Nos Subterrâneos de Deus

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Nos Subterr창neos de Deus

Richard Wurmbrand


Apresentação da 1a edição em português No lançamento deste livro através de uma nova edição, desejo apresentar meu mui querido e saudoso soldado do Senhor Jesus, que já atravessou o céu azul. Tivemos o privilégio de conhecer, há dezoito anos atrás, o Rev. Richard e Sabina Wurmbrand – duas pérolas na coroa de Jesus, meu Senhor e Salvador. Estava relembrando um dos vários encontros que tivemos com este casal tão abençoado. Eu estava com a minha querida esposa Heidi em visita à Alemanha, para algumas pregações; o Rev. Richard Wurmbrand e sua esposa Sabina se encontravam na Suíça, também em conferências. Quando eles souberam que estávamos tão perto, telefonaram pedindo que nos encontrássemos em Lausanne, em um certo restaurante. Nunca vou me esquecer daquele almoço em que ele, como um irmão mais velho e muito íntimo, com seu garfo tirava do meu prato e do de minha esposa o que estávamos comendo. Depois da refeição, ele tomou meu braço e me levou para passear. “Alvear”, disse ele, “quero fazer-lhe uma pergunta. Como se prega o Evangelho para uma pessoa?”. E ele prosseguiu: “Eu quero ajudá-lo. Você deve pregar da mesma forma como um noivo que ama muito a sua noiva que está doente de morte. O noivo tem o remédio que pode salvar a vida dela, mas ela não quer tomar esse remédio. Mesmo assim, o noivo, com todo amor e carinho, precisa mostrar a ela que ele tem o remédio que pode salvá-la de sua doença de morte, e ainda tem que convencê-la a tomar este remédio usando palavras doces, amorosas e cheias de compaixão. Assim você deve pregar o Evangelho – com carinho, paciência e compaixão”. Aprendi a amar a Igreja Subterrânea através do amor e dedicação deste homem de Deus. Amar a Igreja mártir, a Igreja não-oficial, a Igreja clandestina que é a maior força do Evangelho


de Jesus nos países onde é proibido pregar o Evangelho, em países comunistas, muçulmanos, hinduístas etc. Jamais nos esqueceremos de sua voz, uma voz que ecoou no mundo inteiro, e também no Brasil. Sua vida não foi em vão. Milhares foram salvos, e outros foram chamados ao ministério e às missões. Ao ler este livro, sua vida será abençoada, pois estas páginas estão estampadas com o amor e a compaixão de Deus através de um homem. Rev. Adan Alvear Foto da p. iv: Da esquerda para a direita: Mihai Wurmbrand, Pastor Virgínio, Richard Wurmbrand, Rev. Adan Alvear e Pastor Renault.


SumĂĄrio Primeira parte Segunda parte Terceira parte Quarta parte Quinta parte Sexta parte SĂŠtima parte Oitava parte Nona parte



Epígrafe Aos mártires cristãos que sacrificaram suas vidas ao serviço de Deus e morreram corajosamente, depois de sofrer torturas nas mãos dos comunistas.


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O Teste da Solidão Fui mantido sozinho nessa cela durante os dois anos seguintes. Não havia nada para ler ou material para escrever; eu tinha apenas meus pensamentos por companhia. Não era um homem meditativo, mas uma alma que raramente ficava em silêncio. Eu tinha Deus. Mas será que eu realmente tinha vivido para servir a Deus, ou aquilo tudo tinha sido apenas uma profissão, para mim? Seria que eu realmente acreditava em Deus? Agora era a hora de provar. Eu estava sozinho, não havia salário para receber, nem opiniões especiais a considerar. Deus estava me oferecendo apenas o sofrimento – eu continuaria a amá-lO? Aos poucos, descobri que da árvore do silêncio vem o fruto da paz. Comecei a conhecer minha verdadeira personalidade, e tive a certeza de pertencer a Cristo. Compreendi que mesmo ali meus pensamentos e sentimentos estavam voltados para Deus, e que eu podia atravessar noites orando, em exercício espiritual, e adorando ao Senhor. Então entendi que não estava apenas representando um papel. Eu CRIA.

