ISSN 1516-0793
Cadernos da Pós-Graduação Instituto de Artes/UNICAMP
Ano 9 - Volume 9 - No 1 - 2007
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FICHA CATALOGRÁFICA ELABORADA PELA BIBLIOTECA CENTRAL DA UNICAMP
CADERNOS da PÓS-GRADUAÇÃO. Instituto de Artes/ UNICAMP, Campinas, SP – Brasil, 1997 – 1998 – 1999 – 2000 – 2001 – 2002 – 2005 – 2006 – 2007 1997, v. 1 (n. 1, n. 2) 1998, v. 2 (n. 1, n. 2) 1999, v. 3 (n. 1, n. 2) 2000, v. 4 (n. 1, n. 2) 2001, v. 5 (n. 1, n. 2) 2002, v. 6 (n. 1, n. 2) 2005, v. 7 (n. 1) 2006, v. 8 (n. 1, n. 2) 2007, v. 9 (n. 1, n. 2) 1. Pós-Graduação. 2. Artes. 3. Multimeios. 4. Música. 5. Artes Plásticas. 6. Artes Cênicas. 7. Dança. INSS 1516-0793
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Cadernos da Pós-Graduação Universidade Estadual de Campinas Reitor Prof. Dr. José Tadeu Jorge Pró-Reitora de Pós-Graduação Profa. Dra. Teresa Dib Zambon Atvars
Instituto de Artes Diretora Profa. Dra. Sara Pereira Lopes Diretora Associada Profa. Dra. Maria de Fátima Morethy Couto
Pós-Graduação Profa. Dra. Denise Hortência Lopes Garcia – Coordenadora Prof. Dr. Emerson Luis de Biaggi – Coordenador – SubCPG-Música Profa. Dra. Verônica Fabrini Machado de Almeida – Coordenadora – SubCPG-Artes Prof. Dr. Etienne Ghislain Samain – Coordenador – SubCPG-Multimeios
Conselho Editorial Ana Mae Barbosa, USP Antonio Fernando da Conceição Passos, UNICAMP Denise Hortência Lopes Garcia, UNICAMP Gilberto dos Santos Prado, USP Inaicyra Falcão dos Santos, UNICAMP Karen O’Rourke, Univ. Paris I-Sorbonne Lia Robatto, UFBA Sara Pereira Lopes, UNICAMP
Projeto Gráfico e Editoração Eletrônica Ivaldo Pessoa – ivaldo@iar.unicamp.br
Revisão Magali Cordeiro
Capa Cortesia: André Burnier
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Cadernos da Pós-Graduação - Índice Editorial ..................................................................................................................... 9
Artes Corpo Ilusório: a espetacularidade corporal do praticante de meditação ..... 13 Daniel Reis Plá Inaicyra Falcão dos Santos Processos Criativos, Processos de Individuação: uma abordagem hipertextual ............................................................................................................ 19 Vera Cristina Marcellino Elisabeth Bauch Zimmermann Performance Art enquanto abordagem sensorial de investigação do corpo simultaneamente à experiência do sentido interior .............................. 25 Vera Cristina Marcellino Elisabeth Bauch Zimmermann A Produção Plástica e a Psiquiatria .................................................................... 33 José Otávio Motta Pompeu e Silva Lucia Reily Critérios de legitimação utilizados pela crítica de arte brasileira frente aos trabalhos plásticos de pacientes psiquiátricos: o estado patológico do sujeito criador ................................................................................................... 37 Tatiana Fecchio Gonçalves Lúcia Reily Corpos em Trânsito: um relato intercultural através da análise Laban em Movimento .............................................................................................................. 45 Ciane Fernandes O Contorno e a Criação: uma questão metodológica para a pesquisa em dança ....................................................................................................................... 55 Flávio Soares Alves Marília Vieira Soares Encarnando o Verbo .............................................................................................. 63 Sara Pereira Lopes
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O Acontecimento da Voz ....................................................................................... 69 Márcia Cristina Baltazar Sara Pereira Lopes Os Estúdios Teatrais e a Cultura do Ator ............................................................. 73 Camilo Scandolara Maria Lúcia Levy Candeias O Conceito de Organicidade na Interpretação Realista: uma investigação de seus elementos e fundamentos ....................................... 81 Martha Dias da Cruz Leite Eusébio Lobo da Silva A Performance do Ator como Teatralidade no Cinema .................................... 91 Andréa Stelzer Walder Gervásio Virgulino de Souza Expressionismo e Contemporaneidade .............................................................. 99 Fábio de Bittencourt Luise Weiss Notas sobre uma Estética Goetheana ................................................................ 105 Cláudio de Souza Castro Filho Maria Lúcia Levy Candeias Teatro na Estante e Teatro no Palco: considerações sobre a língua viva do Teatro Popular ................................................................................................. 111 Neyde Veneziano Performer, Brincante... Máscara Ritual de Si mesmo ...................................... 117 Luciana Lyra Regina Muller Graziela Rodrigues Outros Olhares sob Ouro Preto: pesquisa de campo ou o contato com o “objeto” ................................................................................................................ 123 Carolina Romano Marília Vieira Soares O Global e o Tribal: o corpo na sociedade contemporânea e nas sociedades indígenas brasileiras ....................................................................... 131 Rafael Franco Coelho Regina Muller Antônio Parreiras: a trajetória de um pintor através da crítica de sua época ..................................................................................................................... 139 Liandra Motta Paulo Mugayar Kühl
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A Representação do Universo Caipira: fator de renovação na produção de Almeida Júnior. ............................................................................. 145 Paula Giovana Lopes Andrietta Frias Paulo Mugayar Kühl Lygia Clark e Maurice Merleau-Ponty: algumas aproximações ..................... 151 Daniela Pinotti Maluf Maria de Fátima Morethy Couto Entre o Museu e a Praça, o legado de Lygia Clark e Hélio Oiticica .............. 159 Marcia Moraes Maria de Fátima Morethy Couto A Pesquisa Iconológica nas Artes: o legado da Escola de Warburg ............. 169 Ana Tagliari Haroldo Gallo O Arts and Crafts e a Arquitetura Orgânica de Frank Lloyd Wright ............... 177 Ana Tagliari Haroldo Gallo A Cor na Obra de Gastão Manoel Henrique ..................................................... 185 Márcia Elisa de Paiva Gregato Marco Antonio Alves do Valle Dança dos Brasis: o corpo índio-espetáculo na arena do Esporte ................. 191 Graziela Rodrigues Regina Muller
