A B A N D O N O DE
E S F T É A R Ç R Õ E E A S S
UNIVERSIDADE FEDERAL DE PELOTAS Faculdade de Arquitetura e Urbanismo Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo
Qualificação
ABANDONO DE ESTAÇÕES FÉRREAS: Cartografia dos sentidos na fronteira Brasil-Uruguay
Vanessa Forneck
Pelotas, 2020
Vanessa Forneck
ABANDONO DE ESTAÇÕES FÉRREAS: Cartografia dos sentidos na fronteira Brasil-Uruguay
Projeto de Qualificação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo da Faculdade
de
Arquitetura
e
Urbanismo
da
Universidade Federal de Pelotas, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Arquitetura e Urbanismo.
Orientador: Eduardo Rocha
Pelotas, 2020
Vanessa Forneck
Abandono de Estações Férreas: Cartografia dos sentidos nas cidades da fronteira BrasilUruguay
Dissertação ____________________, como requisito parcial, para obtenção do grau de Mestre em Arquitetura e Urbanismo, Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo, Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal de Pelotas.
Data da defesa: 27 de maio 2020
Banca examinadora:
______________________________________________________________________ Prof. Dr. Eduardo Rocha (Orientador) Doutor em Arquitetura pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul
______________________________________________________________________ Profª. Drª. Sara Parlato (Membro Interno) Doutora em Proggeto Urbano Sostenibile pela Università di Romatre
______________________________________________________________________ Profª. Drª. Ana Paula Vieceli (Membro Externo) Doutora em Arquitetura pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Resumo
FORNECK, Vanessa. Abandono de Estações Férreas: Cartografia dos sentidos nas cidades da fronteira Brasil – Uruguay. 2020. 154f. Dissertação (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo) – Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo, Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal de Pelotas, Pelotas, 2020.
Por aproximadamente um século, as estações férreas fizeram parte do cotidiano das pessoas, funcionando como um ponto de embarque e desembarque de passageiros. A partir da década de cinquenta, o sistema ferroviário começa a declinar, em decorrência de diversos fatores, dentre eles a falta de investimento e manutenção da via. Por volta de 1990, ocorre a extinção do transporte de passageiros e em muitas cidades as edificações tornaram-se obsoletas e, por consequência, criaram-se territórios abandonados. A pesquisa propõe um estudo sobre os territórios abandonados das estações férreas, buscando aproximar as teorias do urbanismo contemporâneo e da filosofia da diferença. Pretende-se compreender a ligação dessas edificações com quem habita aquele espaço, entendendo qual o sentimento em relação às estações férreas hoje na cidade e qual a influência do abandono nas dinâmicas atuais. O trabalho percorre pelo conceito de abandono entendendo os sentimentos e os sintomas que são desencadeados diante dessa condição; o conceito de sentido trazido para a arquitetura, com discussões que atravessam pela filosofia, artes e literatura; como também, o conceito de fronteira que abrange um território múltiplo, onde intercomunica dois países marcados por diversos conflitos em sua história. O objetivo principal desta pesquisa é mapear e analisar os territórios abandonados das estações férreas na fronteira Brasil–Uruguay, relacionando o patrimônio edificado com as práticas cotidianas de quem vivencia aqueles espaços. O estudo será desenvolvido a partir da cartografia dos sentidos, que apresenta uma forma de explorar sensações, deixando permitir-se vivenciar os acontecimentos propiciados por uma experiência. A pesquisa busca contribuir com pistas que revelem as potencialidades presentes nos territórios do abandono, dando visibilidade para os espaços urbanos minorizados na cidade. Desta maneira, é possível entender as múltiplas forças que atravessam nesses espaços e pensar que novas propostas de intervenção sejam elaboradas a partir das dinâmicas urbanas pertencentes àqueles territórios.
Abstract
FORNECK, Vanessa. Abandonment of Railway Stations: Cartography of the senses in the cities of the Brazil - Uruguay border. 2020. 154f. Dissertation (Master in Architecture and Urbanism) - Post-Graduation Program in Architecture and Urbanism, Architecture and Urbanism School, Federal University of Pelotas, Pelotas, 2020.
For nearly a century, railway stations have been part of people's daily lives, functioning as a point of departure and landing of passengers. From the fifties, the railway system started to decline, due to several factors, including the lack of investment and maintenance of the track. Around 1990, passenger transport was extinguished and in many cities the buildings became obsolete and, consequently, abandoned territories were created. The research proposes a study of the abandoned territories of the railway stations, seeking to approximate the theories of contemporary urbanism and the philosophy of difference. It is intended to understand the connection of these buildings with those who inhabit in that space, understanding what is the feeling regarding the railway stations in the city today and what is the influence of abandonment in current dynamics. The work goes through the concept of abandonment, understanding the feelings and symptoms that are triggered by this condition; the concept of meaning brought to architecture, with discussions that go through philosophy, arts and literature; as well as the concept of border that covers a multiple territory, where it intercommunicates two countries marked by various conflicts in its history. The main objective of this research is to map and analyze the abandoned territories of the railway stations on the Brazil-Uruguay border, relating the built heritage with the daily practices of those who experience those spaces. The study will be developed from the cartography of the senses, which presents a way of exploring sensations, allowing one to experience the events propitiated by an experience. The research seeks to contribute with clues that reveal the potentialities present in the territories of abandonment, giving visibility to the urban spaces in the city. In this way, it is possible to understand the multiple forces that go through these spaces and think that new proposals for intervention are elaborated from the urban dynamics belonging to those territories.
Lista de Figuras Figura 1: Mapa da fronteira Brasil e Uruguay com indicação das cidades-gêmeas.............. 24 Figura 2: Crianças e adolescentes se sentem atraídos por lugares isolados por estarem ocultos da visão e do controle público. ................................................................................ 36 Figura 3: A Incredulidade de São Tomás ............................................................................. 44 Figura 4: Escultura inacabada Peità de Rondanini (1555-64) de Michelângelo. ................... 47 Figura 5 Ponte Internacional Barão de Mauá sobre o rio Jaguarão, interligando BR e UY ... 77 Figura 6: Mapa das principais linhas da malha ferroviária do RS em 1910 .......................... 78 Figura 7: Mapa do sistema ferroviário do Uruguay ............................................................... 79 Figura 8: Estação Férrea de Jaguarão, BR. ......................................................................... 81 Figura 9: Estação Férrea de Rio Branco, UY. ...................................................................... 82 Figura 10: Topografia acidentada da região. Vista do Marco Divisório de Frontera 42-I em direção à Santana do Livramento. ....................................................................................... 89 Figura 11: Estação Férrea de Santana do Livramento, BR. ................................................. 92 Figura 12: Estação Férrea de Rivera, UY. ........................................................................... 93 Figura 13: Praça Interacional com obelisco indicando a divisa entre Brasil e Uruguay. ....... 94 Figura 14: Sistema Arvore-raiz fortalece a centralização e hierarquia................................ 101 Figura 15: Sistema rizomático enaltece a horizontalidade e multiplicidade ........................ 101 Figura 16: Imagem registrada da aduana, vista para o acampamento em Jaguarão-BR. .. 114 Figura 17: Vista para os Free Shops. ................................................................................ 117 Figura 18: Vista para a área alagável em Rio Branco-UY....................................................115 Figura 19: Vista do passadiço elevado, do lado direito para passagem de pedestres e esquerdo os trilhos do trem. .............................................................................................. 117 Figura 20: Vegetação crescendo entre os trilhos..................................................................115 Figura 21: Travessia de pedestre pela linha do trem. ........................................................ 118 Figura 22: Cavalo pastando na linha do trem encoberta por vegetação...............................116 Figura 23: Caminho pelos trilhos do trem com vegetação no entorno ................................ 118 Figura 24: Sítio ferroviário de Rio Branco- UY ................................................................... 118 Figura 25: Tapete florido durante o trajeto. ....................................................................... 121 Figura 26: Linha férrea em direção à estação férrea de Rio Branco- UY.............................119 Figura 27: Vista das residências no entorno da estação. .................................................. 121 Figura 28: Silos e galpão no entorno.....................................................................................119 Figura 29: Vista dos fundos da estação férrea de Rio Branco – UY. .................................. 119 Figura 30: Senhora cruzando a linha do trem. .................................................................. 122 Figura 31: Senhor cruzando a linha do trem.........................................................................120 Figura 32: Adolescentes conversando na antiga plataforma de embarque da estação férrea de Rio Branco- UY. ............................................................................................................ 120 Figura 33: Vegetação crescendo em cima da cobertura da plataforma de embarque ........ 121 Figura 34: Telha quebrada da cobertura da plataforma de embarque.. .............................. 122 Figura 35: Apodrecimento da madeira que sustenta a cobertura plataforma embarque. ... 122 Figura 36: Janela entreaberta no pavimento superior.. ...................................................... 123 Figura 37: Antena instalada na fachada. ........................................................................... 125 Figura 38: Campainha na porta de acesso principal da estação..........................................123
Figura 39: Vista para o balcão de atendimento da estação ................................................ 126 Figura 40: Vista interna da estação com os detalhes originais.............................................124 Figura 41: Galpões abandonados no sítio ferroviário de Rio Branco- UY........................... 126 Figura 42: Imagem interna do galpão abandonado. .......................................................... 128 Figura 43: Água esverdeada no interior do galpão...............................................................126 Figura 44: Mapa cartográfico do abandono da estação férrea em Rio Branco-UY ............. 127 Figura 45: Trilhos do trem em meio ao asfalto e no canteiro central em Jaguarão-BR ....... 129 Figura 46: Letreiro de padaria misturando palavras em português e espanhol. ................ 131 Figura 47: Letreiro de loja de tintas com destaque para a palavra “Fronteira”.....................129 Figura 48: Pavimentação do canteiro central na rua Uruguai. ........................................... 132 Figura 49: Lixo depositado no canteiro central.....................................................................130 Figura 50: Trilhos do trem passando aos fundos das residências em Jaguarão-BR .......... 130 Figura 51: Passagem bloqueada por uma cerca ................................................................ 134 Figura 52: Trilhos do trem soterrados no asfalto, passando na lateral de residências.........132 Figura 53: Bloqueio com cerca do trajeto. Trilhos do trem concretados criando o acesso às residências......................................................................................................................... 132 Figura 54: Gramado por onde seguiam os trilhos. ............................................................. 135 Figura 55: Área cercada e, aos fundos, zona industrial no local de passagem dos trilhos...133 Figura 56: Reaparecimento dos trilhos do trem. Adiante, uma cerca bloqueando a passagem pelo terreno descampado. ................................................................................................. 133 Figura 57: Vegetação crescendo entre os trilhos. ............................................................. 136 Figura 58: Edificações abandonadas próximas à linha do trem............................................134 Figura 59: Sinais da presença de pessoas no sítio ferroviário. Aos fundos a estação férrea de Jaguarão-BR...................................................................................................................... 134 Figura 60: Caixa d’água do sítio ferroviário. ...................................................................... 137 Figura 61: Imagem da estação na ambiência......................................................................135 Figura 62: Lateral cercada da estação de Jaguarão-BR .................................................... 135 Figura 63: Rua em frente à estação com maior movimentação de veículos. ..................... 138 Figura 64: Rua lateral da estação com maior movimentação de pedestre...........................136 Figura 65: Fundos da estação com instalação de condicionadores de ar. ......................... 137 Figura 66: Sacola de lixo em frente à estação ................................................................... 139 Figura 67: Instalação de câmeras de vigilância na fachada da estação...............................137 Figura 68: Estrada de terra que leva ao conjunto de moradias. ........................................ 140 Figura 69: Conjunto de residências dos antigos ferroviários da estação férrea de JaguarãoBR...................................................................................................................................... 138 Figura 70: Entrevista com o morador ................................................................................. 139 Figura 71: Mapa cartográfico do abandono da estação férrea de Jaguarão-BR ................. 141
Lista de Quadros Quadro 1: Definições dos cinco principais sentidos do corpo humano.....................................46 Quadro 2: Retomada dos Objetivos específicos....................................................................110
Lista de Tabelas Tabela 1: Esquematização para realizar os procedimentos metodológicos..........................111
Lista de Abreviaturas e Siglas
ARG
Argentina
BR
Brasil
FAURB
Faculdade de Arquitetura e Urbanismo
IPHAE
Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico do Estado
IPHAN
Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
RS
Rio Grande do Sul
UFPEL
Universidade Federal de Pelotas
UY
Uruguay
Sumário GÊNESE .............................................................................................................................................. 17 Princípio.............................................................................................................................................. 19 1.
Referencial teórico ................................................................................................................... 31 1.1
Abandono............................................................................................................................. 31
1.1.1 Sentimento e sintomas .................................................................................................... 31 1.1.2 Prazer em desfazer-se .................................................................................................... 35 1.1.3 Obra de arte por ela mesma ........................................................................................... 38 1.2
Sentido. Em que sentido? ................................................................................................. 42
1.2.1 Os sentidos e a arquitetura ............................................................................................. 42 1.2.2 Percepção e estímulos externos .................................................................................... 48 1.2.3 Um devir Alice ................................................................................................................... 53 1.3
Fronteira ............................................................................................................................... 57
1.3.1 Fronteiras da natureza e dos homens........................................................................... 57 1.3.2 Nomenclaturas fronteiriças ............................................................................................. 60 1.3.3 Fronteiras na atualidade .................................................................................................. 62 1.3.4 Territórios na filosofia ....................................................................................................... 64 2.
Contexto histórico.................................................................................................................... 71 2.1
Formação da fronteira Brasil - Uruguay .......................................................................... 71
2.2
Cidade-gêmeas Jaguarão/BR - Rio Branco/UY ............................................................ 73
2.2.1 Primeiras ocupações........................................................................................................ 73 2.2.2 A chegada do trem ........................................................................................................... 77 2.3 Cidades-gêmeas Santana do Livramento/BR – Rivera/UY .............................................. 85 2.3.1 Primeiras ocupações........................................................................................................ 85 2.3.2 A chegada do trem ........................................................................................................... 91 3.
O método Cartográfico ........................................................................................................... 97 3.1 Cartografia dos Sentidos ...................................................................................................... 100 3.2 Procedimentos metodológicos............................................................................................. 104 3.2.1 Pedagogia da viagem .................................................................................................... 104 3.2.2 Caminhar pelas bordas.................................................................................................. 105 3.2.3 Entrevistas cartográficas ............................................................................................... 107 3.2.4 Mapas ............................................................................................................................... 108
4.
Resultados e discussões ..................................................................................................... 113 4.1
O acontecimento | Jaguarão e Rio Branco................................................................... 114
4.2
Cartografia dos sentidos | o abandono invisível .......................................................... 143
4.3
O acontecimento | Santana do Livramento e Rivera .................................................. 148
4.4
Cartografia dos sentidos | territórios hostis .................................................................. 148
4.5
Pistas do abandono de estações férreas na fronteira Brasil-Uruguay ..................... 148
5.
Discussões e conclusões (próximos passos) ................................................................ 149
6.
Referências bibliográficas ................................................................................................... 150
UMA TELA EM VERDE Não seria uma tela em branco? Não. Porque o verde é intrínseco ao abandono. O verde está no percurso do trem, encontrado na oxidação dos trilhos abandonados. O verde está presente na vegetação germinando entre os dormentes, envolve a paisagem e asfixia o trajeto. Está no limo que brota na parede da estação férrea, que decanta a sujeira, acumula fuligem. Quantas gerações já não tocaram aquelas paredes? O verde está na telha quebrada que acumula água da chuva e faz proliferar musgo. O verde está no telhado, nas rachaduras das paredes, nas janelas danificadas. O verde está no abandono, assim como o abandono está no verde. O verde simboliza a natureza, liberdade, esperança. Está associado à renovação, mas que se esconde por trás do verde que remete ao esquecimento, ao abandono. Tudo depende do ponto de vista, vai prevalecer o verde da esperança por dias melhores ou o verde que deixará ruir, esgotar-se com o tempo?
17
GÊNESE Prédios abandonados comunicam algo, revelam sua alma de forma nua e crua, deixam-se expostos para que todos olhem. Como um grito de socorro, que clama por necessidade de cuidado. Sempre tive curiosidade por prédios abandonados ou em estado de ruína. Minha imaginação fluía: “o que acontecia nesse prédio? Quem morava ali? Por que foi abandonado? Será que os donos morreram? Será que é mal-assombrado?”. Os questionamentos eram inúmeros e a curiosidade maior. Gostaria de entrar lá, me perder no abandono, sentir o que a edificação queria dizer, pois algo tem a falar. Ao finalizar o curso de Arquitetura e Urbanismo, de imediato quis me aventurar no abandono para o Trabalho Final de Graduação. Eis que surge, através de uma busca online, o abandono da Estação Férrea Theodósio, no Capão do Leão, cidade vizinha de Pelotas, RS. Desenvolvi uma proposta de restauração arquitetônica e de revitalização do entorno, pois tão importante quanto o patrimônio, é pensar o contexto de sua inserção na cidade. Pensar o patrimônio nos dias de hoje é um grande desafio, pois a história faz parte da cidade e as dinâmicas seguem ocorrendo naqueles espaços, só que de maneiras diversificadas. Pensar na cidade, nas suas linhas de conexão, nos espaços públicos, envolvem contextos múltiplos e complexos. Essa foi uma das experiências que vivenciei em dois projetos de pesquisa situados na fronteira Brasil – Uruguay. Estudar os espaços públicos em um território de fronteira é potente, nos faz sair da zona de conforto e realmente viver as heterogeneidades das cidades. Diante disso, quis explorar os abandonos nas cidades da fronteira Brasil-Uruguay. Logo, pensei nas estações férreas e suas implicações, um estudo que envolve patrimônio cultural e a relação transfronteiriça, desse cruzamento ou transgressão de um território outro, através da linha do trem. O que instiga a compreender com maior aprofundamento a relação das estações férreas inseridas no cenário atual do urbanismo contemporâneo. Como uma proposta de atentar para os lugares do abandono e a partir das sensações, entender o que o abandono provoca e instiga nos espaços urbanos.
18
princĂpio
19 Princípio O sistema ferroviário esteve presente em várias cidades
Sistema ferroviário
brasileiras, baseado na perspectiva de promover inovação e desenvolvimento econômico para o local. Desde o princípio, a modalidade enfrentava dificuldades que iam desde a sua implantação, manutenção e execução do serviço, mesmo assim, atuou por quase um século de história. As ferrovias traziam melhorias de infraestrutura nas cidades, planejando fluxos e acessos de maneira mais qualificada. Junto dessas melhorias, também são construídas as estações férreas, apresentando uma arquitetura imponente e graciosa na época. Por muitos anos, as estações criavam cenários de encontros,
Estações obsoletas
onde aconteciam interações sociais e culturais. Por volta da década de noventa, o sistema ferroviário entra em decadência levando a sua extinção total ou parcial da modalidade, que em alguns casos seguia apenas com o transporte de carga. Assim, as estações férreas perderam sua função original, criando um novo cenário, agora o do abandono. Nos dias atuais, comumente o que se percebe é o completo descaso e esquecimento com os remanescentes ferroviários, deixando que eles resistam às diferentes ações no decorrer do tempo, sejam elas naturais (intempéries) ou pela ação humana (depredação, saque, retaliação). Encarar o abandono das estações férreas vai além da proposta
Sensibilidades
de solucionar questões construtivas, pois envolvem fatores sociais que fizeram e ainda fazem parte da vida e história de uma sociedade. Portanto, não se deve descartar esse universo múltiplo e heterogêneo, pois são elementos que enriquecem e dão identidade para cada cidade. Quando são propostas revitalizações nesses sítios deve-se considerar todas essas relações emotivas que são subjetivas à materialidade do objeto. O planejamento desses espaços sem à devida sensibilidade, despreza os múltiplos fatores compostos por uma sociedade, que é o olhar para as pessoas primeiramente. O esquecimento ou despreocupação da construção de cidades para as pessoas, é fortalecido a partir do período da Revolução Industrial, quando as cidades estiveram voltadas ao grande fomento da industrialização e capitalização de recursos. As pessoas tinham
Produtividade
20 como função exercerem seu papel de meros trabalhadores assalariados, pouco tinham voz em meio ao sistema vigente. O processo de mecanização modificou o modo de atuação das pessoas no trabalho, tornando uma espécie de robotização, como exemplifica no filme Tempos Modernos1. Esses processos atingem a sociedade como um todo, criando uma mecanização do próprio indivíduo que nos afeta diretamente. Como, por exemplo, quando nos sentimos desconfortáveis ou até frustrados em dias “não produtivos”. Arquitetura fictícia
As dinâmicas voltadas à intensa mecanização, afasta o indivíduo cada vez mais de sua atuação sensível no mundo, deixando escapar as particularidades de nossos próprios sentidos. Esse distanciamento do próprio indivíduo em si, dá abertura para que se criem imaginários de padrões estéticos comercializáveis e vendáveis em todo o mundo, sem considerar características próprias de cada região. Afasta-se da experiência do real, aproximando-se do fictício. Porém, o papel da arquitetura tem como base a defesa pela autenticidade
e
autonomia
da
experiência
humana,
estando
designado para o que é real e perceptivo na valorização cultural e social (PALLASMAA, 2013). Estímulo visual
A visão, por sua vez, é o sentido que mais tem se explorado nos últimos tempos. A globalização de imagens é utilizada por meio de atividade de entretenimento, informação, cultura, como também uma estratégia comercial, para fins de ideologias políticas e sociais. Cada vez mais os sistemas digitais tomam conta das atividades cotidianas e as habilidades manuais, de linguagem e de conhecimento literário, se encaminham para o declínio (PALLASMAA, 2013). Esquece-se dos demais sentidos que integrados transformam
Ser e estar no mundo
nossa vida e nosso sentido de ser e estar no mundo. É o que nos permite explorar momentos e perceber o quão sensível podemos ser com as pessoas ao nosso redor. Que reforça as interações humanas, de afeto, da sensibilidade e da empatia. Ações que atualmente Tradução do inglês “Modern Times”, filme estadunidense lançado em 1936 por Charlie Chaplin. O filme mudo apresenta a situação do personagem Little Tramp (O vagabundo) que tenta se inserir no processo de industrialização do mundo moderno, mostrando as condições de maus-tratos que os trabalhadores recebiam na época, também faz uma grande crítica ao capitalismo, ao nazifascismo e ao imperialismo. 1
21 caminham no sentido contrário, diante de cenas de uma sociedade que ainda é muito intolerante com as diferenças. Por volta da segunda metade do século XX, o grupo
Situacionistas
denominado Situacionistas, traz em pauta ideias para resgatar a importância da conexão e participação com questões sociais, artísticas, culturais e urbanas. O incentivo da participação dos usuários cria uma autonomia e consciência de tomar o rumo de sua própria vida. São ideias que buscam impedir a alienação da sociedade, envoltas na padronização de princípios e ideais. O incentivo de criar cidades homogêneas desconsidera as
Olhar para o diferente
características próprias de cada cultura, criando um tipo de cenário que refuta o que é heterogêneo. Os elementos que fogem do que é comum, do que escapa das estruturas pré-estabelecidas são as valorizadas pela filosofia da diferença, ideia trazida pelos filósofos Gilles Deleuze e Félix Guattari. São princípios que reconhecem o diferente, das minorias, daquilo que escapa dos padrões. É dar voz para aquilo que é minorizado em uma sociedade já consolidada. Nesse caso, as áreas abandonadas ou ociosas também podem
Outros contextos
ser enquadradas nessas minorias, pois muitas vezes são as que menos recebem atenção e investimento no planejamento das cidades. O abandono das estações férreas é uma forma de manifesto, ele está ali, aguardando cuidado e atenção, em busca de alguém que olhe para aquele espaço e o sinta como parte da cidade. Foi um local de intenso fluxo e interações sociais, mas que hoje não apresenta mais sentido. Alguns autores apresentam alternativas para enfrentar o abandono de estações férreas e do sistema ferroviário no contexto atual. São estudos que envolvem desde a percepção de moradores devido aos impactos da revitalização desses sítios, até propostas mais incisivas que buscam resgatar o sistema ferroviário como alternativa de transporte coletivo A autora Danielle Faccin (2014), apresenta as revitalizações no espaço urbano no entorno do Sítio Ferroviário de Santa Maria-RS, ocorridas nos últimos vinte anos. Através da etnografia, a autora busca compreender como os moradores vêm percebendo as transformações do espaço, entendo como são reconhecidos e apropriados os
Percepções
22 remanescentes ferroviários como patrimônio histórico e cultural na cidade. Restauração
Com base no material bibliográfico e documental sobre a estação férrea de São Borja-RS, Maciel (2018), afirma a importância de manter viva a história e memória da estação, para a valorização cultural da cidade. Complementa ainda que o processo de restauração da antiga estação, contribuiu para a salvaguarda da memória urbana e para uma maior conscientização da preservação do patrimônio ferroviário. De outro ponto de vista, também são realizados estudos sobre
Critério de recurso
o processo de decadência do sistema ferroviário como desperdício de um modal de transporte sustentável, seguro e de baixo custo. Nesse sentido, foram utilizadas metodologias de Análise de Custo e a Multicriterial através da Análise Custo-Efetividade (ACE) para auxiliar o processo de seleção e identificação de projetos prioritários, a fim de garantir a correta aplicação dos recursos do Governo Federal (LANG, 2007). Transporte coletivo
Ainda, pode-se relacionar questões de remanejo das antigas estações férreas como propostas de vincular novas alternativas de transporte intra-modal. Em São Paulo, foram pensadas alternativas que integram as linhas de metrô com as linhas ferroviárias. As estações férreas adaptadas no estudo recebem, agrupam e direcionam o fluxo de passageiros. Uma estratégia de planejamento para suprir as demandas do transporte público urbano (FERNANDES, 2012). Compreendendo que as alternativas e estudos acerca do tema podem ser abrangentes, é interessante ressaltar que há diversas ferramentas para “solucionar” o abandono das estações férreas. Cada alternativa está direcionada para suprir uma determinada demanda na sociedade, seja a falta de transporte, revitalização de lugares ociosos, ou investimento turístico para o local. O que não fica claro, se são observadas as apropriações que já ocorrem nesses espaços e se o sentimento de quem mora ali é levado em consideração, antes de serem implantadas as propostas de revitalizações.
23 O abandono de estações férreas envolve um conjunto de sensações que abarcam história, cultura, economia, patrimônio, memória,
emoção,
relações
interpessoais
e
diversas
Sensações do abandono
outras
atividades. O lugar do abandono é um território múltiplo e complexo, ainda mais quando envolve a conexão entre dois países. A dinâmica de cruzar a linha de fronteira através da linha férrea, rompe com o sentido isolado de abandono da estação férrea na paisagem urbana, pois há um elemento que une dois territórios e cria um outro sentido de abandono, que é contíguo, interligado e está emaranhado. Desta forma, o trabalho desenvolvido na Linha do Urbanismo
Nicho da pesquisa
Contemporâneo tem como princípio pesquisar e explorar os territórios do abandono de estações férreas na fronteira Brasil-Uruguay. A motivação desta pesquisa está relacionada com a minha participação em dois projetos de pesquisa, desenvolvidos pelo Laboratório de Urbanismo (FAUrb/UFPel)2 onde foi possível vivenciar um mergulho no plano da experiência que envolve o território da fronteira. E ainda, motivada por uma inquietação pessoal sobre os potenciais que podem surgir a partir do abandono presente nas cidades. A partir disso, surge a possibilidade de uma nova imersão, agora na perspectiva do abandono de estações férreas no território fronteiriço. A linha de fronteira é constituída por seis cidades-gêmeas, porém somente quatro delas possuem estações férreas: Jaguarão-Rio Branco; Santana do Livramento-Rivera; Quaraí-Artigas e Barra do QuaraíBella Unión, respectivamente citadas no lado Brasil-Uruguay. Para fins de viabilidade da pesquisa, escolheu-se duas cidades-gêmeas para o desenvolvimento do trabalho. Uma por ligação por terra (Santana do Livramento-Rivera) e outra por ponte (JaguarãoRio Branco), localizadas no mapa da Figura 1.
O projeto de pesquisa estuda a linha de fronteira Brasil – Uruguay, é coordenado pelo Laboratório de Urbanismo da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Pelotas. Foram realizadas duas viagens, uma no ano de 2016 na pesquisa intitulada “O Para-formal na fronteira Brasil-Uruguay: controvérsias e mediações no uso do espaço público” e a outra no ano de 2018, com o projeto intitulado: “Travessias na Fronteira Brasil-Uruguay”. Mais informações através dos sites: https://paraformalnafronte.wixsite.com/fronteira/para-formale https://wp.ufpel.edu.br/travessias/ 2
Cidades-gêmeas
24
Figura 1: Mapa da fronteira Brasil e Uruguay com indicação das cidadesgêmeas. Fonte: Google Earth, adaptado pela autora, 2020.
As cidades de Jaguarão e Santana do Livramento estão localizadas no estado do Rio Grande do Sul (RS), lado brasileiro. As cidades de Rio Branco e Rivera pertencem, respectivamente, ao departamento de Cerro Largo e Rivera, no lado uruguaio. A formação das cidades ocorreu principalmente pelo envolvimento militar, pela produção pecuária e pela comercialização de produtos, favorecida pela região de fronteira. Lacuna do conhecimento
A proposta de estudo para o abandono de estações férreas deseja focar ao que foge do cenário da fantasia: é o olhar para o que é real, está abandonado, ignorado, refutado. Entretanto, são lugares que trazem um conjunto de sensações que instigam à exploração desse território. O que deixa uma brecha no conhecimento que busca entender o sentimento que envolve o abandono das estações férreas para quem mora ou percorre esses espaços, abarcando as subjetividades e as potencialidades existentes, que também fazem parte do contexto da cidade.
Perguntas da pesquisa
Assim, surgem as perguntas desta pesquisa: quem habita esses espaços? Quais são as atividades encontradas naquele local? Qual a ligação dos usos atuais com a estação férrea? Existe uma relação de pertencimento da estação com o restante da cidade? E com o país vizinho? Qual o sentimento gerado pelo abandono das estações férreas? A partir dessas inquietações, ainda não está evidente o que pulsa nesses territórios do abandono que permite que esses
25 espaços ganhem visibilidade como agentes pertencentes às políticas de planejamento nas cidades? Para este fim, é necessário compreender a complexidade que
Método cartográfico
envolve o abandono de estações férreas nesses territórios fronteiriços. Como inovação para o estudo, será desenvolvido o método da cartografia. A cartografia tem como premissa mapear processos, a fim de mergulhar no plano da experiência, que nos instiga a olhar para as peculiaridades propiciadas diante de um acontecimento. Quando falado de um “acontecimento” não devemos confundir com uma delimitação
espaço-temporal.
