A Esposa do Pastor

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A Esposa do Pastor PRIMEIRA PARTE O ENCONTRO COM O EXÉRCITO SOVIÉTICO No verão de 1944, quando a Alemanha de Hitler começava a desmoronar-se, entrou na Romênia um milhão de militares soviéticos. Quando as primeiras colunas já se aproximavam de Bucareste, saímos ao encontro deles no bonde da linha 7. Era o último dia de agosto. Céu limpo e calor. Os canhões estavam em silêncio. Em algum lugar do outro lado dos campos ouvia-se o repicar de sinos. Meu marido, na qualidade de pastor em tempo de guerra, havia conhecido muitos russos em campos prisionais da Romênia. Eram por natureza instintivamente religiosos, disse ele, e pelas suas idades possuíam já nada menos do que vinte e cinco anos de preparação ateística. “Devemos sair ao encontro deles”, disse Richard. “Falar aos russos a respeito de Cristo é o céu aqui na terra”. Quando descemos no cruzamento suburbano vi um grupo de bandeiras vermelhas, conduzidas por comunistas locais que haviam saído do lugar onde estiveram escondidos para irem saudar o “glorioso Exército Vermelho”. Olharam para nós duvidosos. A maior parte das pessoas mantinha-se afastada da estrada dos libertadores, embora em Bucareste lhes estivesse preparada uma grande recepção oficial. Richard era um jovem bem apessoado. Alto e de ombros largos, com aquele ar de confiança que lhe brotava da firmeza de sua fé. Fiquei de pé ao lado dele, com metade da sua altura. Sorridentes, visto que a guerra terminara para nós e todos agora voltaríamos a ser amigos. À sombra, dois ou três oficiais romenos aguardavam o desenrolar dos acontecimentos. Estes, nervosamente, treinavam-se na pronúncia de algumas palavras em Russo. Tinham vindo ali para oferecer o


Sabina Wurmbrand presente simbólico e antiqüíssimo aos estrangeiros – metade de um pão e um punhado de sal. Neste meio tempo, permanecíamos a olhar fixamente para a estrada deserta na expectativa do que iria surgir. Os russos eram agora os nossos aliados. E nesta hora, porém, eram também um exército conquistador com propensões conhecidas de rapto e pilhagem. À distância apareceu um rapaz montado numa bicicleta, a pedalar como quem foge para salvar a vida. “Eles estão vindo,” gritou ele num brado bem penetrante. “Os russos estão chegando!” Os comunistas formam em linha. As bandeiras vermelhas, um tanto emurchecidas, erguem-se no ar. Os oficiais, que até ali haviam estado a discutir os planos das celebrações na capital, mantêm-se de pé, como vítimas de sacrifício, debaixo do sol ardente. Num instante, surgem as motocicletas rugidoras. Em seguida, aparecem os primeiros tanques. Das torres blindadas saem capacetes de estrela vermelha. Os comunistas garganteiam a “Internacional”. A estrada de asfalto treme sob o peso dos invasores. Grandes pneus afrouxam a velocidade, e param. O tanque da vanguarda eleva-se mais alto do que nós. Aço cinzento, cicatrizado e empoeirado. Um cano enorme de canhão aponta para o céu. Ao terminar o discurso de boas vindas um oficial inclina-se e levanta o pão e o sal. Olha fixamente para o pão escuro, como que se ele pudesse explodir. Em seguida, soltou um gargalhada. O jovem Sargento que estava ao lado dele olha para mim. “Bem, querida,” sorriu ele de modo malicioso. “E o que é que você tem para oferecer?” Naquele dia andavam poucas mulheres pelas ruas. Disse-lhe: “Trouxe para você a Bíblia Sagrada,” e entreguei-lhe


A Esposa do Pastor então um exemplar. “Pão, sal e uma Bíblia. Tudo o que nós precisamos é de alguma coisa para beber!” Deu uma gargalhada, e pôs para trás o capacete. O seu cabelo louro brilhava ao sol. “De qualquer maneira, obrigado!” disse ele. O barulho daquelas máquinas é ensurdecedor. Lagartas metálicas mordem na estrada. Motores vomitam fumo negro. Trovejando, a coluna passa. Sentíamo-nos sufocados e limpamos os olhos. De bonde a caminho de casa, vimos russos lançados ao saque. Barris de vinho rolavam pelos passeios. Galinhas, presuntos, lingüiças desapareciam em sacos. Soldados dirigiam-se excitadamente para as janelas das lojas suburbanas. Bucareste era naquela altura apenas uma casca triste da sua velha personalidade. Para estes gigantes filhos da Rússia, porém, era de uma riqueza incalculável. Richard falou de alguns deles, quando saíamos. A sua única resposta, no entanto, era apenas: “Onde poderemos nós encontrar vodka?” E assim voltávamos para casa, a fim de preparar novos planos. Deus fora roubado do coração destas pobres almas em troca de promessas dum paraíso terrestre, que nunca se realizará por meios humanos. Havia, contudo, um coisa que toda a gente tinha por verdadeiramente certa: O terror nazista acabara finalmente. As pessoas esperavam que os russos acalmariam, e cedo seguiriam em paz o seu caminho. Bem poucos imaginavam que uma tirania nova e mais duradoura havia começado. Eu não sabia que já estávamos na estrada que nos levaria à prisão, a qual seria assinalada com as sepulturas de amigos. Eu não acreditei em Richard, quando ele me avisou, antes de nos casarmos: “Comigo você não vai ter uma vida fácil.” Naqueles dias preocupávamo-nos pouco com Deus. Nem mesmo sentíamos muito interesse pelas outras pessoas. Não queríamos filhos. Queríamos antes os prazeres que o mundo oferece.