Colóquio: Convergências na Arte Contemporânea Apresentação .............................................................................................. 203 Problemas da crítica e da curadoria no panorama recente da Arte Brasileira ...................................................................................................... 205 Agnaldo Farias Os excitáveis ou “l’art d’apprivoiser” ............................................................... 213 André Parente A “mensagem do meio”: Pop Art e fotografia* ................................................ 219 Annateresa Fabris Notas sobre arte e política .................................................................................. 225 Celso Favaretto
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instituto de artes O Corpo da Arte ................................................................................................... 231 Daniela Bezerra Maria Beatriz de Medeiros Arte e novas mídias ............................................................................................. 235 Lucia Santaella A História da Arte: revisão e novas perspectivas ............................................. 245 Maria Lúcia Bastos Kern Curadoria da exposição Cinético_Digital ......................................................... 255 Mônica Tavares Suzete Venturelli Arte e crítica no Brasil. Desdobramentos de um processo vivido .................. 259 Mônica Zielinsky Godard Curador ................................................................................................... 265 Nelson Aguilar Imagens do corpo perfeito. O sacrifício da carne pela pureza digital .......... 271 Paula Sibilia Alguns efeitos de plasticidade a partir da crítica em rede ............................. 281 Ricardo Basbaum Troca-troca: arte e história como transversalidade ......................................... 291 Sheila Cabo Geraldo
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Editorial Em seu nono número, o Cadernos da Pós-Graduação do Instituto de Artes reafirma sua vocação interdisciplinar, a qual reflete a multiplicidade de experiências profissionais dos docentes e alunos dos programas de Pós-Graduação do Instituto de Artes da Unicamp. Reúne vários artigos que são resultados de pesquisas aqui empreendidas, em nível de mestrado e doutorado, e que tratam de temas tão diversos como a leitura musical em Braille, a improvisação e interpretação no choro brasileiro, o trabalho vocal do ator, a representação do universo caipira nas artes visuais brasileiras ou ainda o papel da fotografia na arte contemporânea. Assume assim seu papel acadêmico, trazendo à tona reflexões inéditas e leituras diferenciadas do fenômeno estético e artístico, que buscam integrar teoria e prática. Ressalte-se, contudo, nosso interesse e constante preocupação em acolher trabalhos de pesquisadores de outras instituições, nacionais e estrangeiras, que tenham como foco de interesse o fazer artístico e seus processos de produção, difusão e interpretação. Dentro desse espírito, destacamos a publicação, nesse número, dos artigos de Andréa Stelzer, Ciane Fernandes, Egle Müller Spinelli e Rita de Cássia Fucci Amato, assim como a edição de um dossiê inteiramente dedicado às conferências proferidas no Colóquio Convergências na Arte Contemporânea, realizado no auditório do Instituto de Artes em junho de 2006 e que contou com a participação de artistas e docentes de reconhecida competência em sua área de atuação. Esperamos, com isso, contribuir para a ampliação e aprofundamento do debate na área de artes e para a criação de possíveis diálogos a partir de uma pluralidade de vozes.
Profa. Dra. Maria de Fátima Morethy Couto Depto. de Artes Plásticas - Instituto de Artes - UNICAMP. E-mail: mfmcouto@iar.unicamp.br
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Corpo Ilusório: a espetacularidade corporal do praticante de meditação Daniel Reis Plá Inaicyra Falcão dos Santos Resumo: O presente artigo tem como origem parte da dissertação de mestrado defendida pelo autor no ano de 2006. O tema da pesquisa era o estudo das relações entre o corpo espetacular do ator e o do praticante do Rito de Tara Vermelha, prática meditativa ligada ao budismo tibetano. O que se pretende apresentar é uma análise do corpo espetacular do praticante de meditação, sob a perspectiva do observador, elencando os princípios que fundamentam a construção da espetacularidade corporal no contexto das práticas meditativas estudadas durante o processo investigativo desenvolvido entre os anos de 2003 e 2006.
A prática meditativa, esteja ela inserida em rituais complexos com uso de instrumentos, cantos, movimentos, ou realizada de forma mais simples, apenas sentando na almofada, exige a construção de um corpo cujas qualidades o diferenciam do cotidiano. Este é fruto de um treinamento psicofísico que visa encarnar uma verdade apresentada pela tradição. Durante a observação das práticas, percebeu-se que alguns praticantes possuíam uma presença que os destacava dos outros, uma qualidade sutil, não diretamente observável, que fazia com que seus movimentos, gestos e posturas fossem agradáveis de se olhar. Notou-se que esta “luminosidade” estava ligada aos processos de controle e desenvolvimento da atenção, os quais se fundamentavam em princípios e procedimentos precisos. Estes, apesar de poderem ser estudados separadamente, justificam sua existência somente na relação entre eles, atuando uns sobre os outros de forma não hierárquica.
1. BOA POSTURA A primeira coisa que se pede a um praticante de meditação é o cuidado com a postura. Isto se fundamenta no fato de que a forma de se portar fisicamente influencia diretamente os estados psíquicos, podendo contribuir ou não para o bom andamento da meditação. Neste texto o termo “postura” será ampliado de forma a abranger todos os aspectos que podem ser percebidos diretamente pela visão daquele que observa, incluindo movimentos e utilização de objetos. Conseguir uma “boa postura” envolve diversos fatores como o desenvolvimento de uma consciência corporal global, reconhecimento e controle das áreas de tensão e relaxamento do corpo, flexibilidade, equilíbrio fundamentado na relação entre eixo e base corporais, precisão, consciência e controle da respiração, este último não ocorrendo sempre. Estes fatores agem em dois níveis. Primeiro, no que se refere aos aspectos mecânicos e funcionais, como por exemplo: permitir que se
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possa ficar confortável em uma posição imóvel por um período mais ou menos longo; contribuir para se alcançar os níveis de atenção necessários ao ato de meditar; sincronizar matéria e energia e realizar com eficiência as ações exigidas para o andamento da prática. O segundo nível é o simbólico. Ao tomar para si os modelos dados pela tradição, aquele que medita torna carne o que antes era conceito. Esculpe com seus músculos e ossos a representação dos ideais propostos pelo conhecimento ancestral.
