Empoderamento Feminino nas Redes Sociais - TCC

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Feminismo 2.0

Por que a discussão dominou a internet?

CONHEÇA HISTÓRIAS DE PESSOAS QUE UTILIZAM A REDE PARA PROMOVER A IGUALDADE DE GÊNEROS



4 | ESPECIAL Saiba a importância do feminismo 6 | PERFIL #HeforShe Alex Castro é um dos militantes do movimento no Brasil 9 | PERFIL #EuNãoMereçoSerEstuprada Gisele Tronquini desabafa sobre a cultura do estupro 14 | PERFIL #StoptheBeautyMadness Saiba como Juliana Romano aprendeu a aceitar o seu corpo plus size 18| PERFIL #Arquivos Feministas Veja como a estudante Carolina Ribeiro encontrou forças nas redes sociais após ser assediada no transporte público 22 | PERFIL #ChegadeFiuFiu Juliana Vaz fala como conseguiu se empoderar após ser abusada 26 | PARA FECHAR Conheça grupos que são contra o feminismo

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Afinal, o que querem as feministas? REDAÇÃO E EDIÇÃO ANA CAROLINA MACHADO, CAROLINE VENCO, CHAIAN RAIAD, LUIZA TEN, MARCELA ROCHA E ROBERTA FREITAS EDIÇÃO DE IMAGEM OLIVIA RODRIGUES REVISÃO DANIELA VILLA-FLOR E SIMONE BLANES ARTES BARBARA TUBELO, CHARIS TSEVIS E DALEY PRODUÇÃO GRÁFICA CAROLINE VENCO IMAGENS CLAUDIA REGINA, CHAIAN RAIAD, GUSTAVO LACERDA, MARIANA ZARPELLON E TOMAZ RANGEL CAPA CHARIS TSEVIS PESQUISA DE IMAGENS ANA CAROLINA MACHADO, CAROLINE VENCO, CHAIAN RAIAD, LUIZA TEN, MARCELA ROCHA E ROBERTA FREITAS GRÁFICA ALPHAGRAPHICS

UNIVERSIDADE ANHEMBI MORUMBI NOVEMBRO/2015

4 | ESPECIAL

As origens do movimento e a definição do ciberfeminismo POR LUIZA TEN, MARCELA ROCHA E ROBERTA FREITAS

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feminismo e a divulgação de seus ideais percorreram um longo caminho até que alcançassem os atuais contornos e manifestações. “A agenda surgiu a partir das falhas na concepção da cidadania moderna, que excluía as mulheres. Pode ser explicado como um movimento que se opõe a qualquer privilégio exclusivamente masculino”, diz Natalia Mendez, historiadora e professora de História Antiga na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). O livro “O que é feminismo” de Branca Moreira Alves e Jacqueline Pitanguy, mostra que as diferenças entre os sexos acontecem - pasmem - desde a Grécia Antiga, onde mulheres eram niveladas com os escravos e não tinham, por exemplo, direito ao estudo. Para quem pensa que o feminismo é recente, aquele que é considerado o protesto inicial a favor dos direitos das mulheres aconteceu na Roma Antiga, quando elas foram excluídas do uso do transporte público. Mas quem teria sido a primeira feminista da história? Segundo a escritora Simone de Beauvoir, em seu famoso livro “O segundo sexo”, o mérito é de Christine de Pisan (1364-1430). Poetisa oficial

da corte francesa do século XIV, ela foi a primeira mulher a abrir uma discussão sobre igualdade entre os gêneros em sua obra “A Cidade Das Damas”, ainda em 1405, onde cria uma cidade ideal para as mulheres. Em 1872 o termo “feminismo” foi criado de maneira pejorativa por um jornalista francês, que tinha como objetivo relacionar a expressão aos homens afeminados. Apesar desta intenção maliciosa, a luta feminista ganhou força e organização no âmbito político ainda durante a Revolução Francesa (1789-1799). Como destaque, a primeira luta significativa das feministas ocorreu somente no final do século XIX com o movimento sufragista, classificado como a “primeira onda do feminismo”, onde mulheres reivindicavam o direito ao voto. Todavia, foi na década de 1960 que a voz destas mulheres ganhou força, assim que as exigências por igualdade na esfera dos direitos civis começaram a ser aceitas nos EUA e partes da Europa. Simultaneamente, para conhecer o feminismo em sua profundidade, sobretudo no Brasil, era necessária uma grande pesquisa, pois os ideais não eram tão difundidos. “Eu ganhei um livro

FOTOS REPRODUÇÃO/J. Howard Miller

ORIENTAÇÃO FRANCISCO BICUDO


Rachel Moreno em uma de suas primeiras manifestações feministas (1979)

FOTOS REPRODUÇÃO E ARQUIVO PESSOAL

chamado ‘A Mulher Eunuco’ nos anos 70 (da autora australiana Germaine Greer, de 1970), que falava de feminismo e fiquei encantada. Eu e minhas amigas tínhamos a impressão que não existia mais ninguém que discutia esse tipo de coisa” conta Rachel Moreno, psicóloga e autora do livro “A Beleza Impossível”, de 2008. Surge então a chamada “segunda onda do feminismo”, que compreende as décadas de 60 e 70, caracterizada como a busca pela total igualdade entre os sexos e, principalmente, o direito sobre o próprio corpo, incluindo a contracepção e o direito ao aborto. A terceira onda veio nos anos 90 e representa uma redefinição da militância. A ideologia abre-se nas seguintes ramificações: feminismo negro, feminismo lésbico e feminismo em países de terceiro mundo. Atualmente, inclusive, o movimento tem ganhado grande proeminência nas redes sociais. Com a facilidade e rapidez de um clique é possível saciar a curiosidade sobre qualquer assunto relacionado ao tema, além de participar de debates nas comunidades. “Já na América Latina dos anos 90, alguns grupos feministas utilizavam a internet para trocar informações. Mas houve uma explosão dessa prática na última década, possivelmente associada ao crescimento das redes”, diz Natalia. Antes do advento da internet, estas mulheres trabalhavam arduamente para divulgar o movimento. “Os jornais feministas foram uma ferramenta importante. Além deles, grupos escreviam panfletos e como parte do ativismo, cabia também

Natalia Mendez em uma palestra na UFRG

divulgá-los. As discussões tinham que ser presenciais ou por correspondência”, recorda Natalia. Rachel fez parte de uma publicação feminista, o jornal “nós, mulheres”, criado no porão da revista “Versos”. “A gente debatia a situação da mulher trabalhadora. Então tinha de um lado ‘nós, mulheres’, do outro o movimento negro unificado que nascia. E dele, algumas colegas vieram participar do jornal e discutiam o machismo dentro do próprio movimento. Um tempo depois acabaram lançando o que chamam de feminismo negro”, relembra a escritora.

