QUASE POEMAS

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QUASE POEMAS Vilma Avila Vianna



VILMA AVILA VIANNA

QUASE POEMAS

PELOTAS 2020


Copyright Š2020 Vilma Avila Vianna Capa: foto da autora


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Haicai poemas em penca à vista em exposição – semana do livro



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A poesia nasceu comigo desde cedo com as cantigas da minha mãe, onde o verso muitas vezes privilegiava a melodia. Cantava ela o dia inteiro. Músicas românticas em espanhol, as marchinhas de Carnaval, obrigação para quem queria fazer coro nos bailes e blocos de rua, os sertanejos nacionais sem as interferências de fora, os sambas de morro com letras de Noel Rosa. Conheci “as rosas não falam” de Cartola antes de se tornar “Cult”. Algumas canções populares possuíam letras poéticas melhores e mais delicadas que muitos poemas conhecidos. A escola incrementou o gosto, dando-me acesso aos autores nacionais de diversas tendências e a vida me apresentou àqueles outros que me falavam mais de perto em diferentes linguagens. Foi, no entanto, o encontro com o haicai que me fez perceber a poesia em outra forma. O pequeno poema japonês, sem título ou rima, descortinou-me a possibilidade de dizer muito em pouquíssimas palavras. E quis poetizar. Neste livro estão minhas tentativas com o poema. Talvez exista nele um tanto de adolescência. São como diz o título, quase poemas. O que deveria ter dito e não foi e o que provavelmente seria mais interessante dito de outra forma. Não sei. Escrevo o que vejo, sinto e sonho. O que não quero esquecer e o que recordo.



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Índice O poema nosso de cada dia Dança Assim tão chique Meio ambiente Altar da pátria Copa do mundo Festa junina As botas de Van Gogh Findi Chinatown Águas Aqui estamos Abolição A cozinha Dia da mulher Arte Colheita Cuidado Denali Drink no Alasca Verão no Ártico

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Cantata Em viagem Fim de verão Hoje em Pelotas Fogo! O tempo Outono Dia da criança Vinte de novembro Parabéns, Pelotas Namorados Copa do mundo Certeza Mudança Dezenove de abril Feijão com arroz Cores Pipoca Amor quotidiano Dia de sol Palco Inércia Tuas cartas Adeus Definindo De manhã Meu silêncio Quietude Alma Eleitos Plano

24 25 26 27 28 29 30 31 32 35 36 37 38 39 40 41 43 44 45 46 47 48 49 50 61 52 53 54 55 56 57


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Sentimentos e suas consequências Poço Não olhes... Entrelace Qualquer dia Amor antigo Meu rio Velho amor Plátano Quero-Quero Velho Banhado do Taim Meditação Presente Desapego Ele Chamado Natal História de Natal Neste Natal Presente de Natal Feliz Ano Novo Natal moderno Presépio Ângelus Tenho saudades...

61 62 63 64 65 66 67 68 70 71 72 73 74 75 76 77 78 79 80 81 82 83 84 85 86


x Lilás Presença Cantiga pra vovó Na gaveta Sagrada Família Sobre o mesmo céu Véspera de Natal Cinco Marias Ciranda Vou-me embora de mim Canteiro Guardados Mãe Ilusões Rosas Liberdade. Meu lugar A que partiu Lurdinha Rua antiga, rua amiga Quando você Gatos Errante Inverno, saudade Luar Partida Braços Dia das mães O apagador de velas Crepúsculo Garota de trinta Laços A hora do amigo Dona de mim

87 88 89 90 91 92 93 94 95 96 97 98 99 100 101 102 103 104 105 106 107 108 109 110 111 112 113 114 115 116 117 118 119 120


O POEMA NOSSO DE CADA DIA

dedilhando o vazio folhas vermelhas se soltam ao sabor do vento



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DANÇA Calou-se de minha mãe o alegre canto as cirandas de roda, sonolento acalanto. Sumiram-se nas brumas, românticas serestas, os doces madrigais, as músicas de protesto em grandes festivais. Feéricas bandas de rock e conjuntos de baile esfumaçaram-se, não atraem mais. Talvez me alcance no agora, a hora. de escutar bem lentas, as valsas e os boleros que animaram tantas festas e natais. Terá chegado o momento em que o clássico bom jazz seja o ritmo único de me alegrar capaz? Não, creio que não. Acendam todas as luzes da pista e apaguem as demais, deixando na penumbra um velho bandonéon a solfejar um tango antigo e además, girem no teto as lâmpadas de neon em multicolorido para acertar o tom. E vem, querido amigo, dança comigo o passo cadenciado, livre em semitom, volteios, giros, sobressalto, ocupamos por inteiro o enorme espaço. A orquestra arranca do silêncio o cantante que atira o chapéu e o cigarro fumado contando, em floreado, da vida as tramas rituais, pois o que é a vida, senão e sempre um tango? E eu, do alto do meu salto,


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lanço-me na paixão dançante entre apertos e amassos olhares escassos, tomo tua mão e enlaço o que me deve o mundo. O verso, chegando ao final rodamos sós e juntos, ninguém entre nós. Quando a dança termina o ensejo, o beijo. E então dama e cavalheiro em passo de ginasta ele alcança a cintura, ela o abraça e num formidável basta, os corpos vergam e quase tocam o chão...


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ASSIM TÃO CHIQUE Guardadas no porão, misturas mil: fotos, caixas, revistas, um avental de algodão. aplique do cabelo. Devo decidir o que descarto ou não. Porções de uma vida sem material valor, da minha mãe um louro colorido sobre a geladeira lustrado com amor. A foto de maiô, chiquérrimo com franzido, e a pose de miss com lenço no cabelo. Calça pesca-siri, moderna sapatilha. Um pote de saudade – dá gosto vê-lo presentes no caminho de um tempo maravilha!


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MEIO AMBIENTE Manhã clara. reduzo os suspiros contra o tempo sol na cara inspiro o ar e o momento. Reutilizo a água que restou da chuva nas plantas a balancear contra o vento. Ouço no rádio um tema em ré maior e algum bemol. Chegando o futebol. Reciclo a vida no meu neto amado amo os meus, os teus. Envio força construtiva à toda terra onde há ainda guerra e alguma grande ogiva prenuncie o fatal. Espero, desejo, oro, quero A paz ambiental!


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ALTAR DA PÁTRIA Verde amarelo a dominar as ruas, com o sorriso alegre da criança, faz-me sentir saudades da infância quando a Parada era um prazer e honra. Bandeiras do país e do estado tremulavam nas praças com pujança verde amarelo a dominar as ruas com o sorriso alegre da criança. Durante o tempo escuro da opressão o desfilar quedou-se na lembrança e eu já temia perder a esperança de ver então na Semana da Pátria, verde amarelo a dominar as ruas.


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COPA DO MUNDO Ao ritmo dos tambores novos senhores, copa do mundo à vista Esquecidas as dores, miséria. fome, tornam-se realezas a bola e o campo. Partilham as diferenças rebrilhando nas tranças as palavras de ordem: Paixão e coração Poder e emoção Orgulho e glória Coragem e vitória!


