OS DONOS DA RUA Por Ana Letícia Petry
Centro Universitário Estácio de São José Grande reportagem impressa: Os Donos da Rua Trabalho de Conclusão de Curso em Comunicação Social, com habilitação em Jornalismo Orientação: Mestre José Guillermo Culleton Coordenadora do Curso de Jornalismo: Reginal Zandomênico Reitor: Rafael Villari Reportagem e fotografia: Ana Letícia Petry Diagramação: Vanessa Brasil Agradecimentos: Ivan Augusto Petry, Afonso Petry Júnior, Dafnée Caroline Canéllo, José Guillermo Culleton e Regina Zandomênico. São José, 2017 2
Introdução Os donos da rua são aqueles que todos os dias transformam as vias públicas em seus escritórios, suas salas de estar, seus quartos, seus lares. São aqueles que sabem que a vida vai muito além de ter um bom trabalho, uma cama confortável para dormir e uma televisão para assistir um jornal no final do dia. Vai além de um prato sofisticado para o jantar, uma foto bonita no porta-retratos, uma cobertura no prédio mais caro da cidade. São aqueles que sabem que a vida é muito mais do que viver, é sobreviver, antes de qualquer coisa. A história de Andrei, Claucio, José, Lindomar e um pai envergonhado é relatada em Os donos da rua com o objetivo de dar visibilidade e voz para esses homens que vivem em situação de rua em São José, Santa Catarina. As vidas do empresário que não soube ter dinheiro, do poliglota viajante, do traficante perdido, do serralheiro arrependido e do idoso solitário são apenas algumas entre as milhares que a sociedade não vê. Os cinco fazem parte das 300 pessoas que moram na rua no município. Em Os donos da rua os invisíveis são vistos.
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MALDITA HORA
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s luvas amarelas escondiam as mãos sujas que há dias não sabiam o que era um banho. Carregavam no meio da avenida movimentada no final de domingo um carrinho de supermercado velho com pedaços de papelão. O homem de baixa estatura tentava atravessar o cruzamento mesmo com a sinaleira aberta. Antes de conseguir atravessar, aceitou parar por alguns minutos para revelar seus segredos. Ele caminhou para a rua do lado onde, mesmo com pouco movimento, quase foi atropelado por um carro que passava apressado. Parecia desnorteado. Mesmo aparentando estar um pouco desconfortável e cansado, sua fala era apressada e atrapalhada. Confuso, contou até o que não queria. Pai de um menino de quatro anos que não vê há meses, Andrei da Silva Ribeiro nasceu em Porto Alegre, mas cresceu em São Leopoldo, também no Rio Grande do Sul. Conta que a vida que levava na cidade gaúcha era normal para as condições que cresceu. Uma esposa, um filho de outro casamento e um trabalho como gesseiro que lhe dava menos que o suficiente para conseguir pagar todas as contas e saciar suas diversões. A vontade de ganhar um pouco mais de dinheiro o fez aceitar a proposta de viajar com um caminhoneiro da cidade para Santa Catarina com o objetivo de vender uma carga de abacaxi. Apesar da negativa da esposa, o gesseiro aceitou. O destino de Andrei foi o bairro Kobrasol, em São José.
Deixado para trás O que era para ser uma viagem de uma semana acabou transformando a vida de Andrei em um inferno, segundo ele. Trouxe na mochila apenas algumas roupas, um chinelo e pouco dinheiro. Após a semana de trabalho, no dia anterior a volta para casa, o gesseiro resolveu sair para comprar um cigarro de maconha, vício que já era alimentado junto com a cocaína antes mesmo da viagem. - Maldita hora que eu fui comprar o baseado, maldita hora que me meti com as pessoas erradas. As gurias levaram tudo que eu tinha. E nem foi roubo. Foi o que elas me incentivaram a fazer mesmo. Andrei conta, revoltado, que se envolveu com algumas mulheres que também moram na rua e conseguem dinheiro por meio da prostituição. Parte do dinheiro que tinha ganho durante a semana de trabalho foi gasto na noite com as mulheres, outra parte foi no maior mal que elas poderiam ter apresentado para ele: o crack. O patrão, dono da carga de abacaxi, tinha dia e hora para voltar para o Rio Grande do Sul, mas Andrei foi deixado para trás porque não chegou no local na hora marcada. Sem carona e sem dinheiro, o homem já estava há 12 dias na rua. Desde então, ele vive recolhendo materiais recicláveis na rua para vender. O dinheiro que consegue, porém, não é o suficiente para pagar a passagem de volta para a cidade de origem, que custa aproximadamente R$ 100. O pouco que consegue é utilizado para comprar drogas e comida, quando não consegue doações.
A igreja do bairro Campinas é um lugar onde busca refúgio e ajuda, mas a entidade já ajuda muitas pessoas e não tem o suficiente para todos. Buscou ajuda também no Centro Pop de São José, mas perdeu todos os documentos que trouxe e até o dia da entrevista não havia recebido respostas.
Cemitério ou cadeia Andrei confessa que já havia cometido erros demais nas semanas fora de casa. Traiu a esposa, usou drogas, gastou dinheiro que mal tinha e perdeu a carona de volta para casa, entre outros que ele preferiu não comentar. Quando perguntado sobre como a família reagiu ao saber da situação em que o gesseiro se encontrava, a resposta foi quase sarcástica. - Minha esposa nem imagina. Minha família não tem notícias de mim e eu não tenho deles. Já devem estar pensando que eu estou morto ou preso. Só pode. E disso eu nem gosto de falar. O fato de não conseguir contato com a família é um grande sofrimento. Segundo ele, não consegue telefone para ligar para a esposa. Quando sugeri que fosse até a polícia em busca de ajuda, Andrei se assustou e quase desistiu da entrevista. Depois, confessou que tinha alguns problemas com a Justiça. Afirmou que estava em liberdade condicional, mas que ainda devia algumas coisas. O motivo era por
roubo e tráfico de drogas. Ele conta que é envolvido com uma facção criminosa de São Leopoldo.
