I FÓRUM DE PESQUISA EM ARTE
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Arte & Linguagem I Fórum de Pesquisa em Arte Anais
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Coordenação Editorial: Laïs Zumero Revisão Editora da UFPA Capa , Projeto Gráfico e Editoração Eletrônica: Ceu Caótico Design
Dados internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Sampaio, Valzel Figueira; Sousa, José Afonso Medeiros Arte & Linguagem: I Fórum de Pesquisa em Arte/ Valzeli Figueira Sampaio; José Afonso Medeiros Sousa (orgs) - Belém: Editora da UFPA, 2003.
ISBN 1. Artes, Artes Visuais, Semiótica, Música
ICA Pç. da República, s/n - Comércio - Belém - Pará 66019-080 / 0xx91-241-5801 / 241-8369
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Arte & Linguagem I Fórum de Pesquisa em Arte Organização Valzeli Sampaio José Afonso Medeiros Sousa
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Arte & Linguagem I Fórum de Pesquisa em Arte
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13 A Importância do Encontro e os ObjetivosCientíficos 14 Programa CONFERÊNCIAS
19 A semiótica como campo de conhecimento Lúcia Santaella
26 Arte e Sonoridade
Lia Braga Arte e Verbalidade 46 José Afonso Medeiros 57 Arte e Visualidade Valzeli Sampaio 63 Simetria e quebras de simetria nos signos e nos sistemas semióticos Winfried Nöth
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COMUNICAÇÕES
75 A Cena Contemporânea – Hibridismo de Linguagens Janice Lima
87 A Música Paraense na 1ª Metade do Século XX FábioLima
94 A Performance da Quadrilha Junina EleonoraLeal
99 A Releitura do Rock na Capital Paraense KeylaMonteiro
106 As Histórias de Vida na Cena WladileneLima
110 Claudia Leão e a Imagem Submersa MarianoKlautauFilho
114 Confecção de Bonecos de Fantoche: uma Experiência com Crianças e Adolescentes de Rua LúciaCosta 121 Do Cortejo Dionisíaco à Dança Contemporânea Miguel Santa Brigida 127 Espaço (inter) Espaço: uma Passagem Vitual Carlota Brito 131 Faz e não Faz de Conta: a Criança Intérprete Compreendendo seu Contexto em Cena OlindaCharone 135 História e Música em Santarém MavildaAliverti 141 Modernismo de Batina FabianoMoraes 142 As festas de santo e o dabokuri Lilian Barros 158 Nos Tempos do Rádio-teatro ÉritoOliveira 163 O Choro em Belém:1970 a 1990 Maria JoséMoraes
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170 O Riso do Pássaro
Marton Maués 178 Vernissage da História Aldrin Figueiredo 189 Pichação: Expressionismo Abstrato Urbano no peito da cidade 200 Luizan Pinheiro Raça e Revolução: Alfredo Norfini e a Pintura da Cabanagem Magda Ricci 201 Récita Didática Urubatan Castro 203 Relato de Experiências sobre Materiais Minerais Bernadete Reale 208 Sistema Integrado de Museus Rosângela Brito Vida, Agonia e Ressurreição do Pássaro Arara Lígia Simonian PERFORMANCES O Retorno Mariana Marques PAINÉS Seriedade nas Brincadeiras Teatrais Osmarina Gerhardt da Costa Dança da Onça: uma Manifestação Espetacular em Vigia de Nazaré – Pa Éder Jastes
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Comissão Organizadora, Executiva e Científica: Prof. Dr. José Afonso Medeiros de Sousa (ICA/UFPA) Profª. Drª. Valzeli Figueira Sampaio (ICA/UFPA) Profª. Drª. Lia Braga (UFPA-UEPA)
Entidades Promotoras: ICA(UFPA) Curso de Artes Visuais e Tecnologia da Imagem (UNAMA) Secretaria de Cultura do Estado -SECULT Sistema Integrado de Museus- SIM Museu de Arte Sacra - MAS
Instituições Participantes: Universidade Federal do Pará (UFPA) Instituto de Ciências das Artes (ICA/UFOA) Universidade da Amazônia (UNAMA) Secretaria de Cultura do Estado do Pará (SECULT)
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A IMPORTÂNCIA DO ENCONTRO E OS OBJETIVOS CIENTÍFICOS
Entender o que é arte, hoje resulta numa tarefa de reflexão. O primeiro pressuposto é entender que a arte do passado e a arte contemporânea pertencem-se de modo recíproco. Nenhum artista atualmente, sem a intimidade com a linguagem da tradição, poderia ter desenvolvido suas próprias audácias, afinal o pensamento humano é fabricado por uma linguagem dos mais variadas e diferentes sistemas sígnicos. A linguagem tem a importante função de possibilitar a construção do pensamento e ao mesmo tempo servir como instrumento para a composição de signos ou sistema de signos, para permitir que a comunicação seja estética ou prática. É necessário corrigir aquela lacuna histórica, que tem origem na inexistência de eventos com o objetivo de congregar e fomentar um ambiente de intercâmbio para a produção teórico-prática da região e de centros de pesquisa em arte. 1º Fórum de Pesquisa em Arte, vem ser este ambiente para os pesquisadores, estudiosos e artistas e tem como eixo central a relação entre Arte e Linguagem, pois com o avanço constante das novas tecnologias, os criadores e pensadores em Arte necessitam reaparelhar-se técnica e conceitualmente, para adaptar as linguagens tradicionais à nova configuração do mundo técnico. De outra parte, as novas linguagens produzidos pelas modificações interagem com formas de comunicação tradicionais, como a oralidade e os supostos materiais das artes, provocando alterações nas concepções da comunicação e da obra de arte. Lia Braga Valzeli Sampaio Afonso Medeiros
APRESENTAÇÃO
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I FÓRUM DE PESQUISA EM ARTE I FORUM DE PESQUISA EM ARTE TEMAS Artes Cênicas/ Cultura Popular Artes Cênicas/ Linguagens Híbridas Artes Visuais/ Contemporaneidade Ensino de Arte (Artes Cênicas/ Música) História da Arte/ Museologia) Música PROGRAMA 15 de outubro 09:00h –10:15h –
Entrega de material; inscrições Abertura do Fórum com os Magníficos Reitoras da UFPA, UEPA, UNAMA e Secretário de Cultura Local: Museu de Arte Sacra 10:15h – 10:45h – Intervalo com performance de Lana Fraga - Museu de Arte Sacra. 10:45h – 12:00h – CONFERÊNCIA ABERTURA Profª. Drª. Lúcia Santaella Local:Museu de Arte Sacra 12:00h – 14:30h – Almoço 14:30h – 18:40h – Painés 14:30h – 16:30h – MESA: ENSINO EM ARTE (ARTES CÊNICAS/ MÚSICA) Moderador(a): Profª. Ms. Janice Lima Local:Museu do Estado do Pará l Confecção de Bonecos de Fantoche: uma Experiência com Crianças e Adolescentes de Rua – Lúcia Costa l Faz e não Faz de Conta: a Criança Intérprete Compreendendo seu Contexto em Cena – Olinda Charone l Princípios do Método Orff – Shirlene Almeida l Récita Didática – Urubatan Castro 16:30h – 16:40h – Intervalo 16:40h – 18:40h – MESA 2: MÚSICA Moderadora: Profª. Ana Margarida Leal Local:Museu do Estado do Pará l O Piano na Educação da Sociedade Brasileira – Urubatan Castro l A Música Paraense na 1ª Metade do Século XX – Fábio Lima l História e Música em Santarém – Mavilda Aliverti l O Choro em Belém: 1970 a 1990 - Maria José Moraes l A Releitura do Rock na Capital Paraense – Keyla Monteiro 16 de outubro 09:00h – 10:15h – CONFERÊNCIA: ARTE E SONORIDADE Lia Braga (UEPA/UFPA) Local: Museu de Arte Sacra 10:15h – 10:45h – Intervalo com Performance de Suzane Pereira - Museu de Arte Sacra 10:45h – 12:00h – CONFERÊNCIA: ARTE E VISUALIDADE Valzeli Sampaio (UFPA)
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PROGRAMAÇÃO
I FÓRUM DE PESQUISA EM ARTE Local:Museu de Arte Sacra 12:00h – 14:30h – Almoço 14:30h – 18:40h – PAINÉS - Museu do Estado do Pará 14:30h – 16:30h – MESA: ARTE VISUAIS/ CONTEMPORANEIDADE Moderadora: Profª. MS. Rosângela Brito Local:Museu do Estado do Pará l Relato de Experiências sobre Materiais Minerais – Bernadete Reale l Pichação: Expressionismo Abstrato Urbano no Peito da Cidade – Luizan Pinheiro l Claudia Leão e a Imagem Submersa – Mariano Klautau Filho l Espaço (inter) Espaço: uma Passagem Vitual – Carlota Brito. 16:30h – 16:40h – Intervalo 16:40h – 18:40h - MESA : ARTE/ MUSEOLOGIA Moderador: Prof. Jorge Eiró Local:Museu do Estado do Pará ¨ Raça e Revolução: Alfredo Norfini e a Pintura da Cabanagem Magda Ricci ¨ O Vernissage da História – Aldrim Figueiredo ¨ Modernismo de Batina – Fabiano Moraes ¨ Sistema Integrado de Museus – Rosângela Brito 17 de outubro 09:00h – 10:15h – CONFERÊNCIA: ARTE E VERBALIDADE Prof. Dr. Afonso Medeiros Local:Museu de Arte Sacra 10:15h – 10:45h – Intervalo com Performance de Mariana Marques Local:Museu de Arte Sacra 10:45h – 12:00h – CONFERÊNCIA ENCERRAMENTO Winfried Nöth (Universidade de Kassel, Alemanha) Local:Museu de Arte Sacra 12:00h – 14:30h – Almoço 14:30h – 18:40h – Painés - Museu do Estado do Pará 14:30h – 16:30h – MESA: ARTE CÊNICAS/ CULTURA POPULAR Moderadores : Prof. MS. Neder Charone e Profª. Karine Jansen Local:Museu do Estado do Pará ¨ Vida, Agonia e Ressurreição do Pássaro Arara – Lígia Simonian ¨ O Riso do Pássaro – Marton Maués ¨ Do Cortejo Dionisíaco à Dança Contemporânea Miguel Santa Brigida ¨ A Performance da Quadrilha Junina – Eleonora Leal 16:30h – 16:40h – Intervalo 16:40h – 18:40h – MESA: ARTES CÊNICAS/ LINGUAGENS HÍBRIDAS Local:Museu do Estado do Pará ¨ Música e Identidade Indígena – Lilian Barros ¨ As Histórias de Vida na Cena – Wladilene Lima ¨ Nos Tempos do Radioteatro – Érito Oliveira ¨ A Cena Contemporânea – Hibridismo de Linguagens – Janice Lima
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A SEMIÓTICA COMO CAMPO DE CONHECIMENTO
Lucia Santaella e Winfried Nöth*
Este artigo não pretende desenvolver o histórico e as articulações conceituais próprias das diferentes escolas semióticas, pois esse conteúdo já está amplamente divulgado nos livros Panorama da semiótica (Nöth 1998), Semiótica no século XX (Nöth 1999) e detalhadamente discutido no longo volume do Manual de Semiótica (Nöth, no prelo), que é a tradução para o português da edição aumentada do original alemão Handbuch der Semiotik (2000). Em lugar disso, o que apresentaremos a seguir é a discussão do estado da arte da semiótica como campo de conhecimento. A SEMIÓTICA É UMA CIÊNCIA? É com grande assiduidade que os debates e dúvidas acerca do estatuto da semiótica como ciência freqüentaram e ainda continua freqüentando os encontros científicos e os textos sobre semiótica. Alguns chegaram a acreditar que ela não passava de uma moda. Mas também foi tomada por atividade, práxis e, inclusive, revolução. Outros consideraram-na como um movimento ou uma área de interesse. Aproximando-se de uma semântica mais científica, ela foi chamada de campo de pesquisa, princípio de análise, método, ciência, projeto de ciência, interdisciplina, transdisciplina, metadisciplina, doutrina, teoria, metateoria, metaciência ou ideologia das ciências (Nöth no prelo). Tudo isso parece funcionar como um sintoma da grande dificuldade de se situar a semiótica no conjunto das demais ciências. Na concepção clássica de ciência, concepção que recebeu sua consumação no século 19, uma ciência se constitui por meio da delimitação de seu objeto, este se definindo como um recorte nítido de um segmento da realidade empírica. A cada recorte corresponde uma área da ciência que tem por
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finalidade investigá-lo, revelando seus desígnios. Essa concepção, que cabia bem ao nível de avanço das ciências naturais no século passado, foi também tomada como modelo para as ciências sociais e, até mesmo, para as humanidades. É bastante representativa dessa concepção, a conhecida discussão empreendida por Saussure, no início do século 20, sobre a ciência lingüística e seu objeto, no terceiro capítulo do Cours (1916: 15-18), discussão que seria tomada como paradigmática em muitas das concepções de ciência professadas no interior do estruturalismo. Ainda hoje, quando se fala em ciência e cientificidade, é essa concepção que é tomada como modelo. Muito embora os critérios de cientificidade, que eram parte desse modelo, tenham sido questionados no decorrer do século 20 (ver especialmente Feyerabend 1975) a relação de uma ciência com aquilo que é chamado de seu objeto, isto é, o recorte da realidade empírica que ela recobre, é uma questão relativamente consensual. Em algumas ciências, esse recorte é mais nítido, em outras, menos nítido. No caso da comunicação, como já foi visto no capítulo 1, a dinâmica do crescimento dos fenômenos empíricos que ela visa explorar e a heterogeneidade de seu campo, tornam difícil se não impossível definir seu objeto. No caso da semiótica, sempre houve um certo consenso na indicação de seu objeto, a saber, todos os processos sígnicos na natureza e na cultura. O problema que surge para a semiótica, todavia, reside na impossibilidade de recortar o território da realidade empírica que esse objeto abrange, pois processos sígnicos estão em toda parte, atravessando áreas que pertencem às mais diversas ciências, das humanidades e ciências sociais até as ciências naturais. Em síntese, a semiótica, pela própria natureza de seu objeto, invade os territórios das outras ciências, com o que ela acaba por colocar em questão a própria compreensão que se tem do que é o objeto de uma ciência. Vem daí a incerteza que sempre rondou a semiótica quanto a sua constituição como uma ciência e todas as especulações daí decorrentes. Por invadir os territórios das outras ciências, investigadores das mais diversas áreas, situados originalmente em algum desses territórios, dedicamse à semiótica sempre como uma segunda área de especialidade. Em função disso, a constatação feita por Charles Morris (1938: 1), há mais de 60 anos, continua até hoje verdadeira: “É improvável que, anteriormente, os signos já tenham sido estudados por tantas pessoas e a partir de tantas perspectivas. Do exército de pesquisadores, fazem parte lingüistas, lógicos, filósofos, psicólogos, biólogos, antropólogos, psicopatólogos, estetas e sociólogos”. Vale notar, neste ponto, que, quando o estatuto científico de um dado campo do saber é colocado em questão, cumpre se perguntar que noção de ciência está dando suporte ao questionamento. No caso da semiótica, não poderia haver concepção científica mais apropriada para definir o seu campo do que a do fundador da moderna semiótica, Charles Sanders Peirce (CP 1.232; CP 8.343), quando diz que é “muito importante que
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tenhamos uma noção de ciência como coisa viva e não uma definição meramente abstrata. Não devemos esquecer que a ciência é um projeto de pessoas vivas e que sua característica mais marcante é que, sendo genuína, encontra-se em um estado permanente de metabolismo e de crescimento”. Por conseguinte, é característica fundamental da ciência viva estar continuamente rompendo fronteiras, do que decorre não poder haver pré-determinação imposta de fora sobre seus limites. UMA CIÊNCIA POR SE FAZER Muitos pensam que a semiótica nasceu com Saussure, quando, no seu Cours (1916: 23), ele alertou para a possibilidade de se conceber uma ciência que estudasse a vida dos signos no seio da vida social. Tal ciência constituiria uma parte da Psicologia social e, por conseguinte, da Psicologia geral. Saussure batizou-a de Semiologia e propôs que ela nos ensinaria em que consistem os signos, que leis os regem. “Como tal ciência não existe ainda”, dizia ele, “não se pode dizer o que será; ela tem direito, porém, à existência; seu lugar está determinado de antemão. A Lingüística não é senão uma parte dessa ciência geral; as leis que a Semiologia descobrir serão aplicáveis à Lingüística e esta se achará dessarte vinculada a um domínio bem definido no conjunto dos fatos humanos”. Essa proposta de Saussure encontrou grande repercussão algumas décadas mais tarde, o que levou muita gente a pensar que esse tenha sido o primeiro batismo da moderna semiótica. Contudo, quando Saussure afirmou isso, em 1911-12, Charles Sanders Peirce já havia erigido o edifício da sua semiótica concebida como lógica em um sentido amplo, uma dentre as disciplinas de sua arquitetura filosófica. Dado que toda essa construção só foi divulgada tardiamente, Saussure tem recebido o louro da paternidade, mesmo não tendo ele chegado a desenvolver a ciência pretendida. A declaração saussuriana da semiologia como uma “ciência ainda não existente” acabou por marcar o seu destino. Décadas depois de Saussure, a semiótica continuou sendo tida por muitos autores mais como um projeto do que uma ciência estabelecida, e isso “não apenas devido ao ritmo necessariamente lento de uma ciência em seu início, mas também devido a uma determinada incerteza quanto a seus princípios e conceitos fundamentais” (Ducrot & Todorov 1972: 90). Em meados dos anos 1970, Sebeok (1976: 64) caracterizava a semiótica como “uma disciplina científica em seus sapatos infantis”, ainda carente “de um fundamento teórico abrangente”, embora já bastante marcada por “uma perspectiva comum” por parte dos pesquisadores. No final dessa mesma década, Greimas & Courtès (1979: 344), por sua vez, já enxergavam “sinais de salubridade e de vitalidade” no campo da semiótica, chegando à conclusão de que, entrementes, ela se apresentava tanto como um projeto de análise quanto como uma análise em desenvolvimento. Enfim, por um bom tempo a semiótica esteve envolvida na atmosfera das afirmações sobre “novos
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horizontes” (Deely et al., eds. 1986) e por relatos sobre uma “semiótica em desenvolvimento” (Borbé, ed. 1984). É curioso notar que, nem bem haviam cessado esses tipos de comentários e as promessas futuras para o estágio projetual da ciência semiótica, e já começaram a soar vozes anunciando a “agonia da semiótica” (Blonsky, ed. 1985: xviii). Para aqueles que haviam esperado posições dramaticamente revolucionárias por parte da semiologia ou semiótica, de fato, o projeto se frustrou antes mesmo de se consolidar. Vieram dessas expectativas não realizadas os presságios de um fim da semiótica, junto com os anúncios, por exemplo, de Simpkins (1998) e Bouissac (1998) de uma “era póssemiótica”. Stewart (1995) também propôs a necessidade de uma filosofia pós-semiótica. Esses augúrios seriam sérios se, para fazê-los, os argumentos dos autores não estivessem baseados em visões reducionistas e até caricatas da semiótica. Muito diferente disso é discutir as raízes semióticas do pósmoderno, como o fez Deely (1994). Um olhar retrospectivo dos prognósticos passados nos revelam que muitos deles não puderam se realizar. Entre os mais ambiciosos, dentro de um enquadramento positivista, estava o de Morris (1938: 1), referente à conversão da semiótica em uma ciência unificada, no contexto do projeto de Otto Neurath de uma International Encyclopedia of Unified Science. Hoje, não só não existe uma “perspectiva unificada”, quanto também há uma série de tendências, correntes, perspectivas e, inclusive, definições de semiótica (Pelc 1981, 1984). Ao mesmo tempo, a semiótica também ultrapassou em muito os limites que haviam sido colocados para o campo semiótico por alguns de seus fundadores, assunto que será brevemente tratado mais à frente. O QUE É SEMIÓTICA Enquanto em outras ciências, tais como a psicologia, a sociologia, a antropologia etc., os leigos têm sempre uma idéia, mesmo que vaga, dos objetos de que essas ciências tratam, quando se fala em “semiótica”, a palavra assusta, pois não se consegue, de imediato, preenchê-la com conteúdos de senso comum. E as definições, sempre muito abstratas, de imediato, não ajudam muito. z concebido não só como fala lingüística, mas também como fenômenos culturais e estéticos em geral (pintura, filme, música, comportamento não-verbal etc.). Bakhtin, por seu lado, desenvolveu uma teoria do signo e do texto independente das posições fundamentais dos formalistas russos. Sua teoria da semioticidade das ideologias, trabalhada em conjunto com Volosinov e Medvedev, está baseada na natureza inalienavelmente ideológica de todo signo. Uma outra família de signos, estes concebidos dentro de uma lógica triádica, vem de Peirce, cuja doutrina dos signos foi sumariamente simplificada por Morris, embora este ainda tenha mantido a triadicidade original.
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Enfim, não temos aqui a intenção de exaurir as diferentes concepções de signos, nem aprofundar as que já foram mencionadas. Há um grande número de fontes à mão, onde essa informação pode ser colhida (por exemplo, Nöth 1999). Pretendemos apenas fornecer uma rápida amostragem de quão pouca ajuda se tem quando se define a semiótica como a ciência dos signos, pois o termo “signo” está muito longe de ser univalente. A EXPANSÃO DO CAMPO SEMIÓTICO Cunhada por Umberto Eco (1976), a metáfora do limiar semiótico tem sido usada para designar as fronteiras do campo de pesquisa da semiótica. Para aqueles que têm acompanhado o desenvolvimento histórico dos estudos de semiótica explícita desde os anos 1950 até o presente, é evidente que, de lá para cá, esses estudos vêm passando por um aumento gradual do limiar semiótico. Quando o boom dos estudos semióticos emergiu na década de 60, suas raízes vinham da lingüística saussuriana e hjelmsleviana, e o primeiro campo a se expandir sob a influência estruturalista foi o dos estudos literários, especialmente com a semiótica da narrativa, a poesia e o discurso em geral. Do discurso verbal, a semiótica expandiu para outros sistemas de signos, como pintura, cinema, comunicação de massa, moda, culinária etc. Nos anos 70, sob a influência da tradução para o francês e inglês de trabalhos originários da Escola de Moscou, Tartu e do Círculo de Bahktin, o próximo passo na expansão dos estudos semióticos direcionou-se para a cultura em geral. Nessa mesma década, a rica herança do amplo domínio de pesquisa semiótica deixada por Charles Sanders Peirce começou a ser tirada do esquecimento graças ao sinal de alerta emitido por Roman Jakobson sobre a importância fundamental da obra de Peirce para o estudo dos mais diversos processos de signos. Ao mesmo tempo, o trabalho de Charles Morris começou a ser explorado por seu potencial de aplicação a processos de signos não-verbais. Desde os anos 60, nos Estados Unidos, Thomas Sebeok já estava se movendo na direção de novos horizontes da semiótica: das estruturas textuais à comunicação em geral, da comunicação verbal à não-verbal humana, e, além da comunicação humana, a comunicação animal que, sob o nome de zoossemiótica, constituiu uma das maiores contribuições de Sebeok para a expansão do campo semiótico. Para Sebeok, a semiose começa com as origens da vida. Assim, a semiótica e a biologia têm o mesmo objeto de estudo, embora as perspectivas de estudo difiram. Com a nova interdisciplina da biossemiótica, os processos semióticos nos microrganismos e células, incluindo aqueles que ocorrem dentro do corpo humano, começaram a ser investigados. Em suma: na medida em que as investigações semióticas prosseguiam, elas foram levando ao
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reconhecimento de uma variedade de processos sígnicos, da bio e ecossemiose até as mais diversas semioses humanas. Além disso, com o desenvolvimento dos computadores e da cultura digital, o domínio dos sistemas não-vivos, das máquinas e computadores à vida artificial, como já vimos acima, constituiram-se em novos desafios para os estudos semióticos. De fato, todos esses domínios têm sido bem aceitos e não tem havido muita controvérsia sobre a sua aceitação no campo de investigação semiótica. O limiar mais recente que tem estado sob debate e que, até agora, não foi muito explorado é o da fisiossemiose. Tanto quanto é de nosso conhecimento, o primeiro semioticista a chamar atenção para este limiar foi Joseph Ransdell (1986: 53), quando comentou que, ao generalizar ao máximo a noção de signo, Peirce aumentou enormemente o escopo das aplicações possíveis da teoria dos signos, indo dos processos intraorgânicos aos econômico-políticos, podendo-se até especular sobre a possibilidade da análise semiótica de fenômenos físicos. Batendo na mesma tecla, ao mencionar a nova e remarcável visão que Sebeok havia entretido, desde os 60, sobre a convergência da ciência da lingüística com a ciência da genética, Deely (1990: 86) afirmou que “embora Sebeok tenha feito a semiótica contemporânea avançar consideravelmente além dos limites de uma antropossemiose, glotocêntricamente concebida, e na direção da consideração de processos sígnicos que atravessam o mundo biológico, isso ainda não forneceu fundamentos para a noção de uma fisiossemiose, isto é, para se ver a ação própria dos signos já atuando na natureza física nela mesma, para aquém dos limites da matéria orgânica ou antes do seu surgimento”. Para Deely, fornecer esse fundamento adicional e estabelecer a ampla concepção de semiose peirceana seriam a mesma coisa. Tal passo decisivo é o que se requer, dizia ele, para o estabelecimento das plenas possibilidades da doutrina dos signos. Desde essa consideração de Deely, um novo campo de protossemiose no mundo inanimado e mesmo no campo da fisiossemiose emergiu, tendo como seu objeto de estudo os precursores da semiose no mundo inanimado e mesmo no campo da fisiossemiótica. Autocatálise, ordem a partir do caos, estruturas dissipativas, e outros processos nos sistemas físicos dinâmicos, que dão testemunho da possibilidade de um crescimento espontâneo da ordem na natureza, tornaram-se tópicos de estudo na busca das origens da semiose. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Blonsky, Marshall (ed.) (1985). On signs. Baltimore: Johns Hopkins. Borbé, Tasso (ed.) (1984). Semiotics unfolding. 3 vols. Berlin: Mouton.
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INTRODUÇÃO DA MÚSICA ERUDITA EM BELÉM DO PARÁ OU SOBRE COMO CONSTRUIU-SE ALI UMA SONORIDADE EUROPÉIA
LIA BRAGA VIEIRA* RESUMO: O presente texto trata da introdução da música erudita européia em Belém do Pará. O período do estudo abrange o tempo situado entre os séculos XVII e XIX. São abordados a prática e o ensino da música européia precursores do que denomino de modelo conservatorial - modo de ensino dessa música firmado no século XIX. Por meio deste texto, busco a apreensão das noções que a música erudita européia e a prática do seu ensino veiculavam e o que foi absorvido, a ponto de tornar-se aspecto permanente da prática cultural local. PALAVRAS CHAVE: Música no Pará - constituição, prática, ensino. INTRODUÇÃO Imagine-se os portugueses colonizadores chegando à Amazônia, os olhos postos nas águas densas barrentas e na mata... Decerto que se tratava de uma paisagem que lhes entrava pelos olhos. Paisagem muda, pois seus ouvidos, ao que parece, não estavam ali. Isto porque, tão logo chegaram, aportaram com seus sons, suas falas, seus cantos, seus instrumentos, aí cravados fundo, junto com a cruz da missa que se desejava imediata. A paisagem sonora nativa se modificava e não seria mais a mesma. Primeiro, os sons das missões, com seus cantos litúrgicos medievais cantados em latim, os sons dos órgãos feitos de taboca tocados pelos padres e maracás executados pelos índios; depois, nas manifestações que mesclam, podiase ouvir nos povoados, nas vilas e nas cidades, ecoando das casas, das igrejas, de teatros pequenos e grandes, dos paços e das ruas, os sons de uma tradição herdada tomada pelos herdeiros. Toda a história musical que se construiu a partir de então, e que não pode ser reduzida a duas linhas, é de tradução da cultura sonora européia neste mundo inusitado da Amazônia. Parte desse mundo, Belém do Pará teve sua 26 CONFERÊNCIA
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história iniciada, ao menos oficialmente, no século XVII, enquanto era construída uma sociedade. Hoje, a paisagem que se vê e que se ouve, especialmente numa esfera oficial e socialmente legitimada, é a de hegemonia de uma música praticada e ensinada nas escolas a partir de princípios fundadores de um modelo conservatorial, nascido na Europa do final do século XVIII. Tais fundamentos consistem na divisão do saber musical em teoria e prática instrumental, valorização do conhecimento acumulado até o século XIX e ênfase ao virtuosismo que seria resultado de talento e genialidade. A discussão sobre os problemas desse modelo para a formação e atuação do professor de música foi estabelecida por mim em outro texto (VIEIRA, 2001). Neste, o objetivo é refletir sobre o processo histórico que permitiu a introdução e a constituição desse modelo em Belém do Pará. Faço esta reflexão sob o eixo da contextualização. Isto porque considero a música uma prática que contribui para uma construção social e é construída no âmbito das relações sociais, e que estas levam em conta as condições temporais e espaciais, bem como as oportunidades e os interesses políticos e econômicos. O pressuposto, aqui retido, é de que a presença da música erudita européia, em Belém, está relacionada à interferência de um conjunto dos fatores sociais, marcados por acontecimentos históricos de caráter político-econômico. Dentre eles, destacam-se: a fixação da sede do Estado do Grão-Pará e Maranhão em Belém, no século XVII; a criação do Bispado do Pará e da Companhia Geral de Comércio do Grão Pará e Maranhão, no século XVIII; a introdução e o desenvolvimento da coleta da borracha, a que se deu o nome de ciclo da borracha, no século XIX primeiros anos do século XX. No decorrer desses acontecimentos, configuraram-se estratégias sociais, políticas e econômicas, que concorreram para a introdução e desenvolvimento da música erudita européia em Belém. PRÁTICAS E ESPAÇOS MUSICAIS A música erudita européia, da forma como estudam os historiadores consultados1, foi introduzida e firmada em Belém do Pará, pelo europeu colonizador. A ele coube buscar reproduzir, no novo espaço geográfico conquistado, as práticas culturais, entre as quais estava a música, como meio de assinalar a sua conquista. O intento da conquista era alcançado à medida que a sociedade, que então se constituía, vivenciava práticas européias, tentando reconstituí-las fundamentalmente nos principais espaços públicos, dominados pelos grupos sociais mais favorecidos: igrejas, paços, salões, teatros. Exemplos de reprodução encontram-se nos rituais religiosos; entre eles, as missas solenes, comparadas, por cronistas, às celebradas nas catedrais européias. Nos paços e nos salões, organizava-se música para as reuniões sociais, visando os costumes dos salões aristocráticos europeus. Nos teatros, apresentavam-se companhias
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dramáticas, de comédia, líricas ou de revista, que vinham principalmente da Europa, dos Estados Unidos e do Nordeste do Brasil. Paralelamente ao processo intencionado de reprodução da música européia, nesses quatro espaços privilegiados, realizava-se também a sua alteração nas ruas, movida pelos grupos sociais que não freqüentavam os salões da burguesia de Belém. Nas ruas, a música representativa da presença européia, podia ser bem observada em manifestações como o entrudo, folguedo carnavalesco, introduzido em Belém pelos portugueses, no século XVII. Tais manifestações populares de rua eram constantemente reprimidas por legislação portuguesa, zelosa pelo controle da sua cultura dentro de espaços demarcados. Mesmo assim, as manifestações populares continuaram se desenvolvendo, tanto que no século XVIII, há notícia de um desses folguedos de rua, de São Tomé, no qual um índio é descrito tocando, ao mesmo tempo, flauta e tamboril, enquanto dançava, lembrando um menestrel, figura da cultura européia medieval. Na difusão da música popular européia, isto é, portuguesa, nas ruas, consta, por exemplo, o Sairé. Sua origem encontra-se na procissão em homenagem à Santíssima Trindade, que consistia num cortejo, no qual o povo entoava cantos e fazia movimentos que imitavam embarcação em tempestade. Terminava com a reza da ladainha, após a qual iniciavam as danças. As festas de origem religiosa multiplicaram-se em diversas expressões, das quais vale a pena destacar, ainda, as pastorinhas ou pastoris. As pastorinhas consistiam em autos com curtas representações e bailados, apresentados dentro da igreja ou diante dos presépios e lapinhas domésticas, pelos filhos das famílias burguesas ou por cordões ambulantes, sendo que estes últimos vinham cantando pelas ruas e eram recebidos nas casas. Esta constituiuse numa das manifestações mais importantes, tanto no meio popular quanto no espaço social burguês, tendo se desenvolvido com bastante vigor entre os anos de 1854 e 1950, através de sociedades que mantinham grupos estáveis, especialmente aqueles que reuniam filhos das famílias mais abastadas. Na primeira metade do século XIX, outras manifestações de rua firmaram-se, enquanto folguedos tradicionais, e mantêm-se ainda hoje, como os bumbás e os pássaros. Eles ainda fazem parte do chamado Teatro de Época, que saiu das ruas e passou a ocupar os tablados dos parques. Pastorinhas, bois-bumbás e cordões de pássaro desenvolveram de tal modo o aspecto teatral, que já no século XIX passaram a exigir libretistas e músicos, na montagem dos espetáculos. Segundo SALLES (1994, p. 349), os músicos formados em conservatórios europeus e os poetas que se inspiravam nas óperas e operetas “encontraram nos pássaros e nos bumbás, na época de São João, oportunidades de trabalho que não podiam ser dispensadas”, como acontecia em relação às pastorinhas, na época natalina. Nos folguedos populares, está sempre registrada a presença de índios, de escravos negros e de portugueses pobres, com raras exceções, como nas pastorinhas, cujas famílias burguesas patrocinavam o teatro de seus filhos; exceções que revelam o distanciamento espacial das práticas
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musicais, em correlação ao distanciamento social, que, ao longo do tempo, acentuou-se. Apesar da variedade de manifestações musicais populares com influências européias e da permanência de algumas delas ainda nos dias atuais, a esta breve reflexão interessam as manifestações de reprodução da música erudita européia, nos quatro espaços sociais mencionados: igreja, paços, salões e teatros, por considerar-se que os elementos constitutivos do modelo conservatorial são oriundos dessa prática musical. 3 PRÁTICAS E ENSINOS DA MÚSICA ERUDITA A música erudita européia chegou, efetivamente, à Amazônia, em 16162, quando os portugueses alcançaram a baía do Guajará, no estuário do Amazonas e fundaram o povoado de Nossa Senhora de Belém, ou a cidade de Santa Maria de Belém do Grão-Pará. Ela foi ensinada pelos padres franciscanos, mercedários, carmelitas, capuchinhos da Piedade e jesuítas, por meio do canto gregoriano e com o auxílio de instrumentos medievais, como o órgão, o saltério, o pífano (flauta transversal), a gaita (flauta vertical), a charamela, a corneta e a rabeca. Alguns instrumentos renascentistas, como o cravo e a viola, também eram utilizados. Crônicas, como as dos padres João Felipe Bettendorff e João Daniel, relatam as práticas musicais desenvolvidas desde o século XVII. Mencionam: coros e conjuntos instrumentais de índios adultos e crianças executando música religiosa e a construção de instrumentos europeus com matéria-prima local. A criação do Estado do Grão-Pará e Maranhão, em 1651, separado do Estado do Brasil, com a transferência da sede de São Luís para Belém, trouxe prestígio político à cidade e transformou-a em centro políticoeconômico-cultural da região. Um dos efeitos da transformação de Belém em sede do Estado do Maranhão foi a intensificação das comunicações com Portugal, com a conseqüente dinamização do processo de introdução da música erudita européia. Uma demonstração deste fato foi a iniciativa dos governadores-gerais de buscar reproduzir os costumes dos salões aristocráticos europeus, para o palácio do governo. Tem-se notícia de que, ali, a música era executada por um conjunto musical e dirigida por Jacobo Eggers, músico seiscentista, de origem judáico-holandesa, que tocava rabeca e viola, entre outros instrumentos. Nesse espaço, a música tinha função ornamental e, ao mesmo tempo, caráter de pompa e ostentação. No âmbito das igrejas, a prática musical, voltada à catequese, teve papel culminante nas rezas, ladainhas e missas cantadas, que compunham o quotidiano das missões. A preparação para as atividades musicais realizadas nas igrejas era desenvolvida por meio do ensino da música, obrigatório na instrução escolar, então a cargo do clero. Esses aspectos demonstram que o exercício da prática musical, quotidianamente reafirmada, contribuiu para a assimilação de um certo tipo de música, que se incorporou na cultura do povo colonizado. Os principais responsáveis por esse processo de aculturação musical foram os jesuítas. A dominação dos padres da Companhia de Jesus estendia-se pelo interior do Grão-Pará, abrangendo várias localidades, nas quais, ainda hoje, são encontrados vestígios de sua CONFERÊNCIA 29
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presença, como demonstram colégios ao lado de igrejas; alguns conservados, outros em ruínas. Mesmo após sua expulsão, em 1759, o isolamento dessas localidades permitiu que se conservassem resquícios dos trabalhos musicais desenvolvidos, que puderam ser ouvidos ocasionalmente por bispos, durante as visitas pastorais, e por viajantes cronistas. A criação e instalação do bispado do Pará (1719 - 1721) e a organização da Companhia Geral de Comércio do Grão-Pará e Maranhão (1755) marcaram novo momento político-econômico, que impulsionou o processo de introdução da música erudita européia em Belém do Pará. A expansão rural e comercial, proporcionada pela Companhia Geral do Comércio do Grão-Pará e Maranhão, ao fortalecer a burguesia rural e a burguesia comercial, trouxe as condições para a construção da Casa da Ópera ou Teatro Cômico (1775), em Belém. Segundo MARIZ (1981, p. 26-27), estas construções, que consistiam em salas de concerto, foram numerosas no período colonial. Além de Belém, foram erguidas na Bahia, Rio de Janeiro, São Paulo, Recife e Porto Alegre, à medida que as “igrejas e residências dos ricaços urbanos ou de fazendeiros se fizeram pequenas para tanta atividade musical”. Na Casa de Ópera de Belém, eram apresentados espetáculos teatrais e musicais, que se somaram às reuniões nos salões do Palácio do Governo, nas quais a música estava sempre presente. Nas fazendas e engenhos, acompanhando um costume introduzido pelos portugueses em toda a colônia, foram formados conjuntos musicais constituídos somente por negros, que, na condição de escravos, cantavam e tocavam instrumentos medievais e renascentistas, nas capelas das grandes propriedades. É de negros escravos a primeira orquestra no Pará a ser registrada nos detalhes de sua composição. Data de 1777 e constituía-se de treze músicos, que tocavam: tímbales, trompas, rabecas, flautas e clarins. Ainda como parte desse momento, deu-se a instalação do Bispado do Pará. Para fazer jus a um Bispado, as autoridades eclesiásticas criaram o corpo artístico da Catedral. Importado em grande parte de Portugal, esse corpo artístico envolvia: regente, instrumentistas da orquestra, organista, coro de vozes masculinas adultas e um coro de meninos, e demandaram: • a fundação da Schola Cantorum, a primeira escola de música local, voltada à formação de meninos para o coro, que funcionou a partir de 1735, por aproximadamente um século, oferecendo instrução completa (além da música, ali se ensinava religião e letras) e cuja freqüência era de crianças das famílias ricas da sociedade local; • a instituição de aulas de música vocal e especificamente de canto gregoriano no Seminário do Episcopado, a partir de 1786; • a importação de instrumentos musicais europeus modernos. As aulas de música da Schola Cantorum e do Seminário Episcopal assemelhavam-se às ministradas pelas igrejas italianas do século XVI, e que foram as precursoras da instituição Conservatório. Naqueles dois estabelecimentos, como nos ligados às igrejas italianas, embora o ensino e 30 CONFERÊNCIA
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as demais atividades não fossem exclusivamente voltados à música, os investimentos e os resultados musicais destacavam-se no trabalho educacional. Pode-se dizer que as reformas, na prática e no ensino da música, realizadas pelo Bispado local, formaram o conjunto de providências que apontam para o começo de um processo de atualização sonora da música erudita no Pará. O Bispado fez chegar a Belém as inovações na produção da música sacra, que passaram a ser introduzidas concomitantemente à música que havia sido concebida pela Igreja, durante a Idade Média. Através do ensino dessas músicas, reconstituíram-se, em Belém, as condições de reprodução de uma prática, criadas pela Igreja no continente europeu. Os espaços criados pela Igreja para a música foram o embrião do Conservatório, instituição especializada exclusivamente no ensino da música, firmada na Europa, no século XIX, mesmo século em que foi propagada no Brasil e chegou a Belém. O espaço criado para o ensino da música em Belém, voltado para crianças de famílias abastadas, favorecia socialmente a prática musical erudita para os brancos. A Schola Cantorum tinha objetivos musicais definidos para os filhos dessas famílias socialmente privilegiadas. Eram eles os preparados para, no futuro, quando adultos, serem aproveitados no corpo artístico da Catedral. A preparação dessas crianças baseava-se na idéia de que a formação musical, adquirida desde cedo e desenvolvida durante anos de estudo e prática, produziria melhores músicos. Daí, despontam duas noções: a da importância da longa duração na formação musical e a da valorização da precocidade. A primeira noção está relacionada à idéia da necessidade de tempo para o domínio do conhecimento acumulado na teoria musical e na técnica de execução instrumental e vocal; a segunda noção geralmente é associada à prodigialidade, ao mistério em torno da figura do músico, cuja capacidade musical seria inata e a precocidade um sinal disso. É nesse século que vai surgir a figura do menino prodígio Mozart (1756 - 1791), que melhor encarna esse valor. A prodigialidade e a precocidade, enquanto noções que pertencem ao mundo da música erudita, contribuirão para a construção do modelo conservatorial. Os primeiros anos do século XIX foram marcados por conflitos políticos no Pará, entre os colonos fiéis a Portugal e os partidários da independência do Brasil. Como eram os grupos portugueses os responsáveis pela introdução da música erudita, neste período, ela entrou em declínio. Em 1839, vencidos os anos de turbulência política e integrado o Pará ao contexto nacional, o governo da Província pôde investir na restauração da vida musical de Belém, o que veio a reanimar o processo de introdução da música erudita européia. Esse momento favorável estendeu-se até o ciclo da economia da borracha, quando a vida musical intensificou-se, em virtude da circulação de capital. Nesse período, a música da Igreja recebeu atenção especial, pois ainda era o principal espaço sócio-cultural para a população, onde também se realizavam as manifestações oficiais. Nela, aconteciam os atos e festas religiosos e realizavam-se as celebrações dos dias de comemoração nacional CONFERÊNCIA 31
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e provincial. Deduz-se que era, portanto, politicamente necessário restabelecer o esplendor dessas celebrações e cerimônias que, certamente, eram vistas, pelos governantes, como instrumentos úteis à reconstrução da sociedade local e à construção do sentimento de identidade nacional. Os principais investimentos concentraram-se na Catedral. O governo da Província reconstituiu o corpo artístico da Sé e subsidiou a vinda de músicos europeus para dirigir-lhe os trabalhos musicais. Esses músicos chegaram a partir de 1840. Eles vieram para atuar também como professores de piano, órgão e música vocal no Seminário, em uma instituição denominada Casa das Educandas e em alguns colégios. É desse período a publicação, em Belém, do manual de teoria musical, o Compêndio de princípios elementares da música (1842), escrito pelo português João Nepomuceno de Mendonça, músico-professor contratado pelo governo da Província. Segundo SALLES (1980), esse manual contém nove páginas impressas com exemplos musicais manuscritos e incompletos. Iniciativa semelhante, na produção de obras didáticas, foi tomada na Bahia, em 1834, quando o compositor Domingos da Rocha Viana Moçurunga escreveu um Compêndio Musical para seus alunos, reeditado em 1846 e em 1905; também no Rio de Janeiro, em 1838, Francisco Manuel da Silva publicou o Compêndio de Música para os alunos do Imperial Colégio Pedro II e, em 1848, outro manual, o Compêndio de princípios elementares de música para o Conservatório de Música do Rio de Janeiro, o primeiro conservatório do Brasil, fundado naquele mesmo ano. A mesma iniciativa, de reunir o conhecimento de teoria musical e publicálo para direcionamento do ensino da música, foi tomada pelo Conservatório de Paris que, fundado em 1795, logo providenciou a redação dos princípios elementares da música (anteriores aos circunscritos no manual de Danhauser, publicado em 1872), que foram ali ensinados. Vêse, em Belém, o novo impulso ao ensino da música ser marcado por uma iniciativa corrente no Brasil e na Europa, ou seja, a publicação de manual com função de reunir conhecimento de teoria musical, que deveria ser fixado pelo músico em formação, iniciativa inaugurada na Europa, em contexto conservatorial; no Brasil, iniciada em outros contextos educacionais e, posteriormente, em conservatório. Nessa mesma década, de 1840, as aulas de música do Seminário foram abertas a leigos interessados. A abertura do Seminário aos leigos ampliou as oportunidades de formação de músicos na capital paraense, entre os quais, destacou-se o maestro e compositor Henrique Eulálio Gurjão. O Seminário tornou-se, desde então, o principal espaço de formação dos músicos locais. Até o princípio da década de 1860, a música nas igrejas, apenas restaurada, revelava-se ora distante dos padrões musicais europeus mais recentes, ora afastada do motu proprio3. Somente a partir de 1863, ela foi reformada; reforma extensiva ao ensino da música no Seminário. Como ocorreu no século anterior, o repertório foi renovado, desta vez com a introdução de obras de Palestrina, Bach, Rink, Zingarelli, Haydn, Mozart, Beethoven, de
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compositores paraenses como Henrique Eulálio Gurjão e do músico prussiano responsável pelas reformas, Adolfo José Kaulfuss. As obras desses autores eram executadas pelo Coro da Catedral, cujos integrantes foram rigorosamente selecionados e reduzidos a oito, que passaram a receber formação musical completa, orientada pelo próprio Kaulfuss. Provavelmente, antes dessa reforma, esses músicos tinham orientações restritas às músicas executadas, como ainda hoje acontece, na prática coral e orquestral. Kaulfuss também solicitou um novo órgão para a Catedral. Esse instrumento foi encomendado ao mais famoso fabricante de órgãos da França, Cavaillé-Coll, introdutor de seus aperfeiçoamentos. Segundo SALLES (1980, p. 148), o órgão adquirido pelo Pará foi “durante muito tempo um dos maiores e mais belos do Brasil”. Em 1884, foi organizado um outro coro, além do da Catedral: o da Basílica de Nazaré. O repertório, para coro e orquestra, original e exclusivo, foi encomendado ao compositor e maestro italiano Enrico Bernardi. Em 1885, foi criada a Schola Cantorum de Nazaré, com mais de cem vozes, que passou a alimentar o Coro da Basílica, até aproximadamente 1940. Para o aperfeiçoamento dos músicos, dois elementos foram fundamentais. Primeiro, o patrocínio do governo. A partir de 1850, o governo passou a conceder bolsas de estudo a músicos paraenses, a fim de realizarem cursos de aperfeiçoamento na Europa, em especial na Itália e Alemanha, onde a música operística se destacava. O patrocínio do Estado obrigava-os a retornarem e a atuarem como músicos e professores de música na capital da Província. O segundo elemento foi o fato de Belém ser um porto extremo da navegação de longo curso, que ligava a cidade aos principais portos do Atlântico Sul com os Estados Unidos, sendo a primeira parada dos navios que, por essa rota, chegavam ao Brasil. A comunicação dos Estados Unidos com a América do Sul fazia-se, portanto, via este porto. O porto foi o grande facilitador para a construção de teatros necessários para receber companhias artísticas a caminho de cidades dos países do sul da América, como Buenos Aires, na Argentina. Na Belém do século XIX, foram erguidos vários teatros. O primeiro deles foi o Teatro Providência, construído antes dos conflitos políticos do início do século, quando a Casa da Ópera ou Teatro Cômico entrava em decadência. Nele, a partir de 1847, apresentaram-se, com a subvenção do governo provincial, companhias líricas e dramáticas. Além desse teatro, foram erguidos, a partir de 1850: Cassino Paraense, Teatro União e Amizade, Gymnasio Paraense, Teatro Chalet (depois Teatro Moderno), Teatro Provisório, Teatro Recreio, Teatro Cosmopolita, Teatro Polytheama, Palace Theatre, Teatro Éden, Teatro do Bar Paraense. O de maior expressão foi o Teatro da Paz, pela suntuosidade na arquitetura, nas dimensões, na decoração e pela estrutura atualizada, que seguia os mais recentes padrões europeus. Sua construção fora requerida desde 1817-1820, mas somente em 1869 lançaram sua pedra fundamental. Pronto em 1874, só pôde ser inaugurado em 18784. Nele, companhias líricas italianas que visitavam Belém, cumpriam longas temporadas, ano após ano, nas décadas entre 1880 e o início do século CONFERÊNCIA 33
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seguinte. Várias delas foram patrocinadas pela Associação Lyrica Paraense, fundada em 1880, pelos grupos enriquecidos com a borracha. Foi sobretudo nessa fase, que muitos dos artistas de companhias líricas permaneceram na capital paraense, após o final das temporadas. Continuavam atuando como músicos e, ao mesmo tempo, engajavam-se no ensino. A vinda desses músicos estrangeiros e o retorno dos músicos paraenses de seus estudos na Europa, iniciados em 1861, pelo maestro e compositor Henrique Eulálio Gurjão, significavam a contínua importação de conhecimento de novas obras, da inovação de instrumentos, de técnicas de sua execução e práticas musicais recentes. Os músicos estrangeiros e paraenses recém-chegados da Europa juntavam-se àqueles aqui formados e aos músicos europeus antes instalados. Criavam associações musicais, como: Sociedade Phil’Eutherpe, Sociedade Musical Club Philarmonico, Club Mozart, Club Verdi e Club Eutherpe. Por meio dessas sociedades, organizavam orquestras e conjuntos camerísticos e promoviam espetáculos artísticos. Em 1862, a Orquestra Filarmônica da Sociedade Phil’Eutherpe, a primeira do Pará com essa estrutura, teve sua estréia com um programa que apresentava trechos de obras para orquestra, música vocal-sinfônica e solos, como nos concertos que eram realizados nas outras capitais do país. Em 1873, esses músicos juntaram-se a artistas e intelectuais e constituíram-se membros do Conservatório Dramático Paraense, que viria a funcionar no Teatro da Paz. O modelo dessa instituição já se encontrava fixado nos principais centros culturais do Brasil. A exemplo deles, o Governo do Estado estabeleceu como finalidade: “restaurar, conservar e aperfeiçoar a literatura dramática, a música, a pintura e a declamação e artes mímicas” (SALLES, 1980, p. 277). A presença de músicos com formação européia, em Belém, intensificou a disseminação de uma prática desenvolvida na Europa: as aulas ou cursos de música particulares, absorvida pelas famílias abastadas, que contratavam profissionais para ensinar instrumento e canto aos seus filhos. Essa prática teve como efeito a introdução da cultura musical erudita européia na rotina das casas das famílias paraenses socialmente privilegiadas. A riqueza provinda da borracha oportunizou esse mercado do magistério musical, dando possibilidade real de sustento aos profissionais da música. Esse fato é demonstrado, por exemplo, pela trajetória de Henrique Eulálio Gurjão, um dos músicos paraenses de maior destaque, inclusive no âmbito nacional, que pôde dedicar-se à composição e à performance, tendo em vista seu sustento garantido em três escolas onde ensinava música. A presença de professores de música nas escolas de formação geral favorecia o desenvolvimento do ensino sistematizado e formal da música e era um passo adiante das aulas ou cursos particulares, no sentido da institucionalização do ensino da música erudita européia em Belém. A música nos colégios já devia estar tomada pelo caráter secular, uma vez que, desde as reformas pombalinas, ocorridas entre os séculos XVII e XVIII, o ensino deixara de ser responsabilidade do clero. Pode-se dizer 34
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que os colégios onde se ensinava música constituíam-se espaços oficiais precursores do ensino em conservatório, antecipando-lhe alguns elementos, como: estudo da teoria musical, desenvolvimento de repertório erudito europeu e ênfase na prática instrumental e/ou vocal. Certamente, isso ocorria em virtude da formação musical adquirida, em conservatórios europeus, pelos professores que lecionavam nas escolas de formação geral, para as quais eles traziam o modelo de ensino especializado e as expectativas em torno da música. O ensino musical nos colégios, valorizado pelo caráter oficial, favorecia a disseminação da música erudita européia. Essa atualização da paisagem musical, fomentada pela riqueza provinda da exportação da borracha e pelo porto de Belém economicamente ativo, que propiciavam toda a movimentação artística, era intensificada com a proximidade dos núcleos de artistas e intelectuais, existentes em São Luís e em Recife. Contribuíam, nesse fomento, os armazéns exportadores ingleses, franceses, norte-americanos e alemães que, ao exportarem a borracha, importavam serviços e bens de consumo de suas terras, entre eles as óperas, operetas, zarzuelas, dramas, comédias, concertos, recitais, orquestras de danças, de café-concerto. Na verdade, o porto de Belém exportava borracha e importava os requintes para ostentação da burguesia local: não só os figurinos de Paris, mas uma arquitetura de inspiração francesa, que ajudou a compor a Belém da belle époque (1870-1912), com seus cafés (Café Chic, Café da Paz) e teatros erguidos em torno do mais belo de todos: o Teatro da Paz. Os Largos da cidade foram ornados por coretos em estilo art nouveau, que serviram de palco para as numerosas bandas de música, que começaram a despontar. Junto com as orquestras de danças, de café-concerto e de pau-e-cordas 5, as bandas começaram a reunir-se para compor as primeiras grandes orquestras de Belém. No início do século XX, alguns desses conjuntos e os chamados “pianeiros” também tocaram nos cinemas mudos da cidade6. Assim, exportadores de borracha enriquecidos estimulavam o comércio de importação e fabricação de instrumentos musicais, não só para seus filhos, como para as orquestras e bandas. Os navios a vapor, nacionais e internacionais, supriam o mercado de partituras musicais e peças para montagem de editoras, gráficas que, além de publicações musicais, lançavam também periódicos especializados, como: Gazeta Musical, Salão Musical, Revista Lyrica, Revista Musical. Estes periódicos documentaram, através de notícias e de críticas musicais, a vida artístico-musical de Belém e, portanto, a incorporação do gosto musical europeu entre a elite paraense, enlouquecida com o brilho da borracha. Um dos aspectos musicais, que marcou fortemente o século XIX, e ainda hoje persiste, tem sido o desenvolvimento das bandas de música, no sentido de sua difusão social e da instituição de um ensino musical separado das escolas e das igrejas. Nos dois séculos anteriores, elas podiam ser encontradas nos engenhos, fazendas e nas milícias do interior e da capital, como “corpos instrumentais”, que seguiam o modelo das bandas de
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Portugal (SALLES, 1985). Eram os chamados terços ou ternos, que compreendiam três instrumentos ou três divisões instrumentais, ora restritos às charamelas (bastarda, média e pequena), ora ampliados, compreendendo, além de charamelas, pífanos ou gaitas e pancadaria (percussão). O ensino de instrumentos mais modernos só era praticado nos quartéis da Província, fator que diferenciava as bandas dos quartéis daquelas das fazendas; ou seja, as bandas militares tendiam a afinar-se com as bandas européias, bem mais do que acontecia com as bandas do interior das fazendas. Isto porque, especialmente por ocasião dos conflitos ou guerras, bandas de outras províncias brasileiras e do estrangeiro chegavam para reforço militar. Foi o caso do período da Revolução Francesa, quando reforços militares foram enviados à Amazônia devido à sua proximidade com a Guiana Francesa. Outro momento foi o da Cabanagem, ocasião em que os reforços de alemães e de ingleses trouxeram contingentes de músicos. Os músicos estrangeiros, que atuavam como instrumentistas ou regentes desses conjuntos, assumiam aí também a função de professores. Dessa maneira, contribuíram para manter as bandas militares do Pará afinadas com o que se produzia e tocava na Europa. Já as bandas civis, formadas no período colonial para uso particular dos senhores rurais, no século XIX, passaram para a iniciativa de irmandades e corporações de ofícios e firmaram a reprodução de um ensino musical mais popular. Essas bandas estavam presentes nas festas populares e religiosas, nas quais acompanhavam os cortejos, como até hoje observase por ocasião do Círio de Nossa Senhora de Nazaré. Também foram criadas e sustentadas por sociedades como a Lyra Paraense de Santa Cecília, o Club Eutherpe, a Bela Harmonia, a Eutherpe Reductoense, a Tuna Luso Caixeiral, entre outras. Muitas dessas bandas eram impulsionadas pelas famílias ricas, que estabeleciam disputas pelo poder público; usavam-nas para envolver a população nas lutas entre a política dominante e de oposição, o que reforçava um estilo musical diferente das bandas militares, mais ligadas à composição das bandas européias. As bandas civis também estavam presentes nas escolas, onde ainda permanecem. Como as bandas militares, elas vêm se mantendo através dos tempos com o patrocínio do governo. No século XIX, as bandas civis e militares da capital, mais atualizadas do que as do interior, executavam mais ou menos o mesmo repertório, composto de música internacional, gêneros populares da moda, hinos cívicos e patrióticos, marchas, dobrados e toques. Essa aproximação de repertório entre as bandas da capital decorria do fato de que os regentes circulavam entre elas, alguns dos quais viriam a atuar no Conservatório Carlos Gomes, a partir do final do século. As bandas combinavam o erudito, vivenciado pela elite, e o popular, marginalizado por ela. As contradições dessa combinação podem ser flagradas, por exemplo, no fato dos instrumentos desse conjunto serem de origem européia, portanto, caros e importados, revelando-se de difícil acesso aos seus próprios músicos. Sem
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recursos econômicos, estes músicos dependiam de patrocínio para adquirir os instrumentos. A partir de 1914, as bandas civis e militares entraram em declínio e desde 1930, elas têm resistido isoladamente, nos quartéis, fora da capital ou de seu perímetro urbano. Como as bandas do interior, algumas das bandas da capital, nos dias de hoje, centenárias, servem de repositórios de estilos musicais não reconhecidos pelas escolas de música oficiais. Representam não só repositórios de estilos, mas também de um ensino musical diferente do conservatório, isto é, mais próximo do sentido dado a ele pela Igreja romana, quando se iniciou o processo de codificação musical no mundo ocidental: escrita e leitura desenvolvidas em função da prática, como auxiliares da memória dos músicos, de modo a não haver erros e interrupções. Diferentemente, portanto, do isolamento entre teoria e prática, firmado nos conservatórios. A concentração geográfica da banda musical na periferia e no interior, se for relacionada à concentração da orquestra na capital, oferece a representação de hierarquias sociais e musicais, expressas em diferenças entre: (a) as músicas executadas por esses conjuntos (a música erudita, pelas orquestras; a popular, pelas bandas), (b) os lugares de apresentação (para as orquestras, os teatros e para as bandas, as ruas e praças) e (c) o público (elite; para as orquestras e o povo para as bandas). A contraposição, entre banda de música no interior e orquestra na capital, vem do momento em que, na Europa, aquela se distanciou da aristocracia, ao desenvolver sua performance nas ruas, acompanhando desfiles e marchas, enquanto a orquestra permanecia no interior dos teatros e palácios. O mesmo ocorreu no Pará, na fase de grande fluxo das companhias líricas, quando os músicos de banda eram chamados para reforçar as orquestras, que acompanhavam as óperas, no interior do Teatro da Paz, que tinha por audiência uma platéia de burgueses, enquanto o restante dos músicos das bandas permaneciam tocando do lado de fora do teatro, para o povo (SALLES, 1980). Outro aspecto que permite perceber as diferenças entre os dois conjuntos é a idéia de que as bandas de música são “o conservatório do povo”, nascedouro dos instrumentistas de sopro, que vão completar as orquestras, enquanto os instrumentistas de cordas são formados pelos conservatórios, onde se concentra uma elite social (SALLES, 1985). Assim, é possível estabelecer distâncias de ordem social, econômica e cultural, com efeitos no universo musical, onde se reflete uma relação hierárquica equivalente à da realidade social. Nesse sentido, resultados de pesquisas, como as realizadas por Hennion (1983), Pinçon-Charlot, Garnier (1984), Augustins (1991) e Lehmann (1995) evidenciam que instrumentistas de cordas em geral são oriundos de famílias mais privilegiadas do que instrumentistas de sopro de madeira, por sua vez melhor posicionados socialmente do que instrumentistas de sopro de metal. Também a forma de ensino apresenta-se diferenciada. O ensino dado aos músicos de orquestra, oriundos de conservatórios, tem caráter erudito, orientação
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individual, com a teoria anterior à prática e cunho virtuosístico, que visa à formação refinada do artista. Contrasta com o ensino dado nas bandas, voltado à música popular, com orientação grupal, cuja aprendizagem do código é simultânea à prática, à medida que se faz necessário; enfim, um ensino que forma músicos que vivenciam o fazer musical como um ofício. As diferenças sociais entre banda de música e orquestra, que coexistiram largamente em Belém, no século XIX, quando ambos conjuntos musicais receberam grande impulso, anteciparam as distâncias entre o “conservatório do povo” e o que veio a ser o primeiro conservatório paraense, fundado nos anos subseqüentes à Proclamação da República, uma vez que este último desenvolvia o ensino da música para a elite da sociedade local. A crença nas diferenças musicais como fatos inexoráveis da realidade musical, alimentada a respeito dos dois conservatórios, dissimula as diferenças sociais, que estão em suas origens. Ao mesmo tempo, oportuniza que, no mundo da música erudita, mantenha-se uma hierarquia entre conjuntos musicais, repertórios, espaços de apresentação e de ensino musical e músicos. O desenrolar do século XIX permite observar três ações distintas: a importação de músicos-professores europeus, o trânsito de músicos locais entre o Pará e a Europa e a instalação de músicos de companhias líricas após a conclusão das temporadas nos teatros locais. Essas ações favoreceram a contínua transposição da prática musical européia, que pôde, assim, manter-se localmente atualizada em relação à produção contemporânea, na Europa, pois, através daqueles agentes retransmissores, tornaram-se audíveis e visíveis, em Belém e no interior do Estado, aspectos do cenário musical internacional, como repertórios, instrumentos, conjuntos musicais, formas de organização de entidades musicais, comércio musical, espaços de ensino e de prática musical, entre outros aspectos, que fizeram do Pará um lugar possível para a música erudita européia. Estas foram as condições de eficácia da afirmação local da música erudita como bem cultural e de desenvolvimento do modelo de ensino, que contribuíram para garantir a preservação e a difusão dessa música, bem como para diferenciá-la de outras práticas musicais e de ensino, como as das bandas de música. O declínio da economia da borracha transformou brutalmente este cenário, principalmente no que se refere à saída dos músicos eruditos. Grande parte deles partiram. Os que aqui ficaram, sem importação, com o porto fechado às inovações, mantiveram o modelo de realização musical até então desenvolvida. Para isso, eles tiveram que lutar pelo poder exclusivo de constituir e impor os símbolos de distinção legítima em matéria de música. Este tipo de luta levou a esquemas de avaliação capazes de desqualificar outras práticas, como as das bandas e mantê-las na categoria de música e músicos populares, em nome de normas estéticas. Desse modo, em Belém, viu-se produzir as condições de eficácia [de um modelo de música, de ensino da música e de professor de música] que, sem nada mudar na natureza material
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do produto [da produção da música erudita] a transforma em bem de luxo, transformando ao mesmo tempo seu valor econômico e simbólico (BOURDIEU, 1974, p. 21). À GUISA DE CONCLUSÕES: ATUALIZAÇÃO E PRESERVAÇÃO As práticas musicais promovidas nas igrejas e nos teatros de Belém seguiram a trajetória definida no centro gerador - a Europa. Essa referência ainda se mantém nos dias atuais. Para os países europeus partem músicos paraenses, em busca do almejado aperfeiçoamento e subseqüente exercício profissional como instrumentistas, cantores, compositores ou regentes. O mesmo referencial é tomado pelos profissionais que não se deslocam para a Europa e que permanecem em Belém. O movimento dos músicos de Belém em direção à Europa consiste numa busca de atualização, ou seja, num esforço de permanecer dentro dos padrões do centro de referência. O interesse em investir nessa atualização demonstra o tratamento dessa prática como objeto cultural. Daí, concluir-se que, por meio do esforço de estar de acordo com a referência musical européia, é possível sinalizar o momento em que a música deixou de ser recurso no processo de conquista e tornou-se objeto cultural, no processo de aculturação musical, no Pará. Os fatos indicam que a alteração do papel da música, de recurso para objeto, ou sua ênfase como objeto, foi processada durante aproximadamente um século. Chegou à culminância no segundo momento favorável à introdução da música erudita em Belém, período em que se desenrolaram dois acontecimentos marcantes na história sócio-político-econômica do Pará: a instalação do bispado do Pará e a organização da Companhia Geral de Comércio do Grão-Pará e Maranhão. Foi o período das reformas pombalinas, em que se buscou a modernização de Portugal e de suas colônias e o reposicionamento na marcha das transformações que se operavam nas ciências e nas artes, no restante da Europa. O movimento de atualização aconteceu concomitantemente na Metrópole e no núcleo colonial paraense, em relação ao contexto europeu. É possível deduzir que, em virtude do impulsionamento de Portugal a esse movimento, formava-se, na nova província, a mentalidade de que, na Europa, encontrava-se o modelo de organização sócio-econômico-cultural a ser seguido. Assim, a metrópole portuguesa, que detinha a dominação política sobre suas colônias, não se constituía modelo cultural, pois ela própria buscava, para si e para seus domínios, referência em países europeus que se destacavam pelo impulso nas ciências e nas artes, com reflexos no desenvolvimento econômico e social. A manutenção desse referencial persistiu, após a independência política de colônias, como no caso do Brasil, uma vez que necessidades sociais impunham a conservação de laços de dependência7. No Pará, a sintonia com os passos dessa marcha, anunciada desde o primeiro século de colonização, quando Belém mantinha
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relações diretas com a Metrópole, continuou sendo almejada, no que tange à música. A busca dos músicos de Belém por atualização (de métodos, técnicas, partituras, compêndios, gravações, instrumentos, espaços, entre outros aspectos) pode ser percebida como uma das estratégias de conservação da prática referenciada. À primeira vista, parece paradoxal a idéia de preservação, através da atualização. Entretanto, se as ações que evidenciam atualização se mantêm dentro das perspectivas da prática musical erudita, logo, a tendência aponta para a continuidade dessa prática, revestida de modernidade. Nesse sentido, a dinâmica da atualização revela-se uma das condições de preservação do padrão musical europeu, uma vez que, subjacente a essa dinâmica, persiste o fenômeno da preservação da hegemonia de uma perspectiva. A concretização da dinâmica de atualização e do processo de preservação exigiu a assimilação do modo de uso dos elementos transplantados, o que abrange a realização e a fruição da música. Para tanto, foi indispensável o envolvimento de três aspectos da vida social européia, introduzidos no Pará desde o primeiro momento da colonização: a religião, o entretenimento e a educação. Pode-se considerar que, se, num primeiro momento, esses aspectos foram a meta dos dominantes, em face da implantação do modelo da sociedade européia no novo território conquistado, num outro momento, em que o processo de formação da sociedade local se adiantava, aqueles três aspectos da vida social européia passavam a funcionar como recursos acionadores do modelo musical gerado no centro de referência. À medida que os valores da religião, do lazer e da educação iam sendo incorporados pela sociedade paraense, firmando as bases culturais da sociedade em formação, abria-se espaço à percepção da própria música, ao desenvolvimento de sua prática e à sistematização de seu ensino. Por serem de natureza distinta, esses três aspectos exigiam a utilização de espaços apropriados, o que favorecia a ampliação do território de introdução da música erudita. Ao lado das igrejas, que eram os espaços para as cerimônias e celebrações envolvendo a música, havia espaços como os salões do Palácio dos Governadores, dos sobrados e dos palacetes, onde a música profana tinha lugar. Para os espetáculos de maior porte, foram erguidos teatros. As residências foram lugar de ensino da música, também desenvolvido em instituições educacionais. Orientando o uso da religião, do entretenimento e da educação e dos espaços que esses três aspectos da vida social dedicavam à música erudita, os estrangeiros e os músicos locais atuavam como agentes da contínua busca de reconstituição, em Belém do Pará, da cultura musical erudita européia. Eles dirigiam a construção e a manutenção do elo que ligava o contexto paraense ao europeu, no que concerne à perspectiva musical erudita. A música erudita européia desenvolvida no Pará, os espaços e os agentes envolvidos situavam-se no âmbito oficial; ou seja, as ações que promoviam e autorizavam esses agentes e espaços originavam-se no âmbito governamental ou nos setores da sociedade que tinham influência junto 40 CONFERÊNCIA
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ao poder governamental, setores relativos às classes sociais mais abonadas, que compunham o poder local. O que fazia a elite tomar essa prática, seus espaços e agentes como oficiais era a necessidade de manter o modelo cultural europeu como o padrão que colaboraria para uma transplantação da estrutura social que lhes permitiria manter ou conquistar uma posição privilegiada, na sociedade que se organizava. Sendo a música erudita parte dessa cultura oficial, era necessário que também nela se conservasse o elo com o centro de referência, para preservar sua legitimidade e oficialização. Assim, as estratégias de conservação da música, levadas adiante pelos setores oficiais da cultura, visavam manter intactos o capital acumulado (música legítima, de qualidade) contra a proliferação da cultura popular, como as das bandas de música, que representavam concorrência na organização do espaço da música em Belém. Parece haver, aí, a construção de um encadeamento de elementos, onde a atualização mantém o elo, que possibilita a legitimidade, que embasa a oficialização da prática musical e o seu exercício por uma classe dominante. Da consideração desses aspectos, pode-se deduzir que o propósito do movimento de atualização foi de: mantendo a música erudita em Belém de acordo com o centro gerador, estabelecer e preservar o elo musical entre a sociedade local e a européia e garantir sua legitimidade, assegurando, por meio da preservação e hegemonia da prática musical erudita européia, a distinção de seus detentores, no contexto social paraense. Através do elo musical entre o Pará e a Europa, buscava-se estabelecer uma relação unilateral e num só sentido: do centro gerador para o ponto receptor, uma vez que era imprescindível, para a classe dominante local, a conservação da prática e do seu ensino dentro dos padrões estabelecidos pelos europeus. Isto porque, por meio da música, mantinha-se também a ordem social que ela representava. Esses fatores demonstram que a relação entre músicos do Pará e músicos da Europa colocava os músicos paraenses numa posição de dependência dos ditames estabelecidos pela produção musical européia, impondo uma relação de dominação, na qual os músicos da capital paraense e do Estado integravam a parte dominada8. O PROCESSO DE CONSTITUIÇÃO DO MODELO CONSERVATORIAL A introdução da música erudita européia, em Belém do Pará foi um processo que oportunizou a entrada dos elementos constituintes do modelo conservatorial. Esses elementos foram reconstituídos em Belém, pelos agentes retransmissores daquela música, à medida que ali desenvolviam sua prática e seu ensino. Como objeto social, o modelo conservatorial apresenta uma estrutura material, que envolve relações e instituições sociais, entre outros aspectos objetivos, presentes no mundo social. Abrange, também, representações, observáveis através da manifestação de valores, noções ou crenças nas relações sociais ou em outros aspectos estruturais, resultantes dessas relações. Constituindo a
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dupla face do mesmo objeto, a estrutura material e as representações compreendem as condições de existência desse objeto. A separação desses elementos é, no entanto, artificial, uma vez que eles se geram mutuamente, permanecendo integrados e devem ser percebidos relacionalmente, pois dessa forma foram construídos. Não obstante, são destacados em seguida, para efeito de sua identificação. Os elementos integrantes das estruturas materiais, que permitiram a constituição do modelo conservatorial foram os seguintes: · desenvolvimento de relações sociais entre músicos com formação na Europa e músicos locais, que culminaram na organização de associações ou sociedades civis, promotoras da prática e do ensino da música erudita européia; • construção de teatros e coretos; • organização de orquestras e bandas; • inclusão da música nos currículos das instituições educacionais, algumas delas dando ênfase especial às aulas de música dedicadas a crianças e destinadas à performance; • investimento de dirigentes do Estado na formação de músicos e na prática musical. Estes elementos constituíram-se suportes materiais, por meio dos quais uma cultura musical pôde ser perpetuada em sua materialidade. Sua apropriação, no entanto, sempre depende de condições econômicas, em se tratando de apropriação material, e culturais, no caso da apropriação simbólica (BOURDIEU, 1979). As condições culturais consistem em instrumentos que permitem a fruição do bem e compreendem disposições incorporadas (maneiras de perceber, sentir, pensar e agir). Nesta pesquisa, elas constituem as representações a seguir, que se relacionaram à estrutura material e favoreceram a constituição do modelo conservatorial: • reverência à música erudita européia; • reconhecimento do saber musical acumulado e da necessidade de sua conservação; • divisão da música em teoria musical e prática instrumental/ vocal; • noção abstrata da música, no ensino da teoria musical; • sobrevalorização da prática instrumental/ vocal; • idealização do músico (crença na precocidade e prodigialidade); • hierarquização dos instrumentos, dos conjuntos e dos repertórios de música erudita. As estruturas materiais e as representações deram suporte ao processo de institucionalização do ensino da música em Belém, uma vez que ofereceram as condições objetivas e subjetivas para o ensino escolar que, no futuro, veio a ser fixado pelos conservatórios e tornado paradigma. Este estado institucionalizado da música erudita firmou-se socialmente, à medida que passou a certificar a excelência do profissional que formava e ainda forma. Assim, estabeleceu-se, em Belém, a crença coletiva numa música, num músico e numa forma de ensino que ainda hoje se mantém. Tanto em
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Belém, quanto na Europa, esses elementos emergiram lentamente, no decurso de séculos, em meio a transformações sociais, delas recebendo interferências e com elas colaborando, constituindo um capital cultural e simbólico de grande valor. Os fatos descritos e analisados permitem inferir que, na capital paraense, como provavelmente também nas outras capitais brasileiras, a demora, no processo de composição do universo musical erudito e de seus valores e a sua afirmação nas relações sociais e nas instituições, teve efeitos, que perduram até os dias atuais. O primeiro é a sua percepção como um universo sólido, baseada no pressuposto de que: quanto mais demorado o desenvolvimento de um processo, mais fortalecidas são as relações que envolvem esse processo. Essas relações, tecidas no universo musical erudito que foi sendo reconstituído em Belém, compõem, em torno dele e em seu interior, uma rede social que o protege e o firma, como herança das relações e que também o torna herdeiro das qualidades dessas relações sociais. O segundo efeito da demora, no processo de composição do universo musical erudito e de seus valores, bem como a afirmação destes últimos nas relações sociais e nas instituições, consiste na naturalização da existência desse universo. Tende-se a percebêlo como algo que se origina no “desde sempre” e que se dirige ao “para sempre” (SARTRE, 1995), ignorando-se as ações e relações sociais, a partir das quais esse universo foi sendo construído, bem como a própria percepção sobre ele naturalizada. Essa percepção resulta da incorporação da idéia do universo da música erudita e de seus valores e instituições, entre os quais se inclui o conservatório, com seu modelo de ensino e prática, firmados no século XIX. A incorporação, enquanto processo de introjeção de noções, sobre o que é vivido socialmente, ocorre em relação a objetos culturais, com os quais se estabelece contato direto ou indireto, sendo possível a um grupo social ter noções a respeito de manifestações culturais que só são diretamente vivenciadas por um outro grupo; ou seja, é possível que toda uma sociedade esteja imbuída de noções sobre qualquer objeto cultural que dela faça parte, noções certamente diferenciadas segundo os grupos sociais e as relações que esses grupos estabelecem com o objeto cultural. Essas noções apresentam-se tanto mais fortalecidas, quanto mais remoto for o tempo de sua incorporação, o que implica, também, no tempo de existência social do objeto cultural. Logo, os três séculos aqui descritos, durante os quais foi introduzida a música erudita européia em Belém do Pará e foram construídos os elementos constituintes do modelo conservatorial, propiciaram estruturação objetiva e institucional desse modelo, bem como a sua incorporação social e percepção naturalizada. Os fatores sociais, políticos e econômicos, que, a cada século, impulsionaram o processo de introdução da música européia em Belém, alcançaram sua maior expressão no século XIX, quando tornaram possível a construção da fase de esplendor dessa música, na capital paraense. Esse mesmo século é marcado pela afirmação da instituição conservatório no
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mundo ocidental, onde o conhecimento musical europeu, até então acumulado, passou a ser conservado e difundido. A música erudita, desenvolvida na Belém do século XIX, teve, no conservatório, o espaço de conservação e reprodução que, por sua vez, tomou o Teatro da Paz como lugar de exposição de seus trabalhos; ambos espaços compuseram um universo musical erudito, dentro dos moldes europeus. A música, as instituições e os valores dessa época tornaram-se uma referência à prática e ao ensino desenvolvidos em Belém. Aliando os fatores que envolveram o processo de busca da reprodução da música erudita e, sobretudo, sua culminância no século XIX, ao fator tempo e ao seu efeito no processo de materialização, institucionalização e incorporação, verifica-se a configuração da tendência à ascensão do passado musical sobre o presente e futuro, enquanto modelo a ser seguido e preservado. A incorporação dos fundamentos do modelo musical permite que este último funcione como mediador na relação entre a sociedade atual e a prática e ensino da música erudita, desenvolvida no presente e visada para o futuro, como vai expresso na figura seguinte: A consolidação do modelo conservatorial de ensino da música, em Belém, vem sendo objeto de estudos que continuo desenvolvendo, por meio da análise do processo de sua institucionalização. Doutora em Educação. Professora da Escola de Música da Universidade Federal do Pará. Professora Titular do Departamento de Artes da Universidade do Estado do Pará.