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FESTA JUNINA Recordei fogueira, organizei quadrilha. repesquei o gosto da pipoca, do quentão, e da sensação da noite fria estrelada. — Nunca chove em São João! Fantasiei os pares combinados, namoros arranjados, ao sabor da antiga sina enquanto perseguia a lua ora em fatias a espiar entre a neblina. — É lua nova em Santo Antônio! Acompanhei os fogos a explodir na festa em lágrimas coloridas, a cor viva do pinhão, a suba do balão e a longa procissão ao Santo Padroeiro. — Há sempre uma cidade onde é de São Pedro o padroado!


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AS BOTAS DE VAN GOGH Como se apresentam belas as botas de Van Gogh! Pretas, disformes, paralelas desentrelaçados os nós. Têm dos pés igual formato indicando uso e idade. Por quais poeirentas estradas andaram esses sapatos? E as botas sossegadas unidas em paridade descansam com valentia, sabendo que na verdade têm muita serventia. Imortalizadas num quadro posam sóbrias com candura, e no pé direito, na altura dos dedos, mostra o grande deformado.


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FINDI Sexta-feira à tarde, sentados na praça velhinhos discutem a ordem nacional, ou seria o futebol? Clima de verão, calçada está cheia, jovens e velhos, mulheres e crianças aderem sem receio ao sorvete gelado. Enquanto a meteô prevê e antevê para o fim de semana, vinte e oito graus! sábado e domingo, tempo quente e chuva, onde ficam a praias e o churrasco no pátio? A internet cai quase todo dia estou sem facebook e as fotos que tirei descansam nas nuvens. Quero por abaixo essas inúteis torres. As lojas espalham ao longo das calçadas, roupas e mais roupas que os passantes olham sem nem mesmo tocar e com a crise crescente, quem irá comprar essa imensa carga?


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CHINATOWN As pombas nervosas voam por entre as lanternas coloridas. E pousam, recolhendo as migalhas nas ruelas sem tráfego por onde a multidão transita. Diferentes semblantes (obscuras) não usuais linguagens. Viagens nos espaços ocupados por neons vermelhos a apregoar os patos de Pequim em cortinado nas vidraças. Estranha que sou, me junto ao sonho no passeio preguiçoso de antigamente. Ouço a banda que toca e é aplaudida, a mulher que medita logo ao lado, provo a comida que se oferece. Em ritmo de “non sense”, num devaneio ocupado, como uma velha sábia de conformidade com seu tempo, a cidade é tranquila, vibra em paz.


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ÁGUAS Nuvens acordam o sol sem cerimônia, em prantos purificam o firmamento. Um raio brilha na água sonolenta; num momento um caminho de luz tinge a lagoa. Ondas pequeninas beijam a terra ternamente. E explode a manhã no Laranjal!


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AQUI ESTAMOS Um raio de sol ilumina os telhados da casa, pássaros se erguem ao bater das asas. No céu azul hortênsia nuvens baixas e ralas cortam caminho num voo sem escalas. Chega a manhã devagar, nenhuma urgência, ainda no silêncio da hora e na ausência dos carros que avançam inquietos nas ruas, sem direita ou esquerda como se fossem sua. Um café cheiroso tomo abençoada manteiga e geleia ponho na torrada. Rezo por aqueles que vão ao trabalho, pois que viver é isso, não existe atalho. Será covardia desistir por medo, da natureza deduzo esse velho segredo. Perdoa, Senhor, pois que a vida é tão boa Pena que a vivamos muita vez atoa


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ABOLIÇÃO Vil escrava do trabalho, horário, Itinerário dou poder à Poesia, para em total liberdade não mais perseguir palavras ser tal e qual foi gerada, livre dos grilhões da mente: manter fluido o sentimento. Concedo ao verso criado e escravo por condição desde já a abolição.


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A COZINHA Um lugar abandonado sem vida, malbaratado é uma casa onde a cozinha não é viva, está sozinha. Gosto da minha. É pequena tem tudo que vale a pena: alimento, equipamento e gente com conhecimento. Se por graça poderosa fico rica de repente faço uma cozinha nova linda, grande, atraente. Mesa pra experimentação fogão novo à indução forte sugador de odores vaso coberto de flores. Com bancada importante toda clara insinuante e sobre ela postada dando um realce ao lugar Tarsila iluminada.


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DIA DA MULHER Linda, a jovem de costas meio perfil Fundo vermelho, vestido carmesim De pura seda e rendas damasquim. Na cabeça chapéu de fitas, curto véu. Não sei se gosto mais do ar nada servil, Ou da tatuagem no ombro, exposta ao céu. A foto que ilustrei o dia qualquer, Que decidiram ser o da mulher, Pareceu-me correta para o que se quer: Pensar as nuances da mulher. Não é um bibelô, mesmo em bordô, Nem é rainha, santa ou musa Na pele alva, a rosa põe-se airosa, Ela quer, ela luta, ela ousa!


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ARTE Desfilam na Galeria de Arte, rostos silenciosos: Madona de tez suave e menino de olhos mansos, a face faceira da moça desnuda, e o rosto anguloso e cúbico da mulher de Picasso... Descansada, a face adormecida nos montes de feno dos trabalhadores de Van Gogh. E os olhos azuis no rosto inocente do sobrinho do artista. Na rua em traços grossos, firmes e marcantes, os Grafites a colorir o cinza do Viaduto — A OUTRA FACE! —


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COLHEITA* O pintor vê a planície sem fim, voando sobre a calvície dos cumes: o amarelo do milho, a carroça e o seu rocim, o verde da videira e o brilho do sol, os campos espraiados qual superfície do mar. Homens agachados distraídos, preocupados a ceifar... Toma um pincel distribuindo na tela, cores enoveladas fluindo dos olhos a granel: verdes, cinzas, azuis, amarelos. Com uma nova roupagem — está pronta a paisagem.

*Quadro de Van Gogh, Harvest Landscape


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CUIDADO As flores são belas, as delas, na cor no perfume na trama, na gama. Que tratos tão caros e raros teriam com elas, aquelas? Seriam, quem sabe, fetiches? Que fazes donzelas? As flores são quais aquarelas nas telas? E as moças tranquilas sorriso afiado: Carinho e cuidado


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DENALI Sussurra-me em tons celestes montanha azul. Acompanha os cantares, verde morro e aproxima seu cume já tão perto. Arrepia as penas e grita soberba, águia careca. Esbeltas árvores soltam as cardio folhas, em dueto com o vento. E eu, da raça que destrói enquanto aprecia, ouço o concerto e me inclino em reverência


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DRINK NO ALASCA Um tantinho de rum e Curaçao o recheio etílico do abacaxi. No molhado do trem envidraçado cai a chuva e respinga na janela. Corredeiras crescem fartas criam rios transparentes Estou só junto às águias em seus altos voos dominantes.


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VERÃO NO ÁRTICO Dos picos das montanhas a neve dissolvida desce ondulante. Deito abaixo doridos sentimentos e se juntam aos seixos frios. Flocos de neve pousam silentes sobre as folhas verdes do verão. Peacefully Tranquilamente...