Quarta onda?

Natalia observa que a presença do feminismo nas mídias online colocou suas pautas de volta sob os holofotes. “A linguagem das redes sociais causou uma aproximação das jovens com o feminismo. É através delas que podemos falar sobre o movimento, mesmo sem que tenham participado de uma organização feminista de fato. Há questões que não são novas, mas que ganharam evidência, como, por exemplo, o combate ao assédio, que ocorre principalmente nas ruas”. Prova disso é o tema da redação do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) de 2015, que sugeriu uma dissertação sobre a persistência da violência contra a mulher na sociedade brasileira. Mesmo sendo um assunto amplamente divulgado e vigente, fomentou uma polêmica inflamada nas redes sociais e até a criação da hashtag #EnemFeminista, usada para criticar negativamente a escolha do tema. Ademais circularam também os seguintes comentários: “Dos assassinatos, mulheres são somente 8,6%”, “Tema do #enemfeminista: violência contra a elas. É tipo se o tema fosse racismo contra brancos” e “agora aguenta as feministas retardadas”. A historiadora destaca que a resistência e a intolerância aos valores feministas não são novidades. Se hoje existem aqueles que manifestam seu ódio por meio do anonimato nas redes (os chamados haters), antes os opositores utilizavam a tática

do deboche. “As feministas sempre sofreram hostilidade. Rachel Soihet, feminista e doutora em História Social pela Universidade de São Paulo (USP), estudou o uso do ‘humor’ como forma de satirizar o feminismo sufragista, aquele que defendia o voto das mulheres”, conta Natalia. Rachel Moreno dá o exemplo da infame entrevista com Betty Friedan, líder feminista, publicada no jornal “Pasquim” na década de 70. Nela, ícones como Millôr Fernandes e Ziraldo colocaram Betty como um estereótipo ruim das feministas, ou seja, feia e masculinizada. Respondendo a afronta que sofrera, a ativista soltou palavrões. “A tática era ridicularizar”, completa. Quando voltamos para o feminismo atual, observamos uma nova faceta do movimento: o empoderamento feminino. A expressão surgiu em 2010 com os Princípios de Empoderamento das Mulheres, da ONU (Women Empowerment Principles), onde eram apresentados sete princípios que as empresas e comunidades poderiam aderir para “empoderar” as mulheres. O conceito, portanto, surge como uma tradução para a palavra “empowerment”, que foi incorporada à luta feminista. A expressão ganhou novos significados e, atualmente, apresenta uma ação conjunta, ou seja, de todas para todas as mulheres. Natalia defende a repercussão do termo: “Ver meninas tão jovens já falando com propriedade sobre o machismo, questões de gênero, citando Simone de Beauvoir e tentando entender o que é empoderamento femino é instigante”, diz.

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Alex Castro Foto Claudia Regina

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Saiba quando a ajuda dos homens é bem vinda e qual deve ser o limite dessa parceria

Eles por elas e todos contra o machismo POR ANA CAROLINA MACHADO E MARCELA ROCHA

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2 de agosto de 2014

erca de 60 coletivos feministas do país publicaram uma carta no site Imprensa Feminista, em repúdio ao espaço concedido pela Revista Fórum ao escritor Alex Castro. As ativistas acusavam a publicação de colonizar o tema ao permitir que um homem, cisgênero, heterossexual e branco falasse em nome da causa. Ele não se pronunciou, mas algumas feministas saíram em defesa dele. Foi o caso da blogueira Lola Aronovich que, citada no manifesto e questionada por seus seguidores, escreveu: “Acredito em homens feministas, acredito que eles existem e que podem fazer um ótimo trabalho. Não no papel de protagonistas, e sim no de aliados”. Carioca, Alexandre Moraes de Castro e Silva nasceu em 1974. Cresceu em um apartamento de 600 m2, com acesso a todos os benefícios que a sua condição de homem, branco e de família rica podiam lhe proporcionar. Para ele, o maior desafio tem sido tornar conscientes os privilégios intrínsecos à sua condição cultural e social. O escritor acredita que hoje o mundo é claramente dividido entre as pessoas que têm todas as possibilidade de escolhas em função da sua identidade de gênero, cor e classe social, e outras, de chances limitadas.

Sua trajetória online começou em 2003, quando passou a usar a web para divulgar seu trabalho como escritor. Seu romance em formato de e-book “Mulher de Um Homem Só”, cuja trama é narrada sob o ponto de vista de uma personagem feminina, foi baixado mais de 30 mil vezes, até se tornar versão impressa. Ele diz que usa a literatura como espaço para dar visibilidade ao seu lado artista e atualmente mantém, além do blog pessoal, uma coluna no site ‘Papo de Homem’ e outra na revista ‘Fórum’, palco da polêmica.

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Alex não se coloca como feminista, mas sim como alguém que tem uma posição mais vantajosa, e escolheu falar contra seus próprios privilégios. A temática ganhou seu interesse quando viveu nos EUA durante seu doutorado. À medida que tomava consciência de suas vantagens, temas como feminismo, racismo e identidade de gênero se tornavam gradativamente mais recorrentes nos textos do escritor. “Cresci cercado por mulheres, meus melhores amigos são do sexo feminino e era comum ouvir que elas se sentiam em uma condição pior que as suas avós. Se antes, na escala hierárquica, elas vinham em quarto lugar, hoje se sentem em quinto: depois de trabalho, marido, casa e filhos”, diz o escritor.