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ESCRITURA ARCAICA, COMPOSIÇÃO MODERNA: A SEMIOSE DA “IDEOGRAFIA” SINO-JAPONESA COMO INSTRUMENTO DE POÉTICAS VISUAIS
AFONSO MEDEIROS*
Arte e verbalidade, pano de fundo da conferência de hoje neste I Fórum de Pesquisa em Artes, é um tema inesgotável. Permitam-me, antes da abordagem estrita do tema, uma breve digressão. Meu interesse pelos sistemas de escrita foi aguçado quando cursava o mestrado em ArteEducação na Universidade de Shizuoka (1994-96). Naquele momento, mantinha acaloradas e apaixonadas discussões com meus colegas japoneses sobre as diferenças entre o alfabeto e o ideograma, baseado nas teorias lingüísticas (principalmente as derivadas da semiologia de Ferdinand de Saussure). Dada a perplexidade de meus colegas (que não ficavam convencidos das diferenças que eu insistia em defender), comecei a desconfiar dos meus argumentos. A partir daquele momento, passei a enfrentar a questão do ponto de vista da semiótica de Charles Sanders Peirce e isso redundou na dissertação A pictografia como signo estético, defendida em fevereiro de 1996. Quando iniciei o doutoramento na PUC-SP (sob a orientação do Prof. Dr. Philadelpho Menezes, em 1997), retornei à questão com um projeto de tese que consistia na verificação da pertinência da definição de ideograma na teoria da poesia concreta brasileira. Fiz minha qualificação com esse projeto, mas, numa daquelas mudanças de rota que a vida nos impõe, acabei defendendo (sob a orientação da Profa. Dra. Lucia Santaella) a tese Ukiyoe: crônica visual ou a modernidade do prosaico, sobre a gravura japonesa dos séculos 18 e 19, em outubro de 2001. Assim, hoje retorno à uma antiga paixão: a classificação, sob o ponto de vista da semiótica, dos sistemas de escrita e, mais especificamente, ao conceito de ideograma aplicado à poesia concreta. 46
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Para explicitar as fontes da minha fala neste momento, recorrerei à Lucia Santaella de Matrizes da linguagem e pensamento (2001), ao Winfried Nöth de Handbook of semiotics (1995), ao Florian Coulmas de The writing systems of the world (1991) e aos textos do triunvirato concretista brasileiro em Teoria da poesia concreta (1965) e Ideograma: lógica, poesia, linguagem (1994), dentre outros. Sem mais delongas, vamos ao que interessa. Os sistemas de escrita são comumente classificados como pictográficos, ideográficos e fonográficos. Essa classificação tradicional já se apresenta, para nós semioticistas, como uma grande tentação de verificação da teoria triádica dos signos de Peirce. Mas antes de ceder à tentação de categorização dos sistemas de escrita sob a ótica peirceana, é preciso clarificar os usos e abusos daqueles termos. “Pictografia” refere-se a um tipo de escrita (geralmente classificada como rudimentar e primitiva) cujos princípios figurativo-pictóricos são evidentes e onde a subordinação à linguagem oral não é completa – os hieróglifos egípcios são comumente caracterizados como pictográficos. “Ideografia” é a representação direta, através de sinais gráficos, de um objeto ou uma idéia que não necessariamente mantém relação unívoca com os fonemas, ou seja, um só signo gráfico representando um só fonema – os caracteres chineses são tradicionalmente definidos como ideográficos. “Fonografia” é a representação gráfica dos sons da fala nas escritas fonéticas – o alfabeto é considerado o exemplo por excelência da fonografia. Para muitos lingüistas, esses três sistemas de grafia, nessa ordem, correspondem a uma evolução histórica da escrita e, assim, o “ideograma” sino-japonês seria, ainda, uma espécie de anacronismo, um resquício, uma escrita que não evoluiu para a fonografia. Para um semioticista apressado, pouco afeito às filigranas da teoria peirceana, seria óbvio caracterizar a pictografia como ícone, a ideografia como índice e a fonografia como símbolo. Por um outro lado, semioticamente falando, é grande a tentação de classificar os signos pictográficos – que por serem figurativos são considerados motivados – como icônicos e os signos fonográficos – que por serem abstratos são considerados arbitrários – como simbólicos. Isso é, decidamente, um equívoco! Senão, vejamos. Mesmo considerando os hieróglifos egípcios, não podemos classificá-los, inteiramente, como icônicos. O desenho de uma serpente significa não só o animal peçonhento, como tem implicações mitológicas que o fazem significar também “deusa” ou “sacerdotisa” (cf. Budge, 1978: 118). Ou seja, aqui já há, na relação signo-objeto, traços de hábitos culturais que nos permitiria classificá-los, pelo menos em parte, como simbólicos. Por um outro lado, o alfabeto, enquanto escrita, é um sistema auxiliado por signos logográficos (como $, % etc.) e pela pontuação – sem eles, a lógica do discurso através da escrita alfabética estaria seriamente comprometida. Um logograma (ou ideograma, conforme a boa vontade
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dos gramatólogos) como a esperluète (&) ainda hoje é utilizada para representar a conjunção coordenativa “e”. Ora, “&” é um signo figurativo (um laço) que ainda hoje guarda suas características icônicas para significar “união” e “conjunção”. Assim, os logogramas (logo = linguagem, palavra; noção, razão), enquanto unidades mínimas da escrita, são diferentes das letras, pois enquanto estas nada significam em si, aqueles já têm um significado agregado. Existem outros paralelos que podem ser traçados entre o alfabeto e o ideograma/logograma. Considerando os caracteres como os equivalentes gráficos das palavras e não necessariamente dos fonemas, muitos lingüistas os conceituam como ideográficos pelo simples fato de que, enquanto escrita, podem ser lidos pelos falantes dos diversos dialetos que ainda hoje sobrevivem na China. Ora, conceitualmente, esta característica, por si só, não pode definir o que é ideografia. É Coulmas (1991: 104 e seguintes) quem recoloca apropriadamente a questão: um falante do inglês indiano de Bombaim fará muito esforço para entender um texano do sul. Apesar das diferenças de pronúncia entre os falantes da língua inglesa, nenhum de nós afirmaria que a ortografia do inglês é ideográfica. Como podemos verificar através dessa advertência de Coulmas, a tradição lingüística não foi muito rigorosa na classificação dos sistemas de escrita – eis um motivo para recorrer à semiótica. O que os historiadores da lingüística mais observam, é o fato de que a quantidade de signos da escrita cuneiforme foi paulatinamente diminuindo na medida em que se intensificava a relação destes com os fonemas. Ao contrário, os caracteres chineses foram gradativamente aumentando em quantidade na medida em que a relação grafia/fonema foi-se intensificando. É dessa constatação que deriva o seguinte preconceito: sendo o alfabeto um sistema extremamente econômico – se comparado à demasiada complexidade dos caracteres chineses –, aquele sistema é a obra-prima da engenharia lingüística, enquanto este é rudimentar e primitivo... Se os lingüistas que defendem essa tese tivessem a coragem de verificar o que os internautas andam fazendo com os logogramas, com a pontuação e com as letras do próprio alfabeto [ :-) / ;-) / :-D / :-( / 8->, ], certamente ficariam intrigados com a utilização icônica desse sistema e tratariam de questionar a tirania do fonema sobre a escrita. Ora, o incremento na quantia de ideogramas atende à necessidade de criar grafias que signifiquem com um mínimo de dubiedade; a utilização do alfabeto na formação das palavras – e aqui está o processo multiplicador, tal qual nos ideogramas – atende à mesma necessidade. Ou seja, a letra, enquanto unidade mínima da escrita (sem um significado intrínseco), corresponde a um componente de um ideograma e, conseqüentemente, a comparação deveria ser entre a palavra formada por várias letras do alfabeto e um único ideograma. Não sendo nem gramatólogo, nem lingüista, pretendo tecer aqui uma série de considerações que corroborem a visão de Santaella (2001) sobre a
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escrita como terceiridade, isto é, como uma linguagem que, justamente por ser um terceiro, mantém laços com a sonoridade (o primeiro) e com a visualidade (o segundo). Naturalmente, é óbvio que a escrita combina elementos da sonoridade, da visualidade e da verbalidade. Entretanto, é a maneira de combinação entre esses elementos nas diversas formas de escrita que determina suas peculiaridades e, como disse anteriormente, há que se considerar as nuances e os matizes. Mas como não temos tempo nem espaço para abordar o fenômeno da escrita em todas as suas facetas (e para isso recomendo o livro de Coulmas citado anteriormente), me contento em discutir aqui o “princípio ideogramático” tão decantado na teoria da poesia concreta brasileira. Em 2002, comemora-se cinquenta anos de poesia concreta. Eis uma boa oportunidade para revisar a teoria que embasou esse que foi, sem dúvida nenhuma, um dos mais prestigiados movimentos da arte brasileira fora do país. A título de ilustração, vejamos um poema concreto de Augusto de Campos. (anexo 1) A disposição das palavras no espaço da página impressa faz um jogo entre a verticalidade/obliqüidade dos pingos da chuva (pluvial) e a horizontalidade das águas do rio (fluvial). Não há nada neste poema que lembre qualquer característica de um ideograma, pois este, como veremos, não emula a figuratividade. Vale lembrar que os poetas concretistas foram os primeiros divulgadores da semiótica no Brasil e, portanto, é justo considerar a teoria da poesia concreta sob o ponto de vista da teoria dos signos. Por isso, minha fala hoje tem o seguinte título: Escritura arcaica, composição moderna:a semiose da “ideografia” sinojaponesa como instrumento de poéticas visuais Mas, afinal de contas, o que é um ideograma? Comecemos com um pouco de história. Estudos mais recentes e menos etnocêntricos (cf. Coulmas, 1991) registram o surgimento dos caracteres chineses durante a dinastia Shang, isto é, há pelo menos 3.500 anos. Primeiramente eles eram utilizados em cerimônias divinatórias e, paulatinamente, com a consolidação do Estado chinês, foi se tornando a escrita oficial. Com o passar do tempo, dada a diversidade dos falares na extensão territorial chinesa, os caracteres se tornaram não só o elemento de unificação política, como de agregação cultural. Da China, os caracteres foram exportados para as culturas do extremo oriente e chegaram ao Japão por volta do século IV, junto com o Budismo. Através desse rápido esboço histórico, não podemos defender a idéia simplista da economia de meios do alfabeto diante da complexidade dos caracteres sino-japoneses, dadas as inúmeras implicações culturais. Mas isso já é um assunto para antropólogos, lingüistas e historiadores. Voltemos à semiótica. Com as ferramentas da semiótica, como classificar os caracteres sinojaponeses?
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Winfried Nöth em seu Handbook of semiotics (1995: 254-56) assinala, acertadamente, em quatro das seis classes de caracteres sino-japoneses: 1º – que a iconicidade dos caracteres pictográficos “só é aparente em sua forma arcaica”. O que isto quer dizer? Que a evolução gráfica (da forma) dos pictogramas não nos permite mais reconhecer nenhuma semelhança com o objeto representado. O cineasta russo Sierguéi Eisenstein em O princípio cinematográfico e o ideograma (apud Haroldo de Campos in Ideograma: lógica, poesia, linguagem, 1994: 150), antecipou o tirocínio semiótico de Nöth ao afirmar que “No fogoso e pinoteante hieróglifo ma (um cavalo) já é impossível reconhecer os traços do lindo cavalinho pateticamente apoiado nas patas traseiras, no estilo da escrita Ts’ang Chieh, que os antigos bronzes chineses tornaram tão conhecidos” . Resumindo, os caracteres pictográficos não podem ser definidos como icônicos simplesmente porque se presume que eles têm certa semelhança figurativa com o seu objeto. (anexo 2) Nesse sentido, a grafia moderna dos caracteres ditos pictográficos em nada difere da evolução gráfica do próprio alfabeto – o “A” maiúsculo, por exemplo, era, em sua grafia original, um desenho da cabeça de um bovino – experimentem invertê-lo! Assim, os ainda hoje considerados pictográficos não são signos motivados, mas convenções resultantes de hábitos culturais e, portanto, estão no nível da terceiridade. São símbolos. 2º – que os ideográficos são “ícones diagramáticos, isto é, ícones de relação”. Um diagrama é a representação gráfica de um dado fenômeno, um esquema, um traçado em linhas gerais. Corroborando a definição de ícone na teoria peirceana – como um signo que guarda algum tipo de semelhança com o objeto representado –, Nöth não hesita em classificar esses caracteres como icônicos. 3º – que os ideográficos compostos são formados pela combinação de dois ou mais caracteres. Por exemplo, uma criança + uma criança = “gêmeos”... E aqui cabe perguntar: porque essa combinação significa “gêmeos” e não “irmãos” ou, simplesmente, “duas crianças”? A resposta é óbvia: porque, diante da multisignificação desse tipo de signo, a tradição consagrou um só interpretante – e isto, por si só, explica a imensa quantidade dos caracteres sino-japoneses. Visto que esse tipo de grafia é o resultado da combinação entre pictográficos e/ou entre ideográficos, a rigor não podemos classificâ-los puramente como icônicos, pelos mesmos motivos que comentei no primeiro item, isto é, que a grafia moderna dos pictográficos não guarda mais nenhuma similaridade com sua forma figurativa ancestral. 4º – que por causa dos fonográficos (que são a imensa maioria nesse sistema), os caracteres sino-japoneses não podem ser classificados como um “genuíno sistema ideográfico de escrita”. Se os teóricos da escrita entendem a ideografia como um sistema motivado, não precisamos mais explicar porque Nöth não comunga dessa idéia. Em suma, diferentemente de gramatólogos e lingüistas – e dos poetas concretistas, como veremos a seguir – não podemos classificar os caracteres
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sino-japoneses simplesmente como icônicos, excetuando-se os do segundo exemplo que têm um caráter diagramático – sua iconicidade está na relação e não na similaridade. Para sublinhar essa hipótese, recorro novamente a Nöth (2000: 82): “Todo ícone verbal não é somente um ícone, mas, ao mesmo tempo, é também um símbolo, às vezes com elementos indiciais”. Todos sabemos que, na teoria de Peirce, um símbolo é um tipo de signo que, sem a concorrência de um segundo (o índice) e de um primeiro (o ícone), não seria, ele mesmo, um terceiro. Eis porque o ideograma é necessariamente simbólico. Mas vamos pontuar a discussão. Antes de mais nada, é necessário assinalar que a descoberta do ideograma pelos artistas ocidentais (Apollinaire, Eisenstein, Pound etc) se insere no contexto maior das vanguardas históricas européias. Tal como a gravura japonesa para os impressionistas e pós-impressionistas e a escultura africana para os cubistas, os ideogramas representam uma lufada de frescor para muitos escritores ocidentais. O que encanta os literatos desse período é a força visual dos caracteres. De fato, comparado com o alfabeto, os caracteres sino-japoneses têm uma riqueza visual impressionante. Isso se dá pelo fato de que a forma moderna dos caracteres foi determinado não pela tipografia, mas pelos estilos de caligrafia, vale dizer, pela forma e pela força do traço dos pincéis movidos pela mão do artista. Conseqüentemente, a forma atual dos caracteres ainda revela elementos eminentementes pictóricos (no sentido de desenho feito com o pincel) e é somente nesse sentido que eles podem ser considerados, ao pé da letra, como pictográficos, isto é, uma grafia que também é pintura, mas que, nem por isso, devem ser classificados exclusivamente como icônicos. (anexo 3) Assim, a primeira dominante dos caracteres é o elemento pictórico, plástico, caracterizado pelo traço, pelo movimento vigoroso da mão sobre o papel. Portanto, enquanto expressão gráfica, trata-se de secundidade e, enquanto movimento da mão sobre o papel – digamos desde já – é uma marca, um segundo, um índice. Nesse sentido, não devemos nos esquecer que a caligrafia é derivada da tradição manual-pictórica da poesia sino-japonesa, enquanto a tipografia é filha do trabalho mecânico-serial da revolução industrial. Então, já temos alguns pontos básicos: 1º – Assumindo a percepção de Coulmas (1991) e de Nöth (1994), o conceito de ideografia não é pertinente para definir os caracteres sinojaponeses em contraste com o alfabeto. 2º – Recorrendo ao ponto de vista de Santaella (2001), podemos afirmar que os caracteres sino-japoneses estão no nível da terceiridade (enquanto sistema de escrita). 3º – Corroborando as visões de Nöth (1995) e de Eisenstein (1994), somente a terceira (os ideográficos) das seis categorias de caracteres pode ser considerada como icônica.
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Em suma: todo o sistema pode ser classificado como simbólico – no nível da terceiridade – ainda que guardando alguns traços do icônico e do indicial... E nunca é demais reforçar: um símbolo, na teoria peirceana, só pode ser um terceiro, isto é, aquele tipo de signo que ainda revela resquícios de um primeiro (o ícone) e de um segundo (o índice). Mas, enfim, o que é um ideograma na teoria da poesia concreta? Pela própria definição de seus arautos, a poesia concreta sustenta-se nas três matrizes da linguagem e do pensamento: sonora, visual e verbal, visto que ela foi caracterizada como verbivocovisual. Mas afirmar isso é “chover no molhado”, pois a combinação de tais elementos não é exclusividade da poesia concreta... É, na verdade, a principal característica da verbalidade enquanto sistema que combina som e imagem através da escrita. Nos caracteres sino-japoneses, mais do que no alfabeto, esse hibridismo é claro e, talvez por isso, Haroldo e Augusto de Campos e Décio Pignatari tenham definido a poesia concreta como ideogramática. Vejamos algumas citações nesse sentido: “O poema concreto aspira a ser: composição de elementos básicos da linguagem, organizados ótico-acusticamente no espaço gráfico por fatores de proximidade e semelhança, como uma espécie de ideograma para uma dada emoção, visando à apresentação direta – presentificação – do objeto” (Haroldo de Campos in “olho por olho a olho nu”, publicado originalmente na revista ad – arquitetura e decoração, nº 20, São Paulo, novembro/ dezembro de 1956) Nesta citação de Haroldo de Campos, o ideograma é definido por fatores de proximidade e semelhança e pela apresentação direta do objeto. Sabemos que a semelhança e a representação direta do objeto são duas das características do ícone na teoria peirceana... Por isso, seria óbvio concluir que o poema concreto – via influência ideogramática – é icônico. Mas, como vimos, essa conclusão é por demais simplista, visto que o ideograma raramente representa diretamente o objeto ou com ele mantenha qualquer semelhança. E é intrigante que a teoria da poesia concreta refute os experimentos icônicos dos Caligramas de Apollinaire (estes sim funcionando por similaridade), mas insista nos fatores de semelhança. Entretanto, a “proximidade” aludida nesta citação de Haroldo de Campos pode ser entendida como proximidade de idéias como no exemplo do ideograma que significa “gêmeos” (citado anteriormente)... Aí sim, pode ser considerado, segundo a definição de Nöth, como um ícone diagramático, ou seja, um ícone de relações. Mas, como vimos, isso não é uma característica de todo o sistema ideográfico e, assim, é temeroso definir o ideograma, grosso modo, como icônico. “O poema concreto ou ideograma passa a ser um campo relacional de funções (...) funções-relações gráfico-fonéticas (“fatores de proximidade e semelhança”) e o uso substantivo do espaço como elemento de composição entretêm uma dialética simultânea de olho e fôlego que, aliada à síntese ideogrâmica do significado, cria uma totalidade sensível “verbivocovisual”, de modo a justapor palavras e experiência num estreito 52 CONFERÊNCIA
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colamento fenomenológico, antes impossível” (Augusto de Campos in “poesia concreta”, publicado originalmente na revista ad, nº 20, nov/dez de 1956). Utilizo esta citação para mostrar que Augusto de Campos, afinado com o irmão Haroldo, considera o poema concreto como sinônimo de ideograma e reitera os fatores de proximidade e semelhança, bem como a “síntese ideogrâmica do significado”... O que seria essa síntese? Uma síntese derivada das relações entre o sonoro, o visual e o verbal? Mas isso não é característica exclusiva do ideograma... Toda forma de escrita mantém, necessariamente, esse tipo de relação. Síntese de significado? Vejamos, por exemplo, quantos sentidos tem o ideograma sei (citado anteriormente): “nascer”, “brotar”, “crescer”, “viver”, “produzir”... Em termos semânticos, não se pode falar apropriadamente de síntese. Em “nova poesia: concreta” (texto publicado no mesmo número da revista em que aparecem as citações anteriores), Décio Pignatari afirma que a estratégia do movimento concreto se baseia em Mallarmé e em Pound, junto com Fenollosa e sua concepção de ideograma. É justamente através dos estudos de Fenollosa sobre a escrita sino-japonesa (publicados por Pound) que Haroldo de Campos (1994) casa a concepção de ideograma em Fenollosa com o conceito de ícone em Peirce – mas essa foi uma idéia originalmente concebida por Décio Pignatari. Pois bem! Não precisamos mais defender a hipótese de que a ideografia não é simplesmente icônica. Os próprios textos compilados por Haroldo de Campos em Ideograma – lógica, poesia, linguagem, se lidos atentamente, não comungam dessa idéia. Ernest Fenollosa, Sierguéi Eisenstein, Chang Tung-Sun, Yu-Kuang Chu e S. I. Hayakawa, cada um a seu modo, revelam a riqueza do sistema ideográfico sino-japonês sem cair na tentação de caracterizá-lo como signo motivado visualmente. O caráter visual da poesia concreta, naturalmente, salta aos olhos. Mas essa dominância do visual não pode ser caracterizada, pelo que vimos discutindo até o momento, nem como icônica e muito menos como ideogramática. Não podemos falar nem mesmo de predominância do visual pois, se assim o fosse, estaria reduzida à pintura e ao desenho. A poesia concreta é, numa frase, um amálgama entre o sonoro, o visual e o verbal, uma constante gangorra entre o icônico e o simbólico. A ideografia também é uma síntese entre som, imagem e verbo, mas que deve ser caracterizada como um sistema simbólico com resquícios icônicos e indiciais. Essa afirmação, numa primeira leitura, pode corroborar a idéia de que o poema concreto é icônico tal como o ideograma e, assim, contradizer o que venho afirmando até este momento... Mas atenção: o poema concreto oscila entre o icônico e o simbólico enquanto o ideograma é, decididamente, simbólico. Mas essa conclusão é um tanto quanto complexa... Vamos, então, proceder à uma revisão do escopo deste ensaio, agora em fina sintonia com a categorização das matrizes da linguagem que Santaella (2001), inspirada em Peirce, nos oferece. CONFERÊNCIA 53
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A escrita, antes de mais nada, é imagem, até porque é um tipo de desenho – tente convencer um designer gráfico do contrário! Ora, a visualidade, segundo Santaella (2001), está no nível da secundidade e suas três principais modalidades são: 1ª - formas não representativas 2ª - formas figurativas 3ª - formas simbólicas Considerando-se as unidades gráficas do alfabeto e dos caracteres sinojaponeses, poderemos observar melhor essa classificação. O que é, basicamente, uma letra do alfabeto? É um signo em estado de potência, ainda não efetivado, é mera hipótese. É uma qualidade, um simples traço abstrato, uma forma não representativa, um primeiro, um ícone. Naturalmente, aquele “M” arredondado da McDonalds ou qualquer letra utilizada como logotipo já são outros quinhentos. E o que é um ideograma? É um signo já efetivado, que já é capaz de produzir um interpretante. É um hábito estabelecido pela cultura através de convenções intrínsecas, é uma forma simbólica, um terceiro, um símbolo. Resumindo: o alfabeto é o primeiro (nível icônico) da visualidade/ secundidade, enquanto o ideograma é um terceiro (nível simbólico) dessa mesma secundidade – perceberam porque não podemos ceder à tentação classificatória semi-oticista, tratando a pictografia como icônica e a fonografica como simbólica? Assim: Sonoridade (nível da primeiridade): 1. ….. 2. ….. 3. ….. Visualidade (nível da secundidade): 1. alfabeto (forma não representativa). 2. ………. (forma figurativa). 3. ideograma (forma simbólica). Verbalidade (nível da terceiridade): 1. ….. 2. ….. 3. ….. Naturalmente, a escrita mantém relações com a sonoridade (primeiro) e com a verbalidade (terceiro). Mas, como o que nos interessa aqui é o caráter visual dos sistemas de escrita, deixo para um outro momento a tentativa de aprofundar a questão. A poesia, sendo verbalidade, já é classificada como parte da terceira matriz. A poesia, ainda segundo Santaella (2001), é o aspecto criador da verbalidade e, portanto, é parte da primeira modalidade dessa terceira categoria. Pois bem! Vimos que a poesia concreta foi caracterizada como ideogramática. Como percebê-la, então, através do rendilhado de categorias e modalidades tecido por Santaella? Antes de responder a essa questão, quero deixar claro que estou correndo o risco de ser desautorizado publicamente pela própria autora... Mas não vou fugirei ao debate. 54
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A poesia concreta brasileira, como toda forma poética é, a princípio, um primeiro (nível icônico) da terceira categoria (a verbalidade). Mas esta poeticidade está assentada no primeiro (o alfabeto, forma não representativa) da segunda matriz (a visualidade), enquanto que o ideograma é um terceiro (forma simbólica), também da segunda matriz. Em outras palavras, a poesia concreta é um primeiro (poesia) da terceiridade (a verbalidade), baseada no primeiro (o alfabeto) da secundidade (a visualidade), mas que pretende mimetizar as características de um terceiro (o ideograma) dessa mesma secundidade. Então, como podemos entender que a poesia concreta é ideogramática, conforme a definição de seus teóricos? Conclusão: a poesia concreta se utiliza de um sistema icônico almejando assumir as filigranas do simbólico... Ou seja, trata-se de uma equação impossível de ser resolvida, visto que um ícone (por ser um primeiro) jamais se tornará um símbolo, embora este revele resquícios daquele. Para encerrar (por enquanto) a celeuma, citarei um insight de Philadelpho Menezes que é, provavelmente, o mais arguto dentre os poetas/teóricos brasileiros que se debruçaram sobre a herança da poesia concreta: “Parece-me evidente, contudo, que a característica maior da poesia é possuir, de maneira lapidar como talvez só ela possua, as esferas do icônico e do simbólico, em absoluta concordância e equilíbrio, a produzir um estado de alternância e oscilação entre esses aspectos icônicos e simbólicos no momento da apreciação do poema. Se ela fosse realmente a vingança do ícone, excludente e anti-simbólico, ela se reduziria à música, quando declamada, e às artes visuais, quando vista” (Menezes, 1996: 46). Corroborando Santaella, Menezes também percebe a poesia como o aspecto criador da verbalidade, isto é, como um ícone perceptível no nível da terceiridade. Se fôssemos acreditar na definição de que o poema concreto é ideogramático, teríamos forçosamente que encará-lo como um símbolo que se revela no interior da terceiridade. Não foi à toa que Menezes definiu a poesia de caráter visual como poesia intersígnica. Pelo visto, o poema concreto não pode ser definido única e exclusivamente como icônico, muito menos como ideogramático. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: BUDGE, Wallis E. A. An Egyptian hieroglyphic dictionary. New York: Dover Publications, 1978 (1920), 2 vols. CAMPOS, Augusto de; CAMPOS, Haroldo de; PIGNATARI, Décio. Teoria da poesia concreta – textos críticos e manifestos (1950-1960). São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1975 (1965). CAMPOS, Augusto de. Poesia, 1949-1979. São Paulo: Brasiliense, 1986.
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CAMPOS, Haroldo de (org.). Ideograma – lógica, poesia, linguagem. São Paulo: Edusp, 1994 (1977). COULMAS, Florian. The writing systems of the world. Oxford (UK) / Cambridge (USA): Blackwell, 1991 (1989). MENEZES, Philadelpho. “Poesia visual, reciclagem e inovação”, in: Imagens, nº 6, Campinas, Ed. da Unicamp, 1996, pp. 39-48. NÖTH, Winfried. Handbook of semiotics. Bloomington / Indianapolis: Indiana University Press, 1995. ______. “Semiotic foundations of iconicity in language and literature”, in: Caderno da 3ª Jornada do Centro de Estudos Peirceanos, 2000, pp. 80-89. SANTAELLA, Lucia. Matrizes da linguagem e pensamento – sonora, visual, verbal. São Paulo: Fapesp / Iluminuras, 2001. NOTA: *Afonso Medeiros é professor de Estética e História da Arte do Deptº de Arte da Universidade Federal do Pará. e História das Idéias Semióticas e Artes Visuais e Linguagens Híbridas da Especialização em Semiótica e Artes Visuais do Núcleod e Artes da UFPA/Coordenador da Especialização em Semiótica e Artes Visuais e do Núcleo de Artes da UFPA/Professor Coalborador do Programa de Pó-Graduação em ARtes Cênicas da UFBA
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ARTE E VISUALIDADE
VALZELI SAMPAIO*
O homem contemporâneo à semelhança de seus antepassados, desenvolvese numa realidade social cujas necessidades e valores culturais moldam seus valores individuais, e, por conseguinte, o seu modo de pensar, de agir, de ser, estar no mundo. Podemos perceber que a arte como um modo de ação produtiva do homem, é um fenômeno social e parte da cultura. Antes mesmo de identificarmos este fenômeno, e nomeá-lo, a arte relaciona-se com a totalidade da existência humana, mantendo íntimas conexões com o processo histórico, e com sua própria história, dirigida que é por tendências que nascem, desenvolvem-se e morrem, e às quais correspondem estilos, formas, movimentos. Teóricos, historiadores, filósofos defendem a tese de que no caso da arte contemporãnea essas categorizações caem por terra. Afinal quais as implicações do contexto na natureza criativa do homem contemporâneo ? O termo cultura possui associações diferentes e, em alguns casos, significações complexas. Procuraremos trabalhar com a idéia de que o criador coloca no seu processo, consciente ou inconscientemente, os valores culturais do contexto ao qual pertence e a partir de onde cria, sendo ao mesmo tempo uma nova forma de comunicação de todos com tudo. Entendemos, a partir de um ponto de vista semiótico que o contexto cultural é o espaço de mediação dos signos e que cultura corresponde a um sistema sígnico, e a sociedade produtora desse sistema corresponde a um macro sistema, a relação entre cultura e sociedade dá-se em um espaço, sendo este o lugar da intercessão dos signos. Partindo da premissa de Peirce, para quem tudo é signo, a cultura manifesta-se como espaço da mediação sígnica e de fusão da tecnologia. CONFERÊNCIA 57
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Para Peirce o homem está presente em tudo o que faz, e a arte vista como um modo de ação do homem registra essa presença. Do ponto de vista semiótico, a palavra, a linguagem, a arte, assim como qualquer outro bem cultural, têm uma existência de independência e de dependência mútua com o homem, por carregar consigo toda informação que constitui o desenvolvimento do homem, seus sentimentos, idéias, pensamentos. Existe, portanto, uma correspondência entre a linguagem, entre a arte e o homem que a produz.. O código no qual estrutura-se determinada linguagem, ou seja, a sua forma, está ligada a certos traços da matéria de expressão. Assim então, cada linguagem é uma combinação específica de códigos, isto significa que o agrupamento total de códigos de uma linguagem nunca é idêntico de uma linguagem para outra. Partindo da classificação de Santaella (2002), no livro “Matrizes da linguagem e pensamento”, procuramos observar as “formas visuais estruturadas como linguagem”. E a maneira como se estrutura o pensamento visual. O termo linguagem é usado para determinar um sistema sígnico. Esse sistema pode ser verbal, visual e/ou sonoro. A linguagem dá forma à construção do pensamento, daí a classificação de Santaella das matrizes da linguagem e pensamento. Podemos dizer que a linguagem é um instrumento que dá lugar à composição de signos ou sistemas de signos para possibilitar a comunicação. E onde quer que uma informação seja transmitida tem-se um ato de comunicação. Não há comunicação sem informação. E não há, também, transmissão de informação sem um canal ou veículo através do qual essa informação transite. Para que haja comunicação é preciso que se partilhe, pelo menos parcialmente, o código através da qual essa informação se organiza na forma de mensagem. A linguagem é usada para significar todos os tipos de signos. Desta forma não existe pensamento sem linguagem. Importante frisar que os domínios das imagens não existem em separado, pois estão inextricavelmente ligados na sua origem. Ou seja, não há imagens como representações visuais que não tenham surgido na mente daqueles que as produziram, do mesmo modo que não há imagens mentais que não tenham alguma origem no mundo concreto dos objetos visuais. Na realidade nem o código verbal pode desenvolver-se sem imagens. O nosso discurso verbal está permeado de imagens. A palavra teoria, aliás, já contém na sua raiz uma imagem, pois teoria, na origem da palavra, significa vista, que vem do verbo theorein: ver, olhar, contemplar, mirar... Segundo os autores os conceitos unificadores dos domínios da imagem são os conceitos de signo e representação. Santaella (2001) nos chama a atenção sobre a “vocação mimética das imagens transcende as determinações históricas, pois desde as primeiras inscrições nas grutas, a humanidade esteve guiada pelo desejo complexo e provavelmente eterno de duplicar o mundo”. Movido por este desejo, que o homem realizou descobertas no domínio tecno-científíco que modificam o alcance e a função da imagem em nossa 58 CONFERÊNCIA
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civilização urbana. Essas descobertas incidem sobre as formas de sentir e pensar do homem comum. A imagem é signo, elemento de escrita, componente de linguagem e modelo de mundo possível. A multiplicidade de funções sígnicas conferiu à imagem, ao longo da história, um papel de primeira importância na transmissão da cultura através do jogo, da arte, dos rituais mágicos e religiosos, nos saberes práticos, míticos ou científicos acumulados nos diversos campos do conhecimento. Couchot (1993) afirma que “desde a evolução das técnicas de figuração que existiu uma pesquisa quase obsessiva que visava automatizar cada vez mais os processos de criação e reprodução da imagem”, Essa pesquisa nos levou à perspectiva de projeção central, e na busca de um automatismo que liberasse cada vez mais o olhar e a mão, como a fotografia. E o cinema, que permitiu o registro automático do próprio movimento. Sem fazer uma descrição técnica de todas estas informações, partindo da perspectiva renascentista como nós a conhecemos: linear, geométrica, cêntrica. Se estudar atentamente o seu funcionamento, o seu mecanismo geométrico conceitual, perceber-se-á que é uma convenção, que também ela é uma linguagem, e que é uma linguagem em que somente uma parte, somente esta fração é analógica, enquanto que a linha em si mesma, ou as linhas retas, ou as curvas que possam ser distribuídas no espaço através da perspectiva renascentista são, por si mesmas, não só analógicas (ou seja, conservam um caráter de semelhança com a realidade), de um certo ponto de vista são também digitais, por serem como estas simbólicos-substitutivas. De fato, a linha reta impalpável da perspectiva cêntrico-linear substitui a espessura do raio visível que representa grandezas mensuráveis, distâncias. Por conseguinte, números. Mesmo se até ontem todos tínhamos pensado que a imagem de perspectiva era uma imagem analógica, que teria a ver com a geometria e não com os números. Santaella nos avisa sobre a característica primordial da linguagem visual que está relacionada ao modo como elas chegam à nossa percepção. “Ver é estar diante de algo seja uma imagem mental ou onírica, pois o que caracteriza a imagem é sua presença, estar presente, tomando conta de nossa apreensão.”. (2002) Para a autora o eixo geral do qual ela desenvolve a sua categorização da linguagem visual, é o das formas. E é a partir deste eixo que desenvolvemos nossa análise. As potencialidades de criar não se restringem à arte. O ato de criar é um agir integrado ao viver. Essa natureza criativa elabora-se no contexto, no lugar onde se está, ou seja, na cultura. Esse criar corresponde a uma forma, um dar forma a alguma coisa, porque quando se cria, sempre se ordena algo, configura-se algo, formata-se uma coisa. Entendemos que toda forma, toda coisa formatada é um modo de comunicação e, ao mesmo tempo, uma forma de realização. A forma possui propriedades que a consubstanciam, ou seja, a forma pode constituir-se num único ponto (singular) ou numa linha (sucessão de pontos), ou num plano (sucessão de linhas), ou ainda num volume (uma forma completa contemplando todas as propriedades citadas.) A CONFERÊNCIA 59
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forma comunica sobre a natureza da aparência do objeto. Tudo o que se vê possui forma. Se as formas mais primárias têm a sua lei, estrutura e suas qualidades intrínsecas, as formas complexas, como as produzidas pela hipermídia, por exemplo, participam da mesma distinção. A intenção comunicativa da forma origina-se no processo de criação da coisa formatada. Nesse sentido, o ato de dar forma a algo é um ato comunicativo. Diria que o salto qualitativo que se vem verificando pode ser definido como a passagem de uma linguagem analógica a uma linguagem digital e, além disso, a uma linguagem digital capaz de ser restituída por imagens que só aparentemente são analógicas, porque têm realmente necessidade do trâmite algorítmico. A imagem digital simulada não indica mutação alguma em relação à imagem ótica analógica. A realidade virtual das imagens computadorizadas é um dentre os sintomas do movimento amplo de mutação de parâmetros de representação simbólica e de ação comunicativa. O computador como máquina e como técnica reflete sua relação sinérgica com o homem. Por sua constituição, apresenta-se como um ambiente de circulação de pensamento e indica sobre o seu modo de ser: prótese dos sentidos. No caso do computador, ele foi estruturado, desde o seu gérmen, a partir do funcionamento do corpo. Melhor, tudo começou a partir da investigação de processos humanos internos. No artigo intitulado As we may think, de Vannevar Bush (1945), o autor chamava atenção sobre o modo de funcionamento da mente humana, que operava através de associações. Como por exemplo, no momento em que algo é compreendido, instantaneamente a atenção desvia-se para outra coisa, sugerindo uma associação de pensamentos com algumas intricadas redes de rastros através das células do cérebro. Considerando que as técnicas de computação introduziram formas e efeitos visuais diversos aos que existiam até então, podemos inferir que as outras possibilidades técnicas e criativas deverão surgir com o avanço das tecnologias. Esse fato já é motivo suficiente para que se discuta a relação dos computadores com a linguagem e a sua relação com a criação, assim como a sua relação com a arte. Sabe-se que essa é uma questão antiga, mas que continua atual. Aliás, toma contornos específicos nesse universo criativo. Melhor, as matérias mesmas do trabalho do artista são os códigos, as linguagens das quais ele se serve. O artista contemporâneo recorre hoje, à uma multiplicidade de linguagens para elaborar a sua. As novas tecnologias eletrônicas são apropriadas pelos criadores de hoje, fazendoos participantes dos seus códigos e delas servindo-se para seus propósitos. Fala-se muito em arte e tecnologia como se entre essas duas áreas ocorresse uma relação inaugural, e mais, como se essa relação fosse uma característica da arte produzida hoje, Mas não podemos esquecer do fato de que, na Antiguidade, arte e técnica designavam a mesma coisa. A questão é que a arte está sempre sintonizada às novas tecnologias de 60 CONFERÊNCIA
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ponta de todas as épocas e delas se serviu como um dos elementos constitutivos de sua linguagem. A apropriação das tecnologias pela arte, todavia, não tem outro fim e propósito senão o de realizar a função estética por novas criações, ou seja, a arte usa a tecnologia desinteressadamente e sem finalidades práticas. Nesse modo de ser, o computador pode ser compreendido como um meio de expressão, e estamos assistindo ao surgimento de novas formas de criatividade a partir da mídia tecnológica. A relação da técnica e da forma é outra questão antiga que, devido à natureza que é própria do computador como máquina sensória, no artigo o Homem e as Máquinas (Leão, 2002) Santaella atualiza essa discussão. Neste artigo a autora analisa a relação homem e máquina como uma expansão dos signos dos sentidos: o computador apresenta-se como expansão da imaginação. Quando o ambiente do computador configura-se como um espaço de produção criativa de linguagem e de representações, deparamo-nos com a questão da expressividade da linguagem. De que maneira as técnicas e as formas nos processos com o computador podem expressar imaginação e criatividade ? As especificidades da matéria digital atingem, em muitos casos, os modos de criar nesse multimeio Plaza e Tavares (1988) falam-nos de uma instantaneidade e a velocidade que atingem as formas de criação. Os autores nos apontam o cerne da discussão: “Nos processos criativos com esses meios, a qualidade é evidenciada como o compromisso estabelecido entre a subjetividade daqueles que inventa e as regras sintéticas inerentes aos programas por ele utilizados. Estas tecnologias ao participarem deste tipo de criação, instituem-se como forma de expressão, manifesta pelo diálogo entre materialidade do meio e o insight criativo” (1998) A expressividade resulta da relação da forma, técnica e criatividade. Os programas que estruturam o método e leis de trabalho autorizam o eu criador a definir o propósito da criação. “Os meios eletrônicos representados pelo hardware e pelo software são responsáveis por amplificar as capacidades cognitivas do criador, caracterizando, portanto, uma prática fundada em permanente diálogo entre o indivíduo e o coletivo”. (Plaza & Tavares, 1988: 64) Entendemos a hipermídia como uma estrutura tecnológica e de criação, que possibilita a fruição entre a poética e o contexto cultural. Este estado é possível porque existe um ponto para onde convergem , os dois sistemas: o espaço hipermidiático a ser formatado. A forma e a técnica do objeto hipermidiático têm na sua expressividade características do lugar onde foram geradas. Melhor, a estrutura de organização dos dados é fornecida pelo próprio programa e reflete-se no objeto projetado. Observando esta questão na escala do computador como máquina semiótica, que também se organiza em um programa (operacional), temos igualmente a construção de uma estrutura hipertextual. A esquematização dos dados informáticos - divididos em diretórios, subdiretórios, traduzidos na interface gráfica por ícones, pastas e janelas - é organizada hipertextualmente. Os espaços CONFERÊNCIA
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hipermidiáticos organizam-se de forma semelhante, não-linear, múltiplos de funções e eventos, sendo, portanto, a hipertextualidade característica do ambiente informacional. O computador é mais um veículo para a comunicação humana, e não podemos ignorar o fato de que é usado para manipular números tão bem quanto palavras. Melhor, sua linguagem decodifica números, palavras, imagens e sons, em combinações matemáticas entre os números 0 e 1. O computador mostra-nos que nenhuma outra definição de escrita incluiu, da maneira como agora inclui, a matemática e a lógica simbólica ao longo da escritura verbal e de gráficos. Do ponto de vista da lógica da programação, um programa (software) seja ele gráfico, um editor de imagem ou um programa de autoria para cdroms e internet - não desenha, escreve. Um computador gráfico é um conjunto simbólico de bits: uma textura de pontos que nossos olhos convertem em linhas na tela. O computador é um tipo de representação escrita do mundo. Todos os computadores são, na mesma medida, leitura e escrita. Um texto no computador é um tipo de representação escrita no mundo. Todos os computadores são, na mesma medida, leitura e escrita. Um texto ou uma imagem no computador, é sempre uma interface de signos, que podem ser números, símbolos, palavras, gráficos ou vídeos tratados simbolicamente. O computador apresenta uma outra dimensão visual da escrita. E, nesse sentido, no computador todas as formas de escrita são espaciais, e só podemos ver e entender essa escrita sígnica numa extensão no espaço. Para a escrita eletrônica, o espaço é a tela do computador, onde a imagem é apresentada como memória eletrônica, armazenada em blocos e camadas de informações conectadas. O espaço da escrita no computador é animado, visualmente complexo e extremamente maleável, tanto nas mãos daquele que escreve como daquele que lê. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
Bush, Vannevar (1945). As we may think: Atlantic on line: www.theatlantic.com/unbound/flashbks/ computer/bushf.htm Couchot (1993). Da representação à simulação: evolução das Técnicas e das artes da figuração. In: Parente, André. Imagem Máquina: Ed. 34. Leão, Lúcia. (2002) Interlab: labirintos do pensamento contemporâneo: Fapesp: Iluminuras. São Paulo. Peirce, Charles Sanders. (1990) Semiótica. Col. Estudo: Perspectiva. São Paulo. 2a. Edição. Plaza, Julio; Tavares, Mónica. (1997) Processos Criativos com meios eletrônicos, São Paulo. Hucitec. Santaella, Lúcia; Nöth, Winfried. (1998) Imagem: cognição, semiótica e mídia: Iluminuras. São Paulo. Santaella, Lúcia. (2001) Matrizes da Linguagem e Pensamento: sonora, visual e verbal. São Paulo. Hucitec.
NOTA:
* Doutora e Mestre em Comunicação e Semiótica (PUC-SP). Pesquisadora e Professora do Mestrado em Artes (ICA/UFPA) e da Faculdade de Artes Visuais (ICA). 62
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SIMETRIA E QUEBRAS DE SIMETRIA NOS SIGNOS E NOS SISTEMAS SEMIÓTICOS
WINFRIED NÖTH*
1. FORMAS DE SIMETRIA NA NATUREZA
Ao longo da escala de fenômenos que se estende do domínio do caos até seu pólo oposto, o da ordem, este último foi o lugar tradicionalmente dado à simetria. Desde a antigüidade grega, a simetria tem sido a representante natural da ordem. Para os gregos antigos, o conceito de simetria era sinônimo de harmonia, equilíbrio, boas proporções, perfeição na estrutura, sendo mesmo sinônimo de beleza. No nosso tempo, o conceito de simetria, pelo menos na linguagem cotidiana, restringe-se, normalmente, a uma espécie particular de simetria, mais precisamente chamada de simetria bilateral, reflexiva, ou simetria do espelho, aquela que aparece na borboleta, no corpo humano ou em um par de luvas. Definida matematicamente, a simetria bilateral resulta de uma projeção reversa de uma figura no plano oposto de um eixo de simetria. Essa projeção se constitui de uma operação de transformação onde uma dada forma se mantém invariante. Os matemáticos, no entanto, também definem como simetria muitos outros tipos de transformação que projetam um objeto de uma maneira invariante no espaço. Dois tipos principais de simetria, nesse sentido amplo, são a simetria rotativa e a simetria translativa. A rotativa resulta da rotação de uma figura em torno de um ponto de ancoragem. É o tipo de simetria que encontramos nos flocos de neve, nas folhas de um trevo ou no peixe estrela. A simetria translativa resulta de uma translação paralela de uma figura ao longo de um dado eixo. Os ornamentos antigos de friso ou as pérolas CONFERÊNCIA
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de um colar apresentam esse tipo de simetria. Depois de movermos um colar de pérolas para um lado, na medida da distância entre duas pérolas, todo o colar reaparece exatamente na mesma ordem, se desconsiderarmos seu início e seu fim. Quando estendemos o estudo das operações de simetria dos objetos planos aos tridimensionais, duas espécies importantes de simetria que devem ser mencionadas são aquelas que encontramos nos cilindros e nas esferas. Um objeto cilindricamente simétrico, como um ovo, o tronco de uma árvore ou uma coluna de sal, permanece invariante na sua forma quando girado em torno do seu eixo vertical central. Já um objeto esfericamente simétrico, como uma bola de ping-pong, permanece invariante quando girado em qualquer direção ao longo de seu centro. Em adição a essas formas puramente geométricas de simetria, o panorama das formas simétricas pode se estender às formas híbridas e combinadas (cf. Rohde 1982: 16-30). A simetria rotativa combinada com a translativa, por exemplo, resulta na simetria de hélice ou simetria do parafuso. Quando os limites de um objeto se expandem ou encolhem uniformemente em torno de um centro específico, a operação é aquela de uma simetria de dilatação, em círculos concêntricos do mesmo modo que um território em relação ao seu mapa apresenta uma simetria de dilatação. De especial interesse para o estudo dos sistemas semióticos é a anti-simetria ou simetria reversa. Ela descreve a relação de elementos que são simétricos, mas que diferem em relação a uma propriedade não geométrica adicional, tal como a cor ou uma substância material (cf. Shubnikov & Koptsik 1972: 263). A anti-simetria pode ser tanto bilateral quanto translativa. Um objeto anti-simétrico bilateral, por exemplo, é a roupa de um arlequim, branca do lado esquerdo e preta do lado direito de um eixo especular central. Um exemplo da anti-simetria translativa encontra-se num colar de pedras brancas e pretas ou no tabuleiro de xadrez, considerado coluna por coluna. Em resumo, pode-se afirmar que o traço comum de todos os tipos de simetria consiste na igualdade geométrica ou invariância dos elementos simetricamente recorrentes. Na simetria translativa e rotativa, as figuras recorrentes não são apenas invariantes, mas também congruentes ou automorfas (cf. Weyl 1952: 18). A simetria bilateral, pelo contrário, resulta em formas incongruentes devido à inversão especular. Considere-se, por exemplo, as simetrias das mãos humanas. A projeção translativa da mão direita cria figuras da mesma mão que são, ao mesmo tempo, figuras invariantes e congruentes com a mão original. Uma imagem especular da mão direita, pelo contrário, tem a forma de uma mão esquerda. Ambas as mãos são invariantes na sua forma, mas a mão esquerda é incongruente com a mão direita, como podemos perceber quando tentamos colocar uma luva esquerda na nossa mão direita. Esta incongruência particular de objetos bilateralmente simétricos é chamada de enantiomorfia.