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CANTATA Uma orquídea amarela dá o tom por sobre o verde das folhas maltratadas; alteia-se ignorando vento e açoite nas pétalas delicadas. Sob o céu cinza de chuva é ela o sinal da primavera. O olhar ensombreado do poeta posto entre o sonho e o amargor, inflama-se de esperança com as cores citrinas de Van Gogh


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EM VIAGEM Estrada, carro, caminhão, fios entrelaçados encobrindo a paisagem, faixa que não se enxerga, desvio que não se vê. Poluição. Motos aproveitam o espaço e sem pedir passagem tomam a contramão. Um veículo me espreme e uso um atalho Procurando um retorno, olho em torno, quilômetros de paralisação. Tenho inveja da pequena cidade ao lado, não ouso, fixada na rota principal. Um triângulo adverte: caçamba parada. Autos e estrada... mais nada. Anseio pelo oásis no outdoor anunciado. Ouvindo então, no radio, sentimental journey for heaven, me pergunto: valeu a viagem? Não aproveitei o percurso – é fria a vista, ocupado os morros, coberto o visual. Na entrada à esquerda o repouso – o gramado verde claro abranda o olhar e limpa os montes. Um período tranquilo, num céu sem nuvens, longe o meu destino. Imagino: Conseguirei?


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FIM DE VERÃO Macio vai-se o verão discretamente... O sol e o verão rendem-se ao frio. Sem querer eu me sinto diferente, melancólico travo cobre meus dias. Soltas descem as folhas quietamente grafitadas no chão mudas e frias. Inda azul é o céu, brancas as nuvens, não tão cálido sopra o vento matinal, e eu não defino se a tristeza é da quadra ou atemporal, criada pelo látego insistente desse meu coração já outonal...


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HOJE EM PELOTAS São cinco horas cresce o movimento no calçadão que avança no cimento, gente que entra e sai toma café, dirige, espera ônibus, segue a pé. Um rosto conhecido vejo de relance: não é você, é algum outro passante. Ao celular ouço em turbulência: “devo tomar o remédio com que frequência?” Carros, motos, bikes se aglomeram em ruas que estreitas, não são mais o que eram. Em meio à multidão sou contorcionista dos toques me desvio, lépida, artista. E quando em casa chego cansada, a cidade a exibir-se longe e iluminada, vivo no melhor dos mundos com certeza: tenho da city o agito, do campo a beleza.


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FOGO!* Meninas da Ásia Olhinhos puxados Trabalham na roça. A mãe pega água No rio lá em baixo. Meninas da Ásia Acendem ligeiras O fogo no chão Brincando de roda! Meninas da Ásia Voam na explosão A guerra de ontem Deixou de lembrança, Na terra, nas águas Em meio às florestas As bombas dormidas: Caídas do céu Qual enxame de abelhas A destruição!

*Para as crianças do Laos, Camboja e Vietnam, vítimas até hoje da munição não detonada deixada em suas terras pelo bombardeio americano.


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O TEMPO O inverno chega úmido e o sol se afasta com frio. Só o vento brincalhão dá cambalhotas, empurra as nuvens e atira as folhas no chão. O inverno chega em mim e eu me escondo assustada. Só o tempo se diverte estouvado. Sacode minha vida, desfolha meus sonhos e passa apressado.


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OUTONO Ah, o doce respingar da chuva nessa manhã de março, o vento a pastorear as gotas e afastar o bafo quente do verão. Há na tarde um frescor que não havia então. É um anuncio, prenuncio, nas cores já se vê o passo suave da estação a riscar colorindo as folhas e as flores a tombar no chão...


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DIA DA CRIANÇA Mora dentro de mim uma eterna criança, que dança feliz, as canções de roda, alegre, ativa jogando amarelinha, brincando de casinha. Resguardo, ao abrigo, minha infância, no sítio da lembrança onde ainda se permite o tecer dos sonhos, o viver tranquilo, um mundo em bonança ousado de esperança.


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VINTE DE NOVEMBRO Os canaviais tremulam frementes nas manhãs claras e quentes do nordeste agreste. Navios aportam cruzando o oceano, vindos do grande continente africano. Nos barcos infectados, transportado como gado, o bravo vem trabalhar – é escravo. Aqualtune, a princesa, desfila no leilão sua nobreza. Vendida como escrava, nas roupas dos brancos travestida, vê-se num relance, de sua realeza ser despida. Amontoado, o negro na senzala jogado, sofre de saudade e dor sob o jugo do feitor . No tronco, tratado a chicote e sal, não mais homem, animal. Alguns morrem, outros fogem e formam –se os Quilombos. Embrenham-se na escuridão da mata, organizam-se ocultos na folhagem verde prata, plantam e colhem, vivem e crescem


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Nos Palmares nasce senhor de si, livre e forte, Zumbi, o duende, o fantasma, o espírito . Entregue aos jesuítas, Francisco é chamado , a aprender português e latim é obrigado. Mas o neto de Aqualtune é príncipe e guerreiro assim, inquieto, foge e volta às selvas. Os canaviais tremulantes do nordeste, agreste precisam dos fortes lombos que agora se escondem nos Quilombos. Impossível a paz, a guerra se faz. Zumbi o fantasma, o duende, o valente o duro e firme combatente resiste ainda e luta. Na contenda, cede, cai e ao morrer se faz lenda. Seu espírito, no entanto, domina as eras, estanca o pranto observa e orienta seu povo. O que não viu em vida, vê agora, vê de novo nos filhos, dos filhos, dos seus filhos que crescem como iguais galgando os postos , que não mais em razão da cor lhes são negados


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Nas tardes claras e quentes do nordeste agreste Navios aportam levando a todos os lugares os herdeiros de Zumbi dos Palmares. Sob a brisa dolente , os canaviais tremulam ao sol o violรกceo farol de sua doce cana quente...


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PARABÉNS, PELOTAS A Princesa sonha, tem saudade de outro tempo, outra idade, onde em meio à cerração desliza a embarcação de couro... Época de ouro... Dos tropeiros, criadores, invernadas, charqueadas, fortunas brilham nos salões dos casarões, um império burguês com um certo ar francês. Acorda cidade, deixa ao largo a vaidade, tem orgulho do teu povo que, da tradição do passado, toma a força da miscigenação e da igualdade, da cultura popular, ao lustro da universidade. E a Princesa sorri complacente, contente, olhar nas marcas do ladrilho centenário. É jovem ainda, adolescente, no seu ducentésimo sétimo aniversário


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NAMORADOS Eu os vejo... Passos largos, braços dados E os suspeitos Enamorados Eu os sinto... Descuidados A urgência posta ao lado Eu recordo... Essa vivência De sonhar sempre acordado Plenos alma e coração Do querer o ser amado.


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COPA DO MUNDO Ao ritmo dos tambores novos senhores, copa do mundo à vista Esquecidas as dores, miséria, fome, tornam-se realezas a bola e o campo. Partilham as diferenças rebrilhando nas tranças as palavras de ordem: Paixão e coração Poder e emoção Orgulho e glória Coragem e vitória!