Dura batalha A rotina do homem não está sendo fácil. Ele conta que encontrou já nos primeiros dias morando na rua um terreno baldio nas proximidades do bairro Kobrasol. Utilizando uma lona que pegou do lixo e alguns pedaços de madeira, construiu o que está chamando de moradia. A batalha de Andrei pela sobrevivência começa logo cedo, quase antes do sol aparecer. Utilizando um carrinho de compras velho que conseguiu em um depósito de reciclagem, ele passa o dia inteiro andando pela região em busca de materiais que possam ser vendidos. A alimentação é garantida por meio de doações dos restaurantes ou por voluntários que se sensibilizam com a situação dele. As vezes busca abrigo no viaduto movimentado que dá acesso à comunidade Chico Mendes. Lá os moradores recebem, em algumas noites, alimento de alguns voluntários. O local é bastante conhecido por haver pontos de tráfico de drogas e alto índice de criminalidade. Andrei, porém, explica que é bem recebido por outros moradores de rua quando precisa dormir lá nas noites de chuva.
- Quem já é de lá aceita tranquilo quem vem de fora, tem muita gente que vem do Rio Grande do Sul tentar a sorte e tem o mesmo destino que eu. Os caras vão se conhecendo e um vai apoiando o outro. Foi na comunidade que ele tomou os poucos banhos neste tempo em que está na rua. Andrei lembra que uma mulher deixa que os moradores de rua tomem banho em sua casa por R$ 10, mas fica indignado por ter que pagar até para fazer as higienes básicas. O homem se mostrava cada vez mais abalado durante a entrevista. Chorou diversas vezes. O arrependimento era quase palpável diante das palavras carregadas que Andrei falava. O olhar não encontrou com o meu em nenhum momento da entrevista. Ele conta de onde tira forças para seguir a dura batalha para voltar para casa. - Infelizmente minha força vem das drogas. O cara não pode errar de usar pela primeira vez, porque quando vicia é complicado. Eu uso pra não morrer na depressão. Não tem como ficar de cara limpa. Quando tu cai nesse mundão cruel é muito difícil levantar. Mesmo assim, sei que não posso desanimar. Um dia vou conseguir voltar.
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se viu desempregado, aos 43 anos, aceitou uma proposta que colocou em risco sua vida e acabou com sua família.
LIBERDADE VALIOSA
Um sobrinho o convidou para ajudar no tráfico de drogas. Viajava para o município de Porto União para buscar as drogas que o traficante vendia. Começou a cheirar cocaína e, em uma das vezes que foi, não encontrou a substância, então usou crack pela primeira vez e acabou se viciando.
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nquanto as pessoas caminhavam de um lado para o outro pelas calçadas dos comércios fechados no domingo à tarde na Avenida Irineu Bornhausen, em Campinas, uma dupla estava sentada no chão conversando baixinho. Um dos dois homens tinha no colo uma mochila e o outro segurava uma sacola plástica. Quando me aproximei, os dois pararam de falar. O que segurava a sacola abriu os olhos o máximo que pode e, quase desesperado, pediu.
A relação com os familiares começou a ficar difícil. A esposa passou a reclamar das atitudes do marido, que já não era mais tão presente na vida dos filhos. O filho mais velho do casal, que constantemente entrava em discussões com o pai, se envolveu em um acidente de moto e sofreu uma grave lesão na cabeça. Os médicos alertaram para que todo cuidado possível fosse tomado para que o jovem não fizesse movimentos bruscos durante a recuperação.
- Me dá comida! Perguntei se poderiam conversar comigo por alguns minutos e o mesmo homem disse que depois que eu desse comida para eles, falariam por quanto tempo eu quisesse. Entreguei duas sacolas com comida. Com alguns sanduíches em mãos, o que havia falado se concentrou em comer e o outro perguntou o que deveria falar. Lindomar Paes de Oliveira, o dono da mochila, contou que vivia na rua há aproximadamente cinco anos. Nascido em Herval do Oeste, morou em Joaçaba durante a infância e construiu uma família em Biguaçu. Contou que estava na rua por conta de uma briga familiar. O outro homem, então, interrompeu.
Em uma noite durante o período de recuperação do filho, Lindomar chegou em casa drogado e os dois discutiram novamente. Durante a briga pai empurrou o jovem contra a parede e ele bateu a cabeça, piorando seu estado de saúde, mas sem ferimentos graves. comigo. Eu não quero mais falar com ninguém. Chorando, ele parou de comer, guardou o sanduíche na sacola e saiu com raiva. Lindomar se desculpou pelo companheiro e confirmou que ele estava drogado, por isso, estava confuso.
- Não adianta a gente falar que não usa drogas. Eu sou usuário e estou drogado agora. Não vou mentir pra ninguém. Eu uso e gosto. Mas eu não sou feliz por isso. Essa coisa acaba com a gente. Está acabando
Lindomar foi casado por 21 anos, é pai de quatro filhos e tem uma neta. Ele conta que o casamento sempre foi muito saudável, com respeito de ambas as partes e muito companheirismo. A relação com os filhos também era boa. Trabalhou por 27 anos como serralheiro de alumínio. Porém, quando
Dia a dia
rende alguns trocados.