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2. SIMETRIA ENTRE O CAOS E A ORDEM A simetria, como vimos em nossa apresentação preliminar de suas variações básicas, é, portanto, uma questão de graus. Se definimos o grau de simetria de um objeto pelo número de operações simétricas sob as quais a invariância se mantém (Mayer-Kuckuk 1989: 27), chegamos à conclusão que um objeto bilateralmente simétrico, do tipo “corpo humano”, exemplifica apenas o grau mais baixo da simetria, visto que permite meramente um tipo simples de projeção, aquela que vai do lado direito ao lado esquerdo do eixo da simetria. Um quadrado, entretanto, apresenta quatro vezes a simetria bilateral e quatro vezes a simetria rotativa. Um círculo, por sua vez, tem um número ilimitado de simetrias rotativas em torno do seu centro e um número igualmente ilimitado de simetrias bilaterais ao longo de qualquer um de seus diâmetros. As possibilidades de projeção simétrica se multiplicam exponencialmente quando passamos do círculo à esfera. Se nos voltamos para planos ou espaços ilimitados ou se consideramos planos e espaços independentemente de seus limites, podemos encontrar um número ilimitado de simetrias translativas bilaterais e rotativas. Assim chegamos ao paradoxo de que matematicamente os planos mais uniformes e sem caracteres, assim como os espaços mais homogêneos e desestruturados apresentam o máximo de todas as simetrias possíveis. Na superfície de um mar imenso, estendendo-se de horizonte a horizonte, cada ou qualquer ponto parece igual a qualquer outro, e, por nenhuma operação de projeção, podemos aí descobrir qualquer diferença intrínseca. Do mesmo modo, as moléculas em um copo de água se distribuem simetricamente aos nossos olhos. Não importa quão fortemente o copo possa ser agitado, assim que a água entrar em repouso, a água parecerá a mesma, sem que possamos descobrir uma mudança. A partir dessas observações paradoxais que dizem respeito ao máximo de simetria do espaço homogêneo, podemos derivar uma primeira conexão surpreendente entre a simetria e o caos, se tomarmos o termo caos no sentido helênico e bíblico. Nesse sentido, caos não significava desordem, mas, mais propriamente, falta de ordem, vazio. Ora, caos como vazio, como um espaço totalmente sem estrutura, é exatamente o espaço que descobrimos ser simétrico ao máximo. O caos, no sentido de vazio, é, portanto, completamente simétrico. Certamente, há um segundo uso atualmente mais comum do termo caos significando a desordem total, uma confusão de elementos e forças aleatórias. Nesse sentido, a simetria parece certamente ser diametralmente oposta ao caos. Entretanto, neste ponto, temos de distinguir entre o significado lingüístico de caos como desordem e o fenômeno natural dos processos caóticos. Descobertas científicas amais atuais, levaram-nos a saber que o caos natural, tal como ocorre em processos físicos e químicos, não é, de modo algum, desordenado. Conforme foi mostrado por Prigogine
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e Stengers (1984), o caos é um estado dos sistemas naturais longe do equilíbrio durante o qual uma transição para um novo estado mais complexo pode ocorrer. Tanto nos sistemas auto-organizativos estudados por Prigogine quanto nas teorias do caos determinista, os processos caóticos podem dar origem a uma nova ordem. Nesses estados de transição caótica, a simetria desempenha um papel decisivo (Peitgen 1988). No curso dos estados transicionais de caos da dinâmica não linear, muitos sistemas, repentinamente exibem padrões estruturais infinitamente recursivos que apresentam a característica chamada de auto-similaridade. É assim que o caos determinista não apenas quebra, mas também cria simetrias (Stewart & Golubitsky 1992: 223). Para sintetizar, encontramos a ordem em oposição a três tipos de caos: (1) caos como desordem total, (2) caos como vazio e (3) caos determinista. A constelação semântica resultante sugere o quadrado semiótico greimasiano. Seu eixo inicial consiste dos contrários da ordem versus caos como desordem. O caos como vazio e o caos determinista estendem o eixo a um quadrado. O vazio não estruturado representa a não ordem, sendo assim o termo contraditório da ordem, enquanto a contradição da desordem caótica, isto é, o caos não-desordenado, é a categoria do caos determinista: caos como ordem desordem caos não-desordenado: não ordem (falta de ordem) (caos determinista) caos como vazio 3. SIMETRIA NUMA PERSPECTIVA EVOLUCIONÁRIA A simetria está onipresente no curso da evolução do cosmo à semiogênese, da natureza à cultura. De acordo com o relato bíblico da cosmogênese, a ordem do nosso mundo foi precedida por um estado original de caos como vazio. Matematicamente, isto realmente quer dizer que o nosso cosmo não se originou da desordem, mas de um estado de máxima simetria. Mesmo se abandonamos o relato mítico da cosmogênese, adotando o cientificamente moderno, encontramos a simetria na raiz da evolução cósmica. De acordo com as chamadas grandes teorias unificadas da cosmogênese, nosso universo começou há quinze bilhões de anos, e na sua fase mais inicial sobre a qual temos algum conhecimento, de 10-43 a 1032 segundos antes do Big-Bang, havia completa simetria entre todas as partículas elementares, que se dividiam simetricamente em partículas e anti-partículas, ambas existindo precisamente em quantidades iguais, sendo completamente iguais em valor e em efeitos físicos recíprocos (cf. Mainzer 1988: 515-516). A evolução do nosso cosmo começou com a quebra dessa simetria inicial. Anti-simetrias e assimetrias perturbaram a uniformidade 66 CONFERÊNCIA
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universal original e começaram a criar as estruturas físicas do nosso universo presente. No domínio das partículas elementares, um dos resultados dessa evolução, está na oposição anti-simétrica entre matéria e anti-matéria (Bochner 1973: 350-351). Por exemplo, o elétron e sua anti-partícula, o pósitron, apresentam uma tal anti-simetria. Eles são estruturalmente simétricos exceto pelo fato de que o pósitron é muito mais estável do que o elétron (Bochner 1973: 351). Com a expansão do universo e a queda da temperatura, as simetrias da matéria foram sucessivamente quebradas, e o universo se tornou mais e mais assimétrico na medida em que sua complexidade estrutural aumentou. Essa lei cosmogenética do crescimento da complexidade, por quebras de simetria tem sua contraparte na evolução biológica. Filogeneticamente, encontramos seres vivos altamente simétricos nos estágios mais baixos da biogênese (cf. Mayer-Kuckuk 1989: 27-29). Alguns vírus têm a forma de um escocaedro, com uma superfície de vinte triângulos equiláteros arranjados em simetria rotativa e reflexiva. Entre os animais marinhos, o discomedusa apresenta uma simetria estritamente octogonal, mas no reino dos animais superiores, restou apenas a simetria bilateral, e essa simetria é freqüentemente incompleta ou assimétrica sob sua superfície, como ocorre no corpo e cérebro humanos. Na ontogenia biológica, o princípio da evolução por quebras de simetria, pode ser exemplificado no desenvolvimento de uma rã a partir de um único óvulo fertilizado ou zigote (Stewart & Golubitsky 1992: 152). A forma dessa primeira célula é aproximadamente esférica, apresentando, portanto, uma simetria rotativa múltipla. No processo da divisão celular, o zigote se divide em dois, quatro, oito, dezesseis e, então, trinta e duas células, arranjadas num padrão de simetria cilíndrica. Mais tarde, esse arranjo se quebra novamente, cedendo passagem para um padrão de simetria bilateral. A quebra de simetria, para resumir, é um processo de criação de diferenças, dentro de um padrão de igualdades que conduz de um estado relativamente indiferenciado ao mais diferenciado e complexo. Entretanto, a teoria do caos nos ensinou que a perda evolutiva da simetria no curso do desenvolvimento da complexidade, pode levar a estados de complexidade extremamente alta, quando, num sistema longe do equilíbrio, novos padrões de simetria emergem. Depois de muitas fases de quebra de simetria, atingimos, no estado do caos, uma nova fase de criação de simetrias. 4. SIMETRIA COMO UMA RELAÇÃO SÍGNICA Consideremos agora a simetria de um ponto de vista mais explicitamente semiótico. Este tópico levanta três questões principais: (1) as simetrias constituem relações sígnicas? (2) Qual é o papel da simetria nos signos e sistemas de signos? (3) Como os sistemas semióticos são afetados pela quebra da simetria? CONFERÊNCIA
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A resposta para a primeira questão é a seguinte: formas simétricas se constituem em signos icônicos auto-referenciais, assim como em signos indexicais. Os padrões criados por formas simetricamente recorrentes são ícones diagramáticos. A iconicidade de uma forma simétrica implica, na sua origem, num processo de projeção que dá origem à simetria. Quando observamos, por exemplo, duas mãos como formas bilateralmente simétricas, notamos o fato de que a mão esquerda representa uma projeção invariante da mão direita. Uma tal projeção de uma forma A numa forma B é a essência do signo icônico na definição de Peirce. O padrão A-B resultante é um ícone diagramático peirceano porque o percebemos como uma similaridade relacional, que, no nosso exemplo das duas mãos, está na relação mutuamente diádica da enantiomorfia entre A e B. Entretanto, o signo icônico que resulta da operação de projeção simétrica se constitui num paradoxo semiótico. Somos incapazes de determinar claramente a distinção entre o signo e seu objeto dinâmico: é a mão A o signo cujo objeto é B, ou é B o signo do objeto A? A equivalência de A e B não nos permite qualquer resposta, e desde que a invariância está na essência de uma relação simétrica, e desde que o ícone A não se refere realmente a alguma coisa diferente em B, mas àquilo que A e B têm em comum, devemos concluir que a relação icônica de simetria não é, em última instância, uma relação de alo-referência ou referência a alguma outra coisa, mas é de auto-referência. Não é suficiente ir de A a B a fim de reconhecer uma simetria, mas devemos retornar ao ponto de partida e encontrar B novamente em A (e A em B). Entretanto, a simetria não é apenas uma estrutura auto-referencial e, portanto, monádica. Na medida em que os dois constituintes do diagrama simétrico A e B ocupam dois espaços distintos, há um aspecto de diferença diádica na separação local de A para B. A relação sígnica que liga os dois lugares A e B é uma relação de alo-referência. Em termos da semiótica peirceana, trata-se de uma relação sígnica indexical. Considerando-se o aspecto topológico de uma relação sígnica simétrica, as formas simétricas implicam numa segunda anomalia semiótica: aquela da co-presença do signo e objeto. O objeto localmente distinto B do signo A não está ausente da situação sígnica. Isto entra em contraste com o signo prototípico que usualmente se refere a um objeto ausente. Em razão desse caráter de co-presença de A e B, Umberto Eco (1984) até decidiu excluir as imagens especulares do reino dos signos. Todavia, conforme já discuti em um outro trabalho (Nöth, no prelo), a definição de signo de Umberto Eco é, sob este aspecto, muito estreita, uma vez que ela corre o risco de excluir do domínio da semiose qualquer relação sígnica baseada no princípio da contiguidade indexical. O modo como as imagens especulares podem funcionar como signos do mundo em frente do espelho, foi, afinal, muito convincentemente mostrado na Alice de Lewis Carroll, depois de Alice ter passado através do espelho. No entanto, a simetria não é apenas um signo icônico e indexical de um objeto in praesentia, mas também um ícone de um objeto in absentia. Qualquer 68 CONFERÊNCIA
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exemplo singular de um padrão simétrico (ou sin-signo) é a réplica de um padrão cognitivo geral (um tipo), a idéia de simetria que internalizamos em nossa mente. Na semiótica peirceana, essa imagem mental da simetria é o chamado objeto imediato de qualquer signo individual, e não um objeto na “realidade”, mas um objeto mental que engloba nossa “familiaridade perceptiva” prévia (CP 2.330) com o fenômeno da simetria. Na medida em que essa imagem mental representa uma generalização do fenômeno da simetria, ela também funciona como um signo de todas as formas simétricas que podemos encontrar. Nessa medida, uma imagem mental funciona como um legi-signo icônico, um signo da categoria da terceiridade que é a categoria da generalidade e da lei. Esse legi-signo icônico mental da simetria na mente humana desempenha um papel nos processos cognitivos que vai além da mera percepção de simetrias atuais no nosso ambiente. De acordo com um estudo de Leyton (1992) sobre o papel da simetria na cognição, a mente humana tende a perceber mesmo formas assimétricas como simétricas e a traduzir simetrias complexas por simetrias mais simples. Por exemplo, tendemos a ver uma elipse como uma espécie de círculo deformado ou considerar um paralelograma com a base inclinada como uma variante de uma figura não-inclinada, do mesmo modo que vemos um paralelograma simples como um desvio de um retângulo, e um retângulo como um desvio de um quadrado e não vice-versa. A simetria é, portanto, um protótipo cognitivo. Assimetrias aparecem, assim, como desvios de simetrias prototípicas. De uma perspectiva evolutiva, descobertas recentes sobre o papel das simetrias na cognição das pombas e das abelhas de mel são de interesse nesse contexto (Delius 1986, Giurfa et al. 1996). Esses estudos mostraram que as abelhas por exemplo são capazes de distinguir entre padrões simétricos e assimétricos, demonstrando uma preferência clara por formas simétricas, pelas quais elas são mais fortemente atraídas. Tanto para os humanos quanto para as abelhas, as formas simétricas são mais relevantes à cognição do que as assimétricas. Esta preferência cognitiva pelas simetrias representa muito provavelmente um ícone geneticamente preformado das simetrias no nosso ambiente natural. O legi-signo icônico da simetria na mente humana pode assim ser um signo natural que precede qualquer representação cultural de formas icônicas. 5. SIMETRIA NA LÍNGUA Na consideração do papel da simetria nos signos e sistemas de signos, temos que nos restringir aqui a algumas observações sobre a simetria na língua (para aspectos adicionais sobre este tópico, ver Holenstein 1988 e Nöth 1990, 1992, 1993, 1994a, 1994b). Contrastando com nossos exemplos anteriores sobre simetrias bi e tridimensionais, nas quais as projeções de formas eram percebidas em simultaneidade espacial, a linearidade da língua falada parece permitir CONFERÊNCIA 69
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apenas as simetrias que seguem uma sucessão temporal. Na dimensão sintagmática da linguagem oral, a simetria é o princípio subjacente da repetição textual e poética. Qualquer recorrência tanto no plano da expressão quanto no plano do conteúdo do texto representa uma ocorrência de simetria translativa, na medida em que um elemento invariante do conteúdo ou da expressão é repetido. Formas bilaterais e antissimétricas de recorrência textual ocorrem nas antíteses ou em outras figuras de linguagem opositivas e nas constelações globais da semiótica textual, tais como aquelas descritas por Greimas no quadrado semiótico ou propostas por Bremond nos ciclos narrativos. Além dessas simetrias basicamente sintagmáticas dos textos, há também o aspecto paradigmático da simetria que ocorre nos processos de produção e recepção textuais em qualquer momento em que uma escolha equivalente entre duas alternativas textuais apareça. Na narrativa, tais escolhas estão na raiz da tensão e do suspense. Numa estória de detetive, o suspense cresce quanto mais equiprovável for a escolha entre dois suspeitos. No momento em que se dá a descoberta pelo leitor, a simetria se quebra. Uma vez que a recorrência e a oposição são traços distintivos da coerência textual, podemos portanto concluir que simetria translativa e anti-simetria são inerentes à constituição do texto. Entretanto, uma vez que um texto inteiramente feito de simetrias translativas acabaria em mera redundância ou tautologia, as quebras de simetria são igualmente necessárias para introduzir novos elementos e tornar o texto informativo. No sistema da língua, simetrias são essencialmente simetrias paradigmáticas (cf. Ivanov 1974: 36; sobre a natureza assimétrica da maioria das relações sintagmáticas na lógica e linguagem ver Hartshorne 1970). Elas ocorrem onde quer que haja um elemento de escolha entre duas unidades equivalentes. Tais escolhas, entretanto, não são nunca escolhas entre elementos completamente invariantes. Equivalência de estrutura aparece contra o pano de fundo de uma diferença específica. Essa é a essência do princípio de escolha binária entre elementos na oposição sistêmica, princípio que se manifesta na diferença entre presença ou ausência de um traço distintivo em duas estruturas de outro modo equivalentes. A oposição entre a consoante sonora /b/ e a surda /p/, por exemplo, ilustra esse elemento de diferença num par de fonemas de outro modo simétrico, quer dizer, com o mesmo ponto e modo de articulação, bilabial e plosivo. Foram Jakobson (1970) e Ivanov (1974) que interpretaram esse princípio de binarismo lingüístico como a manifestação lingüística do princípio da anti-simetria (Holenstein 1988). Depois das simetrias sintagmáticas no texto e as simetrias paradigmáticas no sistema, um terceiro domínio da simetria pode ser encontrado na evolução diacrônica do texto e do sistema. Simetria significa aqui reiteração e afirmação de estruturas existentes e tradicionais. Nesse sentido, a produção em massa é o protótipo da simetria translativa, a produção de signos se dando de acordo com padrões culturais estabelecidos. É evidente que o crescimento dos signos, a transformação criativa das artes e dos 70 CONFERÊNCIA
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sistemas de signos têm origem nas quebras de simetria que conduzem a novos paradigmas de simetrias nos sistemas semióticos. 6. Quebras de simetria na evolução dos sistemas semióticos Nessa breve apresentação, vimos que as simetrias nos sistemas semióticos estão intrinsecamente ligadas às quebras de simetria, pois a mera simetria é estática, não permitindo qualquer desenvolvimento e crescimento de signos. Por outro lado, a mera quebra de simetria, que não contém invariâncias, torna impossível o reconhecimento dos signos. A busca da origem da semiose no fluxo contínuo das simetrias e quebras de simetrias, pode, portanto, parecer tão vã quanto a velha questão de quem veio antes, o ovo ou a galinha (cf. Carvalho 1988: 271). Entretanto, o estudo da sucessão de simetrias e quebras de simetria na natureza e na cultura, torna inevitável alguma especulação sobre a origem desse processo. Tanto na tradição do estruturalismo saussuriano quanto no paradigma da teoria da informação, a diferença e, conseqüentemente, a quebra de simetria é a chave para a estrutura semiótica. Enquanto Saussure (1916: 139) postulou que, “na língua só existem diferenças [...] sem termos positivos”, Gregory Bateson (1979: 99), do ponto de vista da teoria da informação, ecoou que a “informação consiste de diferenças que fazem a diferença.” Da perspectiva de um lógico, Spencer-Brown (1979) vê a origem da semiose na chamada distinção primária, o estabelecimento de uma fronteira num espaço previamente informe. Antes dessa primeira distinção, há apenas o nada e espaço vazio, e apenas com o estabelecimento de uma distinção primária o mundo começa a tomar forma. O estado anterior a esse primeiro estabelecimento de um diferença é, portanto, o do caos e do vazio, que é, como já vimos, um estado simétrico ao máximo sem qualquer complexidade. Tais descrições dos inícios dos processos sígnicos no aparecimento da primeira diferença dão uma imagem incompleta das origens da semiose de acordo com a semiótica de C. S. Peirce (cf. Nöth 1994b: 41, 44). Para ele, um processo de signos não está ainda completo com o aparecimento de uma diferença, que pertence à categoria da secundidade, o domínio da alteridade. Os signos ainda não se originam nesse domínio da mera diferença, mas só com a categoria da terceiridade cuja função está na mediação entre um primeiro e um segundo. A origem desse processo triádico está no domínio da primeiridade, a categoria das qualidades ainda desestruturadas e indiferenciadas, o que é uma outra descrição da simetria máxima sem complexidade. A secundidade quebra essa simetria pela introdução de uma diferença. Entretanto, só a terceiridade, a categoria da mediação e do hábito dá origem às relações sígnicas. Nesse nível, porém, chegamos a uma nova fase da simetria, uma vez que a generalidade significa a integração de signos dentro de um sistema de relações simétricas. Os signos, de acordo com esta análise, emergem de uma simetria que é CONFERÊNCIA 71
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primeiramente seguida por uma quebra de simetria e, então, por uma integração no novo domínio das simetrias. Sem poder seguir essas fases das simetrias e quebras de simetria por todos os níveis dos sistemas semióticos, depois da nossa consideração desses processos no nível mais baixo da semiose, passo a concluir este tópico com uma breve apresentação do papel da simetria no nível mais alto dos sistemas semióticos, aquele do texto, onde brevemente comentarei sobre o papel da simetria e das quebras de simetria na transformação de um texto em objeto estético. A simetria, como sabemos todos, é uma manifestação importante da beleza na natureza, que vai dos cristais, flores e borboletas até a beleza dos fractais. Nas artes visuais, a encontramos novamente nas simetrias bilaterais ou simetrias translativas na pintura ou na arquitetura. Na poesia, a rima e o metro ocorrem como modos de simetria essencialmente translativa. Em adição à simetria sincrônica, tal como se manifesta no padrão textual nele mesmo, há a dimensão da simetria diacrônica que significa conformidade com a tradição que, por sua vez, é quebrada pelos inovadores criativos. Em contraste com a beleza na natureza, a simetria apenas não é suficiente para a criação de uma obra de arte. A beleza na cultura deve transformar simetrias estabelecidas por meio de quebras de simetrias (Holenstein 1988: 193, Mayer-Kuckuk 1989, Kazmierczak 1995). Goethe parece ter tido o pressentimento da necessidade de quebras de simetria contra o pano de fundo da simetria nas artes quando ele escreveu no seu ensaio “Laokoon”: “Devido a essa mesma simetria, as variações mais mínimas tornam os mais altos contrastes possíveis.” Vamos ilustrar essas considerações teóricas com o exemplo de um poema com o título de “Serenata Sintética”, de autoria do poeta brasileiro Cassiano Ricardo, do ano de 1947: Rua torta. Lua morta. Tua porta.
No plano da expressão, a repetição três vezes do padrão invariante da rima ab, ab, ab, em conjunção com a seqüência seis vezes dos finais femininos, estabelece um padrão extremamente regular de simetrias translativas. Esta, por seu lado, é duas vezes radicalmente quebrada pela surpreendente diferença causada pela mudança das consoantes iniciais. No plano do conteúdo, o poema começa evocando um lugar de primeiridade indiferenciada. A falta de qualquer determinação indexical dessa imagem de uma “rua torta” faz com que ela apareça como um ícone puro. Uma vez que é uma mera imaginação de uma rua que deixa todas as possibilidades de uma localização em aberto, há uma simetria ilimitada 72
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dessa rua desconhecida com a pluralidade de outras ruas existentes desse tipo. Na estrofe seguinte, “Lua morta”, o poema entra na dimensão da terceiridade ao evocar a lua como uma instância do destino astral da vida humana. Nesse domínio da lei e da generalidade, estamos, mais uma vez, mas num nível distinto, dentro da simetria, a simetria daquilo que é geral e se repete. Entretanto, com o adjetivo “morta”, as simetrias estabelecidas são repentinamente quebradas. Com a morte, entramos no terreno da secundidade, o fim abrupto da continuidade. A secundidade é também o tópico da terceira estrofe, “Tua porta”, onde a imagem da porta representa a continuidade interrompida e funciona como um signo indexical, indicando que lá mora alguém. Esta indexicalidade é mais ainda enfatizada pelo pronome possessivo da segunda pessoa, que especifica a relação entre o enunciador e quem ali habita. Depois de duas fases de simetria, o poema culmina, assim, em quebras de simetria múltiplas. O fim em aberto numa porta que é apenas indicada, mas não ultrapassada é finalmente o clímax das quebras de simetria, visto que frustra nossas expectativas cotidianas em relação à continuidade e fechamento narrativos. A emergência de um poema como um objeto estético, passa, assim, através de várias fases de quebra de simetria. Contra o pano de fundo da linguagem cotidiana, o uso criativo dos recursos da simetria pelo poeta, tais como rima e metro, é uma primeira quebra de simetria em relação ao código lingüístico existente. Essa quebra de simetria resulta em padrões sincrônicos de simetria, mas durante a transformação de uma simples linguagem que rima em um objeto estético, essas simetrias sincrônicas têm de ser quebradas novamente. Talvez que não seja ousar demais reconhecer uma analogia entre tais seqüências de simetria e de quebras de simetria nos processos criativos com a seqüência de simetrias e quebras de simetria na evolução do caos determinista para a ordem natural nos sistemas complexos. BIBLIOGRAFIA BOCHNER, Salomon (1973). “Symmetry and asymmetry”, in: WIENER, Philip P. (org.), Dictionary of the history of ideas, vol. 4, 345-353. New York: Scribner’s. BATESON, Gregory (1979). Mind and nature. New York: E.P. Dutton. CARVALHO, Marc E. (org.) “Self-transcendence and symmetry break”, in: CARVALHO, M. E. (org.), Nature, cognition and system I, 253-277. Dordrecht: Klüwer. DELIUS, Juan D. (1986). Komplexe Wahrnehmungsleistungen bei Tauben. Spektrum der Wissenschaften April 1986, 46-58. ECO, Umberto (1984). Semiotics and the philosophy of language. Bloomington: Indiana Univ. Press. FREUND, John (1991). Broken symmetries. New York: Peter Lang. GIURFA, Martin, et al. (1996). “Symmetry perception in an insect”, Nature 382: 458-461. GIURFA, Martin (1996). “Symmetry recognition in honey bees”, Nature. HARTSHORNE, Charles. (1970). “The prejudice in favor of symmetry”, in: HARTSHORNE, H., Creative Synthesis and Philosophic Method, 205-226. London: SCM Press.
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NOTA:
* Professor de Linguística Inglesa e Semiótica da Universität Kassel - Alemanha& PUC São Paulo/Autor do Handbook of semiotics
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A CENA CONTEMPORÂNEA - HIBRIDISMO DE LINGUAGENS1
JANICE SHIRLEY SOUZA LIMA2
Moro em Belém há onze anos e ao longo desse tempo venho estudando e trabalhando no campo da cultura e do teatro paraenses. A experiência de professora do Curso de Artes Visuais e Tecnologia da Imagem da Universidade da Amazônia, aliada ao trabalho que desenvolvo em museu e com a cultura de um modo geral, vêm assumindo proporções bastante significativas para a minha percepção estética, para o meu fazer artístico e construção acadêmica e profissional, revelando-se um caminho para as discussões acerca da linguagem teatral na cena contemporânea. Isso se reflete nos diversos convites que tenho recebido para compor comissões de júri em Festivais e Mostras de Teatro e para proferir palestras sobre o assunto. Assumir-me artista/professora/pesquisadora foi uma decisão que julgo bastante acertada, pois ajudou-me a tomar consciência da necessidade de experimentar, refletir e avaliar, de forma sistemática, os passos do meu fazer e teorizar artísticos. Com isso, pude perceber toda a trajetória que trilhei para chegar ao atual estágio de compreensão e desenvolvimento da minha produção artística e acadêmica. Meus modos de observar, ver, fazer e pensar criticamente são conseqüências de toda essa construção e me sugerem outros fazeres em renovadas experiências. Ao refletir sobre o próprio processo de criação, penso nas interferências que faço na produção de outros artistas e nas interferências que recebo de outros produtores, interferências estas que têm a ver também com as leituras que escolho e com as trocas de conhecimento em sala de aula com meus alunos. O artista/pesquisador, para mim, é aquele que experimenta e pensa os seus processos de experimentação, é capaz de
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sistematizar teorias e práticas, colaborando com a coletividade no sentido da comunicação de suas descobertas/invenções teórico/práticas e criativas. As lutas travadas pelo artista/pesquisador envolvem as célebres dicotomias, que o mundo ocidental enfrenta, entre razão e sensibilidade, entre Arte e Ciência. Entretanto, novos paradigmas parecem surgir no campo epistemológico do mundo contemporâneo.(Lima, 1999). Neste final/início de milênio, a reflexão epistemológica começa a assumir o papel de analisar as condições sociais dos contextos culturais e dos modelos de organização da pesquisa científica, antes restrito à filosofia da ciência. O foco de interesse passa a ser o conhecimento do conhecimento das coisas que “não deixa de ser conhecimento de nós próprios”. (Santos, 1988, p.57). Diante dos sinais evidenciados pela crise dos paradigmas – que se mostram incapazes de dar conta e explicar o novo contexto - o autor procura desenhar o perfil de um novo paradigma que, pela própria condição especulativa daquilo que se pode vislumbrar no horizonte, se denomina emergente. As teses do paradigma emergente, segundo Santos (Op. cit.), apresentamse em quatro eixos: (1) todo o conhecimento científico-natural é científico social: visa à superação da dicotomia entre ciências naturais e ciências sociais; (2) todo o conhecimento é local e total: parte do princípio de que a fragmentação dos paradigmas decadentes toma corpo pela disciplinaridade, tanto no que se refere ao conhecimento disciplinar, parcelizado, que transforma o cientista num ignorante especializado, como no sentido de conhecimento disciplinado, cujas fronteiras sofrem um policiamento repressor do seu rompimento; (3) todo o conhecimento é auto-conhecimento: sugere a necessidade da pluralidade de métodos e de que o conhecimento só pode ocorrer mediante uma transgressão metodológica. A pluralidade metodológica implica em transdisciplinaridade e personalização do trabalho científico, pelo fato de que assume uma configuração de estilos, tecida de acordo com o critério e a imaginação pessoal do cientista. É quando a criação científica assume sua proximidade com a criação literária ou artística no que se refere à transformação do real (o artista trabalhando a matéria) e subordinando-a à contemplação do resultado (a obra de arte); e (4) todo o conhecimento científico visa constituir-se num novo senso comum: procura reabilitar este último, ampliando o diálogo com a sua dimensão utópica e libertadora, mesmo reconhecendo suas características mistificada e mistificadora, e, deste modo, respeitando o papel das diferenças culturais. Com base nas teses apresentadas, percebo que a discussão, há muito tempo colocada em pauta, questionando se a arte é ciência ou outra forma de conhecimento, já se encontra em curso e deverá dentro de pouco tempo tomar um novo rumo. Não querendo, no entanto, entrar no campo escorregadio e complexo desta questão, mas assumindo o exercício da insegurança, opto por entender que as fronteiras entre a Arte e a Ciência sejam tão tênues que em dados momentos se fundem. Lembro Eco quando fala da pesquisa em arte: “[...] pensamos possam ser refutadas certas objeções, 76
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segundo as quais todo confronto feito entre procedimentos da arte e procedimentos da ciência constituiria uma analogia gratuita”. (1991, p. 31). Da mesma forma, quando apresenta a obra aberta como metáfora epistemológica, o autor aponta as semelhanças entre as características estruturais das poéticas da obra aberta e outras operações culturais que visam à definição de fenômenos naturais ou processos lógicos. Nesse contexto, o teatro, como expressão do comportamento humano que reflete a multiplicidade de significados que lhe é inerente, como veículo que possibilita a maximização da cultura dos grupos sociais que constituem uma determinada sociedade, como forma de comunicação que possui um código, meio pelo qual se manifestam mensagens entre atores e espectadores, cuja linguagem também se transforma, ora é influenciado, ora influencia as mudanças de paradigmas estéticos, sociais, econômicos e políticos. No mundo atual, regido pelos processos de globalização, a passagem da economia nacional à global para os países de terceiro mundo ocorre com perda da cultura e através do rompimento de fronteiras políticas e culturais que, não obstante, aumentam as desigualdades sociais. Hall afirma que: “Em certa medida, o que está sendo discutido é a tensão entre o ‘global’ e o ‘local’ na transformação das identidades. As identidades nacionais, [...], representam vínculos a lugares, eventos, símbolos, histórias particulares.” (1997, p. 81). A arte, como elemento da cultura humana, também sofre os efeitos dessa tensão, compreendendo-se assim, o repúdio da estética contemporânea ao sugerir o fim do objeto de arte, substituindo-o pela idéia de trabalho. Neste momento, a arte passa por um processo de dessacralização, abrindo caminho para uma nova sociologia da arte, na qual o processo de criação do artista é mais importante do que o resultado final, o produto. Essa concepção epistemológica provoca mudanças nas relações entre o objeto estético e o sujeito, entre o artista e o espectador. Na cena contemporânea, busca-se a parateatralidade, um universo que se configura como arquipélago de poéticas e possibilidades experimentais, que parecem buscar uma outra relação de comunicação com o público, exigindo sua participação ativa, obrigando-o a rever sua suposta estabilidade e enxergar e recompor em si as diversas identidades contraditórias e não resolvidas, características do sujeito pós-moderno. A linguagem do teatro contemporâneo é uma linguagem híbrida, ao envolver os aspectos visuais, sonoros e gestuais, cujos elementos sígnicos subvertem o convencional. Se antes elementos como o cenário, a iluminação e a sonoplastia eram entendidos apenas como coadjuvantes, em relação aos elementos principais (ator e texto), agora são assumidos com igual importância no contexto do espetáculo. Consideradas neovanguardas, as manifestações artísticas assim estruturadas reativam a linha dadaísta, redimensionando a representação tradicional ou desenvolvendo novas possibilidades de construtivismo, nas quais o público participa de um exercício lúdico de desconstrução e reconstrução, tornando-se o realizador daquilo que os projetos sugerem ou propõem. COMUNICAÇÃO 77
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A história do teatro paraense oferece indícios para uma larga discussão acerca da linguagem cênica, do ápice do ciclo da borracha, quando por aqui passaram inúmeras companhias de teatro nacionais e internacionais, passando pela sua derrocada, quando os profissionais desempregados se renderam ao mais genuíno teatro paraense, o teatro do povo, os belos Pássaros e Cordões de Bichos, até os dias de hoje. Atualmente pode-se observar, em diversas produções teatrais paraenses, uma certa hibridização cultural propositada. Tudo isto faz sentido, pois, numa visão pós-moderna, não há sentido em se separar o culto e do massivo. Como afirma Canclini: “A cultura moderna se construiu negando as tradições e os territórios.” (2000, p. 49). Os pós-modernos repudiam a noção de ruptura, apropriando-se de imagens de outras épocas fragmentando-as, desconstruindo-as e reconstruindo-as e, deste modo, produzindo “[...] leituras deslocadas ou paródicas das tradições[...]”, restabelecendo “[...] o caráter insular e auto-referido do mundo da arte.” (2000, p. 49). Nesse contexto, Canclini discute a novidade da desterritorialização e da hibridez pós-modernas e afirma: “O pós-modernismo não é um estilo mas a co-presença tumultuada de todos, o lugar onde os capítulos da história da arte e do folclore cruzam entre si e com as novas tecnologias culturais.” (2000, p. 329). Assim, optei por produzir a leitura de um espetáculo que refletisse a inserção nesses paradigmas, cuja escrita seria em forma de ensaio. Tal leitura partiu das seguintes questões: de que signos se serve e como os organiza o encenador Miguel Santa Brígida no espetáculo Violetango? E em que consistem a parateatralidade e a hibridização nesse espetáculo? Trata-se, portanto, de um estudo de caso em que foram adotados procedimentos relativos a outros métodos, tais como, o bibliográfico e o documental, os quais serviram para ancorar a análise e a argumentação que conferiram rigor conceitual e metodológico aos seus resultados. A análise documental visou a descoberta de circunstâncias sociais e históricas registradas em jornais e outros documentos escritos que se constituíram fontes primárias de informação, pois os documentos são utilizados para contextualizar o objeto de estudo, estudar as suas vinculações mais profundas e completar ou ampliar informações coletadas através de outras fontes. Já o método bibliográfico ofereceu o suporte teórico iluminativo, necessário à fundamentação das argumentações que compuseram o texto final do estudo. Esse método se desenvolve, segundo Gil: “[...] a partir de material elaborado, constituído principalmente de livros e artigos científicos.” (1991, p. 72). É um método que possibilita a localização e a consulta de fontes diversas, orientando a coleta de dados gerais ou específicos, sobre um determinado tema. O trabalho de campo consistiu na observação sistemática de ensaios e apresentações do espetáculo, quando fui anotando minuciosamente os dados descritivos necessários à composição da leitura. Diálogos com o encenador foram fundamentais para ampliar o meu olhar. Essas formas
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de colher dados reflete uma postura contemporânea em relação aos instrumentos de pesquisa, configurando o método do estudo de caso. A indução analítica foi utilizada como forma de sistematização dos dados coletados e de desenvolvimento e teste da teoria, tendo em vista o foco específico do estudo que foi a análise da linguagem cênica contemporânea através da leitura do espetáculo “Violetango”, baseada na teoria semiótica peirceana e nos paradigmas da parateatralidade e do hibridismo. Essa etapa envolveu classificação e organização das informações obtidas e o estabelecimento de relações entre esses dados, levando em consideração os pontos de divergência, os pontos de convergência, as tendências, as regularidades, os princípios de causalidade e as possibilidades de generalização. (Pádua, 2002). O ESPETÁCULO “Violetango” apresenta um tema aparentemente fácil de ser tratado, o universal triângulo amoroso. No entanto, essa aparente facilidade desmorona-se quando, ao assistir o espetáculo se percebe a engenhosidade construtiva da narrativa, tecida com os tangos de Astor Piazolla, com a poesia “Desesperança” de Mário Quintana, com o figurino de Aníbal Pacha, com o cenário construído em sintonia com o cenário natural da praça onde se apresenta, com os movimentos e gestos das personagens e com a condução de um ser mascarado. Tudo isto orquestrado pela maestria do encenador paraense Miguel Santa Brígida. Para compreendê-lo, portanto, é preciso se estar atento e se dispor a participar de um jogo ao mesmo tempo apolíneo e dionisíaco, em que razão e sensibilidade fazem parte das regras para o espectador. O cenário natural é a Praça da República, com suas árvores frondosas, ladeada de ruas asfaltadas de intenso tráfego. Num dos seus ângulos encontra-se o pequeno anfiteatro, onde se ergue uma tenda branca (na montagem de Violetango de 2000 era colorida). Sob a tenda, um linóleo circular acinzentado, sobre o qual descansam tres coletes de cor escura. Numa de suas bordas pode-se ver um rádio grande de modelo antigo, sobre o qual repousam uma taça de vinho e envelopes de cartas enlaçados por uma fita de cor vermelha. Ao lado, um longo tecido de cor violeta. Eis a percepção do espaço construído para a cena relacionado com o espaço “natural” da praça, onde o primeiro está contido, revelando um conjunto ao mesmo tempo harmônico e estranho, o espaço cênico em que vai acontecer o drama. Sobre a significação cenográfica, Ratto afirma ser: “[...] um lugar, que não é necessariamente o edifício teatral, pode assumir – e assume – todos os valores dramaticamente potenciais que contém e provoca.” (1999, p. 21 –22). Essa estranheza, ou melhor, esse estranhamento causado pela tenda pousada sobre a praça tem a ver com o hibridismo que Jarry já anunciava. Segundo ele, (apud Ratto): “O cenário é híbrido, nem natural nem artificial. Se ele parecer com a natureza, será uma duplicata inútil [...]” (1999, p.
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32). Creio, assim, que Miguel não poderia ter escolhido melhor espaço para a apresentação de Violetango. As personagens são quatro: uma figura masculina portando uma máscara branca, assimétrica, e vestindo uma espécie de calça/saia. Movimenta-se com passos e gestos amplos e bem compassados e funciona como condutor da narrativa. Ela, Ele e o Outro são as personagens que vivem a trama. Ela veste um vestido vaporoso em que predomina a cor lilás. Ele e o Outro vestem roupas iguais entre si, camisa branca de mangas longas, calça escura, e como as outras personagens, têm os pés descalços. Procurando produzir uma leitura em descontinuidade, tracei linhas imaginárias dividindo o espetáculo em cenas para melhor poder transitar pelas imagens construídas pelo encenador. A primeira cena chamei de Ritual de Abertura. É quando o Ser Mascarado acende a cortina de fogo e conduz as outras personagens para a tenda. O Ser Mascarado e o fogo são os signos essenciais desse ritual. O Ser Mascarado é um signo índice, na medida em que o seu traje o diferencia das outras personagens principalmente pelo uso da máscara, e os seus gestos e movimentos indicam condução. O índice, de acordo com Peirce “[...] é um signo que se refere ao Objeto que denota em virtude de ser realmente afetado por esse Objeto.” (1999, p. 52). O índice possui uma relação de contigüidade com o Objeto representado. A máscara, nesse caso, é também índice do ritual, uma vez que, de acordo com Amaral: “Os rituais se utilizam de gestos, ações, ritmo, palavras, objetos e máscaras.” (1996, p. 27). Além disso, a máscara tem o poder de transferir energias porque potencializa um campo de forças capaz de produzir a metamorfose, a transcendência e dar vida a um ser divino, conferindo qualidade espiritual ao ser humano. Amaral afirma que: “As máscaras vêm sempre ligadas a gestos. E o gestual das máscaras rituais é um gestual abstrato. É não-imitativo, é apenas simbólico.” (Op. cit., p. 33). Em Violetango, o Ser Mascarado possui alguma relação de qualidade com o Objeto representado, no caso, um ser não humano, apenas espiritual, porém, detentor de poder sobre a humanidade, por isso o comparei ao Destino, assumindo simbolicamente nossas raízes cristãs ocidentais. O fogo é, a um tempo, ícone, índice e símbolo desse ritual. Ícone na medida em que se apresenta como representante fiel do elemento natural fogo, portanto, numa relação direta de semelhança com o Objeto representado. O ícone, segundo Peirce: “[...] é um signo que se refere ao Objeto que denota apenas em virtude de seus caracteres próprios, caracteres que ele igualmente possui quer um tal Objeto realmente exista ou não.” (Op. cit, p. 52). É índice porque nos remete aos rituais primitivos de nossos ancestrais, evocando nossa memória imagética. E é símbolo pela associação de sentidos, cristalizados ou não, que se fazem representar por opção particular de um dado grupo social, que, não obstante, pode se fazer entender e representar por outras culturas, universalizando-se. Sobre o símbolo, Peirce afirma ser “[...] um signo que se refere ao Objeto que denota em virtude de uma lei, normalmente uma associação de idéias gerais que opera no sentido de fazer com que o Símbolo seja interpretado como se referindo àquele Objeto.” (Op. cit., p. 52). 80 COMUNICAÇÃO
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Na cena seguinte, Ela, Ele e o Outro colocam os coletes, o que, a meu ver, indica o início da trama amorosa. Ela mostra-se dividida entre a paixão e o amor. Seus movimentos são de indecisão, ora atuam na direção de Ele (o amor), ora na direção do Outro (a paixão). Por fim decide-se pela paixão, o que já era, de certo modo, previsto, se pensarmos na presença do elemento fogo na cena anterior como prenúncio dessa decisão. Convém lembrar que na cultura ocidental fogo e paixão possuem uma relação simbólica de coexistência. A música ”Violentango” complementa esses indícios, afinal, se tomarmos Stanislawski como referência, onde estaria o conflito, senão nessa disputa entre a paixão e o amor? O interessante da cena contemporânea é exatamente a possibilidade de coexistência, numa mesma produção, de referências e procedimentos advindos de outras épocas, outros estilos e outros contextos. É nessa possibilidade que também se encontram o hibridismo e a parateatralidade. A cena que segue é a única em que ocorre verbalização. O poema “Desesperança” de Mário Quintana é dito por Ele, enquanto desenrola a fita dos envelopes e com eles constrói barquinhos. O Ser de Máscara derrama vinho sobre os barquinhos de papel, gesto que, tanto pode ser indício de que haverá derramamento de sangue, como pode também indicar a feitura de um rio que levará os barquinhos/cartas de volta à amada. Entretanto, tudo leva a crer que a primeira possibilidade é a mais acertada, uma vez que a cena seguinte é exatamente a do duelo entre Ele e o Outro. Além disso, o ato de derramar o vinho é, de certo modo, icônico ao ato de derramar sangue. Essa ambigüidade é extremamente interessante e confere apuro estético ao espetáculo, exigindo maior adentramento nesse universo de signos, por parte do leitor/espectador. O duelo é outra cena marcante, visceral, que reflete o trabalho corporal executado pelos atores. O corpo é o suporte que materializa a narrativa, através de movimentos e gestos mais indiciais e simbólicos do que icônicos, permitindo belas metáforas gestuais. Do lugar onde estou, alcanço com o olhar, no círculo de linóleo, sob a tenda, deslocamentos rápidos, precisos que produzem assimetrias espaciais/ temporais: equilíbrio/desequilíbrio, permanência/efemeridade, estabilidade/instabilidade, lembrando ao espectador que a cena é jogo, não um jogo qualquer, mas o jogo composto com as regras da alegria, da técnica e da criatividade. Apropriando-me de Ratto: “Alegria pelo prazer que se deve provar ao fazê-lo; técnica para poder dominar todos os aspectos que determinam sua realização; criatividade, pois sem ela ficaremos limitados a virtuosismos estéreis.” (1999, p. 32). Mas, lembremos que a cena é de um duelo e, nesse caso, alguém tem que morrer. Seguindo a tradição cristã, a vítima só poderia ser o Outro. Ela e o Outro precisavam ser punidos pela sua transgressão amorosa. E assim é que o Outro é vencido no duelo e Ela conclui a trama seguindo o caminho por onde o Ser Mascarado vai derramando o vinho. O Outro jaz envolto no tecido violeta. O vinho simboliza sangue (na cultura católica, sangue de Cristo), portanto o que resta a Ela é seguir um caminho de dor e remorso.
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Assim, as inferências produzidas nesse corpo teórico propiciaram a composição do ensaio “Violetango em Terras Parauaras”, salientando-se que a escolha do ensaio como forma de apresentação dos resultados da pesquisa se deu por um desejo pessoal, pois como Canclini: “Prefiro a maleabilidade do ensaio, que permite mover-se em vários níveis.” (2000, p.28). Deste modo, os percursos foram se construindo na aventura de descobrir novas trilhas e de respeitar as trilhas já construídas pelos teóricos e metodólogos estudados, gerando sucessivas versões textuais que foram passando por diversas modificações até chegar à forma ora apresentada. VIOLETANGO EM TERRAS PARAUARAS3 Na pulsação noturna do coração da cidade, sob as altas copas que telham a Praça da República, entre um e outro apito de veículos que cruzam as ruas laterais, ergue-se a tenda colorida. Parece pousada no pequeno anfiteatro, compondo um ambiente que desassossega os passantes menos habituados às ocorrências idiossincráticas desse lugar. A chuva deixou aquele cheirinho de chão molhado e das copas ainda sobram sobre nossas cabeças alguns pingos, que escorregam vagarosamente pelo rosto, lembrando que estamos em terras parauaras. Vivíamos o ano 2000, estávamos prestes a virar o milênio. Crianças brincavam despreocupadas e adultos conversavam animados em pequenos grupos, desafiando os perigos da violência contemporânea, talvez confiados na segurança de alguns policiais que rondavam o local. Um rastilho de pólvora! E o fogo rasga a noite abrindo o espetáculo. “A chama determina a acentuação do prazer de ver algo além do sempre visto. Ela nos força a olhar.” (Bachelar, 1989, p. 11). E tudo silencia. A polifonia citadina fica distante e então pode-se ver, do fundo noturno da praça em que se eleva o imponente e antigo prédio do Theatro da Paz, surgirem: Ela, Ele e o Outro conduzidos pelos gestos de um Ser Mascarado. Um tango de Astor Piazolla enche o espaço, enquanto as personagens, regidas pelo ser de máscara, desenrolam o lírico e, ao mesmo tempo, trágico drama, cavoucando nossa memória, abrindo espaço para restaurarmos nossas emoções primárias, tão sufocadas pelas convenções dominantes que as tornaram amorfas. Subjetivamente, sem verbalizações, mas com referências visuais/sonoras precisas, que permitem ao espectador compreender a narrativa, Violetango trata do universal tema do triângulo amoroso. Não poderia ser de outro modo. Conhecendo-se um pouco a sensibilidade e o trabalho do encenador Miguel Santa Brígida, é possível entender o uso do fogo nesse espetáculo, assim como ele o utilizou em “Habitantes do Fogo” (1992) e em “As Bacantes” (1996). Miguel sabe do poder do fogo em nossa memória imagética e não se faz de rogado. Ao relacionar paixão, amor e morte em “Violetango”, abre o espetáculo com fogo, porque sabe, como Bachelar, que: “A chama é uma ampulheta que escorre para o alto. Mais leve do que a areia que desmorona, a chama constrói sua forma, como se o próprio tempo tivesse sempre alguma coisa a fazer. (1989, p. 30). O tempo é outra de suas 82 COMUNICAÇÃO
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preocupações quando fala de dor, amor e morte em “Breve Concerto do Tempo” (1993), e em “Ad Infinitum” (1999).4 A viole(n)ta paixão, embalada pelos tangos do famoso músico, acontece ali, diante dos nossos olhos, num ritual sinestésico e cinésico que, embora imbuído de hermetismos estéticos, não reduz a possibilidade de comunicação, mas exige apuro sensível/cognitivo do espectador para que este compreenda os múltiplos sentidos que lhes são oferecidos, confirmando o que Canclini afirma sobre a reinstalação do rito no cerne da experiência estética contemporânea: “O primado da forma sobre a função, da forma de dizer sobre o que se diz, exige do espectador uma disposição cada vez mais cultivada para compreender o sentido.” (2000, p.50). É certo que existe uma complexidade específica da linguagem cênica no que diz respeito à diversidade de elementos que a constituem e que, por isso mesmo, amplia a quantidade de aspectos a serem analisados, dificultando a estruturação dos significados ou sentidos produzidos. Coelho Netto afirma que só se pode compreender a estrutura de significação do espetáculo “[...] através do conhecimento dos tipos de signos [...], das leis que regem sua combinação, dos problemas de decodificação desses signos por parte do espectador. (1988, p.13). A apreciação de espetáculos, tendo como prerrogativa um modo de leitura que Demarci (1988) denomina de transversal, opõe-se à leitura horizontal que se restringe apenas ao acompanhamento da fábula, como se o texto fosse o único ou mais importante elemento constitutivo, capaz de fazer o espectador compreender o tema abordado. A leitura transversal, segundo o autor, é o adentramento no universo de signos apresentado ao espectador, que se envolve, assim, numa série de questionamentos sobre o que lhe é apresentado. Ao teorizar sobre a necessidade de uma leitura transversal do espetáculo, Demarci vislumbra a possibilidade de uma melhor compreensão da cena contemporânea. Ou seja, se os paradigmas da linguagem cênica vêm mudando e sua estrutura tornando-se mais complexa, de algum modo o espectador deve acompanhar essas mudanças para compreendê-lo. (Lima, 1999) Alguns dos paradigmas contemporâneos referentes à linguagem cênica parecem apontar na direção da parateatralidade e do hibridismo. Parateatralidade na medida em que esta se assume como ficção e cria um novo estatuto, rompendo com o naturalismo e o realismo, exigindo do público um olhar crítico mais subjetivamente aguçado e menos passivo, lidando com a incerteza, com o caos, transgredindo valores estabelecidos e provocando-o à ação. “Parateatral enquanto campo de manifestações pareadas, mas ideológica ou formalmente dissonantes com o topos teatral.” (Cohen, 1998, p. XXXIV). O autor entende a parateatralidade como universo paralelo “(...) que engloba repertório do teatro antropológico, ritualização, performance, psicodrama e outras manifestações cênicas.” (Op. cit., p.12). Esse universo paralelo caracterizase pela desconstrução dos sistemas clássicos de narrativa com suas unidades aristotélicas, enredo, conflito, personagens, criando outras estruturas de organização híbridas que usam o hipertexto, sincronicidades, aleatoriedade, COMUNICAÇÃO 83
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entre outros procedimentos. Hibridismo no sentido de “Procedimento que indica a reconstrução de textos, citações, fragmentos, narrativas, estabelecendo hierarquias, redes de significações com vários planos de leitura (literal, mítica, simbólica).” (Op. cit., p. 28). A meu ver, Violetango partilha desses paradigmas. O encenador assume a linha do Teatro do Movimento estruturado na fronteira entre a dança e o teatro. Nesse aspecto, é quase impossível discernir quando se está na presença de uma ou de outra linguagem, uma vez que estas se encontram de tal forma amalgamadas, hibridizadas. A cena do duelo entre Ele e o Outro é o melhor exemplo desse amálgama. Sua plasticidade é impressionante, talvez, exatamente por não nos deixar descobrir se se trata de dança ou teatro. Havia na montagem de 2000 uma singularidade que vale a pena ser mencionada. O duelo era constituído de movimentos precisos em que os corpos praticamente não se tocavam. Em dado momento os peitos se estufavam e os duelistas saltavam aproximando-os como numa briga de galos. Essa imagem me fazia lembrar as Hárpias, uma das pinturas parietais do Salão Greco-Romano do Museu do Estado do Pará, figuras mitológicas que possuem rosto de mulher, corpo de abutre, bico e unhas aduncos e mamas pendentes. Filhas de Taumas e Electra, sua imagem horrenda parece indicar maus presságios. Tais referências, para mim, enquanto leitora atenta do espetáculo, foram preponderantes para a compreensão da narrativa, ao mesmo tempo em que esta se presentificava como bela metáfora gestual. Já na recente montagem (2002), Miguel a transformou totalmente, tornando-a mais visceral e dinâmica, promovendo o contato entre os corpos, porém, diluindo um pouco a sua poesia. Para compor o título do espetáculo o encenador retirou a letra n da música “Violentango”, denominando-o de Violetango, justificando a mudança pelo fato de que predomina a cor violeta no figurino e noutros elementos visuais que compõem as cenas. Para mim, foi uma feliz idéia. A palavra Violetango é mais sonora e poética. Desloca o sentido de violência para o sentido de cor. Liga a cor da paixão à passionalidade do tango, permitindo que a violência produzida pela paixão seja mostrada por outros signos. Antes do duelo, porém, há uma cena marcante, delicada e única cena tecida com a palavra. Ele demonstra toda a sua susceptibilidade ao arremessar o vinho nas costas de Ela. Ele apanha as cartas envoltas em uma fita vermelha, lembranças embaladas pelos barquinhos de papel do poema “Desesperança” de Mário Quintana, que vão se materializando pelas suas mãos enquanto diz o poema. Quando este acaba, ouve-se ao fundo uma voz feminina, lamuriosa a cantar Cattulin, enquanto o Ser Mascarado movimenta-se com um rádio antigo colado ao ouvido. E este ser mascarado? Segundo Miguel, ele é o condutor do drama. Penso que a máscara usada revela prontamente sua diferença em relação aos outros (Ela, Ele e o Outro). A máscara utilizada em 2000 era vermelha com detalhes em plumas (ou em penas?) que lhe conferiam leveza e uma certa aura de mistério. Agora é branca, cuja inexpressividade é quebrada apenas pela 84 COMUNICAÇÃO
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assimetria do seu recorte. “Uma máscara se constitui sempre numa via de mãodupla; envia uma mensagem para dentro e projeta uma mensagem para fora.” (Brook: 1994, p.292). Em Violetango, a máscara pode ser traduzida como signo que revela a sutil narrativa proposta pela música. Ao espectador não conhecedor da cultura dramática do tango é oferecida a oportunidade de compreender a narrativa através do condutor mascarado. O Ser Mascarado é o Destino implacável de paixão, amor e morte do triângulo amoroso criado por Santa Brígida. Não obstante, há no espetáculo uma rede de significações que não é composta apenas por esses signos. A movimentação, a gestualidade e a expressividade são linhas preponderantes dessa trama. Sob a pulsação de “Muerta” (Astor Piazolla) vai findando Violetango. O Outro jaz encoberto pelo longo tecido violeta, enquanto Ela segue o seu caminho de sangue, pisando sobre o vinho derramado pelo Destino, que jamais perde sua máscara. Despeço-me mais uma vez do espetáculo com a boca seca, a mente nebulosa e lágrimas nos olhos. Sigo o meu caminho, ainda embalada pelos tangos astorianos, vestida de violeta paixão, sentindo a vertigem do tempo e o calor da chama para rever meus barquinhos de papel. Ao assumir as emoções, não mais amorfas, não me descuidei, no entanto, da posição de descobridora de imagens (termo usado por Bachelar), afinal não teria sentido nenhum a tentativa de dissociar razão e sensibilidade. REFERÊNCIAS AMARAL, Ana Maria. Teatro de formas animadas: máscaras, bonecos, objetos. 3 ed. São Paulo: EDUSP, 1996, 313p. BACHELAR, Gaston. A chama de uma vela. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil S.A., 1989, 112p. BROOK, Peter. O ponto de mudança: quarenta anos de experiências teatrais (1946 – 1987). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1994, 324p. CANCLINI, Nestor Gracia. Culturas híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade. São Paulo: EDUSP, 2000, 385p. COELHO NETTO, José Teixeira. Preliminar. In: GUINSBURG, Jacó et alli (Org.). Semiologia do teatro. 2 ed. São Paulo: Perspectiva, 1988. COHEN, Renato. Work in progress na cena contemporânea. São Paulo: Perspectiva, 1998. COMPANHIA Atores Contemporâneos. 10 Anos de Teatro do Movimento. Portfolio produzido pela Companhia. Belém, 2001. DEMARCI, Richard. Leitura transversal. In: GUINSBURG, Jacó et alli (Org.). Semiologia do teatro. 2 ed. São Paulo: Perspectiva, 1988. ECO, Umberto. Obra aberta. São Paulo: Perspectiva, 1991. GIL, Antonio Carlos. Métodos e técnicas de pesquisa social. 3 ed. São Paulo: Atlas, 1991. HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro:DP&A, 1997, 111p.
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LIMA, Janice Shirley Souza. Desvelando necessidades, vestindo a máscara, abrindo a cortina do teatro na universidade. 1999. 133f. Dissertação [Mestrado em Educação Políticas Públicas] – UFPA, Belém, 1999. PÁDUA, Elizabete Matallo Marchesini de. Metodologia da pesquisa: abordagem teórico-prática. 6 ed. Campinas: Papirus, 2000, 120 p. PEIRCE, Charles Sanders. Semiótica. 3 ed. São Paulo: Perspectiva, 1999, 337p. RATTO, Gianni. Antitratado de cenografia: variações sobre o mesmo tema. São Paulo: Editora SENAC, 1999, 201p. SANTOS, Boaventura de Sousa. Um discurso sobre as ciências na transição para uma ciência pós-moderna. Revista de Estudos Avançados – USP, 1988. NOTAS: 1 Comunicação originada da pesquisa de mesmo título, contemplada com a Bolsa de Aperfeiçoamento Artístico na área de Teatro, concedida pelo Instituto de Artes do Pará, e realizada no período de 1 de Março a 30 de Junho de 2002. 2 Atriz formada pelo Curso de Arte Dramática da Universidade Federal do Ceará (1982); Diretora de Interior da Federação Estadual de Teatro Amador do Ceará – FESTA (1985 –1987); Especialista em Inter-Relações Arte Escola, com ênfase em Artes Cênicas, pela Universidade Federal do Pará (1985); Mestre em Educação Políticas Públicas, pela Universidade Federal do Pará (1999); Professora do Curso Artes Visuais e Tecnologia da Imagem, na Universidade da Amazônia; Chefe da Divisão de Educação e Extensão do Sistema Integrado de Museus do Estado do Pará – SIM/ SECULT. 3 “Violetango” é o título do espetáculo produzido pelo encenador paraense Miguel Santa Brígida, responsável pela Companhia Atores Contemporâneos. O espetáculo estreou em 1994 e passou por algumas transformações nesses oito anos em que vem se apresentando no Pará e noutros estados brasileiros. O presente ensaio proporciona uma leitura de “Violetango” relacionando as montagens dos anos 2000 e 2002. Parauara vem do Tupi para’wara, e indica naturalidade paraense. 4
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A MÚSICA PARAENSE NA PRIMEIRA METADE DO SÉCULO XX ANÁLISE SOBRE A VIDA E A OBRA DE CLEMENTE FERREIRA JUNIOR
FÁBIO LUIZ MEIGUINS DE LIMA
1 - INTRODUÇÃO Até a primeira década do século XX a região da Amazônia passava pela fase áurea do Ciclo da Borracha. O apogeu da borracha teve reflexo imediato no embelezamento da capital: praças, jardins, teatros e grandes lojas surgiram e movimentaram o comércio. A riqueza extraída das seringueiras também influenciou a vida cultural de Belém, o Estado patrocinava a ida e a vinda e artistas e intelectuais paraenses e estrangeiros, a elite mandava os filhos para estudar na Europa, construíram casas em estilo inglês, erguia diversos teatros onde aconteciam grandes espetáculos artísticos. Apesar de todos esses acontecimentos, hoje pouco se conhece sobre os agentes responsáveis pelo movimento artístico de Belém, a história artística desse período está restrita a poucos acontecimentos e a bibliografia de grandes nomes dessa época, tendo como conseqüência o fato que grandes personalidades da vida de Belém ficaram perdidos na história. Um desses personagens é o pianista, compositor e maestro Clemente Ferreira Júnior, que nasceu em 1864 e foi um dos grandes nomes da música paraense do início do século XX, e que segundo o professor Vicente Salles, Clemente Ferreira foi para a Música paraense pó que Ernesto Nazareth foi para a música do Rio de Janeiro. Este trabalho tem como finalidade realizar um resgate histórico da vida musical de Belém do Pará na primeira metade do século XX, a partir da realização de uma apequena investigação histórica, documental e bibliográfica da vida e da obra do músico Clemente Ferreira Júnior, que foi um dos grandes representantes desse período e que fez parte da história da música de Belém ao ser um dos fundadores do Instituto de Música do COMUNICAÇÃO
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Pará, atual Instituto Carlos Gomes e o responsável pelo surgimento de espetáculos orfeônicos de grandes proporções. Devido a sua obra transitar entre a música erudita e a música popular, foi possível ter uma ampla visão da realidade musical de Belém, sendo também possível resgatar a riqueza da música paraense de um período tão esquecido de nossa história. Todo o processo de pesquisa histórica e bibliográfica deste projeto teve como principal fonte o acervo Vicente Salles, localizado no Museu da Universidade Federal do Pará, é que possui uma das mais completas coleções de recortes destacados de jornais e revistas falando sobre a vida artística de Belém a partir de 1878 e um imenso conjunto de partituras, porem, como já foi dito, nos dias de hoje quase não existe locais e fontes onde se possam pesquisar com mais detalhes e precisão a vida dos artistas dessa época. 2 - UMA ÉPOCA DE OURO, BORRACHA E MELODIAS A partir da segunda metade do século XIX, Belém começa a viver o seu apogeu e se tornar a principal capital da região norte e uma das mais importantes do país, pois durante o período denominado de “Ciclo da Borracha”, quando imigrantes nordestinos aumentam sua população e a elite da sociedade enriquece cada vez mais, Belém começa a assumir o aspecto de grande capital, suas ruas passaram a ter calçadas com paralelepípedos de granito importado de Portugal, surgiam grandes edifícios públicos, surgiu o sistema de iluminação a gás, criou-se serviços como os telegráficos, que através de cabos submarinos aperfeiçoou a comunicação da cidade e ocorreu a drenagem dos alagados do Reduto. Outras obras, como o mercado municipal e hospitais, foram resultaram da pujança da economia da borracha, porém os subúrbios periféricos permaneceram e a urbanização não chegava ao campo, que era apenas fonte de produtos de extrativismo, lenha e carvão, e lugar para vivendas e retiros das famílias com poder, famílias essas, que pelo fato do Brasil possuir o monopólio do mercado da borracha e com os altos preços que esse produto possuía, ficavam cada vez mais ricas, entretanto todo esse desenvolvimento durou até o período de declínio do primeiro “Ciclo da Borracha”, que ocorreu por volta de 1920 . Com o seu desenvolvimento Belém, a partir de 1860, passa a ser o centro do surto artístico que ocorreu no Pará. A sociedade da época iniciou um processo de desenvolvimento sócio-cultural que possibilitou a criação de diversos teatros, casas de espetáculos musicais, o surgimento das sociedades musicais que criavam e mantinham grupos artísticos como orquestras bandas. Estes novos centros artísticos fizeram com que se criasse no Pará, principalmente em Belém, a necessidade da formação grandes músicos todo o estado e de um local capaz de comportar as grandes apresentações artísticas.
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Para resolver o problema da falta de grandes centros de formação musical em Belém, o governo e a elite da época patrocinavam a ida para a Europa de músicos promissores para se aperfeiçoarem nos grandes conservatórios da Europa, principalmente os da França, Alemanha, Portugal e Itália, e traziam para a cidade grandes músicos da época, principalmente da Europa, que devido a navegação ser o único meio para a saída desses músicos de seus paises até Belém, eles longas temporadas se apresentando em Belém, proporcionado pela baixa freqüência de navios causada pelo longo caminho entre Belém e a Europa. Em relação à falta de um grande local capaz de comportar grandes apresentações artísticas, pois em Belém surgiam diversas casa de apresentações como o Teatro Providência, que se localizava no Largo das Mercês, o Teatro Chelet, de propriedade do ator Lourenço Dias, foi inaugurado em 1873 e se localizava nas proximidades do largo de Nazaré e outros, porém eles não eram capam de comportar o desenvolvimento dos grupos musicais, como as orquestra sinfônica que se tornavam cada vez mais gigantesca. Por isso é inaugurado em 13 de fevereiro de 1878 o Teatro da Paz, marcando o início de período de maior esplendor artístico do Pará. Segundo o professor Vicente Salles, Belém vivia a “... época de fastígio econômico provocado pela valorização da Borracha. Até hoje, com altos e baixos, esse teatro centralizava as principais realizações artísticas. Da proclamação da República até e fim da primeira década deste século, ele recebeu numerosas companhias nacionais e européias...”. É dentro desse contexto que vivia o jovem Clemente Ferreira Júnior, nascido em 1864. Sua infância foi em meio ao efervescer musical de Belém, onde se podiam assistir, nos diversos teatros que se multiplicavam por toda a cidade, apresentações de peças com os mais variados temas, e a concertos musicais feito por grupos dos mais importantes centros culturais do Brasil e de mundo, como França, Alemanha e Itália. Havia também um grande número de apresentações musicais de bandas, coros, e grandes festas, sendo elas religiosas, como as festas Nazarenas, ou populares, como o carnaval, que proporcionaram, provavelmente, o gosto pela boa música em Clemente Ferreira, apesar de contraria a vontade de seu pai que desejava que Clemente fosse um comerciante. Em Portugal, na casa do barão de Sannt’Anna Nerye, passou a ter contato com grandes músicos da época, e com a ajuda de Sannt’Anna Nerye fugiu para a Alemanha para aperfeiçoar seus estudos. Devido a grande falta de informações sobre Clemente Ferreira, os detalhes sobre os acontecimentos de sua infância, seus professores e outros fatos são desconhecidos, sabendo-se apenas poucos fatos reativos a esta primeira faze de sua vida. Sabe-se que ele viajou para a Europa, em data desconhecia, estudou em Portugal, na Alemanha no conservatório de Leipzig e em Paris, tomando aula com Friendenthal e Marmontel. É provável que sua volta a Belém acontecera no ano de 1883, época em que já se tinha notícia suas na cidade.