“Se antes, na escala hierárquica, elas vinham em quarto lugar, hoje se sentem em quinto: depois de trabalho, marido, casa e filhos” 8

A participação dos homens no movimento sempre ocorreu de forma periférica, como apoiadores de causas e ideias. A historiadora Natalia Mendez cita como exemplo dessa postura mais empática a frase de um dos teóricos da Revolução Francesa, Condocert. Dizia ele: “por que os indivíduos expostos à gravidez e outras indisposições passageiras seriam incapazes de exercer direitos que ninguém sonhou em negar às pessoas que sofrem de gota todo o inverno ou que adquirem resfriados facilmente”. Para ela esse é um debate complexo porque o feminismo se caracteriza justamente por ser um movimento que surge a partir da experiência de ser mulher em uma sociedade que favorece os homens. “Cada grupo deve ter autonomia para definir se considera interessante ou não a participação deles em suas organizações”, diz. A historiadora Renata Saavedra também acredita que não é preciso ser mulher para lutar na campanha, mas que os homens precisam enten-

der seu espaço na luta. “Posso dialogar, contribuir, mas sempre entendendo a centralidade da experiência do outro”. Ela acrescenta que eles sempre ocuparam a posição de destaque na nossa cultura e que o desafio é desconstruir esses lugares de fala cristalizada, multiplicando as vozes e os protagonistas. Diretora-executiva da Associação Mulheres pela Paz e doutora em comunicação, Vera Vieira também defende que a participação masculina deve ser para a desconstrução de estereótipos sexistas da sua própria formação e da influência que sofrem em todas as suas redes de relações (família, igreja, escola, mídia). Ela acredita que apenas dessa forma eles poderão viver em harmonia e auxiliarão a construir uma sociedade com equidade de gênero. “Os homens não podem se colocar de forma alguma como pessoas que estão “ajudando às mulheres”, pois estarão ajudando a si próprios. Consequentemente, isso beneficiará à sociedade como um todo”, afirma.

FOTOS DIVULGAÇÃO

Caio Blat é um dos apoiadores da campanha #ElesporElas


No Twitter, artistas internacionais apoiam a campanha #HeforShe

E por que é importante inserir esse assunto na roda masculina? Dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (Pnad) 2013 mostram que as mulheres trabalham 4,8 horas semanais a mais que o homem - o que inclui fora e afazeres domésticos -, possui uma melhor média de tempo de estudo 7,9% contra 7,5% deles, sendo a taxa em relação às que possuem nível de educação superior 17,6% contra 12,7% dos homens. Seu rendimento, no entanto, é menor (29%). No campo político, elas também estão bem aquém em representatividade. No pleito de 2012, o percentual de vagas ocupadas por elas alcançou 13,3%, do total de assentos nas Câmaras Municipais, 10% do total de vagas na Câmara dos Deputados e 16% no Senado. Pensando em acelerar o processo dessas diferenças, foi lançado o movimento global “He for She”. O foco é informar, conscientizar e mobilizar homens para que eles assumam também a responsabilidade na promoção da igualdade de gênero. No Brasil, o “Eles por Elas” ganhou o apoio de organizações e famosos. É promovido pelo canal de TV fechada, GNT.

“Pessoal, @EmWatson entendeu bem. Igualdade de gênero não é sobre assumir um lado. É sobre dignadade humana para todos. Esta é a evolução #ElesporElas”

“Se você quer realmente deixar o meu dia melhor, tire uma foto de você apoiando ou me mande uma imagem falando porque você apoia a igualdade de gêneros #elesporelas”

FOTOS DIVULGAÇÃO E REPRODUÇÃO/TWITTER

“E falando sobre feminismo, @EmWatson está tocando um grande projeto chamado #ElesporElas. Confira aqui heforshe.org”

O discurso lançado pela atriz e embaixadora da ONU Mulheres, Emma Watson, apresentando a campanha foi amplamente divulgado. Nele, a atriz defende que o trabalho de conscientização cultural de gênero pode ser potencializado pelas tecnologias da informação e pelo poder das redes sociais, além de abrir uma discussão sobre a lógica econômica e social da igualdade. No Brasil, o movimento visa a desconstrução do machismo naturalizado. “Nosso país mantém características patriarcais, então procuramos, no contexto da campanha, conscientizar os homens sobre a importância do empoderamento das mulheres e da igualdade de gênero

para os direitos humanos e o desenvolvimento. Também trabalhamos para mostrar às empresas, governos e outras organizações, de modo geral, que todos têm uma responsabilidade importantíssima nesse movimento”, explica Amanda Lemos, coordenadora da campanha. “A questão mais importante é debater com os homens, em especial os que se aproximam do feminismo. E mais relevante do que saber se um homem pode ou não se dizer ‘feminista’ é saber se eles estão, de fato, dispostos a assumir que detém uma condição social privilegiada”, completa Natália Mendez. Assim como Alex, que não tem dúvida da sua posição.

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O que é estupro para você

Saiba POR QUE o seu machismo faz vítimas

Meu estupro me impediu que eu me relacionasse com qualquer homem por mais de um ano. Me fez parar de beber, me deixa temerosa de conhecer homens novos. foi O que me fortaleceu e me tornou a feminista que sou hoje, me fez entender que a culpa não foi minha. foi o acolhimento das minhas amigas e o círculo de proteção que elas criam ao redor de mim, todos os dias”

O desabafo de Gisele é contra a cultura do estupro que, muitas vezes, culpabiliza a vítima. 10 | PERFIL

POR MARCELA ROCHA

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isele tem 25 anos, é estudante de História e, segundo ela, feminista desde que começou a aprender os plurais e questionar os professores do por que um só menino entre cinco meninas determinaria o “eles”. Mas militante mesmo passou a ser depois que virou um desses casos de agressão à mulher em 2011, quando foi parar na delegacia depois de apanhar de um namorado. “Durante a denúncia, conheci uma menina que havia sido estuprada, mas que só pediu ajuda uma semana depois do ocorrido, quando já era quase impossível acusar o agressor. Aquilo mexeu comigo”, diz. Um ano após o episódio, decidiu que era hora de tentar se relacionar novamente e, na Virada Cultural de São Paulo em 2012, foi vítima mais uma vez: “Eu estava ficando com um cara e bebemos muito. Como tinha que esperar o metrô abrir, decidi dormir em um motel. Avisei que não iria rolar nada, que queria dormir e ele disse que iria junto mesmo assim. Chegando lá, começou a forçar a barra e apesar de todos os ‘nãos’, só parou de me penetrar quando me viu chorando”, lembra. Apesar de já ter conhecimento dos seus direitos quanto mulher, ela se culpou, tentou repetir para si mesma que aquilo foi só uma transa ruim, e que, provavelmente, a responsável tinha sido ela, já que “foi dormir em um motel com um cara depois de beber”. Ver a mulher como alguém que provoca por estar embriagada, ou com uma roupa curta, protege o agressor. A perspectiva