1.1. Atenção ao corpo Ao se falar em meditação é difícil dissociar os aspectos fisiológicos dos cognitivos. Colocar-se em determinada postura, realizando ou não gestos e sonoridades rituais pressupõe a co-dependência dos processos do corpo, da fala e da mente, ou seja, implica em uma unidade na qual cada componente atua sobre o outro de forma interdependente. O primeiro ponto que deve ser desenvolvido pelo praticante é a percepção de seu corpo, esta consciência mostrando-se como a base para a criação consciente do corpo espetacular. Este conhecimento é ligado aos sentidos menos que aos conceitos. Assim, o praticante assume posições e realiza ações de forma consciente, sabendo como sua coluna está posicionada em um determinado momento, que posição o seu corpo ocupa no espaço, quais são as áreas de tensão e relaxamento, qual é o ritmo de sua respiração, etc. O procedimento usado para desenvolver tal percepção corporal consiste no observar o corpo, porém com um olhar voltado para dentro, reconhecê-lo a partir da sensação. O Venerável Sujiva1, monge da tradição Theravada do budismo, afirma que em geral somos conscientes da aparência do corpo, o vemos ao nível do conceito, sua forma, para que ser14
ve, onde estão localizados os órgãos, no entanto não o percebemos enquanto sensação. Neste ponto podemos dividir as sensações entre as superficiais e as internas. As primeiras referem-se ao nível da pele e dos sentidos, e as segundas ao conjunto de músculos e ossos. Perceber ao nível da pele indica que reconhecemos o lugar do corpo no espaço, o desenho que ele produz, as sensações referentes ao seu intercâmbio com o ambiente: calor, frio, conforto, desconforto, o que o toca, onde e como, etc. Já a percepção a partir das estruturas ósseas e das cadeias musculares torna consciente as forças que mantêm o corpo parado ou em movimento, os espaços, os tremores, os pulsares, e todo um fluxo de sensações que compõe a corporeidade do indivíduo. Reconhecer estas sensações permite que sejam vistas as relações entre aquilo que é fisiológico e o que é psíquico. O corpo é visto como uma estrutura densa, mas também como uma entidade em fluxo, diferente a cada vez que é observada. Além disso, este aprendizado permite que as dificuldades iniciais relativas a ter uma postura adequada vão sendo superadas. Pode-se inferir disto que o reconhecimento do próprio corpo assume três funções. A primeira, a superação da visão dual e rígida sobre o corpo, evidenciando suas ligações com os impulsos, sentimentos e pensamentos, bem como seu constante devir com a realidade mutante; a segunda, educativa, ao indicar dificuldades permitindo, assim, superálas; e por fim, a terceira, conscientizar o indivíduo a respeito de uma inteligência e de um querer que vem do corpo, não ligado ao pensamento racional. No contexto tradicional budista a consciência corporal é desenvolvida a partir de procedimentos estruturados ao longo dos sécu-
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los pelos monges e professores. Esta conscientização age como meio para controlar a atenção, mas também é vista como um fim, constituindo-se em uma técnica meditativa por si. O corpo então se torna caminho para o objetivo maior, a iluminação.
1.2. Entre o segurar e o soltar Sujiva2 afirma que a atenção-consciência é impossível em um corpo tenso. Equacionar a tensão e o relaxamento é importante no processo de perceber o próprio corpo. As áreas excessivamente tensas não permitem que o indivíduo perceba a si mesmo de maneira global, uma vez que a dor e o enrijecimento característicos destas áreas monopolizam a atenção. Um corpo tenso é inconsciente, se percebe aos blocos e não detalhadamente. Além disso, o controle dos níveis de tensão corporal é importante uma vez que um corpo muito relaxado impossibilita uma “boa postura” tanto quanto o desnecessariamente tenso. É importante que se tencione somente os músculos necessários em um nível adequado à manutenção da posição, ou realização do movimento de forma precisa. A postura, o gesto ou o movimento surge então do ato de superar os impedimentos para sua realização, implicando menos em uma busca de algo, e mais em um permitir-se realizar. A forma surge de maneira delicada, do jogo entre tensão e relaxamento.
1.3. Flexibilidade A flexibilidade é essencial para a realização de determinadas posturas de meditação. Tornar músculos e articulações mais flexíveis contribui para a superação de hábitos
relacionados aos movimentos e as posições do corpo. Um corpo enrijecido não pode aprender, não há espaço para novas possibilidades. Esta qualidade está profundamente associada ao estado de tensão/relaxamento do corpo. O trabalho corporal exige paciência e vontade. Muitas vezes se está lidando com hábitos antigos, que “engessaram” o corpo em um tipo de configuração. Flexibilizar então se mostra como uma reestruturação, na qual padrões firmemente enraizados são relaxados, acrescentando novas informações àquelas já possuídas pela estrutura corpórea.
1.4. Entre o céu e a terra O próximo ponto importante é a relação eixo/base. Para realizar a postura de forma correta é necessário manter a parte inferior do corpo (da cintura para baixo) firmemente apoiada, enquanto a parte superior se mantém equilibrada sobre a base formada pela bacia e pelos joelhos. Neste processo a coluna ereta é fundamental, sendo um dos pontos-chave para a realização de uma boa prática. Aqui o principal é manter a verticalidade da coluna de forma relaxada. Isto só é possível através da posição da bacia e da cabeça em relação à coluna, bem como do firme apoio dos joelhos e nádegas no solo. Além de facilitar a posição da coluna, uma boa base permite que se possa manter o equilíbrio durante a prática. A suave tensão entre a base, que se direciona para o solo, e o tronco e cabeça, que se direcionam para o céu, contribui para a manutenção de um estado alerta, porém relaxado. Ao mesmo tempo a verticalização da coluna, o alinhamento dos ombros e da cabeça, o encaixe do quadril, contribuem ativamente para o redimensionamento do corpo, abrindo
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espaços, produzindo um jogo de tensões diferenciado do habitual.
1.5. Precisão Desenvolver uma boa postura de meditação implica também em assumir uma determinada gestualidade, algumas vezes mover-se de uma maneira específica, utilizar objetos no momento correto, segurando-os da forma tradicional, usar a voz em um tom preciso, ou seguindo um padrão rítmico estabelecido há milênios. É um exercício da atenção, uma vez que cada gesto abrange o corpo em sua totalidade, e cada movimento envolve o cuidado com o desenho formado pelo gesto (tanto do gesto em si, quanto o realizado pela sua trajetória no espaço). Tudo isso implica em precisão e controle por parte do praticante. Por precisão entende-se o rigor, a capacidade de retornar de forma exata ao desenho que o corpo produz no espaço. Já o controle pressupõe uma técnica psicofísica, que prepare o corpo de forma que ele responda adequadamente ao querer do indivíduo. Através do controle e precisão o praticante canaliza seus impulsos e atenção, torna-se um habitante de si mesmo, consciente de seu corpo-mente em ação.
1.6. Respiração A respiração é vista como um importante meio para o controle da atenção, sendo essencial na meditação. Nas tradições estudadas não existe o controle da respiração, mas sim um observar consciente. Através da contemplação da inspiração e da expiração as relações entre os aspectos cognitivo-emocionais e fisiológicos tornam-se evidentes.