Lindomar conta que, desempregado, tentou viver em algumas quitinetes, mas não conseguiu passar muito tempo nas moradias. Sem dinheiro, optou por viver nas ruas, atualmente nas marquises dos comércios e, para sobreviver, trabalha com reciclagem. Segundo ele, ocupa a mente e ainda
A alimentação é a parte mais difícil da vida de quem vive na rua, segundo ele. Lindomar conta que durante a semana recebe os alimentos que sobram e não podem ser revendidos nos restaurantes do bairro. As vezes conseguem marmitas nos lugares onde vendem os materiais recicláveis que
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O filho, então, resolveu que era hora de sair de casa para se distanciar de Lindomar e foi para a casa da tia no bairro Bela Vista, em São José. No dia seguinte, a esposa deu um ultimato para o ex-serralheiro: ou ele saia de casa para nunca mais voltar, ou ela sairia com as outras três filhas do casal para viver longe dele. Lindomar conta que não pensou duas vezes. - Na mesma hora arrumei minhas roupas e saí. Deixei carro, deixei todo o resto. Fui até a casa da minha irmã e falei para o meu filho “pode voltar que o pai saiu de casa”. Foi a última vez que nos vimos.
recolhem. Porém, a situação se complica aos finais de semana, quando os restaurantes estão fechados. A alimentação depende, então, das doações que recebem nas ruas. Enquanto Lindomar explicava como faziam para conseguir comida, o companheiro começou a gritar do outro lado na rua, o chamando sem parar.
Se quisesse monitoramento estava na cadeia ainda. Eu gosto é da liberdade, ela é valiosa. Prefiro viver como vivo aqui do que viver em um lugar que eu sinto que não é onde eu deveria estar.
Lindomar gritou de volta pedindo que o amigo esperasse mais um pouco. O ex-serralheiro conta que a situação do seu companheiro de jornada havia piorado nos últimos dias. O homem tinha uma namorada que vivia com ele nas ruas, porém, ela o abandonou. Os surtos por conta da raiva e do uso ainda mais constante das drogas estavam o deixando louco, segundo Lindomar. A higiene é um pouco mais fácil, ele e os amigos frequentam o Centro Pop e lá conseguem fazer o que precisam. Mas apesar disso, confessa que está há quatro dias sem tomar banho e mais de um mês sem fazer a barba. A saúde, porém, não é algo que deixe Lindomar muito preocupado. No dia da entrevista, estava com o lado direito do rosto inchado. O pino de um implante que foi feito quando ele era mais jovem machucou a gengiva, que infeccionou. Depois de longos dias com dor, Lindomar procurou o posto de saúde do bairro e lá, depois de alguns exames que lhe tiraram a paciência, o dentista decidiu que a melhor opção seria a retirada do implante. Lindomar negou. - Foi difícil fazer esse implante. Eles quiseram arrancar e eu enlouqueci, disse que nem sonhando fariam aquilo comigo. Eu ia ficar sem dente. Já sou feio, ia ficar como? Desdentado? Não! Artigo 155 Quando perguntado novamente sobre a família, Lindomar diz que sente falta dos filhos. Além do filho com quem brigou, que hoje tem 28 anos, tem outras três filhas, uma de 22, uma de 17 e outra de 11 anos. A neta, filha da mulher mais velha, ele não
conhece. - Quando ela nasceu eu estava preso. Faz quatro meses que saí. Fui pego no 155. Não adianta eu falar que não fiz nada, mas eu realmente não fiz. Dei azar de aparecer no lugar que furtaram bem na hora. Mas passou, já paguei e não devo mais nada. Lindomar explica que passou um ano e dois meses preso por furto em São José, condenado pelo Artigo 155 do Código Penal. Após sair da prisão, ficou com vergonha de se apresentar para a filha para poder conhecer a neta. Viver na rua não é algo confortável ou que o deixa feliz, mas Lindomar não pensa muito quando questionado se gostaria de sair da rua. Diz que até tem vontade de viver em uma casa novamente, mas o monitoramento em que se sentia constantemente o deixa desconfortável. - Se quisesse monitoramento estava na cadeia ainda. Eu gosto é da liberdade, ela é valiosa. Prefiro viver como vivo aqui do que viver em um lugar que eu sinto que não é onde eu deveria estar. Orgulho Só existe uma coisa no mundo que seria capaz de fazer com que Lindomar procurasse novamente um emprego e voltasse a ser quem era antes: seu filho. O homem é orgulhoso e admite que não vai procurar o jovem para conversar, mas caso o filho o procurasse e pedisse para que ele largasse as drogas, o faria.
contato com elas nunca foi tão forte quanto com o filho mais velho, apesar do carinho e amor ser o mesmo. Já com a ex-esposa Lindomar conta que conversou apenas uma vez, durante um contato telefônico. Ele confessa que ainda sente mágoa por causa da mulher. - Uma das coisas que eu mais fico triste, mais guardo rancor na minha vida, é que eu sempre estive presente na vida da minha ex-mulher. Mas quando eu que precisei dela, precisei que ela me desse apoio e me ajudasse a sair dessa vida, ela praticamente me virou as costas. Arrependimentos O homem confessa que se arrepende mais pelo que deixou de fazer do que pelo que realmente fez. Os momentos que deixou de passar com a família o deixam um pouco abalado. Porém, seus dois maiores arrependimentos são o dia em que agrediu o filho e o dia em que usou droga pela primeira vez. Lindomar conta que até já pensou em procurar ajuda para largar o vício, mas sente que não é o momento. - Se internar não ajuda em nada. Basta tu querer que deixa de usar. Quando os usuários de crack ficam presos por um tempo não usam e sobrevivem. As pessoas são capazes de deixar de usar, basta ter um motivo. Quando eu tiver um motivo, deixo de usar.