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CERTEZA Outono vermelho paixão, luz e brilho. No céu ensanguentado morre o sol. Devagar desce o pano a escuridão. Pássaros se recolhem esvoaçando. Outras tardes virão.


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MUDANÇA Dissolvendo-se na neblina os sons, os cheiros, as cores, os frutos, as flores... No caminhão os pertences: fogão, micro-ondas, geladeira, cama, sofá, colchão, mesa e cadeira; as roupas nas malas comprimidas, bem no fundo da mudança, o temor e a esperança. Chorando a nossa ausência a rua, a casa, nela uma cômoda que no apartamento não cabia, e na gaveta vazia: O SONHO.


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DEZENOVE DE ABRIL Índios, amor à terra, educação comunitária da criança. A ardida pimenta e o milho que sustenta, uma herança. As penas tropicais nos tons multicolores do cocar o urucum traçando o corpo em pajelança. Rituais... Palavras ora em dicionário escritas. Restos, traços, migalhas aflitas Costumes de um povo desaparecendo frente um chamado — Mundo Novo.


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FEIJÃO COM ARROZ Ah, que bom Meu arroz com feijão. Pobre? Enriqueço um tanto Com o guisadinho, Alface e tomate Azeitados e sal. Ah, que bom Gosto da infância De toda uma vida Num país tão grande De alegre sustância. Simples Meu feijão com arroz E depois Como a vida a dois Não preciso mais Tenho o necessário. A cor e o sabor Macio da terra Que sustenta e apoia A diária guerra


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Domingo de festa Feijão se engalana Com os agradinhos: A couve e a banana Linguiça gorducha Charque salgadinho Costela de porco. E caprichadinha Doce caipirinha.


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CORES Um sanhaço azul no galho da figueira, descansa à espera do figo maduro avermelhado. Um raio de sol claro toca e perpassa as flores rosas-pálidas da roseira anã, contido então, pelas folhas cerradas da verde samambaia. Quieta manhã de outono. No silêncio a natureza articula as mudanças, suaviza os tons. E a menina de olhos coloridos (de todas as cores) assiste e maneja o lápis em traços firmes, explosivos. Ela ainda não sabe mas está transformando a paisagem e seduzindo o mundo!


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PIPOCA Metade do prazer No cinema da infância E da lembrança. Pipoca no escurinho Degustada uma a uma Bem devagarinho. Difícil debulhar o milho Firme e unido No maltratar dos dedos. Trabalho de filho. Panela escurecida e larga Manteiga e o som do pipocar. Entreaberta a tampa Restam no fundo os grãos Perdidos no torrar Quem disse que o progresso De hoje, pode dar fim Ao secular programa? Anoitecer úmido e frio No micro-ondas o mesmo aroma Uma comédia romântica No vídeo, E eu de pijama...


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AMOR QUOTIDIANO Amado, Beijo-te com beijos da minha boca, e tomo o saboroso vinho que trouxeste para acompanhar a pizza do almoço. Não flui o trânsito como óleo escorrido e me atrasei. Qualquer moça casadoura quereria um marido prestativo como tu... Arrasta-me contigo, corra, vamos! A levar as crianças ao colégio! Exultemos! Alegremos! Ninguém perdeu a hora! Um pouco mais de vinho, celebremos! Com razão enamorei-me de ti...


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DIA DE SOL Enquanto lavo, torço, espano milhões de fótons escapam do núcleo solar e atingem a terra em forma de luz e calor; E você diz: que coisa linda um dia de sol! Pela janela aberta recebo os raios e a brisa amena; Enquanto lavo, torço, espano as plantas no quintal esmeram-se, lançando mil botões. E você diz: que coisa linda um dia de sol depois da tempestade! Adubo e afofo a terra deixando espaço às novas raízes; Enquanto lavo, torço, espano colho as nêsperas intumescidas e prontas. E você diz: como é belo o sol nascente! Libero a água clara que alimenta o solo. Nas roseiras os brotos avermelhados assumem; Enquanto lavo, torço, espano a sabiá agita e voa a alimentar os filhotes recém-natos. E você diz: cantas e o sol brilha em tua janela! Sorve o café , aromatizando a casa inteira; Enquanto lavo, torço, espano o sol desce incandescendo o horizonte sem adeus, refletindo-se na lua escura poderoso e ativo. E você diz: o meu sol é estar contigo! Sem se dar conta que o universo esforça-se e luta sem descanso cada qual seguindo a órbita para que na terra a primavera apresente-se verde, florida, ensolarada e linda; Enquanto, lavo, torço, espano, trabalho e canto!


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PALCO Na fileira da frente me sento e assisto o teatro da existência. Desfilam os atores a violência e o preconceito. Que é feito do bom e do bonito? Do natural e do bem feito? Percorrem sem cuidado a beleza falsa, a velhice siliconada e a vaidade sem limites. Trocam os papeis os pais e filhos, enchendo os consultórios insatisfeitos e atônitos, culpando a modernidade. Na comédia da vida todos fingem e ninguém é personagem.


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INÉRCIA Plic... Ploc... A goteira não me deixa dormir Plic... Ploc... Assim é a vida Plic... Chegamos Ploc... Partimos Ontem conversávamos Alegremente no carro Plic... Hoje ela é toda silêncio Ploc... Amanhã vou reparar O furo da calha Plic... Porque para a morte Não há conserto Ploc... Plic... Ploc...


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TUAS CARTAS “Só por saber que me esperas sinto alegria. Os astros giram ligeiro nas esferas porque me amas, eu sei, porque és minha.” Na calada do tempo, curada a urgência. releio tuas cartas. E me parecem lindas! Volto ao passado e recomeço. Respondo-as sem censura. Na meia idade, adolescente, tuas cartas de amor são meu presente.


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ADEUS* Havia muita gente ali. Nos olhos a inquietude e o assombro. Margaridas multicoloridas preenchiam o espaço estreito e quente, e as majestosas rosas púrpuras disfarçavam a perda parecendo chorar. Em conforto as palavras de Agostinho “ela não está longe, está do outro lado do caminho.” Dela a imagem colorida eternizada numa foto: Vestido escuro , cabelos soltos, sorriso confiante.

*Para Eleonora


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DEFININDO Sonho Ilusão Apego Viagem sem roteiro O que você clama – paixão Eu chamo humano Explosões Queimadas Águas em fúria A terra em convulsão O que você define – tragédia Eu chamo vida Escuridão Frio Silêncio O corpo em rigidez O que você proclama – fim Eu chamo inicio


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DE MANHÃ Na noite escura o mar revolto intumesce cresce e avança em ondas sobre a areia que espera. Outra vez e mais. Eleva-se de encontro às pedras espalhando a espuma branca. Recua extenuado. A chuva em pingos grossos dança e se contorce sinuosa ao sabor apaixonado do vento, em ritmo pulsante. Na manhã azul o mar adormecido e calmo enquanto o sol levanta a pálpebra do horizonte e escapa em cores compondo o arrebol. No quarto, lençóis no chão, os corpos repousam em quietude indiferentes à claridade resvalando pelas paredes aquecendo e anunciando um novo dia.


