A sobrevivências do depois

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sobrevivências do depois memorial de Bento Rodrigues

Victória Silva Segura De La Torre Trabalho Final de Graduação apresentado à Faculdade de Arquitetura e Urbanismo Mackenzie sob orientação do professor Dr. Igor Guatelli. São Paulo, Dezembro de 2019



Uma singela homenagem aos homens e mulheres atingidos pela lama em novembro de 2015

“No limite, a dor é individual, de cada um, indizível, incompartilhável. O sofrimento muda, mas não passa.” – Carta dos atingidos pela Samarco em solidariedade à comunidade de Brumadinho e região, atingida pelo crime da mineradora Vale



Agradecimentos

À minha família, em especial minha mãe, Cleide, e meu pai, Carlos. Obrigada por sempre estarem comigo, fisicamente ou espiritualmente. Seu apoio incondicional, suas palavras de ternura e incentivo, mantiveram-me firme. As palavras são insuficientes para demonstrar minha gratidão por vocês. À meus amigos FAU MACK, obrigada por tornarem esta formação a dualidade perfeita entre alegria e tensão. Aos antigos amigos, por entenderem minha ausência tantas vezes, Kristel, Luiza, Larissa e Fernando. Às novas amizades, Betina e Rafaela, pelas palavras aconchegantes de apoio e serenidade. À prefeitura de Mariana, Nilton, e a Defesa Civil de Mariana, Stopa, pela recepção e cooperação para obtenção de dados e auxílio na visita a Bento, essencial para a concepção de todo o trabalho. À Fundação Cáritas do Brasil, à Arquiteta Amanda Fernandes, pelo compartilhamento de pesquisas. Ao professor Igor Guatelli, minha profunda gratidão, pela generosidade e pelas conversas, ideias, conceitos que sem os quais este trabalho não seria possível.

Obrigada.



Introdução

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Tempos Tempo gradual Transformação do Poblenou em 22@ Barcelona megaeventos e o poder soberano Relação de inclusão e exclusão nos bairros de chegada

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Tempo antecipado Caracterização geral da barragem do Alqueva Aldeia da Luz: o processo de deslocamento A nova Aldeia da Luz Viver à base de necropolíticas

Tempo previsível História de Bento Rodrigues O crime anunciado Depois da Lama

Conversas entre o pós deslocamento de refugiados e imigrantes

O caso de Bento Rodrigues

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Processos e dispositivos Midialização da memória Perdas Musealização da memória Simulação Retorno O local Justificativa de pesquisa O memorial do memorial Bibliografia

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Introdução De acordo com o artigo estratégico “Migrantes invisíveis: a crise de deslocamento forçado no Brasil”², entre os anos de 2000 e 2017, 8,8 milhões de pessoas foram forçadas a se deslocarem no Brasil. Este estudo aponta que desastres naturais ou provocados pelo homem, como incêndios e rompimentos de barragem, são os principais motivos que atinge a população brasileira (cerca de 6,4 milhões de pessoas). Qual a situação jurídica, política e social dos migrantes e refugiados, após chegarem na terra de destino? Este trabalho analisa temporalidades nacionais e internacionais, do trágico e dos deslocamentos causados por estes. O rompimento da barragem do fundão, em 2015, como caso nacional, foi estudado pela dimensão do crime anunciado, (650 km ² INSTITUTO IGARAPÉ. Migrantes invisíveis: a crise de deslocamento forçado no Brasil. 29 mar. 2019. Disponível em: <https://igarape.org.br/wp-content/uploads/2018/03/Migrantes-invis%C3%ADveis.pdf>. Acesso em: 19 jan. 2019.

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de rastro de lama, 32 bilhões de litros de rejeitos jogados no meio ambiente) considerado, hoje, o maior acidente meio ambiental do Brasil, e pela destruição física de Bento Rodrigues, transformando o sub distrito em ruínas, entretanto, ato incapaz de destruir o elo afetivo dos moradores com o território.

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Tempos A migração não é uma ação exclusiva humana e muito menos desconhecida por nós. Nos movemos desde os antepassados paleolíticos em busca de sobrevivência, até os dias atuais em busca de melhor qualidade de vida. Como observa Franchesco Careri, em seu livro “Walkscapes: O caminhar como prática estética”: “O ato de atravéssar o espaço nasce da necessidade natural de mover-se para encontrar alimento e as informações necessárias para a própria sobrevivência. Mas, uma vez satisfeitas as exigências primárias, o caminhar transformou-se numa fórmula simbólica que tem permitido que o homem habite o mundo. Modificando os significados do espaço atravéssado, o percurso foi a primeira ação estética que penetrou os territórios do caos, construindo aí uma nova ordem sobre a

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qual se tem desenvolvido a arquitetura dos objetos situados. [...] A partir dessa simples ação foram desenvolvidas as mais importantes relações que o homem travou com o território.” (Careri, 2013, p. 27)

Desde 2015, o mundo assiste ao aumento exponencial de migrantes forçados transitando pelo globo. Segundo o relatório Tendências Globais¹ , divulgado pela Agência da ONU para Refugiados (ACNUR), em 2017, 68,5 milhões de pessoas se tornaram deslocados forçados, sendo 25,4 milhões de refugiados e 40 milhões de deslocados internos. A fim de entender a situação política dos indivíduos, proponho a aproximação ao conceito 1 ACNUR. Tendencias globales. Desplazamiento forzado em 2017. 20 jun. 2018. Disponível em: <https:// s3.amazonaws.com/unhcrsharedmedia/2018/Global_Trends_Forced_Displacement_in_2017/TendenciasGlobales_2017_web.pdf>. Acesso em: 22 jul. 2019.

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de biopolítica de Michael Foucault, a partir da análise do livro “Homo Sacer” de Giorgio Agamben. Foucault apresenta o processo através do qual, a vida natural começa a ser incluída nos mecanismos e nos cálculos do poder estatal, e a política se transforma em biopolítica. “Por milênios, o homem e permaneceu o que era para Aristóteles: um animal vivente e, além disso, capaz de existência política; o homem moderno é um animal em cuja política está em questão a sua vida de ser vivente.” (Foucault, 1976, p.127 apud Agamben, 2014, p. 10). A partir do estudo de Foucault, Achille Mbembe analisa como as políticas de morte que comandaram a África na época da colônia ainda estão inseridas em nossa sociedade, porém mascaradas pela biopolítica³. As políticas de morte, seguem o esquema “Fazer morrer e deixar viver” (Tradução livre) “Hacer morir y dejar vivir” (Mbembe, 2011, p. 14), e o autor as denomina como «necropoltíticas». Quais são as consequências no território, que provém das políticas de morte? 20


Foram estudados 3 casos de deslocamento forçado, e classificados com relação ao tempo de sua durabilidade. Fruto de intercâmbio, foi analisado como as grandes obras de reurbanização em Barcelona (ES) produziram grande diferenças sociais entre os bairros do Raval e do Poblenou, área de atuação do projeto 22@. Nos dois bairros ocorre a chegada (e anteriormente a saída) de migrantes, provenientes da União Europeia, e refugiados em sua grande maioria, provindo dos países árabes (Segundo os dados da Comissió Espanyola d’Ayuda al Refugiat). O caso da Aldeia da Luz (PT), que após a dupla destruição da antiga aldeia, os moradores foram deslocados para uma nova aldeia, cópia e modernização da ³No livro Vocabulário de Foucault, Edgar Castro cria um mapa das principais temáticas e questões de Foucault, com indicações de seus usos e contextos. Em seu livro expõe o conceito de biopolítica, e seguindo os pensamentos de Foucault, explica que desde o século XVIII percebe-se que o poder deve exercer-se sobre o indivíduo, uma vez que constituem uma espécie de entidade biológica, a fim de tornar-lhes maquinas de produzir riquezas, bens, e outros indivíduos. Por isso, a biopolítica é a “maneira pela qual, a partir do século XVIII, se buscou racionalizar os problemas colocados para a prática governamental pelos fenômenos próprios de um conjunto de viventes enquanto população: saúde, higiene, natalidade, longevidade, raça.” (Castro, 2016, p.59-60)

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antiga. A destruição de 80% do território de Bento Rodrigues (BR), fruto da sobreposição do lucro sob a integridade humana. Com relação ao tempo de durabilidade, classifico: Tempo gradual, a transformação, ao longo dos anos, do Poblenou em 22@; Tempo antecipado, o lento processo de construção da barragem do Alqueva e na Aldeia Nova Luz; Tempo previsível, o rompimento abrupto da barragem do fundão e o abandono imediato do subdistrito de Bento Rodrigues.

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1.1 Tempo gradual4 Transformação do Poblenou em 22@ No plano de reestruturação urbana “Barcelona Olímpica 92”, ocorreram diversas transformações na cidade: construção de complexos olímpicos, construção da Vila olímpica, recuperação da praia e de todo frente marítimo, construção do CCCB (Centre de Cultura Contemporània de Barcelona) e MACBA (Museu d’Art Contemporani de Barcelona) no bairro do Raval. Segundo José Cordeiro, o bairro do Poblenou estava inserido no plano de restruturação “Barcelona Olimpica 92”, mesmo que indiretamente. Em 2000, por iniciativa do Ajuntament de Barcelona, cria-se o projeto 22@, que visava transformar 200 hectares de solo indústrial, em uma cidade compacta e inteligente. Define-se um novo modelo econômico baseado em Mídia, TIC (tecnologia de informação e comunicação), energia, design e tecnologia médicos. “O objetivo era o de criar um contexto privilegiado para o desenvolvimento das atividades mais inovadoras da economia do conhecimento, as quais, por essa razão, recebem a denominação de atividades @.” (Cordeiro, 2011, p. 159). O plano pretende promover um “novo modelo urbano no qual os novos edifícios e espaços públicos convivem com os traços históricos e os elementos representativos do passado indústrial do bairro, criando um entorno de grande valor cultural, no qual confluem a tradição e a inovação”(Tradução livre) “modelo urbano diverso, en el que los nuevos edificios y espacios públicos conviven con las trazas históricas y los elementos representativos del pasado indústrial del barrio y crean un entorno de gran valor cultural que combina tradición e innovación.” (Dirección de Urbanismo 22@ Barcelona, 2012, p.15). Gradual: que aumenta ou diminui por grau; que possui graduação, divisões estabelecidas na escala do instrumento. A ação gradual é uma ação que se constitui ao longo do tempo, constrói-se lenta e constantemente. 4

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Antiga nau-taller Oliva ArtĂŠs. Fonte: Poblenou Urban District.