Foram poucas as vezes que o ex-serralheiro conversou com as filhas depois que saiu de casa. O
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NINGUEM E COITADO
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m uma das ruas paralelas da Avenida Lédio João Martins, popular Central do Kobrasol, em São José, não se viam carros passando, famílias passeando ou cachorros brincando. Mas naquela esquina, sob a luz alaranjada e fraca dos postes que há pouco estavam acesos, uma discussão estava prestes a começar. Depois de um dia cansativo, três homens conversavam sobre o que iriam comer. Mas não é como se estivessem escolhendo o restaurante da noite. Era sobre qual lixo iam vasculhar em busca dos restos que eles falavam. Para quem via do outro lado da rua, era fácil reconhecer o líder do trio. Um deles, sentado atrás de alguns pedaços de papelão que formavam uma espécie de muro, não falava e estava com a cara fechada. O outro, sentado encostado na cerca do comércio cujo toldo servia de abrigo, estava concentrado lendo a edição do final de semana do Diário Catarinense, mas se dividia entre a leitura e a conversa com o companheiro. O terceiro estava de pé, com os braços cruzados e falando alto. Claramente, o líder. Estava preocupado. Domingo era um dia difícil. Os restaurantes mais populares não abriam e o fato de já ter escurecido dificultava a busca por alimento.
Me aproximei e os três me olharam. Perguntei se queriam conversar um pouco comigo enquanto dividíamos alguns salgados que me dispus a comprar. O jornal foi deixado de lado pelo que estava sentado e a resposta foi imediata. Trocariam algumas palavras por uma boa janta. Convidei para que me acompanhassem até a Avenida, onde poderíamos procurar alguma lanchonete aberta. Resposta negativa. O líder falou para que o que estava sentado me acompanhasse e retornasse comigo. Aceitamos. O único que não se pronunciou foi o que estava agora totalmente escondido atrás do muro de papelão. Marcos, que abandonou o jornal para me acompanhar, era um homem simpático e educado. O chamavam de Vermelho. Durante a caminhada ele contou que nasceu em Chapecó, onde deixou três filhas e a mulher para que pudesse viver em liberdade na rua, com drogas e bebidas e sem ter que das satisfação. O ex-pedreiro confessou que tinha saudade da família, mas que não tinha vontade de voltar. O assunto era constantemente cortado por Vermelho com a desculpa de que o amigo que o acompanhava na moradia teria histórias melhores para contar, já que a experiência como empresário e palestrante lhe garantiram uma habilidade de comunicação invejável. A caminhada começou a perder a força, Vermelho começou a caminhar mais lentamente e mancando. Ele olhou para os pés calçados por um chinelo claramente menor que seu número. O inchaço no pé esquerdo fazia isso ficar ainda mais aparente.
Homem de Deus Esfomeados, mal agradeceram e devoraram rápido os assados de frango. Enquanto comia, o líder, que ficou bastante receoso de falar seu verdadeiro nome, trocou algumas palavras confusas comigo. Explicou que tinha uma filha e ela jamais poderia saber que o pai morava na rua, então, pediu para que seu nome não fosse revelado. Contou que vinha de Lapa, no Paraná, onde teve como casa até os 14 anos um orfanato. A mãe que o abandonou na infância voltou para buscá-lo na adolescência, porém, os laços já estavam enfraquecidos. Depois disso, o jovem não voltou para o orfanato. Aos 17 anos se casou e decidiu que era hora de tentar a vida em outro lugar. O casal mudou-se então para a Barra do Aririu, na Palhoça. Logo tiveram a primeira e única filha. O pai conta orgulhoso que, agora, a jovem tem 27 anos e é formada em Radiologia. O contato entre os dois é semanal, porém, a mulher acha que ele vive em uma quitinete. Logo que se mudou para a cidade catarinense o homem começou a trabalhar fazendo alguns serviços como pintor, conquistou bons clientes e logo já estava com a empresa formada: 19 funcionários, três veículos e mais dinheiro do que queria ter. - Eu sempre fui pobre. Nunca tive muita coisa na vida. Aí, do nada comecei a ganhar dinheiro e nem sabia o que fazer. É aí que começa a dar errado pra quem é pobre, porque a gente começa a ver uma coisa nova. O líder do grupo conta ainda que ele e a família eram muito religiosos, frequentadores assíduos da Assembleia de Deus. No tempo livre, dava palestrar e espalhava a palavra de Deus para os amigos. Hoje, morando na rua, faz o mesmo com os companheiros.
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O homem estava cansado, quase esgotado. Aos 50 anos já não tinha mais fôlego para a longa caminhada que havia feito junto ao grupo naquele dia. Acordaram cedo, antes das seis horas. Se prepararam e saíram andando rumo ao Centro de Florianópolis. O percurso de aproximadamente oito quilômetros pode ser feito em menos de duas horas, mas a idade e fragilidade dos homens que o fizeram naquela manhã fez com que durasse pelo menos o dobro. Chegaram na Catedral Metropolitana de Florianópolis perto da hora do almoço e aproveitaram a refeição oferecida pela entidade. Finalizada a refeição, era hora de voltar. A caminhada para o bairro de origem foi ainda mais demorada. Já estava quase escuro quando chegaram na esquina da rua Sete de Setembro com a rua Deise Regina Farias. Ainda tinham que arrumar tudo para depois comer novamente e descansar. Com a demora do percurso, antes mesmo de chegar já estavam com fome de novo. Na lanchonete mais movimentada da Avenida o pedido de quatro lanches, já que Vermelho alertou sobre a chegada de outro companheiro para dormir, ficou pronto rápido. Retornando à moradia do grupo, o líder estava esperando no mesmo lugar, ainda em pé. O outro continuava deitado atrás dos papelões. Além do muro construído para que este pudesse se esconder, outros pedaços de papelão formavam uma espécie de cabana. O ambiente era limpo, mas longe de ser confortável para, pelo menos, quatro homens dividirem espaço para dormir. Ao redor, mochilas e cobertores surrados dividiam espaço.