A
linguagem
faz
parte
do
acontecimento, ela mantém a relação essencial com o acontecimento. Não há sentido de um acontecimento, mas o próprio acontecimento é o sentido (DELEUZE, 1974). Diante de um acontecimento são ativadas forças exteriores que nos atingem, somos afetados por elas de diferentes maneiras e a partir disso, é que pode ocorrer o processo criativo. Para entender um pouco desse processo, os filósofos Deleuze e Guattari (1997) apresentam o conceito do ritornelo, aquele que quer dizer “retorno”, repetição. O ritornelo envolve um processo que pode ser definido em três aspectos (do caos à casa, de agenciamentos territorial e do cosmos). Estes que não são uma evolução do outro, mas processos que passam por transformação. O primeiro aspecto envolve a territorialização, o ritornelo não pode ser “feito”, ele já está lá acontecendo. São forças que se excedem, que não se pode controlar, é uma intuição sensível onde o sujeito se acopla a esse processo. O segundo aspecto é marcado pelo agenciamento
territorial,
onde
estão
presentes
qualidades
expressivas, o território é marcado por motivos e contrapontos. E o terceiro aspecto é a desterritorialização, quando atinge outros agenciamentos. São forças excedentes que objetivam ser captadas, onde o molecular e o molar colidem (DELEUZE & GUATTARI, 1997).
Ritornelo
26 O ritornelo, em primeiro lugar, pode ser entendido como um retorno para si, que resgata, repete. No segundo momento, é entendido
na
circularidade
dos
três
aspectos
mencionados
anteriormente. Deste modo, tudo o que inicia já é um retorno, mas resulta sempre no diferente: que é a reterritorialização. Corresponde à desterritorialização,
mas
nunca
é
a
regressão
ao
mesmo
(Zourabichvili, 2004). O livro e o mundo
Pode-se relacionar o conceito de desterritório entre o livro e o mundo. O livro não pretende representar uma imagem de mundo enraizada segundo alguma crença, mas o livro: Ele faz rizoma com o mundo, há evolução aparalela do livro e do mundo, o livro assegura a desterritorialização do mundo, mas o mundo opera uma reterritorialização do livro, que se desterritorializa por sua vez em si mesmo no mundo (se ele é disto capaz e se ele pode) (DELEUZE & GUATTARI, 2011, p. 28).
O que os autores querem dizer, é que a desterritorialização gera potência. Ela é considerada positiva, tem seus limiares e graus, e se comporta de maneira relativa, pois tem como reverso uma complementariedade que ocorre na reterritorialização. Quando o indivíduo desterritorializa, diante de um acontecimento exterior, ele reterritorializa de modo interior (DELEUZE & GUATTARI, 2011). Afectos e perceptos
Os territórios analisados através da cartografia permitem que as zonas minorizadas e desvalorizadas sejam olhadas a partir de outras perspectivas. Um processo de desterritorialização que nos coloca diante de fatos imprevisíveis, mas que podem gerar novos signos que permitem nossa reterritorialização. É olhar para o que nos cerca e desvendar as potencialidades desses espaços tão singulares e heterogêneos. Nosso corpo não é um simples ponto no espaço, as ações virtuais e reais se cruzam, ocorrendo, conjuntamente, percepções e afecções diante do acontecimento. Bergson (2010), associa a afecção como a mistura de nosso interior corporal com as imagens dos corpos exteriores, é o que extraímos primeiramente da percepção para redescobrir o mais puro da imagem. Para Deleuze (1988, p.52) os afectos são definidos como: “devires que transbordam daquele que
27 passa por eles, que excedem as forças daquele que passa por eles”. Um exemplo citado pelo autor é a música como possível criadora desses afectos, que podem ir além da nossa compreensão, fazem-nos ver coisas, que não existiriam fora da música. Já os perceptos buscam criar um conjunto de percepções e sensações que ultrapassam aquele que a sente. Um artista, por exemplo, é uma pessoa que constrói perceptos. Possuem uma potência por si só, capazes de gerar um complexo de sensações, buscando uma independência radical em relação àquele que as sentiu. Tantos os perceptos quanto os afectos são conceitos que estão interligados, não há perceptos sem afectos (DELEUZE, 1988). A partir dessa perspectiva, adotou-se como procedimento metodológico a Cartografia dos Sentidos, pois possibilita explorar as sensações do abandono, atentando-se às diferentes possibilidades vistas, sentidas e vividas em um espaço. É permitir-se entrar no território do desconhecido para sentir e captar todos os sinais que forem emitidos. Parar, observar, atentar a tudo que está à sua volta, perceber o espaço e como ele interage com nosso corpo. É o movimento contrário do que estamos acostumados na cidade contemporânea, que requer agilidade, rapidez e eficiência. Deve-se ir contra esse movimento veloz, permitir que nossos sentimentos e desejos fluam, sem pressa para abrir espaço para a experiência, como diz Orlandi (2015), perder tempo para ganhar espaço. Por si só, as estações férreas apresentam um fator imponente através de sua arquitetura característica, algo que nos afecta e gera sensações. Ao olharmos para a edificação, nosso corpo envia estímulos para o cérebro que faz resgatar e potencializar os sentidos em nosso corpo. Algumas pessoas podem recordar algum momento específico daquele período, relembrar os cheiros característico do lugar, seja pela venda de frutas ou das mercadorias que passavam por ali. Retomar lembranças de encontros, abraços e despedidas que ocorriam na plataforma de embarque. Como também, recordar a vista da paisagem durante o trajeto. Cada pessoa apresenta sentimentos e sensações deferentes, que revelam um sentido único ao recordar as estações férreas.
Cartografia dos sentidos
28
Objetivo geral e específicos
Assim, tem-se como objetivo principal desta pesquisa mapear e analisar os territórios do abandonado das estações férreas na fronteira Brasil–Uruguay, relacionando o patrimônio edificado com as práticas cotidianas de quem vivencia aqueles espaços. Tem-se como objetivos específicos: a) ouvir e registrar o sentimento provocado pelo abandono das estações para quem ocupa ou vive aquele espaço; b) mapear as sensações vivenciadas pelo abandono no percurso da linha férrea até a estação férrea; c) compreender e analisar as interações vivenciadas pelo abandono das estações férreas na contemporaneidade.
Potencialidade
Os objetivos propostos buscam contribuir com pistas que revelem as potencialidades presentes nesses espaços do abandono. A partir de um olhar sensível e que leve em consideração as singularidades que os lugares do abandono das estações férreas podem agregar para uma proposta de arquitetura e urbanismo mais humana. Pretende-se que o estudo contribua para que futuros projetos de intervenção e propostas de novos usos, sejam pensados a partir das novas dinâmicas urbanas pertencentes àqueles territórios. Aliando as dinâmicas dos espaços urbanos das estações férreas com a filosofia da diferença, busca-se trazer conceitos que abarquem esse complexo e rico território fronteiriço. Nesse sentido, o trabalho foi desenvolvido a partir dos seguintes capítulos:
Referencial teórico
Capítulo 1: Inicia com um referencial teórico que contribua para o desenvolvimento da discussão da proposta. Para isso, foram trazidos três conceitos principais: o abandono, o sentido e a fronteira. O abandono proposto para a discussão, tem a intenção de acessar diferentes formas e tipos de abandonos na sociedade e como podem afetar direta ou indiretamente o cotidiano das pessoas. O conceito de sentido retoma discussões que foram deixadas de lado ou pouco exploradas na arquitetura e urbanismo na atualidade. Que é projetar e pensar os espaços a partir dos sentidos de nosso corpo. Ainda compreende que o conceito de sentido versa por caminhos da literatura, artes e filosofia. E por fim, o conceito de fronteira que compreende questões políticas e sociais, que abrangem discussões essenciais na integração das cidades e das populações.
29 Capitulo 2: Para compreender as dinâmicas desses territórios
Contexto histórico
fronteiriços, inicia-se com um breve contexto da formação da fronteira Brasil-Uruguay. Posteriormente, será apresentada a contextualização histórica das cidades de Jaguarão-Rio Branco e Santana do Livramento-Rivera para introduzir a relação entre os dois países, principalmente com a chegada da linha férrea nesses territórios. Capítulo 3: É introduzida a Cartografia como método. São
Metodologia
iniciados os primeiros relatos de cartografia e a consequente transformação de sua aplicação devido às mudanças e novos pensamentos da urbanidade. Assim, é adotada a Cartografia dos Sentidos, a fim de explorar os territórios do abandono das estações férreas, como também registrados os procedimentos metodológicos utilizados na pesquisa. Capítulo 4: Destina-se agrupar e analisar as descobertas e apreensões “colhidas” nas duas cidades-gêmeas. As descobertas 3
Resultados e discussões
partem de múltiplos atravessamentos durante a experiência. Como a composição do mapa cartográfico, que auxilia no entendimento desse território que é hospitaleiro, mas também hostil ao estrangeiro. A caminhada pela linha do trem que é apresentada através do mosaico das texturas que exprime uma leitura da paisagem do abandono das estações férreas. Como também as vozes que trazem significados distintos e como o abandono das estações férreas ainda influencia na vida das pessoas. A partir do conjunto desses agenciamentos é que são formuladas as pistas do sentido do abandono de estações férreas na fronteira, fortalecidos com a revisão da literatura para elucidação do processo. Capítulo 5: Encerra-se, por ora, a discussão sobre o que instiga os territórios do abandono, mas que deixa em aberto as múltiplas formas que ainda podem ser analisados esses territórios. Uma vez que os resultados deste trabalho são parte de um processo diante de um acontecimento, mas que pode vir a retomar, reescrever e reinventar diante das múltiplas complexidades e heterogeneidades que a vida nos oferece constantemente.
3
Sentido de colher algo, mas que segue lá após a colheita. E não coleta, que remete a retirar algo de um lugar, que depois não vai mais ser encontrado.
Conclusões
30
capĂtulo 1
31 1. Referencial teórico Primeiramente, foram destacados os conceitos que tratam diretamente o tema deste trabalho, que são abandono, sentido e fronteira. Acredita-se que ao longo do estudo, surgirão outros para complementar e enriquecer as propostas trazidas na pesquisa. 1.1 Abandono 1.1.1 Sentimento e sintomas A palavra abandono, por si só já carrega um sentimento forte.
Abandonar
Abandonamos algo, deixamos um lugar, afastamo-nos. Remete ao desamparo daquilo que estava sob domínio, deixar sem proteção. Pode-se abandonar coisas, pessoas, lugares. Quando algo não faz mais sentido em nossas vidas, queremos nos desfazer do que pesa, daquilo que se torna um fardo para carregar. No abandono de pessoas, por exemplo, um filho ser
Síndrome
abandonado pelo pais, pode ocasionar consequências profundas na vida de alguém, como frustação, insegurança e síndrome. Assim, Germaine Geux4 traz em seu livro O Síndrome de Abandono, as experiências sintomáticas do abandono em seus pacientes. A palavra “abandonnique”, criada pela autora, é um estado psíquico da pessoa com sentimento de abandono. Obrigatoriamente, não precisa refletir a uma realidade objetiva, pois também pode acreditar ter sido abandonada (GEUX, 1973). A autora complementa que cada paciente apresenta suas reações afetivas de modo distinto. O neurótico pode apresentar sintomas súbitos da doença ou de estado crônico, desestabilizando seu comportamento ao reativar angústias iniciais em decorrência de contextos exteriores. De maneira simplificada,
existem
duas
características que prevalecem nos pacientes com síndrome do abandono: a angústia e a agressividade. Tais manifestações são reflexos de uma ausência do sentimento do ego e da falta de amor próprio. Pode ser retratado da seguinte forma:
4
A autora é uma clínica suíça que estudou com a segunda geração dos discípulos de Freud e foi aluna do psicólogo suíço Jean Piaget, tendo iniciado a sua carreira de terapeuta junto às crianças e às famílias (informações retiradas na aba do livro O Síndrome de Abandono, 1973).
Sintomas
32 É sobre o tripé da angústia que todo abandonado desperta; da agressividade que faz nascer, e da consequente não-valorização de si próprio que se edifica toda sintomatologia desta forma de neurose. (GEUX, 1973, p. 24).
Angústia leve
O sentimento de angústia se manifesta em diferentes intensidades, pode ir de um sintoma mais brando, como um simples mal-estar interior, até um nível mais intenso de angústia. Muitas vezes, o sintoma é despertado através de cenários de ameaças afetivas, por exemplo, diante de uma separação, frustação ou perda, reativando traumas antigos que retomam o sentimento de ausência afetiva e de solidão. Confrontar-se com prédios abandonados também pode estar correlacionado com o sentimento de angústia. Quando um indivíduo se depara com o abandono, pode provocar nele um sentimento ruim, de aflição e angústia. É instantâneo, incômodo, desconfortável. O sentimento surge de imediato, mas ao se afastar, aos poucos o sentimento diminui, reestabelecendo-se ao estado de espírito habitual, ou pelo menos, de ausência da angústia.
Angústia intensa
Partindo para o caminho mais extremo, o indivíduo com sentimento de abandono lida com a angústia de maneira mais dolorosa. O sentimento vai além de um simples desconforto momentâneo, pois ele vê na edificação toda a falta de cuidado e amor. Esse tipo de angústia pode despertar um gatilho de frustações antigas de sua vida, reativando nele o sentimento de abandono, tornando-se, muitas vezes, difícil de suportar.
Agressividade
Outro sentimento ocasionado pela síndrome do abandono é a agressividade. Germaine Geux (1973, p.32-33), relata que as formas e intensidades podem ser variadas: “Evidente ou oculta, imediata ou de ação retardada, atingindo o sadismo ou contida por outros fatores (por exemplo, o medo de romper a ligação) [...]”. Trata-se aqui de uma agressividade reacional, em decorrência de privações de afeto na infância. Afirma que a tendência é diminuir, e depois, desaparecer ao longo do tratamento.
Atitudes de agressividade
Cabe salientar a dificuldade de generalizar as atitudes de agressividade nos indivíduos. Em geral, elas se manifestam em seus atos, pensamentos e sentimentos, ocorrem de modo tão intenso que
33 tudo se torna pretexto para reinvindicações. É um mecanismo de defesa. O neurótico do abandono nunca se desarma completamente, seria uma atitude perigosa demais. O sentimento da agressividade faz com que o indivíduo sinta o desejo de vingar as dores do passado. Querer que o outro sofra o que ele sofreu, e inclui ameaça, decepção e abandono (GEUX, 1974). Relacionando o sentimento da agressividade com prédios
Retaliação
abandonados, entende-se que, talvez, seja este o motivo para encontrarmos prédios abandonados que também estão depredados, saqueados, sucateados. O indivíduo vê no prédio abandonado a falta de amor e cuidado, logo revida com agressão. Sente a necessidade de retaliação com aquilo que também foi esquecido, abandonado. Em geral, o indivíduo com síndrome de abandono apresenta
Negativo-agressivo
dois tipos de comportamento: o chamado negativo-agressivo e o positivo-amoroso. De maneira alguma a classificação é tida como absoluta, mas apenas uma indicativa de dominância dos fatos. Será apontado o extremo dos dois casos, mas existem todas as gradações entre ambos. O indivíduo que possui o sentimento de rancor como dominância, é o do tipo negativo-agressivo. Neste caso, há intensa obsessão do passado, se apega nos fracassos, frustações e tem forte tendência de repetir as suas decepções do passado e presente. Tem dificuldade em assumir responsabilidades, sua conduta de nãovalorização e ausência afetiva carregam uma impotência diante da vida. Vê nos outros a obrigação de uma melhora em sua vida, já que fatores externos que o deixaram assim (GEUX, 1974). Um prédio abandonado não causa amor, foi desprezado,
Passividade
deixado como destroço. Está à espera de amor, cuidado e proteção, enquanto isso fica no aguardo, deixando que o tempo aja sobre ele, destrua-o,
agrida-o.
Uma
arquitetura
abandonada
retrata
a
passividade, o masoquismo afetivo e a apelação ao amor, características
típicas
do
negativo-agressivo
que
espera
relutantemente sua salvação (ROCHA, 2010). O tipo positivo-amoroso apresenta uma característica mais de inquietude, do que de rancor. O indivíduo é ativo e se esforça no sentido de suas necessidades, consegue manter ligação e afetividade
Positivo-amoroso
34 com o outro, mas não se arrisca inteiramente, podendo retirar-se quando sentir insegurança. Possui mais consciência de si e maior sentido de valor. Inversamente ao tipo negativo-agressivo, tem condições de reparar e compensar o seu próprio passado (GEUX, 1974). Afetividade
O abandono de um edifício do tipo positivo-amoroso já apresenta uma adaptação ao real, elas são reconhecidas, porém inquietas. Olha-se para este tipo de abandono de maneira saudosista, será que aguentará por mais tempo? Mesmo que estejam abandonadas,
mantem-se
ativas
na
cidade.
São
operados
sentimentos de valor, que podem ser do tipo econômico, cultural, social, entre outros fatores. Por exemplo, os prédios abandonados que são muito caros e, por isso, comovem a população. Ou quando o prédio foi residência de uma família importante, afirmando que deva ser preservado por este motivo. Tais vínculos criados com esses casos de abandono, fazem com que exista uma relação amorosa, que repara e recompensa seu passado (ROCHA, 2010). Inutilidade
Em todo caso, o edifício abandonado manifesta sinais de seu esquecimento.
Seja
através
de
paredes
rachadas,
pintura
descascada, sujeira acumulada, falta de elementos compositivos, vidros quebrados, teias de aranha. Estes são alguns indícios exteriores do abandono. Entretanto, o abandono pode se revelar de maneira mais leve, mais interiorizada. São abandonos que se manifestam através de lacunas da inutilidade, onde a incapacidade de uso, de certa forma, revela sua fragilidade enquanto finalidade. Um prédio que não serve mais, um cômodo que não tem mais função, mesmo que seja provisório, está em estado de aguardo, logo, está abandonado. Uma arquitetura que está sobrando, pode ser demolida que ninguém sentirá falta. É uma arquitetura de não-valorização, a escória da cidade, que não merece importância (ROCHA, 2010). Abandono ativo
O abandono está presente em nossas vidas, seja expressado de modo sutil, quanto de formas mais explicitadas. Sempre houve abandono, ele faz parte da história e da vida de uma sociedade, que pode contar e revelar muitas mais pistas do que simplesmente conseguimos ver como um objeto abandonado.
35 1.1.2 Prazer em desfazer-se Historicamente,
os
sistemas
naturais
pouco
estiveram
direcionados ou incluídos no planejamento urbano das cidades, pois
Deterioração de recursos
acreditava-se que a tecnologia seria capaz de suprir qualquer demanda da sociedade. Tais medidas conseguiam suprir o abastecimento de água em regiões mais áridas, como também a retirada de resíduos tóxicos que contaminam reservatórios de abastecimento de água ou, ainda, a reconstrução de cidades devastadas por catástrofes. No entanto, é imprescindível haver uma gestão apropriada que assegure os valores, promova a saúde e a segurança dos assentamentos urbanos, pois somente assim pode-se evitar que áreas urbanas e demais recursos cheguem ao estado de deterioração (LYNCH, 2005). Uma das alternativas de aproveitar da melhor forma os
Adaptabilidade
recursos pré-existentes é pensar no valor da adaptabilidade, onde a ideia esteja voltada em reciclar ao invés de descartar. A alternativa de reutilização de prédios antigos deve ser incluída no planejamento das cidades. Propostas de novos usos para antigas bases militares, centros urbanos em decadência ou zonas industrias são medidas que incentivariam a retomada de seu crescimento e desenvolvimento, impedindo que virem zonas deterioradas e esquecidas ao longo do tempo. Prédios ociosos ou que se encontram em estado de degradação, são definidos como: [...] é o que não tem valor ou não se usa para uma finalidade humana. É a diminuição do que tem resultados úteis; é sua perda e abandono, seu declínio, separação e morte (LYNCH, 2005, p.11. Tradução da autora).
Porém, nem tudo que é abandonado está fadado à morte. Deve-se entender que existe uma escala de valores que é empregada em cada objeto ou coisa abandonada. Quando peças autênticas se tornam escassas com o tempo, a tendência é que surja uma onda de entusiasmo mais acentuada pelos objetos antigos, que antes eram descartados por costume: como roupas velhas, sapatos, objetos. Essas coisas acabam se associando com um uso humano, sem ser relacionado com lixo ou sucata. São peças que apresentam um gosto seletivo e de personalidade ao serem adquiridas.
Ressignificação
36 A ponte transportada
Como pedaços santificados de figuras divinas que se preservam por representarem a glória de cidades e catedrais. Em muitos casos, essas relíquias foram motivo para gerar guerras, eram roubadas e carregadas para serem veneradas em um novo lugar, simbolizando a alteração do novo centro de poder. Outro exemplo, é o caso de uma ponte inutilizada em Londres, em 1831, que foi comprada por um promotor norte-americano para virar atração turística no lugar de uma pista de aterrisagem utilizada na 2ª Guerra Mundial. Foram transportadas 10.000 toneladas de pedras ao deserto de Lake Havasu City no Arizona, e inclusive, realizado o desvio da água do rio Colorado para que passasse por baixo da ponte. A ponte que havia sido descartada em Londres, agora tinha outro significado como atração turística.
Escala de valores
Logo, a escala de valores pode variar consideravelmente quando retratadas questões de abandono. O que para alguns não tem valor, significa muito para outros. Não há como dimensionar o que vale ou não para as pessoas, pois envolve sentimento, afetividade, emoção, sentido. O abandono na cidade também tem sua escala de valores, que podem variar em grau e intensidade para cada indivíduo. Os lugares abandonados são típicos de cenário de ficção científica vivenciados na vida real. Remetem ao lugar do terror e da deterioração, entretanto há quem discorde, reconhecendo os encantos de viver entre as ruínas. Os lugares do abandono possuem um vasto material que pode ter utilidade: muros, tetos, metais, madeira, vidro, máquinas. São espaços propícios para que os sentidos de libertação sejam aguçados, assim como uma reconstrução mental mais livre também. Isso implica em prazeres em criar uma “vida secreta” dentro de um prédio abandonado (Figura 2), longe dos olhos
Figura 2: Crianças e adolescentes se sentem atraídos por lugares isolados por estarem ocultos da visão e do controle público. Fonte: Kevin Lynch, 2005, p.37. Tradução da autora).
atentos de seu pais que certamente os proibiriam de entrar em lugares que pudessem apresentar risco. Os lugares do abandono são territórios que provocam sensações que variam de liberdade ao perigo. Porém, não é consenso esse sentimento de libertação com o abandono. Os territórios degradados que não possuem marcas ou pegadas humanas, em geral indicam serem locais perigosos ou que
37 não ofereçam atrativos que permitam a imaginação agir. Um exemplo (reconhece-se como extremo), é a paisagem do holocausto nuclear5, que configura um cenário do vazio para a vida, de paralisação e da mortalidade. Inquestionavelmente, o lugar que não sobrevive ninguém para significar algo, que não possui sentido de continuidade. Para algumas pessoas, o sentimento de libertação também pode surgir mesmo em lugares devastados. Numa perspectiva mais branda, esses lugares podem representar pontos agradáveis, de tranquilidade, que apresentam riqueza formal pelo sentido de continuidade. O consumo também é um prazer que está fortemente
Prazer
relacionado com a economia. O sistema estimula a aquisição de bens de consumo, mas que apresentam uma perda de utilidade com o tempo, o que incentiva a produção a lançar constantemente novas tendências e utilidades de objetos. O consumo também é atingido na alimentação, quando algo é ingerido, o organismo se apropria de parte e o restante é rejeitado. O prazer está presente nas principais ocasiões sociais, como no ato de beber, fumar, conversar. O prazer também pode ser encontrado em outros tipos de comportamento humano, como na alegria pela destruição. Mais do que um sinônimo de status e de dominação, destruir coisas são prazerosas, talvez por este motivo este comportamento esteve presente nos estágios iniciais da evolução. Cidades saqueadas, tesouros furtados e atrocidades com pessoas indefesas eram façanhas memoráveis na história da guerra. A destruição de coisas, como quebrar vidro ou cerâmica, são prazeres que impossibilitam uma reconstrução de seu estado original, torna-se uma destruição irreversível. O autor ainda complementa: Ver um edifício em chamas é uma emoção vergonhosa, a alegria que estimula o incendiário. Gostamos de ver os operários demolindo um edifício, principalmente quando a bola gigante derruba uma parede sólida (LYNCH, 2005, p. 44. Tradução da autora).
A violência contra as pessoas é um prazer e uma prédisposição cultural, mas que podem ser revertidas para a destruição
5
Bombardeios atômicos realizados pelos Estados Unidos, em Hiroshima e Nagasak (Japão), durante os estágios finais da Segunda Guerra Mundial, em agosto de 1945. Foi o primeiro e único momento na história em que armas nucleares foram usadas em guerra e contra alvos civis.
Irreconstituível
38 de coisas. Por exemplo, num filme em que um personagem fica tomado pelo sentimento de raiva por outra pessoa, a maneira de extravasar esse sentimento é quebrando coisas. Seja um vaso, um espelho, uma peça de vidro, é algo que dificilmente possa ser reconstituído. Há um sentimento dilacerado, que se reflete nos cacos de vidro espalhados pelo chão. Inquietação
Por um lado ou por outro, o abandono incomoda, porque ele nos afeta de diversas maneiras e traz à tona sentimentos múltiplos, que podem variar em sua escala de valores. Mas o fato é que eles existem, estão espalhados dentro de nossas casas, pelos nossos bairros, nas nossas cidades. Os abandonos comunicam algo, revelam o que repulsa ou atrai para aquele espaço, o que liberta ou atrofia. O instigante é descobrir como ele se manifesta e entender a potência desses signos. 1.1.3 Obra de arte por ela mesma
Valor próprio
Uma obra de arte ou obra arquitetônica pode promover um comportamento de comoção daquele que a observa. Isso acontece em virtude do conjunto de sentimentos e emoções que atravessam o sujeito. Ela tem um valor próprio, que a torna parte da memória de um lugar. A obra arquitetônica é inserida em um determinado local e tempo, logo faz parte de um acontecimento histórico.
Duplo abrigar
A disponibilidade de obras de arte encontradas em praças públicas, museus, galerias ou exposições podem ser usualmente acessadas. Sendo originais ou não, facilmente podem estar diante de nossos olhos, e muito disso, em virtude de sua materialidade. Ao analisar a obra de arte em seu âmbito espacial, Martin Heidegger dá como exemplo o templo grego, trazendo em “duplo abrigar da obra arquitetônica”. Primeiro, por abrigar a imagem do deus no templo e, segundo, pela própria construção do templo no entorno que a envolve. Assim, pode-se pensar na relação entre escultura, templo e entorno como um movimento recíproco e uma doação mútua de sentido. Envolve uma compreensão mais intensa da ideia do pertencimento quanto ao tema do espaço e quanto aos outros elementos relacionados (SARAMAGO, 2008).
39 Cabe salientar a importância que Heidegger apresenta da obra
Estar-em-si
enquanto obra, por estar em seu espaço essencial, ou chamado de primigênio estar-em-si. Significa que somente a obra é considerada com tal, se não for retirada do mundo em que foi instaurada. Cria-se uma unidade entre obra e seu mundo que é indissociável. Entretanto, mesmo obras arquitetônicas como templos e catedrais que permanecem em seus locais originais, “estão sujeitas à dissolução de seu mundo e de seu estar-em-si-mesmas como obras” (SARAMAGO, 2008, p. 186). Tornam-se espaços de visitação turística e de investigação, direcionadas e visando o setor comercial. Complementa ainda que: A perda do mundo de uma obra significa, precisamente, a perda de suas relações: por “suas relações” entendem-se aquelas relações estabelecidas por ela e a partir dela desde sua criação, relações que só se sustentam enquanto permanecer aberto o âmbito gerado, ou irradiado, a partir da própria obra (SARAMAGO, 2008, p. 186).
Somente a permanência em seu espaço essencial é que
Obra de arte
garantiriam seu status como obra de arte. O espaço que compreende o entorno da obra, só se torna visível e perceptível quando a obra em sua completude intervém naquela ambiência, é a própria obra que realça os encantamentos do espaço. A obra não está no espaço, mas que o próprio espaço aparece através dela. A obra arquitetônica tem o poder de transformar o modo como é visto seu entorno. Um prédio abandonado reforça ainda mais as particularidades do espaço que está envolvido, não direcionando o olhar somente para a obra em si, mas para o conjunto de elementos que
se
fazem
visíveis
diante
daquela
materialidade.
É
o
emolduramento das árvores naquela ambiência, os cheiros, o canto dos pássaros, a chuva que cai sobre as telhas quebradas, o vento que que atravessa e traz a sensação de instabilidade daquela edificação, que pode fazer ruir parte dela a qualquer momento. Saramago (2008), descreve uma passagem apontada por Martin Heidegger sobre o que nos permite ver uma obra de arte, o templo grego: Ali de pé a obra arquitetônica repousa sobre o solo rochoso. Este assentar da obra extrai da rocha a obscuridade do seu suportar rude e, no entanto, a nada impelido. Ali de pé, a obra arquitetônica
Fazer visível
40 resiste à tempestade furiosa que sobre ela se abate, e, desta forma, revela pela primeira vez a tempestade em toda sua violência. Só o brilho e o fulgor da rocha, que aparecem eles mesmos apenas graças ao Sol, fazem, no entanto, aparecer brilhando a claridade do dia, a amplitude do céu, a escuridão da noite. O erguer-se seguro torna visível o espaço invisível do ar. O caráter imperturbado da obra destaca-se ante a ondulação da maré e deixa aparecer, a partir do seu repouso, o furor dela. A árvore e a erva, a águia e o touro, a serpente e o grilo conseguem, pela primeira vez, alcançar sua figura mais nítida e, assim, vêm à luz como aquilo que são, entram primeiro na nitidez de suas formas, e assim vêm a aparecer como o que são [...]”6(SARAMAGO, 2008, p. 196)
Plenitude
Assim, toda observação à terra ou à natureza, dizem respeito à visão referente à obra arquitetônica. Os elementos que compõem este cenário não eram invisíveis ou inexistentes, mas são evidenciados em razão do que a obra templo opera. Logo, a natureza não se restringe mais como matéria à disposição, porém em sua completude em si própria. Há uma inesgotabilidade com relação à terra, sem restrição em sua própria matéria em si. Não se limita a um simples pertencer ao mundo, mas pelo contrário, é a partir da terra que a materialidade apresenta seu brilho, seu esplendor, o espaço invisível do ar ganha notoriedade ao contornar a obra-templo (SARAMAGO, 2008).
Estações férreas na cidade
Assim, as estações férreas, sendo elas obras arquitetônicas, também apresentam suas particularidades no contexto que estão inseridas. Elas fazem parte de um determinado local da cidade, são elementos imponentes na malha urbana que por vezes contorna, desvia ou rompe seu sistema regular de organização morfológica. O olhar não direciona apenas para o objeto isolado no espaço, mas faz ver um conjunto de miudezas e riquezas que ganham visibilidade por existir nos territórios do abandono das estações férreas.