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Barcelona Megaeventos e o poder soberano Estas obras de reurbanização, somadas ao passado histórico de megaeventos (Exposição universal em 1888 e 1929, Forum Universal de las Culturas 2004) moldaram a cidade para o turismo: os pontos turísticos não se concentram apenas no centro da cidade, há um grande pedaço da orla destinado a praias, o transporte é mais barato, comparado com outras cidades europeias. Também produziram uma enorme segregação sócio espacial: o Poblenou, bairro de atuação do projeto 22@, reúne diversas universidades, empresas de tecnologia, construções contemporâneas, disponibilidade de aluguel de apartamento; O Raval, por sua vez, nunca foi alvo de alguma forte intervenção (salvo a construção do MACBA e do CCCB), suas ruas mal cuidadas, há diversos moradores de rua, pessoas drogadas e alcoolizadas, e atualmente é considerado o bairro mais perigoso de Barcelona. Diagrama da cidade de Barcelona e as regiões afetadas por mega eventos. Fonte: autora

Estas transformações demonstram a força do Estado perante os cidadãos e o território. Giorgio Agamben, utilizando a definição de Georges Bordeaux, distingue o poder constituído, que existem somente no Estado, inseparável de uma ordem constitucional preestabelecida, do poder constituinte, situado fora do Estado. Nesta perspectiva, partindo da tese de Sieyes, segundo a qual “a constituição supõe antes de tudo um poder constituinte”, Agamben explica que: “Como o poder soberano se pressupõe como estado de natureza, que é assim mantido em relação de bando com o estado de direito, assim ele se divide em poder constituinte e poder constituído e se conserva em relacionamento com ambos, situando-se em seu ponto de indiferença.” (Agamben, 2014, p. 47)

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Notícias sobre o Raval. Fonte: La Vanguardia e Jornal Folha de São Paulo.


Esta impossibilidade de diferenciar claramente o poder constituinte do poder soberano, mascara a violência do Estado. As reestruturações da cidade, foram impostas pelo Estado, para atender as necessidades do megaevento. Esta imposição caracteriza o poder violento do Estado. “A soberania se apresenta, então, como um englobamento do estado de natureza na sociedade, ou, se quisermos, como um limiar de indiferença entre natureza e cultura, entre violência e lei, e esta própria indistinção constitui a específica violência soberana.” (Agamben, 2014, p. 42)

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Relação de inclusão e exclusão nos bairros de chegada Os bairros do Raval e do Poblenou, se assemelham ao o que Giorgio Agamben denomina como estado de exceção. A partir do pensamento de Schimitt, que sua teoria sobre nómos da terra5 , explica que o “nexo entre localização e ordenamento, no qual consiste o nómos da terra, implica sempre uma zona excluída do direito, que configura um “espaço livre e juridicamente vazio”, em que o poder soberano não reconhece mais os limites finados pelo nómos como ordem territorial.” (Agamben, 2014, p. 43) Portanto o nexo localização-ordenamento já continha em seu interior a “ruptura virtual na forma de uma ‘suspensão de todo o direito’”, então o que surgiu foi o estado de exceção, em que “o que era pressuposto como externo (o estado de natureza), ressurge agora no interior (como estado de exceção), e o poder soberano é justamente esta impossibilidade de discernir externo e interno, natureza e exceção, physis e nómos.” (Agamben, 2014, p. 43) O autor também nos alerta que: “O que ocorreu e ainda está ocorrendo sob nossos olhos é que o espaço ‘juridicamente vazio’ do estado de exceção (em que a lei vigora na figura - ou seja, etimologicamente, na ficção - da sua dissolução, e no qual podia portanto acontecer tudo aquilo que o soberano julgava de fato necessário) irrompeu de seus confins espacotemporais e, esparramando-se para fora deles, tende agora por toda parte a coincidir com o ordenamento normal, no qual tudo se torna assim novamente possível.” (Agamben, 2014, p. 44) Estão inseridos em outra lógica urbana, que não é a mesma do município que sempre estiveram. O Poblenou representa o bairro comandado pelos agentes externos, onde 5A noção de nómos é, no pensamento de Carl Schmitt, uma das figuras por meio das quais ele procura pensar aquele “direito da origem” e o estabelecimento de uma “ordem concreta”. Para ele, a idéia de nomos tem um caráter espacial, já que está associada ao modo como uma determinada ordem ganha um lugar no espaço. Nesse sentido, o conceito procura pôr em evidência a “unidade entre ordenação e localização que seria característica do direito. (Ferreira, 2008, p.358)

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seus parâmetros estéticos e urbanísticos, respondem ao interesse particular. O Raval, bairro historicamente habitado por imigrantes, sofre pela falta de cuidado por parte do Estado. Suas ruas são sujas, as moradias não são fiscalizadas, e as regras sociais impostas partem do tráfico de drogas. A exceção soberana, como observa Giorgio Agamben, é “aquilo que não pode ser em nenhum caso incluído vem a ser incluído na forma de exceção”, e a partir do esquema de Alain Badiou, o estado de exceção “introduz uma quarta figura, um limiar de indiferença entre excrescência (representação sem apresentação6) e singularidade (apresentação sem representação7), algo como um paradoxal inclusão do pertencimento mesmo. Ela é aquilo que não pode ser incluído no todo ao qual pertence e não pode pertencer ao conjunto no qual está desde sempre incluído.” (Agamben, 2014, p.31) Outro fator que intensifica a relação de inclusão na forma de exceção, são os habitantes do território. No Raval, há a maior concentração de migrantes fora da UE8. Dentro do programa de acolhida ao refugiado, o Ajuntament de Barcelona disponibiliza casas de acolhida, “Casa Bloc”, que estão localizadas no bairro Sant Andreu (extremo noroeste). Estas residências são disponibilizadas para os solicitantes de asilo, onde podem se estabelecer por até 2 anos, com a condição de participarem de aulas de idioma espanhol e catalão, e workshops, que visam reinseri-los no mercado de trabalho. Porém, a maioria dos refugiados prefere ficar em casa de familiares, ou pagar aluguel por pequenas habitações, no bairro do Raval, pois, além da localização central, a comunidade árabe está consolidada neste bairro, onde existem diversos locais de culto, maior facilidade de comunicação, pois a língua predominante é a 6Alain Badiou utilizou a teoria dos conjuntos, no campo do direito, para desenvolver a distinção dos termos pertencimento e inclusão. Ele fez corresponder o pertencimento à apresentação, e inclusão à representação. Um termo que pertence a uma situação, em termos políticos, são os indivíduos enquanto pertencem a uma sociedade. Um termo incluído em uma situação, são os indivíduos recodificados pelo Estado, por exemplo, como “eleitores”. Badiou define como excrescência, um termo que está incluído em uma situação sem pertencer a ela. 7Badiou define como singular um termo que pertence a uma situação sem está incluído nela. 8AYUNTAMIENTO DE BARCELONA. Estadística. Disponível em: <https://www.bcn.cat/estadistica/castella/ dades/inf/pobest/pobest18/part3/p0414.htm>. Acesso em: 15 out. 2018.

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Imigrantes paquistaneses no bairro do Raval, em Barcelona. Foto: Lineu Kohatsu.

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árabe, e nos estabelecimentos de serviço, como mercados, padarias, salões de beleza, os anúncios estão traduzidos na escrita árabe. Segundo Ernandy de Lima, no artigo “Nas tramas e falácias do planejamento urbano: marketing urbano, modelo Barcelona e mega eventos”, o projeto 22@ previa a proteção de moradores nos bairros diretamente afetados, porém o que se verificou foi o aumento de 40% no valor dos aluguéis e do m², e a diminuição considerável de projetos de habitação social. Devido à alta especulação imobiliária nos bairros influênciados pelo projeto 22@, os aluguéis e preço do m² das habitações cresceram exponencialmente, muito superior ao restante da cidade, e em consequência um inúmeras famílias deixaram a cidade para morar em outros municípios metropolitanos. A saída dos antigos moradores do Poblenou, deu lugar para os recém-chegados provindo da UE, jovens universitários, empreendedores. Esta total transformação do bairro, gerando a saída dos antigos moradores, detentores de memórias, relações, afetos, deu espaço para um ambiente inteiramente planejado, desenhado, estetizado, a espera de seus novos habitantes. O bairro, vazio de seus antigos valores, procura revitalizar-se através dos anos, pois hoje, é um local vazio, sem uso dos espaços públicos, com muitas residências vazias. Seguindo o conceito de Doug Saunders sobre as cidades de chegada9, poderíamos dizer que o bairro do Raval e o bairro Poblenou configuram-se como cidades de chegada? Os bairros estão sendo transformados por seus novos habitantes, as relações entre vizinhos são distintas de outras áreas de Barcelona, por compartilharem de semelhantes processos de deslocamento, nota-se uma comunidade única. Isto posto, a negação dos cidadãos catalães, perante os refugiados, é tão evidente, que criou um espaço urbano multicultural, no centro da cidade (antigo, com poucos pontos turísticos, sem obras de importância para os cidadãos), onde estes estão aglomerados? A eles, foi deixado este pedaço da cidade, esquecido, para que criem suas próprias relações e não interajam com o restante da urbe. 9O jornalista Doug Saunders disserta sobre o movimento massivo de seres humanos no século XXI, que está criando um tipo especial de local urbano, que ele denomina como cidades de chegada, lugares que irão abrigar a próxima grande economia, a próxima explosão cultural ou até mesmo a próxima grande onda de violência.

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1.2 Tempo antecipado10 Caracterização geral da barragem do Alqueva Em maio de 1968, no Convénio Luso-Espanhol, atribui-se a Portugal a exploração hidráulica da porção internacional do rio Guadiana, entre as confluências dos rios Caia e Cuncos. Em 1975, o Conselho de Ministros de Portugal, decide dar início à construção do Empreendimento de Fins Múltiplos de Alqueva. Após a paralisação do empreendimento para uma nova fase de avaliações e estudos, apenas em 1993, é retomado o projeto, e também é criada a Comissão Instaladora da Empresa de Alqueva, que viria a dar lugar à EDIA – Empresa de Desenvolvimento e Infra-Estrutura de Alqueva, S.A. O Empreendimento de Fins Múltiplos de Alqueva foi decretado por lei, que representava uma obra de interesse nacional, e tinha por principais objetivos: Constituição de uma reserva estratégica de água, garantia de abastecimento regular de água as populações, indústrias e agricultura, reforço da capacidade para produção de energia hidroelétrica, criação de potencialidades turísticas, a partir do surgimento de um lago artificial de 250 km², combate à desertificação. Dentro do empreendimento, seria criado o maior lago artificial da Europa, com 250 km², e submergir algumas infraestruturas, monumentos importantes e territórios. “Os proveitos que adviriam da construção da barragem numa região caracterizada por pouca precipitação e escassos recursos hídricos foram considerados superiores às perdas, que passaram pelo desaparecimento de inúmeros territórios, entre eles, a aldeia da Luz.” (Oliveira, 2011, p. 91). A (antiga) Aldeia da Luz, é uma freguesia portuguesa do concelho do Mourão, na região do Alentejo, com 50 km² de área e 290 habitantes (Censo 2011).