A vida do pintor não estava fácil. O convívio com “gente errada” começou a lhe prejudicar. O divórcio foi a gota d’água. Sozinho, começou a beber e aos poucos viu desmoronar tudo o que construiu. Só sobraram duas coisas na vida: a filha e a fé em Deus. Perdeu a empresa, perdeu os carros, perdeu a esposa, o dinheiro e a casa. Depressivo, passou a usar cocaína também. Sem emprego, o pouco dinheiro para manter os vícios e as necessidades básicas passou a vir dos clientes do estacionamento do Centro Comercial Camelão de São José, em Campinas, onde cuida dos carros. Quando sobra tempo faz uns bicos de pintor, profissão que um dia já foi levada muito a sério por ele. Às vezes capina algum terreno também. Ele garante que é um homem bastante ocupado. Após o divórcio, o pintor morou em algumas quitinetes, porém, a liberdade que a rua lhe proporcionou foi mais forte. Hoje tem as ruas do bairro Kobrasol como moradia. O líder, assim como todos do grupo, está com roupas limpas, cabelo cortado, barba feita. Porém está descalço. Conta que tem apenas dois pares de sapato e os economiza.
- Só uso quando vou trabalhar. Tenho umas roupas também, um cobertor, poucas coisas. Tudo que tenho na vida cabe em uma mochila que levo para cima e para baixo. Se deixar na rua é capaz de alguém jogar fora. É pouco, mas se perder, faz falta. Irritado, ele conta que às vezes ele e os amigos deixam os papelões e os cobertores guardados em algum canto, ou em cima da marquise dos comércios e, quando voltam depois de um dia tentando arrumar dinheiro, descobrem que alguém jogou suas coisas fora. Fome compartilhada A rotina diária para garantir a alimentação é bastante incerta, explica. Pela manhã acorda cedo para conseguir vaga no café da manhã oferecido pelo Centro de Referência Especializada para Pessoas em Situação de Rua, o Centro POP de São José, mesmo local onde se higieniza. As refeições são limitadas, então, quem não chega cedo corre o risco de não conseguir. No almoço, ele conta que dificilmente sai do estacionamento porque é um horário de bastante movimento, então consegue alguma marmita que sobra dos restaurantes da região, onde já é bastante conhecido. A janta é a
refeição mais difícil, porque depende da quantidade de dinheiro que é arrecadado durante o dia. - Às vezes alguém fica sem comida, aí quem tem, divide. A gente nunca sabe o que pode acontecer, no dia seguinte pode ser qualquer um sem comida. Quem não divide também não ganha depois. A gente já é quase sozinho no mundo, então temos que nos ajudar. Vítima de si mesmo - Aqui ninguém é coitado, não. Aposto que tem muito senhor que mora em cobertura de prédio ai que é mais coitado que a gente. Uma das coisas que mais irrita o pintor é quando alguém pensa que morador de rua é coitado. Ele acredita que as pessoas estão na rua porque querem. - Ningum tá aqui porque a sociedade colocou aqui. A gente escolhe beber, a gente escolhe se drogar, a gente escolhe não ir pro tratamento. Não tem ninguém que obriga.
Felicidade Quando o assunto é o que mais gostava de fazer para se divertir, a resposta é rápida e vem acompanhada de um grande sorriso. - Eu até gostava de ver uns filmes, mas o que eu adorava mesmo era ver desenho. Na minha época o que bombava era o Pica-Pau. A expressão muda quando o assunto é felicidade. - Não posso afirmar que sou feliz porque essa não é a vida que eu sonhei. Mas, às vezes, a junção de algumas coisas me dá uma alegria. Uma delas tem nome e sobrenome. É a minha filha. Hoje ela é formada, trabalha em um lugar bom e é meu maior orgulho. Por isso, eu nunca posso contar pra ela que vivo na rua. Não vou decepcionar quem me dá orgulho.
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A LUTA PELO PAO
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nquanto várias pessoas caminhavam na rua de um movimentado espaço gastronômico do bairro Kobrasol, um homem caminhava com dificuldade carregando um carrinho de supermercado repleto de papelão e sacolas. Ele puxava bruscamente o fio que estava amarrado no carrinho, afim de movimentá-lo com mais facilidade. Quando finalmente atravessou a rua, o senhor de aparência cansada parou e quando questionado se poderia conversar por alguns minutos o pavor tomou conta do seu rosto. - Tu não vai me bater, vai? Porque pode me quebrar ao meio. Talvez tão assustada quanto ele, respondi que não, era apenas uma conversa. Ele relutou bastante e disse que precisaria de ajuda para comer, caso perdesse tempo falando sobre a vida. Caminhou até o canto da calçada de um prédio comercial, onde estava montado seu acampamento. Um colchão, cobertores, travesseiro, algumas peças de roupa e o
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carrinho. Sentou em um degrau e comentou sobre algumas notícias que viu na televisão pelo lado de fora de uma loja. - Vi que estão reclamando do presidente. E descobri que a copa do mundo vai ser na Rússia. Vai ser em junho, mas podiam fazer em dezembro para nevar no jogo. José Santos de Sá não era tão velho quanto aparentava ser. Aos 58 anos, a vida já tinha sido tão dura que a aparência revelava pelo menos 15 anos a mais. Ele conta que desde cedo precisou se virar para sobreviver. Trabalhou até os 14 anos nas lavouras com a família em Jaguaruna, cidade onde nasceu. Quando seu pais faleceram, cada um dos seus nove irmãos seguiu caminhos diferentes. Mudou-se com a mãe para uma casa no bairro Capoeiras, em Florianópolis. Pelo menos quatro mulheres já ocuparam o posto de esposa do seu José, mas o casamento que mais durou foi por sete anos. A quantidade de namoradas ele perdeu a conta. Com uma delas teve um filho, mas não existe contato entre os dois. Diz que vai procurar por ele na hora certa da vida. O homem sempre foi independente. Tinha seu emprego, suas namoradas, sua casa e suas contas pagas. Mas o fato de sempre ser empregado e
receber ordens um dia acabou com sua paciência. Durante 20 anos trabalhou instalando telefones pelo Brasil. Quando saiu da profissão trabalhou em alguns empregos que não duraram por muito tempo, passou por oficinas e até empresa de ônibus trabalhando com limpeza dos veículos. Um dia, quando recebeu uma ordem que não gostou de um dos patrões, se sentiu desvalorizado. Decidiu pedir demissão e acabou por devolver a quitinete onde morava de aluguel, cujo dono era seu antigo patrão. Foi quando, há sete anos, José começou a passar por dificuldades. Apesar de procurar um novo emprego, ninguém queria dar oportunidade para um homem de mais de 50 anos sem estudo e sem experiência em coisas novas. A reciclagem de materiais foi sua válvula de escape, lhe rendendo alguns trocados. Nada que fosse o suficiente para pagar o aluguel de um imóvel. Passou então a dormir na marquise de um prédio recém construído na avenida Elizeu di Bernardi, no Kobrasol. Um dia, quando encontrou o dono do imóvel, pediu permissão para que pudesse viver ali e, em troca, deixaria a frente do prédio sempre limpa e bem cuidada. O proprietário aceitou. Ao longo dos meses, José passou a conseguir alguns
pertences, achou um colchão, recebeu doações de roupas, conseguiu um carrinho para carregar suas coisas. Um dia, porém, teve todos os pertences roubados, inclusive os documentos pessoais. Ele conta que não foi a única vez que passou por isso. Diversas vezes furtaram suas roupas e até materiais recicláveis que estavam guardados para serem vendidos.