Sabina Wurmbrand Depois tornamo-nos cristãos. Richard trabalhou nas missões norueguesa, sueca e britânica. Tornou-se pastor. Desempenhou um cargo no Concílio Mundial de Igrejas. Pregou em igrejas de muitas denominações, em bares, prostíbulos e cadeias. Eu tinha trinta e um anos quando os russos vieram; e, naquela altura, Richard era um pregador bem conhecido. Ambos sofremos como judeus e cristãos sob o regime fascista romeno, dirigido pelo Marechal Antonescu, uma marionete de Hitler. Richard foi preso três vezes. Estávamos ambos incluídos num grupo de sete judeus submetidos a julgamento perante a corte marcial sob a acusação de realizar “cultos religiosos ilegais.” Uma mulher romena veio à delegação da polícia e disse ao oficial: ”O senhor prendeu os meus irmãos judeus. Seria para mim um privilégio sofrer juntamente com eles.” Foi o suficiente. Foi presa e interrogada juntamente conosco. Deus pôs muitos amigos desta ordem no nosso caminho. Pareciam anjos na forma de homens, trabalhando dia e noite para nosso benefício, aparecendo em cada ângulo das nossas vidas. Deus tem milhares e milhares de anjos assim, e usa multidões deles para fazerem de nós aquilo que somos. Um deles era um padre de influência na igreja Ortodoxa, que era favorecida por Antonescu. Falou por nós no nosso julgamento, dizendo que nós éramos seus irmãos em Cristo. Um batista alemão, o pastor Fleischer, e outros, deram de nós provas evidentes, dizendo que havíamos feito grande trabalho a favor da Cristandade. Arriscaram as suas vidas, e envergonharam os juízes – os quais sabiam que estávamos inocentes – e fomos absolvidos. Sempre que Richard estava em apuros havia um trio poderoso a acudir por ele: O pastor Solheim e sua esposa, e o Embaixador sueco, Von Reutersward, a quem nos apresentaram. Sem a intervenção deles, Richard teria passado toda a era nazista na prisão. O Embaixador gozava de influência


A Esposa do Pastor considerával, visto que o Marechal Antonescu servia-se da sua embaixada neutra, afim de poder manter-se em contato com Moscou. (O aliado de Antonescu, Hitler, poderia afinal vir a perder a guerra). Certa vez, quando Richard foi apanhado pela polícia numa batida aos judeus e posto a trabalhar juntamente com os outros, foi salvo pelo protesto enérgico de Reutersward. Fomos ajudados por ele vezes incontáveis. Bucareste estava com sorte. Nas províncias, porém, praticavam-se massacres terríveis, organizados. Num só dia em Iasi foram mortos 11.000 judeus. Talvez naquela altura houvessem em Bucareste os dez justos de que a Bíblia nos fala, os quais seriam razão suficiente para salvar as cidades de Sodoma e Gomorra. Ouvimos dizer que em Tassy sobreviveram dez moças com a missionária norueguesa , a irmã Olga, que as trouxe a Cristo. Como poderíamos nós trazê-las clandestinamente para Bucareste antes do próximo massacre? Os judeus estavam impedidos de viajar. Um amigo cristão a serviço na polícia prendeu as moças e enviou-as para a capital. Fomos ao comboio e trouxemo-las para nossa casa, onde ficaram protegidas. Um jovem conseguiu sair daquele distrito e alcançar a capital com a sua namorada e ficou conosco. Todos estes nos foram de grande conforto e ajuda nos anos que se seguiram – especialmente o jovem. Tornou-se meu substituto, como pastor, quando fui presa. Onde há uma vontade há um caminho, e nós determinamos isto: pudemos salvar estas raparigas do massacre que as ameaçava. Muitas pessoas, porém, desejaram antes de não se deixar envolver por estes movimentos e falharam no cumprimento dos seus deveres cristãos, deixando que milhares que poderiam ter salvo perecessem. Ninguém apareceu para socorrer as dezenas de milhares de judeus que foram deportados das cidades provincianas, incluindo a minha própria família que vivia próximo da cidade fronteiriça de Czernowitz. Era inverno. Muitos dos cativos desmaiaram na neve. Outros morreram de fome. Os soldados massacraram o