10Antecipado: com antecipação, antecedência, previsto.

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Desde a década de 1950, já havia discussões sobre a construção da barragem de Alqueva, e já constava a possível submersão da aldeia da Luz. Entretanto, com o passar dos anos e os sucessivos adiamentos, os moradores pensavam que a submersão da aldeia não iria se concretizar. Após 37 anos, em 1987, houve a aprovação da construção da barragem, foi então que os moradores começaram a compreender que sua Aldeia não iria mais existir, e, a fim de restituir suas perdas, foi proposto a construção de uma “Nova Aldeia da Luz”, há 13 km de distância, e em um ponto topográfico superior a “velha” aldeia. Entre os anos de 1987 e 2002, a empresa EDIA foi responsável pela construção da nova aldeia. As casas tradicionais da antiga aldeia caracterizavam-se por serem de piso térreo e de pequena volumetria. Os principais materiais utilizados na construção eram a taipa, o adobe, o xisto e a lousa. Na nova aldeia, as casas foram construídas através de técnicas mais modernas, houve uma homogeneidade nas condições habitacionais. A estandardização da habitação, e a semelhança do exterior, diminuíram de forma significativa, as diferenças sociais e econômicas que se encontravam patentes na antiga aldeia.

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Aldeia da Luz: o processo de deslocamento A antiga Aldeia da Luz era caracterizada por ruas estreitas e pela falta de passeios. Segundo Ana Maria C. V. S. Oliveira, “Um costume de muitas aldeias alentejanas, entre elas a antiga Luz, era, nas noites de Verão, os habitantes sentarem-se às portas das casas e ali estabeleciam conversa com vizinhos da frente, ou com quem passava na rua.”. Na nova aldeia, as ruas e calçadas obedecem às normas, portanto são ruas mais largas, que impossibilitam o contato. A empresa EDIA decidiu destruir toda a antiga aldeia, para que não houvesse “apego ao local e desejo de volta”, e resta apenas uma antiga casa, que estava fora da região alagável, e hoje faz parte do museu nova luz. “A população da Luz viveu, sobretudo na última década, perante a irreversibilidade e inevitabilidade de um processo, a sensação de perda de um passado que, de futuro, se existir, só existirá sob a representação de memórias.” (Oliveira, 2011, p. 91 apud Reino, 2005, p.76). Além das vivendas, foi construído, em uma nova disposição, o Largo 25 abril, a réplica do Santuário de N. Sra. Da Luz, a Praça de touros e o cemitério, e foi incorporado como infraestrutura, o Museu da Luz. Fundado em 2003, seu principal objetivo é servir de local de memória da velha Luz, e das atividades que nela predominavam.

Destruição do Santuário de N. Sra. Da Luz. Fonte: Documentário Aldeia da Luz: uma terra submersa pelas águas.

SOARES, D. BOURGARD, J. A Aldeia da Luz não mora mais aqui. Jun. 2015. Disponível em: <http://rr.sapo. pt/aldeia-da-luz/default.html>. Acesso em 16 jan. 2019 11

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A nova Aldeia da Luz Como demonstra a reportagem “A Aldeia da Luz não mora mais aqui”11, moradores como Manuel Conde Ramalho, 68 anos, não escondem a saudade da velha aldeia “Aquela é que era a nossa aldeia, não é esta postiça”. A aldeia “postiça” a que Manuel se refere é a Nova Aldeia da Luz, construída em 2012 para substituir o antigo território. Sobre território, Milton Santos define: “O território não é apenas o conjunto dos sistemas naturais e de sistemas de coisas superpostas. O território tem que ser entendido como território usado, não o território em si. O território usado é o chão mais a identidade. A identidade é o sentimento de pertencer àquilo que nos pertence. O território é o fundamento do trabalho, o lugar de residência, das trocas materiais e espirituais e do exercício da vida.” (Santos, 2007, p. 10) Assim, o território pode ser entendido como a incorporação, simultânea, do conjunto de relações sociais e de poder, e da relação complexa entre processos sociais e espaço geográfico, este entendido como ambiente natural e ambiente socialmente produzido. Os moradores da Nova Aldeia da Luz não se sentem pertencidos a cópia idêntica de sua Aldeia, pois não é o território onde depositaram suas memórias, onde enraizaram seus afetos. A cópia, tentativa de substituição, consegue apenas imitar o território físico, e não as relações enraizadas naquele. A perda de identidade, da destruição do território, foi justificada pois a lucratividade do empreendedorismo era mais significativa que a aldeia de 50km², ou seja, o território foi considerado matável12 perante as autoridades portuguesas. Ao dizer território, também consideramos o que cresce e se estabelece nele. “’Matar ou provocar a morte de modo violento.’ Introduz-se esta forma um tanto curiosa do verbo matar por fidelidade ao texto original, e que equivaleria a exterminável, no sentido de que a vida do homo sacer podia ser eventualmente exterminada por qualquer um, sem que se cometesse uma violação.” (Agamben, 2014, p.185) 13 “O biopoder se mostra em sua dupla face: como poder sobre a vida (as políticas da vida biológica entre elas as políticas da sexualidade) e como poder sobre a morte (o racismo). Trata-se, definitivamente, da estatização da vida biologicamente considerada, isto é, do homem como ser vivente.” (Castro, 2016, p.57) 12

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Antiga Aldeia da Luz. Fonte: Blog Monumentos desaparecidos.

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Nova Aldeia da Luz. Fonte: Miguel Manso.

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Viver à base de necropolíticas No ensaio “necropolíticas”, Achille Mbembe demonstra que a noção de biopoder13 é insuficiente para refletir as formas contemporâneas de submissão da vida ao poder da morte. Ao longo do texto, o autor cita diversas políticas de morte, que criam mundo de morte, e novas existências sociais em que populações inteiras se vêem submetidas ao status de mortos-vivos. Mbembe defende que na modernidade, ainda ocorrem ocupações coloniais tardias, como a invasão americana na palestina. “Tal e como mostra o caso palestino, a ocupação colonial da modernidade tardia é uma corrente dos poderes múltiplo: disciplina, «biopolítica» e «necropolítica». A combinação dos três permite ao poder colonial uma dominação absoluta sobre os habitantes do território conquistado.” (Tradução livre) “Tal y como se muestra el caso palestino, la ocupación colonial de la modernidad tardía es un encadenamiento de poderes múltiples: disciplina, «biopolítico» y «necropolítico». La combinación de los três permite al poder colonial una absoluta dominación sobre los habitantes del território conquistado.” (Mbembe, 2011, p. 52) A absoluta dominação forçou os moradores da Aldeia da Luz a deslocarem-se para uma aldeia fictícia, e retirou deles o direito de permanecerem no território, uma vez que ele seria duplamente destruído: primeiro pela EDIA e depois pela água. Esta dominação começou nos anos 50, quando já haviam boatos da construção da barragem. Desde esta época, os moradores viviam na incerteza se o seu território iria desaparecer ou não. Durante anos viveram sob a sombra de uma necropolítica, o futuro do território era de domínio da EDIA e não possuíam direito de reivindicá-lo. Sob a perspectiva da escravização e da ocupação colonial, Mbembe demonstra que a morte e a liberdade estão irrevogavelmente relacionadas, pois a morte se transforma em uma visão de liberdade ainda não alcançada. A morte da Aldeia da Luz permitiu a liberdade dos habitantes, da política de morte a qual foram sujeitos tantos anos?

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Quais são as consequências após tantos anos submetidos a dominação? Hoje, habitam, nas palavras dos moradores, uma aldeia postiça, novas construções, “estranhamente modernas” que imitam a antiga aldeia. Cidade é território, é lugar, que além das construções e da terra, contempla todas as relações criadas, adubadas e mantidas por gerações. Ela é o depositário das memórias, dos afetos de seus cidadãos. Portanto, as consequências de anos de dominação são: a aniquilação do território e na tentativa de copiá-lo, criou-se um espaço morto, repleto de construções e vazio de significado.

Intervenção gráfica na antiga estrada da Aldeia da Luz. Fonte: Museu da Luz.

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1.3 Tempo previsível14 História de Bento Rodrigues No fim do século 17, devido a prosperidade da produção de açúcar nas colônias holandesas, francesas e inglesas da América Central, a produção de açúcar em solo brasileiro entrou em uma séria crise. Foi então, que a Coroa Portuguesa começou a incentivar a população da colônia a desbravar as terras ainda desconhecidas do território brasileiro, que se referiam ao interior do país e não apenas a parte litorânea.

Os bandeirantes, filhos de indígenas e portugueses, que viviam em São Paulo e no Rio de Janeiro, utilizando os caminhos criados pelos indígenas nativos, adentraram o país, descobrindo verdadeiras jazidas de ouro e outros minérios, principalmente na cidade nomeada Minas Gerais. Durante esta época surgiram as estradas reais, que conectavam as regiões mineradoras com a cidade do Rio de Janeiro. Nas estradas reais surgiram pequenos vilarejos, como locais de descanso para os exploradores, entre eles Ouro Preto, Mariana e Bento Rodrigues. Em 1798 o bandeirante Bento Rodrigues fundou o povoado que levou, em forma de homenagem, seu nome. O vilarejo tornou-se subdistrito, e, em 2015, possuía 600 habitantes, que ocupavam cerca de 200 casas, com infraestrutura básica, como água encanada, esgoto, luz elétrica e internet, e usufruíam da terra para produção de subsídios de consumo próprio e para a venda. A maioria da população trabalhava em empresas de exploração de minérios, como a Vale e a Samarco.

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Previsível: que se pode prever de modo antecipado; comportamento previsível. Ação calculada, provável.