Conjuntos de sensações
Os diferentes tipos de manifestações - ou sutilezas - que tangem o abandono, já relevam a complexidade que é abordar o tema. São elementos que mexem com nossos sentidos, somos acometidos “UK, p.38 / AO, p.33. Na transcrição dessa passagem foi também utilizada a tradução de Irene Borges-Duarte e Filipa Pedroso, que se encontra na edição portuguesa Caminhos da floresta. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1998, doravante referida como CF, p.39” (SARAMAGO, 2008, p. 196). 6
41 por um conjunto de sensações que nos faz reagir, perceber e sentir o abandono de uma maneira diferente. A experiência de cada indivíduo é singular, e é esse o sentimento que faz com que aquele abandono mostre as potencialidades desses espaços na cidade. Quando Gilles Deleuze escreve o livro: “Francis Bacon: a lógica da sensação” em 1981, ele analisa as obras do artista plástico que
A lógica da sensação
consegue manifestar brilhantemente múltiplas sensações. A sensação não tem a ver com o que é fácil ou com aquilo já realizado, muito menos tem relação com o “espetacular”. A sensação está voltada para duas direções, uma para o sujeito – que integra o sistema nervoso, a mobilidade essencial, a intuição – e a outra para o objeto – que envolve o lugar, o ato, o acontecimento (DELEUZE, 1981). Existem níveis de sensações que se remetem às diferentes captações sensíveis dos nossos sentidos. E cada nível, teria uma forma de se remeter aos outros níveis, mesmo que se dê pelo mesmo objeto representado. Desta maneira, Deleuze (1981, p.22) coloca: Entre uma cor, um gosto, um toque, um odor, um ruído, um peso, existiria uma comunicação existencial que construiria o momento “pathico” (não representativo) da sensação.
Para que o artista “faça ver” o sentido original da sensação, seria necessária uma Figura multissensorial. Isso somente ocorreria
Figura multissensorial
se a sensação visual estivesse direcionada em uma “potência vital que transborde todos os domínios e os atravesse” (DELEUZE, 1981, p.23). O que implica em estados muitos mais profundos e complexos do que a visão, audição ou qualquer outro sentido. A grandiosidade das obras de Bacon transita pelos afetos. São manifestos que permeiam sensações ou instintos que seguem o caminho do Naturalismo. Assim como a sensação é determinada por um
instinto
momentâneo,
o
instinto
ocorre
em
função
do
atravessamento de sensações múltiplas. Procura-se a melhor sensação, que não é necessariamente a mais agradável, mas aquela que faz transbordar diante do acontecimento. Nesse caminho, propõe-se discutir com maior aprofundamento as relações do sentido, entender como a arquitetura nos toca e influencia no nosso modo de ser e agir no mundo. As estações férreas,
Transitar pelos afectos
42 como obra arquitetônica, já geram afectos, mas o abandono delas pode ocasionar outras sensações, que são mais complexas e profundas no entendimento desses espaços provocados pelo abandono. 1.2 Sentido. Em que sentido? 1.2.1 Os sentidos e a arquitetura Tatilidade
Os sentidos se originaram a partir de “especializações do tecido cutâneo, e todas as experiências sensoriais são variantes do tato e, portanto, relacionadas à tatilidade” (PALLASMAA, 2011, p.10). A pele é o que intermedia a nossa interioridade com o contato da vivência no mundo, o ponto de referência, lembrança, criação e agregação. E assim, o corpo humano tem a função de percepção, sentimento e pensamento sobre os lugares.
Arquitetura significativa
Entende-se que o papel da arquitetura é criar significados e conexões que interajam com o indivíduo. A visão é um dos elementos, mas não o único que é criado como objeto de encantamento visual. A arquitetura retoma nossa consciência com o mundo, assim como nossa condição de existência e identidade. Cria-se a arquitetura significativa, aquela que atua nas pessoas de maneira mútua como corpo e espírito. A arte também tem o poder de nos afetar, através do intercâmbio de sensações de si com o espaço e do espaço consigo (PALLASMAA, 2011).
Visão como privilégio
Desde a Grécia antiga os filósofos relatavam sobre a relevância da visão em relação aos outros sentidos, “a tal ponto que o conhecimento se tornou análogo à visão clara e a luz é considerada uma metáfora da verdade” (PALLASMAA, 2011, p.15). No período da Renascença a visão possuía uma hierarquia na escala dos sentidos, sendo a visão a mais importante e o tato o menos importante. Os sentidos apresentavam uma relação direta com a imagem do corpo cósmico, sendo a visão considerada o ponto central do mundo da percepção e sinônimo de identidade pessoal. Com o avanço da cultura tecnológica em nossas vidas, cada vez mais tem se tornado uma separação e ordenações dos sentidos. A visão e audição são consideradas privilégios na sociedade, enquanto que o olfato, o
43 paladar e o tato tratados como resquícios sensoriais do passado ou reprimidos nos tempos atuais. Atualmente, as cidades e as arquiteturas têm se aproximado mais
com
ambientes
projetados
com
ênfase
Ênfase técnica
tecnológica,
negligenciando o corpo e os sentidos como integrantes desse processo. A falta de humanismo da arquitetura, resulta em abundância de espaços de alienação, isolamento e solidão. O predomínio da visão faz com que se tenha prédios exorbitantes em diversas regiões, mas esquece-se da importância de promovê-los em conexão com a humanidade. Prioriza-se o intelecto e a visão, mas abandona a relação do corpo e dos demais sentidos com o mundo. No entanto, a visão nem sempre teve a predominância dos
Audição
sentidos, a audição foi de fato substituída gradativamente pela visão. Walter J. Ong avalia em seu livro Orality & Literacy7 a transição do discurso oral para o escrito, observando os efeitos na consciência humana e no sentido do coletivo na sociedade. Afirma que a priorização
da
visão,
em
detrimento
da
oralidade,
é
um
comportamento de frieza e de falta de humanidade. Pois impacta na percepção e compreensão do espaço no mundo, uma vez que altera do
pensamento
situacional
para
o
pensamento
abstrato
(PALLASMAA, 2011). No século XVI, era muito mais recorrente o uso do olfato para farejar algo e da audição para capturar sons. Pouco era desenvolvida a visão, posteriormente que a visão foi envolvida com a geometrização das formas, conforme apontamentos de Lucien Febvre. Já Robert Mandrou argumenta que a visão estava atrás da audição e do tato, sendo estes os sentidos essenciais de preferência. A visão é trazida como algo mais atual, e aumenta à medida do crescimento da consciência do ego e do distanciamento humano do mundo. Progressivamente, enquanto que a visão nos aparta do mundo, os outros sentidos nos conectam. Por exemplo, a declamação de uma poesia resgata os sentidos da oralidade, o que envolve no indivíduo sua interiorização de mundo, mesmo que momentânea. A experiência
Walter L Ong, Orality & Literacy – The Technologizing of the World, Routledge (London and New York), 1991. Apud Pallasmaa, 2011. 7
Sentidos essenciais
44 propicia deixar o papel de espectador, para atuar em seu próprio encontro – e estar - no mundo, trata-se de uma compreensão existencial
que
não
é
conceitualizada
ou
intelectualizada
(PALLASMAA, 2011). O favoritismo pela visão não manifesta a negação aos outros sentidos. Na arquitetura grega clássica, por exemplo, a visão estimula as sensibilidades táteis e musculares. O ímpeto tátil que existe no inconsciente da visão, é um dispositivo comum na arquitetura histórica, mas pouco usual na contemporânea (Figura 3). No modernismo, muitas frases corroboraram a ascensão deste fator: “Eu existo na vida apenas se posso ver”8 – Le Corbusier; Figura 3: A Incredulidade de São Tomás. Fonte: Caravaggio, 1601-2. Pormenor, Neues Palais, Potsdam. “Apesar de nossa preferência pelos olhos, a observação visual muitas vezes precisa ser confirmada pelo tato” (PALLASMAA, 2011, p.23)
“Ele [o projetista] tem de adaptar o conhecimento dos fatos científicos da ótica e assim obter uma base teórica que guiará a mão que dá forma e criará uma base objetiva”9 – Walter Gropius; “A higiene do ótico, a saúde do visível se infiltra aos poucos”10 – Laszlo Moholy-Nagy. Alerta-se que as frases mencionadas acima não devem ser levadas ao pé da letra, pois muitas vezes são explicitadas de modo a racionalizar superficialmente questões muito mais profundas e inconscientes que confirmam a potencialidade de suas obras. A arquitetura nunca foi tão valorizada através de imagens visuais como ocorreu nos últimos trinta anos, seja pela exuberância ou para deixar uma marca na memória dos usuários. O que torna as obras arquitetônicas focadas no apelo pelo visual e não pelas relações existenciais.
Arquitetura fictícia
A perda da tatilidade e o distanciamento com os demais sentidos, reforça o constante surgimento de arquiteturas mais planas, brutais e fictícias. A arquitetura se torna contexto de palco, figurada para cenários visuais, desprovido da veracidade material e construtiva. A pátina do tempo exibe a atuação temporal aos materiais de 8
Le Corbusier, Precisions, MIT Press (Cambridge, MA), 1991, p.7 apud PALLASMAA 2011 p. 26. 9 Walter Gropius, Architektur, Fischer (Frankfurt and Hamburg), 1956, pp. 1525 apud PALLASMAA 2011 p. 26. 10 Citado em Susan Sontag, On Photography, Penguin Books (New York), 1986, p.96 apud PALLASMAA 2011 p. 26.
45 construção, fato que não ocorre quando são instalados materiais industrializados. Os materiais sintéticos não transmitem a essência ou idade do material, muito menos agregam importância temporal e de envelhecimento. O uso da tecnologia no setor construtivo tem trazido novas
Novas formas
formas de ocupar o espaço, através de uma arquitetura “que emprega reflexos,
graduações
de
transparência,
sobreposições
e
justaposições” (PALLASMAA, 2011, p.32). Os elementos trazem a ideia de sutileza, sensação de movimento e iluminação para a arte e arquitetura. Uma perspectiva diferente de sentir o espaço, através de novas formas sensoriais e perceptuais de mundo. Pensar os cinco sentidos com a arquitetura, não requer apenas
Cinco sentidos
uma definição, mas de que forma são manifestados pelas pessoas que se deparam com prédios abandonados. Os sentidos trazem uma condição de pertencimento ao mundo, é uma relação do indivíduo que experimenta a cidade de maneira mais próxima do real. Envolve o corpo do indivíduo, os seus sentidos e estímulos que interagem com o que está no mundo. Pallasmaa (2011) comenta que qualquer experiência tocante com a arquitetura é multissensorial. A dimensão do espaço, escala e matéria são acessadas por todos os sentidos humanos, e ainda envolve outras dimensões sensitivas que interagem entre si. A filosofia de Merleau-Ponty descreve o alcance que a visão apresenta diante das coisas, revelando o que o tato já entende. Através da visão, podese perceber profundidades, a delicadeza ou robustez das coisas. As obras de artes podem expressar sensações diversas através das cores, sem precisar dizer uma palavra. É o alcance da visão diante daquilo que é real.11 Para aproximar um pouco mais os nossos sentidos com nossa experiência no mundo, são definidos os cinco principais sentidos do corpo humano, compilados da seguinte maneira:
11
Merleau-Ponty (1964), p.15 apud Pallasmaa (2011, p.40).
Dimensões
46
A VISÃO = é o órgão da separação e do distanciamento; ele analisa; controla; investiga; isola; direciona; aquele que implica exterioridade; é observador solitário. O TATO = é o sentido da proximidade, intimidade e afeição; aproxima; acaricia; identifica a matéria, textura, densidade, temperatura; traz uma conexão com o tempo. A AUDIÇÃO = o som incorpora; é onidirecional; experiência de interioridade; aborda; recebe; estrutura e articula o entendimento do espaço; conexão e solidariedade. O OLFATO = o cheiro é ligado à memória, sentir cheiros específicos relembram o passado; requer imaginação; aromas; odores; fragrâncias. Quadro 1: Definições dos cinco principais sentidos do corpo humano. Fonte: Juhani Pallasmaa, 2011. Editado pela autora.
Dimensão humana
PALADAR = "a fome dos olhos"; evocam sensações orais; o toque com a língua; é o contato extremamente íntimo com o corpo.
Antigamente as construções baseavam-se nas dimensões do próprio corpo. A pura habilidade consistia em dominar a memória tátil armazenadas como tradições corpóreas dos ofícios. O aprendizado fundamenta-se na sequência de movimentos refinados para determinada atividade, e não pelo conhecimento em palavras ou teorias. “O corpo sabe e lembra. O significado da arquitetura deriva das respostas arcaicas e reações lembradas pelo corpo e pelos sentidos” (PALLASMAA, 2011, p.57).
Conhecimento
O papel do arquiteto é criar, a partir de múltiplas dimensões, projetos que traduzem e instiguem sensações. Está implícito no projeto a personalidade do próprio arquiteto, em consequência de toda sua bagagem existencial. Requer uma entrega de corpo e alma sobre aquela experiência, que é vivida ao invés de simplesmente entendida e resolvida, pois vai além de análises e operações intelectuais. Na arquitetura nada é inventado, o que ocorre são revelações de uma determinada realidade já existente, que potencializadas servem para transformar naquilo que a situação almeja. Os nossos sentidos afloram ou “pensam” diante de uma situação, e isto é reflexo de nossa relação com o mundo. Mesmo que não haja plena consciência desses atos, é uma reação entendida, ou que deveria ser, como puro conhecimento. São motores essenciais para o processo de criação em qualquer área, especialmente a artística (PALLASMAA, 2013).
47 As diversas formas de artes, como pintura, escultura, poesia, dança, arquitetura, são maneiras peculiares de pensar. Por elas, compreendemos que: Estes modos de pensar são imagens das mãos e do corpo e exemplificam conhecimentos existenciais essenciais. Em vez de ser uma mera estetização visual, a arquitetura, por exemplo, é um modo de fazer filosofia existencial e metafísica por meio do espaço, da estrutura, da matéria, da gravidade e da luz (PALLASMAA, 2013, p.20).
A arquitetura oferece abrigo para o usuário, mas além disso
Paisagem partida
expõe o delineamento da nossa consciência e de nossa mente. Cada processo construído pelo indivíduo, reflete sua capacidade de ver a vida de um modo só seu. Criam-se paisagens mentais, as quais habitamos e que habitam em nós. A paisagem urbana “mutilada” pela ação do homem, torna-se uma paisagem fragmentada, rompida e insensibilizada. Que reflete de modo materializado e externalizado a alienação e dilaceração do espaço interno humano (PALLASMAA, 2013). Tanto na arquitetura quanto nas artes, utilizamos as mãos para agir no espaço e no tempo. Pallasmaa (2013) cita o exemplo da escultura Peità de Rondanini (1555-64) de Michelangelo (Figura 4). O autor afirma que através da escultura, pode-se perceber a ação de suas mãos de paixão e uma porção de debilidade, impressas pelo avançar de sua idade. Assim também acontece com as obras de um grande arquiteto, imageticamente consegue-se perceber a entrega e a operação de suas mãos no produto. As mãos gesticulam, se movimentam e expressam tão bem o caráter de alguém, quanto as expressões faciais e corporais. As mãos assumem condutas que variam de ações amorosas até comportamentos hostis e violentos, podem ser sinal de boas-vindas ou de rejeição. Para Pallasmaa (2013) as mãos são extensões do nosso corpo, mente, ações e pensamentos, não há como defini-las como algo simplório. As mãos nos aproximam com o outro, podemos sentir texturas, temperaturas sutilezas e desafetos. Os sentidos são aperfeiçoamentos da pele, incluso os estímulos sensoriais que também estão relacionados ao tato. É o contato que temos com o
Figura 4: Escultura inacabada Peità de Rondanini (1555-64) de Michelângelo. Fonte da imagem: https://historia-arte.com/obras/piedad-rondanini.
48 mundo e em relação ao nosso próprio corpo, quem somos, nossas percepções e como estamos inseridos no mundo. 1.2.2 Percepção e estímulos externos Estímulo
A percepção tem um caráter especulativo. Toda discussão tem como premissa a relevância deste conhecimento em relação ao conhecimento científico. Mas o que não se pode esquecer, é que a percepção é conhecimento puro. O avanço da percepção externa pode ser observado desde a monera até os vertebrados superiores. Percebe-se que estímulos exteriores já afetam e provocam movimentos contráteis em simples massas protoplasmáticas, estas reagem através de reações mecânicas, físicas e químicas. Em organismos mais avançados acontecem as atividades de divisões fisiológicas, células se modificam, agrupam-se. Os animais recebem estímulos externos de diferentes formas, muitos podem reagir no ímpeto de movimento imediato ou, em outros casos, servir de estado de alerta ou aguardo para uma possível reação. O estímulo recebido pode desencadear movimento, ou ainda, espiritualizar-se e ser transformado em conhecimento (BERGSON, 2010).
Lembranças
Segundo Bergson (2010), de modo simplificado, pode-se dizer que a percepção está atrelada as questões relacionadas às lembranças. A constante emissão de dados e informações recebidas diariamente, misturam-se aos nossos sentidos e as particularidade de nossas experiências anteriores. A partir disso, são retidas apenas algumas indicações, ou “signos” que retomam antigas imagens. Diante deste impulso rápido da percepção surgem inúmeros devaneios. Entretanto, o autor reforça que: Nada impede que se substitua essa percepção, inteiramente penetrada de nosso passado, pela percepção que teria uma consciência adulta e formada, mas encerrada no presente, e absorvida, à exclusão de qualquer outra atividade, na tarefa de se amoldar ao objeto exterior (BERGON, 2010, p. 30).
Visão interior e subjetiva
Há quem afirme que as percepções obtidas são hipóteses arbitrárias e que não correspondem à realidade. Porém, deve-se considerar que os acontecimentos individuais estão inseridos nessa percepção impessoal - aquela que estrutura nosso conhecimento das
49 coisas - e por não ocorrer uma distinção de soma ou subtração da memória, é “que se fez da percepção inteira uma espécie de visão interior e subjetiva, que só se diferenciaria da lembrança por sua maior intensidade” (BERGSON, 2010, p. 31). A partir dessa primeira hipótese é que surge outro modo de
Memória
análise. Por mais passageira que a percepção seja, ela tem uma determinada duração e exige, com esforço, um resgate da memória para que se prolongue a pluralidade dos acontecimentos. De fato, tanto o episódio de encurtamento dos fatos reais exercido pela nossa memória, quanto o conjunto de lembranças ocasionadas pelas percepções imediatas, reforçam a contribuição da consciência particular na percepção, trazida com a subjetividade do nosso conhecimento de mundo. Bergson (2010) afirma que podem ser considerados dois casos relativos à memória. A memória resgata imagens ocorridas no passado e traz essas imagens como lembrança das experiências vividas. Carregam consigo detalhes importantes de acontecimentos, como datas, lugares, pessoas. É fidedigno, pois é uma armazenagem de informações que surge da necessidade espontânea de reviver o passado. No entanto, cada vez que acessamos essas lembranças, naturalmente há um reconhecimento intelectual de uma percepção já experimentada. À medida que essas imagens já reconhecidas anteriormente,
(Re)memória
são rememoradas, toda essa consciência transforma-a em uma memória diferente da primeira, voltada para a ação, no presente e direcionada para o futuro. Há um reencontro com o passado, mas não como imagens-lembranças, mas como de modo rigoroso e sistemático com que os movimentos no presente se executam. Não representa o passado de maneira efetiva, mas ocorre uma encenação, mas que é considerada como memória da mesma maneira, porque prolonga o efeito útil de imagens antigas até o presente momento. As imagens apresentam uma diferença de grau que podem ser reconhecidas por “ser e ser conscientemente percebidas” (BERGSON, 2010, p. 35, grifo do próprio autor). Diante da representação da matéria, estamos envolvidos em ações de corpos externos, e como
Seleção
50 resultado, anulamos aquilo que não é essencial ou funcional para nós, fato que chamamos de seleção. A percepção de um ponto material inconsciente qualquer, que age instantaneamente, é muito mais vasto e completo do que aquele que é percebido conscientemente por nós, uma vez que este atinge apenas fragmentos por alguns lados. Discernimento
Mesmo que escassa a seleção consciente da percepção exterior das coisas, tem-se o lado positivo: a anunciação do discernimento. Não há necessidade de explicar como a percepção nasce, mas como ela se define, já que se teria a imagem do todo, e ela se delimita àquilo que nos interessa. Há uma delimitação de indeterminação dada pelo corpo, que resulta das massas cinzentas do nosso cérebro e dá a medida exata de percepção que é dada por nós (BERGSON, 2010).
Percepção pura
Trata-se aqui da percepção pura, e não da complexidade da percepção da memória. Logo, considera-se que não há imagem sem objeto. O objeto externo, assim que associado aos processos intracerebrais, cria uma imagem de como é dado com ele e nele. O sistema nervoso envia estímulos ao cérebro e aos nervos motores, que converte esses estímulos em procedimentos, sejam eles reais ou virtuais. Se o nervo óptico fosse rompido ou ocorresse uma lesão, não haveria mais a condução do estímulo inicial gerada pelo objeto externo, logo, a percepção estaria comprometida da mesma maneira, o que impossibilitaria que a percepção servisse para alguma coisa (BERGSON, 2010).
Percepção e afecção Afecção e percepção
Um objeto diante de nós, apresenta dois elementos que podem ser associados, porém diferenciados: são as afecções e as percepções. A afecção está inteiramente associada à minha existência pessoal, como diria Bergson (2010, p.54) “o que seria, com efeito, uma dor separada do sujeito que a sente? ”, enquanto que a percepção já é constituída “pela projeção, no espaço, da afecção tornada inofensiva” (BERGSON, 2010, p. 54).
Externo e interno
A percepção está fora de nosso corpo, percebemos os objetos exteriores no ponto onde se encontram, é algo externo, fora de meu corpo. E a afecção está em meu corpo, os estados afetivos são
51 produzidos nesses mesmo lugares, mas num ponto determinado em mim. O autor ainda afirma: Considere-se o sistema de imagens que chamamos mundo material. Meu corpo é uma delas. Em torno dessa imagem dispõe-se a representação, ou seja, sua influência eventual sobre as outras. Nela se produz a afecção, ou seja, seu esforço atual sobre si mesma. Tal é, no fundo, a diferença que cada um de nós estabelece naturalmente, espontaneamente, entre uma imagem e uma sensação. Quando dizemos que uma imagem existe fora de nós, entendemos por isso que ela é exterior a nosso corpo. Quando falamos da sensação como de um estado interior, queremos dizer que ela surge em nosso corpo. É por isso que afirmamos que a totalidade das imagens percebidas subsiste, mesmo se nosso corpo desaparece, ao passo que não podemos suprimir nosso corpo sem fazer desaparecer nossas sensações (BERGSON, 2010, p. 59).
A arquitetura sempre se fez presente como mediadora entre “o
Intermédio
cosmos imensuráveis e a escala do homem, entre divindades e mortais” (PALLASMAA, 2013, p. 43). Os edifícios interagem com o corpo humano, pois são criados espaços de abrigo, que são funcionais e ergonômicos. Os edifícios são significativos no campo mental, proporcionam memórias e criam um convite à ação (movimentar-se pelo piso, entrar ou sair pela porta, contemplar a paisagem através da janela). A arquitetura, sobretudo, é um modo artístico relacional e dialético, que se manifesta de acordo com sua própria essência. Desta mesma forma, ocorrem as interações do indivíduo com
Aproximação
aquilo que o cerca. Uma edificação aproxima o usuário ao toque com a obra que foi projetada. A maçaneta da porta, por exemplo, é um convite ao contato mais direto e físico do usuário com o arquiteto. A autêntica obra de arquitetura é a que atinge e proporciona a experiência mútua de sentir-se imerso no espaço e ao mesmo tempo, o espaço imerso nele. Antes
mesmo
de
percebermos
algo
visualmente,
inconscientemente já a tocamos. Sem ver uma superfície, já identificamos sua textura, peso, temperatura, rigidez. A arquitetura apresenta propriedades múltiplas e que são percebidas integralmente. A audição, o tato, o olfato e inclusive a gustação oculta são características que “dão ao objeto de percepção seu senso de totalidade e vida” (PALLASMAA, 2013, p. 52).
Inconsciente
52 Poder imaginativo
A constante imersão imagética cria uma experiência de mundo fragmentada e deslocada. Richard Kearney12 aponta que informações descontínuas e rápidas, somadas a limitada capacidade de atenção das pessoas, provoca a diminuição do poder imaginativo individual. O declínio ou enfraquecimento da capacidade de imaginação e do poder crítico, faz com que estejamos sujeitos a aceitar com maior facilidade o que é apresentado em imagens, sem discernir a confiabilidade e intenções da informação. O enfraquecimento da imaginação também contribui para a redução nas questões relacionadas aos sentimentos de empatia e ética (PALLASMAA, 2013).
Recursos técnicos
Hoje em dia, todos os nossos sentidos podem ser controlados e manipulados por meio de recursos técnicos. São usadas estratégias para simular os sentimentos em nossos corpos e mentes, tais como: “marketing multissensorial”, “branding13 dos sentidos”, “persuasão sensorial”, “aproveitamento do subconsciente sensorial”, “canalização do espaço da mente”, “hipersensualidade do mercado contemporâneo” (PALLASMAA, 2013, p. 19).
Um exemplo citado por David Howes14 é a empresa que fabrica
Reprodução
as motocicletas Harley-Davidson, na investida de patentear o som dos motores de suas motocicletas. Cria-se uma ideia de expansão sensorial através do som rouco e masculino característico de seus motores. Na arquitetura também são utilizadas estratégias artificiais para suprir certas necessidades. Quando adotadas tipologias construtivas padrão, sem considerar a região, opta-se pela utilização de sistemas de ares condicionados para solucionar os problemas de diferença climática local (PALLASMAA, 2013). O autor do livro Art as Experience15, John Dewey, escreveu
Experiências sensoriais
sobre a importância e correlação dos sentidos. Não é algo estático e não se separa e isola os sentidos, mas sim eles se conectam como um emaranhado de experiência sensoriais. Não sentimos e 12
Richard Kearney, The Wake of Imagination, Routledge (London), 1994 apud Pallasmaa, 2013. 13 Do verbo brand = marca, em português O branding sensorial surgiu da necessidade da marca ampliar seu vínculo emocional com o consumidor, através de cheiros, sons, figuras e texturas para acentuar a atração pelo produto. 14 David Howes, Empire of the Senses, 2005, p. 288 apud Pallasmaa, 2013, p. 20. 15 John Dewey, publicação original em 1934 apud Pallasmaa, 2013, p. 52.
53 observamos o mundo de maneira externa, mas atuantes intrínsecos em sua completa existência. A arquitetura não se limita em sua estrutura física, mas compreende um ambiente que funciona como extensão de nosso corpo, sentidos, memória. Compreende nossa maneira de pensar, viver e sentir o mundo e não como meros espectadores visuais (DEWEY, 1934 apud PALLASMAA, 2013). 1.2.3 Um devir Alice A obra de Lewis Carroll reconhecida mundialmente, Alice no
Mundo de Alice
País das Maravilhas16, foi publicada pela primeira vez em 1865. Em seguida, foi retirada de circulação por problemas na qualidade da impressão. Depois em 1886 foi lançada uma nova edição que fez sucesso no mundo inteiro e até hoje possui grande circulação. Na obra em que a personagem Alice se encontra perdida num outro mundo, ela é movida pela sua curiosidade que constantemente a fazia se questionar das consequências de suas atitudes. Estar sozinha em um lugar desconhecido, se descobrir, se
Crise de identidade
questionar e se aventurar por lugares com figuras antropomórficas. A menina se sente confusa diante de tantos acontecimentos, questionando-se: Eu sabia muito bem quem eu era, mas agora, depois de ter mudado de tamanho tantas vezes, não sei direito quem sou (...) é que muitas coisas estranhas estão acontecendo (CARROLL, 2010, p.11)
A desorientação de Alice tem a ver com a própria experiência diante do acontecimento. Não se refere a uma dúvida externa, mas uma estrutura objetiva da experiência em si, uma vez que ocorre nos dois sentidos e ao mesmo tempo, retaliando o sujeito diante dessa dupla direção (DELEUZE, 1974).
16
A obra conta a história de uma menina que movida por sua curiosidade, acaba caindo em uma toca de coelho que a leva para um outro mundo. Lá ela se depara com plantas, animais e objetos antropomórficos, e se depara com cenas absurdas, irreais e que questionam os costumes da época. Enquanto procura a saída dali se depara com a Rainha de Copas, que exerce seu poder e autoritarismo ao ordenar a decapitação de quem a incomodasse. Alice à confronta e é indiciada à morte. Enquanto foge da cena, ela desperta e percebe que tudo isso não passava de um sonho.
Experiência em si
54 Abismo de sentidos
A confusão mental se constitui de uma consciência existencial, que nos faz questionar sobre o que está diante de nós. Desta forma, “a desorientação devolve o indivíduo ao espaço existencial, bruto, indiferenciado. É o estado no ser que desconjuga a relação espaçotempo, jogando-o no abismo dos sentidos” (FUÃO, 2004).
Noção de tempo
Perde-se a noção do presente, há uma confusão mental sobre tudo que a rodeia. “Na medida em que se furta ao presente, o devir não suporta a separação nem a distinção do antes e do depois, do passado e do futuro” (DELEUZE, 1974, p.1). Platão comenta sobre duas dimensões: a das coisas limitadas e medida (onde existem delimitações fixas, tal sujeito tem tal grandeza, é estático, predefinido) e a do devir puro, um verdadeiro devir-louco (não tem medidas, furtase o presente, coincide o passado e o futuro, o maior e o menor, o muito e o pouco).
Dualidade platônica
Há uma dualidade platônica que não é absoluta entre matéria e ideia ou do inteligível e sensível. Ela é muito mais profunda, oculta e complexa, que permeia entre os corpos sensível e materiais. Implica no que se recebe a ação da ideia e o que resulta desta ação: O puro devir, o ilimitado, é a matéria do simulacro, na medida em que se furta à ação da Ideia, na medida em que contesta ao mesmo tempo tanto o modelo como a cópia (DELEUZE, 1974 p. 2. Grifo do próprio autor).
Devir ilimitado
O paradoxo do puro devir é a identidade infinita. Aquela que se apresenta nos dois sentidos concomitantemente. Deste modo, através da linguagem é que pode se determinar os limites, mas também de ultrapassá-los e retornar à um devir ilimitado. Retornemos às contradições nas aventuras de Alice para exemplificar: Inversão do crescer e do diminuir: “em que sentido, em que sentido?” pergunta Alice, pressentindo que é sempre nos dois sentidos ao mesmo tempo, de tal forma que desta vez ela permanece igual, graças a um efeito de óptica. Inversão da véspera e do amanhã, o presente sendo sempre esquivado: “geléia na véspera e no dia seguinte, nunca hoje”. Inversão do mais e do menos: cinco noites são cinco vezes mais quentes do que uma só, “mas deveriam ser também cinco vezes mais frias pela mesma razão”. Do ativo e do passivo: “será que os gatos comem os morcegos?” é o mesmo que “será que os morcegos comem os gatos?”. Da causa e do efeito: ser punido antes de ter cometido a falta,
55 gritar antes de se machucar, servir antes de repartir (DELEUZE, 1974 p. 3).