bairro, porém, ainda precisa fazer alguns exames para receber tratamento. Os remédios para cuidado temporário não conseguiu ainda. Para hidratar o machucado no pé esquerdo, que estava quase em carne viva, José conseguiu comprar um frasco de condicionador para cabelo. Ele explica que é muito mais barato que o remédio ideal, mas o efeito é quase o mesmo.
Saúde fragilizada
O homem, então, chora. De dor e tristeza. Nos dias de frio a dor aumenta, os ferimentos ficam maiores e o sofrimento toma conta. Ele explica que, nas noites mais frias não consegue dormir de tanta dor.
Os problemas de José, porém, vão muito além das preocupações com os pertences. A saúde do homem está cada vez mais fragilizada. O que mais está incomodando ultimamente, segundo ele, são os ferimentos causados nos pés por conta de um problema vascular. O idoso afirma que já foi ao posto de saúde do
traumatizou aconteceu três semanas antes da entrevista. O dia estava começando a clarear e José seguia dormindo no mesmo lugar de todas as noites, quando foi atingido no rosto por uma barra de ferro. Desnorteado, levantou e tentou correr atrás do agressor, que ele afirma ser uma criança, mas não conseguiu alcançar. A pancada causou uma fratura no nariz de José. Momentos como esses, segundo ele, o fazem refletir sobre a crueldade da vida. - Foram tantos momentos difíceis que passei no tempo em que estou vivendo na rua, mas o que mais me deixa triste é quando eu quero levantar, ir para a luta pela minha vida, para a luta por um pão, e não posso porque estou machucado, porque alguém me deixou assim. Isso marca muito.
- Eu nunca fui de me cuidar. Quando começaram a aparecer os machucados na minha pele que fui procurar ajuda dos médicos. Eles são bons, me atendem mesmo que eu tenha perdido meus
Família Além do filho com quem não conversa, José tem nove irmãos com quem mantém pouco contato. Todos construíram famílias e conquistaram bens. O homem conta que alguns moram perto, outros moram em regiões mais distantes do estado, então o contato entre eles é raro. Todos sabem das condições em que José vive, porém, nenhum o ajuda. O homem levanta e caminha até seu carrinho, de onde tira uma caixa de cigarros e uma camisa branca completamente suja. Ele a utiliza como lenço para enxugar as lágrimas. - Eu não posso exigir que as pessoas travem suas vidas para me ajudar. O destino não é dono de nada, quem faz nosso destino somos nós. Então se eu estou
documentos, mas não tenho como comprar os remédios que me mandam usar. Violência José novamente chora ao lembrar de quando há um ano foi espancado por um homem até perder a consciência. Enquanto conversava com um senhor na rua, o agressor iniciou uma discussão, seguida de uma briga. O morador de rua teve quatro dedos quebrados, machucados no rosto e vários hematomas espalhados pelo corpo. A briga só parou quando o homem desmaiou. Ele conta que as semanas seguintes foram muito difíceis, pois machucou a perna e tinha dificuldades para andar. Sendo assim, não conseguia trabalhar para ganhar dinheiro. Outro caso de violência envolvendo que o
aqui, é por minha culpa. Preciso sair da rua, estou sofrendo muito aqui. Mas eu que tenho que resolver isso. Dia a dia Mesmo com as dificuldades, José diariamente batalha pela sobrevivência. Diariamente caminha pelo bairro em busca de materiais recicláveis, cuida de estacionamentos, capina calçadas e limpa terrenos, entre outros métodos para conseguir dinheiro. Em troca de banho, ajuda caminhoneiros a descarregar caixas no Ceasa (Central de Abastecimento do Estado de Santa Catarina). A alimentação é garantida de quarta-feira à sábado. Nesses dias o homem cuida do estacionamento de um restaurante perto de onde vive e recebe marmitas em troca. Nos outros dias a comida vem
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de doações ou com pães que consegue comprar com o pouco dinheiro que ganha. Apesar de trabalhar para conseguir dinheiro o suficiente para conseguir comprar um sanduíche e um café na padaria da esquina da rua, José afirma que jamais pode consumir o que compra dentro do estabelecimento. - Eu sei meu lugar. Eu não posso entrar, sentar e tomar meu café da manhã ali como qualquer outra pessoa. Eu perdi meu direito, as pessoas estão tirando isso de mim por preconceito. Isso dói muito.