Praça de São Bento antes do rompimento da barragem do Fundão. Fonte: Google Earth

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O crime anunciado A mineradora Samarco possuía na unidade de Germano, em Mariana, três diferentes barragens, construídas em momentos distintos: Santarém (1994), Germano (1977), e Fundão (2008). A região de ocupação das barragens era cortada por dois cursos d’água principais, os córregos de Fundão e de Santarém, bem como seus afluentes. Como a capacidade dos dois reservatórios (Germano e Santarém) estariam chegando ao seu limite (2004), a empresa decidiu construir, no vale do córrego de Fundão, um novo reservatório, o reservatório do Fundão. Segundo o Estudo de Impacto Ambiental, realizado em 2005, a proximidade com o vilarejo de Bento Rodrigues (5,5 km) resultava em um risco moderado, pela improbabilidade de um acidente, porém identificou-se que as consequências, correspondentes ao rompimento da barragem, poderiam ser catastróficas. Mesmo com um vilarejo logo abaixo, a barragem foi construída pelo modelo de barragem montante. A estrutura começou a apresentar falhas logo cedo, como problemas no sistema de drenagem interna, no sistema de galerias, o que resultou na construção de um “recuo” criando mais pressão para a área onde já havia rejeitos. Em 2014, o engenheiro Joaquim Pimenta Ávila visitou a estrutura, e identificou trincas no recuo do reservatório, as quais interpretou como “princípio de ruptura”. Em seu depoimento à polícia federal, demonstrou que, um ano antes, já existiam indícios de ruptura e que a empresa Samarco tinha ciência dos riscos de a barragem ruir. Em 2015, pelo excesso de carga sobre a lama na região do recuo, houve a ruptura abrupta na estrutura, despejando 32 bilhões de litros de rejeitos no meio ambiente, atingindo 2 estados brasileiros (Minas Gerais e Espírito Santo), e 230 municípios. Durante 17 dias a lama percorreu 650 km até desembocar no Oceano Atlântico, causando a morte de 19 pessoas.

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A lama inundou o Rio Doce, contaminando de rejeitos da mineração a principal bacia hidrográfica para 230 municípios, impossibilitando o consumo de água e a pesca, principal atividade econômica, que garantia a subsistência para milhares de habitantes. Segundo o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade, havia índices elevados de contaminação de metal nos peixes. Entre os municípios afetados, Bento Rodrigues foi devastado pela onda de lama. Na época não era possível identificar o antigo vilarejo, pois 80% foi afetado pela onda de lama. Atualmente é possível identificar os resquícios do antigo arruamento e das construções. Segundo a mineradora Samarco, apenas a barragem de Fundão se rompeu, restando nas barragens de Germano e Santarém 23 bilhões de litros de rejeitos, sendo uma preocupação para a Samarco, pois, com as fortes chuvas, o material pode ser levado para fora das estruturas, percorrendo o mesmo trajeto do mar de lama em 2015. Por isso, a empresa projetou 4 diques próximos ao vilarejo de Bento Rodrigues, para tentar conter os rejeitos que ainda podem escoar do Fundão. Primeiro foram construídos 3 diques, sendo o 4ª vetado, pela oposição dos moradores, pois sua construção encobria muros reconhecidos com valor histórico pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), e alagaria o que sobrou de Bento. No mesmo ano, o governador de Minas Gerais, Fernando Pimentel, assinou um decreto autorizando o uso da área para a construção do quarto dique.

Bento Rodrigues 2014, 2015, 2016 e 2018. Fonte: Google Earth

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Depois da lama Três anos após o mar de lama destruir Bento Rodrigues, qual a situação dos atingidos, agora residentes em Mariana? O subdistrito de Bento foi o mais atingidos pela lama que escoou da barragem do Fundão. Por isto, a Renova15 propôs construir uma nova cidade (Novo Bento) como uma maneira de restituir as perdas dos atingidos. Enquanto esperam, moram em casas, apartamentos custeados pela Samarco e recebem mensalmente um valor monetário como forma de indenizações. Na nova cidade, Mariana, são malvistos pela população, pois são considerados culpados pelo desemprego e pela falta de turismo que atingiu as cidades próximas, e também são considerados abusadores da empresa (Samarco).

Notícias referentes aos moradores de Bento Rodrigues em Mariana. Fonte: BBC Brasil e Jornal El País.

São vistos como abusadores por reclamarem seus direitos à moradia digna, enquanto estão em semelhança de apátrida (segundo a ONU, apátridas são pessoas que não tem sua nacionalidade reconhecida por nenhum país), pois a cidade da qual eram cidadãos, a cidade que lhe provia direitos, não existe mais. Analisando a Declaração dos Direitos do Homem de 1789, Giorgio Agamben disserta que não há uma clara separação entre o direito do homem e direito da nação, e representa a inscrição da vida nua na estrutura jurídico-política do Estado-nação. “Um simples exame do texto da declaração de 1789 mostra, de fato, que é justamente a vida nua natural, ou seja, o puro fato do nascimento, a apresentar-se aqui como fonte A Fundação Renova é a entidade responsável pela mobilização para a reparação dos danos causados pelo rompimento da barragem de Fundão, em Mariana (MG). 16 “Os gregos não possuíam um termo único para exprimir o que nós queremos dizer com a palavra vida. Serviam-se de dois termos, semântica e morfologicamente distintos, ainda que reportáveis a um étimo comum: zoé, que exprimia o simples fato de viver comum a todos os seres vivos (animais, homens ou deuses) e bíos, que indicava a forma ou maneira de viver própria de um indivíduo ou de um grupo.” (Agamben, 2014, p.9) 15

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e portador do direito.” (Agamben, 2014, p. 124) Ou seja, a partir a Declaração dos Direito do Homem (1789), não há mais uma separação clara entre a vida bios e a vida zoé16, a vida nua inserida na vida jurídica-política. Segundo o autor, no sistema Estado-nação, os direitos sagrados e inalienáveis, estão desprovidos de qualquer tutela no mesmo instante que não seja possível configurá-los como direitos dos cidadãos de um Estado. Disto isto, os moradores de Bento, agora residentes em Mariana, supostamente perderam o “Estado” que lhes provia seus direitos, suas vidas foram reduzidas aos que os gregos diziam como simples fato de viver, a vida zoé, a vida biológica. O simples fato de viver é a vida sem direitos, sem a concepção de cidadão. Entretanto, no livro Homo Sacer, Giorgio Agamben demonstra que Foucault defende que o “homem moderno é um animal em cuja política está em questão a sua vida de ser vivente” (Foucault, 1976, p. 127 apud Agamben, 2014, p. 10). “O ingresso da zoé na esfera da pólis, a politização da vida nua como tal constitui o evento decisivo da modernidade, que assinala uma transformação radical das categorias político-filosóficas do pensamento clássico.” (Agamben, 2014, p. 12). Portanto os atingidos têm sua vida/existência reduzida, ao que consideramos, menos que a vida humana, são “zumbis” que pairam no território, espectros de si mesmos. Três anos após o maior acidente ambiental do Brasil, ocorre, também em Minas Gerais, outra tragédia anunciada: em 25 de janeiro de 2019, ocorreu o rompimento da barragem de rejeitos, localizada no córrego do feijão, em Brumadinho, que era controlada pela Vale S.A. Segundo a defesa civil, foram confirmadas 248 mortes e 22 vítimas seguem sem identificação ou desaparecidas. A repetição dessa lógica extrativista destrutiva demonstra a ideia de que o Estado tem um direito divino de existência17. Este direito, onde a soberania e violência entram em uma zona de indistinção, possibilita a repetição da negligência humana, da sobreposição do lucro acima da vida humana.

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Demonstra também que Estado não tem capacidade de proteger o povo: Uriel Papa, secretário de Infraestrutura Hídrica e Mineração do Tribunal de Contas da União, declarou em entrevista à BBC Brasil, que a ANM não possui funcionários suficientes para a fiscalização in loco. Por isso, especialistas afirmam que, considerando o modo como a fiscalização é feita hoje em dia, é impossível saber quão segura são as barragens brasileiras18. Segundo dados compilados em 2017 pela Agência Nacional de Águas (ANA), com informações da Agência Nacional de Mineração (ANM), o Brasil tem 790 barragens de minério, 357 só no estado de Minas Gerais, e cerca de 320 barragens não são fiscalizadas, pois não se encaixam na Política Nacional de Segurança de Barragens (PNSB), lei federal aprovada em 2010. Para que sejam fiscalizadas, precisam ter capacidade maior de 3 milhões de metros cúbicos, 15 metros ou mais de altura, resíduos perigosos e dano potencial médio ou alto. O dano potencial é calculado a partir do cruzamento da probabilidade do rompimento (o risco), e o impacto que causaram nas comunidades próximas e no meio ambiente. Após um longo processo com a defesa civil de Mariana, os antigos moradores de Bento possuem o acesso livre e visitam o que sobrou de Bento. Retornam ao subdistrito para visitar seus terrenos, para comemorar festividades, a fim de manter a memória viva. Bento tornou-se uma cidade fantasma. As ruínas representam a vida humana que ali existiu, e nelas residem as memórias, lembranças daqueles que viveram lá.

Achille Mbembe demonstra que este discurso provem do estado colonial e baseia sua soberania e legitimidade de autoridade em seu próprio relato da história e da identidade. 18 Entrevista à BBC Brasil. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-47048439. Acessado em 10/03/2019 17

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1.4 Conversas entre o pós deslocamento de refugiados e imigrantes Qual a diferença fundamental entre refugiados e imigrantes, que ocasiona diferentes (até opostas) reações da sociedade? O Instituto de Migrações e Direitos Humanos define “Imigração-Imigrar-Imigrante”: Movimento de pessoas ou de grupos humanos, provenientes de outras áreas, que entram em determinado país/cidade, com o intuito de permanecer definitivamente ou por período de tempo relativamente longo19. A Convenção das Nações Unidas Relativa ao Estatuto dos Refugiados (1954), define o termo “refugiado”: pessoa que temendo ser perseguida por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas, se encontra fora do país de sua nacionalidade e que não pode ou, em virtude desse temor, não quer valer-se da proteção desse país, ou que, se não tem nacionalidade e se encontra fora do país no qual tinha sua residência habitual em consequência de tais acontecimentos, não pode ou, devido ao referido temor, não quer voltar a ele20. Segunda Classe - Tarsila do Amaral

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A partir das definições dos termos, entende-se que o refugiado teme por sua vida e por esta razão busca abrigo e proteção em outro país, enquanto o imigrante não tem sua vida colocada em risco. O refugiado quando inserido em outra sociedade, carrega em si a cultura, idioma e hábitos diferentes do povo que o acolhe. Zygmunt Bauman explica que, para os cidadãos que recebem os recém-chegados, os refugiados são “estranhos”. São diferentes das pessoas com quem estão habituados a interagir, não sabem como comportar-se e nem são capazes de interpretar suas tácticas. Por ser uma situação que eles não criaram, e não têm sob controle, gera ansiedade e medo nos cidadãos. Entretanto, além da desconfiança temporal aos estranhos, Bauman disserta sobre outras razões excepcionais para o incômodo da sociedade com a migração massiva de refugiados: o setor emergente da sociedade teme perder seus logros, suas poses e sua posição social; E os marginalizados da sociedade, que pensavam que já́ haviam chegado ao fundo do poço, com a chegada massiva de imigrantes, sem abrigo e despojados de direitos humanos, brindam um alívio, uma inabitual oportunidade de “resgatar” a autoestima. Para o autor, estes motivos explicam a coincidência entre a migração massiva e o aumento da xenofobia, do racismo e do nacionalismo chauvinista. A partir dos estudos de caso, percebe-se que essa repulsa ao recém-chegado, estende-se também aos concidadãos, imigrantes de outras regiões da mesma nação. Segundo Bauman, temos o costume de castigar os mensageiros (refugiados e imigrantes) pela mensagem que carregam, mensagem de forças globais desconcertantes, que são responsáveis pela sensação de incerteza existencial. A presença destes mensageiros no território, é a confirmação desta incerteza, é o que não nos permite esquecer da vulnerabilidade da nossa própria posição e da fragilidade endêmica do nosso bem-estar. Com o apoio da mídia e de governantes sedentos por votos, consideramos estes como causadores dos nossos problemas, dos problemas vigenINSTITUTO MIGRAÇÕES E DIREITOS HUMANOS. Glossário. Jan. 2014. Disponível em: <https://www. migrante.org.br/imdh/glossario/>. Acesso em: 18 maio 2019. 20 ACNUR. Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados (1951). 28 jun. 1951. Disponível em: <https:// www.acnur.org/fileadmin/Documentos/portugues/BDL/Convencao_relativa_ao_Estatuto_dos_Refugiados. pdf> Acesso em: 10 set. 2018. 19