As anunciações descritas acima apresentam em si uma única
Referência
consequência: que é a hesitação da identidade da Alice, de seu nome próprio. Não há resposta ou sentido algum quando Alice pergunta: “Em que sentido, em que sentido? ”, visto que é inerente ao sentido não ter referência, rumo, direção. Quando os acontecimentos de um puro devir se atravessam, desestabilizam e provocam um confronto diante de si e do mundo, é que Alice perde sua referência de identidade. “Como se os acontecimentos desfrutassem de uma irrealidade que se comunica ao saber e às pessoas através da linguagem” (DELEUZE, 1974 p. 3). Segundo Deleuze (1988, p.150) “o sentido é o exprimido da preposição [...] Ele não se reduz ao objeto designado nem ao estado
Sentido e Significação
vivido daquele que se exprime”. Há de se diferenciar sentido e significação: a significação baseia-se apenas no conceito e o modo de se referir ao objeto em questão. Já o conceito consiste na ideia que se aperfeiçoa nas designações subrepresentativas. Logo, é muito mais fácil dizer o que o sentido não é, do que tentar defini-lo. De fato: “[...] nunca podemos dizer o sentido daquilo que dizemos” (DELEUZE, 1988, p. 150). A função do sentido é a manifestação de um “eu” na
Desejos
proposição, esse “eu” que vem primeiro e introduz o diálogo. Como Alice mesmo cita: “se falássemos somente quando alguém nos fala, nunca ninguém diria nada” (DELEUZE, 1974 p.18). Desta forma, podese concluir que o sentido habita nas crenças ou desejos daquele que se manifesta. Trata-se de uma proposição entre o sujeito que se expressa diante de algo. Através das manifestações é que revelamos nossos desejos e crenças que são emitidas diante à proposição. Assim, afirmar-se que: O desejo é a causalidade interna de uma imagem no que se refere à existência do objeto ou do estado de coisas correspondente; correlativamente, a crença é a espera deste objeto ou estado de coisas, enquanto sua existência deve ser produzida por uma causalidade externa” (DELEUZE, 1974 p.14).
Os surrealistas partem da ideia do encontro como impulsor do sentido da imagem e das coisas. Este fato ocorre a partir do conjunto
Sentido
56 de algumas ou múltiplas partes. Quanto mais apartadas estiverem uma da outra, mais sentido e potência de criação fará surgir na nova imagem. Para os existencialistas a existência humana não apresenta nenhum sentido. Crentes de que é possível gerar, criar, inventar ou ainda reinventar o próprio sentido. Logo, o espaço arquitetônico talvez não passasse de um espaço suscetível às constantes modificações no espaço. Assim, as construções partem de um nada, passa a ser tornar um projeto (material), desta forma passa a ser uma mensagem (FUÃO, 2004). Sujeito e espaço
Deve-se considerar que o sentido do espaço só se faz presente a partir da experiência do sujeito. Não há relação com a materialidade da arquitetura em si, mas com a interioridade de quem vivencia, percorre, explora por aquela ambiência, isto é o que dá sentido ao espaço. Desta maneira, o sentido do espaço pode ser transportado para onde quisermos, ele é plástico e imaterial assim como o tempo (FUÃO, 2004).
Sentidos múltiplos
A direção para compreender o sentido do abandono das estações férreas para as pessoas, parte do entendimento que não existe um sentido único ou excepcional. O sentido só existe quando o sujeito está imerso na própria experiência, e esta ocorre de maneiras e intensidades distintas para cada um. Logo não existe uma definição ímpar que corrobore o sentido do abandono das estações férreas.
Potência subjetiva
O abandono pode afetar cada pessoa de uma maneira e não existe uma experiência melhor ou pior. As subjetividades se tornam potência e fazem com que nossa percepção diante de um acontecimento apure nossos sentidos e nossa sensibilidade com as questões da vida e do mundo. Essas especificidades engrandecem as heterogeneidades e identidades de cada indivíduo, cada cultura, cada sociedade. A riqueza não está naquilo que é igual, uma cópia do outro, mas no que é diferente, múltiplo e complexo. Assim, como são as fronteiras, o lugar do encontro das heterogeneidade e multiplicidades, que requerem um aprofundamento nesse território tão exclusivo.
57 1.3 Fronteira 1.3.1 Fronteiras da natureza e dos homens Em um primeiro instante, pensar sobre fronteiras carrega um
Disputa territorial
sinônimo negativo, um lugar de conflito, disputa e até mesmo de guerra. A disputa territorial sempre se fez presente na história, seja entre os homens, animais ou na natureza. Trata-se de uma constante busca em delimitar uma porção de terra que traga segurança e conforto para se estar. O pensador alemão Fredrich Rantzel (1844-1904) relaciona a
Movimento
origem da palavra “fronteira” com o movimento. A movimentação de cada ser era feita de acordo com as necessidades de sobrevivência naquele momento. A fronteira não estabelece uma função estagnada, mas sim, uma paragem momentânea que é impedida devido à falta de condições necessárias para continuar, ou diante de um movimento contrário que a faz parar. Nesse sentido, a fronteira poderá avançar se as condições forem favoráveis ou se a força oposta enfraquecer. Assim como, pode ocorrer o inverso, pode recuar havendo falta de vitalidade ou se o movimento oposto se fortalecer (MARTIN, 1998). Nesse sentido, fronteira pode ser pensada como uma zona de
Difusão
difusão, que permeia e se entrelaça. Tanto em espécies vegetais, animais, quanto em termos sociais de grupos étnicos, linguísticos, políticos. Logo, afirma-se que: Essas áreas se originam de tudo que possui movimento, o qual em certas circunstâncias se vê obrigado a parar. É o que acontece, por exemplo, com as árvores numa montanha, as quais a certa altitude desaparecem. Até o próprio homem, com toda sua enorme capacidade de adaptação se vê obrigado a deter-se diante de condições adversas, ainda que seja momentaneamente (Martin, 1998, p.16).
A determinação de fronteira acontece em um intervalo definido de tempo ou quando não tomamos conhecimento do movimento. O que parece como o mais natural, é que o componente móvel tenta se fixar ao que é menos móvel (MARTIN, 1998). Assim também ocorrem as fronteiras no reino animal, onde acontecem interessantes mecanismos de adaptação e hierarquização de indivíduos e espécies.
Adaptação
58 Território animal
Os animais possuem um instinto de alerta, que é necessário para garantir a sua sobrevivência. Há o lado da presa e do caçador, por onde transita a função de alerta e de relaxamento, dependendo de sua localização no espaço. Os animais com maior potencial para caçadores, entram num estado maior de relaxamento quando estão em seu habitat e cercado em grandes grupos, já as presas necessitam de uma atenção redobrada a cada movimento percorrido, ainda mais se estão sozinhas. Os animais estão sempre em um estado de atenção e de vigília, na busca de furar o bloqueio, pensar em novas estratégia para caçar e invadir um outro território. Nesse sentido, pode-se diferenciar dois espaços: o primeiro é o que corresponde ao território do familiar, aquele que abriga, protege e conforta. O segundo espaço é o responsável por romper o comodismo, tem a capacidade de disseminação e diz respeito ao nomadismo. A natureza por si só já demonstra um tipo de fronteira, que age instintivamente no ambiente quando olhada com atenção.
Fronteiras móveis
Saindo das ciências da natureza, adentrando às fronteiras “plásticas” ou moldáveis. São fronteiras criadas e modificadas pelos homens, um conceito que evolui e se transforma ao longo de toda a história. A palavra fronteira tem origem do latim fronteria ou frontaria, indicando a parte “in fronte” a um território, ou seja, às margens. A fronteira para Pucci (2010 p.10), é “uma área instável de transição entre dois poderes políticos, mas sem a presença do poder”.
Nomadismo
Para os povos que viviam nos tempos em que a propriedade era coletiva, ou seja, não havendo a separação de propriedade individual e pública, as atividades ligadas à caça e coleta eram as essenciais da sobrevivência. Assim, na medida em que se esgotassem os recursos, o nomadismo se torna uma forma de expansão para outras regiões, havendo a apropriação coletiva de um território, muito antes da apropriação individual (MARTIN, 1988).
Sentimentos na fronteira
Segundo Martin (1998), naturalmente há um sentimento de proteção e identidade comunitária de um grupo em relação ao resto mundo. A extensão direta com a religiosidade, torna que o outro possa ser visto como uma ameaça, um grupo invasor. Nesse sentido há uma ação de defesa de um território, mas que não é imóvel, está em
59 movimento e é flexível. A fronteira também ganha uma interpretação de cunho religioso, onde o conhecido estranha o desconhecido, que por vezes é visto como hostil, ou ainda, maléfico para o grupo. Neste momento, a fronteira não era vista como uma delimitação rígida de um território, mas eram sentidas as zonas mais fluida ou não, para uma interpenetração territorial. Com o passar dos anos, a caça perdia força para a agricultura
Individual x coletivo
e surgiam atividades especializadas como militares, artesãos, comerciante e camponeses. Começa a surgir a centralização de poderes e a diferenciação do solo individual em relação ao coletivo. Inicia-se a construção de fronteiras artificiais, como é o caso da “Grande Muralha” na China, como medida para evitar que nômades vindos do Norte adentrassem seus territórios. Ao contrário da China, o Império Romano apresentava um
Significação
caráter expansionista e de avanço estruturado de suas fronteiras. Ao mesmo tempo em que a fronteira era alterada, era precisa. Na faixa de fronteira se concentravam grandes festividades oferecidas ao seu deus maior, local onde fixavam-se marcos e cavavam-se fossas. Já no Império Inca, as fronteiras eram construídas a partir de trincheiras em pontos estratégicos, havia uma divisão em quatro partes do território que correspondiam a um sistema hierárquico da sociedade. Ao mesmo tempo que as barreiras criadas pelos impérios propiciavam desenvolvimento da sociedade, também ocasionavam um empecilho para futura expansão. Na Idade Média a religião, mais precisamente a Igreja Católica,
Unificação
assume um papel fundamental de unificação das fronteiras, como uma medida de compensar a divisão política e a disseminação econômica vigente. Inicia-se então a separação político-administrativa do sentido religioso trazido às fronteiras. Com o passar do tempo, novas exigências começam a atuar na produção mercantil, introduzindo a implementação topográfica e cartográfica como guias de privatização do espaço. Inicia-se uma época onde as questões que envolvem “fronteiras” estão relacionadas com questões de nacionalidade, sendo estabelecidos limites rígidos e precisos. Os mapas foram ferramentas
Fronteira linear
60 importantes que auxiliaram na representação e projeção de demarcação territorial. Essa nova noção de tempo e espaço, é denominada de “fronteira linear”, ocorrida a primeira tentativa de uma linha imaginária no Novo Mundo, conhecida por “Tratado de Tordesilhas”17. Demarcação de fronteiras
Por volta de 1544, o geógrafo alemão Sebastien Munster inova ao traçar as fronteiras obtendo como critério as diferenças linguísticas, uma vez que o surgimento de ideias revolucionárias colocavam em risco as autoridades da igreja e do Império. Na França, o rei Luís XIV encarregou Sébastien Le Preste, um engenheiro militar e economista, conhecido por Vauban, em estabelecer uma fronteira militar como medida de segurança para a nação. Desta maneira, o rumo da demarcação de fronteiras esteve envolvido em estudos aprofundados em relação à topografia, geologia e comunicação, levando o sistema de organização ser constituído em diversas fortificações distribuídas pelo país. Essa estratégia de defesa da fronteira ocorre até a Primeira Guerra Mundial, quando começam a ser revistas outras maneiras que não sejam regadas à sangrentas guerras (MARTIN, 1998). 1.3.2 Nomenclaturas fronteiriças
Limite e Fronteira
Deve-se analisar algumas particularidades quando falado de fronteira. Existem diferenças na nomenclatura que são importantes para evitar confusões, como é o caso de limite e fronteira. O “limite” é caracterizado como “linha”, onde são reconhecidos limites precisos de um território. É o limite onde o Estado pode exercer sua autoridade, onde são estabelecidos direitos e deveres que serão diferentes do outro lado da linha. Pucci (2010) ainda complementa que limite é a linha imaginária que divide dois territórios, e caso um acidente geográfico coincida com essa linha, passa a ser chamada de “limite natural”. Nesse sentido é que a “linha” não pode ser habitada, diferentemente da “fronteira”. A fronteira é uma zona de intercâmbio entre habitantes vizinhos, uma faixa que mescla as relações econômicas, culturais e sociais, sendo esta habitada (MARTIN, 1998).
17
O Tratado de Tordesilhas (1494) foi um acordo entre Portugal e Espanha para dividir as terras “descobertas” na América entre ambas as Coroas.
61 Conforme afirma Potoko (2013) a definição de fronteira é como algo a ser disputado, conquistado. Há uma relação de troca entre os lados, é dinâmico, uma relação mútua, onde são percebidas semelhanças e diferenças. Trata-se de uma zona intensa de circulação e movimento, que também carrega um sentido de imaginário marcado por sentimento e valor. Segundo Martin (1998), o professo britânico A. E. Moodle
Natural e artificial
coloca uma questão questionável sobre fronteiras e limites. As fronteiras são naturais, portanto relacionadas à geografia. Assim, elas são permanentes na paisagem, como podemos perceber com os desertos, geleiras, florestas, cordilheiras. Esses espaços não necessariamente conseguem ser facilmente acessadas, logo há também uma maior dificuldade em serem ocupados e civilizados. Já os limites são artificiais, estão relacionados diretamente ao Estado. Torna-se mais fácil alterar a linha no território sem grandes complicações, desde que ambos Estados estejam de acordo com os trâmites políticos. Já a divisa é um apoio físico para expressar o limite de jurisdição dos Estados. Geralmente é facilitada através de marcos ou
Delimitação x Demarcação
balizas no território, pois facilita a visualização. Outra prática que causa polêmica é a diferença entre delimitação ou demarcação. O geógrafo Fábio de Macedo Soares Guimarães (apud MARTIN, 1998, p.49), define: Por delimitação, entenda-se o estabelecimento da linha de fronteira – isto é, do limite -, a qual é determinada a partir de um tratado assinado entre as partes envolvidas. Demarcação, por sua vez, é a locação da linha de fronteira no terreno – isto é, a construção da divisa – através do estabelecimento de marcos e balizas.
Nas fronteiras ditas como naturais, não há uma preocupação exagerada com os limites, mas sim com a forma que os acidentes naturais se comportam, no caso de um rio que facilita o processo demarcador do limite. Entretanto nem sempre a água pode ser sinônimo de segregação, em geral ela é vista como união, ainda mais se possibilitar por ela a navegação. De qualquer forma, os limites físicos vão além de uma decisão que facilite a demarcação. E o que
Limites físicos
62 deve ser levado em consideração são os contextos envolvidos na decisão de unir ou separar regiões. Outras fronteiras
O autor Martin (1998) ainda ressalta a existência de outras fronteiras, como as fronteiras em tribos, de cunho religioso, cultural, histórico, econômico, linguístico. Não cabe neste momento enumerar as diversas possibilidades que existem de fronteira, mas vale ressaltar que cada uma apresenta sua especificidade e contexto, tornando impossível a tentativa de generalização. Atualmente, há quem acredite que a integração mundial em um sistema único promova um novo modo de pensar a divisão mundial, supondo que desta maneira seriam prevalecidos os processos de unificação em relação aos processos desagregadores. 1.3.3 Fronteiras na atualidade
Fronteiras virtuais
Hoje em dia, os meios de comunicação facilitam que possamos ultrapassar fronteiras virtualmente. Reconhece-se que exista essa facilidade, mas de modo algum isso representa de fato uma amenizada entre conflitos e resistências que ainda são enfrentadas na contemporaneidade. Para Martin (1998), a existência de correntes significativas que pregam com veemência o nacionalismo, tendo como oposição às forças atuantes de homogeneização decorrentes ao processo de mundialização, são um exemplo claro disto.
Sub-nações
O nacionalismo, por exemplo, aponta a necessidade de identificação própria, diferenciando assim de qualquer outra nação. Mas ao mesmo tempo, internamente não reconhecem minorias que não condizem com sua nacionalidade ou que possam manchar a integridade como nação. O autor cita o exemplo de Taiwan, em que a China considera como parte de seu território, “mas o Ocidente nunca aceitou que se tratasse de ‘um assunto interno chinês’” (MARTIN, 1998, p.63). Criam-se assim “sub-nações”, que possuem o próprio governo, leis próprias, territórios e forças militares independentes.
Universalização
A palavra “mundialização” se refere à utilização de técnicas no processo de produção, consumo e circulação a partir de um âmbito mundial, sem restringir mais as técnicas localizadas. Com os avanços tecnológicos, é possível criar uma universalização e, de certa maneira, uma padronização de gostos, pensamentos e racionalidades. O autor
63 ainda confirma a postura de Milton Santos alertando sobre os malefícios da mundialização para a sociedade. Uma vez que a centralização
e
concentração
de
poderes,
assim
como
na
padronização de culturas, identidades e informações, reforça a desigualdade social e ainda oprime a individualização do sujeito (MARTIN, 1998). Com o avanço tecnológico, o acesso e a facilidade de
Tendência mundial
disseminação de uma tendência mundial dificilmente podem ser contidas. E ainda, quando chega o acesso, ele é atingido de maneiras distintas em cada localidade. A informação pode ser considerada, refletida, contrariada ou refutada, vai depender muito de como esse novo mundo, que é distinto, vai ser recebido. Trata-se de uma fusão de gostos, costumes e ideologias que
Fronteiras culturais
atingem um outro espaço, cabendo a este julgar a relevância dessa informação. As fronteiras marcam o encontro de duas populações diferentes, são chamadas as fronteiras culturais. Estar em contato com o outro, se relacionar e interagir, compreende uma fronteira que está em constante movimento. Ora a interação pode ser amistosa, ora conflituosa, a condição de fronteira é peculiar em cada caso, é cultural e mutável (BENTO, 2013). As fronteiras são maneiras de afirmação identitária e que
Identidade
reforça a soberania de Estados, que estabelecem como as fronteiras devem funcionar. A aproximação ou integração regional de fronteiras são espaços divididos por linhas, mas que também são espaços de possibilidades, onde são identificadas relações de trocas há muito tempo. Fronteira não é sinônimo de neutralidade, cada uma carrega suas
próprias
características
e
seus
próprios
sentimentos.
Dependendo do contexto, a fronteira pode ser sinônimo de libertação para o exilado político, assim como para o contrabandista pode representar o lugar de aflição (BENTO, 2013). Diferente das fronteiras do reino animal, em que os territórios são demarcados por urina e rugidos, as fronteiras humanas são demarcadas por legislações. A presença de fronteiras talvez seja algo natural do mundo. Elas são criadas, mas possibilitam a mudança, um
Demarcação
64 avanço ou recuo, uma condição estável ou instável, uma aproximação ou um urro de afastamento (BENTO, 2013). Segurança pública
Ainda que se pense e discuta vivermos em um mundo sem fronteiras, por bem ou por mal, a demarcação das fronteiras segue sendo um caminho para as instituições assegurarem segurança pública. Não se trata de algo simples, pois o excessivo controle pode asfixiar o fluxo de pessoas e mercadorias. Mas por outro lado, o afrouxamento do controle efetivo, coloca em risco uma população, deixando-a desprotegida. As fronteiras servem como filtros, com a função de controlar a circulação de pessoas, as regras para importação e exportação de mercadorias, proibição da economia anarquista e controle contra o crime organizado. A função da fronteira é evitar crimes, e a proposta de atenuação nas fronteiras não garante segurança à população, principalmente para aquelas que vivem nas bordas e centro dos Estados. Por esse motivo é que são criadas tendências de tensão nas áreas de fronteira, seguindo regras pré-estabelecidas para evitar que a segurança das pessoas seja colocada em risco (BENTO, 2013).
Complexo e potente
Por todas essas questões, pensar em um mundo sem fronteiras, talvez não seja algo tão simples, inclusive utópico. Vivemos em um mundo de diversas culturas, identidades, ideologias, costumes, e que faz entender que o diferente é complexo, mas que também abre uma brecha que faz olhar para as potencialidades desses espaços. 1.3.4 Territórios na filosofia
Linha tênue
As fronteiras podem ser vistas como espaços do limiar, que estão numa linha que é muito tênue: entre a incompatibilidade e a pluralidade. A fronteira é o lugar do entre, daquilo que estreita, da transição, que vai do extremo de um território que acaba, mas que é o início de outro. São lugares da passagem, da troca, do cruzamento. São locais de constante transformação e que apresentam uma multiplicidade peculiar.
O estrangeiro
Ser estrangeiro na fronteira pode ser visto como algo positivo para quem recebe o “hóspede”. O estrangeiro que chega para movimentar a economia local, é atraído para atividades que envolvam
65 visitar lugares turísticos, caminhar por ruas “atrativas”, experimentar comidas típicas, comprar souvenir18 de recordação, registrar momentos e lugares excepcionais. Entretanto, quando o estrangeiro vai com a intenção de estudar o abandono de estações férreas na fronteira é diferente, o objetivo da visita foge do cenário criado para atrair turistas, pois faz revelar o que está oculto ou passa despercebido pelos olhos da maioria dos turistas. Nesta perspectiva é que se pode sentir quão hospitaleiros ou hostis podem ser esses territórios de fronteira. Segundo Derrida (2003), o papel do estrangeiro inclui correr
Correr riscos
riscos, pois envolve o perigo em ficar sem direito de defesa em um outro território. A hospitalidade ocorrer ao reconhecer o estrangeiro por família, mas em contrapartida, não acontece para quem chega no anonimato, às vezes visto até como um bárbaro. Há uma linha frágil entre uma hospitalidade que acolhe e uma hostilidade que afasta, vigia e controla aquele que chega. A hospitalidade pressupõe uma delimitação rígida, uma vez que a fronteira é fixada na conflitante relação
jurídico-política,
num
processo
de
desestruturação-
estruturação. O autor ainda comenta: A partir do momento em que uma autoridade pública, um Estado, tal ou qual poder de Estado se dá ou se vê reconhecer no direito de controlar, vigiar, interditar trocas que os trocadores julgam privadas, mas que o Estado pode interceptar já que essas trocas privadas atravessam o espaço público e nele se tornam disponíveis, então todo o elemento da hospitalidade se encontra perturbado (Derrida, 2003, p. 45).
A hospitalidade é um caminho de duas vias, ao mesmo que
Duas direções
tempo que se tem o hospedeiro, tem-se o hóspede. Assim como alguém que chega a algum lugar, tem o outro que o espera, o aguarda, “a figura do errante”. Não se trata da questão do hospedeiro ou do hóspede em si, mas do gesto de acolhimento oferecido ao outro, principalmente se este se encontra desprovido de um teto (FUÃO, 2014). Para Fuão (2014), os lugares de encontro e espera na cidade estão relacionados, de certa maneira, com o acolhimento, com a
18
Objeto característico de um lugar que é vendido como lembrança.
Hospitalidade
66 hospitalidade. A grande maioria desses lugares são espaços públicos, como: “a porta aberta e entreaberta, a marquise, o alpendre, os baixios de viadutos e pontes, as arcadas, as galerias, as paredes, os bancos, as ruas, as praças” (FUÃO, 2014). Em muitos casos, determinados lugares apresentam maior acolhimento com o outro, do que sua própria moradia. Pessoas e espaços
O sentido do lugar só existe por causa da presença de alguém que habita, ocupa, espera, transita por ali. A hospitalidade sempre teve relação com pessoas e espaços, e que hoje em dia, cada vez mais tem-se criado abismo entre ambos. A arquitetura e urbanismo tem se preocupado mais com a imponência e autonomia do objeto construtivo, do que com as subjetividades das pessoas que irão habitá-lo (FUÃO, 2014).
Aceitação Interior e exterior
A hospitalidade tem ligação com aceitação, está relacionada com o de fora (aquele que vem ao encontro do outro) para assim instaurar-se o dentro. Há uma relação direta entre interioridade e hospitalidade, pois ambas indicam abertura, que acolhe para o dentro. A arquitetura, desto modo, tambérm implica na construção por fora, para depois estabecer o dentro, mesmo que às vezes possa ser construído de dentro para fora. A ideia de interioridade, acontece a partir do fechamento externo. Assim como nossa própria pele, que é o fora, “a casca”, que comunica nosso interior com o mundo exterior (FUÃO, 2012).
Entrelugares
Permear pelos territórios do abandono na fronteira convida a descobrir e caminhar por lugares onde o estrangeiro talvez não seja acolhido. Requer um estado de alerta, uma dose de aventura e coragem para percorrer os espaços não “controlados”. Caminhar por ruas desertas, pelo mato, por vielas e onde mais o abandono das estações férreas se ramificar. Como uma teia que se espraia pela cidade deixando seus rastros de falta de cuidado e atenção com aquilo que está abandonado.
Signos territoriais
Os territórios de fronteira são estruturas que se subdividem e podem brotar com outras infinitas dimensões. São compostas por um conjunto de linhas estratificadas, suscetíveis a se transformar e produzir novos signos territoriais. O rompimento desses signos
67 promove
uma força,
desestabilização
e
uma
linha
confronto
com
de fuga, o
meio
que promove externo
-
a
uma
desterritorialização. Altera-se da zona de estabilidade para a zona do alerta, mas que retorna a acalmar quando o perigo dissipar. Num segundo momento, cria-se um novo movimento, uma nova linha de fuga que surge após o acontecimento e que serve de amparo (associações) diante às novas experiências exteriores que virem a surgir - uma reterritorialização (DELEUZE & GUATTARI, 2011). Os movimentos denominados de “linha de fuga” são os que
Linha de fuga
escapam para um território outro, envoltos no plano da experiência, onde ocorrem mutações (ZOURABICHVILI, 2004). Como reconhecem os autores Deleuze e Guattari, 2011, p.91: “De uma maneira ou de outra, o animal é mais aquele que foge do que aquele que ataca, mas suas fugas são igualmente conquistas, criações”. Retoma-se o conceito do ritornelo, que tem o papel de um
Ora, ora, ora
agenciamento territorial. É aquilo que está relacionado com a terra, por exemplo o canto dos pássaros, que ao cantar marca assim seu território. Quando Deleuze e Guattari (1997) trazem o conceito do ritornelo, parte-se do entendimento que ele é constituído por três aspectos que estão interligados entre si: ora, ora, ora. Ora o acesso do caos atinge a um limiar de agenciamento territorial, são componentes
direcionais.
Ora
ocorre
uma
organização
do
agenciamento, o que chamamos de componentes dimensionais. Ora afasta-se do agenciamento territorial e alcança outros agenciamentos ou ainda outros lugares, são componentes de passagem ou de fuga. São três aspectos do ritornelo que se afrontam: as forças do caos (infra-agenciamentos), as forças terrestres (intra-agenciamentos) e as forças cósmicas (inter-agenciamento). A partir do caos nascem os Meios e os Ritmos. Os meios se relacionam e se mesclam uns com os outros, cada meio é constituído por um componente. Os meios são vibratórios e remetem-se a outros meios, sendo definidos por um código de repetição periódica. O código é um modo contínuo de transcodificação ou de transdução, ou seja, é a maneira como um meio serve de base para o outro, ou ainda, como um meio se estabelece, altera ou dissipa no outro. É nessa dinâmica
Meios e ritmos
68 que se encontra uma abertura ao caos, como forma de ameaça ou intrusão. A revanche dos meios ao caos, é formado pelos Ritmos. Entre-dois
A semelhança entre o caos e o ritmo é o entre-dois (ritmo-caos ou caosmo). O que está entre meios, por exemplo: entre o amanhecer e o anoitecer, entre o natural e o artificial, entre a planta e o animal, sem que isto seja uma progressão necessariamente. É neste entredois que o caos se tornar ritmo, desde que ocorra a passagem transcodificada de um meio para outro. O ritmo não tem relação com cadência, pois trata-se do desigual ou incomensurável, que está em constante transcodificação. Que atua em instantes críticos ou liga meios a outros meios. Não se trata de operar em espaço-tempo homogêneo, mas sim em blocos heterogêneos.
Expressividade
De fato, o território não é um meio, nem ritmo ou uma passagem entre meios, mas refere-se ao produto de uma territorialização dos meios e dos ritmos. O território dispõe de diversos meios, porções exteriores, interiores, intermediárias, de domínio, de segurança, de zonas neutras, hostis e assim por diante. De fato, o território só existe no instante que os componentes de meios transpuserem do direcional para o dimensional, ou seja, deixando de ser funcional para ser expressivo. Os autores citam o exemplo da cor, pode ser de um peixe ou pássaro, a cor faz parte da membrana do animal que está relacionada com questões hormonais, mas ao mesmo tempo, ela tem sua função: seja para atração sexual, para fugir, para atacar. Neste momento ela se torna expressiva, pois alcança uma marca territorializante.
Contrapontos territoriais
Quando o ritmo se torna expressivo, há territorialização. Tratase de um automovimento das qualidades expressivas, que descobre uma objetividade no território delineado por elas, assim como acontece com a cor dos peixes de recifes de coral. No entanto, existem os contrapontos territorias: quando as qualidades expressivas estabelecem pontos que tomam em contraponto as circunstâncias do meio externo. Existe uma autonomia nesses pontos ou contrapontos, como a água da chuva que cai, a aproximação de um inimigo, o sol que nasce ou se põe. As relações entre as matérias apresentam uma autonomia na própria expressão. E os motivos e contrapontos
69 territoriais examinam as potencialidades do meio, sejam elas interiores ou exteriores. O ritornelo caminha em direção ao agenciamento territorial,
Fatores do ritornelo
acopla-se nele ou retira-se dele. No estado do intra-agenciamento tem-se uma complexa e importante organização, pois compreende o agenciamento territorial com as funções agenciadas. Reúne um conjunto de componentes heterogêneos, atinge materiais, cores, cheiros, sons até os diversos agenciamentos que entram num motivo. Já o estado do inter-agenciamento vai além da passagem de um agenciamento territorial a outro, implica em atingir um outro plano: o do Cosmo. As forças territorializadas não são mais ligadas às forças da
terra,
mas
reencontradas
ou
liberadas
de
um
Cosmo
desterritorializado, por exemplo, “quando o canto dos pássaros dá lugar às combinações da água, do vento, das nuvens e das brumas” (DELEUZE & GUATTARI, 1997, p.120). As diferentes percepções trazidas para a discussão reforçam o quão abrangente e complexo pode ser trabalhar com aspectos que envolvam fronteira. Analisar o abandono de estações férreas na fronteira é um passo a ser dado que envolve uma imersão para sentir o que vibra nesse território fronteiriço. São relações que vão além de aspectos físicos e geográficos, pois atinge um complexo de outras matérias que se faz presente nesses meios, como cheiros, sons, cores, texturas, emoções. São componentes que podem se misturar, fundir, desagregar, transformar e alcançar novos agenciamentos. Estes que produzem potência para o processo criativo, sendo o próprio acontecimento o revelador do sentido para o abandono das estações férreas na fronteira Brasil-Uruguay.