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Em algumas práticas a respiração é trabalhada enquanto voz, através da recitação de mantras e orações. Nelas o foco passa de uma fala centrada no sentido das palavras para um falar que tem por finalidade afetar concretamente o indivíduo. Este tipo de fala tem por base as sonoridades e vibrações, e não mais o conceito. Isto exige que o praticante assuma o controle do ato respiratório de forma a atender às demandas propostas pelo ritual da meditação. Em outros tipos de técnicas meditativas, na meditação andando, por exemplo, o movimento é associado ao processo de inspirar e expirar, permitindo que o mover-se surja a partir do respirar. Ao estudar diferentes procedimentos utilizados nas práticas meditativas no que se refere ao ato de respirar, percebe-se que o ponto comum a todas as técnicas estudadas é a sincronização entre corpo, mente e sentimento através da respiração, que assume o papel de ponte entre o interno e o externo.
2. ATENÇÃO-CONSCIÊNCIA O trabalho sobre a atenção-consciência é o ponto focal da meditação. Todas as ações servem ao objetivo principal de aprimorar a atenção de forma a tornar o indivíduo consciente de seus processos bio-psíquicos, de seus automatismos, de sua abordagem conceitual da vida em detrimento da experiencial. A partir disto ele, indivíduo, pode ir além da mecanicidade alcançando um estado altamente consciente. Ao realizar-se o estudo das técnicas de meditação foi possível detectar princípios que se ligavam diretamente ao controle do fluxo de pensamentos e sentimentos. Assim como aqueles ligados à construção de uma “boa postura”, estes têm um papel fundamen-
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tal na construção do corpo espetacular do praticante.
sujeito se fundam, passando a existir somente um agir que testemunha a si mesmo.
2.1. Focalização da atenção
2.3. O testemunho
Durante a meditação é esperado que o praticante dê atenção para um ponto de cada vez. Na experiência cotidiana, em geral, se age distraídamente. Come-se vendo TV, dirige-se o carro pensando na discussão ocorrida há horas atrás, são infinitos os exemplos para demonstrar o quão pouco se está no momento presente na maioria das vezes.
A condição de testemunho, ou contemplação, se caracteriza por ser uma presença consciente, um espaço de consciência no qual a ação, o movimento, o pensamento, o sentimento, o ambiente, enfim, tudo, é percebido sob um prisma além das limitações propostas pelo pensamento discursivo. Exemplificando a relação entre contemplar e absorver-se Grotowski4 cita uma parábola hindu:
Através do cuidado em manter a postura, em tocar determinado objeto em um ponto específico, em falar uma frase seguindo um ritmo predeterminado, entre outras coisas, a meditação busca acostumar a mente sempre divagante a habitar o corpo: como escreve Sogyal Rimpoche3 é necessário trazer a mente de volta para sua casa. Neste sentido focar a mente significa trazê-la para o momento presente, estabelecendo uma relação com o instante e lugar. Porém esta relação não é a comum, de acomodação ao ambiente a partir de uma adaptação inconsciente. Antes, é um processo de contemplação e absorção.
2.2. Absorção consciente A absorção de que se fala aqui é a mesma do jogador durante uma partida, ele se torna tão absorto no que faz que a relação sujeito-objeto torna-se irrelevante, o que passa a existir é o jogo e não mais um eu que joga. Ao mesmo tempo, esta absorção não chega ao nível da distração, antes é consciente, pois as regras e demandas do jogo precisam ser respeitadas. Assim como um jogador, aquele que medita necessita absorver-se nos atos que compõem sua atividade, sendo porém consciente desta absorção. O ideal é que ação e
“C’è la vita e c’è il testimone. E se c’è il testimone, c’è all’erta. Vi è nelle Upanisad un esempio a questo propósito. Si dà l’immagine dell’uomo che è nella sua totalità, e quest’immagine dell’uomo nella sua totalitá sono due uccelli, non uno solo. Su di un albero c’è un uccello que agisce, che beca i chicchi, e c’è l’altro che non si muove ma guarda. Il primo è la vita e il secondo è il testimone.” 5
2.4. Objetividade Por este termo entende-se um modo de experimentar a realidade a partir de suas qualidades de tempo, espaço e causalidade. Neste sentido a respiração é observada enquanto movimento e sensação, os objetos são vistos enquanto forma e função. No momento da meditação o significado dos gestos, vestimentas e instrumentos está implícito, mas não é fruto de racionalização durante a ação. No momento do agir, o que se busca é uma relação baseada na experiência e não no conceito ou nos sentimentos.
Conclusão Partindo do texto acima pode-se entender que a construção da espetacularidade cor17
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poral no contexto das práticas meditativas, envolve a utilização de procedimentos técnicos, os quais agem no nível do corpo e no da atenção-consciência. A condição espetacular surgindo da união desses dois campos de manifestação. Estes procedimentos baseiam-se em princípios precisos, o trabalho sobre eles permitindo o redimensionamento do corpo do praticante, produzindo uma presença que permite atribuir a ele uma condição espetacular, separada da cotidiana. Estes princípios, como observado no decorrer da pesquisa de mestrado já mencionada, possuem estreita relação com o trabalho do ator, podendo sugerir procedimentos eficazes para a construção do corpo não-cotidiano do artista cênico.
Daniel Reis Plá, Mestre em Artes e Doutorando em Artes pelo Instituto de Artes – UNICAMP. E-mail: dreispla@yahoo.com Orientadora Mestrado: Profa. Dra. Inaicyra Falcão dos Santos, Docente junto ao Depto. de Artes Corporais do Instituto de Artes – UNICAMP. E-mail: inaicyra@iar.unicamp.br Orientadora Doutorado: Profa. Dra. Sara Pereira Lopes, Docente junto ao Depto. de Artes Cênicas do Instituto de Artes – UNICAMP. E-mail: slopes@iar.unicamp.br
Notas 1. SUJIVA, 2000. 2. Idem, p. 50. 3. RIMPOCHE, 1994, p. 17. 4. GROTOWSKI, 1982, p. 29. 5. “Existe a vida e existe o testemunho. E se há testemunho, há atenção. Existe no Upanishad um exemplo a este respeito. Ali se dá a imagem do homem em sua plenitude, e esta imagem é a de dois pássaros, não um só. Sobre uma árvore existe um pássaro que age, que come e chilreia, e existe o outro que não se move, mas observa. O primeiro é a vida e o segundo é a testemunha”. (Tradução minha).