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MEU SILÊNCIO Gosto mesmo é de soltar o pensamento, numa casa quieta, mas não só. Assistir o desdobrar da chuva mansa que no momento cai fria, impune de fazer dó. Onde a primavera prometida? Aliás, quem foi que prometeu? Ela vem como quer, de forma consentida, desobrigada de você e eu, o vento a atingir plantas e flores revelando da terra a face entristecida como coisa morta. Não importa, que venha a Primavera, com seu snob ar de filisteu, pois que, nesse tempo, nesse dia, o silêncio desejado é agora Inteiramente meu!


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QUIETUDE Marca o horizonte um fio de azul, sobre as flores e ervas, sapos e formigas, ativos no quintal. No armário dos fundos o escuro protege os cegos morcegos. Um raio ilumina mirtilo carmesim, indeciso e débil, retirando a capa da bruma transparente. Em pingoteios a chuva borrifa o gramado e o sol não vem. Recebe satisfeito a umidade fria antúrio vermelho. E a muda singela que ontem plantei, ostenta, de pétalas abertas, florzinha amarela. A brisa que passa sacode os cabelos da doce samambaia os tons esverdeados ornamentando em luzes a porta da garagem Quase num sussurro conforme veio, vai. No céu de três cores branco, azul e cinza acorda a manhã.


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ALMA Sou uma alma das montanhas, nelas me oriento e refugio. Espreito o nascer do sol nos vértices dos morros e sondo a lua nova e branca a engastar-se nas silhuetas. Plano com as águias e condores acima das nuvens, por sobre as angústias das baixadas. Percebo os matizes dos cerros e me aninho nas escarpas. Levo, como os povos antigos, as oferendas aos píncaros mais íngremes para que os deuses me amparem e protejam. E, algum dia, se aqui voltar de outra forma, serei aquela última no horizonte: a mais alta e afastada, de cumes brancos tingidos pelas neves eternas...


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ELEITOS Por certo, em algum lugar incerto, uma mulher sente, contrita, a dor do parto e alguma outra em silêncio retira a poeira do quarto. Alguns tentam entender a injustiça sofrida outros ainda mantém a polidez perdida. Há os que lançam sua rede na lagoa esquecidos do sol, vento e garoa. Uma tece silente a roupa do bebê outra a indiferença dos filhos finge que não vê. Um guri leva seu cão a passear a pé, duas moças tomam suco num café. Há o insone construindo na madrugada poesia, e ao fazê-lo com carinho e minúcia a saudade desfia. Muitos na frente de batalha se contrapõe à guerra. Todos esses, humildes anônimos são o “Sal da terra”.


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PLANO A mesma paisagem branca na janela, Igual o tédio e a dor que desatina, Os dias imensos e planos como telas. Integrada à igualdade da rotina, Não se pode dizer se feia ou bela, Pois que presa onde está não ilumina. Não sei se me cansei, se é costume, A vida sem moldura, sem perfume!


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SENTIMENTOS E SUAS CONSEQUÊNCIAS

Quieto marimbondo Pousado no livro impede Que seja fechado


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POÇO Por detrás do quintal havia um poço Resguardado da minha meninice, Com um tampão a cobri-lo, velho e grosso, Muito embora ninguém jamais o visse. Eu sentia correr por entre as frestas Diminuto e tenaz raio de luz, Que criava ao luar doces serestas Numa senda de amor que ainda reluz. Nunca mais desde então um poço tive, Pois que este, contudo, existe e vive, Dentro em mim, em suave e quieto porto. E ao ver do luar um raio torto Reconheço de longe o seu luzir Na procura de um fundo a refletir!


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NÃO OLHES... Na calma e com passos lentos Deixo atrás no corredor Fotografias dos tempos Que se encerram sem fragor Mil odores pendurados Rescendem do comedor E os fogos já apagados Frios, sabem a desamor Antes fecho uma janela Que à sombra jaz incolor Tomo a sacola amarela Saindo com algum tremor E rogo indo a porta abrir Não olhes quando eu partir...


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ENTRELACE Meu coração e o teu entrecruzado De um duplo monograma acompanhado Pôs às claras o amor adolescente Num' árvore firmado, simplesmente Veloz escoa o tempo e açodado Deixou-nos cada qual com seu cuidado E o sentimento que quisera eterno Desvaneceu ante o primeiro inverno Ao rever nesse tronco tatuadas Nossas iniciais eternizadas Em vão chorei o pranto da saudade Num lamento à perdida mocidade Foram-se os sonhos, os doces cuidados Restaram os corações entrelaçados...


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QUALQUER DIA Num café, no almoço, em meio ao movimento você entra e nosso olhar se toca por um momento, você só eu desacompanhada. Onde foi que nos desencontramos?


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AMOR ANTIGO E eu que pensei não fosse mais capaz De amar assim com tanta intensidade Ao ver seus olhos inda de rapaz O coração se expande de saudade. A sensação me chega forte e audaz Amplificada então com a idade Mostrando um coração jovem capaz De um velho amor tornar realidade Pois amo sim, e é um amor tenaz Em cujo ardor perco a serenidade. Adolescente intrépido e vivaz Ora torno e me entrego com vontade. Eu que pensei não fosse mais capaz De amar, e fazer dele eternidade...


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MEU RIO Qualquer cidade fica mais bonita Quando há um rio que a divide ao meio Rio que canta curvas e saltita E a correnteza engrossa sem receio. Um sol poente e um nascer da lua De dentro dágua têm melhor efeito. Disco dourado, imenso se insinua Como um Netuno que emerge do leito. Luz prateada do luar em cheia Desenha um rastro claro, alumiado Na superfície e lança sua teia. Amo esse rio, seco ou alagado Pois no meu peito vive onde incendeia E bate, ao invés de um coração cansado...


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VELHO AMOR Esse amor que joguei pela janela Num acesso de mágoa irrefletida, Desaparece no viés da viela Deixando-me só, triste, deprimida Vejo-o ir haragano e satisfeito Iluminado ao sol mais que perfeito. Não sonoriza a voz em harmonia Nem canta com o vento a sinfonia Amor demais genérico e banal Sem flores, sem carinho, sem poesia, A conta dividida dia a dia Concluo com pesar se ao final Não sendo parceria em dupla via, Nem mesmo era amor, e eu nem sabia...


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PLÁTANO O tronco liso e claro Desdobra-se em dois, três, quatro e sobe ao céu azul turquesa. Raízes fortes mergulham fundo, através das águas, terra adentro. Não sei o que procura espichando os galhos cada vez mais longe e acima. Quem sabe anseia alcançar os condores soltos na imensidão mais alto e além? Ou persegue por dever de ofício o “Zonda” mau e quente a abrasar as vinhas? Talvez vá ao encalço do Deus Baco e suas ninfas desaparecendo no horizonte em direção ao Olimpo. Será saudade das neves imortais algodoando os cumes elevados da solidão andina?


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As folhas cochicham entre si e com o vento. Douradas, soltam-se, deslizando sinuosas perdendo-se aos meus pés apenas murmuram:

“É tempo de outono”.