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Agradecimentos Não tenho como dizer o nome de todos a quem devo pela bondade e ajuda que me ofereceram desde que fui libertado da prisão e desde que cheguei ao Ocidente. Porém, gostaria de agradecer particularmente ao Rev. Stuart Harris, diretor da Missão Cristão Europeia e presidente da Missão Britânica para o Mundo Comunista – uma missão que trabalha para propagar o Evangelho em países sob domínio comunista, enviando Bíblias e outros livros cristãos e ajudando pastores clandestinos e famílias de cristãos perseguidos. Era tarde, a primeira vez que ele bateu à porta do minúsculo sótão em Bucareste onde eu passei a viver com minha família depois de liberto da cadeia. Foi ele quem primeiro nos trouxe notícias do Ocidente – que os cristãos de lá não nos haviam esquecido, mas oravam por nós diariamente; e foi ele quem nos levou a primeira ajuda para as famílias necessitadas. Eu, juntamente com muitos outros, devo muito a ele.

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Prefácio Sou ministro luterano. Passei mais de quatorze anos em diferentes prisões por causa de minha fé cristã, mas não é este o motivo que me leva a escrever este livro. Sempre fui avesso à ideia de que a pessoa que uma vez foi presa injustamente deva escrever ou pregar a respeito dos seus sofrimentos. Campanella, o notável autor de A Cidade do sol, esteve encarcerado durante 27 anos, sofrendo torturas. Chegou inclusive a passar quarenta horas deitado numa cama de pregos, e não é ele quem relata isso, mas seus biógrafos. Os anos de prisão não me pareceram tão longos, porque descobri, sozinho em minha cela, que, além da fé e do amor, há em Deus um deleite: um profundo e extraordinário êxtase de felicidade, a que nada no mundo se pode comparar. Saindo do cárcere, assemelhava-me a alguém que desceu do cume de uma montanha, de onde teve descortinada, na extensão de quilômetros ao redor, a paz e a beleza dos campos, e agora voltou à planície. Primeiro devo explicar por que, há mais de dois anos, vim para o Ocidente. Quando fui solto em 1964, juntamente com milhares de outros presos (políticos e religiosos), isso aconteceu porque a República Popular da Romênia adotara uma política mais “amistosa” com relação ao Ocidente. Deram-me a menor paróquia do país. Minha congregação contava 35 membros; avisaram-me que se 36 pessoas entrassem na Igreja, haveria problemas. Porém, eu tinha muito a falar e muitos queriam me ouvir. Viajava secretamente para pregar em povoados e aldeias, e ia embora antes que a polícia soubesse que um estranho estava em terras de sua jurisdição. Mas aquilo também tinha de parar. Pastores que me ajudaram foram demitidos pelo Estado, e eu podia me tornar causa de novas prisões e confissões extraídas mediante tortura. Tornava-me um peso e um perigo para aqueles a quem desejava servir. 15


Amigos insistiram comigo que eu deixasse o país, e assim, estando no Ocidente, que eu falasse em favor da Igreja clandestina. De declarações feitas por líderes da Igreja no Ocidente concluíase que alguns sabiam e outros não queriam saber a verdade sobre a perseguição religiosa movida pelos comunistas. Prelados procedentes da Europa e da América faziam visitas amistosas aos nossos inquisidores e perseguidores, e sentavam a banquetearse com eles. Perguntávamos a eles qual a razão disso e diziam: “Como cristãos, temos de proceder amigavelmente com todos, como o senhor sabe. Até com os comunistas”. Por que, então, não se mostravam amigos com os que sofriam? Por que nada perguntavam – nem uma palavra sequer – a respeito dos padres e pastores que haviam morrido na prisão ou sob torturas? E por que não deixavam, um pouco que fosse, de ajuda financeira para as famílias desses mártires? Em 1965, o Dr. Ramsey, Arcebispo da Cantuária, foi à Romênia e participou de um culto. Não sabia que a “congregação” na verdade consistia em oficiais e agentes da Polícia Secreta e suas esposas – o mesmo auditório que, em vários eventos semelhantes, já havia escutado rabinos e muftis, bispos e ministros batistas. Conforme se constata pela literatura, visitantes como Ramsey, de volta a seus países, comentavam, alegres, a liberdade que, como julgavam, imperava no país. Um teólogo inglês escreveu um livro em que declara que Cristo ficaria admirado com o sistema prisional comunista. Nesse tempo, perdi a licença que tinha para pregar. Fui posto numa lista negra e passei a ser constantemente seguido e vigiado. Algumas vezes ainda preguei em casas de amigos que não ligavam para o perigo que isso representava. Assim, não fiquei surpreso quando, algum tempo depois de terem começado as negociações secretas para a minha partida rumo ao Ocidente, um estranho me convidou a ir à sua casa. Deu-me o endereço, mas não me disse seu nome. Quando o procurei, estava sozinho. 16