Drogas e princípios Se existem pessoas que pensam que viver em
situação de rua é sinônimo de ser usuário de drogas, José prova justamente o contrário. O homem nega que tenha qualquer vício além do cigarro.
tentar encontrar um emprego e recomeçar a vida com quase 60 anos. A força para que isso um dia seja possível José diz buscar no amor.
Ele explica que o uso das drogas vai contra seus princípios e a bebida foi deixada de lado quando começou a ter problemas de circulação. Confessa que a única vez que experimentou alguma droga foi durante uma partida de futebol com os amigos na juventude. Fumou maconha e passou mal, depois disso não quis mais experimentar nenhum tipo de droga.
- Eu me amo, eu amo a vida. Por isso não desisto. Sei que tem alguma coisa boa esperando por mim. Enquanto isso, eu vou repassando para os outros o que aprendi: amor ao próximo. Ele é tão importante quanto o amor próprio. Ame bastante as pessoas que te rodeiam.
Amor à vida José nega que seja feliz. A vida cansativa e sofrida que diz levar o entristece todos os dias. Mas ele não pensa em desistir da busca por se reerguer na vida. Pensa em encontrar um abrigo para idosos ou
Eu me amo, eu amo a vida. Por isso não desisto. Sei que tem alguma coisa boa esperando por mim. Enquanto isso, eu vou repassando para os outros o que aprendi: amor ao próximo. Ele é tão importante quanto o amor próprio. Ame bastante as pessoas que te rodeiam. 12
OS LOUCOS CONFUNDEM OS SABIOS
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ma vida de muito dinheiro, luxo, carros caros, casas bonitas, viagens para lugares que quase todos sonham em visitar. Um bom emprego, diploma reconhecido, amigos influentes. Nada disso foi o suficiente para Claucio. Nascido em São José, o homem de 45 anos conta que sempre teve uma boa base familiar, apesar de não falar com o pai há uma década. Nunca lhe faltou nada, cresceu de forma confortável financeira e emocionalmente. A mãe sempre serviu como porto seguro e supriu a necessidade de carinho familiar, enquanto o pai, um jogador de futebol conhecido no cenário estadual da década de 1990, sempre foi arrogante e materialista, características que causaram discórdia na família. Sentado sob a marquise de uma loja de roupas na rua Capitão Pedro Leite, em Barreiros, São José, Claucio Izidoro Rodrigues começa a contar sobre uma quarta-feira de 2005. Nessa época trabalhava na fábrica de bijuterias Werner. Foi ao Restaurante Guaciara, onde estava sendo realizada uma festa e naquela noite conheceu Kelly, uma jovem de 22 anos que contou histórias sobre o tempo que morou em Lisboa trabalhando como modelo. Uma semana depois ela estava vivendo no apartamento que Claucio havia comprado com o dinheiro do seu trabalho. Pouco mais de um ano depois o casal teve uma filha, Nicolly, e após seis meses Claucio foi convencido pela mulher de que a vida na Europa seria muito melhor para a família. Largou o emprego, vendeu tudo que tinha e se mudou com a esposa e a filha para Lisboa. Eles chegaram na capital portuguesa em um sábado e naquele dia mesmo o homem encontrou em um jornal uma vaga de emprego na Enoteca de Belém. No dia seguinte foi para uma entrevista e na segunda-feira começou no emprego novo. Pouco tempo depois, o então garçom conheceu Eduardo Fernandes, um oftalmologista investidor e proprietário do local. - Ele olhou pra mim e logo reconheceu que eu era inteligente. Começamos a conversar e viramos amigos. Ele me proporcionou uma das coisas mais
valiosas da vida: o estudo. Pagou uma faculdade de enologia para mim. Sou formado graças a ele. Durante quatro anos a família viveu em Portugal. Nesse período Claucio aprendeu a falar inglês, francês e espanhol e visitou a França, Alemanha, Espanha e Holanda. Além desses países, o homem também conhece os Estados Unidos, Canadá, Nova Zelândia e Singapura. Mas foi em Fátima, cidade do país onde viveu, que Claucio tomou uma das decisões mais importantes da sua vida: o dinheiro não seria mais prioridade. Voltou para o Brasil e usou o que antes gastava em ostentação para montar duas empresas no bairro Kobrasol, sendo uma oficina de peças para carros importados e uma lavação de veículos. O dinheiro, que na época era utilizado pelo empresário de forma responsável, começou a falar mais alto para a esposa.
“Quando você estiver triste não comece a chorar, por que até o sol é sozinho e nunca deixa de brilhar. Com carinho, Claucio Izidoro Rodrigues.”