de sofrer duas vezes, uma com o ato e outra com o julgamento das pessoas, é o responsável por somente 10% dos estupros serem relatados à polícia, segundo uma pesquisa do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), divulgada em 2011. Aos poucos, os estereótipos são abraçados e reproduzidos por essa cultura do estupro, o que dificulta a obviedade da resposta à pergunta do título: O que é estupro para você? Segundo o Ipea, em 88% dos casos a vítima é uma mulher, que para muitos ainda pode ter “provocado” a situação. “Isso é incentivado por nossa percepção do que é ser ‘macho’, a ponto de ser cultural. Ensinamos que um homem de verdade deve ir até o fim sempre, que a mulher é um objeto sexual e sua liberdade não deve ultrapassar esse limite”, explica Rachel Moreno, psicóloga

e escritora. Mas, enquanto estamos aqui, discutindo o assunto em vez de combatê-lo, uma mulher é estuprada a cada 11 minutos, de acordo com dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública divulgados em outubro desse ano – uma provavelmente entrou para essa estatística enquanto você lia esse texto. A própria definição do crime era limitada até 2009, quando deixou de ser penetração vaginal forçada para ser tipificado como qualquer ato libidinoso sem permissão de uma das partes. “Até pouco tempo atrás o estupro era considerado crime contra honra. E como você recuperava a dignidade? Casando com o agressor”, explica Ana Paula Lewin, defensora pública e coordenadora do Núcleo de Promoção e Defesa da Mulher. Parece primitivo afirmar que uma mulher deve casar-se

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Valesca Popuzuda Foto Tomaz Rangel


com seu estuprador, mas por que é aceitável dizer que ela mereça ser estuprada por andar com roupa curta? Foi o que 26% dos entrevistados disseram, em uma pesquisa do Ipea em 2014: sim, ela merecia. “Eu já me considerava feminista, mas depois da divulgação desses dados, decidi agir, me despi e escrevi no meu corpo que eu não merecia ser estuprada por isso”, conta Nana Queiroz, jornalista e organizadora do protesto online “Eu Não Mereço Ser Estuprada”, que convida mulheres a mostrarem seu corpo com a frase que deu nome ao movimento. Mais de 40 mil apoiaram a causa, entre elas, mulheres que nunca tiveram relação com o feminismo, famosas e até a presidenta Dilma Rousseff. A hashtag #EuNãoMereçoSerEstuprada invadiu a internet com mais de 5 mil compartilhamentos com fotos de mulheres que fizeram o mesmo que a jornalista e tiraram a roupa. Nana Queiroz diz que entendeu a força das redes sociais e de sua campanha quando recebeu a declaração de uma mulher relatando que, por causa da sua ação, confrontou seu pai pelo abuso que sofreu dele na infância, e ouviu que ele não tinha “efetivamente” a estuprado porque não houve penetração. “Com isso eu entendi duas coisas: o brasileiro não sabe o que é estupro e eu não sabia o poder que a internet tinha, e que é justamente isso: você escreve sem saber quem está recebendo aquilo e pode ser tudo o que alguém precisa para, por exemplo, confrontar seu agressor”, diz a jornalista. Segundo Nana, a ideia era uma atividade entre amigas, mas a repercussão foi assombrosa. “Recebi mais de 500 ameaças de gente dizendo que iria me estuprar, o que me assustou muito, mas que também deu visibilidade à causa. Tentei usar esse momento em que a mídia deu voz ao movimento para conscientizar sobre a cultura do estupro e o machismo”.

FOTOS ARQUIVO PESSOAL

A repercussão dessas campanhas é difícil de ignorar. “As redes sociais unem as pessoas para que se apoiem e ganhem poder juntas”, explica Lígia Baruch, psicóloga, mestre e doutoranda em Psicologia Clínica. É por isso que essas comunidades ganharam papel fundamental na criação de ferramentas contra o machismo, grande aliado do estupro. “A internet ajuda as mulheres a entenderem o que de fato é a opressão que elas sofrem”, diz Ana Freitas, jornalista especialista em tendências digitais.

A história de Gisele é paralela à de Nana, mas com um ponto em comum: as duas usaram a internet para combater a cultura do estupro. Uma para se empoderar e superar o trauma, e a outra para desmistificar. A estudante elogia o movimento “Eu Não Mereço Ser Estuprada”, porque em sua opinião, a iniciativa é importante para politizar e apoiar mulheres contra a cultura do estupro. “Demorei alguns meses para admitir que havia sido estuprada e, ao me lembrar daquela menina que eu havia conhecido e que demorou uma semana para denunciar seu abuso, entendi que nenhuma mulher está a salvo de sofrer com isso e se calar. Por isso, busquei ajuda de algumas feministas nas redes sociais para contar o que havia acontecido comigo e foi espantoso ver que tantas mulheres já sofreram o mesmo. Foi justamente essa troca que me fez superar e seguir em frente, mas agora, com um propósito: lutar contra o machismo todos os dias, na internet ou fora dela”, diz, emocionada.

“Eu já me considerava feminista, mas depois da divulgação desses dados, decidi agir, me despi e escrevi no meu corpo que eu não merecia ser estuprada por isso” NANA QUEIROZ, jornalista e organizadora do protesto online “Eu não mereço ser estuprada”

“O homem deve ser educado para respeitar a mulher independentemente da roupa. E não a mulher a se cobrir porque o homem não consegue ter respeito” Valesca Popozuda, funkeira 13


Juliana Romano Foto Gustavo Lacerda

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Não, você não precisa se encaixar nos padrões A história de Juliana Romano, uma blogueira plus size que entrou no mundo da moda, questionou os padrões de beleza e virou capa de revista POR ROBERTA FREITAS E LUIZA TEN


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esde criança, Juliana Romano era diferente das outras garotas: baixinha, coxas grossas e quadril largo. Comparada às meninas da sua turma de balé, sabia que seu corpo não era igual ao das outras. Nada que afetasse seu humor. Porém, com seu crescimento surgiu também o desejo de se encaixar. “Eu tinha 15 anos, e, como todos nessa idade, queria ser aceita, o que significava ser magra. Cheguei a vestir tamanho 36, mas só confiava na minha imagem no espelho. E eu me via gorda. Então vomitava e me sentia frustrada, até não precisar do cabo da escova para forçar o vômito. A culpa por comer já fazia isso por mim”. Em tempos de exigências cruéis, milhares de meninas e mulheres são bombardeadas com imagens do que se considera um “padrão estético ideal”. Uma pesquisa mundial da marca de cosméticos Dove mostra que, dentre 6.400 entrevistadas, apenas 4% se acham bonitas. A ditadura da beleza como conhecemos hoje, porém, tem uma origem recente. “Ficou mais popular na década de 60, motivada pela indústria de, que viu nas mulheres um alvo para consumo de produtos com concepções inatingíveis de determinado padrão de beleza”, diz Natalia Mendez, a historiadora e professora de História Antiga na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). “Essa imposição é uma das mais perversas formas de controle do corpo da mulher”.

