. Minha coleção de livros tem livros que meus pais tinham também, mas muitos deles escritos em francês. Liam e traduziam artigos do francês para o português para o jornal do Cine Clube Campinas. Eram muito cultos e inteligentes. Meu pai sempre perguntava coisas para minha mãe e, um dia, na escola, a Paola, que também era muito inteligente, questionada sobre como ela, filha do Disnei havia cometido algum erro, ela prontamente respondeu é minha mãe que ensina o meu pai. Tomara que essa professora tenha entendido que esse é um tipo de comentário totalmente desnecessário. Veja que até hoje não pude me esquecer desse fato. Enfim, o escritório da minha casa parecia mágico. Era o lugar do conhecimento, mas não da sabedoria. O lugar da sabedoria era o jardim. Trago comigo o gosto pelos livros, as estantes organizadas, as palavras que me habitam. De todos os lugares acho que este é o que mais me representa.
Os banheiros da minha casa eram simples. Pia com armário embutido embaixo, vaso sanitário, bidê e um armário de guardar toalhas. O Box era quadradinho com porta de acrílico. Meu pai era obcecado com dentes. Me lembro dele muitas vezes supervisionando a escovação dos dentes. Mas o banho às vezes era de mentira. Eu abria o chuveiro e fingia tomar banho. Molhava o cabelo na pia e saia do banheiro com a maior cara lavada. Quando eu penso hoje, que amo tomar banho, não dá pra acreditar. O banho também era momento de cantar. Cantar no chuveiro, desopilar, e me esconder dentro do box do banheiro dos meus pais quando brincávamos de Esconde-esconde. Lugar de privacidade, lugar de brincar, lugar de esconder, lugar de revelar. O banheiro também é lugar de silêncio, de estar consigo mesmo, e com o seu corpo. Acho que tomar banho para a criança também é conhecer o próprio corpo, explorar cada parte do corpo, compreender a sensação do toque. Adorava quando a água quente caia sobre meu corpo gelado da chuva. Sempre tomei chuva. Corria, molhava a corpo todo e era uma delícia. Acho que apesar dos banhos não tomados, que foram poucos, a água é um dos elementos que mais me encanta. Parece mágica abrir a torneira ou o chuveiro e sair água, talvez seja a mágica que muitos nunca viram. O silêncio do banheiro ainda persiste em mim. O azulejo gelado, a textura da água, e a sensação de estar comigo mesma.
A cozinha tinha duas portas a de faroeste, que ia para a sala de jantar e uma porta de metal e vidro que ia para o quintal. Uma geladeira, um fogão, uma pia, um armário embutido onde ficava tudo. Da cozinha minhas memórias são mais escassas, mas minha casa tinha particularidades como toda casa. Minha mãe cozinhava muito bem. Sempre que ia pra cozinha era uma delícia. Fazia peixes maravilhosos. Meu pai fazia sanduíche aos domingos à noite. E a Neuza cozinhava de segunda a sexta. A Neuza era uma luz pra mim. Uma pessoa espetacular. Sua voz suave e serena me acompanha até hoje. Ficou muitos anos na família, depois que meus pais morreram ela continuou na casa da Paola. Sabe aquela pessoa de coração quentinho, fala mansa e passos silenciosos? Era um acalento saber que ela estava ali. Meu pai não gostava nem do cheiro de cebola e alho, então os temperos em casa eram restritos, mas quando ele ia a SP, sempre tinha bife acebolado. A cozinha era lugar de arte também. Abríamos leite condensado escondido, fazíamos pipoca pra comer assistindo sessão da tarde, e sempre havia muitas frutas em casa, na casa da minha tia Darly também é assim. Uma vez tive uma experiência bem estranha na cozinha. Eu estava sozinha e era noite. Havia um mamão em cima da pia apoiado num pratinho. Eu estava pegando uma água quando de repente esse mamão se deslocou sozinho e espatifou na parede de azulejos. Levei o maior susto e fiquei chocada, afinal não tinha ninguém ali. Pelo menos ninguém que eu pudesse ver. Da cozinha eu guardo a presença da Neuza, guardo os bolinhos de chuva, e a sensação de gratidão por nunca ter me faltado nada.
A sacada era suspensa sobre o jardim. Embaixo dela morava o sapo, o Godofredo. De lá da sacada eu me sentia dentro e fora de casa. Eu podia ouvir a música e os sons de dentro, mas via o que estava fora. A paisagem de fora: cerca da Lagoa do Taquaral, pessoas caminhando e correndo, o jardim e o movimento dos carros na avenida. A sacada tinha uma grade baixa que a contornava. Me lembro do meu pai sentado na grade fumando, da minha avó materna observando o jardim e das brincadeiras de entrar e sair da sacada pelas duas portas com venezianas, que a ligavam a sala de estar. A sacada era um lugar reservado e exposto ao mesmo tempo. Reservado para quem estava na sala e exposto para quem estava na rua ou no jardim. Não será a vida sempre assim também? Reservada e exposta, dependendo do ponto de vista. Eu tomei várias chineladas e broncas porque era muito levada. Mas a única surra de cinta que eu levei do meu pai foi na sacada. Eu não sei o que doía mais se a sua fúria ou se o cinto batendo no meu corpo. Nessa época as coisas eram tão difíceis na minha casa que talvez a surra nem tenha sido tão ruim. Eu não tenho mais a memória da surra no meu corpo, mas tenho a sensação da violência guardada em mim. Não me dei conta disso até esse momento que enquanto escrevo, o que quase nunca contei a alguém, o meu corpo responde com uma contração no estômago e um arrepio na pele. A sacada continua presente em mim, eu prefiro guardar a música que vinha da sala, a paisagem da Lagoa e casa do Godofredo. Embora um dos menores lugares da casa a sensação da sacada é intensa. Me liberto da dor porque a transformei em amor e compreensão. Ninguém pode ser violento com o outro sem ser consigo mesmo antes. Me perdoo por demorar a compreender e carrego a verdade de um pai exausto de tanta dor. Acho que todos nós ficamos exaustos da dor.
Eu saí da casa da infância, mas ela nunca saiu de mim. Os passos que me levavam de um cômodo a outro, os choros escondidos, os gritos, a tristeza de ver a morte chegando devagar. Aos poucos ela se instalou na casa. Primeiro com a tensão, depois com a tristeza e enfim com o silêncio. Eu, na minha forma ingênua de ser e de pensar, imaginei que poderia evitar. Mas evitar o que? A dor? A raiva? A tristeza? A morte? Não fui capaz de evitar nenhumas delas nem tampouco fugir. Ainda não sou capaz de evitar nenhumas delas, e nem de fugir, mas hoje não quero mais evitar. Prefiro enfrentar com toda dureza que possa parecer. Só assim é possível me livrar. Me desconhecer em mim para reconhecer a fragilidade, as emoções e a aceitação do que é a vida. Do nascer, do viver, do morrer. Há quem morra em vida e há quem permaneça na vida depois da morte. Viver e morrer é só um estado. O que determina a vida e a morte é como se vive. São as construções do ser. As emoções que alguém sentiu enquanto você ainda estava aqui, por suas palavras, por seus abraços, por seus intensos desejos de ser alguém melhor; ou pela emoção causada pelo que você deixou vivo na tentativa de nunca morrer.
desenhos, fotografia e textos ValĂŠria Scornaienchi design grĂĄfico Fabiana Pacola Ius Esse projeto foi realizado para a impressĂŁo em tamanho postal e foi adaptado para web para ser disponibilizado durante a quarentena.