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tes de uma sociedade que acabaram de chegar. Uma vez inseridos no território, e sem perspectiva de abandono, excluímos estes mensageiros em territórios abandonados, que carecem de infraestrutura, e atenção do Estado, territórios indesejados pelos cidadãos. Através destas ações, o Estado demonstra que os refugiados e imigrantes estão inseridos na cidade, quando na realidade estão restringidos a um sub território, além das dificuldades que já́ enfrentaram, são “recebidos” e ao mesmo tempo abandonados, em territórios de ninguém, e devem travar outra luta para sobreviver. Então, qual a situação jurídico-política destes mensageiros, que permite este abandono, disfarçado de hospitalidade? Giorgio Agamben, citando Hannah Arendt, expõe que os refugiados representam a crise radical do conceito de Estado-nação. Eles deveriam encarnar por excelência o homem dos direitos, em vez disso, assinalam a crise radical desse conceito. “A concepção dos direitos do homem, baseada na suposta existência de um ser humano com tal, caiu em ruínas tão logo aqueles que a professavam encontraram-se pela primeira vez diante de homens que haviam perdido toda e qualquer qualidade e relação específica - exceto o puro fato de serem humanos.” (Arent, 2994, p.299 apud Agamben, 2014, p.123). Como demonstrado, Agamben disserta que a partir da Declaração dos Direito do Homem de 1789, houve a inscrição da vida nua na jurídico-política do Estado-nação. Isto explica a facilidade atual de exclusão e abandono dos deslocados. No momento em que deixam sua nação, e não possuem proteção legal de outra, não possuem direitos, estão inseridos em uma zona de indeterminação21 jurídico-política, o que os resume a simples seres vivos. A estes seres vivos, resta-lhes lugares e trabalhos indesejados pelos cidadãos. Por partilharem da mesma língua e cultura, os migrantes são facilmente inseridos no mercado informal, ocupando subpostos, como empregadas domésticas, vendedores ambulantes, etc. Os refugiados, cidadãos de outra nação, carregam em sua essência,

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Trabalho escravo moderno. Foto: Folhapress

a diferença, o desconhecido. Conseguem ser aceitos em trabalhos onde não são necessários seus conhecimentos, suas culturas, apenas a força de seus corpos, nos trabalhos escravos do séc XXI.

Giorgio Agamben utiliza da expressão “zona de indeterminação” ao exemplificar o caso de Karen Quinlan, a garota americana que entrou em coma profundo e foi mantida viva por anos através de respiração e nutrição artificial. Após o tribunal conceder enfim que a respiração artificial fosse interrompida, dado que a garota deveria ser considerada morta, Karen, mesmo permanecendo em coma, recomeçou a respirar naturalmente e “sobreviveu” em condições de nutrição artificial até 1985, ano de sua “morte” natural. “É evidente que o corpo de Karen Quinlan havia entrado, na realidade, em uma zona de indeterminação, onde as palavras “vida” e “morte” haviam perdido seu significado e que, ao menos sob este aspecto, não é muito dissimil ao espaço de exceção no qual habita a vida nua.” (Agamben, 2014, p. 159) 21

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O caso de Bento Rodrigues O maior crime meio ambiental do Brasil foi um crime anunciado. Os elementos criado pelo homem (barragem) pouco a pouco avisaram que poderiam colapsar. As consequências eram evitáveis. A destruição de Bento e a morte de dezenove pessoas era evitável. Os que sobreviveram, afirmam que se sentem mortos. Perderam suas casas, seu lugar e o retiro forçado à Mariana, os mata diariamente. Relembram rotineiramente o que perderam, que são estranhos ali, são aqueles que vem de longe, não são daquela cidade, não pertencem ali. A onde pertencem? A Bento, e Bento está em ruínas. Neste capítulo apresento o estudo do pós deslocamento dos moradores de Bento Rodrigues. Analisarei o território, a partir dos conceitos de Milton Santos, a midialização e musealização da 54


memória segundo Andreas Huyssen e as possíveis simulações a partir das ideias de Jean Baudrillard. Ao final, exponho o fruto desta pesquisa.

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2.1 Processos e dispositivos Seguir em frente é uma frase positivista que atribuímos para situações em que não há mais o que fazer, apenas esquecer/superar e deixar que o futuro venha. Este é o desejo das empresas que provocam e são responsáveis por acidentes/crimes, com o pressuposto de que os atingidos, os cidadãos esqueçam o mais rapidamente possível, e suas imagens não sejam abraçadas com esse “acontecimento”. No caso de Bento Rodrigues não é diferente. Neste capítulo apresento processos e dispositivos que provocam o esquecimento. Noticiários rasos e espontâneos criam a imagem de uma retomada de memória, entretanto são fugazes e superficiais, reativam nossa memória de tempos em tempos, segundo seus interesses. Associado a isso, exposições, locais de cultura tentam mais recuperar a credibilidade da empresa do que expor a real situação dos atingidos. Ao final, qual será a máxima dessa política de esquecimento? A criação de uma permanente simulação? Um permanente estado de dilúvio da memória e sua falsificação?

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Midialização da memória “Tempo e espaco, como categorias fundamentalmente contingentes de percepção historicamente enraizadas, estao sempre intimamente ligadas entre si de maneiras complexas, e a intensidade dos discordantes discursos de memória, que caracteriza grande parte da cultura contemporânea em diversas partes do mundo de hoje, prova o argumento.” (Huyssen, 2000, p. 10) Andreas Huyssen em sua obra “Seduzidos pela memória” (2000), discorre sobre o fenômeno cultural e político que a sociedade contemporânea cria: a emergência da memória, o foco no passado presente. Os discursos de memória apontam diretamente para a presente recodificação do passado. Tais discursos aceleraram-se na Europa e nos Estados Unidos no começo da década de 80, impulsionadas primeiramente pelo debate cada vez mais amplo sobre o Holocausto. Os diversos eventos relacionados a história do nazismo (terceiro reich, ascensão de Hitler, fim da segunda guerra, queda do muro de Berlim) que ocorreram em todo o globo, e a construção do Holocaust Memórial Museum em Washington, estimulou o debate sobre a globalização do discurso do Holocausto. Além do Holocausto há outras histórias que constroem a memória narrativa atual, como o caso do Titanic. O autor conclui que “o mundo está sendo musealizado...é como se o objetivo fosse conseguir a recordação total.”. O desejo de trazer o passado para o presente, criou uma “cultura da memória”, que apresenta-se como uma comercialização crescente da memória pela indústria cultural do ocidente. Esta cultura possui um amplo uso político, desde a afirmação de passados míticos para apoiar políticas chauvinistas ou fundamentalistas, até as tentativas, na Argentina e no Chile, de criar esferas públicas de memórias “reais” contra políticas do esquecimento, promovidas nos regimes pós ditatoriais. O autor alerta que, apesar dos discursos de memória pareçam globais, o seu núcleo permanece ligado às histórias de nações e estados específicos, o lugar político das

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práticas de memória é ainda nacional e não pós nacional ou global. Outro ponto sobre a cultura de memória é o paradoxo entre memória e amnésia, pois, segundo críticos, o aumento explosivo de memória está acompanhado de um aumento explosivo de esquecimento. Então a mídia pode ser responsável por essa amnésia? Ela sendo a grande responsável pela disponibilização das memórias. Muitas das memórias comercializadas são “memórias imaginadas” e portanto, facilmente esquecíveis do que as memórias vividas. O rompimento da barragem do Fundão é um exemplo de “memória imaginada”. Para as pessoas não atingidas pelo desastre, é difícil imaginar o que é escutar a aproximação de um mar denso, que com sua força arrasta tudo pela frente, sentir o chão tremer, correr para sobreviver à avalanche de lama, procurar em poucos segundos algum ponto mais alto. O ocorrido gera sentimento de lamentação por parte da população não atingida. Anualmente, no mês de novembro, os meios de mídia recordam e reativam esse sentimento: Tais notícias demonstram a recordação anual do acidente. Aproveitam-se desse sentimento de lamentação e singela culpa da população do ocorrido, já reconhecido que foi consequência da negligência da empresa, já classificado como um crime meio ambiental. Entretanto os moradores de Bento Rodrigues carregam o que o autor se refere a “memória vivida”. Eles viveram os fatos descritos, e vivem até hoje as consequências da negligência, que nós, população não atingida apenas é recordada de tempos em tempos. Os moradores, sobreviventes, vivem um luto diário por suas perdas.