Território fronteiriço
70
capĂtulo 2
71 2. Contexto histórico Inicialmente, o capítulo aborda a formação da fronteira Brasil –
Primórdio
Uruguay. Cabe salientar que o tema não será aprofundado, pois não interferirá na proposta da pesquisa. No entanto, foi a partir da definição da
fronteira
que
surgem
as
primeiras
ocupações
urbanas,
configurando a formação das cidades fronteiriças. Em seguida, será apresentado o contexto histórico da formação das cidades-gêmeas Jaguarão/BR e Rio Branco/UY e Santana do Livramento/BR e Rivera/UY. A partir do formação e desenvolvimento das cidades é que surge a implantação do sistema ferroviário como instrumento de fomento à economia e, consequentemente, da maior integração nacional. 2.1 Formação da fronteira Brasil - Uruguay O território da fronteira entre Brasil e Uruguay foi marcado por diversos acordos e desacordos, notado por um espaço de conflitos e
Tratado de Tordesilhas
guerras. Com a finalidade de explorar e firmar território no chamado Novo Mundo, portugueses e espanhóis estabeleceram um acordo para delimitar a porção da terra para cada parte. O contrato denominado por “Tratado de Tordesilhas” foi um acordo celebrado em 1494 entre Portugal e Espanha, onde as terras da região de estudo, que compreende o estado do Rio Grande do Sul/BR e o Uruguay, pertenceriam aos espanhóis. Portugal se sentindo prejudicado pela partilha, aproveita o
Rio del Plata
período político que rege a unificação Ibérica (1580-1640), para atravessar a linha de divisa e funda nas terras espanholas a Colônia do Sacramento, no ano de 1680. A posse da região platina era intensamente cobiçada, por ser um local de muitas riquezas e possuir escravos indígenas. O acesso ao Rio del Plata facilitava o estabelecimento do comércio informal, interligando assim a América do Sul e a Europa (MARTINS, 2001). Em contrapartida da ação portuguesa, os espanhóis fundam Montevideo em 1726 e, ainda, fortalecem seus territórios ocupados fundando a cidade de Rio Grande, com caráter fortemente militar. Obviamente, a definição da posse da Colônia de Sacramento não
Formação militar
72 agradou aos espanhóis, que por consequência, acentuaram disputas fronteiriças que se estenderam pelo século XVIII (MARTINS, 2001). Tratados firmados
Ao longo dos anos, foram realizados tratados estabelecendo novas divisas territoriais, como o Tratado de Madrid de 1750, o Tratado de El Prado em 1761, Tratado de Santo Ildefonso em 1777. Neste último tratado, por não haver consenso na divisa de determinados territórios, criam-se os campos neutrais, locais onde a terra não pertenceria a ninguém. Uma dessas terras localizava-se próximo à Lagoa Mirim e ao rio Jaguarão. As regiões dos campos neutrais se transformaram em rotas de contrabando devido à inexistência de fiscalização. As figuras dos contrabandistas são características da formação da fronteira platina, representando a atividade do comércio informal como parte do cotidiano local (MARTINS, 2001).
Produção pecuária
Outro fator importante na formação da zona fronteiriça é a presença da pecuária no território do Rio Grande do Sul/BR, que inicia com a vinda de padres jesuítas espanhóis no interior do território sulamericano. Eram criadas cidades ou missões catequizadoras nos dois lados do rio Uruguai, locais que introduziram o gado bovino, suíno, caprino e ovino. Devido ao descumprimento dos tratados e a permuta dos territórios ao longo dos anos, as missões jesuíticas são atacadas, destruídas e o gado fica solto pelos campos, aumentando consideravelmente sua quantidade.
Sesmarias
Com a falta de regras na fronteira, a Coroa Portuguesa promove a ocupação espacial rio-grandense, através da distribuição das sesmarias para maior domínio e controle das terras. Os ocupantes eram militares ligados à Coroa Portuguesa, e se instalaram na região adotando a pecuária extensiva como atividade rural, a partir do antigo rebanho de gado que estava solto. A atividade prospera e são criadas estâncias de criação de gado, fomentando a economia e desenvolvimento da região (STRUMINSKI, 2015).
Instabilidade
Mais tarde, a região do Prata torna-se palco de violentas disputas militares. A vinda da Coroa Portuguesa ao Brasil, em 1808, acentua os conflitos por questões territoriais, iniciando uma série de guerras e revoluções, como a Guerra Cisplatina (1825-1828), a Revolução Farroupilha (1835-1845), guerra contra Rosas (1851-
73 1852), Revolução Federalista (1893-1895), Guerra do Paraguai (18641870). Apesar da instabilidade regional, os moradores da fronteira mantinham suas atividades e união dos sítios urbanos, por uma questão de necessidade e por criarem relações interpessoais e familiares. Inclusive, cria-se um novo dialeto, o “portunhol”, o que corrobora a relação mútua entre os territórios da fronteira (STRUMINSKI, 2015). A linha de fronteira Brasil-Uruguay estende-se por 1069km,
Linha de fronteira
sendo provida de rios, lagos e canais num total de 749km e por fronteira seca com 320km (PUCCI, 2010). Esta fronteira é composta por seis cidades-gêmeas, sendo elas três de fronteira seca com cidades conurbadas: Chuí-Chuy; Aceguá-Acegua e Santana do Livramento-Rivera e três de fronteira molhada, divididas por rios: Jaguarão-Rio Branco; Quaraí-Artigas e Barra do Quaraí-Bella Unión. A fronteira Brasil-Uruguay apresenta grande fluxo de pessoas
Fronteiras abertas
e de mercadorias, devido a uma longa trajetória histórica de intercâmbio econômico e cultural. As cidades da fronteira BrasilUruguay ficaram conhecidas como um “modelo a ser seguido”, por serem caracterizadas por fronteiras abertas, densas e povoadas (PUCCI, 2010). 2.2 Cidade-gêmeas Jaguarão/BR - Rio Branco/UY 2.2.1 Primeiras ocupações Com a necessidade de defesa da linha de fronteira, o Coronel
Serrito
Marques de Souza fixa sua tropa no lado brasileiro, no “lugar denominado de Serrito, na Costa da Lagoa”. Com aproximadamente uma povoação de 260 homens, acampados devido aos combates. No entanto, registros marcam que em 1802 já havia sido erguida a primeira “casa de residência” no Serrito, destinada aos comandantes da Guarda19 (FRANCO, 1980). Por volta de 1803, também iniciam modestas construções às margens do rio Jaguarão, apesar do perigo ofertado pela proximidade da divisa territorial. A população inicia o núcleo estimulada pela
19
Arquivo Histórico do Estado, correspondência de autoridades militares, 1822, alferes João Antônio d’Oliveira Val. apud Sérgio da Costa Franco, 1980.
Formação do núcleo
74 intensificação comercial e circulação de pessoas devido à presença da tropa e pela proximidade com o porto. As primeiras ocupações estavam formadas principalmente pela tropa de soldados e por comerciantes, conhecidos por viandeiros, que abasteciam os soldados, oficiais e a população dispersa em meio rural (MARTINS, 2001). A cidade de Rio Branco faz fronteira com Jaguarão e está
Cerro do Juncal
localizada no noroeste do país, distante a aproximadamente 400 km da capital Montevideo. Em 1792 a Espanha instala três guardas localizadas inicialmente no Cerro do Juncal, às margens atualmente brasileiras. Por volta de 1801 a guarda é transferida de lugar, diante do avanço português, dando início a um pequeno povoado conhecido por Arredondo. Só então é que se estabelece o povoado de Jaguarão no lado brasileiro (MUSSO, 2004). No ano de 1821 é decretada a criação do Departamento de
Povoado Arredondo
Cerro Largo, que inclui o povoado de Arredondo, atual cidade de Rio Branco (MIRANDA, 2000, p.206). A fronteira apresenta um caráter fortemente militar, mas que também é reconhecida pela criação bovina e pelas relações comerciais. Assim, na primeira metade do século, são instaladas as aduanas20 em Rio Branco, revitalizando o povoado (MUSSO, 2004). Espírito Santo De Jaguarão
No lado brasileiro, em 31 de janeiro de 1812 é criada a freguesia chamada de Espírito Santo de Jaguarão. A região estava consolidada situada em terras férteis e dispostas em local propício para a instalação de charqueadas, devido à proximidade do rio para a exportação. Em 1822, ocorre a Proclamação da Independência do Brasil, momento que se desvincula de Portugal. Apesar disso, são mantidas as atividades que já estavam presentes no território: como as relações militares, a produção de gado e o fornecimento de mercadorias. Essa conscientização no desempenho desse papel econômico, era fomentado pelas ideias liberais europeias através de
20
Aduanas ou alfândega são postos governamentais responsáveis pelo controle do movimento de entrada e saída de mercadorias para o exterior ou proveniente dele, inclusive na cobrança de tributos e taxas de produtos nãooriginais do país.
75 lojas maçônicas e da Imprensa. Consolidando-se em uma consciência político-liberal na região sulina (MARTINS, 2001). No ano de 5 de julho de 1853, com a aprovação da lei nº 300
Vila Artigas
que dá ao povoado de Arredondo o nome de Artigas, inicia-se o processo de regularização e ampliação da área urbana. É escolhida uma região às margens do Rio Jaguarão, dispondo de um cais. Porém, a localização escolhida é mais baixa, ficando o povoado exposto às frequentes cheias do rio (MUSSO, 2004). Em 1888, metade de Rio Branco alaga em consequência de
La Cuchilla
uma cheia do rio Jaguarão. Diante dessa preocupação, é iniciada a formação de outro núcleo populacional numa região mais elevada, conhecida por la Cuchilla. O traçado das ruas é disposto de modo reticulado, há um desenvolvimento mais efetivos no local, incluindo o funcionamento de charqueadas. A urbanização se expande para a região mais elevada, criando uma formação linear e descontínua (MUSSO, 2004). A travessia feita pelo rio Jaguarão se tornava um empecilho
Integração
para a integração entre Jaguarão e a Via Artigas. Então, em 1890, foi solicitada na Comisión Auxiliar de Vila Artigas a construção de uma ponte de madeira sobre o rio Jaguarão. Porém, a obra não foi concretizada (MIRANDA, 2000). Antes mesmo, em 1875 já se encontravam registros com a proposta da construção de uma ponte internacional. A necessidade de realizar essa obra estimularia a circulação de pessoas e do comércio na fronteira, auxiliando também na comunicação entre Brasil e Uruguay (MARTINS, 2001). Em 1909, José Maria da Silva Paranhos, denominado Barão
Rio Branco
de Rio Branco faz o intermédio na cessão de parte da Lagoa Mirim, até então pertencentes ao Brasil. Em homenagem aos feitos do Barão, em 1915 Vila Artigas passa a ser chamada de Rio Branco. Mais adiante, em 1952, quando a Vila foi elevada à cidade manteve-se como Rio Branco o seu nome (MIRANDA, 2000). Em maio de 1925 ocorre uma nova cheia do rio Jaguarão, nesse momento é registrada a cota máxima do rio para a construção da ponte. Assim, se dá o início da construção da Ponte Internacional Barão de Mauá, conectando Brasil e Uruguay. O nome dado é em
Ponte internacional
76 homenagem ao Visconde de Mauá, natural de Arroio Grande, RS, que em 1856 instalou o Banco Mauá na Vila Artigas (MIRANDA, 2000). (Des)apropriação
Em 1930 é finalizada a construção da ponte, com uso destinado ao transporte rodoviário e ferroviário, quando é construído o ramal de Treinta y Tres. Havendo dois pontos com estação, um no bairro La Cuchilla e outro junto ao núcleo próximo à ponte. A construção da ponte acabou desapropriando parte da área urbana, fato que contribuiu com o desaparecimento do patrimônio, que já havia sofrido com as grades enchentes: “[...] Rio Branco apresenta o curioso caso de que, mesmo sendo quase uma relíquia histórica nacional, ao ponto de ser a cidade fronteiriça com o Brasil mais antigo do Uruguai, praticamente não possui vestígios materiais da sua rica trajetória, mantendo-se incrivelmente em pé tão só uma dezena de casas, mesmo tendo sofrido inúmeras grandes inundações entre as quais se destacam pela destruição causada, as dos anos 1923, 1959, 1972 e 1984.” (ALEJO, ano, p.33 apud MIRANDA, 2000, p.217)21.
Questão portuária
Em decorrência do sistema portuário, Jaguarão e Vila Artigas formaram, praticamente, uma conurbação. Com as transações comerciais internacionais em plena atividade, havia o confronto entre os dois portos. A proximidade com o porto fez com que o comércio exportador agropastoril fosse um grande aliado para a economia, e ainda, oferecia contato com o restante do mundo. A relação comercial fornecia informações, assim como, contribuía para a miscigenação cultural (MIRANDA, 2000).
Tombamento nacional
O início das obras da Ponte Internacional Barão de Mauá ocorre em 1927 e foi inaugurada em 30 de dezembro de 1930. No ano de 2011 foi tombada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), como também, é reconhecida como Patrimônio Cultural do Mercosul (Figura 5):
21
ALEJO, ob. cit. p. 33 (tradução Rodolfo Gonzalez Barboza).
77
Figura 5 Ponte Internacional Barão de Mauá cruzando o rio Jaguarão, interligando BR e UY. Fonte: Imagem acervo do IPHAN, sem data informada.
A ponte foi financiada pelo Uruguay em função de uma dívida com o Brasil e construída por uma empresa brasileira. A construção da ponte representava uma aproximação com as relações econômicas entre os dois países, sendo uma alternativa para aumentar a exportação de mercadorias através do porto de Montevidéu (MIRANDA, 2000). 2.2.2 A chegada do trem A implantação do primeiro trecho ferroviário no estado do Rio Grande do Sul ocorre na zona de colonização alemã, localizado no vale médio dos Sinos, considerado o “celeiro da Província”. Além dessa, haviam mais quatro linhas principais de ferrovias: a Estrada de Ferro Porto Alegre – Uruguaiana; a Estrada de Ferro Rio Grande – Bagé; a Estrada de Ferro Santa Maria – Marcelino Ramos e a Estrada de Ferro Barra do Quaraí, conforme mostra a Figura 6. (IPHAE, 2002).
Estrada de ferro
78
Figura 6: Mapa das principais linhas da malha ferroviária do RS em 1910. Fonte: IPHAE, 2002 adaptado pela autora.
Ferrovia em Jaguarão
Jaguarão
A construção da Estrada de Ferro de Rio Grande a Bagé foi inaugurada em 1884, e tinha como principal objetivo acessar o gado oriundo da fronteira oeste com o porto de Pelotas e Rio Grande. Esse projeto acabou prejudicando os negócios de Jaguarão, uma vez que a cidade era a principal fornecedora de gado daquela região. Desde o ano de 1879 a Câmara de Jaguarão tenta agilizar o processo de inclusão do Ramal na estrada de ferro Rio Grande-Bagé. Somente em 1912 é que iniciam a construção da ferrovia, que em seguida é interrompida em decorrência da 1ª Guerra Mundial. Principalmente, pelo motivo do setor ser dependente das indústrias estrangeiras, que neste caso, era da indústria inglesa (MARTINS, 2001).
Treinta e Tres
No lado uruguaio, a rede ferroviária chega à Vila Artigas em 1903. No projeto original a linha vinha de Melo, mas depois o trajeto foi alterado e acabou passando por Treinta e Tres (Figura 7). A Vila Artigas possuía um ponto estratégico com o terminal ferroviário Treinta e Tres – Rio Branco e por apresentar o contato mais direto ativamente com o Brasil, através de Jaguarão (MIRANDA, 2000).
79
Rio Branco
Figura 7: Mapa do sistema ferroviário do Uruguay. Fonte: Mapa U.S. Central Intelligence Agency – 1995 Link: http://www.americamapas.com/uruguai.htm, adaptado pela autora.
Com a chegada do trem e a instalação da estação férrea na
Expansão urbana
Vila Artigas em 1903, ocorreram transformações consideráveis no espaço urbano. Sendo agora um pólo atrativo para expansão urbana no bairro já formado La Cuchila. Assim foram surgindo loteamentos, zonas industrias e comerciais em seu entorno. Logo em seguida, a linha férrea de Vila Artigas se conectava com Montevideo, que oportunizava a utilização portuária para expandir sua rede de exportação para a Argentina, Brasil e outros países do mundo. Somente mais adiante, em 1930 é que se cruzava a fronteira através da ponte para chegar à estação ferroviária de Jaguarão (MIRANDA, 2000). Com o final da 1ª Guerra Mundial, são retomadas as atividades do sistema ferroviário. Em 12 de dezembro de 1931 é inaugurado o trecho ferroviário Airosa Galvão - Jaguarão, construído pelo 1º
Ferrovia Airosa Galvão
80 Batalhão Ferroviário. A conexão da linha férrea da Estação de Jaguarão à Estação de Rio Branco só foi consagrada em 1932. Diferença de bitola
A estruturação da rede ferroviária de Rio Branco e Jaguarão eram diferentes. No Uruguay era utilizada a bitola de 1,435m, sendo esta a medida usual na Europa e Estados Unidos, já no Brasil era utilizado a bitola de 1,00m. As redes ferroviárias se entrelaçavam, alcançando seus ramais até o território vizinho. O trem chegava até as estações ferroviárias de cada país, onde era realizada a carga e descarga de mercadorias, como também, o embarque e desembarque de passageiros. A integração regional só não era maior, devido às limitações ocasionadas pela diferença de bitola, que acabava refletindo em consequências econômicas e sociais (MIRANDA, 2000).
Interesse político e militar
O trecho ferroviário de Jaguarão pertencia à Linha Rio Grande–Bagé–Cacequi/Ramal Basílio–Jaguarão. A Estação Férrea foi construída afastada da malha urbana, localizada em uma grande área isolada, não havia vizinhança, muito menos infraestrutura urbana. Segundo Martins (2001), exceto a ferrovia de escoamento da produção agrícola de emigração alemã para Porto Alegre, as demais ferrovias apresentavam um cunho mais político e militar, do que por outro interesse. No caso de Jaguarão, a ferrovia pouco contribuiu para a formação do espaço urbano, visto que foi escassa a implementação de equipamentos ferroviários necessários para o desenvolvimento setorial. No entorno da estação férrea de Jaguarão, encontram-se poucos assentamentos urbanos residenciais, muito menos a presença de comércios e serviços (MIRANDA, 2000).
Inauguração em 25 de março de 1932
Segundo a ficha técnica elaborada pelo IPHAE (2002), a estação férrea de Jaguarão localiza-se na Praça Viscondessa de Magé. Foi inaugurada em 25 de março de 1932 e desativada na década de 1980. A edificação apresenta dois pavimentos, com cobertura inclinada em múltiplas águas. Possui beirais largos, revestidos com telha francesa. Os vãos das aberturas do pavimento inferior são com verga em arco abatido e no pavimento superior com verga reta. As esquadrias de madeira com caixilhos de vidro e bandeira fixa (Figura 8). A estação estava desocupada até 2011,
81 quando passou por uma reforma para abrigar uma loja maçônica, até hoje destinada para este uso22.
Figura 8: Estação Férrea de Jaguarão, BR. Fonte: Acervo da autora, 2019.
A edificação é caracterizada de médio porte, possui dois terraços descobertos nas extremidades, com guarda-corpo com elementos vazados (IPHAE, 2002). Possui características da arquitetura
campestre
norte-americana,
com
inspiração
no
Romantismo. Marcada com elementos ornamentais na fachada, complementando uma composição simplificada, de linguagem formal historicista (MIRANDA, 2000). A estação de Rio Branco, no Uruguay, apresenta pouco material disponível. No entanto, possui um memorial exposto na parede da edificação, onde constam algumas informações. A estação é denominada como Ferrocarril Treinta y Tres – Rio Branco foi finalizada em 1936. Sob responsabilidade da Empresa Constructura Uruguaya “A.S.S.M” Ingenieros y Contratistas aliada com Walter Scott & Middleton Ltd Y Anglo Scottish Construction Cº Ltd de Londres. A seguir, a Figura 9 mostra o registro da estação.
22
Informação da Secretaria de Cultura de Jaguarão, RS.
Inauguração em 1936
82
Figura 9: Estação Férrea de Rio Branco, UY. Fonte: Acervo da autora, 2019.
A Estação Férrea foi construída com princípios da estética do Ecletismo Historicista. A edificação possui dois pavimentos, com platibandas vazadas e elementos decorativos como compoteiras e esferas. Além disso, traz em sua construção frisos, cimalha, cunhais e vazados retomando as seteiras. Apresenta sacada na frente e fundos da edificação construídas com peitoril metálico (MIRANDA, 2000). Características construtivas
Os vãos apresentam tipologia variadas. As portas do acesso principal e uma das portas na fachada posterior possuem verga em arco pleno. As demais portas aos fundos possuem verga reta, como também, as aberturas na fachada lateral e uma janela na fachada principal. Os vãos das aberturas no pavimento superior são com verga em arco abatido. Aos fundos possui uma cobertura de estrutura metálica e madeira, revestida com telha de barro, localizada a antiga área de embarque e desembarque de passageiros (MIRANDA, 2000). Apesar de implantação da ferrovia e da construção da estação
Dificuldades
férrea finalizada, Jaguarão ainda enfrentava diversos problemas que impediram o pleno funcionamento do serviço ferroviário. Um dos fatores foi a falta de embarcadeiro adequado para o gado, dificultando a
comercialização
bovina
para
outras
regiões.
Assim
os
charqueadores optavam em conduzir o rebanho até Arroio Grande ou até o porto de Rio Grande, continuando a seguir o “caminho das tropas”. Ainda haviam falta de vagões para o transporte do gado, as
83 tarifas eram elevadas e possuíam poucos pontos de embarque (MARTINS, 2001). A ineficiência do transporte ferroviário não atendia às
Transporte ineficaz
demandas do escoamento da produção do Estado. A União tinha a incumbência da maior parte das linhas férreas do Rio Grande do Sul. Em 18 de junho de 1905, firmou contrato com CIE. Auxiliare des Chemins de Fera u Brésil, formado por capitais belgas e americanos, sendo arrendado o serviço com vigor até 15 de março de 1968. Na prática, não foram resolvidos os problemas da rede ferroviária, o frete cobrado era elevado e o tempo de viagem demorado, desta forma o serviço ferroviário asfixiava a produção cada vez mais (PESAVENTO, 1980). Por outro lado, os uruguaios e argentinos foram mais eficientes
Alternativas
na construção da estada de ferro, beneficiados pelos portos de Montevideo-UY e Buenos Aires-ARG. Assim os charqueadores do oeste do Rio Grande do Sul foram atraídos para levar seus rebanhos por esse caminho, pois os fretes eram mais rápidos, baratos e eram oferecidas taxas mais atrativas para exportação (MARTINS, 2001). O Governo tinha como meta atrair os fornecedores da produção para a utilização das malhas ferroviárias brasileiras e como
Transferência administrativa
estratégia, diminuíram o valor cobrado pelo frete. Considerando que a concessionária estrangeira não estava interessada em melhorar os serviços, o presidente do Estado, solicita ao Governo Federal a transferência da ferroviária ao Rio Grande do Sul. Em 12 de julho de 1920, o Governo Federal autoriza os trâmites ao Governo gaúcho, dessa maneira, “ficava o Governo autorizado a efetuar todas as operações de crédito necessárias para a efetivação do contrato feito” (PESAVENTO, 1980, p. 186). Para manter a estrada de ferro em atividade era necessário um grande capital. O Governo via-se atado a recorrer a empréstimos externos para adquirir o montante, mas também a elevar as tarifas do serviço. Tais medidas, só fomentaram a prática comum do contrabando e o seguimento da utilização das linhas uruguaias como melhor alternativa de escoamento da produção (PESAVENTO, 1980).
Empréstimos
84 Comércio ilegal
O contrabando na região era muito comum, o que de certa maneira era o sustento de diversas famílias principalmente as mais pobres. Algumas regras foram impostas pelo Governo Central para combater esse tipo de comércio ilegal. Tais medidas eram consideradas abusivas para manter o exercício do comércio, só pelo fato da mercadoria vir pela fronteira. Isso fez com que se expandisse a inserção de artigos de maneira ilegal pela região e, ainda, contribuiu para o declínio do comércio importador (MARTINS, 2001). A partir da década de 50 o sistema entra em um processo de
Decadência
decadência. Embora a rede uruguaia esteja unificada depois da metade do século, a falta de manutenção e renovação das vias influenciam no funcionamento e operação das ferrovias. Um processo que vai se agravando, chegando a ser extinto o transporte de carga e de passageiros por volta dos anos 80 (MUSSO, 2004). Desativação
Aos poucos as atividades portuárias começam a perder força e mais tarde, o mesmo acontece com a desativação das redes ferroviárias em ambos países. Logo iniciam as estradas de rodagem, ganhando importância nas cidades, sendo as principais responsáveis pelo transporte de mercadorias e passageiros (MIRANDA, 2000). Em 1984 ocorre mais um crescente do rio Jaguarão, atingindo
Nova ponte
até a Praça de La Cuchilla. Apesar de não ter sido afetada a estação férrea e nem a ponte, são pensadas alternativas de interferir no leito do rio com uma represa para regular o nível da água. Por volta de 1998, é planejada a construção de uma nova ponte internacional em outra localização, em consequência das condições estruturais que a ponte atual apresenta (MUSSO, 2004). A proposta da ponte ainda não foi consolidada, e atualmente o transporte de caminhões de carga ainda é realizado pela atual Ponte Internacional, agravando cada vez a condição estrutural. A cidade fronteiriça de Jaguarão, conta com uma política de
Setor comercial
incentivo de comércio comum, que visa aproximar os laços e ampliar o setor econômico dessas cidades que sempre estiveram atuantes no setor
comerciário
com
o
outro
país.
Compreende-se
que
historicamente, tanto o comércio legal quanto o ilegal, contribuíram
85 para o desenvolvimento e sustento da população local (MARTINS, 2001). Ainda podem ser citados as belezas arquitetônicas presentes
Centro histórico
nesse território. A cidade conta com uma quantidade e qualidade de edifícios de arquitetura do final do século XIX, que possui valor histórico e cultural (MARTINS, 2001). Além da Ponte Internacional Barão de Mauá, também apresenta valor pelo seu conjunto histórico e paisagístico no centro histórico da cidade, com grande acervo de bens culturais, dentre elas edificações no estilo colonial, eclético, art déco e moderno23. Ambas cidades apresentam características com grande
Free Shops
potencial turístico, mas o grande atrativo que fortalece a economia local está estruturado pelo comércio dos Free Shops no lado Uruguaio. A vinda de turistas de diversas regiões do Brasil principalmente, também agrega a economia por meio da oferta de serviços como hotelaria, restaurantes e pontos turísticos para serem visitados.
2.3 Cidades-gêmeas Santana do Livramento/BR – Rivera/UY 2.3.1 Primeiras ocupações Inicialmente as terras de Sant’ana do Livramento24 eram pouco habitadas e de difícil acesso. Por lá habitavam índios minuanos e charruas, e pertenciam ao grupo Guaicurú do Sul. Seu estilo de vida era semisedentário, antes de iniciarem as atividades ligadas ao gado, viviam às margens da Lagoa Mirim, da vertente do Rio Negro e no interior do Uruguay. Aos poucos os índios começam a ser expulsos desse território, chegando ao seu extermínio (POTOKO, 2013).
23
Informações do Tombamento da Ponte Internacional Barão de Mauá e do Centro histórico de Jaguarão. Site: http://portal.iphan.gov.br 24 Grafia utilizada na época, hoje em dia é adotado Santana do Livramento. Segundo Cláudio Morena, doutor em Letras afirma que: “A grafia do nome de um município está submetida às regras ortográficas vigentes, independentemente da forma como constava nas atas de fundação” (apud POTOKO, 2013, p.162). Adota-se o termo Sant’Ana do Livramento quando mencionado naquele período histórico e Santana do Livramento quando se trata da cidade nos dias atuais.
Ocupação indígena
86 Acampamento São Diogo
O início do povoado de Sant’Ana do Livramento teve sua origem nos campos Neutrais do Rio da Prata, por volta de 1810. O sítio que se instalaram o acampamento militar de D. Diogo de Souza em 1811, originou o primeiro nome do povoado, chamado de “São Diogo”. Neste distrito é instalada a “Capela de Nossa Senhora do Livramento” no ano de 1823. A região era considerada perigosa, pois por ali passavam os castelhanos que seguiam em direção às Missões. Em um episódio, o acampamento de São Diogo foi invadido, o povoado e a capela foram queimados, ficando conhecido por Capela Queimada. Assim, a população teve que fugir, encontrando abrigo no acampamento militar do Império, no distrito de Alegrete. Nesse momento, é iniciada as doações de sesmarias principalmente para militares e guerreiros comprometidos com à causa do Império. Deveriam também chegar ao oficialato, ser alfabetizado e saber realizar operações matemáticas.
Capela de Sant’Ana do Livramento
Com o avanço da formação da Pátria de Buenos Aires, os militares foram obrigados a recuar. A fronteira estava formada por duas brigadas, uma em Jaguarão e outra em Quaraí para guarnecer a região fronteiriça. Um dos pontos escolhidos pela tropa, inclui a escolha do terreno da Capela de Sant’Ana do Livramento. O terreno era pedregoso, com declives e de difícil comunicação com o restante da província. O local comandado pelo General José Egídio Gordilho de Barbuda era desorganizado e insalubre, em pouco tempo as epidemias ocasionaram diversas mortes e a superlotação no hospital de Livramento.
Tentativa de povoar
A escolha do local da construção da Capela, encontrava-se nas terras de José Pinheiro de Novilhar. Ao saber da construção da capela em suas terras, alegou pobreza e impossibilidade de doar parte de sua terra para este fim, mesmo sabendo das obrigações que lhe foram concedidas com a doação das sesmarias. Diante da situação, Antônio José de Menezes se comprometeu em adquirir e doar as terras para dar início ao povoado de Livramento. Primeiro tentaram fundar o povoado na várzea, tentativa não sucedida devido às péssimas condições do terreno. Depois escolheram a Coxilha Grande, localizada nas terras de Luciano Pinheiro que prontamente cedeu
87 parte de suas terras, iniciando assim as primeiras construções e a distribuição dos terrenos urbanos. Em 30 de julho de 1823 é concedido pelo Vigário João Batista
Capela à Curato
Leite de Oliveira Salgado, o licenciamento para a construção da Capela Nossa Senhora do Livramento. Data que oficializa a fundação oficial de Sant’Ana do Livramento. Mesmo que determinada a construção da Capela, os moradores do local contestavam que a Capela deveria ser nas terras de José Pinheiro de Novilhar. Nesse impasse de favoráveis e contrários à definitiva localização da Capela, em novembro de 1823, a Capela Nossa Senhora do Livramento havia sido demolida. Moradores acusaram Antônio José de Menezes, como sendo o responsável pela demolição, entretanto nunca ficou comprovado que teria cometido o fato. Decidido o local da nova construção da Capela, elevando-a à Curato, é destinada em novas terras doadas por Antônio José de Menezes e outros moradores (POTOKO, 2013). A cidade teve seu nome com a fusão de duas denominações.
Anna Ilha de Vargas
A primeira foi em função da construção da capela Nossa Senhora do Livramento, também conhecida por Nossa Senhora do Rio Pardo ou ainda do Bom Despacho. O segundo momento foi marcado em 1834, quando a fazendeira Anna Ilha de Vargas, doa uma imagem de Santa Anna para a cidade. Como sendo uma mulher influente e estimada pelos moradores, o local passou a se chama de Sant’Ana do Livramento. Em 1848 o Curato é elevado à Paróquia. Em 1938 através do Decreto-Lei nº 311, a cidade passa a ser chamar apenas Livramento. E em 13 de dezembro de 1957, é decretado pela lei estadual nº 3308, o nome definitivo da cidade: Sant’Ana do Livramento (POTOKO, 2013). No dia 07 de agosto de 1848, o Curato de Sant’Ana do Livramento é elevado à Freguesia e em fevereiro de 1857 é elevado à categoria de Vila. Neste mesmo período ocorre o desmembramento do território de Sant’Ana do Livramento do município de Alegrete. A Lei Providencial nº 1013, marca o momento em que Sant’Ana do Livramento é elevada à Cidade, em 06 de abril 1876 (CAGGIANI, 1983).