retomou a guarda compartilhada da filha, a vida de Claucio começou a desmoronar de vez. Isso porque Kelly pediu participação nas empresas do ex-marido e lutou na Justiça para ficar com a casa e o carro do casal. Sem dinheiro o suficiente para manter as duas empresas, o ex-enólogo precisou fechar as duas. Os únicos bens que sobraram foram o dinheiro que arrecadou nos anos de trabalho e um apartamento que despertou interesse na agora advogada. Claucio decidiu, então, largar o que sobrou e viver na rua. A mãe dele vive em um apartamento também em Barreiros, o homem possui um imóvel e dinheiro guardado, tem capacidade de arrumar
- Eu comecei a ganhar dinheiro que eu nunca tinha visto aqui no Brasil, de forma limpa. Ao mesmo tempo comecei a receber em casa algumas contas que eu nunca tinha visto também, tudo fruto do consumismo da Kelly. Enquanto eu ficava mais desligado do dinheiro, aquilo começou a corroer ela. Claucio explica que a mulher passou a agir diferente, não era mais a mesma pessoa. Após muitos diálogos que não surtiram efeito, o empresário decidiu pedir o divórcio. Durante um tempo a guarda da filha Nicolly era compartilhada, mas Kelly pediu para que o pai tomasse conta da criança durante a semana para que a então estudante de Direito pudesse concluir a faculdade. O pai aceitou. A rotina era dividida entre tomar conta das empresas e da filha. Emocionado, o homem para de falar e procura algo na mochila. Entrega uma foto dobrada e aponta para uma menina de cabelo claro no centro da imagem. Era Nicolly. Claucio não esconde a tristeza. Ele confessa que não vê a pequena há dois anos. Começo do fim Quando a ex-mulher terminou a faculdade e
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um novo emprego, mas mesmo assim prefere viver na rua. O motivo ele explica com raiva e emoção. Proteção. - Eu estou vivendo na rua para me defender judicialmente, eu estou usando drogas para me defender, eu estou bebendo para me defender. Quando tu tem esse tipo de comportamento, tu não responde pelos teus bens. Eu estou fazendo isso não para proteger o apartamento que ainda tenho, mas para proteger o futuro da minha filha. Drogas Durante os quatro anos que viveu na Europa, Claucio conta que experimentou diversas drogas e chegou a ser viciado em algumas, como cocaína, heroína, crack e maconha, substância que ele assume consumir até hoje junto com a cachaça, seu outro vício. Para se livrar dos vícios não foi necessário ser levado para clínica de reabilitação. Ele afirma que a fé em Deus bastou. - Clínica de reabilitação não serve pra nada, só pra arrancar dinheiro de quem precisa de ajuda. Sabe o cara que me colocou no mundo? Foi graças a ele. Deus mesmo diz que os loucos sempre confundem os sábios. Eu repito isso sempre. Sobre o uso da maconha, Claucio não se intimida. Afirma que sempre fumou e atualmente fuma cinco ou seis cigarros de maconha por dia. Confessou, ainda, que havia fumado antes da entrevista e, por isso, estava tão confortável de falar sobre tudo.
O maior desejo do ex-enólogo é que, quando acabar a briga judicial que tem com a mãe de Nicolly, possa procurar ajuda para se livrar do álcool e da maconha e viver com dignidade ao lado da filha.
e saiu cantando rumo às ruas que tanto conhece.
O bacana da vida
Começo do recomeço
Quando questionado sobre o que traz de bom para a sociedade, Claucio afirma que gosta de saber que é um exemplo para as pessoas, mesmo que seja um exemplo para não seguir. Ele lembra de uma vez que uma criança passou com os pais por ele na rua e perguntou porque aquele homem estava sentado no chão. O pai da criança respondeu que era porque ele era um drogado. Então, o menino disse que jamais gostaria de ser como ele. Claucio diz que não se sentiu ofendido, mas sim útil, por saber que seu erro serve de modelo do que não fazer.
Algumas semanas depois da primeira conversa com Claucio, nos encontramos novamente por acaso na tarde de um sábado. Ele estava diferente. Feliz, usando óculos, de brinco e com roupas novas. Uma camisa social, calça jeans e até um par de tênis novos. Ele não demorou muito para falar a novidade.
Em compensação, Claucio reconhece a quantidade de amigos e pessoas dispostas a ajudar que ele acumulou durante os anos. - Sabe qual o bacana da vida? Ele fez uma longa pausa e sorriu. - O bacana da vida é tu proporcionar alegria para as pessoas. Sabe como eu sei disso? Se não fosse verdade tu não estarias aqui sentada do meu lado ouvindo minha história.
- A minha alma está armada e apontada para a cara do sossego.
- Tenho uma notícia muito boa. Eu dei o braço a torcer. Decidi que vou me internar. Já assinei os documentos, já avisei minha mãe e no começo de dezembro vou para uma clínica de reabilitação. Claucio explicou que, mesmo sendo contra as clínicas de reabilitação, pensa que estar longe das ruas seja a única forma de largar o vício na bebida, que cada dia se torna mais forte. - Falar o que falei na entrevista me fez parar e refletir em toda a capacidade que eu tenho de ser um bom homem. Ninguém parou para me ouvir assim antes. Vou sair de lá daqui uns meses feito uma nova pessoa. Cheio de forças para lutar pela Nicolly.
Dito isso, Claucio e eu nos levantamos. Ele me abraçou, agradeceu emocionado por ter proporcionado alegria para ele também, se despediu
Fome e sede O homem que um dia já foi rico afirma que não gosta mais de dinheiro. - Dinheiro é uma porcaria. Sabe por que? Toma água demais e tu vai passar mal. Come demais que tu vai passar mal. Agora tenha dinheiro demais pra tu ver. Tu morre, brother. Por esse motivo Claucio se recusa a pedir dinheiro na rua. Ele conta que vive pedindo comida e bebida. Por ser morador antigo do bairro, os comerciantes o conhecem e o ajudam com o que podem. A droga ele diz que ganha de amigos que fumam também. - Pede pra algum amigo te hospedar na casa dele por um tempo. Não tem nenhum que faça isso. Agora pede pra fumar um baseado com alguém. Ah, dai todo mundo é amigo. Quando se sente fragilizado física e emocionalmente, Claucio visita a casa da mãe, onde também toma banho e lava suas roupas. Ele não gosta de saber que está cheirando mal. A mãe, por sua vez, se sente mal por ver o filho nessa situação, mas não consegue fazê-lo mudar de ideia. Viver na rua não é algo que Claucio goste. Segundo ele, a situação em que se encontra atualmente é nojenta, mas necessária. Às vezes passa fome, sede e frio, mas afirma que faria o dobro se precisasse para ver o bem da filha Nicolly, por quem sente tanto amor. - Eu estou aqui por ela, para proteger o que é dela. Se me falarem que para salvar a vida dela eu preciso mergulhar de um prédio alto, vou fazer o mergulho mais bonito que o mundo já viu. Tudo por ela.
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A minha alma está armada e apontada para a cara do sossego.
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Centro Universitário Estácio de São José Ana Letícia petry São José, 2017