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Apesar dos poucos dados existentes é possível analisar a formação e as influencias que Clemente Ferreira recebeu em sua estadia na Europa, pois como ele, diversos músicos promissores de Belém e do resto do Brasil partiam para a Europa, não apenas com o desejo de aperfeiçoar seus conhecimentos, mais também com a finalidade de enriquecer seus currículos, isso aconteceu, como pro exemplo, com os músicos Alexandre Levy, Alberto Nepomuceno e Francisco Braga, todos contemporâneos de Clemente Ferreira. Essa saída de músicos do Brasil para a Europa dava-se porque assim como em Belém, diversas cidades do Brasil possuíam grandes influências européias no campo das artes. Para se ter uma idéia, no Rio de Janeiro de 1880 quase tudo era importado da Europa, das penas de bico de pato às pautas musicais, incluindo idéias e modismos. Pelos portos da circulavam instrumentos musicais, violas, pratos, compositores, maestros e companhias que aqui chegavam para temporadas de óperas de Bellini, Rossini, Verdi e Carlos Gomes. Na cidade também eram freqüentes as sociedades musicais como o Club Haydn e o Club Rossini em São Cristóvão. . Também é necessário se ter uma noção da conjuntura mundial da época para se poder fazer o estudo sobre os ideais de Clemente Ferreira e suas motivações, pois o seu contato com a realidade do mundo europeu do final do século XIX provavelmente o influenciou, explicando-se assim o fato de que Clemente Ferreira possuía traços dos movimentos que aconteciam na Europa, o Romantismo o Classicismo e o Nacionalismo. 3 - A MÚSICA DO SÉCULO XIX Muitos pesquisadores da História da Música delimitam o Romantismo musical entre os anos de 1800 e 1890, mas há outros que apontam como seu início o ano de 1830 e o encerram em 1914 e a melodia messe período toma uma forma redonda, mais fluente, dando a impressão de ser infinita. Isto foi uma conseqüência da onda de nacionalismo que brotava em toda a Europa e introduzia elementos da música folclórica e da música popular, modificando e dinamizando a estrutura melódica e rítmica da época, eram as polonesas e mazurcas de Michael Kleophas Oginski (1763-1833), na Polônia. Havia, também, os noturnos do irlandês John Field (1782-1833). Assim o repouso da melodia é ampliado por “notas estranhas” e pelas ousadas modulações, que se distanciam cada vez mais da tonalidade de início. Apesar destas inovações extraordinárias qualquer obra deste período é fortemente baseada na harmonia tonal, como se pode notar nas músicas de Clemente Ferreira Júnior, Muito Harmonizadas, porém suas modulações são discretas e acompanhadas de alterações de andamento, como podemos acompanhar no anexo 4. Ocorre uma melhora em quase todos os instrumentos, devido às pesquisas científicas e à industrialização, principalmente dos sopros de metal: são adicionadas válvulas (ou os pistões), por exemplo, nas trompas e nos
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trompetes, o que melhora a afinação e aumenta a escala destes instrumentos. Inventa-se a tuba e o saxofone, que vai influenciar diretamente, em Belém, a constituição das bandas de músicas, que se multiplicavam em todo o Pará e influenciaram diretamente as composições de Clemente Ferreira, que foi um arranjador de bandas. Essas influências podem ser notada nas estruturas rítmicas, harmônicas e estrutural de algumas de suas composições para piano, onde é possível transcrevê-las desse instrumento para os instrumentos de uma banda, a exemplo temos figura 02 mostrando um trecho que mostra claramente a possibilidade de transcrição musical. Surgem também nesse período as sociedades musicais (ditas “filarmônicas”), a partir de meados do século 18, que promovem espetáculos (óperas e balés), concertos, recitais e audições, e contratam compositores, regentes, cantores, virtuoses, coro etc... . Começa então a surgir tendências nas últimas décadas do século 19, como os simbolistas (uma denominação provisória), que procurava inventar uma harmonia própria ou apelar para estruturas musicais da cultura de outros povos, ousando aprofundar a ruptura com o passado. Claude Debussy, Erik Satie e Alexsander Skriabin, atuando isoladamente uns dos outros e sem medo da crítica, criaram uma obra que incendeia até hoje a imaginação dos compositores. (anexo 5) É interessante ressaltar que o músico Achille-Claude Debussy (1862-1918), assim como Clemente Ferreira, foi aluno de Marmontel, um grande professor do Conservatório de Paris, que era conhecido por não gostar de ver seus métodos criticados. Todos esses acontecimentos influenciaram Clemente Ferreira que, como destaca o professor Vicente Salles, “deixou-se seduzir pelas tendências da música popular européia”. É provável que sua passagem pela Alemanha tenha inserido em sua formação o epigonismo mendelssohniano do Conservatório de Música de Leipzig, fundado e dirigida por Jacob Ludwig Félix Mendelssohn Bartholdy (1809-1847). Essa escola era uma das instituições mais destacadas em todo o continente, e Menselssohn ensinou composição e piano, junto a uma equipe de professores selecionada por ele e da qual também fazia parte o renomado compositor Schumann, que lecionando durante pouco tempo. Clemente Ferreira apesar de extremamente envolvido pela música das escolas européias, não deixou de lado algumas características de suas raízes. Em suas obras encontra-se temas folclóricos, características da música brasileira, mais o que era a música brasileira dessa época? Desde o início da colonização, a verdadeira música brasileira, a feita pelos índios que viviam aqui antes da chegada dos portugueses, vem passando por um processo de extinção, porem vem influenciando a música feita no Brasil desde a época dos padres jesuítas. Apesar disso, comparada com a influência da música Européia e da africana as raízes indígenas são cada vez mais esquecidas. Mario de Andrade comenta sobre a desvalorização COMUNICAÇÃO 91
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da cultura musical indígena: “O que se tirou do aborígine? Não sabemos quase nada de positivo. O chocalho, empregado como obrigação nas orquestrinhas maxixeiras, não passa duma adaptação civilizada de certos instrumentos ameríndios de mesma técnica, por exemplo o maracá, dos tupis”. Como já foi dito, a música feita no Brasil também possui as influências dos ritmos e das melodias vindas da África, entretanto vários musicólogos e folcloristas concordam que a contribuição africana não é tão grande na música, como a princípio se acreditava. É inevitável reconhecer, porém, que o africano deu uma doçura especial à nossa melodia, uma sensualidade sem par, um calor inimitável à nossa música em geral . Como disse o folclorista Renato Almeida, “o negro fecundou todo o folclore brasileiro”. Folclore que herdou os ritmos, as danças, das religiões, as coreografias, incorporou seus instrumentos, suas danças dramáticas e a percussão de seus tambores, formando o grande pilar da música brasileira. Os candomblés e macumbas, os vistosos maracatus, as danças de congos, o lundu, o batuque, o jongo, o samba, o frevo, porém nem sempre vieram da África, mas foram criados e adaptados no Brasil pelos negros com imensa habilidade. Já a música vinda do “antigo mundo” forma até hoje a principal base do que conhecemos como música brasileira, as formas musicais, os estilos, as técnicas, a escrita, os gostos e gêneros foram herdados dos europeus, como já foi demonstrado no início deste trabalho. Cláudio de La Rocque Leal comenta sobre a influência européia em Belém do século XIX: “... as escolas francesas, italianas e alemãs já haviam sido apresentadas à cidade que vivia o glamour da ópera bem mais que a música sinfônica. Gilberto Chaves lembra que músicos, compositores locais, foram influenciados pelo movimento italiano, incluindo a obra máxima de Verdi, como a de Wagner. O nível de informação era muito grande. O problema era a assimilação dessa cultura emergente, para o paraense, nova e absolutamente distinta dos valores culturais até então cultuados. Por isso mesmo, como se para deixar o luxo maior do Theatro da Paz para Grandes Companhias, o Theatro da Providência cumpria o papel de receber pequenas companhias e algumas mambembes que chegavam à cidade e levavam seus dramas. Dentre os compositores que sofreram grande influência da Europa, tanto Gilberto Chaves, quanto Vicente Salles, apontam Gama Malcher, Ney Gurjão, Paulino Chaves e Meneleu Campos...”. 4 - O PROFESSOR CLEMENTE FERREIRA JÚNIOR Nas ultimas décadas do século XIX, começavam a surgir diversas entidades artísticas em Belém, com a finalidade de difundir as artes, instruindo artisticamente o povo. Dentre as muitas instituições que surgiram a Academia de Belas Artes do Pará pode ser considerada um marco decisivo do ensino da música no
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Pará, pois dentre os seus departamentos havia o de música, denominado conservatório, que se destina a oferecer um curso de música amplo e completo, que se instalou em 24 de fevereiro de 1895, adquirindo o título de ser o terceiro estabelecimento de ensino musical criado no Brasil, em 24 de fevereiro de 1895. Em 25 de fevereiro de 1895, no salão de honra do Teatro da Paz, ocorreu o evento “numa boa festa realizada pela aludida sociedade”, onde o governador Lauro Sodré tomou a palavra, em seguida declarando instalada a Academia das belas Artes. Carlos Gomes, por unanimidade, foi o nome escolhido para ser o diretor da seção de música. Entre o corpo docente constava como dono da cadeira de piano e ainda a cadeira de elementos, divisão e solfejo para o sexo feminino, o professor Clemente Ferreira Júnior. Ferreira Júnior, ao voltar da Europa, passou a ser reconhecido como um pianista de uma técnica refinada e um compositor versátil, esses atributos logo fizeram com que ele ganhasse destacasse em Belém. ETAPAS A SEREM SUPERADAS Para que se torne mais completa a abordagem desse trabalho, está sento feito uma pequena análise das composições Clemente Ferreira, visando a estrutura básica da música, os instrumentos para o qual foi escrito, seu estilo e gênero musical. Com a finalização das análises, se encerrará o trabalho que visa como produto final o resgate de uma pequena parte da história artística de Belém, focando-se na história da vida e da obra de Clemente Ferreira Júnior, um dos formadores da história artística da cidade. BIBLIOGRAFIA
ALMADA, CARLOS - Arranjo. Campinas, SP: editora da UNICAMP, 2000. ENCICLOPÉDIA MICROSOFT ENCARTA 2000, 1993-1999 Microsoft Corporation, versão 9.0.0.0710. ENCICLOPÉDIA DA MÚSICA BRASILEIRA: ERUDITA, FOLCLÓRICA E POPULAR. São Paulo: Art Editora LTDA, 1977. LEAL, CLÁUDIO DE LA ROCQUE. Assessor Cultural da Fundação Rômulo Maiorana. “Roteiro cultural - Breve Histórico de Belém”. LEAL, CLÁUDIO DE LA ROCQUE. Assessor Cultural da Fundação Rômulo Maiorana. “Da música, a cenografia e a pintura”. MARIZ, VASCO, História da música no Brasil. 4° Edição, Rio de Janeiro - 1994. MARIZ, Vasco. A presença do negro na música brasileira. In: SEMINÁRIO DE TROPICOLOGIA: trópico e história social, 1988, Recife. ORTOLAN, EDSON TADEU. História da Música - História da Música Ocidental. Portal “movimento.com”, Todos os direitos reservados 1999-2000. Movimento pró música clássica do Brasil. SALLES, VICENTE - A música e o tempo no Grão Pará. Belém: Conselho estadual de Cultura [Grafisa], 1980. SALLES, VICENTE - Música e músicos do Pará. Belém: Conselho estadual de Cultura, 1980. SALLES, VICENTE - Memória histórica do Instituto Carlos Gomes. Brasília: Micro edição do Autor, 1993. COMUNICAÇÃO
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O PERFORMER DA QUADRILHA JUNINA: O MARCADOR
ELEONORA FERREIRA LEAL
Ao iniciar um estudo sobre a evolução coreográfica da quadrilha junina de Belém do Pará, na década de 90, com o objetivo de registrar as mudanças ocorridas nesse período em relação à dança da quadrilha tradicional, apresentou-se no decorrer da pesquisa, uma figura relevante, responsável pela condução da dança, a qual apresentava diversas habilidades artísticas das demais áreas das artes cênicas. Essa figura é denominada de Marcador, cuja trajetória histórica começa no século XVIII, como mestre de dança, e chega até nós do século XXI como um artista popular se múltiplas funções, por reunir habilidades de teatro, da dança e do circo, no momento em que se apresenta. O interesse pelo Marcador surgiu da observação do vídeo, ao procurar saber como os vinte pares ou quarenta dançarinos eram conduzidos por ele, para que houvesse noção de conjunto e harmonia na coreografia. Após ter feito varias anotações sobre sua multiatuação, nos locais, os quais as quadrilhas dançavam, apareceram as seguintes questões: o marcador é ator? Dançarino? Palhaço? Apresentador? Ou é um perfomer, por mostra tantas habilidades? Com estas questões apresento aqui os dados obtidos através de pesquisas bibliográficas, para fundamentação histórica a respeito de sua origem e de como ele se apresentava na quadrilha tradicional no Brasil. Do mesmo modo, apresento o resultado de entrevistas com coreógrafos, diretores, e jurados e coordenadores de concursos de quadrilha sobre a figura do Marcador nestes anos de 95 a 99. A principal amostra da pesquisa é o recurso videográfico da quadrilha Encanto da Juventude, para observar e registra a performace dos marcadores que por ela passaram ao longo dos
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últimos cinco anos do séc.XX, nesta quadrilha. Esse estudo não está concluído, porém trouxe muitas perguntas a cada análise dos dados adquiridos. No século XVIII, surgiu nos salões parisienses, a Quadrilha, a dança de salão que iniciava os bailes da corte francesa dançada em cinco partes e em grupo de quatro pares. Daí a presença de uma pessoa responsável por produzir a dança pelas batidas rítmicas de um bastão, por esta apresentar várias partes e inúmeros passos em cada divisão. Ao tornar-se moda, a dança passa a ser em fileira ou círculo, com um número maior de participantes, necessitando mais ainda de um condutor. Sua presença tinha a finalidade de manter a harmonia e o ritmo da dança para os participantes, até porque se dançava em grandes números de pares com elaboradas figurações e desenhos espaciais, criados pelo mestre de dança, o provável condutor da quadrilha. O mestre de dança surgiu a partir dos Menestréis e Jograis que acompanhavam os Trovadores. Como apresentavam várias habilidades artísticas, sabiam “tocar, contar histórias, eram hábeis em prestidigitação e mímica, e conheciam as danças populares”. segundo Portinari 1 , eles levaram estas danças à corte, tornando-se com o tempo, professores e coreógrafos nos palácios europeus. Esta dança ao chegar no Brasil, no séc. XIX, foi bem acolhida pelo povo, tornou-se popular, e se transformou segundo os usos ou costumes de cada região, cidade e localidade. A partir dessas mudanças, a dança ramificase em outras e, no sudeste, precisamente nos estados de São Paulo e Minas Gerais, por encantar os bailes populares das cidades do interior e das fazendas, foi denominada Quadrilha Caipira, pois apresentava características do comportamento do modo de trajar dos interioranos. Com as transformações, o responsável em comandar a dança da quadrilha, em vez de bater, passa a cantar os passos da coreografia em um a linguagem misturada de francês aportuguesado como anavan (ao centro-em avant), balance (balanceio-balancer), salu de damas (damas, saudação - salut des dames). O condutor desta quadrilha tornou-se mais engraçado quando apresentou o sotaque caipira. Este elemento, conhecido atualmente como o comandante da quadrilha tradicional, passa a ser mais destacado, e já não é mais um simples guia da quadrilha pelas batidas, ele vem à frente dos dançarinos, apresenta-os à festa, seja realizada no terreiro, no salão ou quadra, e inicia a dança “dando as vozes COMUNICAÇÃO
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do comando, para a execução das figuras e dos passos”2, segundo Gioffane, referindo-se à figura do Marcador. Este tipo tradicional caracteriza o caipira de uma forma tênue, quanto à maneira de se comportar, entretanto, enfatiza o sotaque e o traje do roceiro ao se apresentar de paletó grande ou pequeno, remendado, abotoado errado, com lenço, com ou sem gravata. De calças geralmente curtas e no meio da canela, meias de cores fortes ou velhas, acompanhadas de sapatos bem gastos, apresentando-se na maioria das vezes com um chapéu de palha e um franco sorriso. Ele possui toda a liberdade de ser mais criativo no traje, e no modo de expressar o caipira, diferenciando-se dos dançarinos, também trajados neste modelo. O Marcador ao caricaturar o roceiro, mostra como a sociedade urbana vê as pessoas da zona rural, como são os costumes dessa comunidade, como a maneira elegante, fina, de ir ao baile, à festa, torna-os, aos olhos do homem da cidade, um elemento cômico. Esta figura mergulha mais no universo da gente do campo, quando canta os passos da quadrilha, mostrando o cotidiano delas: passeio dos namorados, olha o pai da moça, é mentira, caminho da roça, bombarqueiro, formar a grande roda, olha o formigueiro, etc. Esta figura caracterizada pelo humor e modos tão espontâneos, ao retratar o mundo do caipira, nos faz lembrar um personagem do universo do circo, o clown, também um afigura nascida na zona rural, um campônio, se tomarmos como referência o circo de Philip Astley, surgido no século XVIII. A quadrilha caipira permaneceu em algumas regiões do Brasil, passou pelo século XX, e chegou ao século XXI mais modernizada, mas sem perder a sua essência. Esta evolução tornou-se mais evidente nas décadas de 80 e 90. Em Belém do Pará, principalmente com os concursos de quadrilhas dos bairros e da FUMBEL3, que por apresentarem mais de 100 grupos, mostrava-nos a dimensão deste grande espetáculo da Quadrilha Junina. As transformações ocorrida nesse período, nos revelaram uma quadrilha moderna, com caipiras mais urbanizados, distanciados dos tradicionais, com coreografias mais dinâmicas, criativas e com temáticas – elemento da composição coreográfica – algumas fezes, inseridos pequenos textos para os dançarinos e principalmente para o Marcador. Ao nosso ver, todas essas mudanças apresentadas iram contribuir para o surgimento de dois tipos de Marcadores, um tradicional e outro moderno. O Marcador tradicional, em nossa região, era o que mostrava o estilo caipira que cantava os passos da quadrilha, que vem com traje nos moldes nos trajes dos interioranos, porém mais exagerado. Era a figura que já entrava em cena caracterizado de caipira, é responsável por apresentar os dançarinos de sua quadrilha ao público e aos jurados, quando está em um concurso, ao pisar na quadra, a qual é transformada em um espaço cênico, seja este uma rua, calçada ou ginásio. É importante mencionar que nesta apresentação, o Marcador utilizava-se da fala como recurso de animação ao aproximar-se dos jurados. 96
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É interessante como o marcador se apresentava, pois o tempo todo estava com sua comicidade, de modo alegre, comunicativo, dinâmico, burlesco, ao satirizar o caipira, às vezes de forma grotesca, tanto na indumentária como no gestual chegando ao ponto de transformar seu corpo em algo ridículo, feio, porém cômico. Suas expreções faciais tornavam-se risíveis, até porque, apresentavam uma maquiagem, em que sobressaía o supercílio, a suíça o bigode e o cavanhaque. Ele estabelecia um jogo interativo com o público, dançarinos e jurados, sem esquecer de cantar os passos da coreografia. No decorrer da dança, ele ficava atento à evolução coreográfica, para garantir um bom desenvolvimento, noção de conjunto, e um espetáculo homogêneo, fortalecendo assim sua liderança, ao dar confiança e segurança aos dançarinos. Quando inçava o último passo da dança, ele fazia reverência ao público e aos jurados, agradecendo a atenção dada à sua quadrilha. Solicitava aos brincantes o mesmo, e, logo após, sugerindo a retirada do grupo de forma alegre e festeira, para o local da saída, terminando sua função de Marcador ao colocar os pés fora da quadra. Este tipo de marcador era um cômico e não um gênero de comédia, mas como conceitua, Patrici Pavis: E o Marcador moderno, como se apresentava? Este não se esqueceu certas características essenciais da tradição, continuava sendo o maestro e o integrante mais importante da quadrilha. Contudo, ele vinha inovando, em virtudes das próprias transformações expostas pelos coreógrafos, ao proporem coreografias mais complexas e dinâmicas desdobrando múltiplas figurações no espaço, as quais tomaram uma dimensão maior, além de apresentarem uma dança temática. As transformações na coreografia desta dança trazem significantes mudanças para o Marcador. Na década de 80, ele passa a marcar com apito, porque o espaço se ampliou, e, a sua voz não alcançava mais esta nova dimensão. Nos anos 90, utilizasse como recurso o microfone, logo abandonado por atrapalhar o marcante, passando em seguida à condução pelo chapéu e gestos exagerados, para que todos os brincantes podessem perceber o comando. Atualmente observamos que certos Marcadores chegam a apresentarem gestos e movimentos coreografados para melhor compor sua apresentação na quadrilha, e dar conta do grande espaço utilizado pelo grupo. O seu traje, às vazes, diferenciava do traje do grupo, contrapondo-se com o dos dançarinos. Quando a quadrilha vinha com a temática do casamento na roça, por exemplo, o marcador entrava vestido de padre; ou quando prestavam uma homenagem à quadrilha francesa ele aparecia como uma indumentária da corte francesa do século XVIII, relacionando-o aos mestres de dança. Para cada traje, o Marcados agia de um modo diferente. Esta condição apareceu com os temas, enriquecendo sua atuação como uma performance artística, estando vestido de Lampião ou de aristocrata da corte francesa.
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Com o tema, o Marcador contemporâneo expõe um pequeno texto ou o narra explicitando a proposta temática da coreografia. Seus gestos codificam-se para a marcação da dança, seu espaço topográfico diversificava-se a cada apresentação, e o tempo para estar com o público, como os dançarinos e, às vezes com os jurados, passava a ser menor, porém mais estudado, para que todos podessem perceber sua forte presença, É interessante observar que o intérprete do Marcador começa a ter múltiplas funções e a sua atuação deixa-nos a dúvida: ele é um ator ou possui apenas um grande sentido de representação? Ele está atuando caracterizado de caipira, padre, ou ele representa um destes personagens? È somente no período da quadra junina que o vemos realizar esta prática. Ele nos surpreende por ser seu próprio autor e ter autonomia para elaborar a sua apresentação. O Marcador é um artista popular, mas também seria um performer? Talvez sim, por ser capaz de realizar um espetáculo à parte no contexto da quadrilha. O termo performer, segundo Pavis, “é também cantor, bailarino, mímico, em suma tudo o que o artista é capaz de realizar num palco de espetáculo”5. No caso do Marcador das quadrilhas belemenses, suas habilidades perpassam a do dançarino, do músico, do ator, do apresentador, e outras façanhas ainda não percebidas. REFERÊNCIAS BAKHTIN, Mikail. A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento – O contexto de François Rabelais. São Paulo: Editora da Universidade de Brasília, 1987. COHEN, Renato. Performance como Linguagem. São Paulo: Editora Perspectiva, 2002. GIFFONE, Mª Amália Costa. Danças Folclóricas Brasileiras – Sistematização Pedagógica. São Paulo: Livraria Martins, 1955. PALLOTTINI, Renata. Dramaturgia – Construção do personagem. São Paulo: Editora Ática S.a 1989. PAVIS, Patrice. Dicionário de Teatro. São Paulo: Perspectiva, 1999. PORTINARI, Maribel. História da Dança. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1989. Notas: 1. PORTINARI, Maribel. História da Dança. Rio de Janeiro. Nova Fronteira, 1989, p.54. 2. GIFFONE, Mª Amália Costa. Danças Folclóricas Brasileiras – Sistematização Pedagógica. São Paulo. Livraria Martins, 1955, p. 214. 3. FUMBEL, Fundação Cultural do Município de Belém. 4. PAVIS, Patrice. Dicionário de Teatro. São Paulo. Perspectivas, 1999, p. 58. 5. Idem anterior.
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A RELEITURA DO ROCK NA CAPITAL PARAENSE
KEILA MICHELLE SILVA MONTEIRO
O rock nasceu nos Estados Unidos, da fusão do rhytm-and-blues com a country and western. Inicialmente era tocado para fazer as pessoas dançarem, posteriormente ganhou certa postura política na voz de Bob Dylan e outros. Conquistou o público da Inglaterra com as canções dos Beatles, Rolling Stones, The Who e muitos outros; ultrapassou as fronteiras influenciando o comportamento dos jovens e atravessando gerações. Vale ressaltar que este gênero trouxe consigo uma inovação tecnológica sendo ele o primeiro a usar sistematicamente instrumentos elétricos em lugar de acústico. O gênero, inicialmente denominado rock and roll e depois passando a simples denominação de rock, chegou ao Brasil na década de 60, através de Celly e Tony Campello e da Jovem Guarda, com Roberto e Erasmo Carlos, Eduardo Araújo, Vanderléia e grupos que cantavam hits americanos com versões em português. Aos poucos foi perdendo seu perfil inofensivo e passou a servir como instrumento social e político nas mãos de bandas e artistas que souberam cantar a tristeza de um povo que viveu a ditadura militar e passaram a denunciar constantemente situações de crises econômicas e políticas no país. Consideramos que, por conter o primeiro grupo de artistas brasileiros que cantaram os problemas do país, o movimento tropicalista da década de 60 constituía uma leitura do rock até a entrada da década de 70. Os tropicalistas usavam a guitarra elétrica nas suas composições, assumiam as influências do rock inglês assim como a bossa nova, as influências do jazz. Inicialmente, o movimento foi recebido com preconceito pelo público jovem adepto das canções de protesto de Geraldo Vandré, Edu Lobo e COMUNICAÇÃO
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Chico Buarque e que não aceitava a introdução de “elementos estrangeiros” no nosso país, posteriormente conseguiu a aceitação do público e já deixava as portas abertas para grupos como Os Mutantes que escreviam canções críticas e chamavam a atenção da juventude para os principais acontecimentos da época e os Secos e Molhados que usava textos de poesia brasileira na composição das suas canções. Sá, Rodrix e Guarabira fundiam os instrumentos eletrônicos com a viola sertaneja, naquilo que se chamava de rock rural brasileiro, quando apareceu o baiano Raul Seixas que propunha uma música contra o sistema e acreditava no movimento “Sociedade Alternativa” em que tudo era permitido, com a juventude ditando sua própria lei. Surgia no Brasil um público mais aberto a experimentações, sem preconceitos tanto em relação à guitarra quanto ao seu uso em frevos, sambas e xaxados. A intenção de conscientização política se firmou no chamado boom dos anos 80, quando surgiram artistas como Lobão e as bandas Legião Urbana, Barão Vermelho, Titãs, Camisa de Vênus, Plebe Rude, etc. com letras diretas, descontraídas ou poéticas que falavam sobre a exploração sofrida pelo povo brasileiro, denunciavam o sistema governamental e a repressão policial. Algumas letras de músicas eram constantemente censuradas por conter palavrões ou por representar uma ameaça ao sistema, mas, posteriormente passaram a palavras de ordem e estão presentes até hoje em manifestações operárias e estudantis. O gênero chegou ao Pará com um relativo atraso e, na capital paraense, o processo de assimilação do rock não foi diferente. Começamos com as bandas de baile e festivais em sedes de clubes no final dos anos 60 e início dos anos 70. Estas reproduziam a imitação que as bandas do Rio de Janeiro e de São Paulo faziam das bandas americanas; apresentavam nomes como The Kings, Os Incas, Os Panteras, Os Orientais e outros. Já nos anos, trilhava um caminho melhor; surgiam grupos com projetos mais diversificados, como o Sol do Meio Dia, por exemplo, influenciado pelo rock progressivo. Em 1982, uma banda paraense conseguiu mostrar para o Brasil que em Belém também se produzia rock e lançou o primeiro LP de rock “pesado” em nível nacional. A banda Stress, de estilo heavy metal, ou seja, com um som mais agressivo aos ouvidos desacostumados a guitarras com efeitos de distorção, incentivou de certa forma as bandas paraenses que sonhavam em ver seu material gravado. O show de lançamento do disco, que possuía o mesmo nome da banda, aconteceu na sede da Curuzú e contou com a participação de várias bandas, inclusive com a participação daquela considerada a primeira banda de punk do Pará: Os Podres, a qual, mais tarde se chamaria Insolência Públika. Havia aqui, portanto, dois pólos: o punk e o heavy metal, estilos de bandas que faziam lotar os locais de suas apresentações, sendo que as bandas voltaram-se mais ao estilo heavy metal, o qual foi popularizado no Brasil pelo projeto Rock in Rio onde participavam artistas do Brasil e de fora, em 1985. 100 COMUNICAÇÃO
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As bandas se apresentavam em colégios, bares e nas praças dos bairros de Belém. Muitos eventos eram organizados por conta própria, sem nenhum apoio de alguma entidade, e abriam espaço para bandas que possuíam trabalho próprio, sem cópias. Algumas bandas realizavam campanhas beneficentes como o evento ocorrido em 1988 sob o título “Rock em uma tarde pró-menor”. O evento contou com a participação das bandas Anjos do Subúrbio, Grupo Laser, Nó Cego, Delinqüentes e Ódio do Poder. A renda do show foi doada ao menor abandonado, além de roupas provenientes de uma gincana realizada no dia do evento, na qual a equipe vencedora seria aquela que conseguisse o maior número de roupas usadas ou não-usadas. Havia o projeto Clube do Rock, uma programação itinerante que acontecia em localidades diferentes para uma melhor divulgação do trabalho pela cidade, saindo do Centro e indo para áreas mais periféricas e lugares mais distantes como Icoaraci e Ananindeua, com um programa de revezamento dos grupos. Já em 1989, o Clube apresentava a sua sexta versão. Nesse ano também acontecia o Underground Festival, organizado pelo vocalista da banda Crepúsculo, Luís “Pezão”. Este projeto conseguiu o apoio da Secretaria de Cultura e de políticos locais, com onze bandas se apresentando no Colégio Estadual Paulo Maranhão e teve ainda a sua segunda edição no ano de 1992. Mesmo com as dificuldades diversas pelas quais o rock vinha passando, realizaram-se ainda os eventos Rock in Rio Guamá, o qual abrigou as bandas emergentes e que teve outras versões, o Fest Rock, que já virou tradição em Belém e o Baíto in Rock, este último foi realizado no Parque dos Igarapés e recebeu o apoio do Museu da Imagem e do Som. Durante a programação concediam-se prêmios em dinheiro e troféus para grupos e artistas que mais tinham se destacado no cenário rockeiro da cidade. O movimento foi ganhando proporções maiores, até que, a diretoria do Teatro Experimental Waldemar Henrique resolveu conceder o espaço do teatro para apresentações do gênero. Neste local realizavam-se inúmeros shows e festivais, onde as pessoas se encontravam, trocavam zines e informações lotando o teatro para apreciar os mais diversos estilos, vertentes do rock como o punk, hardcore, heavy metal e até reggae, blues e jazz. Neste teatro realizou-se durante quatro dias a coletânea “Rock 1 – Independência ou Morte” com as bandas Delinqüentes, Morfeus, Baby Loydes, O Crack, Ácido Cítrico, Nó Cego, Elmo de Zinco e Eccus, era a oportunidade que algumas bandas vindas do subúrbio e praticamente desconhecidas do público de Belém tinham de mostrar o seu trabalho. As bandas passaram a ouvir suas músicas na programação da rádio Belém FM, hoje extinta e, posteriormente, no programa Balanço do Rock criado na Cultura FM no início dos anos 90, o qual permanece até hoje apresentado por Beto Fares. Concomitantemente, foi criado o estúdio Edgar Proença nas instalações da FUNTELPA (Fundação de
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Telecomunicações do Pará), um espaço onde as bandas teriam a chance de gravar o seu material desde que investissem num trabalho original. Em 1991, o empresário Ná Figueredo, que antes vendia camisas nas feiras de artesanato, fundou sua loja de mesmo nome. Com o surgimento da loja o material dos grupos, como camisas e bonés, e principalmente, as fitas e CDs das bandas paraenses, passou a vender mais. O empresário chegou a trazer para Belém bandas da Alemanha e dos Estados Unidos, porém, em função das dificuldades como a falta de apoio, parou de promover tais eventos, mas possui agora um selo próprio voltado para composições originais de bandas paraenses e abre espaço para shows na sua loja, com o projeto intitulado Ensaio Aberto. Aos poucos, empresários, gravadoras, jornalistas e até o Governo do Estado viu que valia a pena investir neste estilo e, em 1992, criou-se o Rock 24 Horas, um superprojeto que foi promovido pela diretoria do Teatro Waldemar Henrique e que conseguiu o apoio da Secretaria de Estado de Cultura, do Governo do Estado e de uma empresa de cerveja. Várias bandas, num total de 25, revezavam-se num único palco localizado na Praça da República durante um dia inteiro, sem intervalos. Não se teve notícia de evento semelhante no resto do país. Devido ao grande sucesso deste projeto, em 1993 foi organizada a segunda versão do evento, agora com 36 bandas programadas para tocar; este número foi reduzido depois para 22, visto que algumas bandas não haviam se enquadrado nos critérios de seleção e foram desclassificadas. O cenário desta vez seria a Praça Kenedy, atual Praça Waldemar Henrique devido a reclamações provenientes dos moradores dos arredores da Praça da República. Os organizadores trariam ainda uma banda mineira para se apresentar, a banda Virna Lisi, a qual encerraria o evento. O rock chegava ao seu auge em Belém. Tudo corria bem; as bandas gravavam seus LPs e enviavam demo-tapes para o estrangeiro, começavam a participar dos festivais de MPB, as casas de show já não demonstravam tanta restrição ao gênero. Ao iniciar a programação da segunda versão do Rock 24 Horas, de uma forma inesperada, um grupo de pessoas de fora do movimento chegou disposto a instigar a violência entre as pessoas que ali estavam, provocando uma confusão em que barracas e instrumentos foram quebrados e muitas pessoas saíram feridas, incluindo membros das bandas e da organização. Consideremos o fato de que não era só o público rockeiro que queria se divertir que estava presente no local; as gangues de rua estavam infiltradas no seu meio e, geralmente estas querem impor o seu domínio através da força. A violência é um reflexo da sociedade de países de Terceiro Mundo. O empresário Ná Figueredo providenciou a vinda do produtor musical Pena Schimit, o qual produziu grupos como Os Mutantes e considerou o incidente como algo que poderia acontecer em qualquer ocasião, não deixando de elogiar a cena local. O quadro, então, começou a mudar, a associação do rock à violência intensificou o preconceito que já se tinha do gênero e fez com que os 102 COMUNICAÇÃO
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espaços se fechassem para as bandas de Belém, inclusive as portas do Teatro Waldemar Henrique e, no dia seguinte ao acontecimento, foi decretado o fim do projeto 24 Horas pelo secretário de Estado de Cultura, em 1993. As campanhas que já vinham sendo feitas contra as drogas e, inclusive contra a violência, tornaram-se mais evidentes nos anúncios de eventos e na fala dos artistas durante os shows. Muitas bandas se extinguiram ou deixaram de produzir. Houve projetos que surgiram depois, como o Rock 6 Horas criado pelo Ná Figueredo em 1995, mas que teve a sua última versão em 1998 Algo que também contribuiu para um relativo esfriamento do movimento em Belém, foi o fato de não se ter um mercado com informação suficiente para assimilar o trabalho das bandas. Entre os grupos de pop que lançaram seus LPs e tinham seus trabalhos apresentados na mídia com maior freqüência estão o Mosaico de Ravena, Álibi de Orfeu e Violetha Púrpura, com um repertório que também continha músicas de protesto. O grupo Álibi de Orfeu inovava ao apresentar sons que faziam parte do cotidiano das pessoas da época, como de uma máquina de escrever, nas suas composições. Uma vertente do rock que mereceu destaque no nosso estado foi o punk, estilo baseado em três acordes em ritmo acelerado, com letras críticas mais gritadas que cantadas numa música com o tempo suficiente para os seus integrantes demonstrarem todo o seu descontentamento com o sistema opressor, sugerindo mudanças de acordo com o seu conceito de sociedade livre e sem preconceitos. As letras dos punks são geralmente acompanhadas por um discurso e tratam de assuntos como o caos e a violência urbana, agressões ao meio ambiente, política social, violência policial, miséria, etc; os integrantes preocupamse muito com o seu conteúdo sem trabalhar muito a sua forma. A banda Insolência Públika, na época, criou uma música sob o título Beirute Está Morta, a qual se referia ao terror de ver as pessoas mortas na guerra acontecida na cidade e Beirute; esta música que virou o hit das rádios iniciava com sons de metralhadora e terminava com um grito numa demonstração de dor e sofrimento. Além desta banda, podemos destacar as bandas Baby Loydes e Delinqüentes, as quais estão em atividade até hoje, sendo que esta se apresenta por todo o território nacional. Hoje em Belém, em todo momento surgem bandas para atender todos os gostos e o cenário do rock encontra-se lotado: Neurose, Sub-versão, Lord Byron, Dub Core Attac, Morte Suicida, KDD, Seqüelas, Um Puto, Pelos Ares, Papa Xibé, Arcano XIX, Garagem 32, Mocotó Elétrico, Estigma, Retaliatory, Lady Land, Homem sem Pecado, RS-4, Mithus, Zênite, Barbarela, LSD...e até uma banda evangélica com ritmo de rock: Corsário. Algumas surgem, outras acabam, visto que ainda não dá para viver de rock em Belém. Em 1999, Ná Figueredo lançou pelo seu selo uma coletânea de rock paraense intitulada “Açaí Pirão”, neste CD é possível notarmos a diversidade de estilos que já vinha compondo a cena local .
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Atualmente temos um quadro satisfatório e mais ou menos estável das bandas que possuem trabalho próprio, apesar de os espaços continuarem reduzidos. Hoje temos apenas um programa de rádio preocupado em divulgar as atividades e o material das bandas. A imprensa escrita abre um bom espaço para o gênero, mesmo porque as bandas vêm demonstrando maior qualidade e profissionalismo; muitas já tiveram seu trabalho reconhecido fora do estado. No Brasil e em Belém, o rock agora se mescla muito mais a outros sons, sejam eles da própria região ou de outros lugares do mundo dando origem a novas criações musicais, possui, portanto maior riqueza rítmica. As nossas bandas chegam a misturar três ou mais estilos dentro da mesma música na mesma proporção. Um exemplo disso é a extinta banda Mangabezo que fazia experiências com a mistura de ritmos como rock, brega, frevo, retumbão, jazz, punk, heavy metal, música indiana, africana, chinesa, mantras, etc. utilizando o som de sucatas que variavam de garrafa plástica a cascas de ostras e chapas de raio-x, numa percussão bastante acentuada acompanhada de baixo, guitarra e bateria. Algumas bandas já vinham apresentando maior abertura a misturas com outros estilos, como Tribo, Epadu, O Crack e a banda Jolly Joker que lançou o primeiro CD da história do rock no Pará em 1996, no qual aconteciam as primeiras fusões com o heavy metal e o boi- bumbá. A banda Arcano XIX, em 2002 foi vencedora do festival da 2ª Bienal Internacional de Música de Belém, com a mistura de rock e carimbó; a banda Cravo Carbono que apresenta numa música a fusão de rock e boibumbá e aposta nas guitarradas foi convidada a se apresentar nos Estados Unidos; a cantora Lu Guedes preferiu unir o boi-bumbá a batidas eletrônicas com acordes momentâneos de guitarra distorcida e faz shows em outras capitais, onde é bem recebida acompanhada da banda Maria Fecha a Porta. As bandas Euterpia e Coisa de Ninguém inserem textos nas suas apresentações num trabalho de fusão entre música e poesia, sendo que esta tem por prioridade a crítica social; a banda Norman Bates se mantém fiel ao estilo, com dissonâncias, distorções e a formação clássica de baixo, guitarra e bateria, com letras em que aparece o uso de antíteses e do jogo de palavras e que relatam as crises, as fraquezas e as contradições do ser humano. Com o passar do tempo, as fitas cassete foram perdendo o lugar para os CDs, os quais apresentam uma qualidade melhor de gravação. E hoje, em Belém, as bandas têm várias opções de estúdios de qualidade sem precisarem sair de Belém para gravá-los. Porém, há bandas que preferem investir nos CDs artesanais e vendê-los nos próprios shows, após as apresentações. Um grande projeto beneficente que conta com a ajuda de bandas de rock e a solidariedade das pessoas merece destaque por sua iniciativa e persistência: o Rock Contra a Fome que surgiu em 1998. Já foram realizadas quatro versões deste evento em espaços diversos sob a organização de 104 COMUNICAÇÃO
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Denílson Ramos, mais conhecido como Del, vocalista da atual banda Crânios que antes se chamava Desacato. O projeto visa a arrecadação de alimentos não perecíveis para serem doados a entidades carentes com o objetivo de chamar a atenção dos governantes para que eles dêem a verdadeira assistência à população carente. Denílson e as bandas que o ajudam no projeto buscam o apoio da prefeitura para continuarem levando o projeto em frente e cada vez melhor estruturado. Além da função social, o rock também desempenha funções de conscientizações políticas, econômicas, ecológicas, etc que vão além da intenção de divertir o seu público. Vale ressaltar que podemos trabalhar com o rock na área da educação. A sua parte rítmica pode contribuir nas aulas de música para o trabalho de percepção musical com crianças e adolescentes ou nos cursos de cênica, dança moderna e outros para o desenvolvimento da coordenação motora e outras necessidades da disciplina nas escolas. A interdisciplinaridade também pode ser trabalhada. O conteúdo das letras do rock pode ser estudado em várias áreas de acordo com a criatividade de cada professor e a contribuição criativa dos alunos. Principalmente o trabalho das bandas paraenses, o qual está mais próximo da realidade local, deve ser aproveitado pelas escolas como instrumento didático e a academia não deve mais fechar os olhos a este fenômeno que conquistou o mundo e que pode ser encontrado e pesquisado em lugares bem próximos na nossa capital, pois, a produção em Belém é presente e de boa qualidade.
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ENTRE O AQUÉM DO EU E O ALÉM DO OUTRO: AS HISTÓRIAS DE VIDA NA CENA
WLAD LIMA
E eis que me tornei um desenho de ornamento Volutas sentimentais Volta das espirais Superfície organizada em preto e branco E, no entanto acabo de ouvir-me respirar. É isso um desenho? Isso sou eu? Pierre Albert-Birot.
Na busca de uma forma que me guiasse na construção desta comunicação e que, mais do que forma fosse força, meus olhos não se desgrudaram da espiral desenhada por Sônia Rangel1 como última idéia-imagem-doação deixada por ela para todos nós, quando ministrou em Belém do Pará o módulo sobre Processos de Criação, no Curso de Mestrado do Programa de Pós-Graduação de UFBA, pelo convênio UFBA\UFPA. “Parece que a espiral nos colhe em suas mãos unidas”. (1993 p.154). Estas palavras de Bachelard me fazem crer que, esta imagem espiralada raciocina comigo.Por isto, chamo para esta cena textual o ator, como o indivíduo de onde parte a força de indução do fazer teatral. Este indivíduo/ator é um ser que se produz numa prática de produzir outros, fazendo e refazendo a si mesmo, infinitamente; revelando-se outros. E o que seria deste criador, se não fosse a sua capacidade de flexionar-se em diferentes sentidos?ð. Flexionar-se em toda a sua materialidade orgânica, formada por músculos, ossos, gestos, comportamentos, vozes e ritmos
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condicionados na vida cotidiana e em toda a sua imaterialidade subjetiva moldada pela poderosa fábrica de subjetividades seriadas impostas pelo modo de produção capitalistíca?ð. Sobre isto, bem escreve Guattari. A meu ver, essa grande fábrica, essa grande máquina capitalística produz inclusive aquilo que acontece conosco quando sonhamos, quando devaneamos, quando fantasiamos, quando nos apaixonamos e assim por diante. (1999 – pg 16) O meu objeto de investigação, é esta fração de tempo/espaço necessário ao ator para que ele, matéria-prima do teatro, possa preparar-se para novos processos de criação que o quer como experimentador de si mesmo e, como diz Guattari, “não voltar a ser o que vinha sendo”. Se eu, no meu exercício da professoalidade, desejo construir uma proposta metodológica para este tempo/espaço do ator, preciso eleger alguns princípios, no sentido de estimular uma multiplicidade de experiências, quantificando as dimensões do meu quintal. Se há duas torres a serem derrubadas - o condicionamento de vida cotidiana e a fábrica de subjetividades seriadas - é necessário, das ruínas, construir outros modos de representação do mundo, novos processos de singularização cultural. Volto com algumas palavras de Guattari. Como produzir novos agenciamentos de singularização que trabalhem por uma sensibilidade estética, pela mudança de vida num plano mais cotidiano e, ao mesmo, pelas transformações sociais ao nível dos grandes conjuntos econômicos e sociais? (1999 – pg 22). Uns fartos espaços de redescoberta das singularidades desejantes são as histórias de vida de cada ator. Elas são um campo de referência construído artesanalmente, visto ser o ator um produto de si; uma produção de diferenças. E como trabalhador social que é – porque atua na produção de subjetividade, porque tem uma profissão que consiste em se interessar pelo discurso do outro – o ator precisa estar numa prática política, constante e processual, de gerar subjetividades delirantes e isto só será possível, a partir do revisitar a si mesmo. Não de uma forma estacionada, geometrizada, mas no jogo do aquém e do além, no dentro e no fora. E que espiral é o ser do ator? Corremos para o centro ou sê nos evadimos?ð, perguntaria Bachelar. O ser espiralado, que se designa exteriormente como um centro de revestimento, nunca atingirá o seu centro. O ser do homem é um ser desfixado. Toda expressão o desfixa. No reino da imaginação, mal uma expressão foi enunciada, o ser já tem necessidade de outra expressão, o ser deve ser o ser de outra expressão. (1993 p. 218). Precipitando-me a arriscar uma hipótese, diria que o ator é UM DEVIRSER. Há uma fluência de formas imagéticas que ele quer dar carne. Esta visibilidade, ele faz com o seu próprio corpo, a partir de suas próprias histórias, vividas e/ou imaginadas. Há tamanha propriedade nelas, mas é preciso seleciona-las, elege-las por um porquê. Como diria Pelbart: “É preciso não ruminar incessantemente as próprias histórias pessoais para poder inventar um novo devir” (1993 p.56). COMUNICAÇÃO 107
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Mas como selecionar, eleger, numa explosão de imagens? Quando o ator debruça-se sobre a condição humana, inclusive a sua, tem aí um olho d’água abundante. Nesta aquosa explosão, o que falaria com o próprio ator, para que ele fale aos outros? O que o ator procura, entre tantas imagens, talvez seja aquela que tem força de atração, uma força poética suficiente para atravessar o processo de criação e estar no acontecimento receptivo. A força poética dar-se na recepção da obra, pois o ator só se faz, enquanto criador e criatura, na presença do espectador. É sempre UM DEVIR. Um acontecimento de apreensão desejada no antes, durante e no depois do ato. E o ato é efêmero! Neste jogo de construção/desconstrução do cênico dar-se as qualidades (poéticas) da obra e de seu criador. No tocar, emocionalmente, o espectador. É nele que ecoa a emoção e, se assim volta repercutida para o ator, nada mais precisaria ser dito. Tudo estaria dito, como diz Deleuze. Estamos cercados por todos os lados de uma quantidade demente de palavras e imagens e seria preciso formar como que vacúolos (a expressão é de Guattari, se não me engano), vacúolos de silêncio para que algo merecesse enfim ser dito; ou por extensão, vacúolos de imagens, como de fato alguns artistas souberam cavar no interior de suas próprias criações, para que algo merecesse enfim ser visto. (1993 p.54). O ator, como experimentador de si mesmo, é uma operação delicada. Ele se sabe um ser expressivo, mas todo ser o é. Sua expressão tem que ser poeticamente organizada. Esta expressão organizada é traduzida em cada arquitetura cênica que cria. Mas toda arquitetura necessita de um alicerce que a sustente. Sabemos que o aterro utilizado foi o das ruínas de duas grandes torres: o condicionamento da vida cotidiana e a moldura das subjetividades seriadas. Além desta argamassa, que concepções e pensamentos guiam - desde a preparação do solo até ao detalhamento minucioso dos acabamentos - o fazer da arquitetura artística teatral? Traduzindo a analogia entre construção arquitetônica e construção cênica, chega-se a uma questão fundamental: que pensamentos governam a prática de cada ator? O que sei é que a minha prática revela-me. Revela o que, o porque e o para quem, do meu teatro. É a minha prática que diz como eu penso o mundo e como me penso no mundo, nas suas diversas dimensões. Toda esta ação espiralada exige tempo. A cada novo processo, é necessário que o ator retorne a si mesmo e que, como já sabemos, não será o mesmo que vinha sendo. Mas tudo isto exige tempo e, temporalidades diferentes para cada criação. Gostaria de concluir esta comunicação com algumas palavras de Pelbart, o piloto d’A Nau do Tempo-Rei. Não é inútil lembrar que o tempo de criação artística ou de pensamento também exige algo dessa ordem. Do dar tempo e paciência para que o tempo e a forma brotem a partir do informe e do indecidido. O desafio é propiciar as condições para um tempo não controlável, não programável (...) não libertar-se do tempo, como quer a tecnologia, mas liberar o tempo, 108 COMUNICAÇÃO
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devolver-lhe a potência do começo, a possibilidade do impossível, o surgimento do insurgente (...). (1993 p.36). REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
BACHELARD, Gaston. A poética do Espaço. São Paulo. Martins Fontes, 1993. GUATARRI, Félix. Micropolíticas: Cartografias do Desejo. Petrópolis. Editora Vozes, 5ª edição, 1999. PELBART, Peter Pál. A Nau do Tempo-Rei. Rio de Janeiro. Imago, 1993.
NOTAS
1 Sônia Rangel – Doutora em Artes Cênicas pelo PPGAC da UFBA. Professora da graduação e pós-graduação dae Escolas de Teatro, de Dança e de Belas Artes da UFBA.
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CLAUDIA LEÃO E A IMAGEM SUBMERSA
MARIANO KLAUTAU FILHO
Esta apresentação propõe uma breve leitura sobre os percursos traçados pelas imagens produzidas pela fotógrafa paraense Cláudia Leão. Trata-se de alguns percursos e algumas imagens que nos aproximem de signos que definem de modo geral a matéria principal de sua obra: uma emocionante trama gerada pela saudade, pelo esquecimento, pela ausência. Na série “O Rosto e os Outros”, re-inventou retratos antigos, criando personagens dentro de molduras velhas apresentadas pelo lado avesso ou janelas abandonadas pela demolição de casas antigas. A utilização de espelhos gastos, envelhecidos no lugar do vidro tradicional provoca um estranho reconhecimento da figura do espectador em relação à obra. Diante da imagem do rosto de alguém por trás de um espelho gasto, o espectador experimenta uma mistura turva da sua imagem com a do personagem. A fotógrafa construiu diversos retratos e os colocou na galeria como se fosse uma sala repleta de personagens esquecidos no tempo. IMAGEM 1 : A ESCADA ? A série que vem construindo nos últimos anos se chama “O Jardim dos Caminhos que se bifurcam”, citação explícita ao conto do escritor argentino Jorge Luís Borges. A fotógrafa adensa a trama buscando o labirinto onde repousam esses personagens, esses rostos e vestígios de algo que queremos identificar, lembrar, mas que não conseguimos. A vontade de lembrar é o desejo de imaginar. Perde-se a fronteira entre imaginação e realidade. Em seu estudo “A Poética do Devaneio”, Gaston Bachelard reflete sobre as potencialidades da imagem na ação de criar. Para ele a imagem, mesmo
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sendo tão fluida, torna-se matéria para expor princípios fenomenológicos. A fenomenologia lhe oferece condições de re-examinar de modo novo as imagens presentes na memória. Sobre essas imagens, Bachelard diz que são imagens “ tão solidamente fixadas na memória que já não sei se estou a recordar ou a imaginar quando as reencontro em meus devaneios”. O que podemos ver nessa imagem ? Que lugar é esse ? o que é isso ? A fotografia aqui perde o seu poder de identificar de modo preciso o objeto captado. O pacto entre imagem e referente se dissolve, deixando vaga a noção de realidade. Parece uma foto antiga. Parece uma imagem deteriorada. Parece uma casa. Parece até, alguns imaginam, ruínas vistas de cima. IMAGEM 2 : O ARCO Ao dissolver a certeza do referente, a fotógrafa Cláudia Leão cria imagens em que a incerteza se estabelece como linguagem construindo labirintos que lembram casas que já existiram, lugares que abrigaram os personagens dos retratos do primeiro ensaio. A fotógrafa entra no universo degradante das casas esquecidas e retoma o sentido de saudade, morte e melancolia. As imagens de Claudia Leão nos remetem a zonas obscuras da lembrança de uma cidade que sequer sabemos se existiu. As imagens não esclarecem, elas confundem, se desviam de uma identificação objetiva, porém atingem uma zona da percepção que é próprio ato de lembrar e de esquecer. O ato de imaginar nasce desse jogo de lembrança e esquecimento. IMAGEM 3: O PORTÃO As casas, aqui sugeridas, já não têm mais salvação. É como se a perda fosse irreversível. A imagem desta grade nos lembra uma espera no portão. Um ponto de vista tão banal que nunca enxergamos de fato essa cena, mas talvez ela se acomode ou se movimente na memória sem que a gente se dê conta dela. IMAGEM 4: O LEÃO NA PLATIBANDA São pedaços de coisas, imagens que provocam uma sensação de apagamento, são imagens de quase nada. Como se a alma das coisas que foram abandonadas não tivesse mais esperança. O que resta é uma saudade irreparável. São imagens produzidas para não lembrar, ou melhor, para ver o esquecimento, para enxergar o desaparecimento das imagens. IMAGEM 5: A FACHADA Ao desenvolver sua pesquisa de mestrado intitulada “Fotografia e Saudade”, a fotógrafa expõe alguns pressupostos que formam a base de sua visão sobre a imagem fotográfica. Ela diz: “O ato de fotografar é um ato de COMUNICAÇÃO 111
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ausência, de perda. Ele congela este tempo tão particular, que será em breve o agente a unir o presente, passado e o futuro em um só tempo contínuo de uma outra realidade .... Como nossa mente é porosa e propensa para o esquecimento, existe uma necessidade inexorável de lembrar. Num olhar desgarrado constatamos que o tempo passou e, assim, tentamos refazer olhares perdidos, rostos que ficaram, tentando reconstituí-los ao olhar uma fotografia. Por isso, de tempos em tempos, buscamos imagens mais queridas dentro de caixas cheias de fotografias, ou de álbuns desfeitos, para simplesmente lembrar através desses pedaços, dos restos, das saudades; e então nos reencontramos com um passado imerso de histórias futuras, sendo a imagem, um índice de reminiscências”. IMAGEM 6: O CANTO DE UM ARCO A fotógrafa atinge essa atmosfera sempre experimentando materiais num trabalho árduo com o tempo, envelhecendo filmes, manipulando papéis, inserindo outros materiais que não pertencem ao processo fotográfico, como na montagem da exposição “O Jardim dos Caminhos que se bifurcam” em que as imagens são vistas através de vidros porosos de utilizados em esquadrias e janelas de casas. São procedimentos que se distanciam da visão clássica da fotografia como retrato fiel do real. É nesse distanciamento que podemos nos aproximar do fenômeno arrebatador que é a dinâmica dos sentidos IMAGEM 7: O ARCO DENTRO DO ARCO IMAGEM 8: Janela dentro de portas. Ao penetrar no labirinto construído por pedaços de arco, portas, grades, ambientes em que o abandono reina, ficamos reconstruindo imagens de uma cidade que submerge, afunda, apaga na memória. O impacto que as imagens quase ausentes provocam no espectador nasce do inevitável pesar da lembrança, do abalo da perda e porque não de uma espécie de vivacidade da memória presente em imagens tão sombrias e vagas. Entendendo as imagens como signo visual, fotográfico, podemos compreender a potencialidade dessas imagens tão vagas e tomar como ponto de partida a própria essência do signo numa perspectiva da semiótica. A partir dessa perspectiva, podemos afirmar que a essência do signo está no poder ininterrupto de representar, de gerar sempre um outro signo em busca de uma completude que se ensaia num interpretante (que chamaria uma possível conclusão provisória), mas que por sua condição de signo segue ampliando as possibilidades de interpretação de um determinado fato, coisa ou imagem fotográfica para usar o caso em questão. O que quero dizer é que o signo não se esgota. Ele precisa expandir-se. É justamente por isso que ele não pode dar conta do seu objeto. Ele tem a
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liberdade de esconder o seu objeto e ao mesmo sugerir outras revelações para o seu espectador. As imagens sombrias, vagas de Claudia Leão não mostram claramente seus objetos, digo as casas. No entanto são imagens capazes de nos despertar com clareza para zonas obscuras da lembrança e da imaginação. Esse processo de interpretação em ficamos mergulhados nos possibilita a compreensão do conceito de semiose que Charles Peirce vai buscar na origem da palavra grega semeiosis para enfatizar o caráter gerativo do signo que se força sobre um outro num movimento infinito. Para Peirce semiose é uma “ação ou influência que consiste em ou envolve a cooperação de três sujeitos, o signo, o objeto e o interpretante.....” Podemos dizer então que a semiose é o motor do crescimento sígnico, da expansão do pensamento, da lógica peirceana do conhecimento. Lúcia Santaella esclarece essa dinâmica e funcionamento do signo em ação quando diz: “A ação do signo só se consuma no momento em que ele determina um interpretante, isto é, no momento em que ele gera um outro signo. Este novo signo interpretante terá como objeto tanto o signo do qual ele se gerou quanto o objeto original, passando ambos a compor um objeto complexo”. Essa incompletude do interpretante como signo, é que faz mover a engrenagem da semiose. Sempre estaremos às voltas com um signo que pede um interpretante justamente por prescindir de mais informações sobre o objeto. Estamos lidando com a vagueza do signo e o caráter inesgotável do interpretante. Parto dessa perspectiva semiótica, porque acredito que são modos de ver as imagens vagas, borradas, escuras, sombrias da fotógrafa Cláudia Leão. Imagens cujos objetos nos escapam sempre quando pensamos em uma identificação direta com o real, porém são imagens que mesmo nos mergulhando na sombra, nos colocam mais próximos dessa cidade apagada dos mapas e suas imagens submersas. Cidade essa que muito bem pode ser a nossa Belém ou uma entre as mil Atlântidas que povoam os nossos sonhos.