Desmembramento
88 Rio Cuñapirú
Segundo Ivo Caggiani (1983) as informações no Diário do Exército datado de agosto de 1851, diziam que o povoado se localizava ao sul do rio Cuñapirú e ao norte pela origem do Ibicuizinho, é fundada em forma elíptica e cercada por dois cerros, próximo à linha de divisa com o a República do Uruguay. Apresenta um pequeno comércio que abastece a região, onde também se encontram algumas residências cobertas de sapé e empaliçadas.
Mesajerías de Paysandú
Tardiamente, inicia-se a consolidação do povoado no lado uruguaio como uma medida de conter o avanço no lado brasileiro. Num primeiro instante, as “Mesajerías de Paysandu” interligavam com o território vizinho, depois foram introduzidas novas ideias, denominada por “La Aurora Oriental” de D. Pedro Carballo. O Parlamento Uruguaio fundou entre 1853 – 1862 algumas colônias na fronteira, a fim de estabelecer-se como nação uruguaia e para espalhar a língua espanhola como a língua nacional do Uruguay. Uma das colônias criadas foi a de Villa Ceballo, que atualmente é a cidade de Rivera (POTOKO, 2013).
Pueblo de Ceballos
Foi quando a Lei de 07 de maio de 1862 denominou o povoado como Pueblo de Ceballos em homenagem ao Governador e Vice-rei espanhol de Bueno Aires, D. Pedro Ceballo. A palavra Ceballos era sinônimo de agressividade, remetia a uma figura valente, que esteve envolvida em constantes batalhas contra o império brasileiro (POTOKO, 2013).
Intensificação comercial
A vila D. Pedro Ceballos surge em função de estratégias políticas e comerciais, pois seria um ponto importante de acesso de mercadorias para o Brasil. Ambos povoados se beneficiaram com o contrabando, em função da oscilação do comércio diante das crises enfrentadas (MIRANDA, 2000). A instalação deste povoado intensifica o crescimento e circulação de pedestres, tendo com influência econômica a criação pecuária e a relação comercial com o Brasil.
Cidade de Rivera
Em 26 de julho de 1867, por um decreto do Ministro Frangini, é criada a cidade de Rivera. A homenagem é dada ao Coronel Bernabé Rivera, sobrinho de Dom Frutuso Rivera, que lutou nas guerras de independência do Uruguay. Apesar disso, a população de
89 Rivera comemora a data de 07 de maio de 1962, como aniversário da cidade (POTOKO, 2013). Em 31 de outubro de 1857 são estabelecidos os limites na
Marcos fronteiriços
fronteira, conforme acordado entre os governos do Brasil e Uruguay. Uma área foi concedida ao Uruguay para a edificação da cidade e em contrapartida, uma faixa territorial de mesma proporção para o Brasil, para uma rua da Vila de Sant’Ana do Livramento. Com o passar dos anos, mais dois marcos foram inseridos na coxilha, junto à Vila de Sant’Ana do Livramento (POTOKO, 2013). O traçado de Rivera foi delimitado pelo agrimensor Martín Pays
Consolidação
em 1867. Foram estabelecidas 400 residências que iniciariam na atual avenida Sarandi. O desenvolvimento e crescimento se estendeu próximo à linha de fronteira, onde se consolidou a zona comercial (POTOKO, 2013). As cidades de Rivera e Santana do Livramento estão
Topografia acidentada
localizadas numa região com topografia acidentada e rodeada por cerros que proporcionam uma excelente visual para a natureza. A topografia foi determinante para a delimitação da área de fronteira, devido seu traçado característico, conforme mostra a Figura 10.
Figura 10: Topografia acidentada da região. Vista do Marco Divisório de Frontera 42-I em direção à Santana do Livramento Fonte: Google Street View, 2020.
Mesmo com a assinatura de um tratado Binacional, nunca foram estabelecidos os limites políticos entre os países, para manter a paz e não favorecer um em relação a outro. Assim, o traçado diferenciado de fronteira, foi uma alternativa de unir os dois povos, assim autodenominada a Fronteira da Paz (POTOKO, 2013).
Fronteira da Paz
90 Alteração da Linha
Em decorrência da Guerra Grande, o povoado brasileiro, fazendeiros e trabalhadores haviam se instalado no território uruguaio. O governo brasileiro propôs a alteração da linha de fronteira, que não foi aceita pelo Senado em 1858. No ano de 1860 é proposto pelo Dr. Ambrosio Velazco um projeto para fundar um povoado naquela região. Dois anos depois, é realizada a fundação do povoado permitindo a construção de prédios públicos e a construção de uma aduada terrestre (MUSSO, 2004).
Traçado reticulado
No ano de 1867 já haviam entorno de 200 habitantes, funcionava uma escola pública e demais povoados que viviam em estâncias e chácaras afora. No mesmo ano, ocorre novamente sua fundação, assim é concedido ao chefe político de Tacuarembó, Carlos Reyles, a autorização para manter ou alterar sua localização. O agrônomo Martín Pays realiza o traçado reticulado das quadras. Com o passar dos anos e com a consequente expansão urbana, o acesso às regiões dos cerros dava-se através de escadarias ou pela interrupção do traçado da rua (MUSSO, 2004).
Porto de Montevideo
A proximidade com o país vizinho, permitia que Sant’Ana do Livramento utilizasse com facilidade o porto de Montevideo para receber mercadorias oriundas da Europa. Elas entravam por Rivera e facilmente eram transportadas para a cidade brasileira. Cidades menos privilegiadas, uniram forçar até que o Ministério da Fazenda implantasse medidas que limitavam a expedição de guias emitidas por fiscais da fronteira (CAGGIANI, 1983).
Comercialização de produtos
Tal medida fez ressurgir o antigo contrabando de Rivera. Em outros tempos, Rivera já forneceu uma considerável quantidade de mercadorias para a Província. Dentre os produtos comercializados estão a erva, madeira de construção, banha, feijão, farinha e milho. A alternativa para combater o contrabando era o alfandegamento da Mesa de Rendas Gerais abaixando as tarifas aduaneiras. O Estado obrigava que o comércio deveria redirecionar o despache de mercadorias pelo porto de Uruguaiana. Transações que não eram lucrativas para as cidades, pois os fretes eram caros, a viagem demorada, sem contar nos extravios que ocorriam com frequência no rio Uruguai (CAGGIANI, 1983).
91 Como não havia ligação com o porto do Rio Grande, existia
Ampliação de ferrovias
uma série de complicações para o despache de mercadorias, sendo necessário cumprir uma parte do trajeto por ferrovias até Bagé ou coxilha de São Sebastião. Depois seria necessário um carro para conduzir a carga, que seguiria por estradas precárias e rios que nem sempre possibilitavam a passagem em determinadas épocas do ano (CAGGIANI, 1986). Diante de todos esses fatores, é que surge a urgência de ampliação e conexão da malha ferroviária no RS, para suprir às demandas enfrentadas na exportação da produção. 2.3.2 A chegada do trem A instalação da rede ferroviária no Uruguay ocorre por volta de 1865, fornecida por empresários locais. A primeira ligação da malha
Rede ferroviária uruguaia
se estende de Montevideo a Las Piedras em 1869, mais tarde se conectando a Duranzo. No ano de 1874 são incorporados capitais britânicos, assumindo a companhia. Aos poucos a linha vai se estendendo a outras cidades uruguaias. E em 1891, chegando a Tacuarembó e Rivera, região norte do país (Figura 7) (MUSSO, 2004). A partir do ano 1884 o Estado elabora leis que auxiliam na
Traçado ajustado
proposta de inserir novos traçados da linha férrea ou ajustes nos trechos existentes. O traçado é ajustado de maneira que contemple os principais povoados, incluindo todas as capitais dos departamentos uruguaios. Assim, fortalece-se a importância de Montevideo, sendo um ponto de escoamento das mercadorias e do transporte de passageiros para outras regiões do país (MUSSO, 2004). Enquanto isso, Sant’Ana do Livramento enfrentada empecilhos para agilizar o processo de construção da linha ferroviária,
Júlio Prates de Castilho
principalmente devido à localização geográfica desfavorável. Os representantes de Sant’Ana do Livramento se reuniram e enviaram uma carta ao Presidente do Estado Júlio Prates de Castilhos, solicitando verba para em 1896 serem iniciadas as obras da estrada de ferro Cacequi-Livramento (CAGGIANI, 1986). No ano de 1900 foi realizada a construção da Alfândega, mas somente sete anos depois foram aprovados os estudos definitivos e o orçamento apresentados pela Cia Auxiliare para a construção do ramal. Finalmente, foram iniciadas as obras. Sant’Ana do Livramento
Momento festivo
92 e Cacequi foram ligados através da linha férrea na primeira metade do século XX. A ferrovia chegou em Sant’Ana do Livramento em 30/10/1910, sendo um momento festivo para toda a comunidade. Em maio de 1912 foi inaugurado o trajeto entre Santana do Livramento e Rivera, sendo o Uruguay o primeiro país a ter contato direto com o Brasil por via férrea. A região era considerada muito próspera de crescimento e com valorização no setor comercial (IPHAE, 2002). Primeiro trem
Foi uma conquista muito comemorada por todos santanenses, como também, os vizinhos de Rivera. A população se dirigiu à estação para assistir à chegada do primeiro trem. Muitos carros ocupavam o largo fronteiro, que hoje foi transformado em uma pequena praça. A chegada do trem foi recebida por aplausos, foguetes e acordes musicais (CAGGIANI, 1986).
Inauguração em 30 de outubro de 1910
A conexão de Santana do Livramento à linha de Rio GrandeBagé, o segundo ramal, foi aprovado em 1911, pela Empresa Construtora Rio Grande do Sul. A primeira parte do ramal, foi inaugurado em 1925, que ia de São Sebastião a Dom Pedrito. A segunda parte, que interligava Dom Pedrito à Santana do Livramento foi entregue em 1943, executada pelo 1º Batalhão Ferroviário. A estação de Santana do Livramento (Figura 11), foi construída pela Compagnie Auxiliarie des Chemins de Ferau Brésil, sob orientação do engenheiro Otacílio Pereira e do empreiteiro Antônio Alves Ramos. A data de inauguração foi em 30 de outubro de 1910 e desativada em 03 de fevereiro de 1996, de acordo com a reportagem ZH de 08/04/2001 (IPHAE, 2002).
Figura 11: Estação Férrea de Santana do Livramento, BR. Fonte: Acervo da autora, 2019.
93 A estação é caracterizada como médio porte, feita em alvenaria
Aspectos construtivos
com dois pavimentos. Apresenta beirais em múltiplas águas, com telhas francesas. A cobertura da plataforma de embarque e desembarque é telha de fibrocimento, e conecta com um dos armazéns laterais à edificação. As tipologias dos vãos são em arco pleno no térreo e verga reta no pavimento superior. O acesso principal é marcado por pórtico, a porta principal com verga abatida e molduras em massa. Apresenta corpo saliente no piso superior, coroado por frontão curvo. Complementa com dois terraços laterais com dimensões distintas (IPHAE, 2002). A exportação da mercadoria era facilmente acessada até o porto de Montevideo, que apresentava um serviço de maior qualidade
Favorecimento uruguaio
e mais barato em relação ao serviço brasileiro. Nesse sentido, a cobrança de taxas e a utilização do serviço de fretes que poderia ficar no Rio Grande do Sul, acaba favorecendo a economia uruguaia PESAVENTO, 1980). A inserção da modalidade ferroviária no território cria uma série
Recentralização
de pequenos núcleos populacionais. A conexão entre estações férreas fomenta a atividade de intercâmbio, gerando um efeito de recentralização. Em geral, as cidades que possuíam a rede ferroviária ou as que eram terminais de rede, foram se fortalecendo, principalmente as que possuíam maior capacidade de produção (MUSSO, 2004). A estação férrea de Rivera encontra-se numa região mais afastada da linha da fronteira. A Figura 12, apresenta o registro da estação no lado uruguaio.
Figura 12: Estação Férrea de Rivera, UY. Fonte: Acervo da autora, 2019.
94 Características
Não foram encontradas registros ou informações sobre a estação de Rivera. A edificação possui um pavimento, construída com blocos de pedra de areia. Os vãos possuem verga reta e esquadrias de madeira com caixilhos de vidro. Possui cobertura em duas águas com telha francesa. Ainda são encontrados mobiliários originais: como bancos, luminárias, bebedouros, relógio e o sino.25
Cidade “única”
Segundo Rona (1963 apud Potoko, 2013) as cidades de fronteira cresceram com mais contato com a cidade vizinha, do que com as cidades mais importantes de seu próprio país. A estrada de Rivera a Montevideo, por exemplo, foi concluída somente em 1953. Assim, as cidades formadas ao longo da fronteira são gêmeas, constituindo-se de certa maneira como uma cidade única, sendo a fronteira apenas uma delimitação por uma rua ou por um rio. O crescimento espontâneo em ambas cidades fez com que as
Novos limites
construções ultrapassassem com frequência os limites de divisa do país vizinho. Em 1920 foram acordados novos limites que considerassem as edificações de cada território. E no ano de 1923, através da Conferência de Comissão Mista, é realizado uma Praça Internacional (Figura 13), em uma região pouco ocupada nas cidades (CAGGIANI, 1983).
Figura 13: Praça Interacional com obelisco indicando a divisa entre Brasil e Uruguay. Fonte: Google Street View, 2020.
25
Informações descritivas pela autora. Como são poucas as informações sobre a estação, optou-se em relatar alguns itens observados in loco para maior conhecimento sobre a estação férrea.
95 A Praça foi inaugurada em 26 de fevereiro de 1943,
Símbolo fraternal
pertencente aos dois países, mais do que criar uma área recreativa, representa um símbolo de amizade fraternal que se cria, cada vez mais, entre os brasileiros e uruguaios. As cidades da fronteira cresceram de maneira mútua, consolidando-se em uma só comunidade, uma se beneficiava com a modernização da outra. As charqueadas também contribuíram para o desenvolvimento
Charqueadas
da região. Em Santana do Livramento, a primeira charqueada é implantada em 1903. O município também contava com dois importantes frigoríficos ingleses, o Armour do Brasil (1917) e Wilson (1919). Em ambas cidades, a relação com o porto de Montevideo era bastante intensa. Santana do Livramento exportava tropas de gado de consumo, cavalhadas e muares, assim como a comercialização de tecidos (MIRANDA, 2000). Entretanto, o volume de mercadorias e a quantidade de passageiros não eram muito significativas em relação a faixa territorial
Deterioração das ferrovias
do Uruguay. O setor industrial não teve significativo desenvolvimento, com trechos curtos da malha ferroviária que dificultavam o serviço. O problema acaba se agravando com o passar dos anos, quando são incluídas alternativas por meio das rodovias, chegando a deterioração de forma gradual da rede ferroviária (MUSSO, 2004). Para incentivar o comércio do lado uruguaio, que se
Free Shops
encontrava em uma situação mais desfavorável em relação ao Brasil, são autorizadas as instalações dos Free Shops. Medida que contribui com o tradicional movimento e fluxo de pedestres na zona fronteiriça (MUSSO, 2004). No ano de 1992, é realizado um estudo para a expansão da rede ferroviária conectando ao porto seco no lado brasileiro. Entretanto, o projeto foi inviabilizado devido ao elevado custo, optando-se pelo melhoramento da linha atual na estação de Livramento. A partir do ano de 1997, são desenvolvidas propostas de ambos governos nacionais, a fim de discutirem e coordenarem o desenvolvimento urbano tanto na cidade de Rivera quanto em Livramento (MUSSO, 2004).
Desenvolvimento conjunto
96
capĂtulo 3
97 3. O método Cartográfico A cartografia é composta por um conjunto de informações de
Formas de expressão
cunho científico, político, técnico e artístico. Consiste na elaboração de mapas ou de outras formas de expressão de objetos. É muito comum a utilização de mapas como ferramenta de apresentação, comunicação, representação de algo ou de uma porção no espaço. Os mapas podem ser comunicados de diversas maneiras, é
Comunicação
possível explorar um universo de sensações, através de informações visuais, táteis, sonoras, olfativas, gustativas. Os mapas querem comunicar uma realidade do mundo, mas como em qualquer meio de comunicação, correm o risco de distorcer realidades (ROCHA, 2008). Durante a primeira metade do século XX, as cidades estiveram
Transformações
voltadas para as ideologias modernistas e pós-modernistas, que pregavam a sistematização, racionalidade e o funcionalismo. A ascensão do período industrial promoveu grandes transformações nos centros urbanos, principalmente com a vinda de moradores rurais para trabalharem na cidade com a perspectivas de melhorar a qualidade de vida. Outro movimento com repercussão foi na área artística e cultural, através do período da vanguarda, que se fortalecia juntamente com as transformações sociais que marcaram o começo do século (ROCHA, 2008). Posteriormente, por volta dos anos cinquenta, surge um novo
Construir situações
movimento de ideias de vivenciar e experimentar as cidades. Essas novas formas perpassam o funcionalismo enraizado pelo modernismo, adentrando num novo movimento que tinha como base a “construção de situações”, assim ficou conhecido o futuro grupo do situacionismo (JACQUES, 2003). O movimento dos situacionistas foi fundado por Guy-Ernest Debord (1931-1994) que teve grandes influências dos Movimentos Dadaísta e Surrealista. A construção do grupo não consistia na formação de uma doutrina ou de novas teorias urbanas, mas baseavase em criticar o urbanismo moderno que priorizava a separação das funções no espaço - como é o exemplo de Brasília (JACQUES, 2012).
Situacionistas
98 Novos adeptos
O movimento Internacional Situacionista (IS) foi fundado na França, mas outros grupos espalhados pela Europa já vinham desenvolvendo atividades sobre os mesmos assuntos de maneira independente. Em seguida, os grupos receberam novos adeptos espalhados por países como Itália, França, Inglaterra, Alemanha, Bélgica, Holanda, Dinamarca e Argélia (JACQUES, 2003).
Psicogeografia e deriva
Os pensamentos urbanos do grupo estavam voltados à psicogeografia e à deriva. A psicogeografia está relacionada aos efeitos gerados em um espaço geográfico que incidem justamente no comportamento afetivo dos indivíduos. Enquanto que a deriva era na prática a experiência da passagem rápida em lugares distintos, o andar sem rumo que se mescla em função do cenário vivenciado. (JACQUES, 2012)
Motivação coletiva
Essas novas técnicas introduziram novas maneiras de apreensão das cidades, que valorizam as atividades de lazer como meios importantes na sociedade. A proposta de “criar situações”, inventar novos jogos e interações é uma maneira de pensar novas formas de construção urbana e coletiva nas cidades. Era uma maneira de criticar o planejamento urbano monopolizado por urbanistas e planejadores, que não consideravam as motivações coletivas vindas da população em geral (JACQUES, 2003).
Revolução urbana
Acreditava-se que somente seria instaurada uma mudança na cidade, se primeiro fossem realizadas revoluções na própria vida cotidiana, estas que evitavam a alienação ou passividade por parte da sociedade. Os situacionistas acreditavam que através da revolução urbana é que haveriam transformações na arquitetura e urbanismo e não ao contrário, como era convicto pelos arquitetos e urbanistas modernos – como Le Corbusier que acreditava que a arquitetura poderia evitar a revolução.
Conjunto de ideias
O movimento situacionista gerou um conjunto de ideias que eram únicas e inovadoras para aquele período, mas que até hoje poderiam ser usadas como inspiração para experimentar os espaços urbanos de outras formas. Entretanto, salienta-se que não chegou a surgir um modelo de espaço urbano criado pelos situacionistas, mas uma forma situacionista que possibilitou transformar o modo de viver
99 e experimentar a cidade na época. Outro ponto interessante é o papel da população não mais como meros coadjuvantes, mas como agentes ativos no processo de construção e transformação dos espaços habitados por eles, impedindo tipos de espetacularização urbana vindas de qualquer natureza. As questões artísticas foram inseridas inicialmente na
Maio de 68
preocupação urbanística e posteriormente, introduzida nas esferas políticas e revolucionárias. A atuação dos indivíduos nas causas coletivas, potencializava o comprometimento de serem capazes de mudar suas próprias condições de vida. Cabia a eles a mudança que tanto almejavam para uma cidade mais humana. Muitas dessas ações foram reforçadas através da participação assídua ocorrida nos eventos de Maio de 196826 em Paris, que teve repercussão em vários países. Depois do fortalecimento repentino, o movimento entrou em crise dissolvendo-se em 1972. Além das críticas aos modos de organização e ocupação dos
Críticas sociais
espaços urbanos, o período também fomentou que fosse atingido um olhar mais abrangente aos acontecimentos políticos mundiais. Segundo Jacques (2003), em seu artigo ressalta que os assuntos do grupo também estavam direcionados às questões: “ideológicas, revolucionárias, anti-capitalistas, antialienantes e antiespetaculares (o que não deixou de estar relacionado à questão urbana.)”. Outros autores, de áreas distintas do conhecimento, também reforçam a importância da inquietação em relação às questões políticas, econômicas e sociais do sistema hegemônico capitalista. Para esta pesquisa iremos introduzir em especial as ideias propostas pelos filósofos franceses Gilles Deleuze (1925-1995) e Félix Guattari (1930-1992) que auxiliam a compreensão para entender outras formas de ver e experimentar a cidade.
26
O movimento de Maio de 68 ocorreu na França com o intuito de renovar valores em relação à cultura conservadora da época. À medida que o movimento ganha força são inseridas lutas de cunho político e social, como protestos estudantis, greve dos trabalhadores e a renúncia presidencial de Charles de Gaulle. As atividades culturais recebem destaque, ganhando espaço num mundo que pulsava por mudanças de comportamentos.
Filósofos franceses
100 3.1 Cartografia dos Sentidos Leituras diferentes
Por meio da filosofia, busca-se compreender um conjunto de ideias que analisa os espaços urbanos, a partir de perspectivas diferentes das leituras já preestabelecidas e estáticas das cidades. O método cartográfico se propõe a olhar a cidade com outros olhos, levando em consideração os detalhes que na maioria das vezes são descartados em outras abordagens.
Mil Platôs
Os autores Gilles Deleuze e Félix Guattari iniciaram um trabalho em conjunto, a partir dos acontecimentos de Maio de 68. E assim, iniciaram a produção de materiais que tratassem sobre questões
abrangentes
do
conhecimento.
Um
dos
trabalhos
desenvolvidos foi a coleção Mil Platôs (1980) que se refere aos mil níveis de possibilidades de interpretação de um mesmo fenômeno e evento. Filosofia da diferença
A questão pode ser introduzida através da ideia trazida pelos autores como “a filosofia da diferença”, que tem como premissa enaltecer o que é diferente, o menor, o que rompe com o sistema estrutural, aquilo que escapa, as linhas de fuga e os devires. A partir desse pensamento, é que se propõe nesta pesquisa a composição de mapas que revelem o que transborda nesses territórios de abandono na fronteira.
Mapear processos
A cartografia tem como propósito uma forma de averiguação que visa mapear um processo de uma determinada experiência. A ideia contraria o plano de representação de objetos, muitas vezes elaborado em mapas urbanos desenhado por ruas, quadras, lotes, edificações, áreas verdes, cursos d’água. Os mapas cartográficos expressam sensações movidas com base em uma experiência, que revelam as singularidades vividas e sentidas em um território, mas dificilmente ditas.
Plano da experiência
A elaboração dos mapas visa aproximar o pesquisador com o objeto pesquisado, possibilitando que sejam acessadas e valorizadas as multiplicidades e a riqueza conceitual no plano da experiência humana. Deleuze e Guattari (2011) trazem o conceito de rizoma como forma de atingir modos de produção do conhecimento. A ideia rompe com a estrutura hierárquica e centralizadora do poder.
101 Podemos pensar na árvore como imagem do mundo. Uma
Árvore-raiz
estrutura rígida com hierarquia de uma árvore-raiz – uma realidade natural pivotante, com seu eixo e cercada por folhas (Figura 14). Existe uma lógica binária da dicotomia, ou é de uma forma ou de outra (o bem e o mal, o forte e o fraco, o maior e o menor). O pensamento árvore-raiz não permite a multiplicidade, pois restringe o pensamento e as possibilidade de uma forma estruturalmente preestabelecida, pois necessita de uma forte unidade principal (DELEUZE E GUATTARI, 2011). Por sua vez, o pensamento rizomático é um regime de
Rizoma
funcionamento que rompe a verticalização e centralização (Figura 15). A estrutura da grama se comporta de maneira rizomática, pois ela cresce e se espraia pela superfície, não tem profundidade e hierarquia, mas tece-se uma trama.
Figura 14: Sistema Arvoreraiz (à esquerda), fortalece a centralização e hierarquia. Fonte: https://filovida.org/wpcontent/uploads/2016/03/R AIZES-NO-INFERNO1. Figura 15: Sistema rizomático (à direita), enaltece a horizontalidade e multiplicidade. Fonte: https://chaostrophob.bandc amp.com/track/rizoma-240
O rizoma atinge maior alcance, cresce por todos os lados, vai pelas bordas. Não possui centralidade, nem começo nem fim. Possui múltiplas entradas e saídas, é o que extrapola, o que excede, o que escapa e faz fugir do habitual. São múltiplas as forças que atuam no plano da experiência, que se adaptam e conectam de maneiras que fogem do que é padronizado. Não importa definir o que é, mas como funciona o conceito do rizoma num território, o que faz movimentar o desejo que se abre e que define a sociedade através de suas linhas de fuga.
102 Princípios do rizoma
Os autores Deleuze e Guattari (2011) reforçam seis princípios que auxiliam para a compreensão sobre rizoma: o primeiro e segundo princípios são de conexão e de heterogeneidade, os pontos de um rizoma podem (e devem) ser conectados a qualquer outro ponto. São colocados em jogo signos e estados de coisas diferentes, por exemplo, não existe uma universalidade da linguagem e sim um conjunto de dialetos, gírias, gestuais, perceptuais e assim por diante. O terceiro princípio trata da multiplicidade, quando o múltiplo ganha notoriedade como substantivo, não há mais relação com o uno - sujeito e o objeto. O que se apresenta são determinações, grandezas e dimensões que somente aparecem quando mudam de natureza. O quarto princípio é o de ruptura assignificante, diverge dos cortes significantes que dividem as estruturas. O rizoma pode romper em qualquer parte que consegue retomar segundo uma ou outra linha. Corresponde à linhas de segmentaridade que são estratificadas, territorializadas, organizadas entre tantas possibilidades, mas que podem corresponder à linha de desterritorialização onde o rizoma transborda/extravasa sem parar. Por fim, o quinto e o sexto princípio, de cartografia e de decalcomania. O rizoma não se explica através de um modelo estrutural, pois não corresponde à ideia de eixo genético ou de estrutura profunda. O rizoma não é decalque, não reproduz ou imita “o mesmo do mesmo”, mas é mapa que abre inteiramente para um plano de consistência.
Meio de construção
Para Deleuze e Guattari (2011) o mapa não imita, não é decalque de uma experiência fixada no real, mas é um meio de construção. Ele permite a conexão entre os campos e possibilita a plena abertura sobre o plano da consistência. Pode ser realizado em uma parede, feito como uma obra de arte, como ações políticas, numa performance ou como quiser. Não há um manual ou regras que indiquem um passo a passo para fazê-lo, pois é adaptável à diversas inserções: O mapa é aberto, é conectável em todas as suas dimensões, desmontável, reversível, suscetível de receber modificações constantemente. Ele pode ser rasgado, revertido, adaptar-se a montagens de qualquer natureza, ser preparado por um indivíduo, um grupo, uma formação social (DELEUZE E GUATTARI, 2011, p. 30).
103 Estar imerso no plano da experiência, possibilita que o sujeito
Múltiplas forças
fique diante de acontecimentos que agem em virtude de múltiplas forças. Não há hierarquia ou uma linearidade dos componentes, e sim um conjunto de atravessamentos de um mundo rico e complexo que atuam de maneira rizomática. A partir dessas forças, é que se torna possível aflorar o processo criativo (DELEUZE & GUATTARI, 2011). A cartografia permite uma adaptabilidade durante o processo
Adaptabilidade
construtivo, podendo modificar-se à medida que forem surgindo os questionamentos de uma pesquisa. Ela não traz perguntas prontas, mas faz pensá-las e elaborá-las no decorrer do processo, palavra essencial do método cartográfico. Alguns autores trabalharam com a cartografia direcionados para múltiplos olhares, como a corpografia trazida por Paola Jacques, a cartografia sentimental por Suely Rolnik após trabalho conjunto com Félix Guattari, a cartografia urbana, a cartografia social, e assim por diante. Para esta pesquisa, no entanto, será utilizada a Cartografia dos sentidos, esta que já vem sendo desenvolvida principalmente na área
Cartografia dos sentidos
das artes. Os sentidos são a parte mais íntima de nossa relação com o mundo e a cartografia dos sentidos consiste em um plano de relações que integra os modos de fazer e saber vivenciados no plano da experiência (MENEZES, 2016). A cartografia dos sentidos busca mapear os acontecimentos
Vivenciar o abandono
vivenciados nesses abandonos. Onde os resquícios do sistema ferroviário ainda resistem na paisagem urbana, mesmo que em pontos remotos da cidade. São os vestígios do trilho do trem que nos levam ao encontro das estações férreas e durante o caminho que surgem as inquietações ocasionadas pelo abandono. Os atravessamentos que nos cercam diante do abandono só são colocados à prova quando vivenciado, mexe com os sentimentos, com as incertezas e com os sentidos no nosso corpo. Mas como perguntaria Alice: “em que sentido? Em que sentido?”. Ora, em todos e ao mesmo tempo.
Sentimentos
104 3.2 Procedimentos metodológicos 3.2.1 Pedagogia da viagem Explorar territórios
A proposta de descobrir pontos específicos na cidade, é uma ação que coloca o indivíduo por completo no plano da experiência. É um caminhar pelas frestas da cidade, os pontos não turísticos, os locais menos visados, mas que mais apresentam potência para as descobertas. Assim é o procedimento da pedagogia da viagem, que consiste em explorar contextos nos territórios, que sempre estiveram ali, porém ocultos.
Três etapas
Segundo os autores Rocha et al (2017) que desenvolveram a ideia da pedagogia da viagem, basicamente, ela pode ser dividida em três etapas fundamentais: a primeira consiste na programação da viagem, fazer as malas, separar os equipamentos para levar. O segundo momento é o da experiência da viagem, abrir-se ao novo, algumas coisas são carregadas outras deixadas pelo caminho. E o terceiro passo é o retorno, desfazer as malas e retirar toda a “bagagem” que foi absorvida no processo da experiência.
Imprevistos
Apesar de haver um preparo e planejamento para o lugar que se viaja, as descobertas no caminho são imprevisíveis, são sentidas e vivenciadas in loco. Nem tudo pode ser previsto, como comenta Derrida (2012, p.70): Um acontecimento é o que vem; a vinda do outro como acontecimento só é um acontecimento digno desse nome, isto é, um acontecimento diruptivo, inaugural, singular, na medida em que precisamente não o vemos vir.