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Referências Bibliográficas GROTOWSKI, Jerzy. Tecniche Originarie Dell’Attore. Tradução Luisa Tinti. Roma: Universitá di Roma, 1982. PLÁ, Daniel Reis. Impulso e Manifestação: Relações entre o corpo espetacular do ator e o do praticante do rito de Tara. 2006. Dissertação (Mestrado em Artes) – Instituto de Artes, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2006. RIMPOCHE, Sogyal. O Pequeno livro da Meditação. Tradução Vera Dias de Andrade Renoldi; São Paulo: Best Seller, 1994. SUJIVA. Essentials of Insight Meditation Pratice: A Pragmatic Approach to Vipassana. Malaysia: Buddhist Wisdom Centre, 2000.
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Processos Criativos, Processos de Individuação: uma abordagem hipertextual Vera Cristina Marcellino Elisabeth Bauch Zimmermann Resumo: Diante da investigação do processo criativo em performance, identificamos a similaridade do conceito de hipertexto e as descobertas sobre si mesmo que podem acentuar o processo de individuação. Conjugadas na linguagem da performance art, apontaram para a necessidade de uma investigação mais aprofundada sobre o entrelaçamento dessas três vertentes: psicologia analítica, hipertextualidade e performance gestual, a dança. O resultado dessa pesquisa indicou as sobreposições de significados corpóreos, psíquicos como ampliação da possibilidade criativa.
No pensamento de Carl Gustav Jung a dimensão da identidade pessoal e transpessoal (ego e Self), a dimensão da experiência coletiva (vivências arquetipícas), e, especificamente, a dinâmica da função transcendente1 nessa relação, fundamentaram a presente pesquisa sobre criação em performance art. Como descreve Zimmermann2, Individuação, em si, é um processo natural de amadurecimento inerente à Psique de todo ser humano. Seu objetivo é a inteireza, ou seja, a realização da personalidade original (potencial) do indivíduo. É o caminho da plenitude, em direção ao cerne e sentido último de nosso ser psíquico: o Si-mesmo ou Self. A Psique é um sistema movido por energia em moto perpetuo. A energia psíquica é entendida como energia vital, um conceito mais amplo do que a energia psíquica em si. É concebida como a totalidade da força que anima todas as formas e atividades do sistema psíquico. Ela determina a intensidade do processo psíquico e seu valor psicológico. O
valor é confirmado pela experiência pessoal ou pelos efeitos e realizações das atividades psíquicas, tais como: pensar, imaginar, criar e muitas outras atividades que a psique realiza. Em outras palavras: o Eu é que dá valor às experiências vivenciadas. Sintetizando, uma descrição possível desse sistema psíquico em movimento contínuo, é que, há avanço e recuo de valores significativos entre o consciente e o inconsciente, um alimentando o outro indefinidamente. Esse movimento de avanço e recuo é natural da psique, que é dinâmica. Para a criação em arte, a vivência simbólica, a experiência carregada de sentido pode ser mais importante, dependendo do tipo de arte que se produz. O interesse numa obra de arte em que o sujeito se apresenta, focaliza-se na vivência simbólica referindo-se ao sentido, ou seja, o reconhecimento e valorização pelo Eu de determinada experiência. Transposto nessa pesquisa, a busca do Self (a totalidade do ser, a individuação) correspondeu à busca da construção de um 19
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corpo vivo, que dança, um corpo, que precisa antes ser esqueleto, encontrar uma base, um centro, sua essência - ainda que seja em cheiro, olfato, num pequeno movimento. Observamos que o conceito de processo de individuação que C. G. Jung propõe ao longo de sua obra traz semelhanças com o processo do corpo em criação. Procuramos descrever e destacar a unidade corpo-psique indissociável especialmente na dança. Consideramos que em ambos os contextos – criação/individuação - o processo não advém de um insight milagroso, pelo contrário, são vivenciais, e autodefiníveis: trata-se de processos. Seja o criativo ou o individuar-se, é um processo dinâmico e, como processo, subentende-se o passar de um estágio a outro, implica em transformação como se vê na obra artística e na busca do Self: é a busca constante e incessante de sublimação. Ainda que um recorte, uma interpretação ou tradução delimitaria com desvantagem um universo vivencial, verificamos que a dança se apresenta como dinâmica de símbolos que se atualizam e se alimentam do processo que os gera, numa interdependência e simultaneidade de criatividade-produção-processoconcreto-simbólico, num continum de elaboração e reflexão debruçadas no corpo em movimento. Tomamos como impossível descartar o criador-criatura: o próprio artista, o dançarino “corpo-ser em processo”. Inquirimos exaustivamente a atuação no momento criativo do corpo-si-mesmo-psique, neologismo que apresentamos para designar a unidade entre corpo e psique como Self que dança, investigamos o encontro da medula do movimento, medula do inconsciente. Mergulhando em forças interiores que propositadamente fugissem ao controle, numa
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tentativa de reconstruí-las no movimento e partindo de vivências sensoriais, investigativas e reflexivas sobre o movimento cru/bruto3, não burilado, não codificado, gerado em pré-improvisação, pretendemos dilatar essas forças (subjetivas e do movimento), para ampliar possibilidades coreodramáticas.4 Para tanto, consideramos essencial gerar um ambiente orgânico próprio à escuta do si-mesmo-corpo, à escuta de si-mesmopsique: ou seja, o laboratório de improvisação. O espaço protegido, Temenos. Ao investigar o próprio processo criador identificamos a similaridade com o hipertexto e as descobertas sobre si mesmo que acentuam o processo de individuação. Conjugadas na linguagem da performance apontaram para a necessidade de uma investigação mais aprofundada sobre o entrelaçamento dessas três vertentes. Esse foi o foco de nosso trabalho: investigar o que antecede e permeia à externação da obra. Identificamos que é algo de nós, mais profundo, onipresente e que a performance, como unidade, é transcendente5, dado sua própria natureza de integrar opostos, de objetivar o subjetivo. Prescinde de qualquer tradução ou representação, posto que é vivência. Prescinde, nesse momento, do imaginário, posto que é sensação. Nosso objetivo final foi apresentar uma síntese de opostos, consistindo basicamente em integrar aspectos sombrios aos luminosos, ou inconscientes aos conscientes. Nesse paralelo traçado, focamos a simultaneidade de conteúdos de dança e conteúdos psíquicos que emergem do movimento quando investigado. Identificamos uma compreensão da arte como fruto de dimensões arquetípicas além das pessoais, não limitando assim, a arte a uma expressão apenas individual.