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CONFECÇÃO DE BONECOS DE FANTOCHE: UMA EXPERIÊNCIA ESTÉTICO-VISUAL COM CRIANÇAS E ADOLESCENTES EM SITUAÇÃO DE MORADIA RUA DA ÁREA DO ENTRONCAMENTO-PA
LÚCIA HELENA MARTINS DA COSTA*
RESUMO: Aborda sobre a experiência de atividades artísticas realizadas com crianças e adolescentes em situação de moradia no espaço da rua e drogadição. Descreve sobre a experimentação estético visual mediada pela pedagogia social de rua. Utilizando-se do processo de modelagem de bonecos de fantoches em papel marche que proporcionou uma experiência prazerosa de estética visual. O projeto Educação Social de Rua faz parte dos programas de política social da Fundação Papa João XXIII, órgão de assistência social do município de Belém-Pa. Paulo Freire embasa essa proposta pedagógica.As artes plásticas tornam-se instrumento facilitador no processo educativo e na construção de vínculo social, dado o caráter de desvendamento da práxis artística de uma experimentação estética visual, mediada pelos princípios da educação popular. Este trabalho é resultado de uma extensiva caminhada acadêmica na produção de conhecimento na relação entre a prática e a teoria. Assim, podendo servir como objeto de estudo e reflexão para todos que estejam interessados na área da infância, mais precisamente crianças em situação de risco pessoal e social. Caracteriza-se como relato de experiência, resultado do desenvolvimento de atividades artísticas como educadora de rua com vivência acadêmica em Arte-educação. O objeto de estudo (atividades artísticas) encontra-se em construção, pois o processo educativo no espaço da rua ainda é um aprendizado cotidiano, na qual a sistematização e confronto com outras experiências buscam contribuir significativamente para o aperfeiçoamento 114
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tanto no campo da prática como no teórico, municiando dados para se estabelecer critérios no processo de desenvolvimento da atividade artística no conjunto institucional, pois não se tem orientação de um técnico de arte educação, sendo feito pelo pedagogo. A formação acadêmica, com a atuação profissional, levou-me a refletir a sistematização do cotidiano do desenvolvimento do trabalho na produção de conhecimento na área da infância, na qual a ação metodológica ainda está sendo construída e as artes plásticas tornam-se um instrumento facilitador no processo educativo através do estímulo do potencial criativo e na construção de vínculo social, dado o caráter de desvendamento da práxis artística de uma experimentação estética visual, mediada pelos princípios da educação popular. O trabalho efetivou-se a partir de minha atuação profissional em junho de 1997, como educadora social de rua no Projeto Educação Social de Rua da Fundação Papa João XXIII, órgão municipal responsável pela política de assistência social no município de Belém. Caracterizado no atendimento de crianças e adolescentes em situação de risco pessoal e social que ocupam o espaço das ruas da cidade, possibilitando aos mesmos um processo de “desrualização”1, de forma protegida, segundo estabelece o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Esse relato de experiência divide-se em contextualização do Projeto Educação Social de Rua, concepção e estrutura, política pública voltada para infância como principio norteador do trabalho de assistência social e a oficina de confecção de bonecos de fantoche no desenvolvimento da atividade artística, numa análise prática/teórica, na relação institucional inserido, na qual a arte supera o processo da assistência social, na afirmação do seu fim em si mesma, quando proporciona o prazer estético. E na realidade da pedagogia social de rua, o que é mensurável na atividade artística se não o próprio prazer estético? O Projeto Educação Social de Rua integra o Programa de Atenção Integral a Crianças e Adolescentes em Situação de Risco Social e Pessoal, que é um dos programas do departamento de assistência social de atendimento de política social da Fundação Papa João XXIII-FUNPAPA, órgão responsável pela assistência social do município de Belém. Entendemos que o cotidiano do trabalho desenvolvido no espaço da rua tem como princípio a Pedagogia Social de Rua, através de alguns instrumentais metodológicos: a observação, a ‘paquera e o namoro pedagógico’ numa relação que gere respeito e conquista de afeto. Dessa forma Gracine (1999, p.194-197), define a Pedagogia Social de Rua como: A Pedagogia Social de rua é um trabalho, acima de tudo, de conquista e de afeto, que permitirá a permanecia dos meninos pelo ‘desejo’ de pertencerem, de serem considerados, de serem ouvidos, de poderem expressar seus anseios e angústias. (...) onde os princípios balizadores dessa pedagogia pressupõem coerência, pertinência e eficácia e são operacionalizados a partir da práxis, ou seja, crê-se que a criança e o adolescente são os sujeitos do processo educativo. COMUNICAÇÃO 115
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Com atividades educativas, como jogos lúdicos, promoção da leitura e confecção de bonecos de fantoche, além de oficinas de sociabilidade em espaço fechado, são processos de construção de vínculo social na perspectiva de transformação da sociabilidade, na valorização da subjetividade de cada criança e adolescente no resgate da história de vida, na construção do desejo de saída das ruas e encaminhamento institucional. O Projeto Educação de Rua, vinculado à FUNPAPA, tem como objetivo atender crianças e adolescentes em situação de rua, em risco pessoal e social, garantindo seus direitos sociais previstos no Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA, sendo desenvolvido no próprio espaço da rua. No momento da elaboração da oficina de confecção de bonecos de fantoches, realizada no período de agosto à dezembro de 1998, o Projeto Educação Social de Rua foi compreendido em três fases. A oficina seria realizada após a 1ª fase – abordagem individual in loco, que objetiva colher informações do indivíduo sobre os motivos de sua permanência no espaço da rua; Compreendendo, então, a 2ª fase – preparar o indivíduo para receber atendimento institucional através de atividades lúdicas, artísticas e esportivas, com caráter de sensibilização; na qual finaliza com a 3ª fase – atendimento institucional propriamente dito, o que inclui o encaminhamento a outros programas de assistência social. O Projeto Social de Rua está dividido em pólos de atendimento que são os locais onde há a maior concentração de crianças e adolescentes, na qual se tem um total de dois mil trezentos e vinte e oito (2.328) entre crianças e adolescentes ocupando o espaço público em Belém, no desenvolvimento de atividades econômicas e moradia (segundo relatório do Instituto Acertar publicado em 1998). Dentre esses, 3,3% vivem em situação de moradia e drogadição. A OFICINA CONFECÇÃO DE BONECOS DE FANTOCHES Partindo da intenção de ampliar a abrangência pedagógica do projeto Educação de Rua, surgiu a proposta da Arte-Educação no quarto bimestre de 1997, inicialmente como intervenção teatral no espaço da rua e oficina de confecção de bonecos de teatro de fantoches para potencializar os educadores de rua. É neste contexto que me insiro na área de educação de rua. A oficina confecção de bonecos de fantoches apresenta-se como um projeto pedagógico de experimentação estética visual para integrar a segunda fase do projeto Educação de Rua, assim como outros projetos que desenvolvam trabalhos de assistência social nas áreas da infância e da adolescência. Sem perder de vista o conjunto da proposta do projeto Educação de Rua, a oficina funciona como um instrumento facilitador do processo educativo, através do estímulo do potencial criativo, e na construção de vínculos sociais, dado o caráter de desvendamento da práxis artística: A expressão artística da criança é apenas uma documentação de sua personalidade (Lowenfeld, 1977). 116
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O desenvolvimento da criatividade está intimamente ligado ao uso cognitivo e emocional do executante. Nesse caso específico, por conta da situação de abandono e de violência da clientela, lidamos com estruturas emocionais e cognitivas bastante abaladas, o que compromete o desenvolvimento da personalidade enquanto sujeito de direito. A partir da aplicação de uma abordagem artística no processo de sociabilidade, torna-se necessário observar, analisar e fazer analogias entre a realidade vivenciada por crianças e adolescentes em situação de rua, e outras formas de convívio humano. A Arte nos capacita a entender melhor a vida, através da percepção dos símbolos sociais cotidianamente vivenciados nos valores, nos costumes, na cultura, como reconhecimento da identidade e do meio-ambiente a partir da inter-relação das esferas do conhecimento, da ética e da estética, expressa na trilogia Verdade-Bem-Belo, identificada por Platão. (Yoshiura, 19—, p.65-67). A oficina confecção de bonecos de fantoches como reflexo e idealização, representa a valorização do processo produtivo no momento do ver e do fazer, amparados numa contextualização dos elementos que compõem cotidianamente o universo das crianças no desenvolvimento da atividade artística, compreendendo a educação ambiental através do estímulo da percepção como instrumento na construção da cidadania. Tendo como objetivo geral da oficina: proporcionar experiências estéticas que possibilitem ao indivíduo a dinamização de suas relações com o seu ambiente, construindo um olhar mais perceptivo e sensível, na intenção de redimensionar sua condição de sujeito de direito. A EXPERIMENTAÇÃO ESTÉTICA VISUAL NA CONFECÇÃO DE BONECOS DE FANTOCHES A experimentação estética visual compreende a busca de expressões e representações da vida, a materialização da forma visual (Ostrower, 1995) dos bonecos de fantoches na característica do processo de modelagem na construção tridimensional da forma. No caráter estético a confecção de bonecos de fantoches nos proporcionou a reflexão da forma humana. Como os bonecos poderiam parecer pessoas? Essa foi uma pergunta que o grupo colocou em questão. Primeiramente a pesquisa do rosto humano: olhos, nariz, orelhas e boca. O processo de modelagem do rosto tornou-se um desafio para o grupo, que se manifestava de forma que seriam incapazes de realizar a confecção dos bonecos. Foi um momento onde o grupo se concentrou na investigação, na descoberta do processo de reflexão e de ação, refletir as possibilidades de se construir a forma visual do rosto humano e a ação de fazer, de confeccionar, de modelar. Neste momento foi pedido para observar a forma dos rostos dos colegas e desenhar, onde se desenvolveu a dinâmica de ‘retrato’, sendo que cada membro do grupo recebeu uma folha de papel suft em branco, dobramos em quatro, na qual cada parte se desenhava uma parte do rosto: os olhos, COMUNICAÇÃO 117
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o nariz, a boca e as orelhas. E no verso da folha desenhava-se o rosto inteiro, com todos os elementos, não mais fragmentados. Esse processo foi de desconstrução e construção da imagem do rosto. O objetivo dessa dinâmica foi entender a mensagem visual por eles já conhecida, o rosto humano, o seu próprio rosto e das outras pessoas levar em consideração o contato que temos com o universo de visualidade do mundo contemporâneo e a complexidade do discurso visual (Fusari e Ferraz, 1993), onde essa leitura leve a reflexão dialógica delas próprias e de sua condição social de crianças e adolescentes que fazem da rua não só um lugar de moradia, mas da condição de não ter como tomar um banho, de não trocar as roupas, de estarem sujos, maltrapilhos, e todas as mazelas da sobrevivência cotidiana da rua. Para o grupo entender a possibilidade de transformar lixo industrial, a garrafa plástica, na qual foram buscar na lata do lixo, o papel, água e cola branca, em bonecos com características humanas, não só na forma, mas como personagem, mesmo que de aparência feia, como eles mesmos diziam. A cada encontro em que a atividade se desenvolvia, durava em torno de duas horas, onde conseguíamos algo muito difícil, que é a concentração e dedicação. Como demonstração destas dificuldades, no relatório do dia 17 de novembro de l998 é relatado: Iniciamos nossa atividade na Praça da bíblia, onde pretendíamos reunir os meninos para levá-los à atividade de vídeo que aconteceria no Conselho Tutelar III, do total de seis meninos, apenas dois resolveram participar da atividade, os outros, apesar de nossa insistência, preferiram ficar cheirando cola na área. (relatórios de área em anexo). Apesar destes obstáculos, a equipe de educadores de rua desse pólo (turno manhã), estava composta por mim, Célia, Ivani e Marcos. Nas atividades artísticas fazíamos atendimento quase individual, ou mesmo nos era solicitado a atenção individual, dependendo do numero de participantes. Chegamos a atender até 15 crianças e adolescentes, moradores de rua e usuários de cola numa mesma atividade, entre meninos e meninas que na época denominávamos de perambulantes. Mesmo a equipe de trabalho sendo composta por educadores sociais, técnico (assistente social) e tendo o acompanhamento pedagógico pelo profissional da áreas, torna-se necessário o acompanhamento e orientação de um técnico de arte educação, já que a concepção de assistência social tem se caracterizado pelo desenvolvimento humano, e se instrumentalizado nas artes para atingir seu objetivo de inclusão social, “a arte não só precisa derivar de uma intensa experiência da realidade como precisa ser construída, precisa tomar forma através da objetividade”(Fischer, c1987). A atividade artística precisa ser sistematizada nesse processo da experimentação estética, na produção e criação. Compreendendo o desenvolvimento da atividade artística, neste caso centralizado no fazer artístico, no contexto dos procedimentos metodológico, a oficina confecção de bonecos de fantoches atingiu seu objetivo de proporcionar experiências estéticas quando os meninos ao 118 COMUNICAÇÃO
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deixarem de cheirar cola e de pedir dinheiro nos sinais para comprar cola para participar da atividade. Foi proporcionado o prazer estético, na qualidade libertadora, na qual “os laços da vida são temporariamente desfeitos, pois a arte `cativa` de modo diferente da realidade, e este agradável e passageiro cativar artístico constitui precisamente na natureza do divertimento, a natureza daquele prazer que encontramos até nos trabalhos trágicos (Fischer, c1987). Vale ressaltar que é nesse momento de estímulo do potencial criativo que se reforça a construção de vínculo social, no qual podemos ter informações imprescindíveis para o encaminhamento institucional, dada a condição de abandono dessas crianças e adolescentes não permitindo que tenham confiança e nem que seja revelado informações como seu próprio nome, endereço, nome de pai e mãe e até mesmo o motivo que levou para o espaço da rua, fazendo da omissão o seu maior segredo. Esses momentos de construção de vínculo social podem chegar a anos e não termos conseguido a verdade, pois o parâmetro dessa construção é a paciência histórica, instrumento da pedagogia que adotamos, a social de rua. A minha contribuição para o trabalho de equipe foi a confecção dos bonecos de fantoches, como instrumento facilitador desse processo educativo e de sociabilidade. Ao trabalho de Artes Plásticas de modelagem com papel marche foi dado uma continuidade interdisciplinar da atividade por outros educadores que trabalharam o teatro de fantoche a partir da produção de espetáculos com os bonecos produzidos e a promoção da leitura com a criação de estórias. CONSIDERAÇÕES FINAIS Dada a atual situação de exclusão e abandono social em que as crianças e adolescentes em situação de risco pessoal e social vêm enfrentando ao longo da história, o trabalho com as Artes Plásticas na confecção de bonecos de fantoche contribui como um processo facilitador da inclusão social e da construção da cidadania. A linguagem das artes plásticas e das artes de um modo geral constitui uma forma para melhor entender e refletir a vida no seu cotidiano, nos costumes e na cultura. O fazer – modelagem e manipulação do material artístico – tornou-se um desafio à produção do novo, da reformulação e modificação de uma realidade: o aparentemente sem valor é, nas artes plásticas, transformada em um produto fruto da subjetividade do homem. Nesta concepção, a confecção dos bonecos de fantoche é uma forma de incentivo à busca de novas perspectivas de uma vida mais digna. O trabalho de confecção dos bonecos de fantoche foi desenvolvido de forma prazerosa, atrativa, o que facilitou a descoberta pelas crianças e adolescentes das inúmeras possibilidades de se relacionarem com a arte. Além disso, o trabalho desenvolvido chamou a atenção para as várias potencialidades que podem ser trabalhadas nas crianças e adolescente em situação de rua, principalmente como mais um parâmetro de atuação
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dentro das políticas públicas insuficientes e, algumas vezes, ineficazes no trabalho com os mesmos. Com a confecção de bonecos, percebe-se que o educador social pode ter vários trunfos para trabalhar com as crianças e adolescentes em situação de risco, podendo se utilizar daquilo que mais se identifica ou que já faz parte de sua área de estudo, desde de que o direcionamento seja dado e ter clareza dos objetivos que se quer atingir com aquela atividade como, por exemplo, o objetivo principal do trabalho de educação de rua com esse público que é a saída dos mesmos do espaço da rua. Como educadora social de rua e hoje, licenciada em artes plásticas, efetivei uma micro-experiência, que não pretende ser uma receita para resolver ou minimizar o grave problema de situação de risco, mas sim, contribuir para a construção de políticas públicas (e na reflexão da práxis artística) que usem a arte como um dos instrumentos para a inclusão social e conseqüentemente a construção da cidadania e da dignidade para esse público que atendemos e que tenho convivido ao longo dessa rica aprendizagem de cinco anos. BIBLIOGRAFIA CONSULTADA
ALVES, José Miguel Nunes. As imagens de menores do espaço público em Belém nas folhas dos jornais “A Constituição” e o “Diário de Notícias” – 1980-1985. (trabalho de Conclusão de Curso). Belém: Universidade Federal do Pará, 1993. BRASIL. Lei nº8069 de 13 de julho de 1990.Estatuto da criança e do adolescente. Brasília: Senado Federal, 1996. FISCHER, Ernest. A necessidade da arte. 9 ed. Rio de Janeiro: Guanabara, c1987.254p. FUSARI, Maria Felisminda de Rezende, FERRAZ, Maria Heloísa Corrêa de Toledo. A arte na educação escolar. São Paulo: Cortez, 1993. (Coleção Magistério 2º grau. Série formação geral). GRACIANI, Maria Stela Santos. Pedagogia social de rua: análise e sistematização de uma experiência vivida. 3 ed. São Paulo: Cortez, 1999. (Coleção prospectiva, v.4), p326. LOWENFELD, Viktor. A criança e sua arte..São Paulo:Mestre Jou,1977. YOSHIURA. Desenvolvimento Criativo: uma proposta metodológica. In ARTEUnesp, SP, v.7, p. 65-77, 1991. MOREIRA, Maria de Fátima das Neves. A infância no passado brasileiro. São Paulo: Scipione, 1999, (500 Anos de Brasil: história e reflexões). p.128. OSTROWER, Fayga. Acasos e criações artísticas. 2 ed. Rio de Janeiro: Campus, 1995. 312p. RABELO, Leiliane Sodré. Estratégias de promoção da leitura para crianças em situação de rua da área do Entroncamento-PA. (Trabalho de Conclusão de Curso). Belém: Universidade Federal do Pará, 2000.
NOTAS:
* Educadora social de rua do “Projeto Educação Social de Rua” da Fundação Papa João XXIII da Prefeitura Municipal de Belém, do “Projeto Construção de um Centro Integrado de Serviços para Prevenção e Recuperação dos ‘Meninos e Meninas de Rua’ na Comunidade de Origem” da Associação Educacional e Filantrópica Padre Morando Marini; do “Projeto Bambini di Carta” da Organização de Ajuda Humanitária Amici dei Bambini, e Licenciada em Artes Plásticas pela Universidade Federal do Pará. 1 “A ‘rualização’ é conseqüência de um sistema econômico fundado na injustiça, que produz a marginalidade, a pobreza, o povo da rua das cidades e o trabalhador sem terra dos campos (...)” (GRACIANE, 1999, p. 12) 120
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DO CORTEJO DIONISÍACO À DANÇA CONTEMPORÂNEA: A DIVERSIDADE COREOGRÁFICA DAS ESCOLAS DE SAMBA DO CARNAVAL CARIOCA
MIGUEL SANTA BRIGIDA
‘’Do Samba a O Lago dos Cisnes, o brasileiro é bom de dança. Esta integra sua história desde que a terra se chamava Pindorama. Índios¸ negros e brancos continuam dançado neste país mestiço que cresce aos solavancos, em ritmos contraditórios”.Maribel Potinari
A primeira bailarina do Teatro Municipal do Rio de Janeiro – Ana Botafogo – com toda a sua virtuose e domínio técnico, nas sapatilhas de pontas, vestindo tutu, no melhor estilo da dança clássica, samba no pé, ou melhor, nas sapatilhas, no alto de um carro alegórico e é ovacionada na praça da apoteose do sambódromo do Rio de janeiro. (Desfile da escola de samba Estácio de Sá. Carnaval 92/RJ). Um grupo de quinze dançarinos negros, medindo mais de um metro e oitenta de altura, com perucas loiras da Xuxa e figurinos característicos da apresentadora, executam curiosa e dinâmica coreografia sobre patins. (Comissão de frente da mocidade, Carnaval 87/RJ). Uma Companhia de Danças profissional do Rio de Janeiro dança um belo minueto em cima de carro alegórico representando a dança nobre do salão da corte de D. João VI. (Salgueiro. Carnaval 2000/RJ). O grupo de dança de rua de Niterói com uma precisa coreografia no estilo street dance, dança entre pneus queimados, televisores quebrados, computadores, geladeiras velhas, sucatas de carro e muito lixo urbano representando o caos do homem contemporâneo. Os bailarinos se escondem entre as várias peças que compõem o carro alegórico. A força cênica da coreografia, em meio a muita fumaça é de um efeito surpreendente (Mocidade. Carnaval 2001/ RJ). COMUNICAÇÃO 121
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Cerca de cem travestis dançam freneticamente com seus figurinos exagerados e extravagantes. Corpos siliconados, faces deformadas, seios agigantados, etc... É uma dança de corpos grotescos de forte apelo ao sexo e a luxúria. (Grande Rio. Carnaval 2001/RJ). Várias pretas velhas com cachimbo na boca e dança com gestualidade e vocabulário próprios da umbanda, jogam búzios abrindo com forte misticismo o desfile da Beija flor.(Carnaval 2001/RJ). Quinze bailarinas clássicas atravessam nas sapatilhas de pontas a Marquês de Sapucaí representando o belo vôo do beija flor (Comissão de frente da Beija Flor. Carnaval 2002/RJ). Qual espetáculo contemplaria tantos estilos coreográficos? Que formato de espetáculo conseguiria apresentar tamanha diversidade de coreografias? Nenhum festival, nenhuma mostra, revelaria tamanha originalidade e multiplicidade de danças. E o que é mais surpreendente, é que todas se encadeiam para construir um grande espetáculo popular. Este painel de diversos estilos coreográficos só é apresentado no desfile das escolas de samba do Rio de Janeiro. São múltiplas as possibilidades de criação coreográfica que o carnaval brasileiro oferece, em especial a variedade de danças apresentadas atualmente nos desfiles das escolas de samba. A originalidade coreográfica dos artistas da dança que criam para as escolas de samba vem crescendo a cada ano. Os diversos estilos que analisaremos adiante, nos levam a discutir questões importantes que a dança contemporânea apresenta. Coreógrafos populares, sambistas, grandes nomes da dança clássica do Rio de Janeiro, consagrados coreógrafos da dança contemporânea brasileira misturam-se e harmonizam-se nessa diversidade coreográfica, cujo fenômeno de criação, entre outras inovações abole as fronteiras da cultura erudita e popular. A multiplicidade de processos e produtos coreográficos hoje revelados nos desfiles das escolas de Samba e a também multiplicidade de significados que elas apresentam dentro da narrativa em movimento que é a estrutura de um enredo de uma escola de samba, nos revela uma grande liberdade de criação. Se o carnaval enquanto rito de passagem e festejo popular, que promove a renovação da vida do homem é regido pelas leis da liberdade, nesse fenômeno de criação coreográfica, aqui investigado, a liberdade de criação se revela por excelência para os criadores de dança no Brasil. Podemos observar, entretanto, que nada é absolutamente original no fenômeno da criação artística. De onde nasce tamanha diversidade? Qual a origem dessa obra? Que traços anteriores, citações e referenciais atravessam os tempos imemoriais e nos chegam até aqui para promover e influenciar esta explosão dançante? Entender e tentar apontar elementos que foram desenhando esse percurso de construção das danças que hoje observamos nos desfiles das escolas de samba, nos leva obrigatoriamente a realizar um levantamento histórico da dança, e nessa trajetória, eleger alguns momentos mais relevantes que fazem conexão com o nosso estudo. 122 COMUNICAÇÃO
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Partiremos inicialmente para o levantamento das danças primitivas das grandes civilizações. Sabemos que desde o surgimento do homem sobre a terra, ele nunca parou de dançar. Estudos antropológicos e arqueológicos nos mostram que para o homem primitivo múltiplos eram os elementos indutores da sua dança: celebração das forças da natureza, mudanças das estações, festas da colheita, rituais de preparação para a caça, exorcizar forças maléficas, cerimônias de funerais e, em especial, os rituais de fertilidade. Na maioria dessas danças, observamos que um dos elementos mais marcantes era o sentido de ritual e festa nelas contidos e que vão ser comuns nas várias danças das civilizações subseqüentes. Dos rituais de fertilidade de Nakata, por volta de 5000 a.C, aos rituais egípcios que celebravam a primavera, ou ao culto da deusa Isis, o sentido de festa de coletividade se ramifica e se projeta para as sociedades futuras. É na civilização grega, entretanto, que a dança vai promover um dos momentos mais significativos de sua trajetória histórica e vai ser o marco da origem de teatro para os ocidentais. Nesta passagem, trataremos com maior pormenores este acontecimento para elucidar o nosso estudo. Na Grécia, a diversidade de deuses é marca de sua história. Os gregos cultuavam de forma especial seus deuses. Seus cultos eram sempre envolvidos de muitos mitos, lendas e curiosas cerimônias. Dentre os deuses gregos um destacou-se especialmente: Dionísio! Entre outros traços diferenciais, esse deus permitia aos simples mortais o desejo e s possibilidade de se tornarem deuses, de se transformarem no próprio Dionísio. Sua relação com o mundo terreno era, portanto, muito diferente dos demais deuses, razão de ser considerado um deus especial. Na morada dos deuses gregos, Dionísio era o deus do vinho, da fertilidade e da embriaguez. Seu culto era um ritual dançado de caráter apaixonado e com forte presença de canto coral. Dionísio foi o deus de maior envolvimento com a dança. Ditirambo foi assim denominado esse culto. No início, essa dança apaixonada era basicamente feitos só por mulheres, que em movimentos frenéticos chegavam ao transe e a possessão. Já com presença masculina esse culto tomou outra dimensão. Era composto de dois momentos, uma parte diária e uma noturna. Um dos momentos mais fortes era sacrifício de um bode, animal ofertado em honra à Dionísio. Como era forte a crença de que esse deus habitava em uma videira, esta era um dos significativos elementos desse ritual dançando. De dia, na primeira parte, colhiam as uvas e pisavam para produzir vinho. De noite, já com o vinho pronto, a dança evoluía para a embriaguez e o transe, momento esse, onde o sentido de transformação e metamorfose era incorporado aos seus possessos dançarinos. Na evolução desse culto, máscaras foram incorporadas e o sentido de transformação – do ser outra pessoa – progrediu para o sentido da representação que deu origem, mais tarde, ao teatro.
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O ponto alto de todo o ditirambo era o momento de sacrifícios do bode (para os gregos, traigo ) e o grito que ele produzia ao morrer, que para os gregos era uma espécie de canto ( oidia ) daí surgiu “O Canto do bode”, traigoidia, que evoluiu para tragédia, gênero máximo e glória do teatro grego. E dessa herança grega, do surgimento do teatro a partir da dança, que destacaremos alguns elementos importantes. Num primeiro momento, a dança promoveu e ampliou o sentido de ritual, de celebração e de festa coletiva, evoluindo para o surgimento de outra manifestação artística. Num segundo momento, a dança reuniu múltiplos elementos, como hino coral, a idéia de narrativa (quando os ditirambos narravam episódios da vida do deus) e a evolução para uma estrutura de cortejo, com uma dança que se desloca, que caminha. Além da presença de uma espécie de carro que carregava o deus e era conduzido pelos Sátiros. Não estaríamos aqui constatando um grande elo de ligação com a própria estrutura apresentada hoje pelas escolas de samba, em que se observa a sua estrutura como uma grande dança que se desloca, que caminha, como o cortejo dionisíaco? A própria idéia de narrativa, nele observada, não é nada mais que o enrêdo? E o carro do deus não é um carro alegórico? E em destaque, a festa coletiva da escola de samba não é um grande ritual dançando? Evoluindo na linha histórica do percurso da dança nas civilizações, encontraremos Roma sucedendo a Grécia. Em Roma toda a idéia e concepção do culto a Dionísio é transportada com substituições de suas figuras. Dionísio agora é Baco, com os mesmos atributos do deus grego, surgem as bacanais romanas onde a festa dos prazeres da carne e da bebida também são elementos dominantes. Reunindo aspectos espetaculares que nos clarificam elementos carnavalescos, encontraremos em Roma as Saturnálias, culto ao deus saturno também em estrutura de cortejo dançante com muitas máscaras, excessos sexuais e etílicos. “Só o louco e o bêbado são capazes de dançar”. Assim o imperador Cícero reprovava a dança. Destaque também para as Lupercais, que coincidentemente aconteciam em fevereiro, mês do carnaval brasileiro! Segundo alguns autores as Lupercais eram o próprio culto a Dionísio “Romanizado”. Seus componentes também eram mascarados, cantavam, bebiam e dançavam sem parar, com fortes gestos obscenos e grotescos. Para muitos historiadores esta é a origem do carnaval, segundo constata Maribel Portinari no seu livro, “Historia da dança”. A Historia mundial entra então na Idade Média. O homem atravessa um longo período de dez séculos classificado pelos humanistas como a idade das trevas. Os padrões culturais greco – romanos são abalados pelas sucessivas guerras e invasões. O poder do cristianismo triunfa. O teatro e a dança são fortemente perseguidos. Teatros foram destruídos. O teatro ganha então as ruas e as praças. Surge o espírito itinerante e ambulante. A dança resiste duplamente. Uma parte dentro das igrejas fazendo parte de algumas cerimônias cristãs, e a outra nas festas dos camponeses, das colheitas, etc... É justamente nesse período de “involução cultural” que a 124 COMUNICAÇÃO
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dança e o teatro ganham um de seus elementos mais poderosos e revolucionários: a rua. Ela surge como imposição, obrigação. Nesse período toda a produção em dança que corria paralela as produções oficiais se fortificam enormemente. É desse momento que destacamos a Dança Macabra ou Dança da Morte como um estilo de dança que nos deixou significativos elementos que concorrem para a construção coreográfica do carnaval. Durante a realização de funerais, com caráter religioso, as pessoas com medo da morte começavam a dançar freneticamente, batendo, contorcendo e chegando a contagiar grupos que passavam a acompanha-los pelas ruas, numa espécie de procissão conforme aponta Rodrigues. “O frenesi era contagioso e, aos poucos, um bando de pessoas estava como que em êxtase formando enormes procissões onde gritavam, cantavam e atiravamse no chão” 1. É interessante ressaltar, que o próprio teatro medieval absorveu a Dança Macabra. Simbolizando muitas vezes o pecado, a insanidade. Os atores primaram pelo exagero dançando com máscaras de caveiras diante da imensa boca de inferno. Nessa dança, vamos localizar um dos mais importantes pontos de conexão com alguns elementos que alimentarão a cultura carnavalesca que nesse momento se desenha mais fortemente e nos chega até hoje como uma espécie de background para as criações coreográficas, objeto desse estudo. Mais uma vez observamos uma estrutura de Cortejo quando a procissão em histeria coletiva se desloca pelas ruas em grandes distâncias, que culminavam com a morte ou a loucura. Mais relevante é o caráter grotesco aí revelado, onde corpos quase deformados pelo auto flagelação se jogavam no chão e chagavam a imitar animais. Esse corpo grotesco também aparece em outros carnavais medievais como elucida Bakhtin. “Essas imagens de corpo foram especialmente desenvolvidas nas diversas formas dos espetáculos e festas populares da Idade Média, festa dos tolos, charivaris, carnavais...”2 Chegamos no Renascimento. Aqui as dança como as demais artes voltam a cultuar os conceitos de beleza e harmonia dos padrões culturais greco romanos. A arte entra num período de franco desenvolvimento. A dança entra na corte. Começa a ganhar seus mestres e mecenas. A nobreza promove a dança de forma extraordinária, com sofisticadas apresentações, promovendo a esta arte as feições de espetáculo. Surge então o Ballet e posteriormente os Balés narrativos que nos chegam até hoje. É desse período iluminado da dança que as escolas de samba herdam com primor a mais bela de suas coreografias: a dança nobre Casal de Mestre Sala e Porta Bandeiras. É a típica dança do bailado nobre da Corte que influenciou inclusive figurino usado pelos casais na avenida do Samba. Chegamos no inicio do Século XX onde encontraremos os pilares do surgimento da Dança Moderna, que se opõe aos princípios filosóficos e estéticos e principalmente ao academicismo do período anterior, promovendo na dança um grande sentido de liberdade de criação, COMUNICAÇÃO 125
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descoberta de novos métodos, importantes escritas sobre a dança e muitas conceituações teóricas. Mais tarde surge então a dança pós-moderna que como todo importante movimento artístico aparece como contestação da dança antecedente. Rejeitando a dramatização excessiva, os fortes conteúdos psicológicos, os personagens muito caracterizados, a dança pós-moderna conceitua a dança privilegiando o movimento. Veio valorizar a criação coletiva, a livre experimentação, a quebra de regras para a pesquisa de novos métodos. A dança como a imensa variedade de possibilidades e improvisação. A interdisciplinaridade entendida como a mistura e combinação de varias artes, linguagens, estilos e culturas – aqui promovida, é a tônica dessa dança. Ela realiza o encontro da dança Pós-Moderna com a Cultura pósmoderna. E nesse contexto que encontraremos a dança contemporânea que hoje é apresentada nos desfiles das Escolas de Samba, entendendo-a como a dança cuja definição contém questões delicadas ao tentarmos alcançar reflexões sobre uma dança que está sendo produzida nesse momento, e qualquer distanciamento para tentar conceitua-la é tarefa que requer cuidado. É na dança contemporânea que vamos encontrar o entendimento mais preciso de diversidade coreográfica que nos referimos. É ela que define uma das grandes características da dança produzida hoje. É essa diversidade de estilos, técnicas, métodos, temas, e fundamentalmente produtos coreográficos que são apropriados pelos coreógrafos da dança contemporânea, que estão presentes, atualmente, dos desfiles das escolas de samba do carnaval carioca. Ópera popular, ópera de rua, maior espetáculo ao ar livre, ou maior espetáculo da terra, não importa a denominação, o que é importante é destacar e remarcar a Escola de Samba como um mega espetáculo de varias danças, que garante espaço para uma grande liberdade de criação para a arte da coreografia brasileira. REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA:
BAKHTIN, Mikhail. A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento, o contexto de Rabelais. Brasília: Edunb, 1993. CARLSON, Marvin. Teorias do Teatro. Estudo Histórico-crítico, dos gregos à atualidade. São Paulo: Funesp, 1997. PAVIS, Patrice. Dicionário de Teatro. São Paulo: Perspectiva, 1999. PORTINARI, Maribel. História da Dança. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1989. TINHORÃO, José Ramos. A Imprensa Carnavalesca no Brasil. Um panorama da linguagem Cômica. São Paulo: Hedra, 2000. TRINTA Joãozinho. Joãozinho Trinta e os analistas do Colégio. Rio de Janeiro: Aoutra Editora, 1985. RODRIGUES, Eliana – Tese de Doutorado. Leitura do cap. II
NOTAS:
1BAKHTIN, Mikhail. A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento, o contexto de Rabelais. Brasília: Edunb, 1993.
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ESPAÇO (INTER) ESPAÇO: UMA PASSAGEM VIRTUAL
CARLOTA CRISTINA DA SILVA BRITO
RESUMO: A proposta artística Espaço (inter) Espaço: Uma passagem virtual, em sua essência, apresenta as possibilidades poéticas dos meios tecnológicos, especialmente da linguagem da Realidade Virtual on line, para abordar eventos de natureza antropológica como a viagem xamânica indígena e seu rico conjunto simbólico.O estudo desse rito de passagem e seus conceitos, viabilizou a criação de um ambiente virtual artístico que articula elementos visuais e sonoros, inspirados na cultura indígena Kayapó, aos elementos poéticos que a linguagem computacional pode proporcionar às criações artísticas para a Internet.Assim sendo, a investigação buscou explorar intensamente os recursos tecnológicos de natureza digital, com a finalidade de gerar cenários sensoriais que representam reflexões a cerca dos conceitos que configuram o relacionamento entre o homem contemporâneo e o ciberespaço. O artista da Arte Telemática (Telecom Art), busca elaborar um repertório capaz de conduzir o espectador ao interior de mundos e caminhos sensoriais nas redes de comunicação, os quais permitem a produção e atualização de significados individuais e, sobretudo, coletivos. Assim sendo, a conexão de dispositivos computacionais com sistemas sofisticados de comunicação, possibilita a entrada e a convivência do usuário com realidades paralelas e híbridas que freqüentemente produz a alteração dos sentidos. Roy Ascott, lembra que a Arte Telemática oferece “uma porta de dados através da qual podemos passar para interagir diretamente na construção da realidade; muitas realidades, com muitos significados e várias trajetórias de experiências” (1997: 339), ou seja, a Telecom Art, no ciberespaço, propõe ambientes que podem ser construídos, atualizados ou modificados pelo espectador na medida em que ele acessa as informações do trabalho artístico proposto na janela do computador ligado à Internet. COMUNICAÇÃO 127
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A janela ou a porta, enquanto elementos arquiteturais, são evocados por muitos etnólogos como símbolo de passagem de um estado físico ao estado espiritual ou o contrário. Desse modo essa simbologia é discutida por vários autores que associam esses elementos arquiteturais a momentos de mudanças significativas na vida do homem. Paul Virilio, ao refletir particularmente sobre as transformações ocorridas entre a relação do homem com o espaço arquitetural, lembra sobre a substituição do espaço doméstico “pelo espaço de um ‘escritório-visor’ em que aparecem e desaparecem os dados de uma tele-informação na qual as três dimensões do espaço construído são transferidas às duas dimensões de uma tela” (1993: 58). Percebe-se, portanto, que a interface dos sistemas telemáticos evoca a “porta-janela” de comunicação com o ciberespaço que transforma nossa relação com o espaço físico. Para Van Gennep, por exemplo, a porta ou a soleira adquire um sentido de zona limiar, uma área que representa a comunicação com outros níveis de percepção, e conseqüentemente, a transformação e atualização do sujeito, enquanto detentor dos códigos desse processo. Para o autor, “atravessar a soleira” significa “ingressar em um mundo novo” (1978: 37). Mesmo explicitamente associadas a ritos de passagem na esfera material, a porta ou a soleira podem se tornar “símbolos de ritos de passagem espirituais” (1978: 38), melhor dizendo, essa zona limítrofe é a representação de que algo mudou ou vai mudar. Assim como o evento ou a ação de um rito representa, também, a “passagem” para uma outra situação. Eliade comenta sobre a necessidade do xamã submeter-se a uma passagem perigosa durante seu êxtase, o que implica em uma transformação espiritual e física. Eliade afirma que essa transformação durante o rito “é garantida pela sabedoria e inteligência do candidato a xamã” (1998: 524), e lembra que o sentido dessa “passagem”, que liga dois mundos distintos e está relacionada às dificuldades existenciais - pois quem consegue realizá-la terá superado a condição humana -, é a comunicabilidade com os mundos espiritual e material. Esse momento transitório de um rito de passagem torna-se especial na medida em que apresenta um conjunto de significados que revelam o potencial humano de gerar e transmitir conhecimentos sobre o patrimônio intelectual e cultural da humanidade. A rede Internet por sua natureza comunicacional é o mais recente meio que possibilita a expansão do saber humano em escala planetária por intermédio da atualização de informações e sentidos. As experiências artísticas nas redes telemáticas realizam a multiplicação de dados e conseqüentemente de informações que mudam, certamente, o modo como o homem tecnológico se relaciona entre espaços físicos e mundos eletrônicos. Ascott denomina esses espaços como Datafoam, ou “espaços de espumas de dados” que, por sua essência, expandem-se sem cessar,
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conformando o espaço onde o processo de criação nesses meios telecomunicacionias acontece. Baseado na comunicabilidade entre espaços físicos e eletrônicos, no caso aqui entre o real e o virtual das redes, procuramos criar a estrutura metafórica do web site “Espaço (inter) Espaço”1. Site inspirado nos principais conceitos relacionados ao rito da viagem xamânica, e que apresenta a interconexão entre os níveis de semi-imersão nos mundos apresentados. Essa idéia busca estimular, num primeiro momento, o contato entre o usuário e o repertório constitutivo desses cenários permeados de situações de envolvimento com o tema. A imersão e a interatividade nos ambientes, são conceitos norteadores dessa proposta que pretende levantar questões relacionadas a conceitos de transfor mação, limite e dor entre outros. A definição da interface entre os mundos virtuais e o mundo físico procura desenhar um tipo de comunicação de cada etapa de um percurso no ciberespaço, delineando ambientes interpenetrantes, ou seja, cenários que se complementam não somente pelo conjunto de imagens, mas pelo som e animações associados. Na primeira tela o espectador visualizará uma imagem desenvolvida com tecnologia Applet2 cujo título “Espaço (inter) Espaço”, introduz o usuário a um relato da viagem xamânica Kayapó coletado pelo antropólogo Darrell Posey durante sua estada na comunidade de Gorotire em 1986. Observamos que os efeitos do título em JAVA-applet, de fade-in e fade-out, remete à poética do movimento de entrada e saída do web site, do fluxo e refluxo da atualização das informações no meio telemático, que expressa um convite à entrada de um cenário interativo. Em seguida o usuário é conduzido ao primeiro mundo concebido na linguagem VRML (Virtual Reality Modeling Language). A entrada nos mundos evoca níveis de percepção e comunicação, onde poderemos entrar em contato com algumas imagens-símbolos da viagem do xamã Kayapó. Na realidade, cada etapa representa um marco ou a “passagem” de um mundo virtual a outro, configurando a metáfora da transformação caracterizada pela angustia e sofrimento. Durante essas “passagens” apresentamos o trânsito entre a linguagem verbal e não-verbal que o meio possibilita. Assim, textos sobre o significado de ritos de passagem, permeados de imagens imaginárias, são passados em movimento para que intensifique o interesse do usuário pela semi-imersão nos ambientes. O repertório desses cenários, além das imagens simbólicas que evocam algumas entidades mitológicas indígenas, é inteiramente inspirado na transcrição do rito e do mito de algumas viagens xamânicas. Nesse contexto, o espectador-usuário pode manipular espaços que mudam os sentidos, dotando-os de novos arranjos e transformando os elementos descritos na transcrição. Esse momento de trânsito corresponde ao evento de produção artística semelhante ao processo mitopoético, investigado pelos artistas e pesquisadores Julio Plaza e Mônica Tavares, o qual é caracterizado por “elaborar conjuntos estruturados, mas utilizando resíduos COMUNICAÇÃO 129
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e fragmentos de acontecimentos” (1998: 113). Assim, emerge uma estrutura por meio de eventos, que, no caso do web site em questão, dependente de um repertório constituído de formas, imagens míticas, cores, sons, animações e textos combinados que podem articular informações advindas da participação do espectador no cenário final de multiusuários. Essa vivência entre mundo imaterial de luz e o mundo real que a sociedade tecnológica nos proporciona, leva-nos a refletir sobre a dinâmica da fluidez möebiana pensada por Bachelard em que “o interior/exterior ‘vividos pela imaginação’” (Bachelard. 1993: 221) configura a “figura íntima” do xamã no momento do transe, da passagem do estado físico para o estado espiritual e durante o qual ele vivência uma forte experiência sensorial. No caso dos mundos do web site “Espaço (inter) Espaço”, o usuário é convidado a explorar todos os cenários poético-virtuais, na medida que interage com cada etapa da proposta artística apresentada. Assim, o usuário transita entre os símbolos das culturas indígena e ocidental, chegando a um mundo de Realidade Virtual final constituído por um sistema de multiusuários, o qual oferece a possibilidade de assumir um personagemcolaborador-xamã em um mundo digital povoado por elementos com forte carga simbólica. NOTAS:
http://www.arte.unb/alunos/posgrad/xama/espaco_inter_espaco.html Pequeno aplicativo criado na linguagem de programação JAVA, que pode ser executado em qualquer navegador da Web que seja compatível com esse sistema. (Lévy, 1999: 255). 1 2
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FAZ E NÃO FAZ DE CONTA : A CRIANÇA-INTÉRPRETE COMPREENDENDO O SEU CONTEXTO NA CENA
OLINDA MARGARET CHARONE
Este trabalho de pesquisa é desenvolvido na Fundação Curro Velho, criada em 1990, como uma instituição de direito público do Governo do Estado do Pará, vinculada à Secretaria Especial de Promoção Social cuja missão é de promover ações voltadas a criança e adolescente, objetivando o desenvolvimento da capacidade de expressão e representação através do processo sócio-educativo tendo como instrumento a arte e o ofício, na perspectiva de valores éticos e estéticos. Há 11 anos a Fundação vem trabalhando em uma de suas áreas de atuação, a coordenação de iniciação artística que envolve crianças de 5 a 12 ano de idade, desenvolve trabalhos interagindo as linguagens (cênicas, música, verbal e audiovisual) e segue o itinerário cultural da cidade As montagens dos espetáculos contextualizam a realidade de históricocultural da cidade e da criança. A proposta de pesquisa aqui exposta tem como temática o estudo e a compreensão do Auto de Natal inserido no contexto da criança que interpreta A forma cênica do Auto de Natal é aberta para dialogar como uma cena contextualizada. A criança que interpreta vive uma realidade igual a realidade relida no palco. Visto isso é que se pergunta de que maneira a criança intérprete compreende a sua própria realidade na releitura do auto natalino. O Auto de Natal é uma forma de espetáculo que articula todas as linguagens artísticas e abre-se par uma contextualização da realidade. A participação efetiva da criança-interprete compreendendo seu contexto no palco e o estudo do auto enquanto forma de espetáculo é objetos desse estudo.O
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Auto é uma forma teatral de enredo popular, com bailados e cantos, tratando de assunto religioso ou profano, representada no ciclo das festas do Natal (dezembro-janeiro). Desde o século XVI os padres jesuítas usavam o auto religioso, aproveitando também figuras clássicas e entidades indígenas, como poderoso elemento de catequese. As crianças declamavam, dançavam, cantavam, ao som de pequenos conjuntos orquestrais, sempre com intenção apologética. O Gênero popularizou-se. Outros autos vieram de Portugal. Com alterações como a chegança de cristãos e mouros. Outros foram formados com elementos portugueses, música, versos, assuntos, mas construídos e articuladas em todas as suas peças no Brasil, como fandango ou marujada. A origem erudita ligar-se-á, quanto aos miracles e mystères, estes saídos da liturgia das festas do Natal e Páscoa, e aqueles dos cânticos em louvor dos santos, materializações de cenas de suas vidas populares desde o século XII na França, Inglaterra, Itália, Alemanha etc. (Luiz da Câmara Cascudo, 1988, p.85). O desenvolvimento econômico da Amazônia, acelerado na Segunda metade do século XIX, propiciou a transformação dos folguedos populares, afetando o pastoril. A modificação mais notável foi, sem dúvida, a exigência de espaço apropriado para as exibições dos cordões folclóricos, ao abrigo da intempéries, das copiosas chuvas que caem nesse período do chamado inverno amazônico. A ramada, espécie de galpão para as festas, em geral cobertas de palha, sem paredes e chão de terra batida, parece ter sido a solução trazida pelos colonizadores para a Amazônia. Segundo o historiador Vicente Salles (livro Vicente Salles, p.318), as festas natalinas no Pará datam do início da colonização e foram introduzidos, como em toda parte, pelos missionários e pelas famílias abastadas que construíram belenzinhos, lapinhas ou presépios, diante dos quais costumava-se cantar loas ao menino. O pastoril começou, contudo muitas vezes dentro da própria igreja, ou diante de presépios e lapinhas domésticas, constituindo-se de curtas representações e bailados. Nesta época, grande número de cordões de pastorinhas percorriam as ruas com suas músicas tradicionais e, de casa em casa, onde havia presépio armado faziam a representação e suas danças. O trabalho de montagem dos autos com crianças de 5 a 12 anos e aproximadamente duzentas crianças desenvolve-se a partir de um tema sugerido pela coordenação de Iniciação Artística. Conta-se a história e depois se pede as crianças para que escrevam, desenhem, pite, fale tudo o que a história tenha lhes suscitado: lembranças, coincidências, conhecimentos, comparações, entendimento da história. Para a partir daí começar o processo de criação do espetáculo. Os instrutores e técnicos da Fundação realizam a pesquisa a partir desse material produzido, cada um dentro da sua linguagem (cênica, música e plástica). As crianças são divididas de acordo com os seus interesses, nos núcleos de teatro, dança,e música. Cada núcleo, trabalhando jogos, 132 COMUNICAÇÃO
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improvisações, construção de cenas, musicas e coreografias, ensaiam a sua parte, que são os retalhos cênicos futuramente costurados em um único espetáculo, isto baseado no que Peter Slade afirma “que é melhor usar menos espaço no começo. Agrupando a classe numa roda e deixando grupos de atores trabalhando por turnos no centro, conserva-se condição semelhante às da sala de aula. A roda pode se aumentada conforme se deseja e maior número de atores participam, até que todo o grupo possa participar no espaço do salão inteiro. Silêncio e controle se constroem assim, lentamente, embora o barulho seja muitas vezes necessário para o bom drama, em certos momentos de climax”.(Peter Slade, 1978,p.96). O Jogo dramático pode ser caracterizado como a entrada da criança na arte de representar, fase possibilitadora do surgimento das qualidades artísticas e criativas. A vida real cotidiana e a vida imaginativa fazem parte desse jogo. Crianças que vivem em ambientes perigosos repetem suas experiências de perigo em suas dramatizações. Por exemplo: crianças que vivem em periferia onde predomina a luta entre policias e bandidos têm como tema preferido esses conflitos. E procuram assumir sempre personagem de poder sobre o outro, por exemplo: os policiais e nunca os bandidos. Escolhendo o papel, a criança pode passar do papel passivo para o ativo, que é o mecanismo básico de muitas atividades lúdicas. Com isso acreditase que reduz o efeito traumático de uma experiência recente, e deixa o individuo mais bem preparado para ser submetido novamente ao papel passivo, quando necessário. É preciso estimular a imaginação da criança para descobrirem o que querem e como querem o seu mundo exterior. E ai que este ser da infância liga o real ao imaginário, vivendo com toda a sua imaginação as imagens da realidade. Bachelard em A poética do Devaneio diz que: “Lendo outras infâncias, minha infância se enriquece... e é no seu próprio devaneio que a criança encontra a suas fábulas. Então, a fábula é a própria vida”. Afirma também que o jogo de fantasia possibilita observar a origem dos devaneios na fase adulta. Acredito que a partir da poesia, dos contos, do desenho, da música, da expressão corporal se dá a descoberta dos diversos caminhos do imaginário na pessoa A leitura do real passa pelo imaginário. Nos devaneios da criança a imagem prevalece, pois a criança enxerga belo, enxerga grande. De acordo também com Jaqueline Held, que diz: E o que seria esta obra fantástica? Segundo a própria autora significa aquilo que só existe na imaginação ou na fantasia. Trabalhar uma obra fantástica com essas crianças é perceber que o fantástico reuni aspirações, necessidades, experiências que também trazemos em nós, em graus diversos, talvez obscuros e semi-ignorados, mas, no entanto, bem reais. A narração fantástica reuni, materializa e traduz todo um mundo de desejos. O sonho e realidade, imaginação e memórias se interpenetram.
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É preciso deixar a criança sonhar, desfrutar de suas fantasias, abusar do seu devaneio, pois é no que somos seres livres. Ah, como esses tempos vão longe. Do ponto de vista daquele que cria, a obra fantástica, assim como qualquer outro gênero literário, encontra sua fonte numa experiência cotidiana, com personagens conhecidas, acontecimentos vividos... O que é que vivifica o fantástico e vem lhe dar sua verdadeira densidade, senão a simples vida cotidiana, com seus problemas, sua comicidade, seus ridículos, sua mistura íntima de cuidados, e angústias, de pitoresco, de ternura? (1980; 28).
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HISTÓRIA E MÚSICA EM SANTARÉM: O COMPOSITOR WILSON FONSECA
MAVILDA JORGE ALIVERTI
RESUMO: Wilson Fonseca é um compositor que está inserido na realidade
musical e na História da Música do Pará. Santarém é uma cidade de expressão, tanto no Pará quanto na Amazônia, por ser um porto intermediário de parada obrigatória entre as duas capitais.A obra de Wilson Fonseca é amplamente divulgada em sua cidade, extrapolando seus limites em direção às capitais do Pará e Amazonas, tendo algumas obras dedicadas à banda, à música de câmera, e formações orquestrais,onde muitas permanecem inéditas.Fazem parte de sua vasta obra, inúmeras peças em caráter sacro. Obras que foram executadas na Catedral de Santarém durante ofícios religiosos por solicitação da igreja local. A presença de padres alemães contribuindo na sua formação musical, em especial no aprendizado do contraponto, é um ponto importante nesta história.Com esta pesquisa buscamos entender como Wilson Fonseca se projetou como compositor sem sair de Santarém; identificar se houve mudança no seu discurso musical após seus estudos de contraponto; e apontar sua contribuição musical como compositor no Pará.
FORMULAÇÃO DO PROBLEMA: Wilson Fonseca nasce e cresce em Santarém, cidade que se localiza no sudeste do Pará, na região do Rio Tocantins, porto importante na região por se encontrar a meio de caminho entre ascapitais do Pará e Amazonas. Inicia seus estudos de piano aos sete anos, tendo o pai como professor. Aos treze anos, ingressa emuma escola de música em Santarém, dirigida por padres alemães, onde estuda requinta e saxofone. Aos 15 anos começa a fazer parte de vários conjuntos musicais dirigidos pelo pai, sendo através desta experiência e de seu trabalho como copista, que Wilson Fonseca envolve-se com a composição.
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Data de 1931 sua primeira composição. Esta é uma valsa chamada Beatrice que o compositor executa pela primeira vez em sessão do cinema mudo, onde trabalha como pianeiro1 até o áudio chegar. Participava de bandas musicais, algumas delas iniciadas por seu pai, e por causa desta atividade, compôs inúmeras peças em caráter popular, com o objetivo também de renovar o repertório das bandas. Ao interar 24 anos, precisamente em 1935, devido à doença que o pai é acometido, assume o trabalho musical deste, dando, desta forma, continuidade à vida musical da cidade. Em 1945 é convidado para ser pianista da orquestra de câmara fundada e dirigida pelo Frei Feliciano Trigueiro (...) “Dele recebe (...) orientação para a regência coral e a composição segundo os cânones da música sacra”.(SALLES,V. 1985, p. 209) Quando Frei Feliciano é afastado do cargo, Wilson Fonseca continua seu estudo sozinho até conseguir comunicar-se com Frei Pedro Sizing compositor sacro e diretor da revista Música Sacra de Petrópolis. Com o falecimento deste, passa a estudar contraponto com um missionário alemão chamado Frei Alberto Kruse O. F. M2. que chega em Santarém depois de vários anos nas aldeias mundurucus. Esse contato é breve, período durante o qual praticou contraponto e polifonia coral. “Kruse era amigo e correspondente do dr. Heinrich Lemacher, professor da Academia de Música da Colônia (Alemanha), organista de grandes recursos”. (SALLES,V. 1985, p.211) Dois anos após a morte de Frei Alberto Kruse, em 1958, Wilson Fonseca passa a se comunicar por carta, com o professor doutor Heinrich Lemacher. Essa correspondência era feita via correio, e saíam de Santarém de barco, levando em torno de três meses para chegar ao seu destino, e outros três meses para chegar a resposta. Desta forma, Izoca se correspondia com o professor Lemacher, mais ou menos duas vezes por ano, o que corresponderia a duas aulas de composição por correspondência a cada ano. Fonseca recebe deste professor um convite para continuar o curso naquele país. Convite este recusado por motivos alheios à vontade do músico. Data de 1958 a peça “Ecce Sacerdos Magnus” escrita para quatro vozes mista e órgão,impressa em janeiro deste mesmo ano pela gráfica Irmãos Vitale, e executada pelo Coro do Seminário Franciscano de Mayslake nos Estados Unidos, “por ocasião da solenidade de sagração episcopal de D. Tiago Ryan, Bispo Prelado de Santarém” (SALLES,V. 1985, p.210). As composições de Wilson Fonseca estão bem estruturadas dentro do tonalismo, sistema que, mesmo em sua época, já se encontra ultrapassado tanto na Europa quanto no sudeste do Brasil, porém, que ainda faz parte do contexto musical de Santarém. Seu trabalho musical destina-se a atender a cidade em suas necessidades artístico-musicais que vão de comemorações, bailes sociais, eventos folclóricos, culturais, cívicos, ao teatro, repertório para bandas e coros, etc. A criação de repertório específico para ofícios da
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Igreja à música popular; da criação de música para folguedos populares à hinos de escolas da cidade. Indo do profano ao religioso, do popular ao folclórico e ao erudito, este é um dos ofícios da Igreja à música popular; da criação de música para folguedos populares à hinos de escolas da cidade. Indo do profano ao religioso, do popular ao folclórico e ao erudito, este é um dos motivos que o levam a ser autor de um acervo numeroso. Pelo exposto, percebe-se que no interior do Pará, em local geograficamente isolado, um compositor, durante o século XX, produziu certa obra de expressão cultural. Mas o que propicia a projeção da música de Wilson Fonseca sem que ele tenha saído de Santarém? Além disso, isolado e provavelmente aproveitando os contatos com outros músicos, em que medida o conhecimento das regras de contraponto poderiam ter influenciado sua linguagem musical? Ou ainda, de que forma sua obra contribui para a expressão musical do Estado do Pará? OBJETIVOS 1 Entender como Wilson Fonseca se projeta como compositor, sem sair de Santarém. 2 Identificar possíveis mudanças no discurso musical em obras de caráter popular pós seus estudos de contraponto. 3 Apontar contribuições musicais de Wilson Fonseca como compositor no cenário da música paraense. JUSTIFICATIVA Sendo Wilson Fonseca um homem expressivo em sua cidade natal, tendo conseguido extrapolar fronteiras, é personagem que merece ser estudado, na tentativa de se definir em que medida tal projeção é relevante para a cultura no Pará. Além disso, possuidor de catálogo extenso, é possível se perceber a priori, fases diversas na sua composição popular. HIPÓTESES O contato com Alberto Cruzzi foi significativo para a obra de Wilson Fonseca. Tendo em vista a produção musical anterior deste compositor, é possível distinguir cronologicamente dois momentos iniciais em sua obra. O primeiro momento quando escreve para formações musicais populares – fruto da atividade musical nos conjuntos dirigidos por seu pai – e o segundo momento, títulos de música sacra contemplando situações específicas da liturgia. Através dos dados biográficos colhidos preliminarmente, sabe-se que Fonseca tem contato e amizade com o Frei Feliciano Trigueiro da prelazia de Santarém, que o teria motivado a compor peças para a igreja.
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Sabe-se também,que tal frei sendo músico, teria ensinado regras de contraponto para o amigo paraense. Em seguidapassando a se comunicar com Frei Pedro Sizing em Petópolis, tem uma de suas obras aprovadas pela Comissão Arquidiocesana. Posteriormente, passa a ter aulas com o Frei Alberto Cruzzi, com positor alemão, em Santarém e com a morte deste se corresponde com um douto em composição na Alemanha. Em que medida se deu a apreensão de tais conhecimentos é uma questão que pode ser averiguada pela análise de algumas obras de estilo popular do compositor. .PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS Até a conclusão, este trabalho passará por algumas fases. Em primeiro lugar será feita uma pesquisa bibliográfica para a fundamentação teórica. O próximo passo será a coleta de dados através de entrevista com o compositor, seus filhos e pessoas que possam contribuir para esta pesquisa. Estas entrevistas serão gravadas e terão roteiros com perguntas abertas. Em seguida, serão feitas análises documentais sendo os dados tratados qualitativamente, relacionando as entrevistas, os dados coletados na análise documental e pesquisa bibliográfica. Por fim, será feita a análise e comparação de uma amostragem de gêneros populares, editados no III volume da Obra Musical de Wilson Fonseca (1984) compostos antes e depois do início dos estudos de contraponto. DELIMITAÇÃO DO UNIVERSO A música popular de Wilson Fonseca editada no III volume de sua Obra Musical (1984) :Valsas, Modinhas, Toadas, Tangos e Canções BIBLIOGRAFIA
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O MODERNISMO DE BATINA: FLORÊNCIO DUBOIS E A CRITICA DE ARTE NO PARÁ DOS ANOS 20
FABIANO BASTOS MORAES
RESUMO: Durante as primeiras décadas do século XX, os círculos intelectuais paraenses estiveram agitados com os debates em torno do modernismo e das vanguardas artísticas européias, brasileiras e latino-americanas. Nessa polêmica, sobressaiu o nome de um sacerdote francês, radicado em Belém, e que se tornou um dos principais interlocutores da arte moderna, comentando a recepção do modernismo em Pernambuco, com Joaquim Inojosa, e no Pará, com Bruno de Menezes. Sua obra, porém, desvela um largo campo de critica de costumes, entrecruzando arte e moral, literatura e religião, política e espiritualidade. Nesta comunicação, analiso o processo de leitura da crítica de arte como crítica de costume na obra de Dubois, como parte de um projeto mais amplo de reflexão sobre as mudanças por que passava a sociedade brasileira.
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AS FESTAS DE SANTO E O DABOKURI: MÚSICA E IDENTIDADE INDÍGENA EM SÃO GABRIEL DA CACHOEIRA, AM
LÍLIAM CRISTINA DA SILVA BARROS.1
INTRODUÇÃO: Esse artigo é fruto de trabalho de mestrado realizado entre os anos 2001 e 2003 e pretende demonstrar um contexto de mudança cultural de onde emergem mecanismos de manutenção da identidade indígena através dos repertórios musicais das festas de santo que ocorrem no município de São Gabriel da Cachoeira, Am. 1.UM PANORAMA SOBRE A CIDADE DE SÃO GABRIEL DA CACHOEIRA
Às margens do Rio Negro em seu alto curso, a cidade de São Gabriel da Cachoeira assiste à quebra das corredeiras Buburi e Curucuí que contornam a ilha Adana. Para os índios, o som das corredeiras durante a cheia do rio traz prenúncios de morte ou coisa ruim, dependendo da qualidade do barulho. Paradoxalmente, à frente das corredeiras, se estende uma vila de casas destinadas a militares que zelam pela defesa do território brasileiro. Situada nas fronteiras do Brasil com a Colômbia e a Venezuela, São Gabriel da Cachoeira vem sendo incorporada às novas políticas de guarda nacional; e grandes levas de militares, vindos principalmente do sul e sudeste, têm se instalado de forma transitória ou não na cidade. Contudo, a militarização das fronteiras constitui uma frente mais ou menos recente na história da cidade. Vinculada à história da Amazônia como um todo, a área do Rio Negro fez parte do processo de colonização da coroa portuguesa e, com ela, todas as frentes de exploração comercial, ocupacional e missionária.
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A presença européia no Rio Negro está vinculada ao processo de ocupação lusa no interior da Amazônia, caracterizada pela construção de fortes e acampamentos de segurança e tentativas de estabelecimento de missões desde o século XVII com a viagem de Pedro Teixeira subindo o Rio Amazonas. Após este período colonial expansionista, o extrativismo da borracha impulsionou o crescimento comercial da região durante o final do século XIX e início do XX. Em 1938, São Gabriel adquiriu foro de cidade e grande prestígio comercial, seguido por um declínio e diversificação das atividades. A partir da década de 70, uma grande leva de migrantes nordestinos (principalmente do Rio Grande do Norte e Ceará) se alojou na cidade em função da construção da estrada BR 307. Por caracterizar-se como uma zona de fronteira, é altamente militarizada por um contingente sempre renovado, mas que constitui uma das faixas populacionais do estrato social urbano. Em meio a todos estes acontecimentos, os povos que aí habitavam desde tempos imemoriais foram sendo transformados pelas ideologias de cada época, moldando-se e adaptando-se às novas e diversas situações. Ao contrário de suas antecessoras, carmelitas, franciscanos e jesuítas, que não obtiveram grandes êxitos na evangelização do vale, a partir de 1914, as missões salesianas se estabeleceram de forma mais sistematizada e eficaz. Desde então, estas missões, estabelecidas em pontos estratégicos nos principais rios tributários do Rio Negro, exerceram a hegemonia no campo político, econômico e religioso da região, obviamente contando com alianças necessárias como o governo e a aeronáutica. Atualmente, porém, a presença militar na região vem se rivalizando no controle da região. A população de São Gabriel da Cachoeira é constituída em sua grande maioria de índios “descidos”2 e descendentes de índios, todos oriundos das diversas etnias habitantes do Vale do Rio Negro. Mecanismos de manutenção de identidade foram desenvolvidos numa tentativa de não homogeneização do espaço social urbano, sendo a língua o principal sinal diacrítico além de demarcações de fronteiras geográficas (incluindo pontos do rio, mata, fundo do rio) e atividades nas quais os habitantes indígenas mais se ocupam como zelador, servente, faxineiro etc. Contudo, os parâmetros de ordenamento ideológico e moral vêm sendo gradativamente substituídos por parâmetros associados à civilização, modernidade e ao desenvolvimento, próprio do meio urbano. Assim, nesta situação de “contato”, a população indígena de SGC experimenta modelos sócio-econômicos distintos: de um lado o trabalho na cidade, no setor público ou privado, de outro a manutenção da roça, do artesanato e dos valores culturais tradicionais de uma maneira geral. O panorama lingüístico da região revela uma grande diversidade, sendo o nheengatu, ou língua geral, a língua franca, falada por quase todos os habitantes da região e mais difundida, seguida pelo tukano e, por fim, as línguas próprias de cada etnia, faladas individualmente ou em grupos domésticos. O português e o espanhol seguem sendo línguas obrigatórias e faladas amplamente. COMUNICAÇÃO 143
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2. AS FESTAS DE SANTO NO ALTO RIO NEGRO Tal como se verifica em toda a Amazônia, são realizadas festas de santo durante os períodos festivos do calendário litúrgico da igreja católica, assim chamadas por acontecerem, dentro do calendário católico, às datas consagradas aos santos. No vale do Rio Negro estas festas também são realizadas, seja pela iniciativa da própria igreja ou dos moradores locais. Estas festas vêm sendo modificadas em função das transformações impostas pela urbanização pelas quais vem passando a área do Rio Negro, especialmente a cidade de São Gabriel da Cachoeira, que hoje conta com infra-estrutura como agências de bancos, correios, hospitais, comércio, rádios repetidoras e com programação local, porto e outras coisas próprias de cidade grande. Segundo Knobloch (1989) e depoimentos de habitantes indígenas da região, estas festas aconteciam, quase sempre, em locais que durante todo o ano ficavam desabitados e que somente viam movimento durante o período festivo. Atualmente, devido ao fato de os moradores indígenas das cidades trabalharem em setores públicos e privados, as festas tiveram de ser realizadas na própria zona urbana. Em função disso, novos mecanismos de organização foram articulados, sendo a territorialidade definida por bairros (que não definem etnias), com seus respectivos presidentes responsáveis para que se realize a festa. O período de duração das festas também foi modificado, se antes duravam cerca de dez a quinze dias, agora, na zona urbana, duram cerca de três dias. O período de realização das festas de santo está vinculado ao calendário litúrgico cristão, coincidindo com as datas dos santos católicos mas, mesmo assim, se estabelecem numa esfera de orientação tradicional vinculada aos ciclos das chuvas e da natureza em geral, fato que se reflete principalmente nas ofertas para a festa e no repertório profano de danças. Apesar de terem origem certa na liturgia católica romana, as festas de santo do Rio Negro são desvinculadas da diocese salesiana, de fato, algumas delas não acontecem na igreja mas num salão construído para fim especificamente. De uma maneira geral, o catolicismo rio-negrino representa uma superestrutura que comporta diversas outras lendas e práticas de origens ameríndias e, segundo Galvão (1948), ibéricas. A estrutura das festas e a base religiosa local como um todo, revela a interação de sistemas simbólicos referenciais distintos, o católico e o tradicional indígena. Em virtude das diversas frentes ideológicas (representadas pelos militares, protestantismo, universidade, pastoral da juventude) às quais são expostas as sucessivas gerações indígenas nas cidades, a aceitação ou repúdio às festas de santo se dá de maneira diversificada, a depender da natureza da frente ideológica. As festas de santo, tal com foi referido acima, revelam uma cultura nova resultante da amalgamento de aspectos litúrgicos cristãos e elementos tradicionais indígenas. Ana Gita Oliveira (1995:83) sugere que tais festas representam os ritos de Dabokuri e Jurupari transformados, remodelados e re-significados. Nunes Pereira (1989) menciona a importância do Dabokuri 144 COMUNICAÇÃO
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para a cultura dos índios do vale e da influência sobre as outras práticas inseridas nas sociedades rio-negrinas. Tanto na estrutura espacial e temporal da festa quanto na concepção de organização de repertórios, percebe-se a base conceitual tradicional indígena adequada aos padrões de espaço, tempo e liturgia cristãos. 3. ESTRUTURA DAS FESTAS DE SANTO As festas de santo costumam acontecer três dias antes do dia do santo. Assim, a festa de Santo Alberto começa no dia quatro e termina no dia sete, o dia de Santo Alberto. Como já foi referido acima, a estrutura se repete em todas as festas (Santo Antônio, São João, São Pedro e Santo Alberto), tanto a organização do evento quanto o repertório não tendo cada santo um repertório característico, os santos, no entanto, apresentam particularidades em outras dimensões que ainda não foram delineadas neste trabalho por não ter sido enfocadas como objetivo da pesquisa. A única exceção é a festa do Divino, que apresenta repertórios e práticas distintos das outras festas. Os bairros, como unidade territorial, se apresentam enquanto agente aglutinador de pessoas de origem, história e convivência comum e de longa data. Cada bairro tem seu presidente, responsável não só pelas atividades culturais, mas por tudo o que diz respeito aos moradores dos bairros, à frente da associação dos moradores de cada bairro. As festas de santo se inserem neste contexto e cumpre uma função de estreitamento de laços e compartilhamento de expectativas, tristezas e alegrias. A organização da festa pode ficar a encargo do presidente do bairro mas pode, também, ser levada por uma pessoa mais velha, respeitada e sabedora das normas e leis das festas e que possua uma imagem. O organizador da festa conta com o apoio de outros componentes, os chamados festeiros, como também é chamado o organizador da festa. O padre Knobloch faz referência ao fato de que os responsáveis pela festa são geralmente os donos do santo (da imagem) o que também pode acontecer, estas imagens podem ter sido herdadas de pai para filho, doadas ou até compradas. A festa conta com diversos componentes: os festeiros, os mordomos, os bandeireiros, os juízes, o tamborineiro, as cozinheiras, os artilheiros, o padre ou catequista (que reza a ladainha), os esmoleiros, os promesseiros, o mascarado, o mestre-sala e os marinheiros. Cada um tem uma função específica e prenhe de significado. Durante os quatro dias de festa, momentos de reza e lúdicos são alternados tendo como eixo definidor as horas litúrgicas de seis da manhã, meio dia, dezoito horas e meia-noite. Nestas horas reza-se as ladainhas e beija-se as fitas do santo homenageado. Entre as rezas são revezados momentos de roda de danças, bebidas e comidas. Procissões acontecem em momentos específicos e com um cortejo definido, sendo este composto pelo santo, tamborineiro, bandeireiro, mordomos e os homenageados do dia. As situações em que este cortejo acontece são: quando o santo é levado da COMUNICAÇÃO 145
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casa do “seu dono” para o salão ou e beija-se as fitas do santo homenageado. Entre as rezas são revezados momentos de roda de danças, bebidas e comidas. Procissões acontecem em momentos específicos e com um cortejo definido, sendo este composto pelo santo, tamborineiro, bandeireiro, mordomos e os homenageados do dia. As situações em que este cortejo acontece são: quando o santo é levado da casa do “seu dono” para o salão ou para buscar os homenageados do dia. No bojo da estrutura das festas de santo, as categorias sagrado e profano ordenam os eventos que a circunscrevem segundo a lógica da igreja oficial. Dividindo-se a festa em dois momentos principais que permeiam os demais eventos - a reza e o baile - torna-se possível uma discussão acerca da pertinência da divisão dual entre sagrado e profano frente à concepção êmica. As festas de santo são percebidas como um todo dentro da esfera do sagrado ainda que, dadas as transformações sociais pelas quais a sociedade vem passando, as concepções de sagrado e profano referentes às festas venham sendo re-significadas. No entanto, inseridas no contexto do Dabokuri, ainda fortemente arraigado sobretudo nos mais velhos, o lúdico e a contrição constituem elementos complementares e não conflitantes. 4. AS FESTAS DE SANTO EM SÃO GABRIEL DA CACHOEIRA São duas as zonas de realização de festas de santo em São Gabriel da cachoeira, o antigo bairro da Praia, situado na margem da entrada da cidade e o bairro Dabaru, recente, constituído de índios descidos das cabeceiras dos rios recentemente em busca de trabalho e estudo para os filhos. O bairro da Praia, em virtude da antiguidade dos moradores e das festas que lá se realizam, foi escolhido como centro dos estudos sobre festas de santo, especialmente a de Santo Alberto, que ocorre no mês de Agosto. O bairro da praia é constituído de cerca de setecentas pessoas3, moradores que lá vivem há cerca de trinta ou mais anos. A geração mais antiga fala o nheengatu, português e sua língua natal, sendo que os que moraram ou são oriundos da Colômbia falam o espanhol. Na rua que beira a margem do rio, diversos estabelecimentos comerciais de pessoas de fora da região são fracamente disponíveis à população de uma maneira geral devido aos preços altos. Os habitantes indígenas mantém roças nas proximidades ou na outra margem do rio, prática ameaçada pelas constantes incursões do exército nas zonas de mata o que obriga os índios afastarem-se cada vez mais para fazer roças. Muitos índios recentemente descidos não conseguem fazer roças por conta disso e vivem marginalizados. Galvão (1976) numa descrição das festas de santo de Ita (nome fictício de uma comunidade do médio Amazonas), caracteriza as irmandades como associações desvinculadas das autoridades eclesiásticas e sem o apoio destas. As irmandades de Ita são consideradas profanas pela igreja oficial, que criticam as festas de culto ao santo pelos bailes e comedoria que constituem 146
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a parte “profana”. Em São Gabriel da Cachoeira o mesmo conflito permanece, com a diferença de não se atribuir o nome irmandade e sim comunidade, vinculada à presidência do bairro e do clube. Atualmente, em função da politização das sociedades indígenas como um todo, têm surgido diversas outras aglomerações, associações que tendem a conflitar com a estrutura atual. O repertório das festas de santo está divididos em três categorias: reza, caminho de santo e dança. O repertório de reza consiste em um aglomerado de ladainhas cantadas em latim e português e executadas nos momentos de contrição da festa, antes da beijação do santo. Outro repertório, o de caminho de santo, consiste em músicas que são cantadas na presença da imagem, podem ser cantadas com acompanhamento do tamborino ou da flauta mimbí. As danças constituem um repertório lúdico, cujos cantos são em língua geral e acompanhados pelo tamborino com temas de animais das estações. São danças miméticas como é muito comum na Amazônia e acontecem durante a roda de correrê, ou corrida de bebidas (prática herdada dos Dabokuris). Sobre os músicos das festas de santo, estão divididos em duas categorias: os músicos que cantam o repertório do santo e os técnicos de som, donos dos aparelhos de som. Os primeiros constituem uma classe extremamente respeitada, geralmente são pessoas de idade, sempre do sexo masculino, que gozam de prestígio junto à comunidade devido à sua sapiência. Não raro desempenham outras atividades como benzendor ou presidente do bairro. A transmissão do repertório é feita sob muitos cuidados e o aprendiz deve ser uma pessoa que apresente certas características específicas como extremo interesse, respeito e dedicação pelas coisas do santo. O interesse pela sabedoria dos mais velhos é algo que também se requer mas nem todos que se interessam podem ser integrados ao corpo intelectual da tradição deles, existe algo que determina a escolha. É possível, por exemplo, que alguém que se aproxime de reuniões e conversas dos mais velhos termine por silenciá-los quando da sua chegada, ainda que esta tenha sido motivada por vivo interesse. Os mais velhos têm seus critérios de escolha. Os segundos são pessoas contratadas e pagas pelos membros da comunidade para fazerem soar suas caixas de som em volume altíssimo, tocando gêneros como “brega”, “lambada”, “forró”. 5. OS REPERTÓRIOS MUSICAIS O repertório de rezas é conhecimento específico do rezador, quase sempre do tamborineiro. Ele, o rezador, possui o conhecimento não só da estrutura musical como do corpo filosófico que envolve este repertório e, de fato, exerce uma liderança religiosa sobre a comunidade, e representa a própria possibilidade de festa. Em meio a tanta complexidade, a transferência deste conhecimento requer um perfil adequado de aprendiz, sendo esta função reservada aos homens. Dentre outras coisas, as mais explícitas são: o respeito pelas coisas sagradas COMUNICAÇÃO 147
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e pelos velhos; inteligência e perspicácia para a música; disponibilidade de tempo e vontade de aprender; espírito de liderança religiosa na comunidade; comportamento religioso exemplar aprovado e legitimado pela comunidade; boa memória e voz adequada. Aprende-se as rezas, além da participação direta nas festas, com entrevistas com o rezador e ouvindo os velhos em suas reuniões. O aprendiz está sempre entre os velhos e isto faz toda a diferença porque não são todos os que são admitidos nestas conversas. Muitas vezes os velhos estão em suas reuniões, mais ou menos informais, considerando assuntos importantes sobre festas de santo ou algo do gênero e, ao aproximar-se alguém não desejado, rapidamente cessam o assunto. O repertório é estruturado no esquema solista – coro, correspondendo às categorias nativas de reza – jaculatórias, em toda a sua extensão. É constituído por oito partes: 1.Introdução; 2.Pai-Nosso, Ave Maria e Glória ao Pai cantados; 3. Ladainha de Nossa Senhora; 4.Salve Rainha; 5.Oferecimento; 6.Virgem Soberana; 7.Bendito; 8.Despedida. Todas as partes são fixas com exceção da ladainha que deve ser repetida quantas forem as graças alcançadas, como pagamento destas na noite dos promesseiros durante a festa ou em pagamento de promessa em ocasiões outras, fora do período festivo. As rezas acontecem dentro do clube, sob luzes fracas de lâmpadas mais ou menos escondidas pelas bandeirinhas penduradas nos tetos e de velas, seguras nas mãos dos participantes. Estando os rezadores em frente ao altar e de costas para as pessoas, estando todos dirigidos para o santo, ouve-se as vozes solistas que se elevam por todo o espaço do salão do clube. Este é o único momento em que acontece a participação de todos, com momentos próprios para o canto comunitário, ainda que este se limite às jaculatórias. As rezas têm significados diferenciados para os rezadores e participantes. Diante do contexto já explicitado, os rezadores exercem uma liderança religiosa sobre a comunidade enquanto que, para os participantes as rezas (assim como o restante do repertório) significam um canal de relacionamento com o santo, via rezadores, além de demarcar um tempo diferenciado, para acerto de contas com o santo, seja em forma de pagamento de promessa, ou feitura das promessas mesmas ou, além, do alcance de graças. Talvez este ponto possa fazer paralelo com a estrutura rezador - jaculatória, momento único da festa em que os participantes em geral assumem um papel gerador de som, dentro da estrutura musical O repertório de rezas representa uma unidade enquanto ritual de contrição e significado geral das partes do todo, tanto que recebe o nome genérico de “ladainhas”, quando se pretende referir ao repertório enquanto música, e “reza” para enfatizar o momento de oração. Esta unidade do repertório de rezas tem reflexo estrutural, tendo um motivo pertinente a todas as partes, ainda que transposto a outra altura ou com algumas transformações.