“Eu trabalhei com uma pessoa que era tão louca, que tive que demiti-la. Ela dizia: vamos arrumar a barriga, dar um jeito nesse cabelo, colocar silicone… E o que eu disse foi: eu sou feliz assim. O importante é não se intimidar” Karol Conká, rapper 16

Juliana é um bom exemplo disso. Em nome desses “padrões”, ela passou por muitos problemas, do uso de remédios à baixa autoestima. “Na época, conheci o meu primeiro namorado, que me fez muito bem. Mas surgiu uma viagem e bateu o desespero: tinha um mês para fazer com que ele não passasse vergonha entre os amigos com uma gorda como eu”. O que a ajudou foi descobrir sua real personalidade, além de terapia com um psicólogo. “Vi que o meu eu ia além do corpo. Antes eu pensava no que os outros iriam dizer. Depois, passei a me vestir do jeito que me sentia bem”. Essa mudança fez com que Juliana fosse procurada por outras meninas que queriam suas dicas de moda e beleza. Daí nasceu seu blog, “Entre Topetes e Vinis”, um dos mais importantes da cena plus size brasileira, criado em 2008. Nele, a agora jornalista, formada em 2011, compartilha seus truques e ajuda a empoderar outras meninas que também se sentem fora do padrão. “Um blog une as pessoas que sofrem e lutam pela mesma causa. Eu descobri uma questão maior. Queria mostrar para a gorda que ela não é nenhuma coitadinha”. Esses padrões de beleza impostos na vida de Juliana são comuns no mundo todo. Nos Estados Unidos, por exemplo, um projeto que ganhou visibilidade é o Stop the Beauty Madness, das ativistas Robin Rice e Lisa Meade. Com grande força nas redes sociais, prega contra a ideia das mulheres que pensam não ser bonitas o suficiente, através de postagens com imagens em formato de propagandas que mostram frases perturbadoras como exemplos dessa ditadura da beleza. Uma das principais porta-vozes da campanha é Allison Epstein, que desde 2013 mantém o blog The Body Pacifist, sobre transtornos alimentares. “Toda vez que você liga a televisão ou folheia uma revista é bombardeada com mensagens e julgamentos sobre aparência. É exaustivo”, diz. E como a internet nos ajuda a quebrar essas regras? “Nas redes sociais é mais fácil que vozes sejam ouvidas. Qualquer um tem potencial para achar seu público e fazer sua mensagem ressoar”, completa Allison. Antes da popularidade da web, Juliana era uma que só conseguia informações sobre beleza em revistas. “As de moda só ensinavam a esconder. Tem peitão e bundão? Esconde. Não ensinavam a valorizar o que você tem de bom”. Lígia Baruch, psicóloga, mestre e doutoranda em Psicologia Clínica também aponta o poder de ampliação das opiniões na internet. “A rede social ajuda no empoderamento feminino graças à mobilização das pessoas. Se não fosse isso, cada uma estaria no seu canto, em casa, sozinha com a sua dor”. Karol Conká Foto Mariana Zarpellon


Bruna Fioreti

“A partir do momento que eu incorporo meu defeito, eu me sinto mais feliz e me empodero de alguma maneira. Eu sinto que eu sou mais forte, me aceito como um pacote completo”

FOTOS DIVULGAÇÃO E ARQUIVO PESSOAL

Bruna Fioreti, redatora-chefe da revista Glamour O Stop The Beauty Madness também realiza ações de auto-aceitação, como o “Desafio sem Make”, que estimula mulheres a postarem fotos sem maquiagem. De acordo com uma pesquisa do Renfrew Center Foudation, fundação que busca a consciência dos transtornos alimentares, 44% das mulheres americanas não se sentem atraentes sem usar ao menos um pouco de maquiagem, e 25% começaram a se maquiar aos 13 anos. “Acho ótimo vê-las lutando contra a ideia de que só são bonitas quando ocultam como são e apagam suas ‘falhas’”, diz Allisson. “Não é uma crítica contra maquiagem. É um grito pela beleza real”, defende Juliana, que entrou no desafio. No Brasil, a campanha teve duas representações notáveis. A primeira no blog Girls With Style, de Nuta Vascon-

cellos e Marie Victorino. Intitulada #TerçaSemMake, convidava leitoras a postar fotos sem maquiagem na terça-feira. “Para que as meninas vissem que maquiagem é legal, mas não precisa ser escrava dela”, conta Marie. Já a segunda ação veio pela revista Glamour, com o projeto “De Cara Lavada com Glamour” que começou com fotos de celebridades sem maquiagem. “Vimos que tinha um potencial maior. Se as pessoas postassem, iria viralizar” diz Bruna Fioreti, redatora chefe da Glamour. A tag #SemMakeComGlamour invadiu as redes sociais com cerca de seis mil publicações de meninas de cara lavada e foi importante para quebrar paradigmas, já que vinha justamente de uma publicação feminina, antes incentivadora de tais padrões. Depois, a revista Elle fez uma edição especial, “Ame seu Corpo”, com a própria Juliana Romano na capa. “Li comentários do tipo ‘Não é saudável’, ‘É apologia à obesidade’ e não é. Sou saudável sim e quem fala isso é porque não conhece a minha história”. Ver todos os tipos de belezas conquistarem espaço na internet e em veículos tradicionais pode ser uma saída para tantas mulheres incomodadas com a aparência. “Vermos referências alternativas ao modelo oficial faz com que as pessoas se sintam mais confortáveis em escolher”, aponta Rachel Moreno, psicóloga e autora do livro “Beleza Impossível”. Mas Juliana, mesmo sendo uma porta-voz daquelas que querem mudar esses conceitos, acredita que isso não seja obrigação: “Eu não acho que toda blogueira tenha que empoderar. E sim, que toda mulher tem que defender o direito de outra, mas isso não significa levantar uma bandeira”.