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A questão da simultaneidade de conteúdos nos remeteram ao contexto de hipertexto para contextualizar esse saber paradoxal e a hiper-realidade na qual, nós artistas, trabalhamos: uma realidade hipertextual em significados e expressões. A hiper-realidade pode transformar o processo em algo criativo a ser delimitado sob o risco de escorregar num abismo sombrio do inconsciente e beirar a não recuperação do caminho de volta à elaboração consciente. No entanto, a performance art contemporânea tem desafiado limites, não apenas corpóreos, estéticos, significantes, mas também limites psíquicos. Pressupondo a arte como totalidade, e entidade autônoma como alma que se expande em possibilidades dinâmicas e complexas, entendemos que a arte, numa linguagem poética, tem sua própria psique desprendida da psique do artista como entidade e, portanto, dialoga e sofre interferências do meio. Assim, não a reduzimos a uma expressão do inconsciente, pois não basta só expressar; isso é uma parte, mas não é só. Há a elaboração simbólica e de integração; a questão deste estudo foi tentar identificar como isso ocorre. O que acrescenta transforma, para não virar massificação e ser algo único? A extensão da definição de performance é muito vasta, exige recortes, e, como o interesse maior foi apenas a mediação entre inconsciente e consciente apresentando-se plasticamente, pretendemos falar da individuação abordando estados alterados de percepção; de alteridades corporais e de consciência. Polissemias: o hipertexto, a performance e o inconsciente. Também observamos em vários autores, que, ao conceituarem a performance con-
temporânea, trazem similaridades com o conceito de hipertexto. Encontrando a liberdade de investigação e de experimentação para aprofundar experiências intensas, identificamos materiais configurados como um labirinto interligado de informações que nos amparou diante do desconhecido, seja o desconhecido do inconsciente, seja da expressão que esse conteúdo inconsciente encontra para atualizarse como arte. De forma pragmática, pode-se definir hipertexto como um texto organizado de forma não linear ou não seqüencial. Souza Filho6 destaca como característica marcante do hipertexto, eventos aninhados no tempo através de elos sincronizados espacial e temporalmente, contando com a possibilidade e flexibilidade de representar referências arbitrárias entre partes quaisquer de um documento e pontos de “ancoragem” como marcas para que o navegante não se perca. Segundo Levy7 “Os itens de informação não são ligados linearmente, cada um deles, ou a maioria, estende suas conexões em estrela. Navegar em um hipertexto significa, portanto desenhar um percurso em uma rede que pode ser tão complicada quanto possível. Porque cada nó [link] pode, por sua vez, conter uma rede inteira”. O autor supracitado aponta ainda não apenas às possibilidades de associações, mas também a de dissociação e à metamorfose perpétua de sentidos. Seria uma rede de interfaces. Ratificamos, portanto, a validade da polissemia, associando ou não os links circundantes, trazendo então a possibilidade de percepção única e de inteireza a cada fruidor, no nosso contexto o fruidor de si-mesmo. A performance contemporânea captou essas características de justaposição de percepções e informações, sincronizações tempo-espaciais, de topos e dimensões e a com-
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plexidade da hipermídia para tornar acessível a imaterialidade. E que essas dimensões interfiram e sofram interferência no momento da apresentação ao público. Dentro da mente tudo pode estar ocorrendo sincrônica e simultaneamente: emoções, sensações, sentimentos, intuições.8 Ou, poderíamos dizer de outra forma: somos naturalmente multimídia. Usando como exemplo a web em que dados novos (sites, novos links) podem ser inseridos e alterados, causando constante modificação, associando à performance art, a arbitrariedade, a possibilidade de escolha; como característica de interatividade aponta obviamente à obra aberta. No contexto da performance art, ao work in process. Como conclusão, apontamos para a possibilidade de que o encaminhamento do processo de criação na performance pode tornar mais consciente a vivência de ampliação psíquica do indivíduo, através de seu contato com dimensões profundas, comungadas com a manifestação artística. Estabelecendo links Procurando estabelecer uma analogia com o paradigma do hipertexto e da hipermídia, quando adentramos essa navegação rumo ao desconhecido, ao inconsciente, e quando abordamos o tema performance e o conceito de individuação, o Eu da consciência seria a âncora para que o performer não se perca. Acessar a inteireza de forma coesa, reconhecer que os monstros e mitos estão cada qual em seu “link” específico dentro de nós, é ampliar as possibilidades de integração de nossos aspectos subjetivos e as respectivas expressões desses aspectos, ainda que para tanto, nos permitamos o descontrole, o fascínio, a desmedida, talvez como Nietzsche9 propõe: “toda a concepção do poeta nada mais é senão aquela imagem luminosa que a natureza saneadora nos antepõe após um olhar nos22
so ao abismo”. Pressupõe-se que essa analogia demonstra, ainda que grosseiramente, a grandiosidade da totalidade humana, nunca captada ou expressa de maneira racional, senão através de grandes obras de arte. Estabelecendo a analogia hipertexto processo de individuação, e considerando a apropriação das práticas estéticas contemporâneas da hiperlingüagem, aponta-se que performance, hipertexto e o processo de individuação são três campos abertos e complexos que têm em comum a não linearidade, a sobreposição e a interação dinâmica de seus elementos; é quando o indivíduo se põe em busca de arquétipos ou símbolos da totalidade, pelo elemento da unidade na multiplicidade (unitas multiplex). 10 É possível constituir o hipertexto como princípio ordenador desse processo multifocal e complexo. É o caminho do devir, de qualidades emergentes. Multifoco ordenador inerente ao sentido buscado e à inteireza não tangível do ser humano como identificamos em Cohen11: “o mistério da criação, o desempenho carregado de subjetividades”, a totalidade humana como vivência sutil no corpo. As analogias interessaram para estabelecer uma lógica ordenadora para o que, sem pré-definições, ocorre intuitivamente antes, durante e após os processos criativos da performance. Ainda que a individuação seja definida como um processo longo e profundo que despenda vivências e experiências ao longo de anos; e seja bastante próprio da performance o instantâneo, o fugaz, vale lembrar a qualidade e intensidade desses processos, dificilmente mensuráveis, e que tanto a psique quanto o topos da performance não são restritos pelo espaço-tempo. No caso de ambas, ir além do espaço e tempo cotidianos é bastante fluente, não importando tanto aonde se chega, mas o fluxo desse percurso.