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A unidade do repertório também é consolidada por outros aspectos (anexo I): estrutura rezador-jaculatória; a prosódia como orientação temporal (em maior ou menor nível de subordinação); repertório em latim e português; o conjunto das partes unido pelo significado da reza e pela célula motívica; relações de modo e tonais. Quanto à estrutura rezador-jaculatória, pode-se aplicar à maior parte do repertório constituindo exceção apenas a Introdução e a segunda parte da Ladainha, que são solistas. Tais músicas do repertório têm em comum o fato de serem cantadas em latim e de constituírem momentos capitais dentro do repertório. A introdução pelo fato de ser o início do ciclo e a segunda parte da ladainha, em estilo declamatório, o final da parte mais importante da reza, a própria ladainha de Nossa Senhora. Esta segunda parte, solista e declamatória, é justamente a destinada ao aprendiz. Ele, sozinho, deve ter condições de cantar de forma audível, com a responsabilidade de não errar a letra e nem o ritmo. De uma maneira geral, a orientação temporal e rítmica do repertório de rezas é prosódica, ainda que se possa evidenciar níveis de maior ou menor subordinação em determinadas partes a partir dos parâmetros língua e centro tonal. As músicas que possuem maior índice de subordinação à prosódia possuem certas características em comum: língua latina e modo dórico. Ainda que as duas últimas - Bendito e Despedida – sejam cantadas em português, apresentam uma ambigüidade entre as terças maiores e menores. O fato de o repertório ser cantado nas línguas português e latim confere a ele, no imaginário das pessoas, algo de mais misterioso e sagrado, sendo isto evidenciado pelo cuidado em não errar (tendo em vista o castigo que segue o erro) e a escolha da ladainha, parte mais representativa das músicas em latim do repertório, para pagamento de promessa. Este fato denota, também, a importância que se confere à letra da música. Por razões históricas, as partes em latim são cantadas em escala dórica, ainda que em certos momentos apareça a terça maior e a sétima alterada (nas transcrições, respectivamente, fá# e dó#), evidenciando, talvez, um momento de trânsito do sistema musical. As músicas em português são, em sua maioria, dentro do sistema tonal, com exceção do Bendito e Despedida, que apresentam a dita ambigüidade das terças e o estilo prosódico. O repertório de Caminho de Santo está vinculado ao itinerário realizado pelo corpo processional no espaço urbano e no ritual de licença em presença do santo. As músicas expressam estes momentos e objetivos a que se destinam exatamente através do texto. O contexto sonoro produzido pelo Caminho de Santo possui níveis de audição diferenciados: o do tamborineiro e corpo processional, e o dos participantes outros. O tamborineiro e o corpo processional, na frente do cortejo, experimentam a música ouvindo-a presentemente ao passo que os demais participantes apenas sabem do acontecimento, têm conhecimento da presença da música e isso lhes basta. A voz do COMUNICAÇÃO 149
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tamborineiro é baixinha, quase inaudível, ainda assim presente e importante para toda a comunidade. A partir da percepção dos níveis diferenciados de audição do repertório de caminho de santo, percebe-se a hierarquia presente no contexto musical. Entre os músicos executantes, é claramente observada a maior importância do tamborineiro cantor, que muitas vezes é também o rezador, em relação ao tamborineiro acompanhante, quando está presente no cortejo. O tamborineiro acompanhante pode ser qualquer pessoa que se mostre apta para este fim, pode ser o aprendiz caso este não esteja ocupado em ser bandeireiro. Diferentemente do repertório de rezas, o caminho de santo não possui marcadamente a participação da comunidade. Nesta festa de Santo Alberto de 2002, até mesmo a música “castelo”, que originalmente teria o refrão cantado pelos demais participantes, foi inteiramente cantada pelo tamborineiro. De resto, o repertório inteiro é exclusividade do tamborineiro, apesar de o texto de algumas músicas se dirigir diretamente ao “povo” e ao “dono da casa”. Curioso que o espaço em que se realiza o repertório, as ruas, é bem propício para cantos coletivos, tal como acontece em outras manifestações que se reúnem em cortejos e procissões. O caminho de santo, no entanto, expressa uma outra experiência musical, em que apenas a presença da música basta por si só, ainda que inaudível para o todo dos participantes. A estrutura do repertório se coaduna com a do ritual propriamente: Chegada do santo; levada do santo para o clube; licença para entrar na casa; licença para sair da casa; Itutinga; chegada dos componentes; castelo; chegada no porto; saída do porto para o clube; quando a festa acaba. Destas todas, apenas a música “castelo” admite participação de todos, as outras músicas são exclusividade do tamborineiro. A unidade e identidade deste repertório se deve à natureza do evento ao qual ele está ligado: visitação das casas em procissão - o caminho de santo. È através desta visitação que o santo penetra na intimidade do lar de cada um dos componentes, percorre as ruas, deixa bênçãos ao longo do itinerário nas ruas e rio do bairro. O espaço geográfico ao qual se vincula o repertório é uma das características que conferem unidade a ele. Outros fatores também contribuem para a unidade do repertório (anexo II): texto dirigido ao povo ou ao dono da casa; instrumental (tamborino e mimbí); espaço geográfico; estrutura solista; orientação temporal prosódica em maior ou menor nível de subordinação; língua portuguesa ou geral (nheengatú); relações tonais ou na língua Baré (no caso das músicas em língua indígena) O momento do Correrê ou “Roda de Bebidas” constitui um dos rituais fixos que se estabelecem na ordem cronológica das festas de santo (anexo III). Fixo porque tem horários demarcados, representando o plano vertical e, linear porque se estabelece no curso dos eventos durante a festa, representando o plano horizontal.
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Este é um dos momentos em que fica mais patente a representatividade do ritual do Dabokuri dentro da estrutura e significado das festas de santo. Um paralelo entre ambos os rituais - Correrê e Dabokuri - pode ser feito a partir dos seguintes referenciais: ingestão de bebidas, danças/coreografia, repertórios. Durante o Dabokuri, também em momentos específicos dentro da cerimônia, acontecem as rodas de caxiri para as quais existem repertórios específicos tal como descreve Piedade (2000:84-85) sobre os Âhãdeaku. Ainda que os repertórios de correrê e roda de caxiri sejam de gêneros diferentes, pode-se considerar a simples permanência e necessidade do ritual e de um repertório específico. As danças, com coreografias próprias, também servem como paralelo entre ambas as cerimônias. Se, durante o Dabokuri, os repertórios de cariço e japurutú, carregam consigo estas características. Os moradores mais velhos do bairro da Praia conhecem estes repertórios e sabem tocá-los tal como já foi mencionado na introdução deste trabalho, sobre o Dabokuri que fizeram no início do trabalho de campo. Curiosamente os temas de ambos os repertórios - Correrê e música de cariço e japurutú - versam sobre as mesmas coisas, animais e seus comportamentos, ainda que o repertório de cariço, segundo Piedade (2000:106-107) trate de outros temas como dedicatória, conclamações, estados de alma. Desta maneira, verifica-se que fundamentos tradicionais indígenas permeiam um e outro repertório das festas de santo. Na verdade, a questão da roda de Correrê é algo muito debatido entre os moradores do bairro da Praia. Ideologias diferentes entram em conflito neste momento: os jovens envolvido na pastoral da juventude; os militares e suas acusações de brigas e confusões relacionadas á bebida nas festas; os mais velhos que não consideram profana a roda de Correrê. Apesar das pressões, a roda de Correrê permanece ativa dentro das festas por duas razões distintas: a primeira relacionada com a representatividade cultural vinculada à cerimônia do Dabokuri e, a segunda, pelo significado da oferta para o santo, afinal, as bebidas são doadas pelos homenageados do dia em honra ao santo. O repertório de Correrê é distinto de todos os outros pelo fato de ser cantado em língua indígena - nheengatú ou língua geral - e ser bem representativo da identidade indígena. Outras características que conferem unidade ao repertório e o distinguem dos outros são: repertório de dança/ coreografia; texto sobre animais; língua nheengatu; orientação temporal prosódica; língua original Baré. 6. MÚSICA E IDENTIDADE INDÍGENA NAS FESTAS DE SANTO Tendo em vista as considerações acima levantadas, é possível estabelecer eixos identitários a partir dos quais emerge a identidade indígena no repertório das festas de santo: o Dabokuri, explicitado pelas características
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de oferendas, dança, bebida, coreografias, e a língua, assinalada pela equivalência do Baré e do nheengatu. Como base preliminar para a investigação sobre os eixos identitários, é justo levar-se em conta as matrizes culturais sobre as quais estão sedimentadas as festas de santo e a partir das quais emergem os sinais diacríticos. Tal como já foi problematizado acima, como conclusão histórica em concordância com a tese de Nunes Pereira, as festas de santo sugerem uma matriz estrutural baseada na liturgia cristã disseminada ao longo da Amazônia pelos missionários jesuítas no bojo da qual emergiu como valor cultural maior a cerimônia do Dabokuri – sistema intertribal de trocas de bens manufaturados. Berta Ribeiro menciona os vários tipos de Dabokuris realizados nas comunidades do rio Tiquié: de frutas; inhambus e outras espécies de aves; peixinhos de igarapé e maniuara (espécie de térmites). A autora descreve o desenrolar de um Dabokuri além de especificar os rituais em que acontece a iniciação dos rapazes, com as flautas sagradas. Admitindo as semelhanças entre o ritual do Dabokuri e as festas de santo, Ana Gita Oliveira (1995:84) explicita a questão das ofertas como elo de ligação e o caráter comunitário e de mutirão. A autora preocupou-se em demonstrar semelhanças entre a estrutura interna das festas de santo e do ritual do Dabokuri, apontando para as transformações ocorridas nos parâmetros ordenadores de referenciais da população que vive nos centros urbanos como em São Gabriel da Cachoeira, do qual o bairro da Praia é um exemplo. Sobre os repertórios envolvendo o ritual do Dabokuri existe o estudo de Piedade (2000) que busca descrever o sistema musical de uma comunidade denominada Yepa Mahsa, dando um suporte etnomusicológico na compreensão do mesmo. Piedade estabelece conexões entre a mitologia rio-negrina e as convenções sociais que, por sua vez, interferem na estrutura musical dos repertórios como um todo. As categorias nativas, no entanto, representam como “cultural”, ou seja, tradicional indígena, o Dabokuri, repertórios tradicionais e línguas indígenas e “de fora”, as festas de santo, a reza, as línguas português e latim, a categoria “da região” surge enquanto categoria inclusiva, abrangendo os repertórios novos (música em nheengatú, benzimento) e os que, por serem encontrados em toda a área do Rio Negro, terminaram por incorporaremse à cultura regional, como as festas de santo (anexo IV). Importante frisar que, na análise do comportamento dos habitantes frente à própria identidade e ao sentimento de pertencimento étnico das festas de santo, o que se verifica é um jogo de espelhos, tal como Oliveira (1976) admite: “o índio diante do outro”. Desta maneira, o sentido de pertencimento étnico relativo às festas de santo se revela em situações específicas como o confronto com a igreja oficial, a consciência do repertório em Baré ou os “costumes indígenas”, como eles caracterizam. Tal como já foi mencionado acima, as festas de santo revelam a identidade indígena em duas dimensões: a do índio genérico, para o branco e, às 152 COMUNICAÇÃO
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vezes, para os próprios índios, e a identidade étnica dos Baré, preponderando sobre as demais. Todo este corpus cultural sobrevive na base estrutural das festas de santo como representante de uma de suas matrizes culturais. A proeminência destes aspectos tradicionais rio-negrinos se acopla à estrutura litúrgica herdada das missões católicas jesuítas no Rio Negro, estrutura esta que, possivelmente, serviu de modelo a diversas manifestações religiosas na Amazônia percorrida por estes missionários, tal como sugere Nunes Pereira. Com este pensamento depreende-se que as festas de santo nesta região incorporaram seu valor cultural maior nos recôndidos da liturgia cristã que Nunes Pereira generaliza como Sahiré. As festas de santo seriam, então, o Sahiré re-significado. O bairro da Praia oferece um mosaico lingüístico que emerge como um jogo de possibilidades identitárias, sendo manipulado pelos moradores indígenas de maneira conveniente. As línguas colonizadoras, espanhol e português, surgem como distintivos de “modernidade” e “civilização” em contraposição a localidades como o bairro Dabaru e Areal, onde muitas pessoas apenas falam nheengatu ou sua língua natal devido à recente migração para a cidade. No contexto do bairro da Praia, as línguas particulares, ou seja, das etnias particulares, são veiculadas apenas em situações favoráveis a isso ou entre pares, mas, mesmo que não sejam usadas no cotidiano, são marcas expressivas de identidade étnica com desdobramentos, inclusive, nos repertórios. As línguas francas como nheengatu e Tukano são mais comumente faladas pela população mais antiga (o Tukano com menor incidência) mas já adquiriram expressividade étnica no que tange aos repertórios pois, segundo observação de campo, existem repertórios em nheengatu e em Baré, como categorias distintas. Os repertórios em Tukano estão calcados nos repertórios tradicionais de japurutú, cariço, música das mulheres e dos homens, Kapiwayá, etc. Percebe-se que as línguas francas já adquiriram autonomia perante as outras, tendo adquirido significado de pertença étnica, vinculadas à etnia Baré ou não, explicitando o esforço das pessoas em manter seu principal meio de identificação étnica - a língua. AG.Oliveira (1995:116) menciona a convivência do estoque referencial tradicional com as frentes ideológicas “modernizantes” no contexto urbano de São Gabriel da Cachoeira. 7. IDENTIDADE E ETNICIDADE: DESDOBRAMENTOS SOBRE O REPERTÓRIO DAS FESTAS DE SANTO Pode-se compreender identidade como o reconhecer-se perante o outro através de sinais que possibilitem este fenômeno, valendo-se do conceito de “identidade contrastiva” elaborado por Roberto Cardoso (R.C.Oliveira, 1976). Este reconhecer-se não constitui um estado permanente, mas um
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estado em situação, como um jogo de espelhos, que confere um caráter versátil ao processo de reconhecimento e que surge por oposição. Inserindo o conceito de etnicidade a este processo está se buscando um volver a um dos lados do espelho cujo reflexo sugere um sinal mais pronunciado e de maior significado quanto ao pertencimento. Tratando etnicidade como um sentido de pertencimento junto a um grupo, uma cultura ou uma sociedade chega-se próximo à natureza deste conceito que tange o âmbito da qualificação deste pertencimento. Assim, etnicidade confere à identidade o sinal pronunciado que reflete no espelho. Obviamente, os relacionamentos entre as identidades étnicas estarão sujeitos ao contexto formador da cultura em que estão envolvidas, dando a este relacionamento o caráter de dominação de um grupo em detrimento de outro ou, como acontece em alguns contextos, de acomodação da diferença através de canais de comunicação. O contexto de São Gabriel da Cachoeira, devido à sua formação histórica de contato como o europeu, constitui um modelo de fricção interétnica, tal como este conceito foi cunhado por Oliveira (1976), pois o que se verifica é a absorção, pelo modelo sócio-cultural capitalista, da estrutura interétnica primordial rio-negrina. O conceito de fricção interétnica pressupõe um choque entre referenciais simbólicos distintos com domínio de uma das partes sobre a outra, ainda que este processo constitua uma dinâmica cultural da qual resulta uma cultura do contato. Observe-se que não se trata de um processo brusco de destruição e/ou absorção de um modelo referencial por outro mas de uma dinâmica gradual de acomodação de elementos de um e de outro dentro de uma nova estrutura constituindo, então, uma nova cultura marcadamente diversa da anterior. Nesta cultura do contato o jogo entre as identidades étnicas se dá em outro nível, distinto do modelo primordial de adaptação das diferenças mas, sim, no de demarcação de fronteiras étnicas de todos os lados e em todas as dimensões do social. Roberto Cardoso de Oliveira sugere que a cultura do contato seja (1981:25): Um conjunto de representações (em que se inserem também os valores) que um grupo étnico faz da situação de contato em que está inserido e nos termos da qual classifica (identifica) a si próprio e aos outros. A marca conferida a cada identidade desta cultura de contato tem sua natureza vinculada às ideologias presentes nos referenciais simbólicos da cultura de contato. No caso de São Gabriel da Cachoeira, marcadamente o bairro da Praia, as idéias de “modernidade” e “civilização” ganharam contornos pejorativos em se tratando da cultura tradicional indígena e os elementos representativos da sociedade capitalista, constituindo-se oposições (AG.Oliveira, 1995). A noção de humanidade própria da cosmologia contida na gênese dos povos do Alto Rio Negro entra em conflito com a concepção de civilização difundida na cidade. Da mesma maneira, o choque entre a noção de
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temporalidade cíclica entra em confronto com a linearidade característica da concepção temporal ocidental (AG.Oliveira, 1995). Em meio a este contexto hostil, a identidade indígena torna-se generalizante através da categoria “caboclo” que responde às expectativas do “branco” frente aos índios e destes frente aos “brancos”. Interessante notar que os “brancos” também constituem uma categoria generalizante assim como “de fora” e “da região”. As identidades étnicas subsistem através de mecanismos outros que possibilitam sua emergência dos quais as festas de santo são um exemplo. Ao mesmo tempo em que as festas de santo reverberam o estigma de “coisa de caboclo” para os habitantes “de fora” , e para o que os índios acham que os “de fora” e os “brancos” acham deles, revelam, para os índios, a pertença étnica dos Baré através da língua e, subjugados a esta, do repertório. O sentido de pertencimento do repertório de santo se mostra calcado em diversas faces da identidade étnica: a do caboclo; a do Baré, a do “de fora”. No jogo de espelhos, estas faces respondem aos chamados que exijam tais e tais sinais. Este jogo de identidades se revela, também, nos três repertórios das festas de santo que comportam em seu bojo músicas calcadas em três sistemas musicais distintos - modal, tonal e Baré. Os músicos do bairro da Praia reconhecem estas diferenças e acentuam o caráter de pertença étnica do sistema Baré frente aos outros “de fora”. Transferindo a questão de referenciais simbólicos para o nível dos sistemas musicais existentes no repertório de santo percebe-se um hibridismo que se reveste de embustes uma vez que tais sistemas não constituem, em toda a sua amplitude, o “sistema musical do bairro da Praia”. Na verdade, as músicas pertencentes a um e outro sistema devem ser consideradas como remanescentes transfigurados e re-simbolizados mas que, justamente pela sua carga histórica, têm representatividade étnica no jogo de espelhos das festas de santo do bairro da Praia. A partir da visão de conjunto dos sistemas musicais representados pelo repertório do bairro da Praia pode-se sugerir um processo de mudança cultural em música, evidenciado por diversas dimensões do corpo sóciocultural do contexto em questão. Ora, basta rastrear o conhecimento musical das diversas gerações dos moradores do bairro da Praia para perceber quem tem domínio deste ou daquele repertório pertencente a este ou àquele sistema musical. Dos três sistemas musicais representados pelo repertório das festas de santo verifica-se que o modalismo gregoriano constitui apenas um remanescente simbólico e que não figura como representativo dos conhecimentos musicais dos moradores do bairro da Praia. As transcrições demonstram, inclusive, tendências tonais nas músicas modais. No entanto, estas músicas, das quais a Ladainha de Nossa Senhora é a mais característica, constituem um patrimônio musical altamente representativo para os moradores da região apesar de ser o porta voz da cultura “de fora”. Curiosamente, para a igreja oficial, este patrimônio musical europeu, cristão COMUNICAÇÃO 155
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e católico representa nada além de costumes desprovidos de consciência pois, os índios fazem sem “nada compreender do que falam” (com. pessoal). A partir dos posicionamentos descritos, torna-se possível compreender a identidade étnica presente no repertório de santo sob duas óticas: a primeira diz respeito à convivência da diferença de repertórios de origens distintas e, a segunda, como um reflexo do contexto de fricção étnica dada a dinâmica de mudança de representatividade destes sistemas dentro do repertório das festas de santo. Tais visões subsistem dentro do processo de mudança cultural em meio ao conflito entre os referenciais simbólicos, pois, elas mesmas, representam o modelo de convivência étnica tradicional e o modelo de fricção interétnica. Como primeiro aspecto a ser observado, a língua estabelece as fronteiras entre os sistemas referenciais das músicas dos três repertórios. Interessante notar que os próprios índios atentam para este fato quando comentam ou ensinam as músicas revelando, assim, que isto é importante para eles. Este primeiro aspecto do relacionamento entre língua, música e identidade nas festas de santo sugere um reflexo do multilinguismo rio-negrino. O segundo aspecto se detém à especificidade das músicas cantadas em nheengatu e que refletem a pertença étnica, servindo de sinal identificador no jogo de espelhos. As identidades indígenas são complexas e os sistemas musicais também o são. Em contextos como o do bairro da Praia, caracterizado pela situação de conflito entre referenciais simbólicos, torna-se necessário lidar com uma compreensão de sistemas musicais enquanto um circuito dinâmico e aberto, com fluxo contínuo de significados. 8. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Galvão, Eduardo. 1976. Santos e visagens: um estudo da vida religiosa de Ita, Baixo Amazonas. 2ª ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional. . 1979. Encontro de Sociedades: índios e brancos no Brasil. Rio de Janeiro: Paz e Terra. Knobloch, pe. Francisco. 1989. “Resumo Histórico das missões no Rio Negro-Am: dos inícios até 1970”. In Cadernos Missionários. Trad. pe. Norberto Hohenscherer, novembro, vol. integral. São Gabriel da Cachoeira - Am.: Inspetoria Salesiana Missionária da Amazônia. Oliveira, Adélia Engrácia de. 1975. “São João - Povoado do Rio Negro”. In Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi, antropologia, 58. Belém-Pará: MPEG. ________________________. 1979. “Depoimentos Baniwa sobre as relações entre índios e ‘civilizados’ no Rio Negro”. In Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi, antropologia, 72. Belém-Pará: MPEG. Oliveira, Ana Gita de. 1995. O Mundo Transformado: Um estudo da Cultura de Fronteira no Alto Rio Negro. Belém-Pará: MPEG. Oliveira, Roberto Cardoso de. 1976. Identidade, Etnia e Estrutura Social. São Paulo: Livraria Pioneira. ______________________. 1981. O índio e o Mundo dos Brancos. 3ª ed. Brasília: UnB. Pereira, Nunes. 1989. O Sahiré e o Marabaixo. Recife: Massangana. Piedade, Acácio Tadeu de C. 1998. “Música Yepâ Masa: Por uma antropologia da música no Alto Rio Negro.” Diss. de mestrado. Florianópolis: UFSC.
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_______________________. 2000. “Música e Sociedade Tukano: sobre dois gêneros musicais Ye`pâ-masa.” In Pesquisas Recentes em Estudos Musicais no Mercosul. Org. Maria Elizabeth Lucas e Rafael Menezes Bastos, Série Estudos 4, 11-26. Porto Alegre: UFRGS. Ribeiro, Berta G. 1995. Os Índios das Águas Pretas: Modo de produção e equipamento produtivo. São Paulo: Edusp. Ribeiro, Darcy. 1986. Os Índios e a Civilização: A integração das populações indígenas no Brasil moderno. 5ª ed. Petrópolis: Vozes. NOTAS: 1 Doutoranda em Etnomusicologia. 2 Índios que descem das cabeceiras dos rios para a cidade em busca de estudo para os filhos ou motivados pela atração da modernidade. 3 Comunicação pessoal de uma das habitantes do lugar, Ana Keyla
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NOS TEMPOS DO RADIOTEATRO: DO SKETCH AO TEATRO SÉRIO E DE GRAÇA EM BELÉM DO PARÁ, 1931-1941
ÉRITO VÂNIO BASTOS DE OLIVEIRA
Pouco tempo depois de fundada, em 1928, a Rádio Club do Pará lança o rádio sketch com o intuito de promover um entretenimento moderno às famílias paraenses, enfatizando temas morais e cenas do cotidiano da vida urbana. No final da década de 30, uma nova mudança vem se somar ao radioteatro paraense, com a chegada do novo diretor artístico da estação, Custódio Mesquisa, então célebre compositor carioca que, a convite de Roberto Camelier e Eriberto Pio, traz para Belém a proposta de profissionalização do cast do rádio paraense. Esta comunicação analisa o processo de transformação da programação da Rádio Club, especialmente no campo do radioteatro, dentro de um contexto de massificação cultural na Belém do entre-guerras e do pós-revolução de 30 e Estado Novo. O Choro em Belém do Pará - décadas de 1970 a 1990 Maria José Pinto da Costa de Moraes1
RESUMO: A pesquisa em andamento trata do Choro em Belém do Pará no
período correspondente às décadas de 1970 a 1990 como produto da movimentação musical desse gênero no Brasil. Inicialmente, faz-se um levantamento acerca de algumas das características mais comuns que o choro ganhou ao longo de sua história para então, investigar sobre: a) sua estrutura formal, a fim de identificar as possíveis influências e/ou rupturas na produção do Choro produzido em Belém em relação ao nacional e b) investigar a formação dos chorões paraenses e a relação desse aspecto com a produção da época. PALAVRAS-CHAVE: Choro em Belém – influências – sotaque paraense Sobre o Choro
As origens da música popular remetem ao período de aculturação de elementos portugueses, indígenas e africanos, nos primeiros séculos de Colônia. Esta fase ainda pouco estudada e de difícil acesso ao trabalho historiográfico é importante, pois reflete o momento constitutivo de alguns traços definidores e permanentes da cultura brasileira.
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Em termos de criatividade musical a década de 1870 tem uma significação especial na história da música popular brasileira. A nacionalização dos gêneros dançantes importados a partir do séc. XIX – polca, schottisch, mazurca, tango, habanera – e também o abrasileiramento das técnicas de execução, ou seja, a maneira de tratar os instrumentos europeus trazidos para o Brasil – a flauta, o violão, o cavaquinho, oficleide, o pandeiro e até mesmo o piano, foram alguns fatos importantes ocorridos neste período. Naquela época, a fusão daquelas danças importadas com as nossas danças nativas de origem negra – o lundu, o jongo, o batuque resultou em um fato musical da maior importância: a extraordinária riqueza rítmica da nossa música popular. É nessa fase que começam a aparecer nas edições musicais os gêneros híbridos: polca lundu, polca tango, tango batuque, tango lundu. Além desses fatos de natureza musical, não se pode esquecer outros dois de significação sócio-cultural mais profunda – que são o aparecimento do maxixe, considerada por alguns pesquisadores como a primeira dança brasileira e o surgimento do Choro. O Choro do século XIX no Rio de Janeiro é primordialmente a música das festas e bailes populares. Neste caso, Choro é o conjunto de músicas para dança derivada de gêneros “bailabiles” populares do séc. XIX. O Choro no Rio de Janeiro não esteve ligado somente aos bailes públicos, mas basicamente a festas de caráter comunitário ou familiar. No entanto, a existência dos bailes públicos em todo o mundo ocidental no séc. XIX é importante para o desenvolvimento do Choro na medida em que nesses bailes eram divulgados ritmos como as mazurcas, schottisch, quadrilhas, contradanças, valsas etc. Após caracterizar o surgimento do Choro, enfocando a maneira de tocar dos músicos cariocas frente à música ligeira de origem européia, apresentamos suas principais fases utilizando a categorização de Vasconcelos2, que se apresenta em seis períodos aos quais ele chama de “gerações” e que tomaremos por base para o I capítulo do presente trabalho. Assim, é possível identificar uma primeira geração, em que o Choro passa de maneira de tocar, tão somente, a um gênero próprio sem, no entanto, jamais abandonar este traço. Esta primeira geração floresceu nos últimos 20 anos do Império e compreendeu figuras ilustres como a do flautista Joaquim Antônio da Silva Callado Júnior, Chiquinha Gonzaga que contribuiu para o primeiro repertório do gênero e também o pianista carioca Ernesto Nazareth. Em 1889, a República abriu um novo capítulo da história política do Brasil. E ela também pode servir de marco, a partir do qual começa a florescer uma segunda geração de chorões. Neste período aparece a figura de Anacleto de Medeiros (1866-1907), fundador e primeiro mestre da Banda do Corpo de Bombeiros do Rio de Janeiro e a ele estaria reservada a grande missão de levar o Choro para o repertório das bandas musicais, civis e militares. Entre 1870 e 1919, o Choro viveu no Rio de Janeiro, a sua Idade do Ouro. As jazz bands ainda não haviam aparecido no cenário musical. COMUNICAÇÃO 159
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Em sua terceira geração, entre os anos de 1919 e 1930, o Choro já profissionalizado, ganha influência das jazz bands norte-americanas tendo como grande expoente dessa fase a figura de Alfredo da Rocha Viana Jr., o Pixinguinha. Nesse período, a música popular brasileira vive um processo de transição e modernização. Marcado pela onda de renovação de costumes que impera o pós-guerra, é um período de formação de novos gêneros musicais e de implantação de inventos tecnológicos relacionados com a área do lazer. O fato mais importante que acontece com a nossa música popular é a consolidação do samba e da marchinha, iniciando o ciclo da canção carnavalesca. Entre 1930 e 1945 (período da quarta geração), muita coisa vai suceder à música popular. É em 1927 que surgirão as primeiras vitrolas elétricas e novos valores da música popular começam a ser revelados entre compositores letristas e cantores. E o Choro como, aliás, toda a música instrumental, torna-se uma música de público restrito. Esse quarto período é o momento de ouro não do Choro, mas do samba. A quinta geração que se estende de 1945 a 1950 é uma fase bem mais propícia para o Choro, quase uma pequena fase de ouro. Esse período é importante para a percepção da história do Choro no Pará. É a partir dele que começamos a ter referências de músicas vindas do sul do país e que, de certa forma influenciaram no conhecimento, para os músicos locais, do repertório de música popular brasileira gravadas até então. Na geração seguinte, na década de 1970, o Choro é resultado de toda uma movimentação de imprensa e meios de comunicação de massa em torno de seu “renascimento” ou “ressurgimento”. Foi um espetáculo de Jacob do Bandolim e Elizeth Cardoso, em comemoração ao aniversário de Pixinguinha, em 1968, e o disco que dele resultou, que chamaram novamente a atenção de pessoas mais ligadas à música popular brasileira para este gênero de difícil execução e que tinha em Jacob seu principal divulgador. No final do ano de 1973, Paulinho da Viola inclui em seu show Sarau, no Teatro da Lagoa, alguns números do gênero com o conjunto Época de Ouro. Para surpresa do próprio Paulinho, o Época de Ouro tornou-se a grande atração da temporada. Em junho de 1975, Ary Vasconcelos promove a Semana Jacob do Bandolim para comemorar a doação ao Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro, do arquivo de Jacob. A partir daí, verifica-se uma mobilização dos apreciadores do Choro e este ressurge não só no Rio de Janeiro como no Brasil inteiro, provocando grande interesse entre os jovens. Novos conjuntos se formaram e foram reformulados os já existentes. O CHORO EM BELÉM O segundo capítulo tratará sobre o aparecimento do rádio no Brasil e das emissoras em Belém, e de que maneira o início das transmissões radiofônicas, que resultaram na consolidação do formato regional nos programas de auditório, foram importantes para o Choro na cidade de Belém. A Rádio Clube do Pará não constituiu apenas uma fonte histórica 160 COMUNICAÇÃO
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da maior relevância para o rádio paraense. A sua discoteca fazia uma autêntica parceria com a indústria fonográfica. O acervo da PRC-5 acumulava um grande estoque de música clássica, popular, nacional e estrangeira, para divulgar nas programações. Alguns dos músicos entrevistados aprenderam a tocar ouvindo rádio. A presença de uma emissora radiofônica cria novas oportunidades para músicos, intérpretes e autores regionais nos programas ao vivo. A exemplo do que acontecia no sul do país. Com o surgimento da bossa nova em 1958, até o final da era dos festivais em 1972, aconteceu uma fase de renovação e modernização da música popular brasileira que inclui a ação de jornalistas e produtores fonográficos empenhados na redescoberta de uma música verdadeiramente nacional. Estimulado por esse movimento artístico-cultural o Choro experimentou também esse processo de renovação. Surgiram diversos Clubes do Choro pelo Brasil, possibilitando gravações e relançamentos de discos, criação de conjuntos. O Pará foi contemplado pelos projetos para a divulgação da música popular brasileira em todo o país, dentre eles o “Projeto Pixinguinha”, criado em agosto de 1977 por Hermínio Bello de Carvalho (FUNARTE). A partir de 1979, o “Projeto Pixinguinha” estimulou o surgimento de vários espetáculos regionais nos mesmos moldes do projeto, a preços populares, com novos artistas novos locais, dando um impulso nas atividades musicais em todo o território nacional. Na cidade de Belém aconteceu em junho de 1980 o “Projeto Jayme Ovalle”3. Dentre os participantes, o grupo “Gente de Choro”, formado em 1979. Anterior ao projeto, a existência do grupo “Gente de Choro”, evidencia um movimento precursor de músicos paraenses na prática do choro. Como exemplo, temos o conjunto Bando da Estrela (1938), formado por alunos do então Ginásio Paes de Carvalho. (Oliveira, 2000:253). Em entrevista por nós realizada, este grupo é citado como sendo a “1ª geração de chorões” em Belém, apesar da variedade de seu repertório, característica aliás, dos grupos de Choro. Surgiu então a idéia de sistematizar as apresentações dos chorões e então, no dia 06 de setembro de 1979, foi inaugurada pelo violonista Aldemir Ferreira da Silva “A Casa do Choro”. A festa de inauguração do novo ambiente musical teve a participação especial do Conjunto Época de Ouro que se apresentava em Belém participando do projeto Pixinguinha. Em entrevista ao jornalista Edgar Augusto Aldemir declara : “não queremos o Choro curtido por grupinhos fechados e sofisticados. O Choro é do povo e deve ser tocado assim como fazemos, no fundo do quintal. Ali está todo o ambiente necessário para sua preservação”.4 (Silva,1999:24) Com a morte de Aldemir em 1983 a “Casa do Choro” fecha suas portas. E em 1987 é inaugurada a “Casa do Gilson”, um novo reduto do Choro na cidade de Belém. Em relação a esses dois estabelecimentos é que está sendo desenvolvida a presente pesquisa que envolve questões em torno das influências musicais COMUNICAÇÃO 161
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do Choro em Belém nesse período, isto é: foi um movimento saído dos quintais paraenses freqüentados pelos chorões ou eram levados para esses espaços elementos musicais nacionais e internacionais, do folclore, do popular e do erudito? Outra questão está ligada à formação musical dos chorões. Essa questão se relaciona à anterior, pois o estudo escolar erudito, em bandas de música ou no meio popular deve ter influenciado a produção musical desses músicos entre os anos de 1970 a 1999. Uma terceira questão diz respeito à possibilidade de identificar peculiaridades no Choro em Belém. Existem essas particularidades ou apenas um sotaque regional? Todos esses dados serão estudados e analisados qualitativamente através de levantamento bibliográfico, onde até então concluímos que todo o material existente sobre o choro, está de certa forma relacionada à bibliografia da Música Popular Brasileira; investigação de campo e coleta de dados a partir de uma vivência musical descrita pelos próprios chorões; análise documental de elementos como: entrevistas, correspondências, fotografias, partituras e análise musical dessas partituras, gravações (cd, fita cassete). Para o terceiro capítulo foram selecionados cinco compositores: Adamor do Bandolim, Biratan Porto e Cardoso (em parceria), Catiá, Luiz Pardal e Nego Nelson e três composições de cada um deles. Essas composições já foram analisadas harmonicamente. Este estudo deverá responder à necessidade não só de registro da história do Choro de um passado recente em Belém, mas também deverá envolver uma análise reflexiva sobre a produção local desse gênero no período correspondente. Quanto aos resultados, estes poderão contribuir para a construção da história musical do Pará. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Cazes, Henrique. Choro: Do Quintal ao Municipal. 2 ed. São Paulo: Editora 34, 1999. Oliveira, Alfredo. Ritmos e Cantares. Belém: SECULT, 2000. Silva, Maíra Macedo da. O Choro em Belém do Pará na Década de 70. Trabalho de Conclusão de Curso. Universidade do Estado do Pará, 1999. NOTAS: 1 Mestrado Interinstitucional ECA-USP/UFPA 2 Vasconcelos, Ary. Carinhoso ETC. História e Inventário do Choro. l. Gráfica e Editora do Livro. s/l, 1984. 3Filho de um chileno com uma brasileira, Jayme Rojas de Aragón y Ovalle, nasceu na cidade de Belém em 05/08/1894 e faleceu no Rio de Janeiro em 29/09/1955. A expansão do nacionalismo musical brasileiro tem importante relacionamento com a realização da Semana de Arte Moderna em São Paulo no ano de 1922. O entusiasmo de Villa-Lobosem torno das raízes folclóricas caiu tão bem no espírito musical brasileiro da época que não tardou a motivar o aparecimento de vários compositores considerados nacionalistas. Um deles foi justamente Jayme Ovalle. 4O Subtítulo do livro de Cazes (1999), do “quintal ao municipal” pode ser entendido segundo Hermano Vianna como uma alusão à visão tradicional da história do choro. Do quintal ao municipal sim , mas também de volta ao quintal num processo de ida e vinda. No repertório das bandas de música do final do século XIX tinham até trechos de óperas adaptados para banda. Villa Lobos já frequentava as rodas de choro da Pensão Viana, do pai de Pixinguinha. 162
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O PIANO NA EDUCAÇÃO DA SOCIEDADE BRASILEIRA
URUBATAN FERREIRA DE CASTRO
RESUMO: O presente artigo busca focalizar como é que a sociedade brasileira
vivia e se relacionava com as artes musicais deste período; não deixando relegado ao esquecimento a relevância da presença da família imperial para o desenvolvimento das artes no Brasil. Focaliza a chegada e a proliferação do piano, pianistas e pianeiros, passando pela existência de outros instrumentos de teclado, como o cravo e o órgão. Aborda também a existência e desenvolvimento da tipografia e edições de partituras brasílicas e estrangeiras que por aqui circulavam. Por fim, reflete sobre escolas, conservatórios e centros de produção musical que se estabeleceram no país. PALAVRAS-CHAVE: Brasil; educação jesuítica; século XIX; difusão do Piano; educação e ensino da música.
Nos primórdios do século XX encontra-se o Brasil ainda carregando a triste “sorte” de estar dando os seus primeiros passos de infante, que busca caminhar com suas próprias pernas, isso no que diz respeito à investigação científica e registro da cultura musical brasileira, haja vista os poucos registros de que se dispõem no Brasil das pesquisas, edições de livros e partituras; como exemplo citam-se dois dos primeiros livros editados no Brasil que tratam especificamente de questões musicais brasileiras: “A Bahia a Carlos Gomes” de Síllio Boccaneira, publicado pela editora Litero Typo no ano de 1894 e “A música no Brasil” de Guilherme Teodoro Pereira de Melo, editado na Bahia no ano de 1908, pela Typographia de S. Joaquim, localizada na rua Arsenal de Guerra, Bahia.
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Luiz Heitor, no prefácio da segunda edição do Livro de Guilherme Mello, faz a observação: ... Autor da primeira história sobre música em nossa terra uma obra preciosa cuja edição infelizmente já se acha esgotada. (Mello, 1947). Dentre os diversos entraves que provocaram a falta de produção de escritos e publicações de obra literária a respeito da cultura brasileira de forma geral e especificamente de música, destaca-se ainda a ausência de incentivo à investigação por parte de intelectuais e pesquisadores da referida época, juntando-se ao fato das proibições de se fundarem tipografias no país; pois conforme Fargelande, ... qualquer tentativa de estudar a vida musical brasileira antes de 1808 esbarra em alguns problemas, sendo o mais grave a falta de imprensa no período anterior a vinda de D. João VI, quando finalmente foi criada a imprensa Régia, possibilitando o surgimento de jornais e livros feitos no Brasil, as atividades musicais então puderam ser registradas com maior precisão. (1995, p. 11) Percebe-se que em parte o retardamento da produção literária a respeito da cultura musical brasileira, está estreitamente ligada ao boicote que o país sofria por parte da coroa portuguesa, através da proibição da criação de gráficas em território nacional, tolhendo de certa forma a liberdade de expressão dos pesquisadores já que a escassa produção de escritos nacionais era editada na sua maioria na corte portuguesa, nas cidades de Lisboa e Porto, já que: ... até a criação da imprensa Régia por decreto do príncipe regente D. João VI a 13 de maio de 1808, era proibido a instalação de tipografia no Brasil. (Enciclopédia 1998, p. 370). Esta pesquisa aborda a influência do piano como agente participativo na vida musical da sociedade brasileira do inicio do século XIX aos primórdios do século XX. Portanto, faz-se necessário ressaltar o início da colonização e a importância da chegada da família real no Brasil que foi de fundamental importância para a valorização, revitalização, organização e proliferação da educação musical que se desenvolvia no novo continente, à luz de novo horizonte musical. Durante a colonização do Brasil, fundamentalmente as artes, e em especial a música eram desenvolvidas pelos padres jesuítas, conforme afirma Kiefer ...Os jesuítas, assustados com o caráter selvagem do instrumental da música indígena – trombeta com crânio de gente na extremidade, flautas de ossos, chocalhos de cabeças humanas, etc.- trataram de iniciar os catecúmenos nos segredos do órgão, do cravo e do fagote... (1976, p.10) Observa-se que houve aí, uma verdadeira aculturação do instrumental indígena, aplacado pó‘r instrumentos europeus, trazidos e ensinados pelos jesuítas, ou seja, a introdução da arte de tocar cravo e órgão em detrimento da arte de fazer soar trombetas e flautas, fabricadas com material de que dispunha essa ou aquela tribo, sendo os próprios aborígines, índios responsáveis por sua confecção, à luz da supervisão dos religiosos. A presença dos conservatórios de música entre o povo brasileiro é parte da implantação da cultura branca européia, funcionando aos moldes de tantos outros da Europa, especialmente quanto ao fato de receberem e 164 COMUNICAÇÃO
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selecionarem os alunos que eram dotados de aptidão específica para a música. Os jesuítas agiam de forma mais flexível que os colonizadores de outras ordens que vieram para o Brasil, pois no preparo do catecúmeno para a vida de performance, incluíam reflexões sobre a vida futura, após a morte, ou seja, para o momento em que iriam encontrar-se com o Criador. Por isso, precisavam estar preparados para o momento do juízo final, onde apenas os salvos teriam direito a serem co-herdeiros com Cristo na morada celestial. “Não há dúvida, os jesuítas foram os primeiros professores de música européia no Brasil. É quase lugar comum esta afirmação. Mas ao mesmo tempo em que é correta, encerrar o perigo de uma visão errônea da história da nossa música, pois facilmente suscita a impressão de que o ensino musical dos jesuítas tenha constituído uma espécie de coluna mestre do desenvolvimento musical entre nós. E não foi assim. A ação dos jesuítas no campo da musica tinha uma finalidade eminentemente catequética. (...). Portanto, o ensino da música pelos jesuítas não pode ser considerado como coluna mestra do desenvolvimento da nossa música” (Kiefer, 1976 p.11). Mediante a afirmação supra, chega-se à notoriedade da intenção dos religiosos de não estarem ligados ao idealismo filosófico do ensino da música pela música, e tampouco ao profissionalismo, ou à formação de performance, perspectivas que só foram instaladas no Brasil posteriormente quando da permanência da corte portuguesa no Brasil. À medida que se alargava a presença do curso de música nas escolas e o piano se fazia presente, havia a necessidade crescente de um maior número de mestres que dominassem a linguagem, a técnica, a história e o repertório pianístico. Como indício cita-se: Ao raiar do ano de 1861, São Paulo contava com mais dois professores, ambos moços talentosos: Emílio do Lago e Gabriel Girandom. Um era brasileiro, viúvo, espontâneo e imaturo, outro nascera na França e trazia consigo forte lastro de cultura e civilização. (Rezende, 1954 p.121). Outro indicativo do crescente número de professores para possivelmente suprir as necessidades das escolas que tinham música em seus currículos é o registro de Leonardo Dantas da Silva, citando o viajante inglês Henry Koster: Dançamos ao som do piano tocado por um dos professores... (1987, p.17). O professor desse período não tinha a função exclusivamente pedagógica, pois além de ensinar, em sua grande maioria era executante nas festas dos salões da aristocracia imperialista, salas de concerto e bailes residenciais, acontecimentos estes, constantes na sociedade. Outro musicólogo a fazer referência à presença da música nas escolas indígenas, foi Almeida (1926, p.63), que em seu livro História da Música Brasileira as descreve: Assim abriram várias escolas, onde os índios aprendiam canto, bem como cravo, viola e órgão para as rezas e benditos... Assim, se deu e se fez a educação do povo brasileiro, através da visão européia e colonizadora. Sabese que em se tratando de colonização, o colonizado acaba submergindo ao julgo cultural, econômico, religioso, social e político do colonizador. Não COMUNICAÇÃO 165
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escapou o Brasil dessa condição de impotência diante da cultura esmagadora de civilização européia, em contraponto a uma cultura nativa, considerada por eles primitiva, na visão micro-dominante, o que também era de se esperar de uma Europa quase caduca, embebida pelo desejo de expansão e disseminação de seus ideais renascentistas. ... quando da abertura dos portos a todas as nações amigas pelo príncipe regente D. João VI em 1808... É desta época o aparecimento dos primeiros pianos em Pernambuco... (Silva, 1987, p. 17). Segundo pesquisas de Kiefer (1982), o príncipe D. João VI não poupava gastos com a música na Capela Real, em uma época em que ir a igreja, além de se constituir em um ato religioso também se constituía em uma função social, tendo a família real o hábito de ir a igreja religiosamente todas as semanas, e como o sangue musical corria nas veias da família imperial, seguiam uma linhagem de músicos e amantes, não somente de música, mas da arte de modo geral. Conforme Azevedo, As principais igrejas tinham seus serviços musicais devidamente organizados e vários órgãos haviam sido instalados, fabricados na própria colônia, pois sabemos que Agostinho Rodrigues Leite estabelecera uma oficina em Olinda, fornecendo órgãos para as igrejas locais e da Bahia. (1956, p. 17) Como se pode observar é a partir da chegada dos Orleans e Bragança que o piano toma fôlego em terras brasileiras, pois até então o que se tinha deste instrumento eram alguns raríssimos exemplares de clavicódio, contrapondo-se a um considerável número de órgãos e cravos que aqui se encontravam. Uma carta de Antônio Brasques de 1565 descreve a festa de Jesus no Colégio da Bahia da seguinte forma: ... houve nestas vésperas três coros diversos: um de canto, um de órgão e outro de flautas, de modo que acabando um começava o outro ... (Fargelange, 1995, p. 11). Outro fator importante em relação ao piano no Brasil, é que a partir da abertura dos portos brasileiros às nações amigas, passou-se a importar pianos de vários países europeus, tais como: França, Inglaterra, Alemanha, Itália, Portugal e outros, fato este confirmado pelo pesquisador Leonardo D. Silva, que nos remete ao período da seguinte forma: O piano continuava estar presente na imprensa local, sendo constante o número de anúncios da chegada desse instrumento da França, da Inglaterra e Alemanha ... (Silva, 1987, p. 23). Observa-se que após o advento da chegada dos Bragança no Brasil, houve uma verdadeira enxurrada de produtos estrangeiros, e com eles também os pianos, o que desencadeou uma febre por assim dizer, de procura pelo estudo da música, sendo a predileção dos brasileiros, ou melhor das brasileiras pelo piano, tornando-se proverbial no século XIX.... (Azevedo, 1956, p. 217). Através de estudos musicológicos percebe-se que em várias regiões do Brasil o piano tomou lugar de destaque. Não demorou a popularização do piano e pianeiros nas residências do Recife e Olinda, passando essas duas cidades na segunda década do século XIX, a estender-se até o início do século XX, por uma pianolatria ... (Silva, 1987, p. 21).
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Ainda referente à observação de Leonardo Dantas da Silva em seu livro “O Piano em Pernambuco”, citando Miguel de Sacramenta Lopes no seu jornalzinho de 20 de maio de 1837, ressalta que: o piano passou a ser o móvel por excelência da casa urbana das famílias de melhores posses no Recife e Olinda. (Silva, 1987, p. 22). Salienta-se ainda que um dos mestres de piano mais antigos foi o Padre José Maurício Nunes Garcia, (×22.09.1767/†30.04.1830) pois até então, o ensino de canto, instrumento de sopro e de teclado fora trabalho exclusivo dos missionários. Conforme acontecia nas escolas e conservatórios, o padre mestre, regente, compositor e instrumentista. Segundo Guilherme Melo, referendando o período em que aquele fora mestre de capela da corte de D. João VI, ele era obrigado a compor a ensinar e a residir, já em 1816...(1947, p.158). O fato de se ter disciplina referente à música nas escolas era tão evidente e importante que Carlos Penteado de Rezende, em seu livro “Tradições musicais da faculdade de Direito de São Paulo”, descreve que A música era disciplina do curso... Assim, várias figuras humanas que por lá passaram e beberam da fonte da ciência social (curso de Direito) também beberam do conhecimento musical, como alunos que estudaram nesta universidade na primeira metade do século XIX. É importante observar que o piano não possuía atributo apenas musical, sendo ele também utilizado como móvel de decoração e por isso mesmo, visto como simbologia de riqueza, poder, luxo e bom gosto da burguesia brasileira; sendo este fato bastante compreendido quando da passagem pelo Brasil dos viajantes alemães Von Spix e Von Martius, em relatos no seu livro Viagem Pelo Brasil (1938, p. 102). Revelam que: o piano é um dos móveis mais raros e só se encontra na casa dos abastados. Referindo-se eles, a respeito do ambiente musical da corte no Rio de Janeiro, observam que a vida artística era muito intensa e extensiva à sociedade burguesa, quando no ano de 1817, os relatos na cidade do Recife e proximidade referem-se também a existência de pianos no primórdio do século XIX, como anotou ainda um viajante inglês: a presença de um piano na festa de Nossa Senhora da Saúde do Paço da Panela, em janeiro de 1810, tocado pela senhora de um negociante (Silva, 1987, p. 18). A referida citação se reporta mais uma vez a burguesia, na figura de suas senhoras e senhorinhas, raramente os senhorzinhos desfrutavam do privilégio de se sentar em frente do piano para fazê-los soar. Santa Maria de Belém do Grão Pará não ficaria isenta à “contaminação” da pianolatria que se espalhara pelo Brasil, fato este constante de inúmeros relatos, tanto de viajantes, de padres cronistas como de pesquisadores, tais como Mara Caballero, em um artigo publicado no Jornal do Brasil do Rio de Janeiro, relembrando que ...na fase áurea que vivia Belém com a extração da borracha, em cada dez casas, seis tinham piano. Nelas os saraus eram comuns. Sendo de 1850 a 1880 que a burguesia do Pará começava a se capitalizar. (Caballero, 1981). Sobre o assunto comenta Vicente Salles: ...na transição do regime monárquico
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para o republicano (...) o piano havia invadido todos os lares burgueses, tornando-se até pode se afirmar, instrumento popular. (Salles, 1970, p. 159). Quanto à fundação de escolas e conservatórios de ensino de música e de piano, é importante salientar que começou com os jesuítas em diversas províncias do Brasil, dentre elas a da Bahia, onde, segundo Azevedo, ...a presença de primitivos cravos nos colégios da Companhia no século XVI é confirmada em diversas passagens de crônicas e missivas dos padres. Encontramos os instrumentos mencionados em uma carta de Antônio Blasques, descrevendo a festa de Jesus no Colégio da Bahia em 1565. (1956, p. 12). Apesar de se ter notícias diversas e variadas a respeito de escolas de música oficiais e não oficiais desde o século XVI, somente a partir de 1808 que cresce o número de estabelecimentos educacionais, levando-se em consideração a criação da Capela Real, sendo ela mesma um centro escolástico musical, e segundo Leonardo Dantas, citando o viajante Henry Koster, diz que o próprio Koster relata ter dançado (...) em 1810 ao som de um piano na casa de um professor do seminário de Olinda, ou seja, o próprio seminário funcionava também como escola de música. Sendo sabido que Emérico Lobo de Mesquita além de compositor e instrumentista, exercia a função de professor, comprovado por Bruno Kiefer (1982 p. 39), quando diz que: “Lobo de Mesquita já antes de 1780, executava também a função de professor particular de música”. É no século XIX que o número de professores de música se amplia pois a demanda de escolas e de alunos é cada vez maior. Pode-se tomar como exemplo a própria Escola de Direito de São Paulo, onde a música era disciplina obrigatória no 5º e 6º ano do curso compreendendo noções gerais (Rezende, 1954, p. 56), fato este registrado a partir dos anos de 1845 e 1846, ano em que Álvares de Azevedo cursava Faculdade de Direito. Carlos Rezende continua ressaltando que: no raiar do ano de 1861, São Paulo contava com mais dois novos professores de música ambos moços e talentosos: Emílio do Lago e Gabriel Girandon (1954, p.121). O fato de ser professor era tão nobre no Brasil de outrora, que ocorrência como esta, banalizada em nossos dias, era notícia de destaque até o início do século XX. O musicólogo Luiz Heitor Azevedo (1956, p. 217) também faz citações a respeito de professores e conservatórios; quando em 1890 Leopoldo Miguez fundou o Instituto Nacional de Música, confiando a Alfredo Bevilaqua a classe de piano. Conclui-se mediante citações que desde o momento em que o príncipe D. João VI fundou escolas de música ... de composição e de diversos instrumentos (Almeida, 1942, p. 311), surgiram vários outros projetos de abertura de novos centros musicais, teatros e educandários para o desenvolvimento do ensino artístico-musical. Apesar do atraso intelectual em que vivia submersa a colônia brasileira, por fatores diversos, tais como: a falta de universidades, a ausência de tipografias, o não incentivo à criação de bibliotecas públicas aliados a uma série de problemas políticos e econômicos, faz-se necessário pontuar que: ... aqui se encontrava boa música, a ponto de sua majestade e toda corte ser tomada de
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espanto ... pela perfeição com a qual a música vocal era executada por negros dos dois sexos. (Almeida, 1942, p 30). É bem verdade que o meio artístico tornou-se mais eficaz a partir do Reino Unido de Portugal e Algarves; entretanto, não vivíamos em completa penúria e ruína cultural, e a música escolar e artística fazia parte do Brasil, desde os primórdios das missões religiosas em terras brasileiras. BIBLIOGRAFIA:
ALMEIDA, Renato. História da Música Brasileira. São Paulo: Ed. Briguiet e Companhia, 1942. ANDRADE, Aires. Francisco Manuel da Silva e seu tempo. Rio de Janeiro: Ed. Tempo Brasileiro, 1967. v. 1. AZEVEDO, Luiz Heitor Corrêa de. 150 anos de Música no Brasil. Rio de Janeiro: Ed. José Olímpio, 1956. CABALLERO, Mara. Idália num acervo de 1.800 partituras. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 25 de setembro de 1981. Caderno B, p. 1. ENCICLOPÉDIA DA MÚSICA BRASILEIRA POPULAR, ERUDITA E FOLCLÓRICA. 2. ed. São Paulo: Art Editora, 1998. FARGELANDE, Marcelo. O método de Piano forte do padre José Maurício Nunes Garcia. Rio de Janeiro: Ed. Relume Dumará, 1995. KIEFER, Bruno. História da Música Brasileira. S.l.: Ed. Movimento, 1982. MARIZ, Vasco. História da música no Brasil. Rio de Janeiro: Ed. Civilização Brasileira, ,1981. MELLO, Guilherme. Música no tempo Colonial Brasileiro. S.l.: Ed. Tipografia Baiana, 1947. NOGUEIRA, Lenita W. Mendes. Música em Campinas nos últimos anos do Império. Campinas, SP: Ed. Unicamp, 2001. REZENDE, Carlos Penteado. Tradições Musicais da Faculdade de Direito de São Paulo. São Paulo: Ed. Saraiva, 1954. SALLES, Vicente. Música e Músicos do Pará. Belém: Ed. Conselho Estadual de Cultura do Pará, 1970. ______________. A música e o tempo no Grão Pará. Belém: Ed. Conselho Estadual de Cultura do Pará, 1980. SILVA, Leonardo Dantas. O Piano em Pernambuco. Recife: Ed. FUNDARPE, 1987.