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QUERO-QUERO O vento frio, gelado, cortava rápido o Pago. Então batia frouxa à janela pesadita a solidão, e o sol nos seus descaminhos não brilhava mais pra mim. Até que simples assim, um bando de quero-quero disperso em frente à praça, saltita cheio de graça com seus gritos e correrias, devolvendo ao coração dormideiras alegrias. Esqueço tristeza e luto só de olhar pro seu penacho, tão lindo que até acho (vejam só a presunção desse imodesto peão): que o bando agora de três tornaram-me seu freguês, e me chamam pra dançar!


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VELHO Tua voz é rouca e poderosa. Arrastas em teu passar o que existe em volta. Há muito tempo estás presente nas coxilhas, a romper com teus cantos as quebradas dos Pampas! Chamam-te velho, e ao te sentir no horizonte se amedrontam, mas eu recolho teus cantares fazendo meus, teus inúmeros penares! E muitas vezes clamo contigo meus quebrantos, rompendo os ares, fazendo coro com teus prantos meu velho amigo Minuano!


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BANHADO DO TAIM Esconde a grama verde e nova filhotes de tachã, no azul da dourada manhã. Imóvel o jacaré, usufrui o calor a ativar nas bromélias, as asas fervilhantes de um doce beija flor. Em revoar rasteiro pousa no galho, o carcará fagueiro. Por entre as águas e o Iguapé, um cisne preto e branco exibe sua cria, e num só pé, a garça branca aprecia o sonolento arrebentar do dia. Inquietos quero-quero cortam o céu voando, sem desassossegar, do sono repousante, as capivaras em bando. Tudo é vida, sinfonia e cor, no alagado verdejante, renasce e brilha a fauna exuberante. E assim e por fim, recomeça o festim, é Primavera no Taim!


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MEDITAÇÃO Fecho os olhos e observo a respiração. Como um cego tateio imagens dentro de mim, onde estão? Pensamentos acorrem distraídos pondo ordem na casa – sua função. Mais forte domina a sensação e sinto... Procuro a dor e com ela reconcilio-me Dor de apego, cegueira de emoção. Olhar equânime vê do mesmo modo a dor e o prazer, sabendo que tudo passa, é ilusão. E me vou, solta, longe do mundo e do seu ruído.....


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PRESENTE Embora não te veja Senhor, Posso senti-lo nos perfumes, Nos coloridos das flores E à noite no piscar dos vagalumes... Não sendo com palavras que me falas, Posso escutá-lo no arrulhar dos ventos No mar cujas ondas embalas, No trilar dos pássaros barulhentos... Na ausência da tua presença física Abraço a criança que sou E é teu calor que me passa. Enquanto o tempo avança, Sei que estás aqui presente, Na vida que me deste radiante No corpo que sustem minha alma Imortal, em tudo a Ti, semelhante.


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DESAPEGO Dez canteiros de verde numa esquina as flores ao redor, dormitam perfumando o ar da manhã. Gaivotas clamam forte e chamam o sol. Levam, em formação, minhas penas com as suas, aos altos céus. Longe ...entre os morros, o mar, o infinito. Fecho os olhos, sonho, em sossego, vazia a mente. Muito acima do Bem, distante o Mal!


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ELE O que outorga força aos oceanos e resvala em altiplanos, visível/ invisível sob véus ao se retratar nos céus. Paira sobre a montanha mais alta é presente em sua falta, sustenta os astros no vazio imprime ao homem seu feitio. Senhor do infinito saber, ELE que é e era antes de ser.


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CHAMADO Na manhã nebulosa Procuro flores Entre a grama espio cautelosa Anseio seu perfume Desejo cores Espalhadas no chão, caídas folhas Na quadra meio triste De céu cinzento Eis que surge o outono E o advento!


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NATAL A mulher embala seu filho que chora. O bebê descansa à espera da hora. Nosso mundo carente e perdido, repousa sobre a mãe que vela e a criança que dorme.


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HISTÓRIA DE NATAL Uma estrela que Brilha Numa noite escura Fornece a trilha Três reis em seus camelos Cruzam o deserto Cheios de atropelos Na procura Um bebê que nasce Num berço de palha E adormece Entre panos de alvura.


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NESTE NATAL Neste Natal, sem surpresa, Irei de novo lembrar Os que faltarão à mesa E eu quereria saudar. Logo ao terminar a festa Certa solidão me abate. Porque de tudo que resta Na vida de duro embate É a prazerosa lembrança Do encontro, da alegria, Do amor a demonstração Real, sólida, sem utopia Dos que moram no coração. É a presença, não o presente Que causa satisfação. É rever no fim do ano A quem nos acompanhou Em parte de nossa vida E que o tempo arrebanhou. Não importa se falta a Sidra Se o peru ainda não chegou... O que é gostoso, de verdade O que dá “clima” à reunião, É a doce cumplicidade Do amor, do amigo, do irmão!


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PRESENTE DE NATAL Tremeluzem as árvores em cada esquina lojas anunciam o Natal ensimesmada eu, e penitente fantasio um presente condizente com essa noite mais que especial. Tantos abraços, quantos abortados quantos sorrisos alguns mal conduzidos tantos gestos de amor não concebidos medos no coração agasalhados. Em tempo de reflexão e alegria hora é de reciclar e com vontade: Polir amores, escovar sorrisos, converter a tristeza em caridade. Reparada que estou não mais me abalo sob a árvore deponho meu regalo nesta mágica noite de Natal!


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FELIZ ANO NOVO Num passo incerto, lento e devagar O Ano Velho vai indo e passa, Aos tropeços, o turbilhão da vida ultrapassa. Deixe que vá e leve Os desenganos, dores, desilusões Que pelas sendas do mundo Vêm chegando aos corações. Reste o instante ditoso, inda que breve Momentos de êxtase, felicidade, afeto, união completa, Quando a alma em aconchego Respira suave e quieta. Supondo o espírito em calma, alvo e puro como a neve, Saudemos o novo tempo De presente e intocado, Que seja de muita paz e de amor iluminado.


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NATAL MODERNO Panetones ordenados em cúmulos nos supermercados, bolas coloridas ao lado. Papais farfalham entre as mercadorias e sorriem. Crianças ganham bichos de pelúcia em chapéu de Noel. Num momento livre entre as desgraças empilho as graças junto às bolinhas de festa. Na cesta da esperança deponho um sonho: é Natal!


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PRESÉPIO Na manjedoura bem pobre Nasce Jesus, Ele nobre Ensinando à toda gente Que a humildade é coerente Com a vida aqui na terra. Era de paz, não de guerra. Pregou o auxílio ao irmão De todos ter compaixão. “Se queres no céu entrar Vai teu irmão procurar. Deixa tudo, segue adiante Sendo do pai confiante. Ama assim como te amei Essa a verdadeira Lei.”