Pré-ver
O que se pode “pré-ver”, é um fato que é neutralizado, pois permite que antecipadamente seja administrado, logo não é um acontecimento propriamente dito. Quando falado em uma experiência do acontecimento, ela é do tipo passivo, onde acontece o que não se consegue ver o que vem, é imprevisível, inesperado e surpreendente (DERRIDA, 2012).
Desconhecido
A pedagogia da viagem propõe caminhar pelas frestas, pelas bordas, pelos “entre” das cidades. Foge-se do que é habitual, dicotômico, do que é “mais seguro”, pois nos força a ir atrás do desconhecido, do que é minorizado, dos atalhos, dos lugares que têm
105 potência, que fazem provocar sensações únicas por onde se percorre. É descobrir um mundo da complexidade e das multiplicidades (ROCHA et al, 2017). Uma viagem que já se sabe o que será encontrado, torna-se
Viagem/experiência
algo previsível. Seria um encontro que nos coloca em presença com o presente, assim que se chega ao local, acabou a viagem, pois vivemos a experiência, a grosso modo. Mas o que queremos trazer aqui, é outra interpretação da experiência. A experiência que nos coloca diante de nossos próprios desafios, quando nos dispusemos a partir para uma viagem ameaçadora, daquilo que não está no script. Afinal, se não fosse desse modo não seria uma viagem, seria apenas turismo (DERRIDA, 2012). Os territórios da multiplicidade é que possibilitam o processo
Transbordar
de criação, pois “se definem pelo fora: pela linha abstrata, linha de fuga ou de desterritorialização segundo a qual elas mudam de natureza ao se conectarem às outras” (DELEUZE E GUATTARI, 2011). É o que extravasa, o que fura da estrutura rígida e asfixiante. 3.2.2 Caminhar pelas bordas Quando nos propomos a descobrir um território novo, isto nos
Estado de alerta
desafia e nos coloca em uma situação de alerta, em estado de risco. Arriscar-se caminhar por lugares não habituais, caminhar pelos entre lugares, em busca de experimentar acontecimentos. A cartografia implica na reversão do método tradicional. Pois
Tríade
não vamos à campo com perguntas prontas em busca de respostas. O que acontece, é que durante o caminhar são lançadas as metas, no decorrer do percurso que são orientados os efeitos do processo na tríade objeto de pesquisa, pesquisador e resultados. O processo exige uma imersão do pesquisador no plano da experiência, onde o conhecer e fazer são indissociáveis (PASSOS & BARROS, 2015). Caminhar é se aventurar, é se colocar em perigo, pois não conseguimos prever o que pode acontecer. É encarar o desafio e seguir, atento e sensível ao que se pode descobrir pelo caminho. O caminhar sem rumo, à deriva, à toa pela cidade é uma prática já
Descobertas
106 adotada anteriormente. Trazida como uma prática que nos faz sair da zona de conforto e ver o que os espaços urbanos nos proporcionam. Ato de caminhar
O autor Francesco Careri (2013), argumenta que o ato de caminhar surgiu a partir das necessidades mais básicas do ser humano que é de se alimentar e garantir sua sobrevivência. Mais adiante, a prática se transformou numa fórmula simbólica permitindo que o mundo fosse habitado e transformado através da arquitetura que se tem desenvolvido.
Prática estética
Percorrer um trajeto como ritual religioso, como consagração, como dança, narração, adoração, por muito tempo esteve presente na relação do homem com o território. Com o passar dos anos, inicia-se uma transformação do ato de caminhar, desvinculando às crenças religiosas ou literárias, adotando-se a caminhada como prática estética, muitas vezes como uma alternativa de atingir lugares banais ou áreas residuais nas cidades (CARERI, 2013).
Grupo Stalker
Por volta de 1995, surge um grupo que se propõe percorrer no meio das “aménsias urbanas” de alguns lugares da Europa. O grupo denominado de Stalker, onde experimenta a cidade do ponto de vista da errância. São lugares residuais que por carecerem de controle “produziram um sistema de espaços vazios (o mar do arquipélago) que podem ser percorridos indo à deriva” (CARERI, 2013, p. 30). O autor ainda afirma que são nesses territórios que surgem zonas de fluxo, podendo superar a separação de espaços nômades e sedentários.
Cidade nômade
Na verdade, sempre houve permeabilidade entre o nomadismo e o sedentarismo. Pode-se pensar nos espaços vazios nas cidades como zonas nômades e lugares cheios como espaços sedentários. São zonas muito próximas e suscetíveis às constantes trocas de uma em relação à outra. A cidade nômade se encontra dentro da cidade sedentária, utiliza-se de seus resíduos e em compensação oferece sua presença como possibilidade de ser percorrida.
Dar visibilidade
O caminhar por esses espaços propicia que sejam criados instrumentos cognitivos e projetuais aliados às práticas da arquitetura. São formas de “reconhecer dentro do caos das periferias uma geografia e como meio através do qual inventar novas modalidades de intervenção nos espaços públicos metropolitanos” como uma
107 alternativa de ganharem visibilidade e reconhecimento (CARERI, 2013, p. 32). As zonas urbanas se desenvolvem em tempos e velocidades
Dinâmicas diferentes
distintas. Nos centros urbanos há, de certo modo, uma estagnação do espaço-tempo, pouco se transforma e quando ocorre é sob rigorosa vigilância. As zonas marginais apresentam maior dinamismo e observa-se “o devir de um organismo vital que se transforma, deixando ao seu redor e no seu interior partes inteiras de território ao abandono e mais dificilmente controláveis” (CARERI, 2013, p. 158). São nos espaços do vazio, do abandono, do resíduo que é
Amnésias urbanas
encontrada a multiplicidade e o devir inconsciente da sociedade. As “amnésias urbana” - já mencionada por Careri – não estão somente no aguardo para serem “preenchidas de coisas”, mas estão à espera de um preenchimento de significados. São espaços vivos, que pulsam, que vibram e urgem por visibilidade. É uma não cidade, mas que também é cidade. Ela não precisa ser modificada, mas reconhecida como parte de um território na cidade que apresenta dinâmicas e estruturas singulares, necessitando ainda de estudo e compreensão. 3.2.3 Entrevistas cartográficas Para compreendermos um espaço tão dinâmico e complexo,
Dar voz
são adotadas medidas complementares que possam exprimir como são os territórios do abandono nas estações férreas. Para este fim, adota-se as entrevistas cartográficas como uma ferramenta potente e que dá voz às pessoas que fazem parte do contexto urbano. As entrevistas têm caráter qualitativo, logo não importa a
Entrevista qualitativa
quantidade de entrevistas coletas nas cidades, mas sim, o que elas têm a dizer em relação ao que é pesquisado. O que deve ser analisado são as intensidades das informações coletadas e o que potencializa o processo para descobrir pistas desses territórios do abandono. A cartografia como método, pressupõe uma pesquisaintervenção, pois se faz um mergulho no plano da experiência. O trabalho de uma pesquisa com intervenção, requer a análise de inferências coletivas, estas que devem ser locais e concretas. Uma vez que a cartografia se configura em mapear processos, deve-se
Inferências coletivas
108 analisar todos os atravessamentos possíveis que compõe um campo de pesquisa (PASSOS & BARROS, 2015). Produção de conhecimento
Não se trata de procedimentos individuais e subjetivos, mas de um conjunto de procedimentos que mesclados criam potencialidade de produção do conhecimento. Os autores Passos & Barros (2015, p. 21) complementam que: No campo, a intervenção não se dá em um único sentido. É essa ampliação dos sentidos da intervenção que vai aumentando quando se considera agora uma dinâmica transductiva a partir da qual as existências se atualizam, as instituições se organizam e as formas de resistência se impõe contra os regimes de assujeitamento e as paralisias sintomáticas.
Intervenção
A cartografia nada mais é do que uma intervenção que gera conhecimento. E o método não escapa de seguir uma direção clínicopolítica envolvendo implicações para uma pesquisa-intervenção. Intervir implica em uma dissolução do conjunto de forças que atuam no plano da experiência, que está repleto de energia em potencial (PASSOS & BARROS, 2015). 3.2.4 Mapas
Expressar sensações
Os mapas trazidos para esta pesquisa, diferem-se dos mapas tidos como tradicionais. Os mapas cartográficos são os que expressam sensações, revelam sentidos, são ferramentas utilizadas para comunicar algo sobre uma determinada realidade. É uma ferramenta de comunicação, registro e expressão aquilo que foi sentido num determinado momento.
Mapas não estáticos
Necessariamente, não são mapas estático. Eles foram realizados em um determinado dia, horário, dia da semana, numa determinada condição política e social que se encontrava. Talvez, se fosse retornado ao local em outro momento, tudo já tenha se transformado, e seja possível criar outros mapas de sensações.
O que extravasa
Os mapas propostos neste trabalho requerem um olhar que vá além da forma da cidade, da configuração física e dos elementos materiais que compõe um território. Trata-se também do que historicamente transbordou em sua forma, sejam as moradias irregulares, as regiões periféricas ou as frestas da cidade, é tudo aquilo
109 que foge das regras e planejamento urbano. Soma-se a isso, as manifestações dos habitantes, através de reivindicações, modos de viver, conflitos, interações (VELLOSO, 2018). A autora Rita Velloso (2018) comenta que na filosofia benjaminiana27 pensar a cidade requer uma construção do
Fantasmagoria e Fragmento
entendimento da vida urbana a partir da visibilidade, ou seja, que faz ver resquícios, ranhuras, imperfeições, brechas. O que ressalta nesse pensamento é fundamentado em duas vertentes: uma é a fantasmagoria: o que perdura no presente que faz com que uma ação posterior possa vir a acontecer. E a outra diz respeito ao fragmento: aquilo que se permite revelar com o passar do tempo e idade de um lugar. Os acontecimentos revelados no caminho são absorvidos e
Heterogeneidades
ganham visibilidade nos mapas cartográficos. São mapas do heterogêneo, do múltiplo, de releituras da paisagem, das cenas do cotidiano que transcendem aspectos físicos e hegemônicos. São mapas que revelam um mundo rico e complexo que permeia por processos de transição e da transversalidade universal (ROCHA, 2008). Esse é o tipo de mapa que é único, singular. A experiência de
Singular
cada pessoa é individual, apresenta suas próprias intensidades e as potencialidade que foram geradas a partir daquela experiência. O processo de construção da cartografia também se comporta dessa maneira, o pesquisador não tem espaço para a neutralidade, pois nele são atravessados acontecimentos que refletem e fazem aflorar reflexos políticos e sociais que nos forçam ao processo de criação (PASSOS & BARROS, 2015). Os mapas são formados por um conjunto de agenciamentos que nos atravessam diante de um acontecimento. É o que transborda, extravasa e “resta” diante de diversos sentimentos que podem ser sentidos. Deleuze & Guattari (2002, p.22) ainda reforçam que:
27
Walter Benjamim (1892-1940) foi um filósofo, ensaísta, crítico literário e tradutor alemão. Deixou vasta obra literária, além de ter contribuído para a teoria estética, para o pensamento político, para a filosofia e para a história. Fonte: https://www.ebiografia.com/walter_benjamin/
Agenciamentos
110 [...] um agenciamento é precisamente este crescimento das dimensões numa multiplicidade que muda necessariamente de natureza à medida que ela aumenta suas conexões.
Conjunto de fatores
A cartografia dos sentidos trazida nesta pesquisa, pretende revelar tudo o que aflorou durante o percurso da linha do trem até a estação férrea de cada cidade-gêmea. Cada marca deixada naquele território revela um pouco dos detalhes desse abandono. É o trecho do trilho do trem faltando, a narrativa de um morador, um conjunto de fotografias mostrando o trajeto, a malha ferroviária completamente encoberta pela vegetação. As pistas do abandono de estações férreas não ocorrer a partir de apenas um procedimento, mas no conjunto de todos os acontecimentos experenciados.
Contato com a realidade
A importância da aproximação da pesquisadora com o plano da experiência, faz com que o contato do profissional da arquitetura e urbanismo, coloque-se como agente do processo do conhecimento de uma determinada realidade. Aproxima o sujeito com a pesquisa. Os sentidos proporcionam o poder da imaginação, da criação e do conhecimento, nos trazem para perto da realidade, e assim poderemos nos reaproximar com o dentro da arquitetura para pensar no fora de uma maneira mais palpável.
Investigar
A cartografia utilizada como método para esta pesquisa é uma forma de abarcam diferentes mecanismos que auxiliam no processo de investigar um território. O quadro 2, foi criado com a intenção de retomar os objetivos específicos desta pesquisa e, assim, poder relacionar cada item com o respectivo procedimento metodológico.
objetivos específicos
Quadro 2: Retomada dos Objetivos específicos. Fonte: Elaborado pela autora, 2020.
• I) Ouvir e registrar o sentimento provocado pelo abandono das estações para quem ocupa ou vive aquele espaço; • II) Mapear as sensações vivenciadas pelo abandono no percurso da linha férrea até a estação férrea; • III) Compreender e analisar as interações vivenciadas pelo abandono das estações férreas na contemporaneidade.
111 Já a tabela 1, apresenta os procedimentos metodológicos mencionados anteriormente e a relação que envolve cada uma das etapas da construção do pensamento deste trabalho28.
dispositivo?
sujeito da ação?
o que faz?
atende à qual objetivo?
pedagogia da viagem
caminhar pelas bordas
entrevistas cartográficas
mapas
Diário de campo
App de caminhada + câmera fotográfica
Gravador
Mapa dos sentidos
Autora
Autora
Moradores e usuários do local
Autora
Registros, escritas, desenhos
Registra o trajeto do trilho do trem até à estação férrea
Ouvir as vozes de quem vive/habita esses espaços
Revela as sensações mais marcantes
I e II
II e III
I
II e III
Cabe salientar que todas as relações possuem uma flexibilização, não são estruturas rígidas apresentadas. O importante é estar à espreita a todos os movimentos envolvidos no plano da experiência, pois eles interagem entre si, formando uma trama de sustentação. A partir dessa coexistência de dados é que será possível compreender mais afundo esse complexo espaço do abandono de estações férreas na fronteira Brasil – Uruguay.
Ressalta-se que o trabalho consiste na “produção de subjetividade”, que implicam os modos de existência durante o processo. A subjetividade é: “o conjunto das condições que torna possível que instâncias individuais e/ou coletivas estejam em posição de emergir como território existencial autoreferencial, em adjacência ou em relação de delimitação com uma alteridade ela mesma subjetiva” (GUATTARI, 1992 p, 19). 28
Tabela 1: Esquematização para realizar os procedimentos metodológicos. Fonte: Elaborado pela autora, 2020.
Coexistência
112
capĂtulo 4
113
4. Resultados e discussões O primeiro entendimento que se deve ter em uma pesquisa
No andamento
cartográfica é que se desenvolve a partir de um processo. São mapeados processos de um acontecimento, a fim de compreender e capturar cada detalhe existente em um território. Assim sendo, é necessário compreender que nenhum resultado surge de algo prédefinido ou pré-determinado, pois não existem perguntas prontas na cartografia, elas surgem conforme o percorrer da caminhada. Desta
maneira,
optou-se
em
apresentar
as
etapas
Etapas
desenvolvidas no processo do abandono de estações férreas na fronteira Brasil – Uruguay. A primeira ação implica na descrição da caminhada realizada na linha do trem até a estação férrea. Entendese que as pistas do abandono não são vistas e sentidas somente na edificação, mas em todo o percorrer de desativação da linha ferroviária na cidade. Assim, ao longo do trajeto foram tiradas fotografias, feitas anotações no diário de campo e entrevistas com moradores do entorno, para auxiliar no entendimento de como as pessoas e a própria cidade (governantes) lidam com os remanescentes do sistema ferroviário. O trajeto nas cidades-gêmeas de Jaguarão e Rio Branco foi
Caminhar com calma
realizado em dois dias diferentes. Por apresentarem uma distância considerável entre ambas estações férreas, optou-se em fazer o trajeto com tranquilidade em dois momentos, entendendo que a relevância da pesquisa se encontra nas singularidades e na atenção que se deve ter durante todo o percurso. O que não ocorreria se o percurso fosse realizado às pressas. Já as estações férreas de Santana do Livramento e Rivera foram percorridas no mesmo dia. A distância entre ambas possibilitava que o percurso fosse realizado com tranquilidade sem interrupção do trajeto. Percorrer o trajeto em tempos diferentes, um ou dois dias, não afeta no processo de análise dos resultados. Uma vez que a importância está na qualidade de cada percurso e não no tempo percorrido. Assim sendo, inicia-se a imersão no plano da experiência do abandono de estações férreas na fronteira Brasil – Uruguay.
Qualidade dos dados
114 4.1 O acontecimento | Jaguarão e Rio Branco Dia 26 | terça-feira
Dia 26 de novembro de 2019. A primeira aventura começa com a ida às cidades-gêmeas Jaguarão e Rio Branco, com saída da rodoviária de Pelotas às 9h30min. A viagem de ônibus era do tipo “comum”, passando por algumas cidades durante o trajeto. Chegando em Jaguarão, pela BR 116, dava para ver os fundos da estação férrea, bastante vegetação e alguns silos no entorno. A cidade cruzava por uma grande avenida, a mesma que dava acesso ao país vizinho. A maior parte com edificações térreas, de uso residencial e cada uma com uma cor diferente, vibrante. Chegando à rodoviária, faz-se uma pausa para o almoço e, em seguida, destina-se a ida ao hotel.
Ponte Internacional Barão de Mauá
Com os equipamentos em mãos, inicia-se o trajeto às 13h30min, registrando o percurso através de um aplicativo de caminhada. O dia estava nublado, temperatura agradável e com pouco vento. Em frente ao hotel, encontrava-se a grande avenida, chamada Rua Uruguai. De onde era possível visualizar, parcialmente soterrados, os remanescentes da linha férrea no canteiro central. Inicia-se a caminhada até a estação férrea de Rio Branco, no Uruguay. Em poucos metros, já se localiza a Ponte Internacional Barão de Mauá, que dá acesso e indica o cruzamento da linha de fronteira BRUY. À direita, ainda em território brasileiro, havia um acampamento próximo à ponte, na borda, limite do território vizinho (Figura 16).
Figura 16: Imagem registrada da aduana com vista para o acampamento em Jaguarão-BR. Fonte: Acervo da autora, 2019.
115 Os trilhos seguiam na centralidade da via, agora por cima da
Trilhos no centro
ponte, que havia sido construída também para atender essa modalidade. Enquanto que o caminho pelo centro estava vazio, as extremidades da ponte eram percorridas por pessoas que se exprimiam pela calçada. Era preciso atenção, pois passavam carros, motos, caminhões pesados pela ponte estreita. Alguns pingos de chuva começam a cair, o guarda-chuva serve
Cheios e vazios
de aliado para abrigo. Na mão uma prancheta e o caderno de campo, para que nada passasse despercebido pelos olhos atentos da cartógrafa. O caminho a seguir era longo, cerca de 4 quilômetros até a estação. Ao final da ponte, ao lado direito, o ponto de maior atração de Rio Branco, os Free Shops (Figura 17). Seguia-se a travessia dos trilhos do trem por um passadiço elevado, continuação da ponte. No lado esquerdo, visualizava-se uma imensa área de banhado (Figura 18), local alagável nos momentos de cheia do Rio Jaguarão.
Figura 17: (à esquerda) vista para os Free Shops. Figura 18: (à direita) vista para a área alagável em Rio Branco-UY. Fonte: Acervo da autora, 2019.
Poucos pedestres circulavam por ali, era um trajeto principalmente de veículos (Figura 19). A paisagem era encantadora, com muitos pássaros ao redor, o cenário do verde predominava naquele trecho da caminhada. O verde também se encontrava entre os trilhos, que estava envolto por grama alta e cercado por pequenas flores amarelas que traziam uma sensação agradável (Figura 20).
Figura 19: (à esquerda) vista do passadiço elevado, do lado direito para passagem de pedestres e esquerdo os trilhos do trem. Figura 20: (à direita) vegetação crescendo entre os trilhos. Fonte: Acervo da autora, 2019.
116 Desvio pela rua
O fim da travessia elevada indicava o início da área mais urbanizada da cidade. O seguimento pelos trilhos estava bloqueado pela vegetação densa, teve-se que desviar por uma rua lateral, na tentativa de retornar para os trilhos. A rua era menos movimentada, estrada de saibro e haviam menos casas no entrono. A tarefa de caminhar pelos trilhos era cada vez mais complicada, por causa da vegetação que envolvia aquele cenário.
Travessias
Entre uma tentativa e outra, haviam algumas passagens mais abertas que serviam de acesso ao outro lado dos trilhos. A malha urbana seguia naquela direção, haviam algumas residências e a travessia pelos trilhos só poderia ser feita a pé ou de bicicleta (Figura 21). Exceto nesses trechos, a vegetação alta tomava conta do caminho e ainda haviam alguns cavalos pastando entre os trilhos do trem, o que dificultava o seguimento (Figura 22). Retorna-se para a estrada de saibro, contornado a quadra para uma nova tentativa de seguir pelos trilhos.
Figura 21: (à esquerda) travessia de pedestre pela linha do trem. Figura 22: (à direita) cavalo pastando na linha do trem encoberta por vegetação. Fonte: Acervo da autora, 2019.
Numa nova aproximação com os trilhos, mais uma vez a vegetação alta impedia a passagem. Em um momento de reflexão e frustação diante do imprevisto, surge uma senhora que morava perto dos trilhos. Ela ficou curiosa com uma presença desconhecida por ali. A pesquisadora explica o propósito da experiência e a senhora afirma que poderia seguir pelos trilhos, havia um pouco de mato, mas todos os moradores faziam aquele trajeto. Entrevista 1
A senhora tinha 70 anos, nasceu em Jaguarão, mas morava há anos perto dos trilhos no lado uruguaio. Lembrava de muitas histórias que envolviam o período do trem, seu tio havia trabalhado como maquinista e relembrou a corriqueira prática do contrabando de mercadorias. Comentou sobre as inúmeras viagens que fez à Montevideo e do costume comum dos moradores irem veranear em Rio Grande, RS. Uma senhora muito gentil, que acolhe ao estrangeiro
117 que está à deriva. Mostrou sua casa, seu pomar, e a construção anexa para seus filhos. Tinha muita preocupação com a população de Rio Branco, havia muita pobreza ali, e muitos idosos iam morar lá. Se preocupava em enviar comida todos os dias para seu filho. Ainda comentou sobre como se sentia morando perto dos trilhos: Ah, parece que muita gente da beira da via não gosta muito, pelo motivo de que tinha medo de que saísse [o trem] fora do trilho e atingisse a casa deles. Como a senhora que está aí [apontou para uma casa perto dos trilhos]. E aqui era uma trepidação medonha, eu aguentava né, porque se caísse a casa, ia seguir e fazer (Trecho da entrevista da senhora de 70 anos, tradução da autora).
Relembra de como o trem era utilizado pela população, a
Transporte de vida
passagem era mais barata que a passagem do ônibus, então muitas pessoas usavam o serviço. Levavam mudança, iam passear, inclusive quando estava grávida, utilizou o trem para ir ao hospital para o nascimento de sua filha. Ela comenta que seria muito bom retornar as atividades da linha férrea: “[...] é lindo o trem, mais barato e na viagem não fica preocupado que pode alguém bater. Que pode vir um caminhão e se “enfrentar” (Senhora de 70 anos, tradução da autora). Ainda comenta que a integração pela linha do trem entre Rio
Ponte danificada
Branco e Jaguarão seria muito boa, pois vai frequentemente para o Brasil e isso facilitaria seu transporte. Acredita que o principal motivo da extinção do trem foi por causa das questões estruturais da ponte, que não suporta mais um grande peso por cima dela. A pesquisadora agradece a atenção da senhora e por todas as informações oferecidas. Segue-se o caminho pelos trilhos, conforme orientação da senhora que afirmava ser segura a passagem. Seguindo o propósito da viagem, a ansiedade aumentava a cada passo que a deixava mais próximo da estação férrea. A vizinha da senhora que havia sido entrevista se incomoda quando a pesquisadora registra uma imagem do entorno. Explicando a situação, ela se acalma, mas segue desconfiada pela presença estranha que transita por aquele território.
Presença que incomoda
118
Figura 23: Caminho pelos trilhos do trem com vegetação no entorno. Fonte: Acervo da autora, 2019.
A vegetação era densa, mas como os moradores estavam habituados com o trajeto, não era impossível. Percebe-se pela figura 23, o rastro do trajeto percorrido pelos moradores, que por vezes se perde entre a vegetação. Apesar do cenário, havia movimentação e algumas pessoas também percorriam por ali. Haviam árvores de diferentes portes, flores, esterco de cavalo pelo caminho. Cruzando esse trecho, surge uma área mais descampada. Os trilhos aparecem conectados a outras bifurcações (Figura 24).
Figura 24: Sítio ferroviário de Rio Branco- UY. Fonte: Acervo da autora, 2019.
119
A paisagem é composta por grandes silos da produção de
Tapete de flores
arroz local, galpões enferrujados, revelando as condições atuais do antigo sítio ferroviário de Rio Branco. Haviam poucas pessoas naquele espaço, a paisagem trazia uma sensação de tranquilidade, um imenso tapete florido nas cores amarelo e branco, os pássaros cantarolavam mais alto na medida que a proximidade com a estação ocorria (Figuras 25 e 26).
Figura 25: (à esquerda) tapete florido durante o trajeto. Figura 26: (à direita) linha férrea em direção à estação férrea de Rio Branco- UY. Fonte: Acervo da autora, 2019.
Logo em frente, já se encontrava a estação férrea. O prédio se destacava arquitetonicamente na paisagem dominada por galpões, silos e residências do entorno (Figuras 27, 28 e 29).
Figura 29: Vista dos fundos da estação férrea de Rio Branco – UY. Fonte: Acervo da autora, 2019.
Figura 27: (à esquerda) Vista das residências no entorno da estação. Figura 28: (à direita) Silos e galpão no entorno. Acervo da autora, 2019.
120 Movimento
As casas em grande parte eram térreas, pequenas e muitas delas tinham o aspecto de inacabadas ou revelavam a falta de manutenção (paredes sujas ou com limo). Os galpões e os silos eram característicos
naquela
paisagem,
o
ruído
que
faziam
os
equipamentos industriais era bem marcante. Outro fato observado, era a constante travessia de pedestres cruzando os trilhos em direção ao outro lado da cidade. A movimentação e as atividades em meio ao cenário eram perceptíveis (Figuras 30 e 31).
Figura 30: (à esquerda) Senhora cruzando a linha do trem. Figura 31: (à direita) Senhor cruzando a linha do trem. Fonte: Acervo da autora, 2019.
Apresentando um pouco deste cenário do entorno da estação férrea, atenta-se agora para ela. A primeira coisa que chama atenção é a presença de dois adolescentes sentados na antiga plataforma de embarque (Figura 32). A área estava isolada com um cordão que circundava o perímetro da cobertura de embarque, haviam telhas no chão, que mostravam sinais da falta de manutenção da cobertura. Apesar disso, eles estavam lá sentados, conversando.
Figura 32: Adolescentes conversando na antiga plataforma de embarque da estação férrea de Rio Branco- UY. Fonte: Acervo da autora, 2019.
121 A pesquisadora se aproxima para entrevistá-los, eles afirmam
Entrevista 2 e 3
que frequentemente se encontravam ali, pois gostavam da tranquilidade do local. Eram tímidos, porém bastante receptivos. Não sabiam nada sobre a estação férrea, moravam longe, mas a escola era perto dali. Quando perguntado sobre o que eles sentem ao se deparar com a estação férrea, o menino afirma: “Para mim, me causa, tipo, tristeza. Porque está tudo quebrado e tudo isso”, para a menina a estação causa outro sentimento: “Na verdade, não precisariam consertar isso, porque é normal estar assim mal” (tradução da autora). Percebe-se que apesar de haver um sentimento diferente para ambos, aquele ainda é um local convidativo, pois eles escolheram este local para se encontrar. De fato, causava uma sensação agradável, o som dos
Sons
pássaros era impressionante. O local era bastante aberto, mas ao lado da estação havia uma árvore grande, que servia como lar para os pássaros que cantarolavam naquele espaço. Transformavam em um local único, a árvore, o som dos pássaros, criavam a composição de um cenário acolhedor para aquela ambiência. Outro ponto de destaque é o veículo embaixo da cobertura que
Telhado “verde”
aparentava risco de desabar. O telhado estava danificado e a vegetação que crescia por cima da cobertura, contribuía para o processo de degradação da cobertura (Figura 33).
Figura 33: Vegetação crescendo em cima da cobertura da plataforma de embarque. Fonte: Acervo da autora, 2019.
122 Abandono visível
Os adolescentes falaram que havia um senhor morando ali. Um fato curioso, pois a estação apresentava sinais visíveis de abandono, como o apodrecimento da madeira da cobertura, portas e janelas danificadas, parede com a pintura descascada, rachaduras, reboco exposto, estava diante dos olhos de qualquer pessoa que passasse por ali (Figuras 34 e 35).
Figura 34: Telha quebrada da cobertura da plataforma de embarque. Fonte: Acervo da autora, 2019.
Figura 35: Apodrecimento da madeira que sustenta a cobertura da plataforma de embarque. Fonte: Acervo da autora, 2019.
A falta de manutenção da edificação era evidente, cada detalhe da estação revelava mais sinais de abandono. Porém, haviam pistas que manifestavam o contrário. Olhando com atenção dava para
123 perceber uma luz acesa no pavimento superior e janela entreaberta (Figura 36).
Figura 36: Janela entreaberta no pavimento superior. Fonte: Acervo da autora, 2019.
Ainda havia uma antena na fachada da edificação (Figura 37), uma campainha na porta de acesso principal (Figura 38) e dentro da edificação, dava para ver uma motocicleta guardada.
Figura 37: (à esquerda) antena instalada na fachada. Figura 38: (à direita) campainha na porta de acesso principal da estação. Fonte: Acervo da autora, 2019.
A curiosidade e vontade de conhecer mais aquele local, instiga a pesquisadora a tocar a campainha. Ninguém atende. Nas laterais da estação havia uma cerca improvisada, como se criassem uma barreira para impedir que fosse acessado para o outro lado, um sinal de hostilidade. Já a campainha é um convite para a hospitalidade. Era o contato mais íntimo/próximo que poderia haver com a estação. O toque do dedo da pesquisadora com aquela campainha. Insiste-se mais um pouco. Aparece um senhor na porta-janela entreaberta do pavimento superior. Seu semblante pouco amistoso, desconfiado. O
124 diálogo entra como ferramenta de aproximação, ele escuta e concorda conversar. Entrevista 4
O senhor que morava na estação era ex-funcionário, foi maquinista e chefe da estação, já morava ali fazia 40 anos. A edificação que aparentava estar abandonado era o lar de um antigo ferroviário. O lar de um senhor que zela e cuida da edificação da melhor maneira possível, pois não recebia nenhum auxílio do governo para a manutenção da estação. Havia sentimento, emoção, afeto, saudosismo em todas as palavras que saiam de sua boca. Em cada recordação do sistema ferroviário, exprimia, ao mesmo tempo, um sentimento de alegria e dor: Bom, se perguntar a qualquer ferroviário, vão te dizer que é inesquecível. As experiências de vida que não são esquecidas, mesmo que por muitos anos. São muitas experiências, muitas cidades que se chega, se conhece. Depois, se conhece todo o Uruguai, o Brasil. Sabe que é ferroviário, pela maneira de falar, pela maneira de andar, [...] é um orgulho. Ser ferroviário é um orgulho (Trecho da entrevista com o senhor, tradução da autora).