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Carolina Ribeiro Foto Chaian Raiad

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As Redes Sociais como Desabafo Quando o medo é maior do que a vontade de gritar, as páginas virtuais surgem como alternativa para denúncias de abusos POR CHAIAN RAIAD

FOTO DIVULGAÇÃO

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ulher, negra, gorda, filha de nordestinos e moradora da periferia de São Paulo. Apesar das características parecerem vitimizar Carolina Ribeiro Moraes, 20 anos, ela tem orgulho de quem é e de suas origens. Estudante de design digital, ela ama seus traços negros e a questão do peso seria um problema se relacionado à saúde. Não é o caso, já que Carol, como gosta de ser chamada, não deseja seguir os padrões impostos. Moradora do bairro Capão Redondo, da cidade de São Paulo, ela diz que percebeu o machismo velado pela primeira vez quando o seu corpo começou a se desenvolver e começaram as cantadas na rua. Crescer sem nenhuma representatividade negra na grande mídia ou não receber qualquer orientação por parte da família também levaram a jovem a ficar um bom tempo sem “se tocar” sobre o que acontecia à sua volta. Na desconstrução de preconceitos do dia a dia, a irmã mais nova e as redes sociais surgiram como opções essenciais para o seu empoderamento.

O feminismo apareceu na vida da caçula, Fernanda Moraes, 18 anos, em 2012. Acostumada a alisar o cabelo, a garota não se sentia bem em mostrá-lo na forma natural. Até o dia em que a mãe esqueceu o secador na casa de uma tia, e ela teve que ir para o colégio sem as madeixas chapadas. Para sua surpresa, as amigas gostaram e surgiu a curiosidade em descobrir mais sobre o cabelo afro por meio das redes sociais. A partir disso, acabou se interessando também por assuntos relacionados ao papel da mulher na sociedade. No segundo ano do ensino médio, Fernanda conquistou uma bolsa em um cursinho na USP e através do contato com garotas mais velhas, acabou se envolvendo com o movimento feminista de internet. Todo o conhecimento que adquiria pelas páginas e sites eram passados para a irmã. Dentre vários conteúdos, as irmãs eram pautadas principalmente por uma blogueira tão jovem quanto elas, mas com uma grande bagagem de vida: Andreza Delgado, de 20 anos,


Imagem do post que Carolina fez após ser assediada

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Só que ao pegar o celular na bolsa, Carol notou que o cara da jaqueta vermelha estava com o órgão genital para fora da calça. Um sorriso de canto de boca, como se aquilo fosse sexy, marcou para sempre e negativamente, mais uma mulher. Mil coisas passaram pela cabeça da jovem, que se calou. Ao chegar a seu destino final, porém, ela disse: “Eu vi o que você fez”. Desesperada e sem nenhum guarda na plataforma, a estudante subiu as escadas e foi em direção ao banheiro. A vontade de chorar era enorme. O local estava cheio, mas a faxineira do local notou o comportamento da garota. Então Carolina desabafou. “Naquele momento, aquela senhora me amparou e deu força. Outras mulheres também me abraçaram e contaram casos que aconteceram com elas, mas o que mais me ajudou foi o pedido para que eu não me deixasse abalar e nem estragasse meu dia por aquilo”. Segundo dados divulgados pelo Estado de São Paulo, por meio da Lei de Acesso à Informação, a cada dois dias uma mulher registra um boletim de ocorrência por assédio no Metrô e na CPTM. Contudo, o número poderia ser bem maior se contarmos as mulheres que assim como Carol não tiveram coragem para denunciar. São histórias como a de Carol que levaram cinco garotas a criar a página “Arquivos Feministas”, em maio de 2015. De diferentes Estados, nem todas se conhecem pessoalmente, mas as redes diminuem a distância entre elas. “Há diversas relações entre nós! Temos um casal que é só amor, temos algumas que se conheceram pessoalmente pela militância, outras virtualmente, e até mesmo as que não se conheciam até se unirem na página”, afirma uma das escritoras, que prefere não se identificar devido às constantes ameaças. Elas relatam que recebem mensagens e comentários de homens com insultos e promovendo violências, principalmente sexuais. “Acreditamos que isso, até o momen-

FOTOS REPRODUÇÃO/FACEBOOK

que escreve para o “Blogueiras Negras”, focado em temas como feminismo e racismo, e “Capitolina”, uma revista voltada para jovens, com o objetivo de desconstruir padrões impostos por outras publicações da mesma faixa etária. Estudante de Letras, ela ficou conhecida na web ao ser arrastada por dois policiais em plena Avenida Paulista, após uma manifestação pela exigência do paradeiro do pedreiro Amarildo, desaparecido em 2013. Na época, ainda menor de idade, ela foi abusada psicologicamente, detida por cinco horas e julgada, mas declarada inocente. Um dia antes do julgamento, Andreza escreveu um relato ao Blogueiras Negras. Não foi fácil, mas por meio daquelas palavras, a ativista desabafou e empoderou outras mulheres. E foi através de textos de Andreza e do blog que Carolina acabou influenciada por outras páginas, como “Feminismo sem demagogia”, “Coletivo AntiGordofobia” e “Arquivos Feministas”, que a ajudaram a entender mais sobre o assunto. “O feminismo precisa de uma remodelada para dar voz a essas diferentes causas de necessidades diferentes. Essas pessoas querem ser ouvidas e a internet faz esse papel de dar poder a várias questões”, afirma Ligia Baruch, psicóloga, mestre e doutoranda em Psicologia Clínica. De modo geral, essas publicações ajudaram Carolina com o relato dado a seguir: No dia 12 de junho de 2015, ela saiu de casa às 6h30 em direção à Universidade Anhembi Morumbi. Linha 5 Lilás, estação Capão Redondo. O local já estava cheio, mas em meio à multidão, um belo rapaz usando jaqueta vermelha, calça e sapatos sociais lhe chamou a atenção. ESPERA! Ele está olhando de volta. É melhor ver novamente para ter certeza. SIM! Ele está olhando! A estudante entrou no vagão e percebeu que ele ainda a observava. Começou então uma troca de olhares. Para sua surpresa, Carol reparou que ao trocar de vagão, o mesmo homem estava lhe seguindo. Mais cheio do que o veículo anterior, o trem fez com que eles ficassem bem próximos.