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As analogias nesse momento foram indicadores da proximidade entre duas experiências fundamentais à humanidade: tomar conhecimento de si mesmo e habilitar-se a expressar esse reconhecimento já que nos consideramos pré-dispostos à arte. O caráter processual de ambas aponta para a possibilidade de serem vistas como obras abertas que transbordam para além da realidade do indivíduo e atingem dimensões imensuráveis resvalando e, em casos excepcionais, falando por vias sub liminares, atingindo a totalidade do ser. Transmutando vivências psíquicas na dimensão do corpo: somos seres humanos em processo. Somos nós, obras abertas. Ainda estabelecendo analogias e abrindo possibilidades investigativas, também observamos que tanto a realidade hipertextual quanto a performance contemporânea são combinações únicas de informações, movimento, palavras, imagens, sensações, sentidos que garantem a unicidade de sua formalização artística a cada vez que se manifestam. O hipertexto e a experiência de tornarse único são processos dinâmicos que criam sobreposições de suas diversas modalidades expressivas provocando tanto a percepção de inteireza, da totalidade concomitantemente entre seus aspectos sutis e amplos, quanto de suas unidades pontuais. Isso só é possível porque a arte em si mesma pode carregar toda carga de espiritualidade, consciência, beleza, plenitude e anseios da humanidade. Essas articulações não revelam nada de novo, tudo já é assim desde sempre. Se pretendermos realizar essa articulação agora, é para esbarrar nos limites da criação e investigar as fronteiras que o artista pode afrontar. Enfim, o que há em comum entre performance contemporânea, hipertexto e o processo de individuação da teoria psicoana-
lítica, é a interferência e a simultaneidade de seus elementos, é um “não” à fragmentação, à cisão, ao reducionismo. Mas, é possível emaranhar e sobrepor unidades ou mesmo segmentos que pela interação ganham sentidos e ampliam seus significados iniciais, confluindo polissemia e nos remetendo a símbolos de experiência mística. Imaterialidade do corpo, o moto perpétuo A matéria que nos desafia é a matéria sutil, ou a imaterialidade; é a apresentação do não visível; é a abstração desses conceitos para ordenar e satisfazer nossa necessidade de explicar a liberdade do caótico. Estabelecendo links entre as três unidades citadas como suportes imateriais do processo criativo aqui proposto, é possível desenvolver algumas postulações poéticas para nutrir a performance da obra que estamos gerando, levando em consideração o Eu de cada um. O corpo em movimento, num estado não cotidiano, através de técnicas de sensibilização, consagra-se como entidade intensa da unidade, totalidade mítica, circunscrevendo símbolos e signos na produção criativa. Torna-se espaço de articulação hipermidiática e hipertextual de subjetividades. A habilidade maior da performance é manter a individualidade experienciando o grupo num estado de presença consciente que permeia simultaneamente a subjetividade e a poética coletiva. Isso é possível pelo acesso a si mesmo-corpo, a si mesmo-psique. Em laboratórios performáticos, o indivíduo adquire um estado sensível e dilatado de atenção sensorial disposto a ir e vir do concreto para o subjetivo e do subjetivo para o concreto indefinidamente. Desconstruindo códigos, num estado de pré-improvisação, mantém-se um constante diálogo entre a dimensão consciente e a do simbólico. É essa habi23
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lidade de ir e vir que nos distingue das personalidades borderlines, ou outro tipo de personalidade ameaçada de perder seu equilíbrio consciente. Passando pelo individual o performer acessa links para o arquetípico. O que nos remeteu a uma associação imediata: o processo de individuação se entrelaça ao processo criativo, ambos processos que se desenvolvem através de um moto perpetuo.
Vera Cristina Marcellino, Mestre em Artes pelo Instituto de Artes – UNICAMP. E-mail: timarcelli@iar.unicamp.br Orientadora: Profa. Dra. Elisabeth Bauch Zimmermann, Docente junto ao Depto. de Artes Corporais do Instituto de Artes – UNICAMP. E-mail: zimmandrade@terra.com.br
Notas 1. É a função que produz os símbolos – síntese que ultrapassam a divisão existente entre dois argumentos conscientes em conflito. Surge um terceiro elemento, criativo e novo. 2. ZIMMERMANN, 1992. 3. Estamos nos referindo a um movimento investigado como “original”, desprovido (supostamente) de códigos pré-estabelecidos, apesar de inevitavelmente esses códigos estarem inscritos nos corpos de todos nós. 4. LOPES, 1998. Conceito definido como dramaturgia do movimento. 5. JUNG, 1979, pp. 84, 85. Conceito Junguiano. 6. SOUZA FILHO, 1997. 7. LEVY, 1993. 8. DAMÁSIO, 1994. 9. NIETZSCHE, 1999, p. 64. 10. MORIN, 1996, p. 55. 11. COHEN, 1989.
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Referências Bibliográficas COHEN, Renato. Performance como linguagem. São Paulo: Ed. Perspectiva – USP, 1989. DAMÁSIO, Antonio R.. O Erro De Descartes – Emoção, Razão e O Cérebro Humano. São Paulo: Ed. Companhia das Letras, 1994. JUNG, Carl Gustav. O eu e o inconsciente. Petrópolis: Vozes, 2a. ed., 1979. LEVY, Pierre. As Tecnologias da Inteligência. O futuro do pensamento na era da informática. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1993. LOPES, Joana. Coreodramaturgia: a dramaturgia do movimento. Campinas: Ed. UNICAMP, 1998. MORIN, Edgar. Ciência com Consciência. Pernambuco: Ed. Bertrand Brasil, 1996. NIETZSCHE, Friedrich. O Nascimento da Tragédia, Helenismo e Pessimismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2ª ed., 1999. SOUZA FILHO, Guido Lemos de. Sincronismo na modelagem e execução de apresentações de documentos multimídia. Tese de Doutorado: Departamento de Informática. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 1997. ZIMMERMANN, Elizabeth Bauch. Integração dos processos interiores no desenvolvimento da personalidade. Tese de Mestrado: Faculdade de Ciências Médicas. UNICAMP, 1992.
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Performance Art enquanto abordagem sensorial de investigação do corpo simultaneamente à experiência do sentido interior Vera Cristina Marcellino Elisabeth Bauch Zimmermann Resumo: Contextualizamos as práticas e filosofias que envolveram o nascimento e desenvolvimento da performance art e elaboramos seu desdobramento como apresentação de (S)si mesmo, ressaltando como mídia o próprio corpo do artista, não enquanto instrumento, mas, enquanto modo de existência.
A performance Pós-moderna1 e revolucionária por natureza, a performance contemporânea teve sua evolução advinda da modernidade. Talvez não importe a forma como a arte se manifeste, seu impulso inicial parece ser sempre o mesmo e tão antigo quanto a humanidade: parece ser sempre a mesma vontade humana de superar-se a si mesmo e encontrar-se na obra, comungando com outros as suas necessidades, vulnerabilidades e sonhos. E a obra surpreende seu criador, ultrapassa-o e ele pode então, descobrir-se no outro, em outros sonhos, com outras necessidades. Segundo Eliana Rodrigues2 o pós-modernismo tomou como prerrogativa básica a pluralidade e abandonou completamente qualquer unicidade. Precisamente por essa razão seu debate manteve-se problemático, no entanto, a autora aponta que o debate é rico e continua a provocar questões fundamentais para o entendimento da arte. São os questiona-mentos que nos mobilizam, as incertezas são desafios que estimulam os performers.