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Notícias sobre a anualidade do rompimento da barragem. Fonte: El País, G1 e Folha de São Paulo


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Perdas “Não perdemos somente nossas casas, o que arrancaram de nós foi a nossa história, nossas memórias, as fotografias, as conversas nas praças, as igrejas, a alegria das festas, as cachoeiras, nosso trabalho. Arrancaram as relações que tínhamos com as pessoas, com a criação de animais, com as nossas hortas, pés de fruta, os peixes, o rio... uma lista sem fim.” – Jornal A Sirene, Ed. A perda do território, envolve também quais perdas? Para Milton Santos, o estudo do território envolve também o uso do território, e não apenas o território em si. Antes o Estado definia os lugares, o território era a base, o fundamento do Estado-Nação. Hoje, evoluímos da noção de Estado Territorial para a noção pós moderna de transnacionalização do território. Para o geógrafo, o conceito de território vai além do meio físico, é a junção do espectro físico com o espectro afetivo. O território usado, conceito de análise, é os objetos e ações, sinônimos de espaço humano, espaço habitado. “O território usado é o chão mais a identidade. A identidade é o sentimento de pertencer àquilo que nos pertence. O território é o fundamento do trabalho, o lugar de residência, das trocas materiais e espirituais e do exercício da vida.” (Santos, 1999, p. 8) Para Santos, o território é o resultado de uma nova construção do espaço, e do novo funcionamento do território, através das horizontalidades e verticalidades, e da noção de rede e espaço banal. As horizontalidades são os domínios de lugares vizinhos, reunidos por uma continuidade territorial, enquanto as verticalidades seriam formadas por pontos distantes uns dos outros, ligados por processos sociais. A noção de rede provém da interdepen-

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dência das verticalidades, criando uma necessidade de cooperação entre lugares. Milton Santos, citando Gilles Paché, reflete que na “nova geografia dos fluxos dos produtos’ cria-se ‘um sistema de produção reticular’ a partir de suportes territoriais largamente redistribuídos (...)”. Também defende que as redes constituem uma nova realidade que justifica a expressão das verticalidades. Entretanto, apesar das redes, com as redes e além das redes, existe o espaço banal, o espaço de todos. Voltando ao entendimento de horizontalidades e verticalidades, as horizontalidades são as fábricas in loco, pontos no espaço que se agregam sem descontinuidade, são os locais do cotidiano, que enfatizam a noção de vizinhança. Para entender o conceito de vizinhança, primeiro é necessário entender a proximidade que interessa ao geógrafo. A proximidade “não se limita a uma mera definição das distâncias; ela tem que ver com a contiguidade física entre pessoas numa mesma extensão, num mesmo conjunto de pontos contínuos, vivendo com a intensidade de suas inter-relações.” (Santos,2011, p. 215). A situação de vizinhança deve ser apreendida na totalidade das relações. E assim a proximidade, “pode criar a solidariedade, laços culturais e desse modo a identidade.” (Santos,2011, p. 216 apud Guigou, 1995, p. 69). Portanto a perda do território envolve também a perda da noção de vizinhança, dos laços afetivos. Tais laços e relações são construídas ao longo do tempo, através de uma longa história. Os moradores compartilham com o território a mesma história. O crescimento do sub distrito de Bento é intimamente relacionado com a história dos moradores.

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Musealização da memória Simulação Retomando a discussão de Andreas Huyssen, sobre a globalização da memória, que criou uma “cultura da memória”, e apresenta-se na comercialização desta pela indústria cultural do ocidente. Para o autor, a memória se tornou uma obsessão cultural de proporções monumentais. A partir do questionamento de como poderia ser garantida, estruturada e representadas as memórias locais, regionais e nacionais, a ideia de arquivo surge como uma resposta. O autor questiona o quão confiáveis ou a prova de falhas nossos arquivos digitalizados? “Quanto maior é a memória armazenada em bancos de dados e acervos de imagens, menor é a disponibilidade e a habilidade da nossa cultura para se engajar na rememoração ativa, pelo menos ao que parece.” (Huyssen, 2000, p.67).

Igreja submersa em Petrolândia tornou-se ponto turístico. Foto: Priscila Fontinele

A fim de evitar essa doença da condição moderna, filósofos como Hermann Lubbe ou Odo Marquard, argumentam que o desgaste das tradições na modernidade, “gerou órgãos compensatórios de rememoração como as humanidades, sociedades de preservação histórica e o museu.” (Huyssen, 2000, p.72). O autor reflete sobre a perda da percepção espacial e temporal. Quanto mais fácil e rápido o acesso ao passado, no presente, o sentido de continuidade histórica perde-se, cedendo espaço para a simultaneidade de todos os tempos e espaços, prontamente acessíveis pelo presente. A medida que essa simultaneidade vai abolindo a alteridade entre passado e presente, tende a perder a ancoragem na referencialidade, no real, e o presente sucumbe ao seu poder mágico de simulação e projeção de imagens.

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Entretanto Huyssen defende que não devemos nos opor fortemente a midialização da memória, pois no contexto atual, não é possível discutir memória sem considerar a influência das novas tecnologias de mídia como veículo para a transmissão. “Não há espaço puro fora da cultura da mercadoria, por mais que possamos desejar um tal espaço.” (Huyssen, 2000, p. 21). Por isso a simples oposição da memória seria e memória trivial, produziria uma velha dicotomia da cultura modernista. Devemos reconhecer a distância entre realidade e representação, e estar abertos a possibilidades de representação do real e de memórias. Por isso, o autor defende que: “A crença conservadora de que a musealização cultural pode proporcionar uma compensação pelas destruições da modernização do mundo social é demasiadamente simples e ideológica. Ela não consegue reconhecer que qualquer senso seguro do próprio passado está sendo desestabilizado pela nossa indústria cultural musealizante e pela mídia, a qual funcionam como atores centrais no drama moral da memória. A própria musealização é sugada neste cada vez mais veloz redemoinho de imagens, espetáculos e eventos e, portanto, está sempre em perigo de perder a sua capacidade de garantir a estabilidade cultural ao longo do tempo.” (Huyssen, 2000, p. 30) Em Mariana, na Praça Gomes Freira, a fundação Renova reformou o casarão do século XVIII para dar espaço a “Casa do Jardim”. Segundo informações presentes no site da fundação Renova, o espaço é utilizado para disseminar informação, abrigar diálogo e atividades de capacitação e uso coletivo. “O local busca estimular, promover e preservar a memória e a história.” A casa jardim expõe: Memórias mapeadas: É uma maquete interativa impressa em 3D que, em animação, mostra o rompimento da barragem de Fundão, suas consequências e os trabalhos de reparação; Conhecendo mais sobre: conteúdo digital e interativo dos programas da Fundação Renova; Caminhos do Ouro: Linha do tempo que aborda o percurso da história do ciclo do ouro em nosso país, re-

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Entrada da Casa Jardim em Mariana e depoimento dos atingidos. Fonte: autora

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lacionando-se com a história de Minas Gerais e de Mariana.; Vozes da Memória: depoimentos e relatos baseados em fatos reais dos atingidos da região.; Espaço audiovisual: vídeos institucionais do processo de reparação.; Área de contemplação: Espaço destinado para exposição dos artesanatos produzidos pelas comunidades marianenes.; Caminho da Transformação: Sala de imersão que tem como proposta sensibilizar o visitante para as relações da presença do homem, além de provocar diferentes experiências que, muitas vezes, passam despercebidas no cotidiano e que tem relação direta com a água.; Placas Interpretativas: Ruínas identificadas com placas informativas. Segundo reportagem do Jornal A Sirene, o local é nomeado como “o museu do crime”. Passa apenas de uma estratégia de publicidade, para que os turistas levem a sensação de saber o que se passa nas comunidades atingidas e como a fundação/ empresa estão reparandos os danos, informações incompatíveis com a realidade. “Ali é ponto turístico para mostrar a versão deles. Se eu não fosse atingida e visitasse esse museu do crime, iria acreditar no que tá ali. Se uma pessoa vem de fora para conhecer a história do rompimento da barragem, é o que tá ali. A não ser que ela procure saber mais, mas a maioria não quer saber. Só chega, assiste e vai embora pra casa.” (Lilica, atingida pelo rompimento da barragem do Fundão) “O casarão, para mim, não tem utilidade nenhuma, porque não mostra a verdade. Quem vai se encanta e acha que está tudo bem. Mauro, outro dia, falou certo, a Renova faz hipnose e ilusionismo, porque ela hipnotiza quem vai lá. Fizeram aquele casarão lindo, gastaram uma grana, se for olhar, ficou maravilhoso igual o marketing deles, mas não beneficia a cidade. Por mim, aquilo não existiria, só vou lá quando sou obrigada a pegar um documento. Entro com vergonha e com medo, porque, só de entrar lá, os outros já falam que você tá indo buscar dinheiro. É humilhante entrar nesses lugares. A empresa não tá me dando nada, ela tem de repor o que me tirou e não vai conseguir repor nem metade.” (Simária Quintão, atingida pelo rompimento da barragem do Fundão.)

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Jean Baudrillard, em seu livro “Simulacros e simulação” (1991), discute a relação entre realidade, símbolos e sociedade. O autor defende que a simulação tem mais valor que a própria realidade, e esta situação surge no simulacro , que são simulações imperfeitas do real, que fascinam o espectador. O antigo sentido de real desaparece e a realidade e a ficção, ou seja, a criação de signos, faz parte das nossas vidas. Sobre a ficção, Baudrillard irá referir-se a Disneylândia como “modelo perfeito de todos os tipos de simulacros confundidos”. É o local onde a ideia de magia e fantasia impera, não deixa dúvidas de que tudo construído é uma simulação de um mundo imaginário de Walt Disney. Este mundo imaginário atrai multidões por seu microcosmos social: valorização e exaltação do american way of life¸transposição idealizada de uma realidade contraditória, enaltecimento dos valores americanos. Baudrillard defende que a Disneylândia serve como uma simulação de terceira categoria: ela existe para esconder o país «real», tornando a América «real» a própria Disneylândia. “A Disneylândia é colocada como imaginário a fim de fazer crer que o resto é real, quando toda Los Angeles e a América que a rodeia já não são reais, mas do domínio do hiper-real e da simulação. Já não se trata de uma representação falsa da realidade (a ideologia), trata-se de esconder que o real já não é o real e portanto de salvaguardar o princípio de realidade. O imaginário da Disneylândia não é verdadeiro nem falso, é uma máquina de dissuasão encenada para regenerar no plano oposto a ficção do real.” (Baudrillard, 1991, p.21) Podemos propor uma aproximação do conceito de musealização da memória de Huyssen, com a Casa Jardim. No local é exposto o acidente e a dimensão dos estragos, e também as memórias faladas de alguns moradores. Nestes dois momentos, as informações que mais ganham espaço são as ações das empresas perante a atual situação. Por isso concordo com o depoimento de Lilica, o visitante sai com a sensação de saber qual a real situação dos atingidos, e a partir de falas gravadas, entende-se que a relação entre atingidos e fundação/empresa é amigável. Este pode ser o primeiro

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passo, o primeiro demonstrativo do processo de simulação que afronta os moradores. O local que simula sua situação, antes da construção material da completa simulação.