Os primos, Kellen Ferreira dos Santos, Gabriel Souza Santos, a irmã Fernanda Ribeiro Moraes, ela (Carolina Ribeiro Moraes) e Gustavo Ferreira dos Santos

Drik Barbosa

“Quero poder fortalecer mais as mulheres, buscando mais conhecimento sobre quem sou, incentivando elas a se conhecerem e se respeitarem. Estou buscando aprender como posso cooperar nessa luta da melhor forma possível, e quando falo de mulheres guerreiras, falo com todas, mas principalmente mulheres da periferia que tem menos espaço para serem ouvidas”

No Sesc Campo Limpo

FOTOS DIVULGAÇÃO E ARQUIVO PESSOAL

Drik Barbosa, rapper to, se restringiu ao mundo virtual por preservarmos nossas identidades”, diz. O que não as deixa desistir é o retorno de algumas seguidoras. “Tentamos fazer da página um local de debate e acolhimento onde mulheres tiram suas dúvidas, compartilham suas histórias e apoiam umas às outras, ajudando, assim, a desconstruir a rivalidade a qual fomos submetidas”. Depois de muito pensar sobre a proporção que uma denúncia poderia tomar nas redes sociais e as ameaças que poderia sofrer por expor sua imagem, Carolina optou por empoderar outras mulheres a denunciarem casos de abuso. Um dia após o ocorrido, ela postou na página do Facebook da Universidade uma foto com a roupa que estava usando e um relato do ocorrido. Em pouco tempo, muitas curtidas e apoio de diversas meninas vítimas do machismo se manifestaram. Mesmo com medo da repercussão, a jovem achou que aquilo era necessário para ajudar outras mulheres. Ainda é difícil para Carolina falar sobre o assunto, mas de

Andreza Delgado

uma coisa ela tem certeza. “Eu ainda voltarei a encontrá-lo. E na próxima vez eu não ficarei calada”. Carolina segue de cabeça erguida e confiante em uma sociedade melhor. O texto “A solidão da mulher negra”, escrito por Stephanie Ribeiro e publicado no site Geledés – Instituto da Mulher Negra, é um dos preferidos de Carolina, com palavras que descrevem um pouco o perfil forte dessa mulher: “Eu tenho a mais absoluta certeza de que a maior derrota recai sobre os nossos ombros —nós, mulheres negras — e, por isso, mesmo dentro da minha armadura, eu estou também sangrando. Porém, prefiro me expor a me calar. Este foi o caminho que encontrei para que a dor não me supere”.

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FOTOS DIVULGAÇÃO E ARQUIVO PESSOAL

Juliana Vaz

22 | PERFIL


Abuso não é só estupro Conheça a história da mulher que aprendeu a lutar contra o assédio graças às redes sociais POR CAROLINE VENCO ILUSTRAÇÃO BARBARA TUBELO INFOGRÁFICO CAROLINE VENCO

Ele sempre dizia que eu era exagerada ou desequilibrada. Nada do que estudava, lia ou assistia era interessante. Isso me deixava muito para baixo. Os seus comentários eram: ‘Nossa, como você é babaca de postar isso/ gostar disso/ter lido esse livro’. Um dia eu bebi demais e apaguei. Acordei com ele tentando fazer sexo. Eu me esquivei, ele continuava. Só lembro de estar imóvel enquanto ele transava comigo. Eu passei a me culpar por aquela sensação, porque era eu que estava bêbada, não gritei ‘não’ ou saí correndo. No dia seguinte, chorei o dia inteiro, mas continuei com ele. Minha autoestima estava destruída

A

história da paulistana Juliana Vaz não é um caso isolado no Brasil. Segundo dados da SPM (Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República), em 2013, em 62% dos casos de denúncias de violência contra a mulher, feitos através do Ligue 180, os agressores eram namorados, cônjuges ou amantes das vítimas. Hoje, após quatro anos, Juliana entendeu que foi abusada, não só sexualmente, mas também mentalmente. “Eu achava que abuso era só estupro. Depois eu percebi que estava sendo violada há muito tempo ao ser reprimida, rebaixada e calada por ele”. Loira, de cabelos curtos, olhos claros e 1,66 de altura, a estudante de jornalismo de 29 anos teve que sentir na pele para poder entender a cultura do machismo na sociedade. E, assim, finalmente poder ser empoderada. Entretanto, para que essa ficha de mudança de hábitos, pensamentos e postura caísse, ela precisou viajar para bem longe e ver que sim, é possível viver e andar pelas ruas sem que o seu corpo seja visto como um objeto. Em 2014, Juliana ganhou uma bolsa de estudos para estudar alemão em Berlim. “Quando eu estava na Alemanha, uma amiga disse que não queria casar, pois seria difícil chegar ao ponto da carreira que ela conseguiu se fosse casada. Eu a admirei, mas por alguma razão no passado eu teria julgado a sua atitude. Antes eu não pensava nisso, e pela internet eu encontrei pessoas que