Sabina Wurmbrand resto. Os meus pais, o meu irmão e três irmãs, muitas pessoas amigas e parentes não regressaram mais. Ainda hoje, o pensamento é como uma ferida; sangra sempre que é tocada. A história dos judeus é cheia de acontecimentos assim traumáticos. As suas recordações estão profundamente gravadas no coração de cada judeu. Isto pode levá-los além dos seus próprios interesses, para chorar com as multidões de outros povos que pranteiam no meio de tragédias semelhantes. O meu único filho, Mihai, tinha cinco anos quando o nazismo foi derrotado. Por motivos de segurança, esteve recolhido mais tempo do que aquele que seria normal a uma criança. O medo e a morte espreitavam de todo o lado. Também não perdeu nada. O nosso apartamento era um lugar de reunião, e todas as noites ali vinham pessoas para nos falar das suas tribulações. Ele ouvia e cedo aprendeu a conhecer que existia crueldade e sofrimento. Richard ensinava-o e contavalhe histórias. Mihai adorava o pai que, apesar de estar sempre muito ocupado com a sua missão, todos os dias achava tempo para falar e brincar com ele. Uma vez explicou-lhe como João Batista dissera que um homem que tivesse duas túnicas devia repartir “com o que não tem.” “Você tem dois ternos, tata.” Disse Mihai. Sim, tenho,” respondeu Richard. Ele esperava anos para comprar aquele terno novo. “Você pode dar o novo àquele velho, o senhor lonesco, que anda sempre com aquele casaco a cheirar mal.” Richard prometeu-lhe que o faria, e Mihai foi contente para a cama. Tomava sempre muito a sério as coisas que dizia e tirava as próprias conclusões. Estava sempre muito atento à forma como o pai trabalhava sobre o coração das outras pessoas. Por vezes as conversações produzidas pelo trabalho de Richard davam origem a resultados laterais a favor de Mihai – tornou-se um favorito dos convertidos, que lhe traziam brinquedos e bombons. Durante a guerra tivemos que nos mudar para um apartamento menor. Os nossos vizinhos do novo bloco eram violentamente contrários aos judeus. Este ódio impregnara

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A Esposa do Pastor a Romênia, e até cristãos, particularmente prelados cristãos, desempenharam o seu papel a excitá-lo. Poucos foram aqueles que resistiram à fobia. No nosso pátio foram colocados dois grandes cartazes de Cornélio Codreanu, o guia da Escolta de Ferro – um símbolo de tudo quanto é anti-semítico. E no nosso cartão encontrava-se estampada a palavra JUDEU, do mesmo modo que nos nossos corações. Não nos sentíamos muito à vontade. Richard, porém, foi de vizinho em vizinho quebrando o gelo. Ele tinha em si a confiança de que as almas podem ser ganhas para Cristo, e uma fé que não era abalada facilmente por cinismo mundano ou brutalidade. Podia achar a palavra apropriada a respeito do Salvador para pessoas diferentes, ou avisar sobre os castigos de Deus sem ofensa. Podia cativar ou persuadir, e ir contudo diretamente ao fundo da questão. Os seus olhos azuis podiam olhar para dentro da alma das pessoas. Richard desenvolveu um trabalho estratégico. Primeiro junto ao nosso novo senhorio. Depois, um por um, junto dos nossos vizinhos. Começou procurando fazê-los rir. O senhor Parvalesco, do terceiro andar, explodiu: “Vocês, judeus, nunca fizeram uma única coisa, ainda que por muito reles, que tivesse algum préstimo!” Richard que permanecia de pé na entrada, respondeu simplesmente: “O senhor tem aí uma boa máquina de costura. Qual é a marca? Uma Singer! Não terá ela sido inventada por um judeu? Senhor Parvalesco, se de fato os judeus são assim tão inúteis, então deveria desfazer-se dela.” Do outro lado do patamar da porta da nossa casa morava uma senhora rabugenta, de meia idade, Georgesca, que tinha raiva “daqueles judeus” (que éramos nós). Todavia, pouco tempo depois já estava contando a Richard as suas mágoas. O marido tinha-a deixado. Seu filho era um jovem vadio. Temia que ele apanhasse alguma doença venérea. Richard prometeu falar com o rapaz.

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