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O RISO DO PÁSSARO: UM ESTUDO SOBRE O PÁSSARO JUNINO DE BELÉM DO PARÁ: MATUTAGEM
MARTON MAUÉS
O Riso do Pássaro - Um Estudo Sobre o Pássaro Junino de Belém do Pará: a Matutagem é um ante-projeto de pesquisa na área de Artes Cênicas a ser desenvolvido por mim, Marton Sergio Moreira Maués, professor da Escola de Teatro e Dança da Universidade Federal do Pará, com recursos próprios, no curso de Mestrado da Universidade Federal da Bahia. A pesquisa sobre o Pássaro Junino, teatro popular com fortes traços regionais, encaixa-se muito bem na Linha de Pesquisa Matrizes Culturais na Cena Contemporânea do referido mestrado. Há mais de cem anos, durante a Quadra Junina - período do mês de junho em que são festejados Santo Antônio, São João e São Pedro -, ocorre no Estado do Pará, e com mais intensidade em sua capital, Belém, uma manifestação cênica popular conhecida como Cordão de Pássaro ou Pássaro Junino. De rara beleza e também constituído por uma variedade de números de canto e dança, o Pássaro Junino - em Belém quase sempre apresentado em palcos convencionais de teatro, utilizando seu maquinário - é por vezes chamado ainda de “Ópera Cabocla”. As duas denominações correntes, Cordão de Pássaro e Pássaro Junino, têm suas diferenças. A primeira, encontrada na zona rural e na zona urbana, é também chamada de Cordão de Meia Lua, denominação que se refere à disposição dos brincantes em semi-círculo durante a apresentação do tema: a caçada, morte e ressurreição de um pássaro. A Segunda denominação, mais urbana, é também conhecida como Pássaro Melodrama Fantasia e “agrega ao tema central da ave, outros aspectos envolvendo dramas e
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sofrimentos de uma família de nobres ou fazendeiros... compreende outras tramas de suicídio, morte, vingança, traição e incestos” (Refkalefsky, 2001). Segundo ainda Refkalefsky (2001), o Pássaro Melodrama Fantasia decorre das influências das óperas e operetas apresentadas no Teatro da Paz e como tal só existiria praticamente em Belém. Tal influência teria permitido incorporar na sua estrutura dramática o que Salles (1994) denomina “comodidades do palco”, ou seja: a cortina, a iluminação, os bastidores e a cena frontal do palco à italiana. Muito popular no passado, mais especificamente no período compreendido entre os anos de 1910 e 1950 - período de seu apogeu - o pássaro vive hoje um período de pálida ressurreição, começado a partir da década de 1980 através de políticas implementadas por órgãos de cultura municipais e estaduais. É uma tradição mantida pelos “donos” ou proprietários dos pássaros, título muitas vezes repassado de pai para filho. Hoje, tanto o poder estadual como o municipal realizam, no mês de junho, festivais competitivos, além de financiar a produção dos grupos. Mas estes são bem poucos. Estudá-los, em um momento como este, é também tentar trazer de volta o brilho de uma manifestação popular, única e bela, que já viveu seu apogeu. Os pássaros são uma realização popular, muito bem descrita, e vale aqui transcrever, por Antonio Carlos Maranhão em ensaio para o encarte de um dos três álbuns fonográficos intitulados “Folguedos Populares”, lançados em 1991, pela Secretaria Municipal de Educação e Cultura (Semec): “São lavradores, pescadores, pedreiros, pintores, carpinteiros, barraqueiros, vendedores, mecânicos, ferreiros, estivadores, costureiras, domésticas, floristas, cozinheiras e outros trabalhadores. Jovens, velhos e crianças. É essa gente humilde que, durante as noites de São João, sob as chuvas de fogos e na fogueira da ilusão, queima a sua tristeza e incendeia suas alegrias. Como por encanto, transformam-se em fazendeiros, pais-francisco, catirinas, príncipes, princesas, guardas-bosque, imperadores, imperatrizes, marqueses, fidalgos, soldados, pajés, ciganas, camponeses, fadas e muitos outros personagens. E unindo a música, a dança e o teatro, representam entre o sonho, a fantasia e a realidade, suas relações sociais. Um sonho que, passando de geração a geração, consegue manter viva a chama da sabedoria da cultura popular do homem Amazônico”. Como no melodrama tradicional, os personagens no pássaro junino, de acordo com Marcondes (1997, p. 157), dividem-se em dois grupos antagônicos: os maus e os bons. “O mau, por vezes um tirano sanguinário, é personificado por um fidalgo transplantado para a Amazônia, um fazendeiro ou um seringalista, o ‘coronel da borracha’, cujos atos de exploração econômica e violência ainda estão guardados na memória do povo amazônico”. Assessorando o mau, está a feiticeira, “triplamente estigmatizada como mulher, negra e mãe-de-santo”. O bem é personificado pela fada, que pune a feiticeira e com sua varinha mágica opera verdadeiros milagres ajudando os heróis, mocinhos e COMUNICAÇÃO 171
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mocinhas - exemplos de pureza, bondade e virtude -, além de ressuscitar o pássaro, quando este é morto. Um outro grupo de personagens presente no pássaro, aparecendo, na maioria das vezes, sem nenhuma conexão com o enredo, é o dos matutos ou a matutagem. De características extremamente cômicas, estes personagens “aparecem imediatamente antes ou após as cenas mais patéticas” Marcondes (1997, p. 157). São estes personagens cômicos que pretendemos estudar em nosso trabalho. O antagonismo característico dos personagens do melodrama tradicional sobrevive nos pássaros juninos, personificando a eterna luta do bem contra o mal. No meio desta luta, rompendo a pesada cortina de dramas e lágrimas, aparece a Matutagem: um grupo de personagens responsável pelo riso do pássaro. Também chamados matutos, os cômicos do pássaro junino, nos diz Marcondes (1997, p. 157), aparecem imediatamente antes ou após as cenas mais patéticas. É formado pelos matutos paraenses – um casal, seu filho, seus compadres e a filha destes -, o matuto cearense, um cabo ou um soldado. Ora participando diretamente do enredo, ora não, os matutos executam seus números através de sketches de teor jocoso e muitas vezes libidinoso, em linguagem que utiliza metáforas nem tão obscuras. Eles conduzem toda a comicidade do pássaro, contrapondo-a à carga dramática do melodrama, intervindo nos momentos de maior tensão. Seus quadros, afirma Marcondes (1997, p. 152), têm por objetivo provocar na platéia outro tipo de catarse: o riso e o gozo provocado pela irreverência, pela malícia e pela obcenidade. No primeiro capítulo de sua tese de doutorado - Grupo Tran Chan: Princípios da Pós-modernidade Coreográfica na Dança Contemporânea – Eliana Rodrigues (1995) ao historiar a arte ocidental, mostra a relevância do riso no período medieval que, mesmo em meio aos horrores praticados pela Santa Inquisição da igreja católica, fazia parte do cotidiano, integrado a ritos e festas populares – como o carnaval -, e abolindo fronteiras da vida social devido seu caráter transgressor. Rodrigues (1995) utiliza como referência o estudo do crítico literário russo Mikhail Bakhtin sobre a obra do escritor francês renascentista François Rabelais, trabalho que também será utilizado aqui por nós. No trecho citado por Rodrigues (1995), Bakhtin nos fala do caráter multifacetado do riso, considerando-o como elemento de fundamental importância para a vida cotidiana da Idade Média e do Renascimento. O riso opõe-se à oficialidade da época, agindo como instrumento de integração das camadas sociais, abolindo fronteiras entre elas: O mundo infinito das formas e manifestações do riso opunha-se à cultura oficial, ao tom sério, religioso e feudal da época. Dentro da sua diversidade, essas formas e manifestações – as festas públicas carnavalescas, os ritos e cultos cômicos especiais, os bufões e tolos, gigantes, anões e monstros, palhaços de diversos estilos e categorias, a literatura paródica, vasta e multiforme, etc. – possuem uma unidade de estilo e constituem partes e 172
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parcelas da cultura cômica popular, principalmente da cultura carnavalesca, una e indivisível. (1995) Bakhtin, em seu estudo, destaca o princípio da vida material e corporal, presente no cômico popular, nomeando-o de realismo grotesco – sistema de imagens da cultura cômica popular. Nele, “o princípio da vida material e corporal aparece sob a forma universal, festiva e utópica” (1999, p. 17). Este princípio, segundo o estudioso, é positivo, não se destaca dos demais elementos da vida, é universal e popular. O porta-voz do princípio material e corporal não é aqui nem o ser biológico isolado nem o egoísta indivíduo burguês, mas o povo, um povo que na sua evolução cresce e se renova constantemente. Por isso o elemento corporal é tão magnífico, exagerado e infinito. Esse exagero tem um caráter positivo e afirmativo. O centro capital de todas essas imagens da vida corporal e material são a fertilidade, o crescimento e a superabundância. (1999, p.17) Ao lançarmos um olhar, por mais superficial que seja, sobre os personagens cômicos do pássaro junino paraense, é difícil não notar similaridades com o cômico popular da Idade Média e Renascimento, difícil não fazer analogias, não tentar estabelecer e destacar elementos hereditários herdados pelos pássaros das formas espetaculares e personagens daquele período. Analisando a dramaturgia do pássaro junino, destacando seus recursos melodramáticos, Carlos Eugênio Marcondes de Moura nos diz, quanto aos personagens, que: A humanidade, no melodrama clássico, se caracteriza por uma dupla divisão: de um lado os maus, e de outro os bons e entre eles não há compromisso possível. Nos melodramas dos autores do pássaro junino o mau, por vezes, um tirano sanguinário, é personificado por um fidalgo transplantado para a Amazônia, um fazendeiro ou um seringalista, o “coronel da borracha”, cujos atos de exploração econômica e violência ainda estão guardados na memória do povo amazônico. (1997, p. 151) O mal é coadjuvado pela feiticeira e o bem pela fada, aquele sempre vencido por este ao final do melodrama. Os títulos nobiliários confundem e invertem sua hierarquização. No melodrama passarinheiro, um duque pode ter mais poder que um rei e oprimir a filha deste. As ações destes dois grupos de personagens ocupam quase toda a extensão das peças, com o mal imprimindo uma tensão constante até sua derrocada, que só acontece no final do melodrama. Esta tensão é por vezes amenizada pela interferência de elementos do imaginário e cultura amazônica, da matutagem, dos números de dança, dos embates entre feiticeiras e fadas. ... nesse universo palaciano, movido a paixões as mais diversas, a valorosa maloca dos Aruãs e dos Tupinarés poderá, a qualquer momento, sair dos recônditos das matas amazônicas, a matutagem surgirá quando se menos espera, com toda a sua ironia, fina e grossa, com seus embates sexuais, com seus dançarás, seres míticos, caveiras, morcegos e demônios, virão assombrar as gentes, fadas e “fiticêras” se digladiarão, o bailé carnavalizará o mundo e algum pássaro inocente será abatido por um malvado caçador. Mas sempre ressuscitará. (Marcondes, 1997, p. 155-156)
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A matutagem, grupo de personagens do pássaro junino que nos interessa de perto, como já dissemos, ora participa diretamente do enredo, ora não tem nenhuma ligação com este. Em ambos os casos, porém, é com sua irreverência, seus jogos verbais e corporais explícitos ou de duplo sentido, sua sagacidade, ironia, zombaria e também sua ingenuidade, que o matuto instaura o riso que, tal qual o cômico medieval e renascentista, transgride as normas, as hierarquias, a trajetória linear do enredo. De acordo com Bakhtin (1999, p. 4), as múltiplas manifestações da cultura cômica popular podem subdividir-se em três grandes categorias, sejam elas: 1.As formas dos ritos e espetáculos (festejos carnavalescos, obras cômicas representadas nas praças públicas, etc.); 2.Obras cômicas verbais (inclusive as paródicas) de diversa natureza: orais e escritas, em latim ou em língua vulgar; 3.Diversas formas do vocabulário familiar e grosseiro (insultos, juramentos, blasões populares, etc.). Segundo ele, “essas três categorias que, na sua heterogeneidade, refletem um mesmo aspecto cômico do mundo, estão estreitamente inter-relacionadas e combinam-se de diferentes maneiras”. No cômico do pássaro junino paraense - a matutagem -, esta inter-relação de categorias cômicas acontece plenamente, manifestação festiva popular que é: na forma de cortejo, integrando brincantes e público; nos jogos verbais de duplo sentido, paródicos, satíricos, jocosos, utilizando sem pudores o linguajar popular, vulgar; e na utilização de insultos e grosserias, usados entre parceiros e membros da mesma família. Os matutos utilizam a língua e os trejeitos do povo. Interferem num enredo dominado por nobres e senhores de terra. Juntam-se a estes, instaurando o riso, igualandose em importância – são esperados com ansiedade pelo público, que com eles identifica-se. Zombam dos demais e de si mesmos, satirizam as situações, criticam as relações de poder com fina ironia. Humanizam-se ao ingenuamente expor seus medos das assombrações e outras imagens que habitam o imaginário do homem amazônico. São nos jogos verbais e corporais que os matutos concentram o poder de suas ações. Estes jogos, repletos de tiradas de duplo sentido, assentamse, como diz Bakhtin em seu precioso estudo do cômico popular, no baixo material e corporal, baixo este representado pelos órgãos genitais, o ventre e o traseiro (1999, p. 19). São as regiões mais expostas pelos matutos, que muitas vezes andam com o ventre apontando para frente, como a evidenciar sua genitália, no caso dos homens; outras vezes usam enchimentos nas nádegas, no caso das mulheres. Mostrar e tocar seus órgãos sexuais e traseiro, enquanto entabulam diálogos em forma poética, mas carregado de imagens sexuais, é também característico da atuação destas personagens. Marcondes (1997, p. 224) nos dá um bom exemplo do jogo verbal executado pelos matutos no confronto sexual instaurado entre o 174
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personagem Puqueca, o matuto paraense, e sua mulher, Priscila, em que a macaxeira é empregada como metáfora. O texto foi extraído da peça Os longos dias de vingança, de Laércio Gomes. Puqueca – Vou te fazer uma pergunta Pra responderes a altura Se tu gostas de macaxeira Um pouco Mole ou bem dura Priscila – Esta tua macaxeira Uma vez eu já pruvei Mas é que tava tão mole Que eu comi e não gostei Puqueca – Veja só se tu gostasse O que seria de mim Sem gostar comeste tanto Que não queria mais ter fim Priscila – Eu não queria mais ter fim Eu vou já te explicar É que macaxeira mole É difícil de eu gostar Mesmo entre as personagens mais jovens, como os filhos adolescentes dos matutos paraenses, o tom de confronto sexual permanece, assim como as metáforas “agrárias”, como nos mostra Marcondes (1997, p. 225): Jojoca – Quando eu fui no teu roçado Fiquei muito admirado Teu roçado é muito novo E ainda tá muito pelado Chicuta – Isso era antigamente Quando tu andou por lá Mas se tu visse ele agora Ias pedir pra mim te dá Os intérpretes, nos pássaros juninos, são escolhidos pela adequação de seus dotes físicos aos personagens, segundo a ótica de cada ensaiador. No caso dos matutos contam a desenvoltura física e verbal, além de algumas deformidades: como pessoas muito magras ou muito gordas, velhos, anões, desdentados. Em uma apresentação do Cordão do Tangará, no teatro do Museu Goeldi, vimos uma brincante anã fazendo a filha de um dos casais de matutos, a correr pela cena com uma grande chupeta de plástico ao pescoço. O contraste velho/novo vimos no Pássaro Uirapurú, a se apresentar no mesmo local: o matuto, desempenhado por um brincante jovem, e sua esposa, por uma senhora de idade avançada. COMUNICAÇÃO 175
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Poderíamos nos remeter, sem incorrer em exageros, à ambivalência do cômico grotesco, apontado por Bakhtin, em que vida (o jovem) e morte (a velha) estão interligadas? Vale o risco da analogia - guardadas as devidas proporções, é claro. Diz o crítico russo, ao falar do grotesco das imagens de velhas grávidas e risonhas de Kertch, feitas em terracota, e que encontram-se no museu l’Ermitage, de Leningrado: Trata-se de um tipo de grotesco muito característico e expressivo, um grotesco ambivalente: é a morte prenhe, a morte que dá à luz. Não há nada perfeito, nada estável e calmo no corpo dessas velhas. Combinam-se ali o corpo descomposto e disforme da velhice e o corpo ainda embrionário da nova vida. A vida se revela no seu processo ambivalente, interiormente contraditório. Não há nada perfeito nem completo, é a quintessência da incompletude. Essa é precisamente a concepção grotesca do corpo. (1999, p.22-23) O intérprete da matutagem é alguém que expõe seu corpo e que, no jogo de cena, verbal e fisicamente – como diz Bakhtin (1999, p.23) ao conceituar o corpo grotesco - enfatiza certas partes por onde entra e sai o mundo exterior, por onde se concretizam os prazeres, a sexualidade, a fecundidade, o parto. E as necessidades naturais, como comer, beber, excretar. A identificação dos matutos com personagens que povoaram outras épocas, como mimos, bobos, bufões, palhaços, é nítida e carece de estudo mais aprofundado. Marcondes (1997, p. 229) já aponta nesta direção ao comparar traços da matutagem às máscaras da Commedia dell’arte. “O comportamento bufonesco e astucioso do matuto paraense, bem como de seu filho, os aproximam dos criados espertos, os zanni que, por sua vez, se filiam à comédia clássica greco-romana.” Alguns personagens trazem nomes que se assemelham demais aos personagens da commedia italiana: Beringela/Brighela, Pulcherio/ Punchinela ou Polichinelo, Toinha, Zefinha e Rosinha/Franceschina, Colombina, Smeraldina e Pascheta ou Turcheta. Até no jogo de cena, com um servindo de “escada” para o outro, no caso da relação do matuto paraense com o matuto cearense, a analogia com as máscaras italianas se faz, caso do primeiro e segundo zannis – um bem esperto e outro mais ingênuo. Um olhar mais acurado nesta direção se faz necessário, a fim de que possamos talvez determinar com mais precisão essa cadeia evolutiva do riso popular, suas formas espetaculares, ritos, festas e personagens. Mas é necessário varrer do olhar qualquer sombra de preconceitos e pré-conceitos determinados pela cultura oficial - como bem o fez Mikhail Bakhtin ao analisar o cômico popular medieval e renascentista, tendo por base a obra de François Rabelais -, para que assim, e somente assim, possamos compreender e contribuir para que muitos outros compreendam e valorizem formas artísticas tão bem elaboradas pelas mãos das gentes do povo. Obras ricas de elementos tradicionais e renovadores, que falam sobre e para o homem comum. Que demonstram sua maneira de olhar e entender o mundo – às vezes contraditória, mas ricamente poética. 176 COMUNICAÇÃO
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Algumas iniciativas de valorização e manutenção da tradição do pássaro junino paraense têm sido implementadas. Mas muito ainda precisa ser feito, sob o risco de – batamos na boca! – vê-lo agonizar mais e mais a cada ano (já vivemos períodos bem negros). O pássaro deve morrer sempre, mas somente na quadra junina, enredado em suas tramas melosas e dramáticas, em meio a reis, princesas, nobres, coronéis, capatazes, feiticeiras, fadas, seres lendários e míticos, matutos, números musicais e dançantes. Morrer para sempre e sempre renascer, por um toque de mágica, em meio a fogos e fogueiras. Como uma fênix. Uma fênix que também ri. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BAKHTIN, Makhail. A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento –O contexto de François Rabelais. São Paulo: Hucitec; Brasília: Edunb, 1999, 419 p. LOUREIRO, João de Jesus Paes. Cultura Amazônica: Uma Poética do Imaginário. Belém: Cejup, 1995, 448 p. MOURA, Carlos Eugênio Marcondes de. O Teatro Que o Povo Cria. Belém: Secult, 1997, 404 p. REFKALEFSKY, Margaret. Pássaros... Bordando Sonhos: Função Dramática do Figurino no Teatro dos Pássaros em Belém do Pará. Belém: Instituto de Arte do Pará, 2001, 191 p. (Caderno IAP). SILVA, Eliana Rodrigues da Silva. Grupo Tran Chan: Princípios da Pós-Modernidade na Dança Contemporânea. Tese de Doutorado defendida na UFBA, em 1995.
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O VERNISSAGE DA HISTÓRIA
ALDRIN MOURA DE FIGUEIREDO*
Na primeira década do século XX, sob a intendência de Antônio Lemos e do governo de Augusto Montenegro, Belém vivia o auge de sua belleépoque equatorial, recebendo anualmente os mais importantes artistas brasileiros de então. Financiados pela elite local e pelo poder público, esses pintores retrataram a história, cenas e cenários da cidade, no intuito de conferir à capital do Pará uma espécie de identidade visual, marcada pelo traço da pintura acadêmica. Porém, a simples referência ao cânone abraçado por esses pintores à guisa de uma espécie de tirania classificatória, imposta pela crítica e pelos historiadores das artes, está longe de revelar o amplo debate em torno das artes plásticas e seus entrecruzamentos com os projetos políticos das elites intelectuais locais, que ambicionaram inserir a Amazônia no epicentro interpretativo da história nacional. Nos primeiros anos do novecentos, em meio a uma turbulenta transformação urbanística, a fama de Belém como uma nova vitrine para os artistas nacionais corria pelo país afora. Foi então que muitos pintores brasileiros, alguns já consagrados, passaram a incluir a cidade no roteiro de suas viagens. Abria-se na região, enriquecida pela exploração da borracha, um novo mercado para artes plásticas no Brasil. Governantes, intendentes municipais, financistas e grandes comerciantes tomavam a si a tarefa do mecenato, patrocinando artistas de várias origens, com encomendas de obras que pudessem descrever a natureza amazônica, em seu estado natural, mítico e edênico. Ao mesmo tempo, era necessário apresentar a civilização que chegara á selva, tornando a capital do Pará o mais próximo de suas pretensas congêneres á margem do Tamisa e do Sena. Em 1905, foi a vez do fluminense Antônio Parreiras (1860-1937), trazendo para Belém 41 telas a óleo. Considerado um evento de relevo, o vernissage acabou sendo 178
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organizado no foyer do Teatro da Paz, permanecendo a exposição aberta entre 10 e 30 de junho1. Ao todo, 27 obras foram vendidas e a imagem dos trabalhos no salão virou cartão-postal, editado na tipografia de E. F. Oliveira Júnior. O êxito de Parreiras não viera do nada. Recepcionado por Theodoro Braga, que já o conhecia do Rio de Janeiro, o pintor acabou conseguindo um trânsito invejável entre alguns letrados da elite local. O intendente Antônio Lemos, a principal liderança política de então no Pará e ao mesmo tempo o grande mecenas da terra, como era de se esperar, adquiriu três telas preparadas especialmente para a exposição de Belém, além de encomendar ao pintor nada menos do que um conjunto de oito trabalhos reproduzindo os principais logradouros e monumentos da capital paraense. Ainda em 1905, foram retratados o Bosque Municipal, em dois estudos; a velha Catedral da Sé; a Praça da República; a Calçada do Largo da Pólvora; a Praça Batista Campos, por dois ângulos distintos; e, por fim, a Avenida São Jerônimo, uma das mais elegantes da cidade2. Pode-se afirmar, desse modo, que Antônio Parreiras inaugurou na administração municipal a fase das grandes encomendas de pinturas, consolidando a imagem do intendente Lemos como mecenas e apreciador do requintado universo artístico. Em apenas dez dias, Parreiras vendeu todos os seus quadros, guardando em memória biográfica o feito entre os paraenses3. Destino semelhante teve a segunda mostra de Carlos Azevedo, aberta a 31 de janeiro de 1906, no mesmo Teatro da Paz, também imortalizada em cartão-postal. Entre as 60 telas expostas, abundavam as paisagens locais, eventos históricos, cenas cotidianas e retratos de homens ilustres da terra — tudo muito ao gosto dos freqüentadores mais habituais. Além dos compradores da elite paraense, o costume da aquisição de peças pelos governantes, para ornamento das repartições públicas, tornou-se regra. Nessa exposição, Antônio Lemos chegou a ter um retrato seu apresentado ao público, e ainda adquiriu outras obras para o acervo da municipalidade, dentre as quais uma, pintada meses antes, representando a Entrada do Círio no Arraial de Nazaré, hoje parte do acervo do Museu de Arte de Belém4. Ao mesmo tempo em que, segundo o juízo de um viajante estrangeiro, a capital do Estado firmava-se como um dos principais centros culturais do país5, alguns ilustres visitantes nacionais se queixavam, nesse mesmo ano de 1906, de ter passado por Belém sem conhecer o Senador Lemos, o que era “como ir a Roma e não ver o Papa”, tal a mitificação e o fetiche construídos em torno desse líder político6. Nessa aura de corte, os pintores nacionais tinham a possibilidade de organizar várias mostras e, enfim, alcançar o objetivo de viver da arte. A construção da imagem moderna da cidade fremente, ao modo das européias, muito endossada durante a virada do século XIX e as primeiras décadas do XX, especialmente por ilustres forasteiros que chegavam da França7, serviria ainda mais para solidificar o papel do mecenato na postura e atuação das principais lideranças políticas locais. Assim como Carlos de Azevedo, também Theodoro Braga foi um protegido do intendente Antônio Lemos. Em 13 de maio de 1906, esse pintor inaugurava a sua primeira aparição, também no Teatro da Paz, com COMUNICAÇÃO 179
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45 trabalhos de desenho, pintura e arte aplicada. A cada evento, maior era a repercussão junto ao público, com reiterados anúncios e comentários nos jornais diários que circulavam na cidade. A obra de Theodoro Braga estava sendo muito aguardada pelos aficcionados da pintura, mais até que os trabalhos de Carlos de Azevedo. A razão disto residia no fato de o pintor ter conseguido em pouco tempo um lugar de destaque entre os novos talentos brasileiros. Sua formação artística havia iniciado no Recife, pela mão do paisagista Telles Júnior, por volta de 1892, quando, aos 20 anos, cursava o penúltimo período da Faculdade de Direito daquela capital. Isso foi apenas o começo de uma longa carreira. Em 1894, depois de se formar, transferiu-se para o Rio de Janeiro, onde, na Escola Nacional de Belas Artes8, foi orientado por três nomes há muito reconhecidos: Belmiro Almeida, Daniel Bérard e pelo célebre Zeferino da Costa. Aprovado com “distinção”, em 1899, recebeu, o prêmio de viagem à Europa por cinco anos. Seguindo para a França, fixou-se em Paris por dois anos onde recebeu aulas de Jean-Paul Laurens (1838-1921)9, havido como um dos mais importantes mestres da pintura histórica francesa, durante a terceira República10. Sob a orientação de Laurens, visitou vários centros artísticos europeus a fim de se aprimorar no estudo das dimensões na descrição de temas históricos. Esse período se transformou numa fase decisiva na obra futura do pintor, na constituição de um estilo próprio e de um projeto de obra, qual seja o de elaborar uma versão pictórica da história da Amazônia. Essa perspectiva ficará mais clara e evidente depois de 1903, quando do seu retorno a Belém. Theodoro Braga, a partir de então, firmou-se como o nome mais influente da pintura paraense, nas duas primeiras décadas do século XX. Apadrinhado pelo intendente municipal Antônio Lemos, o artista transformou a pintura em assunto de governo e o tema da história pátria em matéria de interesse popular. Entre 1903 e 1905, Theodoro Braga se dedicou a costurar um novo momento nas artes plásticas do Pará, com iniciativas de aproximação entre artistas, literatos e autoridades do governo local em torno do debate do nacionalismo, da identidade regional e da história pátria. Sua atividade como pintor se enredou cada vez mais nos estudos genéricos, sem uma linha temática definida, para o universo urbano de Belém. Da composição de uma tela como A aparição de São Lucas, de 1903, com uma evidente motivação pessoal, o artista passou a se dedicar cada vez mais aos motivos e paisagens locais ou ainda temas da história da Amazônia e do Brasil. Numa singela representação do antigo serviço de Captação d’água, em tela datada de 1905, Theodoro articulava vários elementos descritivos – tanto a referência a imagem pitoresca da cidade, quanto ao subentendido progresso pelo qual a vida urbana estava passando naquele momento. Um outro ponto digno de ênfase é que essa mostra de 1906 fora inaugurada no mesmo Teatro da Paz, exatamente no dia 13 de maio. A data por certo não havia sido escolhida à toa. No Pará, mais do que em qualquer outra parte do país, nesse dia, o calendário expressava muitas ambigüidades com fortes conotações políticas. Além, é claro, da 180 COMUNICAÇÃO
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esperada comemoração nacional da abolição da escravidão, o dia 13 relembrava a retomada da capital paraense pelas tropas da legalidade do general Soares Andréa, pondo fim ao movimento cabano, em 183611. Se a quebra do cativeiro e a conseqüente vitória republicana eram, para Theodoro Braga, os marcos iniciais da moderna história da arte paraense, a memória da Cabanagem e sua “jugulada revolta” representavam uma outra face das lutas por liberdade, onde esses mesmos valores constitucionais e contrários à escravidão estiveram em jogo12. Nesse período, e a partir daí, a ênfase na história tomou conta da obra de Theodoro Braga. O motivo desta escolha não se devia unicamente ao fato de a pintura histórica ainda ser considerada como a mais alta categoria acadêmica e nem de ter sido a principal influência de seu mestre francês Jean-Paul Laurens. Neste ponto, cabe ao historiador uma escolha. Ao invés de tentar buscar as aproximações estéticas entre a obra do discípulo paraense e o traço do professor, como fundamento máximo da trajetória de Theodoro Braga, talvez seja mais produtivo optar por entender essas escolhas num campo mais amplo que ligava seu passado na França, sua experiência nativa e sua vasta rede de interlocutores pelo país afora. Acho mesmo que, mais significativo do que tentar buscar as origens dessa linhagem de pintores e seus projetos, em viagens imprecisas pelo passado, determinando as prováveis genealogias clássicas da pintura brasileira, como fizeram muitos autores, me pareceu mais útil entender essas escolhas no momento em que foram gestadas, carregadas de ambigüidades e incertezas. Essa crítica, no meu entender, constitui ainda um ponto fulcral para quem se interessa por uma história social da arte. Da leitura clássica de Argeu Guimarães, passando pela bem pontuada incursão de Pietro Maria Bardi, à amplitude das conclusões de Jeffrey Needell, o mito fundacional da Missão Artística Francesa de 1816 sobre a futura arte nacional ainda subsiste intocado na constituição de um academicismo importado13. Theodoro Braga, formado na Escola de Belas Artes do Rio de Janeiro, principal reduto dessa tradição, seria, assim, um legítimo representante dessa linhagem que já nascia sob um cânone hegemonicamente demarcado. Neste ponto, vale retomar a observação de Erwin Panofsky (1892-1968), para quem a história da arte seria sempre a história da significação da arte, afastando-se de qualquer conteúdo psicologizante. Tomando emprestado suas críticas ao estruturalismo alemão de Wilhelm Worringer (1881-1965), tendo a acreditar na validade desses insights para uma história social da arte, na qual tende a ser de menos importância a noção de “vontade individual” do artista e, tampouco, a idéia de psicologia de uma época, como vontade coletiva, consciente ou inconsciente14. Esta leitura é mais interessante ainda porque Worringer publicara, ainda em 1907, o seu livro mais conhecido – Abstraktion und Einfühlung (Abstração e empatia)15, contemporaneamente a todo esse debate entre os letrados e pintores brasileiros. Se teor um tanto quanto metafísico, seus escritos encorajaram imediatamente uma atitude mais receptiva em relação aos estilos não realistas e à “distorção” do expressionismo na produção artística, algo COMUNICAÇÃO 181
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que então foi lido como o viés psíquico de interpretação da arte alemã. Embora o artista tenha seus próprios conceitos estéticos, estes não podem ser entendidos senão em diálogo com os sujeitos históricos envolvidos nessa seara das artes. Se a lógica dos significados pode ser a garantia de uma boa janela de leitura do passado, os cuidados na apreensão dos princípios, valores e códigos que aproximam os participantes desses grupos de intelectuais e artistas, devem ser redobrados. Raymond Williams, em suas investidas sobre alguns ajuntamentos de letrados na Inglaterra nas primeiras décadas do século XX, teve a sagacidade de duvidar e ir além da autodefinição de seus membros. Mais do que a simples convergência de amizade, esses grupos entrecruzavam amplas relações sociais e culturais. Em outras palavras, Williams sugere, a partir do caso do Bloomsbury Group, que, além dos códigos internos pelos quais os membros do grupo se viam e queriam ser vistos, existiam outros valores em cena, especialmente de classe, que eram partilhados, defendidos e reproduzidos nas ações de sociabilidade dessa “fração” da alta burguesia inglesa16. Do ponto de vista analítico, esse diálogo que procurei estimular entre algumas leituras de Panofsky, a respeito do significado da obra de arte em seu tempo, com os recados de Raymond Williams sobre as relações concretas entre letrados e artistas, serve aqui para afastar qualquer presunção em tentar incorporar as idéias abstratas, que certamente existiram, produzidas na lavra desses personagens17. Com efeito, quero crer que essas assertivas são úteis na compreensão das atitudes dos intelectuais paraenses envolvidos no campo das artes plásticas do limiar do século XX. O gosto pela história, de que se falava anteriormente, não saiu do nada – e pudemos demonstrar isto. Aqui está a fresta da significação da produção da arte, com seus processos técnicos, estilos e conflitos com a realidade. Na trajetória da pintura de Theodoro Braga, o momento em que esses paradigmas eclodiram, com plena visualidade, não é difícil de ser percebido. De fato, ainda na temporada de 1906, uma das mais prolíficas do artista, apareceu aquela que seria a sua definitiva inclinação para os temas da história pátria. Entre agosto e outubro seguem duas exposições, ambas dedicadas inteiramente aos “assuntos locais”, com tomadas e motivos escolhidos nos “cantos pitorescos e antigos da cidade de Belém”18. Esses eventos foram como que preparatórios para solidificar o traço do pintor, a recepção do público, e os laivos da crítica com o acontecimento de 1908, planejado que estava desde essa época. Aqui, neste ponto, a análise de Raymond Williams, citada há pouco, caiu como uma luva, à cata de um bom diálogo. Apesar de escrever num jornal de oposição ao governo de Antônio Lemos, o crítico Alfredo Sousa, por seu turno, que também era amigo de Theodoro Braga, foi quem melhor propagandeou a mais recente linha temática do artista. O mais interessante é que isto não era nenhuma novidade ou causa de estranheza entre os leitores da gazeta oposicionista. Na verdade, desde maio anterior, quando da primeira exposição, o crítico vinha anunciando a versatilidade do pintor entre o desenho, o óleo e a arte aplicada como um sólido preparo técnico 182
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capaz de por em prática suas ambições diante da arte nacional19. Em vista disso, o momento agora era o de reiterar e ampliar seus elogios. Sem o menor constrangimento, Alfredo Sousa definiu seu amigo como “o mais completo pintor nacional” que até então “o Pará tinha admirado dentro de seus muros”. Para demarcar seu brado, pôs-se a analisar duas das telas apresentadas, comentando a “radiante luminosidade” das paisagens nativas pintadas a óleo – com destaque para Um cacury e O Paracauary, cenas ribeirinhas típicas do vale amazônico, onde emergiam tonalidades únicas, expressivas de uma cor local20. Mas não foram somente as telas a causarem impacto entre os freqüentadores das mostras de 1906. Ainda na exposição de agosto, um aspecto muito comentado foi o das inovações de montagem e instalação. Como a instalação foi realizada em sua residência, os quadros foram colocados no próprio ateliê do artista e na escola de desenho que funcionava na sala ao lado, com livre acesso a todos os visitantes. O impacto foi imediato. É evidente que a ousadia do pintor em mostrar sua obra entre os instrumentos de trabalho, estava avalizada pelo estágio ainda recente que havia feito entre os parisienses. Por isso mesmo, observar as aquarelas com representações das pequenas cidades da Ilha do Marajó21, encimadas em cavaletes, circundadas por tintas, pincéis e paletas, significava, antes de tudo, o convívio com a excêntrica atualidade havida como importada da Europa. O sucesso foi repetido em outubro. Se o ar pitoresco das paragens marajoaras do estuário amazônico havia conquistado os espectadores da outra vez, o que dizer se o tema escolhido fosse os costumes, as festas e os lugares mais prosaicos da própria capital do Estado. Além de agradarem a Alfredo Sousa e aos visitantes, as aquarelas foram muito elogiadas por Antônio Lemos, principal incentivador do artista. O encerramento em 3 de novembro teve ares de festa: era a véspera de seu embarque para Lisboa, onde iria investigar a história da fundação de Belém, para a execução da grande tela encomendada pelo prefeito22. Clóvis de Morais Rêgo, biógrafo do pintor, afirma que a idéia da composição dessa cena já existia há quase uma década23. Esse projeto teria ficado mais explícito em 1899, quando o painel Últimos dias de Carlos Gomes, de Domenico De Angelis e Giovanni Capranesi, teve a sua apoteótica instalação no prédio da Intendência, na sala do antigo Conselho Municipal. Em seu relatório daquele ano ao legislativo, Lemos já anunciava seu intuito de “dotar o edifício do governo municipal com outro [quadro] não menos importante, rememorativo da fundação desta cidade”24. No entanto, até 1904, Lemos afirmava não ter podido “ainda incumbir artista idôneo” para a obra, mas continuava angariando “esclarecimentos históricos relativos ao fato”25. Em 1906, com o sucesso das exposições de Theodoro Braga, o projeto tomou corpo. O artista viajou para Portugal à cata dos documentos sobre a conquista da Amazônia, porventura guardados nos arquivos da antiga Corte do Império Ultramarino. A ida do artista não representou, no entanto, qualquer esmorecimento nas temporadas de vernissages em Belém, afinal, como já pude enfatizar aqui, esse circuito das COMUNICAÇÃO 183
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artes plásticas foi duramente construído ao longo de pelo menos vinte anos, com a chegada dos mestres estrangeiros. Se há duas décadas, a vinda dos europeus era quase a única opção para a ansiosa intelectualidade local, nos primeiros anos do novo século a situação mudara muito de figura. Em apenas 15 dias da partida de Theodoro Braga para Portugal, o pintor francês Joseph Casse, contratado para fazer a nova decoração no antigo Palácio dos Governadores, fez uma exposição de 25 telas no salão nobre do Teatro da Paz. O resultado da mostra fez com que o artista fosse convidado a fazer outras obras de semelhante cacife em outros prédios de Belém, como na Capela do Instituto Gentil Bittencourt, importante centro do ensino republicano local, à época sob a tutela do governo estadual. Mas, nesse período, não houve nos jornais de Belém grandes comentários à temporada artística da pintura e dos lançamentos de livros, pois o meio letrado ainda estava chocado com o falecimento de Domingos Olympio (1850-1906), no Rio de Janeiro, em 6 de outubro passado. A maioria dos mais velhos havia convivido com o escritor cearense, autor de Luzia Homem, que residiu no Pará, por mais de uma década, entre 1878 e 1890, militando nas redações dos principais jornais locais, ao lado de José Veríssimo (1857-1916), seu grande amigo26. Escritores, artistas, políticos e comerciantes mobilizaram-se, junto à comunidade cearense radicada em Belém, para auxiliar os filhos do escritor, imersos em dificuldades financeiras27. O fato ganhou os jornais por um bom tempo, deixando para o ano seguinte o retorno às exposições, quando houve temporada apenas com pintores nacionais. Logo em março, chegou Francisco Aurélio de Figueiredo Melo (18541916), irmão de Pedro Américo (1843-1905), para uma mostra de 66 telas no Teatro da Paz. No dia 17 daquele mês, recebeu “os amigos e jornalistas” em vernissage. A surpresa foi grande, pois o artista paraibano resolveu fazer uma retrospectiva de sua carreira, mostrando as duas fases distintas de sua produção artística. Theodoro Braga, que já o conhecia de outros tempos, comentou, a partir do que ouviu de informantes que estiveram presentes na mostra, sobre as “suas duas características maneiras de pintar”, as quais, inclusive, estavam devidamente expressas “pelos nomes que ele tomara na sua laboriosa vida de artista”. Os quadros mais antigos, que traziam a assinatura de Aurelio de Figueiredo, lembravam, como assinalou o próprio Theodoro Braga, a escola francesa do último quartel do século XIX, da qual também Theodoro havia sido discípulo; a segunda parte da coleção trazia a grafia de Francisco Aurelio, onde o autor aproximava-se “dos nossos impressionistas, afastando assim por completo, de sua primeira maneira, da qual nenhum detalhe é lembrado”. O fato clamava pela opinião de Theodoro Braga que, sem hesitar, afirmou sua preferência por aquela “primeira feição” que, entre outras virtudes, o fazia “pensar também nas másculas figuras do seu inesquecível irmão”28, amplamente reconhecido pela preocupação com a figura humana, muito mais do que com a paisagem em si, havida como característica de seu contemporâneo Victor Meireles (1832-1903)29. Mais uma vez, como já era de se esperar, Antônio Lemos 184
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estava por perto, financiando a próxima investida de Aurélio de Figueiredo, em sua versão de primeira hora. Resultado: em apenas quatro meses, o pintor reaparecia com uma nova safra, agora no Salão da Biblioteca e Arquivo Público do Pará. O destaque dessa vez ficou por conta de duas grandes telas, em tamanho natural e corpo inteiro, retratando o Barão do Rio Branco e o senador Antônio Lemos30, ícones consagrados no Pará como mentores políticos – o primeiro, figura de proa no abolicionismo, e o segundo, figura central nas duas primeiras décadas de republicanismo. Ainda em julho de 1907, o paulista Benedito Calixto (1853-1927), que aportou em Belém já com a fama de pintor premiado, trouxe 32 telas para sua exposição. O assunto era dos mais recorrentes à época: paisagens e vistas de seu estado natal, ao lado de alguns momentos da história da nação. A cidade continuava muito atraente para os forasteiros, especialmente para aqueles que residiam no Rio de Janeiro, onde a disputa por espaço de divulgação era cada vez maior. Vários quadros de Calixto foram adquiridos pelo governo do Estado e pela intendência municipal de Belém: recantos de jardins, cenas de trabalho e suas famosas composições marinhas31. Assim como Parreiras ou Aurélio de Figueiredo, Calixto representava muito bem essa ambição dos pintores brasileiros de formação acadêmica em retratar e escrever a história do país, a partir das imagens de seus recantos natais. Mais até que Theodoro Braga, o experiente pintor paulista esteve, nesses inícios de século XX, mergulhado numa impressionante investigação histórica sobre São Paulo, nos tempos da Colônia e do Império, principalmente sobre Santos, cidade em que viveu boa parte de sua vida32. Por isso mesmo, não é difícil entender o porquê de esse artista ter se tornado uma referência entre os paraenses do início do século XX. Esse diálogo no campo das artes ampliava o círculo dos visitantes e aficcionados. As famosas cores das marinhas e dos recantos urbanos do pintor paulista fizeram eco entre os críticos e compradores locaisTheodoro Braga lembrou que, um mês e meio depois do retorno de Calixto, o Teatro da Paz abriu sua galeria com as obras do carioca Joaquim Fernandes Machado, com reputação equivalente ao pintor paulista. O tema biográfico sobressaía na obra desse pintor, embora chamasse atenção “as bem estudadas composições de natureza morta”. As telas O primeiro vôo, evocando a façanha de Dumond, Gonçalves Dias coroado pela glória e, por fim, a Predição aos pássaros, quadro este apresentado no Salon des Artistes Français de 1901, em Paris, foram muito comentados. Não terminara o ano de 1907 e mais um artista, procedente da capital da República, desembarcava com seus quadros no cais de Belém. Antônio Fernandez era espanhol de nascimento, mas formado pela Escola de Belas Artes do Rio de Janeiro. Trouxe 74 obras, com técnicas muito variadas, desde óleos sobre tela, passando pelos pastéis e aquarelas, até os menos usuais, nesse tipo de mostra, desenhos a bico de pena. No conjunto das obras, o ponto de convergência era o mesmo: paisagens brasileiras33. O evento, no entanto, não alcançou o mesmo sucesso dos anteriores. O modo formal e burocrático com o qual a crítica tratou da exposição de COMUNICAÇÃO 185
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Antônio Fernandez revelou que os níveis de exigência e a velha simpatia com os pintores de fora haviam mudado. A mesmice em temas e traços dos pintores deixava transparecer, muitas vezes, uma certa esterilidade no aprendizado dos ateliês europeus e nas academias de belas artes. Os rigores da forma, o estereotipado receituário de cenas e fórmulas não era mais garantia de aplausos. O próprio crítico Alfredo Sousa que, anos antes, fora um dos grandes incentivadores do maior número possível de mostras, utilizava-se, agora, dos mesmos conceitos acadêmicos, para exigir maior inventividade e criatividade dos pintores. Se por um lado, o domínio da técnica mantinha o pintor distante dos ecletismos, por outro, era responsável pela falta de individualidade nos riscos de muitas mãos consagradas34. O recado de Alfredo de Sousa serviria, assim, a pintores de diversas escolas. Longe de representar uma crítica ao projeto nacionalista da pintura histórica sob o cânone republicano, essa crítica almejava angular o esquadro dos pintores em novas descobertas. A cada grande tela, sob narrativa visual, deveria nascer a verdadeira síntese da história. Doutor em História. Professor do Departamento de História da Universidade Federal do Pará.
NOTAS:
Este artigo é parte de uma pesquisa mais ampla sobre o mercado de arte em Belém do Pará e o modernismo na Amazônia nas primeiras décadas do século XX, desenvolvida na UFPa com o auxílio do CNPq. Foi apresentado originalmente no I Fórum de Arte do Pará, no Núcleo de Arte da UFPA, em novembro de 2002. 1 Theodoro Braga, “A arte no Pará, 1888-1918: retrospecto historico dos últimos trinta annos”. Revista do Instituto Historico e Geographico do Pará. v.7. Belém, 1934, p.153. 2 Todo esse acervo, oriundo da antiga Intendência Municipal, pertence hoje ao Museu de Arte de Belém (MABE). 3 Antônio Parreiras, “Viagem ao Norte”. In: História de um pintor contada por ele mesmo: Brasil – França, 1881-1936. 3ª ed. Niterói: Niterói Livros, 1999, p. 123. 4 Rosa Arraes, “Inventário”. In: Fundação Cultural do Município de Belém, Museu de Arte de Belém: memória & inventário. Belém: MABE, 1996, p.46. 5 Henri Coudreau, “L’Avenir de la capitale du Pará”. Anais da Biblioteca e Arquivo Público do Pará. v.8. Belém, 1913, pp.221-245. 6 Victor Godinho & Adolpho Lindenberg, Norte do Brasil através do Maranhão, do Para e do Amazonas. Rio de Janeiro: Laemmert, 1906, p.122. A construção da memória de Lemos, incluindo aí a do mecenas, foi analisada cuidadosamente por Maria de Nazaré Sarges, Memórias do velho intendente: Antônio Lemos, 1869-1973. Tese de Doutorado em História. Campinas: IFCH-UNICAMP, 1998. 7 Cf. Jean de Bonnefous, En Amazonie. Paris: Kugelmann, 1898, p.51 e Henri Coudreau, Op. cit. e o seu anterior Les Français en Amazonie. Paris: Picard-Bernheim et Cie, 1887. 8 Nos últimos meses na Escola de Belas Artes, também atuou como ilustrador da revista carioca Vera Cruz, fundada em 1898, órgão literário que reunia muitos autores ligados ao movimento simbolista. Cf. Roberto Pontual, Dicionário das artes plásticas no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1969, p.85. 9 Clóvis de Morais Rêgo, Theodoro Braga: historiador e artista. Belém: Conselho Estadual de Cultura, 1974, p.28. 10 Laurence des Cars, “Jean-Paul Laurens et la peinture d’histoire sous la troisième République”. In: Jean-Paul Laurens, 1838-1921: peintre d’histoire. Paris: Réunion des Musées Nationaux, 1998, pp.23-34. *
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Sobre essa questão das datas e comemorações da Cabanagem, ver Magda Ricci, “Do sentido aos significados da cabanagem: percursos historiográficos”. Anais do Arquivo Público do Pará. Belém 3(2): 241-274, 2001. 12 Theodoro Braga, História do Pará: resumo didactico. São Paulo: Melhoramentos, 1931, pp.107120. 13 Ver Argeu Guimarães, “História das artes plásticas no Brasil”. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Tomo especial. Vol. 9. Rio de Janeiro, 1930, pp.26-497; Pietro M. Bardi, História da arte brasileira. São Paulo: Melhoramentos, 1975, p.172 e J. Needell, A belle époque tropical: sociedade e cultura de elite no Rio de Janeiro na virada do século. São Paulo: Companhia das Letras, 1993, p.210-211. Sobre esse prelúdio de da missão francesa, ver Afonso de Escragnolle Taunay, A Missão Artística de 1816. Brasília: Ed. da UnB, 1983, e sobre essa genealogia do academicismo nacional, ver Yolanda Lhuller dos Santos, “A pintura histórica no academicismo”. In: O índio na pintura brasileira do século XIX: um estudo etno-sociológico. Tese de Livre-docência em sociologia da arte. São Paulo: ECA-USP, 1977, pp.132-137. 14 Erwin Panofsky, Significado nas artes visuais. 3a ed. São Paulo: Perspectiva, 1991. Uma análise pontual desta questão, em torno dos conceitos de Panofsky, está em Henri Zener, “A arte”. In: Jacques Le Goff & Pierre Nora, História: novas abordagens Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1976, pp.144-159. 15 Cf. Wilhelm Worringer, Abstraktion und Einfühlung; en Beitrag zur Stilpsychologie. München: R. Piper, 1908. Vale a pena consultar a série de conferências apresentadas em novembro de 1999 e posteriormente publicadas em Hannes Böhringer & Beate Söntgen (orgs), Wilhelm Worringers Kunstgeschichte. München: Wilhelm Fink, 2002. 16 Bloomsbury Group foi como ficou conhecido um grupo de artistas e intelectuais de grande influência, que gravitava em torno dos escritores Virginia Woolf e Lytton Strachey, cujos trabalhos causaram tanta sensação quanto os triângulos amorosos e as relações bissexuais dos membros. Além de obras literárias e críticas, a turma produziu vasta obra pictórica, principalmente pela mão de Vanessa Bell (irmã de Woolf), Roger Fry e Duncan Grant. Cf. também Raymond Williams, “The Bloomsbury fraction”. In: Problems in materialism and culture. London: Verso, 1982, p.165. 17 Para uma discussão dessa questão no campo da história da arte, vide Erwin Panofsky, L’oeuvre d’art et ses significations: essais sur les arts visuels. Paris: Gallimard, 1955; Essais d’iconologie: themes humanistes dans l’art de la renaissance. Paris: Gallimard, 1967; Idea: contribuição à história do conceito da antiga teoria da arte. São Paulo: Martins Fontes, 1994; Perspectiva com forma simbólica. Barcelona: Tusquets, 1985; Significado nas artes visuais. 3a ed. São Paulo: Perspectiva, 1991. Para uma leitura mais acurada de Panofsky como obra fundante na moderna história da arte, ver Michael Ann Holly, Panofsky and the foundations of art history. Ithaca: Cornell University Press, 1987. 18 Theodoro Braga, “A arte no Pará, 1888-1918”, p.153. 19 Alfredo Sousa, “Exposição de pintura”. Folha do Norte. Belém, 15 de maio de 1906, p.1. 20 Alfredo Sousa, “Impressões de arte”. Folha do Norte. Belém, 17 de agosto de 1906, p.1 21 Idem, ibidem. O crítico comentou, em especial, o Farol de Soure e Barrancos do Porto, ambos sobre a cidade de Soure, no litoral nordeste da ilha. 22 Alfredo Sousa, “Impressões de arte: Theodoro Braga, aquarelista”. Folha do Norte. Belém, 01/ 11/1906, p.1. 23 Clóvis Morais Rêgo, Theodoro Braga: historiador e artista. Belém: Conselho Estadual de Cultura, 1974, p.18. 24 Intendência Municipal de Belém, Relatório apresentado ao Conselho Municipal de Belém na Sessão de 15.11.1902 pelo Exmo Sr. Intendente Antônio José de Lemos; 1897/1902. Belém: Typ. de Alfredo Augusto Silva, 1902, p.205. 25 Intendência Municipal de Belém, Relatório apresentado ao Conselho Municipal de Belém na Sessão de 15.11.1904 pelo Exmo Sr. Intendente Antônio José de Lemos. Belém: Typ. de Alfredo Augusto Silva, 1904, p.200. 26 “Domingos Olympio”. Folha do Norte. Belém, 19 de novembro de 1906, p.1. 11
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“Dr. Domingos Olympio”. Folha do Norte. Belém, 24 de novembro de 1906, p.1, com a lista das quantias doadas em Belém. 28 Theodoro Braga, “A arte no Pará, 1888-1918”, p.153-4. 29 João Vicente Salgueiro, “Victor Meireles e Pedro Américo”. In: Wladimir Alves de Souza et al., Aspectos da arte brasileira. Rio de Janeiro: Funarte, 1981, p.43. 30 Theodoro Braga, “A arte no Pará, 1888-1918”, p.154. 31 Hoje, parte dos acervos do Museu do Estado do Pará [MEP], no prédio do antigo Palácio dos Governadores, e do Museu de Arte de Belém [MABE], no antigo Palacete Azul da Intendência Municipal de Belém. 32 IHGSP, Coleção Benedicto Calixto [CBC], Manuscritos diversos sobre assuntos relativos a Santos, pasta I (10 documentos); Capitania de São Vicente, pastas II – A-B; III; IV; V; Cartas de interesse histórico dirigidas a Benedicto Calixto, pasta IV – A-B (notar especialmente as correspondências com Theodoro Sampaio (1902), Toledo Piza (1894-1903); Von Hering (19014) e Rocha Pombo (1908). Para uma leitura dos referenciais históricos de Calixto, vide Caleb Faria Alves, Benedito Calixto e a construção do imaginário republicano. Tese de doutorado em Sociologia. Bauru, SP: Edusc, 2003. 33 Theodoro Braga, “A arte no Pará, 1888-1918”, p.154.34 Ver o artigo de Alfredo Sousa, “Exposições de pintura na Capital do Pará”. Correio de Belém, 17 de dezembro de 1907, p.2, sob o pseudônimo “Alfi”, no qual faz um apanhado das últimas mostras 27
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PICHAÇÃO: EXPRESSIONISMO ABSTRATO NO PEITO DA CIDADE
LUIZAN PINHEIRO DA COSTA*
1. INTRODUÇÃO
“Em que consiste a atividade filosófica se não consistir em tentar saber que maneira e até onde seria possível pensar diferente, em vez de legitimar o que já se sabe” Michel Foucault
A possibilidade de estudos de fenômenos urbanos tem sido preocupação na teoria da arte contemporânea levando a um olhar mais atento sobre a cidade como espaço privilegiado de novas configurações, intervenções e processos artísticos. Este trabalho constrói uma discussão sobre o fenômeno da Pichação entendida aqui a partir do conceito de intervenção artística. As interferências no tecido urbano neste estudo caracterizam uma espécie de EXPRESSIONISMO ASTRATO numa referência direta à corrente da arte Informal americana denominada pelo crítico de arte Harold Rosemberg de Expressionismo Abstrato ou Action Painting. E aqui entendemos as ações desse do estilo expressionismo como reverberadoras no espaço urbano, das telas para a cidade enquanto campo de experiências múltiplas agenciando novas leituras do espaço citadino. Mais do que a afirmação de conceitos ou definições conclusivas acerca da Pichação como intervenção artística, nosso objetivo é realizar uma leitura desse fenômeno urbano que ganha as paredes da cidade colocando em discussão questões acerca da visualidade do ambiente, seu valor estético
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e comunicativo na cidade contemporânea, no caso de Belém. É fundamental entendermos que esta tomada de posição teórica diante da Pichação, articula uma leitura desse fenômeno como o entendimento do local, da cidade como objeto passível de intervenção. O trabalho constitui-se numa discusão sobre alguns autores e artistas que promovem uma construção a partir da expressão expressão como ponto crucial de suas poéticas e teorias e a articulação dessas experiências com a Pichação e seus sentidos, dilatando sua carga comunicativa e expressiva na urbe. A ênfase nas imagens da pichação em Belém promove o entendimento da Pichação como ação deflagradora de novos sentidos estéticos e comunicativos, tomando a cidade como lugar de tensão. Esta interface entre Pichação e Expressionismo Abstrato realça aquilo que ambas as experiências podem conter de semelhanças e diferenças tanto nas suas formas quanto em seus significados. Com isso esperamos contribuir para uma ampliação d campo de leitura e reflexão de fenômenos periféricos no contexto contemporâneo. 2. PICHAÇÃO: EXPRESSIONISMO ABSTRATO
“Tudo aquilo que a nossa civilização rejeita, pisa e mija em cima serve para a poesia” Manoel de Barros, do livro Matéria de Poesia (1974)
O Expressionismo Abstrato (Action Painting – Pintura em Ação), corrente da arte Informal que se desenvolveu nos Estados Unidos no final da primeira metade do século XX, colocou novas questões para a arte contemporânea, inaugurando uma série de poéticas que se afastavam das outras de cunho geométrico e construtivista tão em voga no período. O historiador de arte Gillo Dorfles afirma que o termo fora proposto pelo crítico de arte Harold Rosemberg em 1952 “para sublimar a importância do ato físico de pintar em muitos pinores que, usualmente, eram considerados ambiguamente como ‘expressinistas abstratos’”1 Tal definição tangencia, de modo contrário às delimitações um tanto préconcebidas e limitativas das fórmulas das esquemáticas geométricas e concretas, e articulando um novo caminho de pesquisa marcado por uma nova linguagem pictórica de cunho gestual, tendo em Jackson Pollock e Willen De Kooming seus maiores representantes. O que nos interessa nas poéticas do Expressionismo Abstrato é estabelecer uma interconexão entre seus aspectos estéticos e poéticos e a Pichação aqui tomada como intervenção urbana, definida em a ”Metrópole e Arte” da seguinte forma: “A intervenção urbana se caracteriza pela alteração momentânea de um cenário usual, pela introdução de novos elementos e/ou materiais, 190
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procurando gerar uma tensão entre a obra e o meio urbano, entre a arte e o meio formal”2 É a partir desta afirmação que colocamos a Pichação no quadro de referência da possibilidade de suas ações que produzem um devir da cidade geradora de novas visualidades e tensões. O que para nós é importante perceber é que tais ações são produto da própria complexidade da cidade como um objeto metamorfoseador e dinâmico. É o que se verifica nas afirmações de Ricardo Basbaum ao articular novos sentidos da arte contemporânea, dentre eles, o que sugere um novo conceito de atuação da obra. Ele diz que “A atuação da arte contemporânea pode ser definida a partir do conceito de intervenção, em sentido amplo, significando o enfrentamento de um campo espaço-temp oral que de ser desterritorializado pelo potencial ambientalizante da obra, instalando outra dimensão plástica”3 Portanto, a construção de um outro espaço-tempo engendrado pela arte e sua interconexão com outras dimensões espaço-temporais preexistentes, produz um sentido que está profundamente arcado pelo que entendemos circunscrever a Pichação como reveladora de novas condições espaçotemporais, produtora de novas reflexões acerca da vida da cidade e de seus habitantes e suas condições de sobrevivência. Essa outra dimensão plástica é o que as ações da Pichação engendram com intervenção artísitca, que em seu sentido mais profundo realiza a busca de novas configurações e relações artísticas desde sua desmensurada prática no peito da cidade, apontando para um desterritorializar que é instauração de novos conflitos sócio-culturais imbricados numa ação cáusitca, marginal, expressiva e fundamentalmente comunicativa própria das ações estéticas. Podemos ainda acrescentar que como intervenção artística, a Pichação pode ser encarada como um tipo de “obra aberta”, pois que sua matriz – o traço, intensifica sua carga fruitiva a um lugar de comunicação humana, gerada “como proposta de um ‘campo’ de possibilidades interpretativas, como configuração de estímulos dotados de uma substancial indeterminação, de maneira a induzir o leitor a uma série de ‘leituras’ sempre variáveis; enfim como ‘constelação’ de elementos que se prestam a diversas relações recíprocas”4 Relações essas que só podem ser pensadas no embate com o cotidiano da urbe. Daí o fato de que a Pichação amplia os sentidos da cidade para COMUNICAÇÃO 191
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lugares que interagem em sua dimensão sócio-cultural, pois sua existência caótica solicita novas estratégias ou práticas políticas que dimensionem seu caráter positivante. O que sugere que as ações da Pichação interpelamnos a um pensar nosso papel na cidade, na medida em que confrontam, em seus signos, nossas mazelas cotidianas, acentuam o caráter de sua amplitude intervencionista que intensifica a necessidade de sua fruição compreensão no corpo da cidade. De nenhum modo há nas intervenções da Pichação um sentido de perenidade introduzido a partir de sua ação, posto que constantemente essas imagens são absorvidas pelas intempéries do tempo, removidas das superfícies ou substituídas por outras camadas de tintas nas paredes da cidade. Daí o fato de que seu caráter efêmero intensifica seus sentidos. 3. TRAMAS URBANAS NAS BNORDAS DO INSTITUÍDO O espaço urbana de Belém foi despido de seu “modelito” asséptico há algumas décadas, tempo que acreditamos durar a experiência da Pichação no corpo da cidade. Hoje, a metrópole paraense funda-se como um objeto que incessantemente sofre intervenções expressivas e comunicativas da Pichação em todos os seus bairros. Alguns mais intensamente interferidos que outros, mas nos quatro cantos da cidade os traços do spray instauram uma visualidade cáustica no cotidiano, assegurando, num certo sentido, isto que chamamos de real. Que possibilidade significativas podemos entrever da Pichação para além de sua condição de crime, vandalismo, coisa de gangue, marginalidade etc? Gostaríamos de articular alguns sentidos que essas imagens nos sugerem e tomá-las por outras vias que não a do lugar artístico e estético e do diálogo com a crítica e a história da arte, o que de positivante tal fato urbano nos revela; ao mesmo tempo resvalar no social, para não tirarmos os olhos deste “reservatório de eletricidade”, na expressão de Baudelaire, que é a cidade. O que temos percebido na epiderme citadina de Belém é uma forte presença do fenômeno que nos últimos anos tem se intensificado a tal ponto de nos levar a esta reflexão. Tal percepção ancora-se em nossa exprimentação da cidade enquanto lugar de confronto. E nesse transitar nas ruas da cidade captamos do lugar de um flâneur contemporâneo, a configuração do tecido urbano a impulsionar novos fatos, estendendo tais fatos para campos onde se estruturam inúmeros focos de tensão. Daí a importância dos elementos que atuam nesse trânsito inter-relacional que a cidade gera, articular, sensibiliza. E nos processos de intervenção que assomam o espaço urbano estão as Pichações a aprofundar esse estado de tensão. Como Anna Barros diz: ”que a imaginação poética imprime organizações, talvez ainda mais individuais, por serem em geral percebidas emotivamente de forma
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mais aguda e que são confrontadas constantemente com as do ‘local’ como sócioculturais, o que cria uma tensão aguda (grifo nosso)”5 É uma visualidade desconcertante prsente em praticamente todas as ruas; mesmo que num repentino olhar nos depararmos com os traços de spray, onipresentes, forçando-nos, transeuntes despercebidos, a um confronto algo fruitivo, instigando a sensibilidade a reações variadas e prmovendo a reflexão, numa constante tensão aguda. Essas interferências inserem-nos numa visualidade nova no tecido epitelial citadino, em que as paredes são cobertas de signos urbanos, periféricos, a maioria impossível de identificação de seus significados, mas abrindo a experimentações das “garatujas” que marcam as paredes da cidade. Gangues, vândalos, hordas urbanas e periféricas, “artistas anônimos” demarcando territórios, ativando intervenções, fazendo-se ouvir nas lutas do dia-a-dia como comunicadores de um tempo de tensão. Marcam o contemporâneo dizimador das subjetividades com suas interferências como nos grafismos parientais das cavernas pré-históricas. É importante frisar que as Pichações não se enquadram num tradicional sentido de arte; ou talvez seriam apenas uma espécie de anti-arte produzindo fluxos reflexivos, atitudes comunicativas. Do mesmo modo com as intervenções de alguns movimentos na década de sessenta reafirmavam a tendência de uma arte que inclui o ambiente (land art, earthwork), extremamente necessário às experiências dilatadas do sentido de arte engendradaa na contemporaneidade. Ou mais remotamente os anônimos artistas das cavernas de Altamira e de Lascauz, do Piauí e do Pará. Mas isto é irrelevante ante o fato de que as Pichações têm criado uma instigante escrita a subverter uma espécie de cidade asséptica. Belém contemporânea é nada mais que campo de possibilidades para espectadores sonolentos em dias quentes. Cidade-obra revestida de vitalidade dos gestos a construírem uma cidade outra, onde a ação pulsante da Pichação vibra a partir de um emaranhado de linhas e texturas. O espaço citadino é corpo totalizador, objeto bruto reverberante. Este expressionismo local veste a cidade com uma assinstura nervosa, radical e instigante. 4. GARATUJAS SUBVERSIVAS O crítico e historiador americano Charles Harrison discutindo o Expressionismo Abstrato afirma sobre a obra de Pollock “Nessas grandes e implacáveis pinturas, as próprias imagens são ‘caracterizadas por ausência’”6. Na cidade a ausência ressoa uma dimensão de auto-sobrevivência na medida em que as formas criadas imputam o lugar de uma expressividade a comunicar as experiências traumáticas na urbe. As grandes áreas pichadas que assomam as paredes da cidade revelam, num sentido analógico à afirmação de Harrison, a ausência de políticas culturais includentes dos “periferas” – não só no sentido geográfico do termo. E tais políticas quando COMUNICAÇÃO
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existem são solapadas pela efemridade de suas existências, ou subjugadas pelas alternâncias dos poderes a jogarem com os indivíduos na capitalização de ônus político. Dessa forma, a Pichação afirma-se na cidade, que é suporte, desvirginado por mãos anônimas, marcando paredes de estabelecimentos comerciais, residenciais e muros; desautorizando o falso sentido da assepsia da cidade em constante turbação, assim como afirma as contradições que no geral são anuladas nos discursos oficiais. Os gestos de nossos “artistas-pichadores” incorporam uma energia pulsante num processo que se quer também catártico e caótico. Veste-se como comunicação intensa de vozes periféricas prenhes de necessidades e desejos na tela-cidade em branco, a solapar qualquer possibilidade de conforto e segurança no tempo presente; reativando, às avessas, os indivíduos pelo fato de que “todos estão alinhados no seu delírio respectivo de identificação com modelos diretores, com modelos de simulação orquestrados.”7 Somos impelidos no cotidiano bocejante a contemplar as Pichações que apinham as fachadas, os muros, os portões na epiderme doida da metrópole paraense. Belém configura-se hoje como uma espécie de folha de papel em branco nas mãos de uma criança, a cobri-la de rabiscos e garatujas subversivas, em que papai, mamãe e a tia são impossibilitados de reconhecerem como bonitinhos. O historiador de arte italiano Guilio Carlo Argan diz que “Pollock não utiliza a pintura para exprimir conceitos e juízos: desafoga sua cólera contra sociedade do projeto, fazendo sua pintura uma ação não projetada e não garantida contra o risco”8 . daí o fato de que o entendimento das Pichações preenche essa afirmação pelo fato da presença de uma intensidade de traços em que seu próprio ritmo e espessura estão marcados por essa cólera contra uma sociedade excludente, marginalizadora. A certeza do risco num confronto com a institucionalidade estão próximos, além de confrontar também como em Pollock, os monstros interiores. O noturno caminho percorrido pelos “artistas-pichadores” quando da descoberta dos visíveis e potenciais espaços da cidade reafirmam um sentido transgressor da arte, hoje subjugada por uma institucionalidade diluidora, vestida no seu sentido mais cínico: a mercadoria. A cidade, agora, é o habitat das energias e ações periféricas que enriquecem o presente de um novoe inigualável lugar da comunicação e expressão humana. 5. O GRITO MUCHIANO O historiador e crítico Agnaldo Farias sem eu texto “A arte e sua relação com o espaço público” diz que “a cidade é o maior exercício que nós temos. Na cidade há uma proliferação de matérias. É uma memória ao mesmo tempo individual e coletiva porque os espaços falam de nós”9
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Pensamos que nesta afirmação encontra-se um outro sentido da experiência da Pichação, na medida em que a cidade é tomada como um exercício de liberdade a desautorizar os espaços privativos, impingindo ao próprio modus vivendi da cidade um outro lugar da subjetivação e, ao mesmo tempo, constituindo uma outra visualidade. A Pichação nasce do próprio impacto que a cidade produz, do rechaçamento da liberdade e da expressão da massa periferializada nas bordas do instituído. Como pensar na Pichação senão como o grito munchiano do homem oprimido na cidade. E nas imagens que registramos como íntimas vozes num coro de contraposição, marcada no concreto, ao modelo excludente em curso no país. No discurso oficial das políticas-turísticas-globalizadas que a mídia se encarrega de forjar em Belém, a cidade é o lugar da limpeza, da felicidade (o epíteito feliz, sempre aparece nas propagandas oficiais), da fraternidade, da paz – edição fajuta do paradigma iluminista da liberté-igualité-fraternité. A assepsia que a fala autorizada e mediática produz não funciona na realidade, pois se quer genérica e unidimensional, o que nega o caráter metamorfoseador, dinâmico e complexo da cidade. A assepsia urbana que é fabricada pelo discurso-imagem estetizado da publicidade dos poderes locais é apenas fala emudecida de si mesma. Há um distanciamento entre a cidade-real e a fala-cidade que lhe dá corpo próprio, pois que passa a constituir “uma cidade sem riscos, uma cidade sem sobras, sem lacunas, sem brechas pelas quais possamos ao menos vislumbrar o seu ocaso, ou o seu ultapssamento uma vez experimentada coletivamenete a necessidade de fazer explodir seu corpo institucional, sua política de produção alienante e degradante”10 Nesse tangenciamento algo similar ao que André Queiroz destaca em seu texto sobre a cidade cenário do filme O Show de Truman de Peter Weir, é que compreendemos uma cidade que só experimentamos em sua percepção imagética, em seu falso, pois que a realidade não é vislumbrada em cores de paleta brilhante e retocada digitalmente. Nessa direção, as imagens da Pichação assomam o espaço urbano reeditando novos modos de entendimento do real, fazendo-se marcas de uma tempo de violência, signos de resistência às práticas dizimadoras da massa em turbação. Reflete de um modo concreto o engendramento do cáustico no cotidiano urbano. Suas formas são constituídas a partir de linhas, traços, riscos, signos de spray sobre qualquer superfície dque sugere o rompimento com certa promiscuidade repressora. Caracteriza uma ação que desafia poderes e valores. Pode ser entendida na expressãode Gilles Deleuze como “agenciamentos coletivos de enunciação” instauradores de ritos de sobrevivência no cotidiano. Diríamos que a tela-cidade é entrevista como potência deflagradora de uma expressão coletiva, pois as sucessões de interferências, umas sobre as outras, sugerem esta repetição de imagens como se, de apenas uma única ação, forjassem tal expressividade. COMUNICAÇÃO 195
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Charles Harrison discorrendo sobre as pinturas em preto e branco de Willen De Kooming que clama de “conglomerado quase abstrato de formas sugestivas”11 diz: “Essas telas densas, extraordináris, parecem, de um modo geral, ter-se originado de elementos e métodos quase automatistas, fragmentos recortados e colados de figuras, justaposições em colagem etc”12 Harrison processa o modo como as Pichações se articulam na cidade. Temos aqui, de modo preciso, a expressão mais bem acabada que caracteriza as poéticas expressionistas: um atravessamento automáticos gerador das formas das Pichações. Nada mais preciso na fala do crítico para visualizarmos os sentidos da experiência da Pichação do que essa espécie de automatismo processa. Entendemos de um modo bem específico que apesar da ação intensiva do gestual dos “artistas-pichadores” sugerirem tal automatismo psíquico, suas estratégias impõem-se como um brutal estado de consciência desse fazer, interferiri que promove um repetir-se de signos e gestos calculados e profundamente conscientes, pois que é gerado peas “convulsões” caóticas da metrópole paraense. É, de fato, processo aberto intensamente estético combatendo de um modo caótico as ausências na urbe, implicando em certa medidade, o esfacelamento dos limites instituídos da cidade. Esse desarticular os limites como conjunto de intervenções agressivas e predadoras do espaço possibilitam mais do que um questionamento sobre o espaço público, a necessidade de um ambiente que favoreça o desenvolvimento ação que desafia poderes e valores. Pode ser entendida na expressão de Gilles Deleuze como “agenciamentos coletivos de enunciação” instauradores de ritos de sobrevivência no cotidiano. Diríamos que a telacidade é entrevista como potência deflagradora de uma expressão coletiva, pois as sucessões de interferências, umas sobre as outras, sugerem esta repetição de imagens como se, de apenas uma única ação, forjassem tal expressividade. ampliado dos indivíduos, suas necessidades reais de lazer, arte, cultura para citar aquelas mais ligadas a experiências subjetivas. Mostrar que a Pichação está ligada também a uma prática automática é um modo de acentuar sua fenomenização no espaço urbano a partir de suas próprias contradições sociais que esse mesmo espaço engendra. Ernst Kinchner membro do grupo expressionista alemão Die Brücke afirmava que “a sublimação instintiva da forma no acontecimento sensível é traduzida de impulso no plano”13. Esse impulso é provocador de práticas artísticas produtoras de novos aguçamentos dos sentidos de espectadores mecanizados pela própria configuração burocrática da cidade, onde os espaços disciplinam o próprio modo de concebê-la e vivê-la intensamente. Assim, “quando a fragmentação e o caos parecem avassaladores, defrontar-se com o desmedido das metrópoles como uma nova experiência das escalas, da distância e do tempo. Através dessas paisagens, redescobrir a cidade.”14 196 COMUNICAÇÃO
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E o desmedido da metrópole é palco aberto onde as Pichações estão presentes a um constante estado de processamento fruitivo que caracteriza uma redescoberta, pressupondo um perceber de todas as estruturas matéricas, sociais, políticas e culturais que assomam a cidade. A Pichação não representa a cidade, ela é a cidade enquanto parte integrante de seu corpo mundano, de sua estrutura e configuração. Não poderíamos pensar nessas intervenções que subvertem a legislação vigente apenas como ato de destruição do espaço. Se tais impulsos no plano da cidade sugerem a barbárie, de outro modo revela desejos e necessidades que estão além do lugar ofuscado da legislação caduca que a rechaça. Ainda assim, a Pichação impõe pela ação artística, ato poético, marcado em sua dimensão transgressora, o sentido mais profundo de arte: o dilatar de todas as esferas da vivência humana, e que instauram, neste caso, um pensar em lei naquilo que ela tem de autoritária e punitiva. O que podemos entender das imagens que se espraiam pelo cotidiano da cidade, imensamente marcado pelos grafismos do spray interessam menos que a própria significação dos gestos, pois de uma certa forma “a experiência estética do mundo moderno parece, pois, consistir em violentas, mas transitórias, descargas emotivas, que não podem, contudo, dar lugar à fixação de valores ou à constituição de um patrimônio de imagem”15 E, nesse aspecto, podemos afirmar o caráter efêmero das imagens da Pichação como sua dimensão de existência e essencialidade, fazendo parte de um sentido totalizador da cidade como corpo-obra. Belém está revestida de novas configurações sem eu sensível e tateável corpo sedutor. Pode ser captada como “horizonte saturado de inscrições, depósito em que acumulam vestígios arqueológicos, antigos monumentos, traços de memóriae o imaginário criado pela arte contemporânea”16. Embora aqui a cidade seja tomada em sua nudez mais sensível e pragmática, afastando-se de possível virtualidade, passível de subversões várias. Essa subversão vai se revelando nas inúmeras tramas das Pichações; são teias que marcam cada espaço da cidade impregnando o espaço de uma visualidade quase que natural em grafismos urbanos. Não é possível mais entrever a cidade sem suas tramas de Pichações. Não há uma definição para cada espaço pichado, mas há um todo intercomunicável de espaço para espaço. É possível um confronto que se propõe como campos pictóricos construídos pelos traços do spray que se amalgamam com o fundo que é a parede, os muros, os portões. O que se percebia antes era um predomínio de superfícies interferidas com apenas preto e branco; hoje as intervenções se ampliaram, a ponto de inúmeras formas em variadas cores, serem identificadas pela cidade. Ainda assim, articula-se espécie de desordem que desequilibra as superfícies bem acabadas de íntimas paredes com velhas superfícies novamente revisitadas mantendo viva a teia de formas grafitadas como tatuagens no corpo da cidade.