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ANGELUS Seis horas, entardecer, Sinos tangem com alegria Anunciação de Maria — Ave Maria! Seis horas, é fim do dia Na despedida do sol Que se vai no arrebol — Ave Maria! Seis horas, hora tardia Aves recolhem-se ao lar Pois é hora de rezar — Ave Maria! Seis horas, lá no poente As cores rosa luzente Fazem do céu poesia — Ave Maria! Seis horas, da tarde fria No outono um quase inverno Segue no mundo moderno Sendo a hora de Maria!


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TENHO SAUDADES... Das árvores altas, na rua estreita e torta Da chave inútil na porta Um gato no portão, o aroma de rosas amarelas Pessoas nas janelas; Das cadeiras nas calçadas, E a conversa à toa, a vida singela e boa, Do sol amarelo e quente, Secando a roupa da gente; Da merenda dividida no recreio Com o brinquedo de permeio, Da pipoca, da matinê, Do beijo, que no escuro ninguém vê. Mas isso habita apenas a memória, E o lembramento que tenho, é enfim, A ressonância de mim.


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LILÁS Doída nostalgia no caminho Partida, solidão, ausência de carinho Sentir ao lado tua amada presença, E a dor de uma saudade imensa. Passado a invadir sem pejo o presente Só tua flor renasce lilás de contente. Momentos de ternura e paz Sob a buganvília lilás...


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PRESENÇA* “Quando a cinza da tarde no horizonte tinge de rubro o lento anoitecer,” recordo-me de ti baixada a fronte um poema silente a entretecer. Penso em teu vulto calmo e elegante e no teu rosto à luz do entardecer, “quando a cinza da tarde no horizonte tinge de rubro o lento anoitecer”. Não mais “da vida a busca incessante”, sim, a paz a cobrir-te inteiramente, cabelos brancos ornando o teu semblante, e a vívida ilusão que estás presente, “quando a cinza da tarde no horizonte...”

*Rondel inspirado no soneto A Fonte, de Reysina Vianna Ramos, do livro Passos, distância e poesia. Em homenagem.


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CANTIGA PARA VOVÓ Deitada na cadeira de balanço A vovó dormia. E no sono sonhava e sonhando sorria Pela fresta da porta, a menina espia Deitada na cadeira de balanço A vovó se vai, sem um ai Pela face da menina triste Uma lágrima rola e cai. Sentada na cadeira de balanço A mamãe ninava E ninando cantava e cantando criava Pela porta entreaberta vovó cuidava.


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NA GAVETA Num dia de aniversário na gaveta por acidente, saiu de dentro do armário meu sonho adolescente. Estava tão bem guardado em papel branco de seda, já bastante amarelado: mas vivo e em labareda! Este sonho engavetado me disse: chegou a hora, não tenho mais validade deves decidir agora. Olhei-o, bem, com firmeza vi que dizia a verdade. decidi, pois, com presteza, torná-lo realidade.


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SAGRADA FAMÍLIA Num estábulo improvisado Maria plena de afagos cuida o filho bem amado, José acolhe os reis magos... E o menino envolto em panos de vestes desafogado, dorme velando os humanos no berço de palha armado... Para sofrer vil horrores, têm um filho destinado. Enquanto o espreitam as dores, deixam-no ser adorado...


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SOBRE O MESMO CÉU Ele considerava as dores, horrores, os golpes aplicados, os pecados a vida casta e pura, a conquista do além, rogando amém. Eu mirava espaço azul, a paz no coração e o perdão. A vida trabalhada em compaixão,. amor bem repartido e consentido, um Deus aqui presente, onipotente a nos guiar agora, como fez outrora. E questiono suave, se porventura, estaríamos nós, no rosto um véu especulando sobre o mesmo céu!


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VÉSPERA DE NATAL Manhã de calor. É quente, muito quente a véspera de Natal. A lua no crescente, navega pelos céus. Engolem nossos sonhos, na terra domicílio, as moscas e mosquitos em tribos inquietas. Desejamos chuva tamborilando em cadência nas telhas ressecadas, refresco benfazejo nas noites de verão.


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CINCO MARIAS Éramos as cinco Marias e desse jogo brincávamos. Não importa onde se ia porque sempre nos lembrávamos de levar Cinco Marias. Passou-se o tempo e agora? Três delas se foram embora conhecer, pois foi preciso, onde fica o paraíso. E as duas que restaram, nostálgicas, não mais voltaram a jogar Cinco Marias.


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CIRANDA “Passa, passa, três, três, que a última há de ficar, Se a última não ficar, a primeira ficará...”; e nesse passa, passa, ingênuo de folgança, passou-se livremente lá na estância, os belos, calmos dias de criança!


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VOU-ME EMBORA DE MIM No sol claro, ardendo em brasa observo do meu carro o pássaro João de Barro arquitetar sua casa. Numa árvore bem alta onde luz não fará falta de frente prá goiabeira do meu pátio alvissareira, que lhe dará, com certeza, a fruta que a natureza fez colorida e cheirosa. Nesse momento, ansiosa, saio de mim de mansinho. Vou também ser passarinho! Ficar bem alta e em paz onde não serão capaz de destruir, os mesquinhos esses preciosos ninhos, que unindo trabalho e graça, despreocupados da caça tornam os pássaros seu lar!


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CANTEIRO Que pena, foram-se todas as flores e o jardim encabulado seca acumulando restos, como se o tempo passado invalidasse o presente.


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GUARDADOS Entre papel amarelo e bem guardado Jaz um botão de rosa amarelado Perdidos sua cor e seu perfume E a paixão que se foi deixa um queixume Para um resto de amor tão desbotado Na caixinha dourada inda guardado De que vale agora o relicário Se não existe a razão deste cenário?


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MÃE Nos reuníamos nas manhãs na praia Doce tempo feliz, sem pretensão Atado na memória e coração A areia, as ondas, o sacudir da arraia Peixe saudável comprado em arrastão Você, eu, o sol, o mar, o verão Você nunca me disse –voltarei E a sua espera estou, sempre estarei!


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ILUSÕES No labirinto da vida passeio Por intrincadas linhas sinuosas Interligadas fortes emoções Que sustentam então velhos anseio Quero parar pois que são perigosas Armadilhas atreladas às ilusões E reconheço entre surpresa e triste Que o que o que supus passado inda persiste!


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ROSAS O meu pai plantava rosas Lindas rosas cor de rosas Que floriam em seu jardim Mas se foi o jardineiro Partiu para outros mundos Levando suas sementes Para tornĂĄ-los fecundos E as rosa tĂŁo formosas Doces rosas perfumosas Se apartaram de mim.


102

LIBERDADE (cantiga)

Na areia da praia Quero ir pro mar Num barco vadio Quero navegar. O vento bravio A รกgua a agitar Sozinha nas ondas Atraio o luar. Do mundo arredio Me afasto a cismar Sereia nas vagas Vem me acompanhar.


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MEU LUGAR Os olhos fechados ainda sentem teus ares quentes tuas pontes, teu rio calmo em deslizes., corredio nas pedras, cantante, soante, frio. Rostos sobrepassam em extravio esquecidos, ausentes. Mas minha terra clama em luzidio viva, em pulsos, fremente.