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falam abertamente. Descobri que eu não nasci para esse padrão”. O primeiro movimento que Juliana teve Na opinião de Lígia Baruch, psicóloga, mestre e doutoranda contato foi o “Chega de Fiu Fiu”, que luta em Psicologia Clínica, as mídias online são importantes para essa contra o assédio em locais públicos. Idenmudança. “As redes sociais podem funcionar como recurso para tificou-se e abraçou a causa. “O objetivo a saúde mental e o empoderamento dessas mulheres. É de fácil principal da campanha é empoderar as acesso e que não exige locomoção. Mas se deve ter cuidado com mulheres e mostrar para elas que o asa natureza desses grupos. Como é uma coisa democrática e qual- sédio sofrido todos os dias na rua não quer pessoa pode abrir um é culpa delas. Mas sim blog, você pode consumir a cultura de violência As mulheres, muitas conteúdo de todos os tipos contra a mulher, e isso vezes, não querem sem saber a qualidade das tem que ser combatido”, informações”, alerta. “Além explica Luíse Bello, uma a punição do seu disso, as redes têm o poder das idealizadoras do proagressor. Elas da ampliação e mobilização jeto, que surgiu em 2013. querem que isso não de pessoas. Enquanto cada Em sua busca, Juaconteça novamente mulher poderia estar no liana percebeu que se e que possam andar seu canto, sozinha com a dependesse somente das sua dor, a internet consegue mídias tradicionais, não com a roupa que elas reuní-las para que comparteria a mesma qualidaquiserem e do tilhem seus sentimentos”. de de informações que jeito que se Na volta ao Brasil, ao encontrou na web. “As sentirem melhor criticar as atitudes marevistas femininas brasichistas de seu irmão mais leiras não abordam esse novo em casa, Juliana ganhou um novo apelido: “Feminazi”. Isso tipo de tema, porque ainda é um tabu. fez com que a estudante encontrasse forças para estudar ainda Além disso, boa parte das leitoras são mais sobre os conceitos do feminismo. “Para calar a boca dele, machistas sem saber. Ou seja, elas não eu procurei muito sobre isso e encontrei em grupos nas redes”. querem ler textos feministas, pois, para elas, eles são chatos”. Contudo, “Chega de Fiu Fiu” conseguiu fazer o inverso: saiu do online e abraçou o tradicional, em uma parceria com a Defensoria Pública do Estado de São Paulo, por meio do projeto que divulga uma cartilha explicativa, que de forma didática e simples, orienta sobre o que é assédio e como se pode faz para denunciá-lo. Para Ana Paula Lewin, coordenadora do Núcleo da Mulher da Defensoria Pública do Estado de São Paulo, o foco principal da campanha da defensoria não era de penalizar ou estimular mulheres a tomarem uma providência contra os homens, mas sim conscientizar toda a população: tanto as mulheres que não precisam ser vítimas dessa situação quanto os homens que não podem praticar esse tipo de comportamento. “As mulheres, muitas vezes, não querem a punição do seu agressor. Elas querem que isso não aconteça novamente que possam andar com a roupa que ela quiserem e do jeito que se sentirem melhor”.

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Ao participar ativamente do movimento, Juliana percebeu a importância da conscientização entre homens e mulheres. Em sua casa, ela tenta praticar pequenas mudanças em sua família. “Minha mãe fala para eu descer no ponto de ônibus mais longe de casa para ‘evitar’ passar na frente de um bar. Ela acha isso normal, mas eu já avisei que eu não vou mudar o meu caminho por causa deles. Mesmo eu falando, ela ainda não entendeu que isso é um absurdo”. São 9 horas da noite, e depois de um dia intenso de trabalho, a mãe de Juliana corre para o fogão para preparar o jantar do seu irmão, que passou o dia inteiro sentado no sofá. A submissão da “chef ” de família pelos homens é algo que realmente passou a incomodá-la cada vez mais. “Ela nunca falou que eu tenho que ser submissa, mas minha vó sempre disse que eu não encontraria um marido porque eu não sei cozinhar”. Além da família, o ciclo de amizades é algo que começou a ser questionado após uma amiga dizer que é culpa da mulher não usar camisinha. “Virou uma grande discussão e eu fiquei um tempão sem falar com ela. Me martirizava, pensando: ‘Eu não acredito que eu sou amiga dessa pessoa’”. Agora, ao ver um grupo de homens na rua, Juliana se recusa a mudar de calçada. Embora fique incomodada, ela não desvia e responde aos comentários ofensivos, se necessário. “Hoje eu consigo perceber muito melhor que o machismo está em pequenas falas e atitudes. Comecei a rever não só a postura de amigos e família, mas as minhas também. Percebo que eu errei e que eu fui uma vítima de todo um conceito social”. Felizmente sua mudança de pensamento refletiu positivamente, e agora até a avó passou a chamar seu irmão de machista. Os sinais estão aparecendo.

F FONTE CHEGA DE FIU FIU

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Há quem diga

NÃO

ao feminismo

As redes sociais também abrem espaço para aqueles que são contra a causa feminista Por Caroline Venco e Chaian Raiad Ilustração Daley

A

internet tem o poder de ampliar as vozes de movimentos feministas, mas também é capaz de espalhar o clamor dos que são contra esse empoderamento. Páginas como “Resistência Anti-feminista Marxista (RAM)” e “Moça, não sou obrigada a ser feminista (MNOF)” ganham força ao remar contra a maré do feminismo moderno. Foram criadas porque “as páginas feministas não toleram opiniões contrárias. É discordar para estar eternamente impedido de comentar”, diz um colaborador da MNOF, que assim como os membros da RAM, não se identificaram pelo mesmo motivo: as ameaças. “Fizemos uma comparação, em forma de meme: ‘O feminismo lutar pela igualdade é o mesmo que o islamismo lutar pela paz’. Em minutos, um radical muçulmano nos ameaçou e marcou mais de 100 organizações terroristas. Apagamos rapidamente”, conta um sócio do MNOF, que tem entre seus objeti-

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vos “que as críticas cheguem até as feministas”. “O resultado é bom. Elas aparecem com muitas perguntas. É sinal que somos vistos”. Hoje, a MNOF é a página anti-feminista com mais seguidores no Brasil: mais de 60 mil. Mais recente, a “Resistência Anti-feminista Marxista” também recebe um ótimo retorno. “Para incentivar a exposição das mulheres, fizemos uma campanha em que elas mandavam fotos repudiando o feminismo. Nos ajudaram a quebrar o silêncio, e a partir daí, muitas pessoas nos enviaram suas imagens ou relatos contra esse movimento. Ex-feministas nos agradeceram pelo trabalho”, conta um membro. “A violência contra elas sempre existiu porque mexe com os privilégios masculinos que não são de ordem natural ou divina, e por isso devem ser combatidos. A postura de ridicularizar o feminismo não é exclusiva de segmentos conservadores. Ocorria (e ainda ocorre) dentro da esquerda, que, supostamente, deveria ser mais solidária a esses ideais”, diz Natalia Mendez, historiadora e professora de História Antiga na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). O fato é que os posts e páginas aumentam exponencialmente. E, portanto, comprovam que a internet é sim um lugar democrático, com espaço para a pluralidade de ideias.




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