“Quero lhe prestar uma ajuda”, disse-me. Reconheci que era um agente da Polícia Secreta. “Um amigo meu diz que os dólares para o senhor foram recebidos. Provavelmente o senhor gostaria de deixar logo o país. O meu amigo está preocupado. O senhor é um homem que fala com franqueza e acaba de sair da prisão. Eles pensam que seria melhor o senhor ficar detido por um pouco mais – ou um membro de sua família permanecer aqui como fiador de sua boa conduta. Naturalmente sua libertação não será condicionada...” Não lhe garanti nada. Eles tinham os dólares – isso devia ser o suficiente. Organizações cristãs do Ocidente haviam pago 10.000 dólares pelo meu resgate. A venda de pessoas traz dinheiro estrangeiro e isso ajuda a economia da República Popular. Há uma anedota popular romena que diz: “Venderíamos o Primeiro-ministro, se alguém quisesse comprá-lo”. Judeus são vendidos a Israel por 1.000 dólares por cabeça; membros da minoria germânica à Alemanha Ocidental; armênios aos Estados Unidos. Cientistas, médicos e professores custam cerca de 5.000 dólares cada. Em seguida fui convocado a comparecer numa repartição da polícia. Um dos funcionários me disse: “Seu passaporte está pronto. Pode ir quando quiser e para onde preferir, e pode pregar quanto quiser. Só não fale contra nós; limite-se ao Evangelho. Caso contrário, será reduzido para sempre ao silêncio. Podemos muito bem contratar um pistoleiro, que se encarregará disso por 1.000 dólares; podemos também trazê-lo de volta para cá, como já fizemos com outros traidores. Podemos aniquilar sua reputação no Ocidente com um escândalo envolvendo dinheiro ou sexo”. Depois disso, afirmou que eu podia sair. Essa era a minha liberdade incondicional. Então, vim para o Ocidente, onde fui examinado pelos médicos. Um deles me disse: “O senhor está tão perfurado que parece uma peneira”. Ele não conseguia acreditar que 17


meus ossos se tivessem restabelecido e minha tuberculose se houvesse curado sem cuidados médicos. “Não me peça para tratá-lo”, disse-me ele. “Peça àquEle que o manteve vivo, e nO qual não creio.” Começava meu novo pastorado em favor da Igreja Subterrânea . Encontrei-me com amigos de nossa Missão Escandinava na Noruega. Pregando lá, uma senhora, no banco da frente, começou a chorar. Depois ela me contou que, havia anos, lera a notícia de minha prisão, e desde aquele tempo, viera orando por mim. “Vim hoje à Igreja sem saber quem ia pregar”, disse ela. “Enquanto ouvia, descobri quem era o pregador, e não contive as lágrimas.” Acabei sabendo que milhares de pessoas estiveram orando por mim, da mesma maneira que oram todos os dias também pelos que estão nas cadeias comunistas. Crianças que eu nunca vira escreviam-me, dizendo: “Por favor, venha à nossa cidade. Nossas orações a seu favor foram respondidas”. Em Igrejas e universidades, por toda a Europa e América, percebi que as pessoas – embora muitas vezes profundamente comovidas com o que eu dizia – não criam, porém, que um perigo realmente as ameaçava. “O Comunismo aqui seria diferente” e “Os nossos comunistas são poucos, e inofensivos”. Na Romênia também pensávamos assim, na época em que o Partido era insignificante. O mundo está cheio de pequenos partidos comunistas, que estão à espreita. Pode-se brincar com um filhote de tigre, mas quando ele cresce, pode devorar a pessoa. Conheci líderes da Igreja no Ocidente que me aconselharam a pregar somente o Evangelho e evitar ataques ao Comunismo. Foi o mesmo conselho dado pela Polícia Secreta de Bucareste. O mal, todavia, deve ser chamado pelo seu próprio nome. Jesus disse aos fariseus que eles eram “víboras”, e por isso – e não por causa do Sermão do Monte – é que foi crucificado. Denuncio o Comunismo porque amo os comunistas.