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Simulação Jean Baudrillard para falar de simulação e simulacro, cita a fábula de Borges: “os cartógrafos do Império desenham um mapa tão detalhado que acaba por cobrir exatamente o território”. Hoje a simulação não é mais de um território, não possui um referencial. Não existe a coextensividade imaginária, a realidade é produzida a partir de memórias, de modelos de comando. Através desse processo, em que não existe o real, produz-se o hiper-real, “produto de síntese irradiando modelos combinatórios num hiperespaço sem atmosfera.” (Baudrillard, 1991, p.8) A confirmação que a simulação se sobrepõe a realidade, é o exemplo de um falso assalto. O autor nos convida a imaginar um falso assalto: confirma-se a inocência das armas e mantêm-se os reféns seguros. Então prosseguindo com a operação, solicita-se um resgate. A rede de signos criadas é tão parecida com a realidade, que vai enredar-se com os elementos reais: o policial irá disparar, algum cliente irá passar mal e possivelmente falecer, o resgate irá ser pago. Por isso a simulação é mais perigosa que o simulacro, há uma impossibilidade de isolar o processo de simulação do real. “Assim é a simulação, naquilo em que se opõe à representação. Esta parte do princípio de equivalência do signo e do real. (...) A simulação parte, ao contrário da utopia, do princípio de equivalência, parte da negação radical do signo como valor, parte do signo como reversão e aniquilamento de toda a referência.” (Baudrilllard, 1991, p. 13) O rompimento da barragem do Fundão, 2015, atingiu cerca de 200 municípios, deixando sem casa centenas de moradores de três comunidades: Bento Rodrigues, Paracatu de baixo e Gesteira. Como maneira de restituição por suas perdas, a fundação Renova propôs o programa de reassentamento das comunidades que perderam suas casas pela passagem de rejeitos.

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Segundo informativo disponibilizado pela fundação Renova, o programa de reassentamento tem como missão restabelecer os modos de vida e a organização das comunidades que perderam suas casas pela passagem do rejeito. Seu principal objetivo é garantir que as moradias e as áreas onde estarão os equipamentos públicos atendam às necessidades levantadas pelos futuros moradores, preservando seus hábitos, relações de vizinhança e tradições culturais e religiosas. Até que as vilas e as propriedades sejam reconstruídas, todos têm o direito à moradia garantido pela Fundação Renova, que atualmente aluga casas para cerca de 300 famílias na região de Mariana e Barra Longa. Referente aos atingidos de Bento Rodrigues, o processo de reassentamento prevê a construção de uma nova aglomeração urbana: Novo Bento.

Plano urbano de Novo Bento. Fonte: Arquiteta Amanda Fernandes funcionária da Cáritas Brasil

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Imagens do projeto de Novo Bento. Fonte: Arquiteta Amanda Fernandes funcionรกria da Cรกritas Brasil


O projeto urbanístico, aprovado em fevereiro de 2018, prevê a construção das casas de cada família atingida, e os mesmos equipamentos urbanísticos de Bento Rodrigues: Igreja de São Bento, Praça São Bento, Posto de saúde, Quadra poliesportiva, Igreja nossa senhora das mercês e escola municipal de Bento Rodrigues. O processo da construção de Nove Bento se encontra com todas as licenças e permissões concedidas, terreno escolhido e adquirido, projeto urbanístico aprovado. No ano de 2019 as obras de infraestrutura do novo subdistrito tiveram início: terraplanagem foi concluída, a pavimentação da estrada principal que dá acesso ao terreno começou a ser executada e algumas casas e a escola começaram a ser erguidas. Em novembro do mesmo ano, o acidente completa quatro anos. Nestes quatro anos, nenhum responsável pela morte e crimes ambientais foi punido. Segundo matéria do jornal Nexo, em 2016 o Ministério Público Federal denunciou 21 pessoas para responderem por homicídio com dolo eventual (quando se assume o risco de matar), inundação, desabamento, lesões corporais graves e crimes ambientais. Entretanto em abril de 2019, desembargadores da 4ª Turma do Tribunal Regional Federal da 1ª Região trancaram a ação penal para o crime de homicídio e lesão corporal. O processo foi mantido apenas para os crimes ambientais e de inundação. Os desembargadores afirmam que o Ministério Público Federal narrou crime de inundação sem apontar elementos para configurar homicídio. Ou seja, nenhum acusado de causar a morte de 19 pessoas irá a júri popular. Retomando o projeto Novo Bento, através das imagens das futuras construções e das futuras casas, é nítido o salto de modernização quando comparada com as antigas casas. Esta situação se assemelha com o caso da Aldeia da Luz: os moradores participaram de toda o planejamento e construção de sua nova aldeia, mas no momento em que chegaram ao novo construído, sentem que estão em uma aldeia postiça.

Nova Aldeia da Luz. Fonte: Blog Monumentos desaparecidos

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A nova Aldeia possui a mesma infra estrutura da antiga, foi mantido, na medida do possível a mesma configuração urbanística (as ruas foram alargadas para respeitar os novos regulamentos), cada família recebeu sua nova residência. Apesar da empresa EDIA restituir os mesmos equipamentos urbanos que estes possuíam, a cópia física não é suficiente no âmbito de vizinhança, de comunidade. Ao relatar que a perda do território envolve mais que a perda do elemento físico, e que o território é a junção dos elementos físicos com o espectro emocional (Milton Santos), a construção deste território é baseada na convivência e no tempo. Tempo de vivência, tempo de relações. Ao longo dos anos, convivendo no mesmo território físico de Bento Rodrigues, os moradores criaram conexões, relações, criaram e fortaleceram a sua relação de vizinhança. Essa sensação de comunidade não é passível de cópia. É possível simular o terreno, as construções, a aparência. Como exemplo o caso emblemático do Resort The Venetian em Las Vegas. O resort construído a partir da imagem e semelhança de Veneza, simula as gôndolas, os canais, as praças, etc. São exemplos de simulações de Jean Baudrillard, cópias a partir de um modelo da realidade. Elas procuram mascarar, esconder o real. No caso da Aldeia da Luz, esconder, apagar a memória da antiga aldeia submersa. No caso do resort em Las Vegas, criar uma imersão ao visitante em um território longe dali, criar um local mágico, fantasmagórico que o “transporta” para Veneza, cidade italiana.

Resort The Venetian, Las Vegas. Fonte: Booking

A partir do estudo destes exemplos, poderíamos dizer que a construção de Novo Bento, estaria caminhando em direção a uma simulação permanente? Está sendo criado um ambiente semelhante ao anterior para acomodação dos moradores, e para o esquecimento da cidade atingida e destruída pelo mar de lama? Após concluído esse processo, a sensação de vizinhança será retomada pelos moradores? Sentiram-se “em casa” como era em Bento Rodrigues? Ou serão estranhos no território, como relata os moradores da Nova Aldeia da Luz, que residem em casa “estranhamente modernas”?

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2.2 Retorno O local Bento Rodrigues, subdistrito de Mariana, contava com aproximadamente 600 pessoas. Sua atividade econômica básica era a indústria extrativa mineral, que empregava parcela significativa da população. Em Bento existiam bares, mercearias e restaurantes, com pouca relevância em termos de geração de renda. (Boava, 2016, p.70). Bento Rodrigues está localizado a 144 km da capital mineira, há 56km de Ouro Preto e a 24km de Mariana. Segundo artigo “Refugiados de Bento Rodrigues: O desastre de Mariana, MG.”, 72% da população mantinha relações trabalhistas com a Samarco, sendo 60% possuíam o ensino fundamental incompleto, 24% o fundamental completo, 14% médio e 2% analfabetos (SILVA, 2016, p. 70 apud VIANA, 2012, p.205).

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Bento Rodrigues

Ouro Preto Mariana


A topografia baixa de Bento auxiliou que a lama atingisse grande área do território (80%). No contexto urbano (localização das ruínas) o terreno é quase plano, e vai subindo em direção norte do terreno, chegando em uma cota mais alta, não atingida pela lama. Como pano de fundo Bento possui montanhas com uma grande densidade de vegetação. Nos diagramas é possível ver a área atingida pelo mar de lama, a topografia e arruamento do local, e a área de massa verde.

Bento Rodrigues 2019. Fonte: Google Earth

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Justificativa da pesquisa Há inúmeras notícias sobre a situação jurídica da Samarco, tímidas notícias sobre a construção de Novo Bento, e nenhuma sobre os atingidos. Foi a partir dessa percepção que nasceu este projeto: o que aconteceu com os atingidos do rompimento da barragem do Fundão? Os moradores seguem voltando a Bento. Após pedido especial a defesa civil de Mariana, estes possuem acesso livre ao subdistrito. Voltam para festividades, como o dia de São Bento, voltam para ver seus terrenos, como a natureza está se re-apropriando do espaço, cobrindo as construções, atualmente quase imperceptíveis, voltam para relembrar suas memórias. “Para nós é difícil voltar, mas é uma forma de manter a nossa fé aqui. Até porque é muito difícil conviver em outra comunidade e participar de festividades, como a da Semana Santa, em outros lugares. Fora daqui somos meros espectadores. Nós voltamos para relembrar, para viver aqueles momentos que nós vivíamos aqui. Bento não vai ser uma página virada e nunca vai ser substituído. (...) É em Bento Rodrigues que estão as nossas memórias. (...).” – Depoimento de Marinalda Aparecida Silva Muniz para a matéria “Por que voltar a Bento?” do Jornal A Sirene A exposição de Bento mantém a memória viva do local, e também do que ali ocorreu: a consequência da negligencia humana, da falta ou ineficiente fiscalização do Estado, falta ou inexistente entendimento real da situação do sub distrito com relação ao complexo de Mariana, localizado a 5km dali, inexistência de medidas preventivas para acidentes, ou seja, despreparo dos cidadãos e do Estado, perante uma situação de risco, e falta de controle da interferência de empresas no meio ambiente. A exposição de Bento mantém a memória viva do local, e também do que ali ocorreu: a consequência da negligência humana, da falta ou ineficiente fiscalização do Estado, falta ou inexistente entendimento real da situação do sub distrito com relação ao complexo de Mariana, localizado a 5km dali, inexistência de medidas preventivas

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Moradores comemorando o dia de SĂŁo Bento. Foto: Rafael Francisco

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para acidentes, ou seja, despreparo dos cidadãos e do Estado, perante uma situação de risco, e falta de controle da interferência de empresas no meio ambiente. Portanto além de ser um território com grande significado afetivo, representa um marco na história nacional, é consequência do maior desastre meio ambiental do Brasil. Este sítio deve permanecer preservado para atender necessidades emocionais, afetivas dos cidadãos, e preservar a história do país. Na notícia “O que é patrimônio sensível. E o caso de Bento Rodrigues” da revista Nexo, Juliana Domingos de Lima relata o pedido de tombamento do subdistrito a partir de um dossiê, fruto de uma pesquisa de três anos em Bento Rodrigues, realizada pela Escola de Arquitetura da UFMG. Discorre sobre o futuro do local, caso seja tombado, os motivos para o tombamento segundo especialistas, outros tipos de patrimônios e exemplos nacionais e internacionais de patrimônio sensível. Algumas edificações, como a Igreja de Nossa Senhora das Mercês, em Bento Rodrigues, já foram tombadas individualmente. Mas o professor e coordenador da pesquisa, Leonardo Castriota defende: “Chegamos à conclusão de que estávamos frente a um sítio que representava a maior tragédia socioambiental brasileira, e que, portanto, esse tombamento deveria ser estadual e federal”. Também defende que o patrimônio sensível nos recorda a dor, e devem ser mantidos para que sirvam de alerta, a fim de não repetir a história. À revista Nexo, a professora Mônica Lima (professora do programa de pós-graduação em História Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro) salienta o direito humano à memória como um dos fatores para se preservar esse tipo de sítio. A exposição do subdistrito se assemelha com o caso do Cais do Valongo. Localizado no centro do Rio de Janeiro, era ali uma antiga área portuária onde ocorria o desembarque de africanos escravizados. Em 2017 o local foi reconhecido como Patrimônio Mundial pela UNESCO, na categoria de sítio histórico sensível.