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Acentua-se assim, mais e mais, os inúmeros lugares e sentidos do homem que habita a cidade. Como que para construir o que chamamos aqui de intervenção artística urbana, imantada na densidade de sobrevivência histórica. Portanto, não há, em última instância, possibilidade de rechaçamento das intervenções na cidade, seja da Pichação ou de outra forma qualquer de resistência à repressão e submissão instaurada na urbe, pois a intervenção, é o que defini de um modo existencial, a cidade naquilo que ela é e sempre será: lugar de confronto, lugar de tensão. 6 CONCLUSÃO Esta discussão da Pichação a partir do conceito de Intervenção Artísitca é apenas uma forma de dar relevo a umfenômeno que marca a cidade de Belém como lugar de tensão demarcando sua identidade. A idéia de articulála comoespécie de Expressionismo Abstrato urbano, responde a uma série de entrelaçamentos possíveis e diálogos com outras formas e visões que foram citadas neste trabalho. Como propomos na sua introdução, de ampliar a discussão para campos outros, sem a pretensão de fechar a discussão em torno de tal fenômeno, visto que esta não é a característica de nossa postura reflexiava, e aqui se dá como percurso inicial. De outro modo, estas discussões levantadas são pertinentes, na medida em que a arte como processo dá-se de diferentes modos, e seu devir, pressupõe uma prática-reflexiva sempre desconfiada de outros fenômenos menos discutidos, como é o caso da Pichação. Se a cidade é, como afirmou Agnaldo Farias “o maior exercício que nós temos”, então aqui propus caminhos reflexivos para um fenômeno que não se quer instituído dentro de uma categoria modelar de discussão, mas intervenção que assinale uma postura inteiramente marginal, quer queiramos ou não. Assim, fica aqui a proposta de ampliação das perspectivas e intenções de um trabalho que é apenas seminal no campo da reflexão estética e artísitca. Mestrando em História e Crítica da Arte pela EBA/UFRJ e professor de Estética e História da Arte na UFPA
BIBLIOGRAFIA
ARGAN, Guilio Carlo. Arte Moderna. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. BASBAUM, Ricardo. “Quatro Características da Arte nas Sociedade de Controle”. Texto Mimeo. S/D. DE MICHELLI, Mario. As vanguardas artísitcas do século XX. São Paulo: Martins Fontes, 1991. ECO, Umberto. Obra Aberta: forma e indeterminação nas poéticas contemporâneas. São Paulo: Perspectiva, 1991. FUSCO, Renato de. História da Arte Contemporânea. Lisboa: Presença, 1988. PEIXOTO, Nelson Bissac. Paisagem Urbana. Editora SENAC São Paulo: Editora Marca D’Água, 1996. QUEIROZ, André. “O Show de Truman: usos e abusos da sociedade mediática”. In: “Tela Atrevssada: ensaios sobre cinema e filosofia”. Belém: Cejup, 2001. 198 COMUNICAÇÃO
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STANGOS, Nikos. (org). conceitos de Arte Moderna. Jorge Zahar. Ed: Rio de Janeiro, 1994. Boletim Arte na Escola, nº16. Porto Alegre: Pró-Reitoria de Extensão da UFRGD/ Fundação Iochpe, maio/junho, 1997. REVISTA USP, São Paulo, nº. 40, dez/fev. 1998-1999. Notas: 1 DORFLES, Gillo. Tendências da arte de hoje. Lisboa: Arcádia, 1964. 2 in: A metrópole e a arte. Et alli. São paulo: Prêmio, 1922. 3 BASBAUM, Ricardo. Op. Cit. p. 5. 4 ECO, Umberto. Op. Cit. p. 150. 5 BARROS, Anna. Espaço, lugar e local. In: REVISTA USP, São Paulo, n. 40, p. 33, dez/ fev. 1998-1999. 6 HARRISON, Charles. In: STANGOS, Nikos. (org.). Conceitos de Arte Moderna. Jorge Zahar. Ed: Rio de Janeiro, 1994. p. 131. 7 BAUDRILLARD, Jean. Kool Killer: a insurreição pelos signos. texto mimeo. Rio de Janeiro, s/d. p. 37. 8 ARGAN, Giulio Carlo. Arte Moderna. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. p. 622. 9 FARIAS, Agnaldo. Op. Cit. p. 6 10QUEIROZ, André. “o Show de Truman: usos e abusos da sociedade mediática”. In: “Tela Atrevessada: ensaios sobre cinema e filosofia”. Belém: Cejup, 2001. p. 27. 11HARRISON, Charles. Op. Cit. p.133. 12HARRISON, Charles. Op. Cit. p.133 e 134. 13DE MICHELLI, Mario. Op. Cit. p. 80. 14 PEIXOTO, Nelson Brissac. Paisagem Urbana. Editora SENAC São Paulo: Editora Marca D’Água, 1996. p. 13. 15FUSCO, Renato de. História da Arte Contemporâneo. Lisboa: Presença, 1988. p.69. 16PEIXOTO, Nelson Brissac. Op. Cit.p.10
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RAÇA E REVOLUÇÃO: ALFREDO NORFINI E A PINTURA DA CABANAGEM
MAGDA RICCI*
RESUMO: Em 1940, Alfredo Norfini, um conhecido retratista italiano residente no Rio de Janeiro, pintava duas telas históricas, tendo com motivo principal a Cabanagem. A primeira, Cabano Paraense, retratava um homem simples, de pés descalços e chapéu de palha, configurando o mestiço como típico cabano de 1835. A segunda tela, Assalto dos cabanos ao trem, é uma evocação ao episódio mais conhecido dentro do processo de retomada de Belém pelos cabanos, em agosto de 1835. Nela, uma multidão de anônimos enchem o quadro numa perspectiva de conjunto: era a eclosão da massa revolucionária mestiça. Estas duas telas sempre foram as imagens pictóricas por excelência para o estudo da Cabanagem. De 1940 até hoje, o mestiço de Norfini se transmutou. Nascem outros típicos cabanos: do revolucionário de arma em punho ao homem simples da Amazônia em luta aberta contra a exploração colonial. O objetivo principal desta comunicação é compreender mais de perto o que o pintor retratava em 1940, procurando desmistificar a noção de obra de arte como retrato da realidade, reinserindo essa produção no contexto dos debates políticos e intelectuais do entre-guerras na Amazônia.
NOTAS: *
Doutora em história social pela UNICAMP e professora do DEHIS (UFPA)
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RÉCITA DIDÁTICA SOBRE AS “CENAS INFANTINS”
URUBUTAN CASTRO
As conquistas tecnológicas no campo da música pouco representariam para o desenvolvimento da linguagem musical, se a elas não se aplicassem modelos composicionais que sustentassem formal e estruturalmente a organização sonora dos novos materiais a serem empregados em determinada obra. Paul Stoffel
RESUMO EXPANDIDO: O trabalho relatado é o resultado das composições iniciadas no Curso de Composição da Escola de Música da Unicamp na primavera de 1997, com o objetivo de oferecer às crianças um material com características nacionais. Atualmente é imprescindível a valorização das técnicas pianísticas de ensino direcionadas para a educação musical. Na música contemporânea brasileira, muitos compositores dedicam parte de suas composições ao repertório musical infantil, vindo esses trabalhos, além de oferecer um embasamento técnico, expressar uma linguagem musical com raízes genuinamente brasileiras. Com esse mesmo propósito, é que se buscou associar o desenvolvimento de uma técnica pianística traduzida por uma linguagem musical própria, e ao mesmo tempo, procurou-se explorar os recursos sonoros utilizados pelas modernas técnicas de composição, sem perder de vista as referências nacionais. Com esse intuito, cada uma das composições é baseada em diferentes tendências musicais, como por exemplo: tonalismo, bitonalismo, cromatismo, clusters, ressonâncias, efeitos percutidos e exploração timbrística. Tal abordagem tem por finalidade única dar aos nossos alunos o direito de escolha de sua própria vivência musical.
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Demonstrar a relevância da utilização da linguagem musical contemporânea na formação musical do aluno e a adaptação dos mesmos à produção musical moderna é o objetivo geral do trabalho Através de diferentes práticas procura-se especificamente: •Despertar no aluno o interesse pela música contemporânea; •Demonstrar que: o que o aluno ouve e toca durante sua formação irá influenciá-lo em sua produção musical; •Demonstrar que determinadas técnicas pianísticas utilizadas nas “Cenas Infantis” servirão como técnicas básicas na formação, podendo ser posteriormente utilizadas na execução de obras de maior envergadura. Utilizando um conteúdo programático abrangente fez-se uma breve referência histórica enfatizando uma nova linguagem na Música Contemporânea utilizando a dissociação de mãos e pés na inserção da percussão no repertório pianístico; a percepção diferenciada de uma audição tonal e não tonal, os diferentes recursos timbrísticos de efeitos especiais de notas e demais sons obtidos com o aproveitamento da caixa acústica e demais componentes do piano. A exploração da dinâmica e da agógica como elementos interpretativos, o cromatismo, princípio de trêmulo, o modalismo, o tonalismo e o bitonalismo e o atonal, apresentados de forma prática evolutiva utilizando algumas estratégias para a apresentação e elucidação das linguagens utilizadas, tais como: exposição de exemplos; recursos audiovisuais e récita didática das “Cenas Infantis”. Os recursos materiais utilizados, em princípio são o Piano, o Retroprojetor, Transparências das “Cenas Infantis” e Aparelho de som (cassete e cd) e demais recursos que possam vir completar a estratégia de ensinoaprendizagem. BIBLIOGRAFIA BACELAR, Hélio. Miniaturas Para Piano. Vitória da Conquista: Ed. Artes Gráficas. PRADO, Almeida. Kinderszenen. Damntadt:1984. WIDMER, Ernest. Ludus Brasilienses. V. 1,2,3,4,5. São Paulo: Ed. Ricordi, 1966. DORTA, Cleide Bejamim. Proposition. Recife: Editoração Particular, 2001. SCHOEMBERGUE, Arnold. Fundamentos da Composição. São Paulo: ed. Edusp, 1996. ALMADA, Carlos.Aranjo. Campinas: Ed. UNICAMP, 2000. KAPLAN, José Alberto. Teoria da Aprendizagem Pianística. Porto Alegre: 2ª Ed. Musas, 1987. FONTAINHA, Guilherme Halfeld. O Ensino do Piano. Rio de Janeiro: Ed. Carlos Wehrs & Cia Ltda, 1956. TRAVASSOS, Elizabeth. Improvisações, Oralidade e Gravações Sonoras. Salvador: Ed. UFBA, 1981. KLAPAN, José Alberto. O Ensino do Piano. João Pessoa: Ed. UFPB, 1978. PERGAMO, Ana Maria Locatelli. La Notacion de La Música Contemporânea. Buenos Aires: Ed. Picordi, 1972.
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COMUNICAÇÃO: UM PROJETO DE INVESTIGAÇÃO ARTÍSTICA E SOCIAL - O PALÁCIO LAURO SODRÉ
BERNADETE REALE
Das várias maneiras que o homem se apropria da natureza, obtém inúmeros produtos, que em sua grande maioria adquirem aspectos e formas que negam a matéria prima que lhes deu origem. Essa elaboração e criação são tão complexas que em inúmeros exemplos o objeto se torna antagônico à natureza, gerando um distanciamento do homem para com a mesma. Acredito que interações artísticas mediatizadas, que busquem a valorização do homem e o tomem como agente capaz de compreender e atuar, modificando sua realidade, possam ser facilitadoras para mudança no estado de divórcio do homem com o meio ambiente. Como artista plástica, venho a algum tempo pesquisando os materiais provenientes da natureza e suas utilizações no mundo contemporâneo. Através dos objetos que construo, faço uma analogia entre a natureza e a criação que o homem elabora, estética e conceitualmente. No meu processo de trabalho, o entendimento das relações estabelecidas na sociedade, tornase necessário. Essa necessidade se torna evidente, quando, em minha pesquisa sobre as possibilidades cerâmicas e seus primeiros usos na sociedade, descobri que os primeiros ex-votos eram confeccionados em cerâmica ou pedra, tomando a forma de partes do corpo humano. A partir desse conhecimento, elaborei e executei em conjunto com outros profissionais a instalação1 denominada ANSEIOS2. Após a referida instalação comecei a pesquisar os principais argilominerais e minerais encontrados no Estado do Pará, visitando para isso algumas minas e algumas indústrias instaladas na região norte e até mesmo em
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Minas Gerais para fazer uma análise comparativa. Realizei também algumas visitas ao laboratório de química da UFPa para entender a composição dos materiais. Meu interesse passou a ser a constituição da matéria, suas propriedades e a capacidade de se transformar em materiais completamente diferentes de sua natureza primeira. No universo da mineração convivi com profissionais de outras formações e me identifiquei com os signos que permeiam aquele espaço assim como observa Mariza Mokarzel no texto da curadoria da exposição Acordo Composto3 “ houve o encantamento pela matéria e o moldar do barro foi sendo substituído por uma atitude conceitual em que o que está por trás assume a dianteira e ganha um lugar privilegiado no espaço. O objeto é decomposto, o olhar se detém na radiografia da matéria”. Essa experiência foi se configurando na construção de trabalhos que uniam material industrializado e sintético (plástico) e materiais naturais, (minérios) formando a exposição Acordo Composto . A partir daí meu projeto de pesquisa se voltou para pesquisar os minerais após o processo industrial e a forma como se apresentam no cotidiano, dessa forma meu olhar se voltou para a cidade; a cidade como espaço visual. Mais precisamente, detendo-me nas construções, nos materiais da natureza que lhes dão forma; questionando como o homem se relaciona com essas construções e materiais a partir dos valores históricos e estéticos que lhe são atribuídos. O meu instrumento de trabalho é o fazer artístico, mas proponho uma reflexão , através da linguagem artística e sociológica Para ser mais eloqüente, cito Rocha em seu texto “O espaço como suporte para a arte pública”: .... O homem compreendeu que seu destino é, com toda contradição que isso possa implicar, construir seu espaço habitado. E que aquela natureza que nos interessa já é uma natureza com uma nova dimensão nunca vista antes e que só nós mesmos podemos contemplá-la, amá-la e desejá-la. Trata-se daquela natureza de dimensão humana, que é a natureza do espaço construído. A história mesmo é uma construção. E essa visão, cujo caráter é aparentemente um tanto quanto autista enquanto discurso, é uma visão, entretanto da monumentalidade de nossa própria existência. Acho que deveríamos serenamente enfrentar essa monumentalidade e saber que a questão das artes, antes de mais nada qualifica o gênero humano na natureza. É a possibilidade da manifestação artística ou a possibilidade de raciocinar de modo artístico. Talvez seja essa a característica que distinga mesmo o que é gênero humano no universo.( 1998: 31) Neste sentido hoje focalizo meu interesse sobre a edificação do Palácio de Landi, construído em 1771 entre os dois primeiros bairros de fundação da cidade. Este prédio é um legado do período colonial, que sofreu muitas alterações em sua concepção original, causadas, principalmente, pelas reformas no período da República. A construção projetada pelo arquiteto italiano Antônio José Landi, sediou inúmeros governos em Belém e testemunhou importantes cenas históricas.
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Este palácio, denominado, Lauro Sodré, foi palco de grandes atos políticos e sociais. Trata-se de um patrimônio cultural que funciona como símbolo arquitetônico do poder político e da arte, atravessando o imaginário de várias gerações. Vale ressaltar que este cenário, que abriga histórias e ações sociais, traz os vestígios das mãos dos homens simples que ergueram paredes, compartimentos, revelando técnicas antigas de construção e o emprego de materiais bem peculiar à natureza amazônica Esse prédio do século XVIII, contém ainda uma história silenciosa, que percorre os traços, quase escondidos, nos quais está presente o encontro do homem com a natureza; uma natureza transformada em monumento arquitetônico. A visão muito pouco cartesiana do bem ou do mal, vale ressaltar, que sua indiscutível capacidade de criação tem nos mostrado o quanto se pode obter da natureza, quão rica é sua diversidade e com quantas ou em quantas formas pode se apresentar. Sob esse ponto de vista Baudrillard escreveu: “a civilização urbana vê sucederem-se, em ritmo acelerado, gerações de produtos, de aparelhos e de construções, frente aos quais o homem parece uma espécie particularmente estável. Os objetos cotidianos proliferam, as necessidades se multiplicam, a produção lhes acelera o nascimento e a morte, falta vocabulário para designá-los.Hoje em dia, o valor não é mais de apropriação nem de intimidade, mas de informação, invenção, controle, disponibilidade contínua para com as mensagens objetivas que funda convenientemente o discurso do habitante moderno”. (2000: 31) Dentro deste cenário, encontramos as edificações, construções que no início da história do homem não passavam de uma modificação superficial do ambiente natural, uma cavidade ou um refúgio de peles sobre uma estrutura simples de madeira. Esse processo construtivo vai, com o tempo, adquirindo formas e adaptando-se ao ambiente que o homem concebe, quer seja para seu uso doméstico, quer seja para seu trabalho e lazer. No entanto, as edificações servem, muitas vezes, como referencial, trazendo ao longo do tempo, dados estéticos, sociológicos, econômicos, políticos, científicos e tecnológicos de uma época. As construções, que também são feitas com materiais provenientes da natureza, tomam assim, como a grande maioria dos os objetos, formas e adquirem através da arquitetura uma estética que acompanha o tempo e refletem os valores de um período. A cidade, dizia Marcílio Ficino anpud Argan (1998; 228) ... não é feita de pedras, mas de homens e são os homens que atribuem um valor às pedras, e todos os homens, não apenas os arqueólogos ou os literatos . É preciso prescindir, portanto, do que parece óbvio e ver como ocorre, em todos os níveis culturais, a atribuição de valor aos dados visuais da cidade. O espaço urbano, dependendo de como é concebido, pode criar um divórcio, um cizalhamento entre o homem e seu meio, chegando ao desencontro com a sua própria identidade cultural.
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Partindo dessa reflexão me interrogo: e a onde está o “nós comum” que circula no palácio, na praça Dom Pedro II, em todo aquele entorno?. Como podem estabelecer um contato mais íntimo com esse patrimônio histórico e artístico? Como assimilam este patrimônio como algo seu, que é importante para sua cidade e enquanto museu, instituição de arte e cultura, pode contribuir com a sua formação de cidadão e com o conhecimento que possa ter sobre arte e história de Belém? Junto com todos esses questionamentos perpassa o ponto quase escondido que revela as mãos construtoras, a relação homem/natureza, presente nos materiais que constituem o prédio. Elementos minerais e orgânicos, encontrados na região, que não estão visíveis, mas estruturam a construção: como a argila, o caulim, a bauxita. Muitos desses materiais estão presentes nos utensílios encontrados no Ver-o-Peso, na construção das casas daqueles que circulam pela cidade velha e ali trabalham. Na Amazônia, apesar da existência de trabalhos históricos sobre o Palácio Lauro Sodré, estudos que tenham como objeto esta edificação e sua representação no imaginário da comunidade onde está inserido, que pretendam analisar a relação homem/natureza, a partir dos materiais que constituem o prédio, que objetivem através da arte estabelecer uma conexão com a comunidade, utilizando meios que favoreçam do homem com o espaço urbano em Belém, não tem sido desenvolvidos. As propostas de interferir no espaço urbano e de interagir com a sociedade são as mais variadas e conseguem os mais inusitados e inesperados resultados. A esse respeito Paulo M. Rocha4 escreveu: “Como todo discurso, trata-se de um diálogo permanente, o artista ensaia seu discurso e a população reage. Isso é um pouco imprevisível e não podemos fazer diagnósticos com precisão. Temos de experimentar, experimentar muito. Devemos fazer o máximo possível para que a arte apareça no espaço público. A questão da arte não se liga apenas àquilo que chamamos de obra de arte dessa forma emblemática. Também gostaria de chamar a atenção para o estabelecimento de uma consciência sobre o quanto tem de valor artístico e de interesse aquilo que normalmente parece simplesmente à cidade”.(1998:32) Pretendo assim despir o prédio, fazendo uma radiografia de suas estruturas, causando um estranhamento, tentando provocar uma reflexão sobre sua constituição e sobre sua representação. Trata-se de uma interferência artística, de natureza efêmera e de caráter momentâneo, que contrasta com as interferências profundas que o prédio sofreu na decorrência da sua história, com restaurações e alterações indevidas que lhe alteraram o perfil original. Embora se possa identificar teoricamente as etapas de uma pesquisa em artes, na prática essa identificação e separação não são tão simples, existem superposições. Na maioria das vezes o processo de trabalho é uma viva interpretação dos dados observados.
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Sobre esse aspecto Salles, tecendo uma reflexão sobre o entendimento de Marx a respeito do processo de criação se refere com muita propriedade que “... o artefato que chega as prateleiras das livrarias, as exposições ou aos palcos, surge como resultado de um longo percurso de dúvidas, ajustes, certezas, acertos e aproximações. Não só o resultado, mas todo esse caminho para se chegar a ele é parte da verdade que a obra carrega”.(1998: 25). REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA BAUDRILLARD, O Sistema dos Objetos.São Paulo.Perspectiva.2000 BAUDRILLARD, Simulacros e Simulação. Lisboa. Rélogio d’água .1991 BENJAMIN. Walter. Obras Escolhidas. São Paulo. Brasiliense. 1994. CORBUSIER, Le. Os três Estabelecimentos Humanos. São Paulo. Perspectiva.1976 BOURDIEU, Pierre. Introdução a uma Sociologia reflexiva. In: Poder Simbólico. Rio de Janeiro.2000 FILHO, Augusto Meira. O Bi- Secular Palácio de Landi. Belém.Grafisa.1973 FILHO, Augusto Meira. Evolução Histórica de Belém do Grão Pará.Vol. I e II. Belém.1976 MORAES, Angélica , Regina Silveira-Cartografias da Sombra. São Paulo.1996 PEREIRA e GARCIA, Arte Pública.São Paulo. SESC.1998 SALLES, Cecília Almeida. Gesto Inacabado. São Paulo. Annablume.1998
NOTAS:
Instalação - Nome dado, em artes plásticas, à exposição que tem como objetivo a integração do espaço com a obra de arte. ANSEIOS - A instalação Anseios foi resultado de uma pesquisa sobre cerâmica e da vontade de apresentá-la de maneira diferente da tradicionalmente conhecida em nossa cidade, mas que, no entanto, tivesse a ver com o espírito de Belém.Pensei, então na fé popular, no círio, e nele encontrei o conceito do trabalho, uma relação entre o sagrado e o profano. Ao deter-me nos ex-votos, na parte do corpo que mais se adapta a essa relação entre o universo religioso e o universo da sensualidade cheguei aos seios. A Instalação denominada ANSEIOS, foi realizada (colocar local e data) e contou com a participação de 70 (setenta) mulheres de várias classes sociais e diferentes faixas etárias. As réplicas de seus seios foram reproduzidas inúmeras vezes até a quantidade de 300 (trezentos) e dispostos em uma sala de cor púrpura, onde cada seio trazia uma etiqueta de tecido com o pensamento de cada mulher sobre sua relação com os mesmos, escrito em dourado. ( ver amazon.com.br/bernareale) 3 ACORDO COMPOSTO- Exposição de objetos confeccionados com plástico e minérios, realizada em 200-2001 4 Arte/Cidade:Projeto coordenado pelo SESC/ SÃO PAULO e tem como um dos principais objetivos levantar questões sobre a globalização das cidades através de intervenções artísticas no espaço urbano. 1 2
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SISTEMA INTEGRADO DE MUSEUS - SIM - SECRETARIAS EXECUTIVA DE CULTURA DO PARÁ - SECULT
ROSANGELA MARQUES DE BRITTO *
O museu é um serviço público a serviço do público O museu e a vida – Daniéle Giraudy e Henri Bouilhet IMAGEM MUSEAL O desejo de transformar - o museu em um serviço público a serviço do público vem sendo a imagem museal construída pela atuação das unidades museológicas do Sistema Integrado de Museus –SIM da Secretaria Executiva de Cultura do Pará. A implantação da gestão sistêmica teve como parâmetro de avaliação qualitativa o uso do termo Imagem Museal1 para referendar os parâmetros avaliativos adotados com objetivo de elucidar as dificuldades e os acertos nestes quase cinco anos de implantação do Programa de Gestão do Sim: 2000-2003. As duas imagens Museais de referência variam entre: uma Imagem Museal Conformadora: cristalizada em conteúdos e práticas regressivas e a Imagem Museal Transformadora, projetada no aqui e agora, no devir da sociedade2 . Esta experiência vem sendo construída por uma ação profissional interdisciplinar, respeitando a história de vida de cada um dos profissionais de museus comprometidos na construção da concepção de museu – como um serviço público a serviço do público - idealizada na Imagem Museal Transformadora. É o caminhar de um horizonte sempre à procura de
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espaços museais vivos, contínuas reflexões que possibilitem horizontes possíveis de liberdade, educação, preservação e mudança. PERCURSOS AVALIATIVOS: DESVELANDO IAMGENS IDEALIZADAS O início da construção desta imagem museal transformadora, é de Janeiro de 1998, ano que foi estruturado por Lei Estadual, o Sistema Integrado de Museus –SIM, tendo como objetivo integrar as ações de gerenciamento museológico e cultural de seus Museus, assim compostos: Museu de Arte Sacra –MAS, inaugurado em Setembro de 1998, o mesmo equivale a primeira etapa do Projeto Feliz Lusitânia e é o nosso museu de referência do Sistema; Museu do Estado –MEP (criado em 1983); Museu da Imagem e do Som – MIS (criado em 1973 e implantado em Março de 1983); Museu do Círio (Criado em 1988). Nesta estrutura organizacional foi criado um suporte departamental que objetiva desenvolver as funções básicas da museologia aplicada, consistindo em coleta, documentação, conservação, exposição e ação sócio-educativo – cultural dos bens patrimoniais. Este suporte departamental é composto por quatro divisões: preservação, conservação e restauração; educação e extensão; pesquisa e curadoria e a atuação colegiada do Conselho Consultivo de Museologia e uma Diretoria de Museus. Em relação ao organograma anterior de cada unidade museológica da SECULT ao atual em rede, destaca-se algumas dificuldades observadas quando atuei na direção do MEP e elaborei o diagnóstico institucional no ano de 1997 e posteriormente nas avaliações coletivas realizada em outros momentos com as demais unidades museológicas. O problema mais evidente é a concentração de todas as responsabilidades técnicas de restaurar, preservar, educar e expor o acervo e a administração do Museu concentrada em uma única figura - a do diretor do museu. Em relação ao atendimento público, observa-se em alguns casos, o horário irregular e a ausência de um serviço educativo compromissado com a função social dos museus e do processo de formação do cidadão. No que se refere às ações de documentação museológica e da guarda em reserva técnica dos acervos existentes.Estas ações encontravam-se sem as orientações metodológicas necessárias, ausência de um espaço físico específico definido para a função de salvaguarda e falta de equipe técnica e equipamentos. Enfim a administração das unidades museológicas existentes na estrutura da SECULT, como O MEP, MIS e Museu do Círio tinham suas ações de salvaguarda e comunicação isoladas, demonstrando a ausência de um plano comum de política e gestão museológica. Em 1998, ano que foi iniciado os estudos para implantação do Museu de Arte Sacra do Pará – Mas, a museóloga Maria Ignez Montavoni Franco, sugeriu a criação de um Sistema de museus, tendo como referência o existente em São Paulo. A partir de então, os estudos internos foram iniciados e culminaram com a configuração da atual experiência na área COMUNICAÇÃO 209
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de gestão museológica, em rede. A experiência foi pautada inicialmente pela integração do Museu de Arte Sacra ao Museu do Estado do Pará, Setembro de 1998 – até 2000. O Museu da Imagem e do Som e o Museu do Círio, suas integrações a rede ficaram para um segundo momento, após uma reflexão sobre suas tipologias e as necessidades de reestruturação. Na implantação do organograma várias relações de estrutura de gestão foram testadas, dividindo as responsabilidades e funções de cada divisão3. A primeira tentativa de estruturação seguiu a forma de funcionamento circular, buscando uma integração uniforme nos níveis de decisão, o que não funcionou motivado pela ausência de conhecimento da área específica de conhecimento e responsabilidade de cada diretor e chefe de divisão. A segunda forma de funcionamento foi do triângulo invertido, a culminância - as unidades museológicas – e as decisões compartilhadas entre a diretoria de museus e os chefes de divisões, também não funcionou, a mesma retirou a autoridade inerente a figura do diretor. A atual vivência da forma triangular clássica dos administradores vem sendo positiva com o seguinte diferencial: as decisões não são hierárquicas e sim de forma estratégica. São realizadas reuniões específicas entre a direção geral e as direções de cada museu e depois re-discutidas com as divisões especificas de cada área e finalmente numa reunião envolvendo as partes interessadas é tomada à decisão estratégica, a quantidade de reuniões são várias com todos os sujeitos do processo decisório até esgotar as discussões. No ano de 2000 elaboramos o Programa de Gestão do SIM: 2000-2003, envolvendo os museus existentes e os previstos para os novos espaços a serem criados na área do Projeto Feliz Lusitânia. Elaboramos os programas que foram detalhados em projetos, que tiveram o seu desdobramento de execução ao longo do ano de 2000 a 2002 e a previsão para o ano de 2003. Os programas abrangeram as áreas de: educação e difusão cultural, conservação e restauração, documentação museológica, pesquisa e curadoria. O documento contem a missão institucional e os seus objetivos estratégicos, pautados no desenvolvimento de pesquisas básicas: conforme as tipologias dos museus existentes e as pesquisas aplicadas: relacionadas ao objeto museal e seus desdobramentos – processo comunicacional entre público e museu - e as metodologias científicas inerentes aos processos de curadoria, de documentação museológica e de conservação e restauração. A realização deste Programa foi fundamental no sentido de ser o documento norteador de todos os projetos que vem sendo executados e em vias de planejamento. O mesmo ofereceu uma estrutura básica dentro da qual foi possível tomar as decisões estratégicas. Este documento foi elaborado de forma interdisciplinar envolvendo vários níveis da equipe técnica, abrangeu um processo de reflexão propriamente dito, sobre qual se buscava programas nas diversas áreas e algumas possibilidades de como fazê-los respeitando um planejamento em longo prazo. Neste momento, observamos a necessidade de realização de cursos de capacitação
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profissional na área de museologia e em outras áreas afim e a necessidade de trocar as experiências com outros interlocutores. No ano de 2000, após a elaboração do Programa de Gestão 2000- 2003 tivemos a fundamental colaboração da museóloga Maria Cristina Oliveira Bruno, que emitiu um laudo técnico em Fevereiro de 2001, que nos propôs algumas orientações metodológicas para aprimoramento do processo sistêmico, agrupados em cinco etapas: Diagnóstico Museológico, Planilhas comparitivas dos problemas e potencialidades; debate sobre os recortes patrimoniais já contemplados pelo SIM e finalmente a elaboração de um plano de gestão museológica, com programas de salvaguarda, de comunicação e processos avaliatórios. Estas etapas, com suas respectivas ações deveriam ser acompanhadas de planos de capacitação profissional, e a participação da Associação de Amigos dos Museus do Pará AMUPARA. Estas orientações foram seguidas, não atingindo a meta final do Plano de Gestão Museológica, por acreditarmos no necessário envolvimento de toda a comunidade externa e todos os profissionais internamente dos museus do SIM/SECULT e principalmente a elaboração de um plano diretor4, é necessário investimento de tempo e dedicação, o que não foi possível neste momento. Para finalizar estas reflexões do percurso avaliativo do SIM/SECULT, citamos um trecho do parecer técnico da Dra. Maria Cristina Oliveira Bruno: É possível considerar, preliminarmente, a opção correta pela atuação integrada e sistêmica, no que se refere às ações museológico – patrimoniais. É visível o crescimento de responsabilidades museológicas a partir da organização de novas unidades e revitalização de espaços culturais outrora abandonados. Da mesma forma, são expressivas as novas perspectivas preservacionistas e de convivência social no que tange, especialmente, à abertura do Museu de Arte Sacra e do Complexo Turístico e Cultural Estação das Docas que, ao lado dodesenvolvimento do Projeto Feliz Lusitânia, estão propiciando uma outra relação da sociedade local com seus bens patrimoniais e ainda, têm possibilitado uma nova visibilidade cultural para os turistas. PORTAL FELIZ LUSITÂNIA: MUSEUS E MUSEOLOGIA A definição da museologia, como disciplina aplicada segundo Waldiza Rússio (1981), articula-se a partir da análise da “relação profunda entre homem, sujeito que conhece e o objeto, parte da realidade à qual o homem também pertence e sobre o qual tem poder de agir – relação esta que se processa num cenário institucionalizado, chamado museu”. Este cenário, chamado museu está integrado num complexo contexto sócio– cultural–econômico e político de sociedade. Segundo Tereza Cristina Schneiner (1999: p.88) podemos dizer que cabe ao Museu, do ponto de vista da análise sócio cultural, atuar de modo efetivo como instancia de representação e preservação dos valores culturais dos grupos humanos. Conforme a autora esta é a COMUNICAÇÃO 211
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proposta da museologia desde 1967 e conhecida a partir de 1969, como Ecomuseu. As atividades museais são compreendidas alem das atividades intelectuais, mas como iniciativa comunitária, valorizadora de identidades e grupos específicos. Em síntese, os novos paradigmas da museologia dos anos setenta e oitenta, denominados de nova museologia, coexistem com novas práticas neste novo milênio. Neste sentido, passa-se a compreender o Museu, não apenas como uma instituição, mas como um fenômeno social – vai além do estudo e da conservação da cultura - gera novos conhecimentos e contribui e influência positivamente no desenvolvimento social. Neste sentido o museu - como fenômeno social - com significado sócio – educativo - se configura de forma dinâmica e plural. Constitui-se o cenário tradicional de museu - prédio, com seus acervos, ou aparecendo na forma de jardins botânicos, zoológicos e se estruturando como museu de território – sítio arqueológico, parque nacional ou ecomuseu. Várias categorias vão surgindo como o Museu Virtual, dentre outros. O território de intervenção para revitalização urbana do Projeto Feliz Lusitânia, tem como polígono definido o núcleo histórico de fundação da cidade, composto por múltiplos espaços construídos, prédios da arquitetura colonial, com influência luso – brasileira, arquitetura civil, religiosa e oficial . Espaços abertos com ecos da memória colonial da cidade, demonstrada pelo traçado das ruas da Cidade Velha, pelo seu tipo de ocupação, sua praça e a sua relação com o rio. Enfim o projeto Feliz Lusitânia vem buscando promover uma ação integrada de revitalização urbana do conjunto arquitetônico e paisagístico que compõem o sítio histórico de fundação da cidade de Belém. Os processos museológicos a serem instaurados nos demais Museus da Secretaria de Cultura do Pará, dentre do Projeto Feliz Lusitânia, respeitam as tendências da nova museologia, buscam evidenciar o museu-prédio, que tornaram–se símbolos do processo de formação da Cidade de Belém, portanto transforma-se em monumento - documento, aberto a visitação pública. Os acervos a serem expostos no Núcleo Cultural e Turístico Feliz Lusitânia buscam permitir ao público em geral a oportunidade de restabelecimento do contato com sua identidade amazônica, possibilitada pela leitura dos processos culturais, sociais e militares desenvolvidos nos domínios do Forte do Presépio e seu contexto simbólico do entorno. Este cenário cultural amazônico – busca refletir os diversos indicadores das referencias da Cultura Santarém e Marajoara, do contato com a Cultura Portuguesa, das manifestações culturais populares da religiosidade, da história regional e sua relação com a história do Brasil, do processo de urbanização da cidade a partir do Forte do Presépio, das representações das artes visuais brasileiras, respeitando as tendências acadêmicas, modernas e contemporâneas e o diálogo com as linhas arquitetônicas de diversos períodos. O Museu do Círio integrará uma das casas da segunda etapa do Projeto Feliz Lusitânia – Casario localizado na rua padre Champagnat – o projeto 212
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de expografia encontra-se em desenvolvimento. O Museu da imagem e do Som está previsto a integrar o Núcleo Feliz Lusitânia somente para a quinta etapa, sem previsão de realização. É importante citar, a aprovação do Projeto Fotografia Contemporânea Paraense, pelo Programa Petrobras Artes Visuais. O mesmo participou de um concurso nacional, entre 348 projetos, passou para seleção final entre 11 projetos, apenas este da região Norte. A curadoria geral é de Rosely Nakagawa, que vem contribuindo na resignificação do perfil a ser adotado para Mis – PARÁ. A atual estruturação do núcleo museológico do SIM/SECULT no que se refere às ações museológico - patrimoniais, está baseado em dois processos que integram a museologia aplicada: a salvaguarda e a comunicação dos bens patrimoniais sob a responsabilidade da SECULT/SIM. Na área de salvaguarda (laboratórios de restauração e preservação, reservas técnicas e os processos de documentação museológica) e na área comunicação (exposição e ação sócio, educativo – cultural) . Observe no anexo, o estudo de todas as áreas que refletem o programa museológico em implantação, incluso as plantas baixas. SALVAGUARDA Um das funções básicas da museologia é a de preservar que engloba as ações de coletar, adquirir, armazenar, conservar e restaurar. Nessa função está implícita a atividade museológica de realização de um completo inventário e conseqüente tombamento do acervo, que se dá pela sistematização de uma completa documentação museológica. Essa documentação consiste em um conjunto de informações sobre o objeto museológico e, ao mesmo tempo, um sistema de recuperação da informação capaz de transformar as coleções dos museus em fontes de informações, de pesquisa científica e objetos de conhecimento. 8 Como objetivo de disponibilizar ao estudo e à pesquisa as coleções classificadas e catalogadas , optou-se por lançar periodicamente a série Cadernos do Acervo, ao término de cada etapa de serviço de documentação. O primeiro volume, foi lançado em 1999. Compreendendo o sentido amplo dessa função de documentação museológica, iniciamos em 1998, o processamento técnico do acervo existente no MEP e posteriormente integramos ao demais msueus. No ano de 2001 tivemos o patrocínio da Fundação VITAE, pelo projeto aprovado e pela consultoria especializada na área de documentação museológica e informatização de acervo para as unidades do SIM (MEP, MAS e Museu do Círio). Outra importante colaboração da VITAE foi à autorização de implantação do Programa de Informatização do acervo denominado de Donato, desenvolvido pelo Museu Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro quando foi realizado o Projeto SIMBA - Sistema de Informação do Acervo do MNBA. A metodologia de trabalho aplicada considerou a diversidade e quantidade dos acervos das unidades museológicas do SIM, estes passaram, de acordo COMUNICAÇÃO 213
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com sua natureza, a ser tratados e catalogados segundo padrões museológicos, arquivísticos e biblioteconômicos. É oportuno destacar que esta função pelo organograma proposto deveria ser desenvolvido pela Divisão de Pesquisa, este é um dos desvios na implantação do organograma do SIM/SECULT. A Divisão de Preservação, Conservação e Restauração, implantou em 1999, o programa de preservação sistêmico e os laboratórios de restauração para o uso comum das unidades museológicas do SIM/SECULT. O laboratório de restauração de pintura e moldura no MEP e o Laboratório de restauração de imaginária e talha no, MAS, com equipes técnicas previstas para cada laboratório. As reservas técnicas para guarda do acervo têm o tratamento sistêmico, respeitando as tipologias e características específicas das peças. Conforme citado detalhadamente, desenvolvemos com apoio da VITAE os Projetos de Mobiliário e equipamentos de monitoramento para as reservas do SIM/SECULT. De forma integrada atuamos na área de conservação preventiva para cada prédio e para as exposições de longa duração de cada espaço museológico e suas respectivas reservas técnicas, esta ação de prevenção está sistematizada no Plano de Ação da Conservação Preventiva, acompanhado por cada diretor das unidades. COMUNICAÇÃO As visitas orientadas e educativas orientam-se pelos princípios da educação estética (leitura, produção e contextualização histórica da obra de Arte) e patrimonial, com a finalidade máxima de promover a mediação entre os acervos museais e o público, em ações que propiciem atitudes de cidadania perante o patrimônio cultural. Os procedimentos de agendamento ao serviço sócio – educativo e cultural é central, com duas técnicas designadas para esta função. As áreas para realização do serviço educativo são previstas para cada unidade museológica, incluso os laboratórios de educação patrimonial e o serviço de sala de leitura e bibliotecas setoriais próximas, no Núcleo Cultural e Turístico Feliz Lusitânia foram previstas uma Biblioteca no MAS e outra no MEP, com agrupamento de livros e outros específicos por áreas de conhecimento. Cada museu tem seus educadores de museu, um monitor e um supervisor do serviço educativo. O perfil da divisão de curadoria foi sendo formado a partir de 1999, com as reflexões relativas à política museológica adotada pelo SIM, que estabeleceu programas e metas, visando o funcionamento integrado de todas as divisões e espaços tendo como referência as discussões relativas à política museológica e como guia o livro grupo de estudo em curadoria, editado em 1999 e publicado pelo museu de arte moderna de são paulo, sob a organização de Tadeu Chiarelli, formulou-se a concepção de curadoria que associa pesquisa e acervo para realizar as exposições estudando-se o acervo em parceria com a equipe da documentação museológica, que coordena o inventário de todo o sistema, pôde-se estabelecer as linhas de 214 COMUNICAÇÃO
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exposições, classificadas em longa, média e de curta duração. Percebeuse, ainda, as partes faltantes do acervo, observando-se, inicialmente, quais obras poderiam ser adquiridas ou doadas. As seguintes exposições nasceram a partir de todo esse processo: Panorama da Pintura no Pará: Acervo do Museu do Estado do Pará; Poética das Cores; e Circuito Visual: Coleção de Artes Visuais do MEP. Foram mostras pensadas e planejadas seguindo conceitos históricos e artísticos que guiaram a seleção e a articulação das obras expostas. Procurou-se proporcionar ao público a ampliação do conhecimento sobre arte e propiciar novas possibilidades de apreciação. No ano de 2002 definimos um perfil para cada Sala de Exposição de Curta Duração integrantes das várias unidades do SIM/SECULT. Em 2001 e 2002, lançamos o Sistema de Pautas das Diversas Unidades, cuja seleção foi feita pelo Conselho Consultivo de Museologia. A equipe é única para as diversas unidades museológicas e para a Galeria Theodoro Braga. Possui uma única sala para equipe de montagem e salas de apoio para realização das montagens em cada espaço. Observa-se a necessidade de uma área para a reserva técnica de equipamentos expográficos e um laboratório composto de marcenaria para atender as montagens e execução de molduras e outros equipamentos expográficos, este mesmo laboratório pode contribuir com a restauração dos mobiliários e confecção de chassis para telas. DESAFIOS O balanço crítico e reflexivo, das dificuldades e acertos de implantação do SIM/SECULT após um percurso de quatro anos e quatro meses buscou de forma continuada a avaliação do cotidiano museal sistêmico visando o aprimoramento de uma visão processual da cadeia operatória da museologia. A avaliação das vivências coletivas e da visão sistêmica e integrada, do fazer – com seus erros e acertos – sempre com o intuito de construir algo consistente. Este percurso avaliativo nos permite uma re-estruturação do organograma do SIM/SECULT para abranger as novas unidades museológicas integrante do núcleo Cultural e Turística Feliz Lusitânia. A criação de novos cargos para as diversas responsabilidades técnicas – científicas ligadas à salvaguarda e comunicação dos acervos e os monumentos/documentos buscam a eficácia destas atividades relacionada a estas áreas. É citando as palavras de Adriana Ribeiro e Maria da Conceição Rodrigues, duas das jovens do Curso de Capacitação de Agentes em Espaços Culturais9, realizado em 2000, com recursos aprovado no concurso de projetos para Capacitação Profissional de Jovens promovido pela Associação de Apoio ao Programa Capacitação Solidária que finalizamos este artigo de balanço crítico desta atuação sistêmica. Destacamos os museus com suas funções de salvaguarda e comunicação e o seu importante papel de inserção social, acreditando cada vez mais na função do museu como elemento fundamental de transformação do homem e na construção
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de uma sociedade mais justa e igualitária, socializando estes templos de memória e vida, chamado Museu.
“Aprendi o valor de cada objeto antigo, dos casarões do passado. Nunca pensei que fossem tão importantes esses casarões, mas hoje sei que devemos preservar e cuidar com carinho de tudo que é nosso. Devemos preservar para que nossos filhos e netos Cheguem a conhecer o que nós conhecemos. Preservar, para mim é sinônimo de amar”. Adriana Ribeiro “Aprendi a me comportar em sociedade. Aprendi muito sobre arte, história, patrimônio... e como preservá-lo. O diálogo com as pessoas tem me ajudado a me relacionar melhor com minha mãe e meus irmãos. Tudo o que aprendo aqui ensino para eles”. Maria da Conceição Rodrigues.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ANAIS II SEMANA DOS MUSEUS DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO, de 30 de agosto a 03 de setembro de 1999. São Paulo: USP, 1999; CHIARELLI, Tadeu. Grupo de Estudo em Curadoria - MAM/SP. Catálogo de exposições organizadas em 1998. São Paulo: MAM/Itaú Cultural, 1999; CADERNOS DO ACERVO DO SISTEMA INTEGRADO DE MUSEUS.COLEÇÃO MAGALHÃES BARATA.SECULT/SIM, 1999.V.1,n.1, maio de 1999. CHAGAS, Mário. A Formação Profissional do Museólogo: 7 Imagens e 7 perigos. In: Cadernos Museológicos. Rio de Janeiro, out. n.3, 1990. GIRAUDY, Dniéle, BOUILHET, Henri. O Museu e a Vida: um texto comentado e ilustrado com cincoenta desenhos originais. Brasília: MINC, SPHAN/PRÓ-MEMÓRIA, 1988; MEMORIAL DA DIVISÃO DE EDUCAÇÃO E EXTENSÃO: 2000 –1997. Secult/ Sim, 2001. MEMORIAL DA DIVISÃO DE EDUCAÇÃO E EXTENSÃO: 2001. Secult/Sim, 2002. MEMORIAL DA DIVISÃO DE PRESERVAÇÃO, CONSERVAÇÃO E RESTAURAÇÃO: 1998 - 2000. Secult/Sim, 2001. PROGRAM DE GESTÃO DO SIM: 2000 – 2003.Secult/ Sim, 1999 –2000; PLATAFORMA BÁSICA – LINHA CURATORIAL – ESPAÇO CULTURAL CASA DAS11JANELAS.SECULT/SIM, 2001. RIBEIRO, José A. F. Sommer. Arquitectura do Museu. In: Iniciação a Museologia. Universidade Aberta de Lisboa: 1993 (Org. Maria Beatriz ROCHA – Trindade); SCHEINER, Tereza Cristina. Formação de Profissionais de Museus: Desafios para o Próximo Milênio. In: ANAIS II SEMANA DOS MUSEUS DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO, de 30 de agosto a 03 de setembro de 1999. São Paulo: USP, 1999 (p.p: 87- 99); Notas: 1 Termo apresentado na Comunicação: Reflexões sobre a formação de profissionais de museus – Dificuldades e acertos na implantação do SIM /SECULT. Esta comunicação buscou socializar os oito meses de experiência de gestão museológica em rede, apresentada em maio de 1999, na II Semana dos Museus da USP/ USP, com o tema: Acervo Musealizado, realidade e desafios. 2 Mário Chagas (1990: 39-44) em A Formação Profissional do Museólogo: 7 Imagens e 7 Perigos, esta formação implica em uma determinada imagem museal elucidada pelas duas características da Imagem Conformadora e a Transformadora , citada na página 39. 3 Resultado da avaliação interna da ação integrada entre, MAS e MEP - de1998 até 2000.Realizada ao final de 2000 e término em 15 de Fevereiro de 2001, a metodologia de avaliação foi dividida em reuniões por divisão, com o corpo funcional de cada divisão e
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depois uma reunião específica com cada unidade museológica integrante do SIM e uma reunião conjunta com todas as partes no final. O documento de avaliação apontou os novos procedimentos que foram implantados a partir de Março de 2001. 4 Plano Diretor ou Plano de Gestão Museológica é o assunto abordado por uma das publicações da série denominada Diretrizes para uma Boa Prática, editado pela USP e Fundação Vitae , em 1991. 5 2001 passamos a integrar o livro Museus Brasileiros editados pela CPC/USP 6 Reserva Técnica de Artes Visuais no MEP - Investimento da VITAE, no valor R$ 84.610,10 e da SECULT em relação a adequação do espaço de R$ 34.000,00; Confecção e Aquisição de Mobiliário e Equipamentos de Controle Ambiental para Reserva Técnica de Objetos Sacros e Paramentos Litúrgicos no MAS, a ser executado aguardando recursos no valor R$ 78.293,00 possibilitado pela VITAE e o investimento da SECULT em relação a adequação do espaço de R$ 11.294,13; Documentação Museológica e Informatização de Acervo das Unidades do SIM, aguardando recursos no valor R$ 28.310,00. 7 Implantação do Núcleo de Reservas técnicas para acervo tridimensional, arqueológico e de Artes Visuais no MEP, no valor de R$ 67.087,00 e o Projeto de Melhoria do Circuito Expositivo do Mas, investimento de . 8 Fragmento do texto elaborado por Rosangela Britto e publicado na apresentação do Volume I – Cadernos do Acervo do SIM - Coleção Magalhães Barata , em 1999. 9 Este curso teve como pressupostos básicos a construção do sentimento de cidadania e educação estética. Foram cinco meses de convivência na área museológica de 30 jovens oriundos de famílias em situação de pobreza do bairro da Pedreira (um dos bairros periféricos mais populosos de Belém), o tipo de capacitação realizada foi para auxiliares de agentes culturais (para atuarem nas áreas de montagem, conservação, cenotécnica e como guardas patrimoniais). Neste processo de implantação do SIM/SECULT é fundamental citar a importante colaboração da Fundação VITAE, em quatro pontos fundamentais: o imprescindível cadastro dos museus do SIM/ SECULT em 1999 na Base de Dados Unificada sobre Museus elaborada pela Comissão de Patrimônio Cultural – CPC da USP com apoio da VITAE5. Este formulário nos permite a identificação do perfil e dos problemas das ações das unidades museológicas, no que tange aos espaços, acervos, atividades e fontes de financiamento. O segundo contributo da VITAE refere-se a participação dos Museus do SIM/ SECULT da Sétima Chamada de Projetos para o Programa de Museus no ano de 2000 e execução em 2001. Segundo relatório da VITAE, 278 museus foram convidados a apresentar pré-projetos, dos quais 64 foram qualificados a participar da segunda etapa do processo seletivo e ao final aprovados projetos de 34 museus. Em relação a região Norte, somente três projetos foram aprovados , todos do SIM/SECULT. Nomeadamente a Confecção e Instalação de Mobiliário para Reserva Técnica de Artes Visuais no MEP, já executado; Confecção e Aquisição de Mobiliário e Equipamentos de Controle Ambiental para Reserva Técnica de Objetos Sacros e Paramentos Litúrgicos no, MAS, a ser executado aguardando recursos; Documentação Museológica e Informatização de Acervo das Unidades do SIM, na mesma situação do anterior6. O terceiro ponto fundamental é a continuidade do apoio da VITAE, fomos convidados para participar da Oitava Chamada de Projetos, foram selecionados dois projetos: Implantação do Núcleo de Reservas Técnicas para Acervo Tridimensional, Arqueológico e de Artes Visuais no MEP e o Projeto de Melhoria do Circuito Expositivo do Mas. 7O quarto ponto elementar a considerar é as possibilidades de acesso as diversas informações e técnicos especializados que vem possibilitando várias consultorias, como exemplo a colaboração de Francize Toledo e Shin Mackawa, na área de conservação preventiva e de Helena Dodd Ferrez na área de documentação museológica e informatização de acervo. *artista plástica, arquiteta, com mestrado em educação e gestão acadêmica.Professora de artes plásticas do departamento de artes da Ufpa e membro do conselho consultivo da Galeria de Arte da Unama, atualmente responde pela direção do Sistema de Museus da Secretaria Executiva de Cultura do Pará/SECULT
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VIDA E AGONIA E RESSURREIÇÃO DO PÁSSARO ARARA
LIGIA T. L. SIMONIAN1
RESUMO – A problemática da cultura popular amazônica tem sido pouquíssimo analisada no âmbito da academia, pelo menos a se pensar em obras mais abrangentes. O mesmo pode ser dito em relação aos pássaros juninos, que ainda estão por merecer um trabalho que consiga dar conta da história, diversidade e problemas enfrentados no que diz respeito às políticas públicas, à resistência cultural e às possibilidades de continuidade. Embora não se pretenda mais que contribuir para uma tal perspectiva, no presente trabalho, que trata do Pássaro Arara, de Santarém, PA, tenta-se discutir os impasses que sua proprietária vem enfrentando nos últimos anos, o que impôs a suspensão da apresentação ao público. Uma abordagem a partir da experiência da dona desse pássaro, e evidências produzidas a partir de trabalho de campo e pesquisa bibliográfica-documentalfoto/iconográfica, aponta para a inexistência de políticas públicas eficazes quanto à cultura popular regional, para um faccionalismo exacerbado no âmbito dos movimentos sociais ligados à cultura, e para a fragilidade econômica dos produtores culturais locais. Muitas vezes esses têm que assumir os custos dos empreendimentos culturais, como o dos pássaros, sob pena de vê-los “morrer” no cenário cultural em que se encontram inseridos. NOTAS:
1 Ph. D. em Antropologia (City University of New York – CUNY); professora e pesquisadora do Núcleo de Altos Estudos Amazônicos – NAEA, da Universidade Federal do Pará – UFPA. <simonian@ufpa.br>.
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