104

A QUE PARTIU* Te foste, após batalhas vencidas e lutas perdidas. Fugaz a Vida levou tua presença, teu sorriso, tua amizade, tua ternura. Deixando-nos a emoção aprisionada do adeus e um rasto de saudade... Na estação, a bagagem recheada de sonhos a espionar solitária o último trem que se foi...

*Para Raquel


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LURDINHA* Silêncio breve cheia de amor ela era assim Intensa e leve Com força e raça Embora a dor Se foi assim Cheia de graça

*Para Lurdinha


106

RUA ANTIGA, RUA AMIGA Permeando a janela o firmamento escuro e tenso. Onde a rua larga, arborizada, com um céu cheio de estrelas e flores na calçada? De pedra irregular pavimentada que o tempo fez polir, escorregar? Foram-se as árvores. Na via hoje asfaltada, correm os automóveis sumiu a criançada. Ninguém parece à vista na casa gradeada. Na escuridão solitária só me restou fiel essa noite estrelada...


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QUANDO VOCÊ Numa manhã de Páscoa e de sol O mundo que sabia colorido Exuberou-se em matizes de Van Gogh Porque você entrou em minha vida Transformando o conceito de beleza E a definição de ser feliz Foi-se então para sempre o desencanto Revelou-se a alegria de meu pranto


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GATOS Amor felino, felinamente evidente forte, olhar penetrante, elegante porte. Meu gato de escolhas definidas, afeição presente. Destro e brincalhão adoro vê-lo ao acordar, no hábil movimento de estirar, contorcer, esticar, relaxar, exercitando os pulos e o andar: sensual, macio, sedutor...


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ERRANTE Sou assim meio cigana dia aqui, um outro lá viageira, viajante eterna nômade andante. Vejo a sorte, leio mão danço bem, falo caló. Ah quem dera fosse verdade tivesse oportunidade libertar alma gitana.


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INVERNO – SAUDADE Num canto escondido chinelos de lâ preservam o modelo dos pés. O vento assobia revolvendo folhas no vidro através. Ao redor da praça passa, a gente passa buscando os cafés. e eu com saudade do calor-bondade que eras e não és.


111

LUAR Eu te segui ao sol evanescente, quase a iluminar breve o nascente. Ao cair da tarde nĂŁo te encontrei no sol poente. Embora tivesse o teu rasto bem presente nas noites escuras pinceladas de estrelas por onde andavas? A procurar-te me embrenhei nas sombras a ver onde sonhavas... E quando sob a luz resplandecente por efeito de magia eu luava, nesse ponto de encontro a luar tu me esperavas...


112

PARTIDA Silêncio, o quarto está vazio, sem ruído, escuro, toda luz apagada. Ouço o cri-cri do grilo atrás da porta. Jamais pensei que ao partir, levarias contigo, além da minha, também a alma da casa.


113

BRAÇOS Um círculo onde a gente se encaixa Um útero quente onde se abriga. De tudo um pouco: amizade, perdão, afeto, amor compreensão.. Nessa roda eu desabrocho deixo a lágrima aflorar. Porque triste é quem não se constrói ciranda num abraço


114

DIA DAS MÃES Caminho pela estrada da memória A perguntar onde estarás guardada Serena e linda, confiante e forte. Desvelo o sonho e lembro da história Que me contavas plena madrugada Quando da noite a insônia era consorte Mas não podes me dar suave a sua mão Para eu dormir serenada então


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O APAGADOR DE VELAS Ao terminar a missa o sacristão tomava diligente o apagador de velas, um longo, cilíndrico e fino bastão com um cone na ponta, na figura de donzela. Esta descendo a fronte cada vela abafava e então, sem ruído a apagava. Quedava eu a cismar se igual instrumento, quando do espírito chegasse o crucial momento, o sopro da vida extinguiria em calma qual piedoso apagador de almas.


116

CREPÚSCULO Meus sonhos deitam-se na grama molhada da chuva de verão. compartilham a bruma enfumaçando o céu avermelhado. Na quieta tarde em que a natureza se prepara pra receber a noite, o gado pasta mudo, perfeita tela suave em pastel. Um poste aceso alumia a claridade e chama estrelas. Nuvens baixas pequenas e escuras correm atrás do dia que se vai.


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GAROTA DE TRINTA Jovem e linda, trazendo os sonhos pela mão. Olhar reto e seguro no comando firme da razão. Fazes trinta. Menina ainda, crédula,indistinta da mulher que luta a batalha da vida. Resoluta, compreendes, atrevida, que a ação pronta, confronta, não amedronta o poder de um coração leve e amoroso ofertado no sorriso largo, afetuoso.


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LAÇOS Sentes saudade? Perguntas devagar. E eu o pensamento a agasalhar, nos teus braços, enlaços, amassos, daquele tempo bom. Como não lembrar? Rememorar? Respondo sem pressa, o peito a amornar, ás vezes... Ainda existem laços...


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A HORA DO AMIGO Perpasso as folhas que se abrem sem me deixar entrever o que contém, As palavras flutuam e brincam sugerem o tema não o fim. Gosto dele, do seu formato e perfume e da dedicatória que alguém tão sugestivamente ali escreveu. Agora é meu. posso alisá-lo como a um corpo nu, suavemente aspirar e esperar que me desvende seus segredos. É um amigo-amante e estar com ele me faz muito bem.


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DONA DE MIM Gostaria de ser dona de mim. de não ser prisioneira dos meus temores, das obrigações que não pedi, dos sonhos que não realizei, de um corpo que não acompanha o espírito e me impede de voar. Da alma que sonha sozinha novos caminhos... Não, definitivamente, não sou dona de mim. Vagueio presa ao que não sei, ao que poderia ser e ao que não é. Mantenho livre a alma e o pensamento que procuro lançar ao encontro do nada e curtir o momento. Mas... sim... Gostaria sim, ser dona de mim.


Vilma Avila Vianna, capixaba, radicada em Pelotas. Professora aposentada da UFPel nas áreas de Nutrição e Alimentos. Mestrado em Ciências. Membro do Centro Literário Pelotense (CLIPE) e do Grupo Literário da Biblioteca (GLIB). Assinante, colaboradora do site Recanto das Letras. Autora dos livros de poesia HAICAI e PELOS CAMINHOS. Coautora dos livros de contos, A QUATRO MÃOS, TIA LOLÓ, A LIXA DE UNHAS E OUTRAS HISTÓRIAS, e da trilogia: CONTANDO, CONTANDO PELOTAS 200 ANOS e CONTANDO O LARANJAL. Participou do II Seminário Nacional de Estudos da Literatura em Pelotas e da atividade experimental A NOITE DA CRIAÇÃO. Recebeu o Prêmio Victória em Montevideo, Uruguai e a Medalha da Ordem do Mérito da Academia Pelotense de Letras, Pelotas, RS. Seus trabalhos integram várias coletâneas, em especial a Coletânea Anual do CLIPE, esta desde 2007.




... as folhas cochicham entre si e com o vento. Douradas, soltam-se, deslizando sinuosas perdendo-se aos meus pés apenas murmuram: “É tempo de outono”


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