UNESCO. Cais do Valongo é o novo sítio brasileiro inscrito na Lista do Patrimônio Mundial da Unesco. Unesco, Brasília, 09 jul. 2017 <http://www.unesco.org/new/pt/brasilia/about-this-office/single-view/news/valongo_wharf_is_the_new_brazilian_site_inscribed_on_unesco/>. 25

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“Por sua magnitude, o Cais do Valongo pode ser considerado o lugar mais importante de memória da diáspora africana fora da África. Ele é o maior porto de entrada de negros escravizados na América Latina. As estimativas apontam que entre 500 mil e um milhão de negros chegaram ao continente desembarcando neste Cais. Desde sua construção, em 1811, ele sofreu sucessivas transformações até ser aterrado em 1911. O local foi revelado, em 2011, durante escavações das obras do Porto Maravilha, e se tornou o maior vestígio material das raízes africanas nas Américas.”25

Moradores comemorando o dia de São Bento. Foto: Elvis Rodrigues

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O memorial do memorial Bento Rodrigues, subdistrito de Mariana que não possui mais endereço, não possui mais código de endereço postal, vulgo CEP. Sumiu seu logradouro, sumiu seus habitantes, mas as construções permanecem, resistem, e pouco a pouco seus cidadãos também. Bento e os atingidos, são uma coisa só. De longe só vemos tons de verde encontrando o pano azul. Esta ilha verde é circunscrita por um azul novo, um azul diferente. Um lago circunscrita, delimita aquela ilha, delimita Bento. Da estrada de terra, sem sinalização, sem placas, uma aventura dentro da mata densa, vê-se a ilha. Um pouco longe, não é fácil entender como chega-se até ela. Também não é fácil entender se há algo lá ou não, não se vê as construções remanescentes. Até que encontramos Emmanuel, mineiro, diz que trabalha para a empresa de segurança e seu trabalho é fiscalizar quem entra e sai daquela ilha. Após ele há um novo acesso, um caminho visivelmente feito de britas de construção e terra. O único acesso a Bento é por essa nova travessia, mas essa travessia é controlada, sem autorização da Defesa Civil não é possível acessar Bento.

Bento Rodrigues. Foto: autora


Bento Rodrigues. Foto: autora

Bento Rodrigues. Foto: autora

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O memórial de bento é a possibilidade de visitar bento, tanto para o visitante curioso como para o morador atingido. É colocar de igual para igual o sentimento de perda, a vergonha nacional que nosso falta de interesse e investimento em real segurança causou, e continua causando. É transformar um local de luto em local de memória, de aprendizado ao futuro. É dar uma voz àqueles que nunca a tiveram e perderem seus direitos e suas vidas. Por essa proibição disfarçada de controle de segurança, o projeto nasce a partir de uma passarela. Um pouco depois da chancela do Emmanuel, projeta-se uma passarela, que vence os 240 metros do lago, consequência direta do mar de lama. A passarela nasce a partir de uma cota acessível para carros, caminhões e andarilhos. A partir de uma sutil rampa, chega-se no nível de oito metros acima do lago, altura possivelmente segura. O tablado da rampa feito de concreto armado embasado por pilares capitéis a cada doze metros, leva o visitante desde a estrada de terra até Bento. Na passarela uma bifurcação, o caminho divide-se em dois, criando o vazio. À direita a passarela continua protegida e dentro deste espaço, com uma face translúcida e uma face opaca, expõem-se a história de Bento, antes e depois do crime. Constituída desde a expansão dos bandeirantes, sua história é contada até os dias de hoje, território de memórias, território da exposição permanente das consequências da negligência humana, da sobreposição do lucro frente a vidas humanas, frente a integridade física dos moradores. O caminho volta a encontrar-se em um acidente, uma curva, parecida as curvas do próprio rastro da lama. A curva ganha uma espessura, lugar do memorial, espaço de conjuntura de atividades que visam o futuro, futuro daquela população, dos atingidos, e todos nós como cidadãos nacionais. Mas deste local falaremos depois. A passarela tangência o perímetro do memorial, e a partir de suaves inclinações volta ao solo, chegando em Bento. Elevada a um metro e meio do solo, a passarela de concreto torna-se um tablado de madeira, estruturado por elementos metálicos que encostam pontualmente no solo original. O trajeto da passarela que vira percurso, é o mesmo trajeto que chegava-se a Bento, o tablado segue o mesmo arruamento do subdistrito. É elevado do solo, pois, após a lama criou-se uma nova topografia, é necessário elevar o andar para ter uma visão mais clara das construções.

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O silêncio de Bento atordoa. Entre construções e natureza é possível escutar o próprio passo arrastando a terra e o fundo dos pássaros ali de longe. O vento forte cria uma brisa necessária naquele sol escaldante que as cidades mineiras têm. A natureza invade as ruínas, de dentro para fora as árvores, flores, gramas explodem o espaço. Bento é silencioso, é natureza mais ruína. É estranho ver tantas casas, algumas ruínas outras intactas, sem nenhum morador, ninguém para habitar. É estranho ver construções sem ninguém. O percurso demonstra o estranho de uma cidade fantasma, cheia de construções e vazias de pessoas. Demonstra a estrutura de uma casa que resistiu ao mar de lama, paredes sem janelas, manchadas de marrom, com uma textura espessa impossível de tocar pelo talude que se formou. Os segundo andares mais leves não resistiram, e suas paredes caíram sob a base forte, na qual pilares demarcam os vazios estruturais. A tristeza, angústia, medo da fuga ainda pairam por ali, a sensação é de um espaço pesado. E apesar de todas essas sensações estranhas, densas, tristes, o lugar é carregado de memórias, de experiências. Maicon, morador de Bento, comenta “a gente gosta de voltar para Bento, a gente quer continuar vindo aqui. Não queremos mais os jornais nem perguntas. Perguntam, perguntam, perguntam e o que resolveu? Nada! Se a gente deixar de vir pra cá, a Samarco vai construir outra barragem e esquecer o que aconteceu.” O percurso é uma visita, é a possibilidade de ver, de sentir, é “sentir na pele” o que uma barragem mal construída pode ocasionar. O percurso é também a possibilidade dos moradores visitarem suas construções, sem o controle de alguém, sem satisfação, é a possibilidade de retorno a sua casa.

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Entende-se que não há nenhuma construção de maior interesse, todas são carregadas de memórias, de experiências, de história, todas são de mesma maneira importantes. Por isso não há um ápice ou um mirante, há singelos acidentes, expansões do percurso como locais de descanso, cobertos para possibilitar conforto. Andar em Bento é andar entre escombros de lama natureza e silêncio.

O memorial implantado na passarela, abriga o auditório para 200 pessoas, local para as assembleias semanais dos atingidos, para a exposição de filmes e documentários realizados para e sobre Bento; abriga o centro de pesquisa e formação como local de fomentação de pesquisas da comunidade acadêmica sobre o próprio acidente, sobre suas consequências, como possivelmente evitá-las, como aprender com este acidente. Confirma-se a necessidade de locais como este, após o crime em Brumadinho em fevereiro de 2019, ocorrido da mesma maneira, o rompimento abrupto de uma barragem insegura, e os moradores sem tempo e ferramentas para a fuga e proteção, ceifando vidas. Junto com o centro de pesquisa, o centro de formação para a realização de atividades, cursos, reuniões dos atingidos, a fim de manter o sentimento de vizinhança, de cooperativismo intacto. É neles que resiste a memória, a história de Bento. A forma do memorial é composta de planos horizontais: o piso suavemente vai inclinando-se, dando espaço técnico ao auditório, e também transferindo o visi-

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tante para os três níveis, os três espaços. Os espaços são amplos, sem paredes e com poucos compartimentos, e convidam o espectador a olhar para fora. O memorial é revestido por duas camadas de pele translúcida. Sua materialidade é sua própria estrutura, as lajes e pilares são concreto armado aparente. A arquitetura de planos horizontais e inclinados, local de abrigo das atividades O lago é a representação da cultura despreparada, desrespeitosa com a natureza e com à vida. À vida que não é a minha, a vida do outro. A cultura de encontrar brechas para burlar legislações, parâmetros, regras, com o objetivo da lucratividade. Esta cultura resulta na técnica auto-destrutiva, e é através dela que com um gesto cultural, político, denunciou, exponho seus efeitos: ruínas, destroços convivendo com a natureza recobrando suas territorialidades e esta mesma natureza, criando novos elementos a partir do trágico.

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O lago constitui-se a partir do acúmulo de lama nesta região. Os rejeitos que escoaram da Barragem do Fundão seguiram o caminho do rio Gualaxo Norte, e em Bento a lama encontrou um afunilamento no percurso e então retornou, acumulando-se e expandindo-se, destruindo nível por nível o subdistrito. Este gesto cultural é embasado pela técnica. Proponho inverter a lógica, da técnica auto-destrutiva para a técnica que retoma. A concepção deste grande mirante, a transformação de todo o subdistrito em museu, exposição, acervo, como uma tentativa de retomar o espaço, de resistir, de permanecer, para não esquecer. O memorial como uma centralidade e linhas de conexões, extensões da rede que percorrem Bento. Retomar, reaver, reviver. A linha contínua, um traço racional, chegar de um ponto a outro. E nela o próprio desenho daquilo que a causou, o desenho do rastro de lama transferido para as curvas e acidentes, expansões. O


desenho orgânico dos percursos e suas expansões, retoma o rastro que a lama deixou em seus 650 km de percurso. O memorial de bento é a possibilidade de visitar bento, tanto para o visitante curioso como para o morador atingido. É colocar de igual para igual o sentimento de perda, a vergonha nacional que nosso falta de interesse e investimento em real segurança causou, e continua causando. É transformar um local de luto em local de memória, de aprendizado ao futuro. É dar uma voz àqueles que nunca a tiveram e perderam seus direitos e suas vidas.



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Planta exposição - nível +8,0

Corte urbano


Planta memorial - nĂ­vel +8,0


Planta memorial - nĂ­vel +11,0


Planta memorial - nĂ­vel +13,0


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