Re(existência)
A vida da estação férrea ainda resistia graças à persistência daquele senhor naquele lugar, alguém que se preocupava e fazia questão de manter os objetos originais em seu interior. Na parte interna, estavam resguardados os bancos originais, os balcões de atendimento e de venda de bilhetes. Na parede encontravam-se avisos sobre o embarque, memorial da estação e o piso em bom estado de conservação, assim como as paredes e forro originais (Figuras 39 e 40).
Figura 39: (à esquerda) vista para o balcão de atendimento da estação. Figura 40: (à direita) vista interna da estação com os detalhes originais. Fonte: Acervo da autora, 2019.
O abandono era visível, mas a resistência para que ele não se apagasse com o tempo ainda existia e fazia permanecer na memória de quem tanto conviveu e zela com tanto carinho o período do trem. O transporte de carga ainda funciona na cidade, mas só segue em direção à Montevideo. Ele ainda recorda da época quando funcionava
125 o trem de passageiros, comenta que a estação era cheia de passageiros e que muitos vinham de Montevideo para fazer compras no Brasil, pois a moeda uruguaia valia mais que a brasileira. Ele comenta que a varanda dos fundos foi bloqueada pelo risco
Isolamento
de queda da cobertura. Ele já havia solicitado verba para o governo para reformar o telhado, mas não recebeu auxílio, por isso teve que isolar a área. Comenta que mesmo assim é um local que vem muitos jovens, para conversar, tomar um mate, contemplar a paisagem. Sobre a expectativa de um futuro para o local, o senhor comenta: Bom, o uso ferroviário, não vai ser possível, não vai ser possível, porque o governo, presidente, da câmara, deputado teria que demandar muito dinheiro para recuperar a via. E a tendência é isso desaparecer, então meu pensamento é que deveria entregar para o estado, para alguma função do estado, poderia ser [...] Poderia ser alguma função do município ou um museu, algo que pudesse ser um serviço para a sociedade (tradução da autora).
Ele ainda comenta que a relação com o Brasil sempre foi
Como irmãos
excelente: “Nós que vivemos aqui, tanto quem vive lá, somos como companheiros, como irmãos. Isso é tudo o mesmo, nós somos uma mesma cidade, só que um fala espanhol e outro fala português”, reforçando que a relação entre os países segue fortalecida. O encontro com a estação férrea de Rio Branco foi repleto de
Aparências
surpresas, pois mostra que a aparência do abandono, nem sempre reflete o que de fato acontece. Às vezes nos confunde, e faz perceber que somente o contato mais próximo e com o olhar atento, é que se revela a vida por trás de um abandono. É um abandono que está em aguardo, à espera que seja olhado, cuidado, amado por mais mãos e não apenas pelas mãos do antigo chefe da estação. O percurso seguiu por mais um trecho do sítio ferroviário, até outro galpão abandonado (Figura 41). A cobertura, as paredes e as esquadrias estavam danificadas. A sensação de insegurança e medo em encontrar aquele espaço era inquietante (Figuras 42 e 43). Parecia que em qualquer instante alguém chegaria ali, a atenção ficou redobrada e o medo fez com que o percurso fosse agilizado.
Medo do abandono
126
Figura 41: Galpões abandonados no sítio ferroviário de Rio BrancoUY. Fonte: Acervo da autora, 2019.
Figura 42: (à esquerda) imagem interna do galpão abandonado. Figura 43: (à direita) água esverdeada no interior do galpão. Fonte: Acervo da autora, 2019.
A água verde parecia ser de uma cisterna. Mais verde envolvendo o abandono. Segundo o morador a estação férrea, ali era o local preferido dos jovens, onde era permitido ficar sem serem visto ou controlado. Como afirma Lynch (2005), o abandono tem o potencial de criar espaços onde a imaginação possa fluir, longe dos olhos atentos dos adultos. Caminho alternativo
O retorno para o hotel segue por outro caminho, agora por dentro da cidade. A experiência da primeira impressão é única, e é esta que registra as sensações de percorrer a linha do trem, proposta nesta pesquisa. Entretanto, o caminho alternativo para o retorno, também mostra algumas características da cidade uruguaia. Havia mais movimento, a pavimentação asfáltica ou de bloco, mais pessoas circulavam pelas ruas, o uso do solo predominantemente residencial. Os pequenos mercados e postos de serviço movimentavam o entorno.
127 O caminho seguiu em direção ao rio Jaguarão, local onde estão
Acolhimento
localizados os Free shops, ponto de maior atração para quem visita Rio Branco. O cenário se modifica completamente, há grande fluxo de pessoas e os estrangeiros são acolhidos de forma diferente, pois são bem-vindos naquele espaço. Após a chegada ao hotel, é hora de descarregar toda a
Mapa cartográfico
bagagem adquirida na primeira experiência. Os registros estão marcados no caderno de campo e, em seguida, é elaborado o primeiro mapa. Ainda que um esboço, já exprime os acontecimentos diante da experiência do abandono da estação férrea de Rio Branco (Figura 44).
Figura 44: Mapa cartográfico do abandono da estação férrea de Rio BrancoUY. Fonte: Desenho da autora, 2019.
O mapa revela sobre o que marcou no trajeto, como a questão do estrangeiro pelos elementos desenhados mais próximos da linha da fronteira, com o acampamento, as aduanas e a zona dos Free Shops. Um elemento marcante é a área alagadiça de grande extensão e a paisagem belíssima que se formava naquela ambiência. O distanciamento da zona de fronteira já é marcado por uma escala menor nos desenhos, mostra as edificações de pequeno porte, os usos predominantes, os fluxos e as características da cidade. O afastamento da cidade “criada” para turistas, revela uma outra face da cidade, pode-se dizer, a cidade real. Caminhando pelas frestas que se entende que existem dois mundos em Rio Branco. Um do que foi criado/construído para acolher o estrangeiro e outro que não faz questão de ser revelado. Em muitos momentos sendo o
128 estrangeiro visto com maus olhos por caminhar pela Cuchilla. O local para o estrangeiro deve ser na borda do rio Jaguarão e não aqui no mundo real.
[TEXTO EM CONSTRUÇÃO, pretende-se desenvolver e aprofundar esta parte da escrita, revelando mais detalhes sobre as percepções do mapa].
129 Dia 27 de novembro de 2019, um dia quente e ensolarado. O
Dia 27 | quarta-feira
oposto ao dia anterior. Hora marcada para a saída às 14 horas. Realiza-se o mesmo procedimento com os equipamentos, acionado o aplicativo de caminhada, inicia-se a caminhada pelo canteiro central na Rua Uruguai. A primeira impressão quando iniciada a caminhada: onde estão
Caça aos trilhos
os trilhos? Olhando com atenção via-se entre o assentamento dos blocos de concreto do canteiro alguns remanescentes. No cruzamento das ruas, os trilhos estavam soterrados entre o asfalto, era quase como caça ao tesouro para seguir o trajeto do trem (Figura 45).
Figura 45: Trilhos do trem em meio ao asfalto e no canteiro central em Jaguarão-BR. Fonte: Acervo da autora, 2019.
O movimento era intenso no percurso. O uso do solo era diversificado, haviam residências, comércios e serviços em toda a extensão da avenida. A rua dá acesso à ponte que faz fronteira com o Uruguay, ao longo do trajeto era perceptível a influência vizinha nos comércios e serviços locais: “Confeitaria e Padaria Uruguay”, “Fronteira tintas”, “Rua Uruguai”, “Pancho” (Figuras 46 e 47). Figura 46: (à esquerda) letreiro de padaria misturando palavras em português e espanhol. Figura 47: (à direita) letreiro de loja de tintas com destaque para a palavra “Fronteira”. Fonte: Acervo da autora, 2019.
130 Canteiro central
No canteiro central praticamente não se viam os trilhos. Foram plantadas palmeiras em toda sua extensão, o calçamento variava entre blocos de concreto e uma grama seca. O canteiro também era utilizado para depositar as sacolas de lixo dos estabelecimentos e residências, visto ao longo de todo caminho (Figuras 48 e 49).
Figura 48: (à esquerda) pavimentação do canteiro central na rua Uruguai. Figura 49: (à direita) lixo depositado no canteiro central. Fonte: Acervo da autora, 2019.
No fim do canteiro os trilhos seguiam uma leve inflexão à direita, passando por trás de algumas residências já consolidadas (Figura 50).
Figura 50: Trilhos do trem passando aos fundos das residências em JaguarãoBR. Fonte: Acervo da autora, 2019.
O caminho era irregular, estrada de terra e os trilhos passando por uma valeta, parecia um depósito de entulho. Um senhor olhava com atenção a movimentação, morava em uma das casas que beirava o trilho. A pesquisadora se aproxima para fazer algumas perguntas para o aquele senhor. Ele tinha 70 anos e morava há anos ali naquela casa. Não conseguia entender com exatidão as perguntas, tinha um problema auditivo. O contato mais próximo era necessário, ele convida para entrar em seu estabelecimento, anexo à sua residência.
131 Ele recorda que ajudou a descarregar cimento e banana
Entrevista 5
quando chegava uma carga na estação férrea. Havia andado no trem de passageiros também, afirmando que era desconfortável a viagem, pois balançava muito e os bancos eram desconfortáveis. Comenta que mesmo passando o trem bem no centro da cidade, não atrapalhava ninguém, era tranquilo. O trem passava de duas a três vezes na semana para Montevideo e depois retornava para o Brasil. Em seguida, chega o filho do senhor, um homem de
Entrevista 6
aproximadamente 50 anos. Ao notar o assunto da conversa, ele se empolga e relata as aventuras que fazia quando era criança. Ele e outros meninos subiam no trem em movimento, relata ainda que um dos seus amigos se acidentou e precisou amputar a perna. Apesar disso, tem uma recordação muito boa da época do trem. O senhor comenta que pouco tem contato com a estação
Maçonaria
férrea, e como agora tem outro uso (a maçonaria), o uso e espaço ficam muito restritos. Ao perguntar sobre como ele gostaria de ver a estação férrea no futuro, ele afirma: Toda vida, toda vida que deveria ter continuado. Só que não está desativado só aqui, lá dentro do Uruguay também. Porque eles passavam nas estações que tinham arroz, carregavam, traziam cimento e por aí adiante. Traziam carga de tudo. E tinha o carro motor que vinha aqui levar mercadorias. Os castelhanos compravam aqui os [carros] motor, só que eles paravam no outro lado da ponte [...] Passando a aduana, o carro motor parava ali, descia todo mundo a pé e vinham, faziam as compras e voltavam (trecho da entrevista com o senhor de 70 anos).
O filho do senhor comenta que quem fazia a manutenção da
“os tuco”
via e, inclusive da estação férrea de Jaguarão, eram os uruguaios, conhecidos por “tuco”. O governo brasileiro não dava assistência. Ainda relembra como o contrabando era presente nessa região, inclusive já havia passado uma reportagem na televisão aberta, chamando de “cidade do faroeste”, em decorrência dos contrabandos. Ao fim da conversa, o caminho pelos trilhos deveria ser seguido. De antemão, ele alerta que não seria possível seguir a caminhada pelos trilhos, pois as residências invadiram a linha férrea e a única opção seria seguir pela rua.
Caminhar pela rua
132 Poucos vestígios
De fato, cerca de 10 metros adiante havia uma cerca bloqueando o acesso por aquele caminho (Figura 51). Caminhando pela rua, mas o mais próximo possível dos trilhos. No trajeto pela rua dava para perceber os vestígios dos trilhos, muito sutis em meio a pavimentação da rua. Em seguida, eles seguiam pelo pátio de algumas residências (Figura 52). A princípio o leito ferroviário é público, pertence à União, mas nesse caso, a pesquisadora estaria percorrendo por uma área privada? Seria transgressão passar por ali?
Figura 51: (à esquerda) passagem bloqueada por uma cerca. Figura 52: (à direita) trilhos do trem soterrados no asfalto, passando na lateral de residências. Fonte: Acervo da autora, 2019.
Faz parte da experiência surgirem coisas imprevisíveis. Com cuidado, o caminho pela lateral das residências foi percorrido. Neste caso, ainda havia uma permeabilidade no terreno que permitia o cruzamento, mas a sensação de invasão era constante. Parecia que a qualquer momento haveria repressão. Cruzando o caminho, logo adiante outro caso inquietante, mais barreiras (Figura 53).
Figura 53: Bloqueio com cerca do trajeto. Trilhos do trem concretados criando o acesso às residências. Fonte: Acervo da autora, 2019.
A passagem havia sido bloqueada, mesmo que por uma cerca simples de madeira, o recado estava dado. O acesso por ali era
133 restrito. Os trilhos serviram como apoio para a concretagem da calçada. O trilho tinha um novo sentido, agora tornava-se passagem para os moradores. Estrangeiros não eram bem-vindos. Contorna-se a rua, acessando o outro lado da quadra. Em
Caminhar pela rua
frente, um gramado imenso onde ainda não havia a inserção de residências, talvez fosse propriedade privada (Figura 54). Os trilhos cruzam pelo gramado, cortam a rua e outra cerca bloqueia o trajeto. Em frente, uma indústria e dois silos gigantes, marcando presença na paisagem urbana (Figura 55). Dali não apareciam mais os trilhos, contorna-se a quadra para tentar reencontrá-los.
Figura 54: (à esquerda) gramado por onde seguiam os trilhos. Figura 55: (à direita) área cercada e, aos fundos, zona industrial no local de passagem dos trilhos. Fonte: Acervo da autora, 2019.
A sentimento era de frustação, os trilhos estavam soterrados em meio a cidade. Quando apareciam, entre uma quadra e outra, era uma vitória, sensação de alívio por ainda estarem ali. Uma forma de resistência que se manifestava apesar da interferência urbana. Contornando a quadra, os trilhos reaparecem cruzando uma valeta. A alegria tomou conta naquela hora (Figura 56).
Figura 56: Reaparecimento dos trilhos do trem. Adiante, uma cerca bloqueando a passagem pelo terreno descampado. Fonte: Acervo da autora, 2019.
134 Respiro
Literalmente, caminhar pelos trilhos. Era uma ponte, um caminho para finalmente seguir pelos trilhos até chegar à estação férrea de Jaguarão. Uma cerca improvisada impedia o acesso livre, porém a pesquisadora seguiu. O verde mais uma vez tomava conta dos trilhos, a vegetação crescendo entre os trilhos dava uma sensação de alívio (Figura 57). Ao menos naquele trecho os trilhos não haviam sido soterrados. Haviam algumas edificações abandonadas que indicavam pertencer ao antigo complexo ferroviário. Pela proximidade com a linha e pela tipologia construtiva deveriam ser postos de serviço do sistema ferroviário (Figura 58).
Figura 57: (à esquerda) vegetação crescendo entre os trilhos. Figura 58: (à direita) edificações abandonadas próximas à linha do trem. Fonte: Acervo da autora, 2019.
Seguindo o caminho, surge uma edificação mais próxima à estação férrea. Era um misto de abandono com sinais de presença naquele espaço (Figura 59).
Figura 59: Sinais da presença de pessoas no sítio ferroviário. Aos fundos a estação férrea de Jaguarão-BR. Fonte: Acervo da autora, 2019.
Brinquedos espalhados pelo terreno, carrinho de bebê, um banco, um balanço, roupas estendidas. Mesmo que grande parte do trajeto dos trilhos haviam sido soterrados ou esquecidos, os
135 remanescentes ferroviários hoje são entendidos de outras formas, dando um novo sentido ao local. O balanço que serve de brincadeira para as crianças, também representar a inconstância da história. Talvez nada vá simplesmente embora, mas volta com outro significado. Assim como o vai e vem do balançar. Aos fundos já é possível visualizar a estação férrea. Em seu
Pela lateral
entorno uma imensa caixa d’água enferrujada, as ruas de terra, vegetação alta circundando a edificação (Figuras 60 e 61).
Figura 60: (à esquerda) caixa d’água do sítio ferroviário. Figura 61: (à direita) imagem da estação na ambiência. Fonte: Acervo da autora, 2019.
A proximidade com a edificação se torna um tanto quanto hostil, as laterais e os fundos da edificação estão cercadas. O acesso principal está liberado, a grama mais baixa, indicando um cuidado um pouco maior com aquele local (Figura 62).
Figura 62: Lateral cercada da estação de JaguarãoBR. Fonte: Acervo da autora, 2019.
Existe um sentimento de hospitalidade, mas que também é hostil. Pois mesmo que o acesso pela rua da frente da estação esteja liberado, há uma sensação constante de vigilância e controle. As
136 cercas delimitam o acesso no entorno da estação, há uma câmera de segurança instalada na fachada principal como forma de inibir o acesso. Sem contar o marco imponente em frente ao prédio, indicando o novo uso. Ou seja, há uma abertura, mas controlada. Perambular
A estrada de terra larga em frente à estação tem pouca movimentação
de
pedestres,
circulam
predominantemente
caminhões, carros e motos (Figura 63). Na rua lateral da estação, circulava mais pessoas (Figura 64), e quem passava ficava com os olhos atentos aos passos da cartógrafa que fotografava e perambulava em frente à edificação.
Figura 63: (à esquerda) rua em frente à estação com maior movimentação de veículos. Figura 64: (à direita) rua lateral da estação com maior movimentação de pedestre. Fonte: Acervo da autora, 2019.
Surge um senhor andando de bicicleta, vagarosamente, como se quisesse comentar alguma coisa. Quando alguém quer falar, precisa que um outro o escute. A fala tem o poder de aproximação, como comenta Derrida (2012), a voz é um privilégio que está por toda parte, seja na Bíblia, na cultura grega, egípcia ou a que for. A voz é o que de mais próximo temos com a pessoa que fala, assim como com a pessoa que escuta. Há um duplo privilégio da proximidade, que acessa também a interioridade, a vida do outro. Encontro
A pesquisadora se aproxima, na intenção de estabelecer um diálogo, as palavras saltam pela boca como num impulso de ansiedade para ouvi-lo. O senhor vestia um traje típico de gaúcho: bombacha, camisa de botão, lenço no pescoço, chapéu, alpargatas e uma guaiaca que acomodava uma faca. Para iniciar a conversa, questiona-se, o que acontece no antigo prédio da estação férrea? De imediato ele responde: “a maçonaria, ontem mesmo eles se reuniram ali”. A conversa começa a fluir, ele se empolga em relembrar o período ferroviário. Mas sua pressa fez com que ele partisse, precisava ir embora. Lamentavelmente, não foi possível entrevistá-lo.
137 Quanto mais o tempo passava, menos era a vontade de
Calor e poeira
permanecer naquele lugar. Um dia muito quente, os caminhões que passavam em frente à estação levantavam poeira da estrada de terra, definitivamente era um lugar de passagem e não de permanência. Estava difícil encontrar alguém disposto a conversar, uns não
Sem tempo
tinham tempo, outros não moravam ali e estavam só de passagem. Um homem aparece em frente a um dos galpões, ao ser visto rapidamente desaparece. O chamado não é correspondido. Um território hostil, como se quisesse gritar para ir embora dali. Atentando aos detalhes da estação, aparentemente está bem
Presença
conservada. O que chama atenção são os elementos que dão sinal de vida àquele lugar: sacolas de lixo em frente à edificação, câmeras de segurança, alarme e ar condicionado instalado (Figuras 65, 66 e 67).
Figura 65: Fundos da estação com instalação de condicionadores de ar. Fonte: Acervo da autora, 2019.
Figura 66: (à esquerda) sacola de lixo em frente à estação. Figura 67: (à direita) Instalação de câmeras de vigilância na fachada da estação. Fonte: Acervo da autora, 2019.
138 Abandono invisível
Apesar dos indícios, nada fazia sentido naquele momento. Não havia vida, acolhimento, sensação da estação pertencer àquele lugar. O melhor para se fazer era seguir, não havia mais motivo para permanecer. Os trilhos não seguiam depois da estação férrea, mesmo assim, decide-se seguir a caminhada. De repente aparece um conjunto de moradias por detrás de alguns arbustos, em um local mais afastado conduzido pela estreita estrada de terra (Figuras 68 e 69).
Figura 68: (à esquerda) estrada de terra que leva ao conjunto de moradias. Figura 69: (à direita) Conjunto de residências dos antigos ferroviários da estação férrea de Jaguarão-BR. Fonte: Acervo da autora, 2019.
Entrevista 7
Chegando mais perto das residências, uma das portas estava aberta e, em seguida, aparece uma mulher. Ela é bisneta de exferroviário, a moradia foi cedida originalmente a ele, mas foi passando de geração para geração. A mulher tinha 25 anos, não sabia muitos detalhes do período do trem, mas recorda que quando era criança ia de vez em quando olhar o prédio abandonado. Mas desde que a maçonaria reformou a estação, nunca mais voltou lá. Comentou que antigamente os trilhos passavam em frente à sua casa, mas que agora haviam sido retirados pelos próprios moradores. Ao perguntar sobre qual o sentimento em relação à estação férrea, ela afirma: Ah, eu não sei. Eu gostaria de saber mais sobre ela. De ver mais como era, como funcionava. Ou ver nela os vestígios do que ela foi para as pessoas, mas a gente não vê isso. Acho que isso é triste né, para quem se importa assim, é triste [...]. Tem muita gente, eu acho, que nem sabe até a referência aqui. A gente que mora aqui, que ainda no enderenço se diz centro, o bairro é considerado centro, mas é bem longe do centro. E aí a gente dá referência perto da antiga estação e tem gente que não sabe onde é (trecho da entrevista com a mulher de 25 anos).
Olhar sem perceber
Ela ainda comenta que a referência da estação férrea mudou, que tem pessoas que dizem que ali é a maçonaria, ao invés da antiga estação férrea: “[...] se olhar o conjunto tu vê que realmente essas casas fazem parte do mesmo conjunto, mas tem gente que não vai perceber isso”. Acredita que se a estação fosse mais aberta, mais
139 receptiva, as pessoas usariam mais esses espaços, comenta que a rua que ela mora tem dois endereços, um é rua Cristóvão Colombo e a outra é Praça Viscondessa de Magé, acredita que antigamente essa praça era movimentada. Mas, hoje em dia, não tem mais nada de movimentação e muitos nem sabem que ela era uma praça. Chega o momento de seguir o caminho, o cansaço já invade
Reencontro
corpo e mente. Em frente à estação, havia um estádio de futebol abandonado, uma pausa foi necessária antes de retornar ao hotel. Sentada na arquibancada, organizando os equipamentos e o material da pesquisa, um senhor se aproxima no outro lado do campo de futebol. Observo atenta. Quando percebo, é o senhor da bicicleta que havia cruzado anteriormente. Caminhava em ziguezague pelo campo, vagarosamente, como da outra vez. Vinha acompanhado por dois cachorros, ele veio dar água para seus cavalos que pastavam. Quando me viu, decidiu de aproximar. Sentou-se ao meu lado, disposto a participar da entrevista (Figura 70).
Figura 70: Entrevista com o morador. Fonte: Acervo da autora, 2019.
O senhor tinha 59 anos, sempre viveu nessas proximidades e possui muitas recordações do período do trem. A cada relato parecia que passava um filme em sua cabeça, lembrava do período da maria fumaça, do transporte de cavalos que vinha do quartel de Bagé, do carregamento do gado, de cimento e outras mercadorias. Reforça que
Entrevista 8
140 a estação tem muitas histórias, inclusive que embarcou soldados para participar da Segunda Guerra Mundial. Circo internacional
Esse senhor tinha muitas lembranças daquele período, relembra que até circo internacional já veio para Jaguarão, e levava dias para descarregar todos os equipamentos que vinham pelo trem. Carrega consigo um sentimento muito forte, relembra que: Foi uma pena terem acabado com a estação férrea, com a rede ferroviária, porque isso aqui era um troço movimentado, era um troço bacana. Tu chegava aí, tu conhecia gente de diversos lugares, diversos idiomas, diversas raças. E o pessoal tinha: “ah, vou esperar a chegada do trem”. Por exemplo, quando eu era guri escutava o apito da maria fumaça, dava o apito lá fora, e eu saia. Morava três quadras da estação e saia correndo para vir olhar o trem chegar (trecho da entrevista com o senhor).
Do gado ao arroz
Relembra que a conexão com o Uruguay através da linha férrea era muito importante. Até no final dos anos 80 e 90, o gado vinha do Uruguay transportado pelo trem até a estação de Jaguarão e depois era levado por caminhões, porque para o lado brasileiro já havia sido extinto o sistema ferroviário. Era transportado lã, farinha de trigo, banana, carne. Quando a criação bovina começa a declinar, são iniciadas as plantações de arroz na região, já que possuía a proximidade com a água para irrigar a plantação.
“tuco-tuco”
Ele comenta que em algumas casas ainda moram os filhos de antigos ferroviários, chamados de “tucos”, como o outro senhor já havia comentado. Ele diz que são chamados assim, pois associam eles como os animais que vão de um lugar para o outro arrumando buraquinhos, os “tuco-tuco”.
Sonho
Quando mencionado sobre o futuro da estação férrea que ele gostaria, ele diz que acha muito difícil, mas que gostaria que retornasse o sistema ferroviário. Que inclusive, seria muito bom se reestabelecesse o transporte ferroviário com o lado uruguaio. Esse senhor demonstrava todo o encantamento que sentia ao relatar sobre aquele período. Era visível o brilho em seu olhar ao recordar tantos acontecimentos. Falava sobre a história da cidade, da economia, do trem, dos navios, da comercialização de mercadorias. Poderia escrever um livro através de suas recordações, era atencioso e detalhista. Foi um grande momento este reencontro.
141 O dia começa a cair, o caminho da volta ainda precisa ser
Retorno
explorado. Partindo por outros cantos para conhecer uma pouco mais das dobras que se tem na cidade. Já no hotel, é momento de descarregar todas os equipamentos, fazer anotações no diário de campo e desenhar o mapa (Figura 71) das percepções de tudo o que marcou aquele momento do dia quente e cansativo em Jaguarão.
Figura 71: Mapa cartográfico do abandono da estação férrea de Jaguarão-BR. Fonte: Desenho da autora, 2019.
O mapa revela alguns detalhes que tiveram grande impacto
Interferência urbana
durante a caminhada: a principal delas refere-se à interferência urbana. O impacto foi grande ao perceber que em praticamente todo o trajeto, a linha férrea havia sido esquecida na cidade. Começando pelo canteiro central na Rua Uruguai, que é o principal acesso da cidade e para o país vizinho. No decorrer do trajeto, cada vez mais era perceptível essa
História encoberta
sensação de abandono. As residências tomaram conta do trajeto do trem, desrespeitando a história das ferrovias. Apenas na região mais afastada da linha de fronteira, que os trilhos permaneciam em seu leito original. Mesmo que tomados pela vegetação, eles estavam lá, no aguardo, resistindo à ação do tempo. A estação férrea tinha um bom estado de conservação, as esquadrias, o telhado, as paredes estavam bem conservadas. Percebia-se um cuidado com a edificação, mesmo que a restauração teria sido motivada por uma intenção particular, de abrigava um outro uso. Outro ponto interessante é que apesar de saber que exista um
Intenções
142 novo uso, poucas pessoas se apropriavam ou se sentiam convidadas a se aproximar da estação. Logo, a sensação de vazio naquele lugar era maior do que se a estação estivesse em ruínas. Não se tratava de um aspecto em si, mas do conjunto de afecções em função de tudo o que representava aquele lugar.
[TEXTO EM CONSTRUÇÃO, pretende-se desenvolver e aprofundar esta parte da escrita, revelando mais detalhes sobre as percepções do mapa].
143 4.2 Cartografia dos sentidos | o abandono invisível Pensar no abandono muitas vezes pode remeter a algo que
Sentir na pele
está diante de nossos olhos. O abandono de um prédio, por exemplo, que pode ser visto, tocado e que tem a ver com a materialidade. Entretanto, a experiência nas cidades-gêmeas de Jaguarão e Rio Branco, revelou algo a mais do que pode ser palpável. É um abandono do que não é visível, é sentido. Derrida (2012) afirma que a experiência também requer um
Visibilidade inteligível
sentido que vai além das categorias de subjetividade e objetividade. Para Platão, o eidos que determina o ser, parte da concepção de uma forma visível. Não se trata de uma visibilidade sensível, mas de uma visibilidade inteligível. Trata-se de uma visibilidade não visível, que necessita de uma luz. Platão chama essa luz como agathon, que compara ao Sol: que dá luz, faz crescer, porém esse Sol não é visível. Logo, entende-se que o que torna visível as coisas visíveis, não é visível. O autor traz o exemplo do desenho, quando estamos diante de uma obra, os desenhistas ou pintores não querem simplesmente “mostrar algo”, mas possibilitam dar a visibilidade, que não tem a ver com o visível, mas sim com o que permanece invisível. Quando ficamos impressionados e sem fôlego diante de uma obra não se trata do que se vê, mas aquilo que é dado na visibilidade, ou seja, é o que é invisível (DERRIDA, 2012).
[TEXTO EM CONSTRUÇÃO, pretende-se desenvolver e aprofundar esta parte da escrita, revelando detalhes do visível e invisível no abandono de estações férreas em Rio Branco e Jaguarão].
Invisível
144
145 [TEXTO EM CONSTRUÇÃO, o mapa acima apresenta o trajeto percorrido no primeiro dia (em vermelho) em direção à estação férrea de Rio Branco, no Uruguay e do segundo dia (em laranja) em direção à estação de Jaguarão, no Brasil. As composições das texturas abaixo revelam alguns sinais de como o abandono é percebido no decorrer da caminhada pelos trilhos do trem em direção às estações férreas. Ainda serão exploradas as sensações causadas na experiência, mas optou-se em trazer algumas pistas desses abandonos].
146
Mosaico das texturas captadas no trajeto da linha do trem até a estação férrea de Rio Branco - UY
147
Mosaico das texturas captadas no trajeto da linha do trem até a estação férrea de Jaguarão – BR.
148 4.3 O acontecimento | Santana do Livramento e Rivera A viagem às cidades-gêmeas de Santana do Livramento e Rivera já foi realizada em 2019. 4.4 Cartografia dos sentidos | territórios hostis 4.5 Pistas do abandono de estações férreas na fronteira BrasilUruguay
149 5. Discussões e conclusões (próximos passos) As próximas etapas deste trabalho serão:
Acolher e revisar as considerações da banca: (junho / julho de 2020).
Dar continuidade na revisão bibliográfica sobre os principais assuntos: como abandono, fronteira, sentido; (junho / julho / agosto de 2020).
Confeccionar o mapa dos sentidos das cidadesgêmeas de Jaguarão-Rio Branco e Santana do Livramento-Rivera: (agosto / setembro de 2020).
Analisar e discutir os resultados da experiência e seus principais desdobramentos: (setembro / outubro / novembro / dezembro de 2020);
Considerações finais sobre o trabalho: (janeiro de 2021);
Revisão da escrita e diagramação visual: (fevereiro de 2021);
Defesa da dissertação: (março de 2021).
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