Ou Igreja Secreta. (Nota do revisor) 18


Podemos odiar o pecado e amar o pecador. Sobre os crentes pesa o dever de conquistar as almas dos comunistas, e se falharmos nisto, eles cairão sobre o Ocidente e daqui, de igual modo, arrancarão o Cristianismo pelas raízes. Os líderes comunistas são infelizes e desgraçados. Podem ser salvos, e o modo de Deus agir com esta finalidade é enviando pessoas. Ele próprio não foi tirar os israelitas do Egito – para isso enviou Moisés. Assim, cabe a nós ganhar para Deus líderes comunistas em todas as esferas – no campo das artes, das ciências e da política. Conquistando os que possam modelar a mente dos homens nos países comunistas, poderemos ganhar os povos que eles dirigem e sobre os quais exercem influência. Svetlana Stálin, filha única do maior genocida de cristãos, foi uma alma criada na mais rigorosa disciplina comunista. Sua conversão prova que existe uma arma contra o Comunismo mais poderosa do que as bombas atômicas: o amor de Cristo.

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PRIMEIRA PARTE

A primeira metade da minha vida se encerrou em 29 de fevereiro de 1948. Caminhava sozinho por uma rua de Bucareste quando, de repente, um Ford preto parou ao meu lado e dois homens saltaram. Pegaram-me pelos braços e empurraram-me para o banco de trás, enquanto um terceiro, ao lado do motorista, apontou-me uma arma. O carro disparou, ziguezagueando entre os poucos veículos que trafegavam naquela manhã de domingo. Depois, numa rua chamada Calea Rahova, viramos e entramos por um portão de aço, do qual ainda ouvi o barulho ao se fechar atrás de nós. Meus raptores pertenciam à Polícia Secreta comunista, e aquela era a sua sede. Uma vez lá dentro, meus documentos, pertences, gravata, cadarços e, por fim, meu próprio nome foram arrancados de mim. “De agora em diante”, disseram-me, “seu nome será Vasile Georgescu”. Era um nome comum. As autoridades não queriam nem que os guardas soubessem a quem eles estavam vigiando, no caso de circularem indagações de fora, onde eu era bem conhecido. Eu ia desaparecer, como tantos outros, sem deixar rastros. O presídio da Calea Rahova era novo, e eu era o primeiro detento. A experiência de prisão, entretanto, não era para mim uma novidade. Durante a guerra, eu já tinha sido preso pelos fascistas, que dominavam na época de Hitler e, outra vez, quando os comunistas assumiram o poder. No alto da parede de concreto da cela, havia uma janelinha. No piso, duas camas de tábuas e, num canto, o costumeiro balde. Sentei-me para aguardar 2- Calea significa literalmente “a rua”, em romeno. (Nota do revisor)

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o interrogatório, sabendo as perguntas que iriam fazer e as respostas que eu deveria dar. Conheço bem o que é o medo, mas naquele momento não o senti. Aquela prisão e tudo quanto a ela se seguiu eram a resposta a uma oração que eu fizera, esperando que iria dar novo sentido à minha vida. Não sabia que coisas estranhas e maravilhosas estavam reservadas para mim. Meu pai tinha em casa um livro que orientava os jovens na escolha de profissões, como advogado, médico, oficial do exército e outras. Certa vez, quando eu tinha uns cinco anos, ele nos trouxe o livro, perguntando aos meus irmãos o que eles queriam ser. Depois de terem feito sua escolha, meu pai voltou-se para mim, que era o caçula. “E você, Richard, o que você quer ser?” Olhei mais uma vez para o título do livro (Guia geral de profissões) e fiquei pensando. Depois respondi: “Quero ser um guia geral”. Cinquenta anos se passaram, quatorze dos quais em prisão, e tenho pensado muitas vezes naquelas palavras. Dizem que bem cedo na vida é que fazemos nossas escolhas. Não conheço nada que defina melhor meu trabalho atual do que esse título de “guia geral”. Entretanto, a ideia de me tornar um pastor cristão estava muito longe de mim e dos meus pais, que eram judeus. Meu pai morreu quando eu tinha nove anos, e nossa família sempre enfrentou escassez de dinheiro e, não raro, de alimento. Um senhor certa vez ofereceu-se para comprar-me uma roupa. Quando fomos à loja e o vendedor apresentou uma das melhores, o homem disse: “Esta é boa demais para um menino como este”. Parece que ainda posso escutar aquela voz. Meus estudos escolares foram deficientes, mas tínhamos em casa muitos livros. Antes dos dez anos eu já havia lido todos, e me tornei tão cético quanto Voltaire, a quem eu admirava. 22


Não obstante isso, a religião me interessava. Assistia a rituais em Igrejas ortodoxas e católico-romanas, e certa vez vi numa sinagoga um conhecido orando por sua filha enferma. Ela morreu no dia seguinte e eu perguntei ao rabino: “Que Deus não ouviria uma oração desesperada como aquela?”. Ele não me deu resposta. Eu não podia acreditar em um Ser todo-poderoso que deixava tanta gente a padecer fome e a sofrer, e menos ainda que Ele tivesse posto na terra um varão de tanta bondade e sabedoria como Jesus Cristo. Cresci e entrei para o mundo dos negócios de Bucareste. Eu me saí bem, e antes dos 25 anos tinha bastante dinheiro para gastar em bares e cabarés luxuosos, e com as meninas da “Pequena Paris”, como a capital era conhecida. Não ligava ao que acontecesse, contanto que minha sede de novas sensações fosse aplacada. Levava uma vida que muitos invejavam, mas que, no entanto, deixava-me em grande aflição mental. Sabia que tudo aquilo era falso e que eu estava jogando fora, como se fosse lixo, algo em mim que era bom e que podia ser usado. Embora estivesse certo do que Deus não existiam, ansiava em meu coração que fosse diferente, e que houvesse uma razão para a vida no universo. Certo dia, fui a uma Igreja e fiquei, com outras pessoas, diante de uma imagem da virgem Maria. As pessoas rezavam e eu tentei acompanhá-las, dizendo: “Ave, Maria, cheia de graça...”, mas sentia um vazio dentro de mim. Eu disse à imagem: “De fato, você é como uma pedra. Tantos a pedir e você não tem nada para eles”. Depois que me casei, continuei a andar atrás de outras moças. Prossegui na caça de prazeres, mentindo, trapaceando, sem refletir em nada, prejudicando outros, até que, aos 27 anos, tais excessos, combinados com as privações de outros tempos, acabaram levando-me à tuberculose. Naquela época, essa era uma moléstia perigosa, e por um momento pensei que não 23


sobreviveria, então tive medo. Em uma clínica do interior, repousei pela primeira vez. Deitado, pus-me a olhar as árvores lá fora, recordando de fatos passados. Estes se me apresentaram como cenas de um teatro angustiante: minha mãe chorando por mim, minha esposa em lágrimas, e tantas jovens indefesas igualmente em pranto. Eu as havia seduzido e difamado, ridicularizado e enganado, não passando de um impostor. Deitado ali, as lágrimas me vieram aos olhos. Na clínica, orei pela primeira vez em minha vida – a oração de um ateu. Disse algo mais ou menos assim: “Deus, sei que Tu não existes. Mas, se por acaso existires (coisa que não aceito), cabe a Ti revelares-Te a mim; não sou eu quem tem o dever de procurar-Te”. Toda a minha filosofia até aí tinha sido materialista, porém meu coração não se satisfazia com ela. Eu cria na teoria segundo a qual o homem não passa de matéria e que, depois de morto, decompõe-se em sais e minerais. Havia, no entanto, perdido meu pai e assistido a outros funerais, e jamais podia pensar nos mortos senão como pessoas. Quem pode pensar que um filho seu, morto, ou esposa, seja um amontoado de minerais? É sempre em pessoas queridas que pensamos. Nossas mentes podem iludir-se assim? Meu coração estava cheio de contradições. Eu havia passado horas em lugares barulhentos de distração, entre jovens seminuas e música agitada, porém gostava também de passear sozinho nos cemitérios, algumas vezes no inverno, quando os túmulos se cobriam de neve pesada. Dizia a mim mesmo: “Um dia também serei defunto e a neve me cobrirá a sepultura, enquanto os vivos estarão rindo, a gozar a vida. Não me será possível participar das suas alegrias. Nem chegarei a saber quais serão elas. Simplesmente não mais existirei. Depois de breve tempo, ninguém mais se lembrará de mim. Assim, pois, qual é a 24


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