Historicamente, no caso da dança, destacamos, o espírito revolucionário de início de século, tendo como precursoras Loie Füller e Isadora Duncan, que enfatizam o movimento por si próprio como experiência fundamental para a expressão individual do artista, uma vez que o movimento de cada criador só poderia surgir de seu próprio corpo e individualidade.3 Também não é possível ignorar o Teatro da Crueldade de Antonin Artaud que ressalta à sua maneira de ver o drama como possibilidade de nos conectarmos com nossa sensibilidade, angústias, urgências interiores. Artaud influenciou o trabalho de Peter Brook, Jersy Grotowski, Tatsumi Hijikata no Butô, entre muitos outros.4 O espírito da modernidade (não apenas na arte e reforçado na pós-modernidade) reforça a visão de que o diferencial nas diversas manifestações está no indivíduo. Esse espírito de liberdade expandiu todas as possibilidades da arte.
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cadernos da pós-graduação Como nos aponta Renato Cohen5, a busca do desenvolvimento pessoal é um dos princípios centrais da arte da performance, nela o performer se expõe como pessoa, ele não é um personagem; ficção e realidade brincam numa linguagem dialética, nela, qualquer convencionalismo pode ser rompido. Sua produção é por natureza voltada ao imagético, não verbal, tendo como suporte temas existenciais e processos de construção mais irracionais. Na performance há espaço para a improvisação, mas são extensamente elaboradas, em seu princípio rompe convenções, formas e estéticas. Tendendo à multilinguagem. Nos anos 60 vários artistas buscaram conceituar essas tendências de multilinguagem. “Joseh Beuys as chamou de Aktion, priorizando a ação; Wolf Vostell de de-collage, prevalecendo a fusão. Claes Oldemburg usa pela primeira vez o termo performance, valorizando a atuação”.6 Na dança isso se daria na transferência da coreografia para o processo de criação que passa a ser aparente como a improvisação na dança do norte americano Steve Paxton que desenvolveu a contact improvisation, técnica de improvisação que influenciou a criação e processos de inúmeros bailarinos em diversos continentes, incluindo bailarinos brasileiros. Outros exemplos chegam a ser violentos como Stuart Brisley - Moments of Decision/ indecision, 1975 - uma catarse individual como um agressivo protesto público contra a política da guerra fria, performance realizada na Alemanha, Grã Bretanha e Áustria; ele pinta o corpo de preto e branco e carimba as paredes com esse corpo pintado e nu. E La Fura dels baus, - suz/o/suz, 1991 - usa barris de óleo, cilindros de gás, caixa registradora, máquina de lavar roupas como produtores de ruído para um explosivo trabalho no qual os performers são suspensos por armações presas ao teto;
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mergulham em tanques cheios d’água e lançam bruscamente filés de carne numa batalha caótica7. Como podemos identificar em Auslander8, não há limites para os excessos, para o surrealismo, o grotesco, o violento o inu-sitado, incluindo temas feministas, multicul-turais, de sexualidade e de alteração da própria imagem cujo exemplo extremo, como crítica à obsessão feminina à industria estética/cosmética, são as performances da francesa multimídia Orlan, que se submete a uma série de cirurgias plásticas alterando a própria imagem e, utilizando o set cirúrgico como parte da performance, inclui textos, música, dança, figurino médico. Apenas com anestesia local ela supervisiona e dirige e transmite on line. Na dança destacaria os orientais San Kai Juk9, Min Tanaka10. E Saburo Teshigawara que desenvolve um trabalho meditativo e silencioso dentro de um cubo com paredes brancas; sua performance é pontuada por trechos de música techno. Para completar a versatilidade dessas expressões, coletamos na obra de Huxley and Witts11 que há ainda Elizabeth Compte, rebelde extremamente oposta ao teatro comercial Norte Americano, que trabalha essencialmente com temas como a fragmentação e desconstrução da narrativa de forma similar a Bob Wilson, com quem Renato Cohen teve contato; ela participou do grupo de Richard Schechner entre 1967 e 1980. Seria uma gafe não comentar as brasileiras que não só atuam na vanguarda da arte contemporânea quanto estão inseridas no ambiente universitário, instigando reflexões e debates, publicando e atuando no ensino e na produção artística; são elas: Rosangella Leote do grupo Sciarts, da PUC-SP, e Maria Beatriz de Medeiros, do Corpos Informáticos, da UnB. Ambas contribuem para uma conceituação da performance art que aproxima a vertente de
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seus trabalhos ao próprio conceito de hipertexto em que a participação do “espectador” é fator de interação e transmutação da obra. Nos anos 90 a performance é uma importante referência, não apenas na história da arte, mas também em muitas das últimas trajetórias da cultura contemporânea, seja na filosofia, na fotografia, na arquitetura, na antropologia ou na midialogia, seja a performance autobiográfica, monólogo, ritual, pessoal ou na dança teatro, os artistas unem a psicologia à percepção, o conceito à prática, o pensamento à ação; evocam a participação ativa, uma colaboração física na construção de idéias.12
Resgatar o arcaico no contemporâneo É fundamental a nova forma de pensar o teatro que se consolida no período dos anos 60 e 70 a partir do trabalho de Jerzy Grotowski e de Peter Brook para demonstrar o envolvimento do artista na obra de arte13, apresenta: Nosso método não é dedutivo, não se baseia em uma coleção de habilidades. Tudo está concentrado no amadurecimento do ator, que é expresso por uma tensão levada ao extremo, por um completo despojamento, desnudamento do que há de mais íntimo – tudo isso sem o menor traço de egoísmo ou de auto satisfação. O ator faz uma total doação de simesmo. Esta é uma técnica do transe e de integração de todos os poderes corporais e psíquicos do ator, os quais emergem do mais intimo do seu ser e do seu instinto, explodindo numa espécie de transiluminação14.
çar, a cantar. O gesto significativo, não o gesto comum, é para nós a unidade elementar de expressão. Procurando a quintessência dos símbolos pela eliminação daqueles elementos do comportamento que obscurecem o impulso puro. Se a situação é brutal, se nos desnudamos e atingimos uma camada extraordinariamente recôndita, expondo-a, a máscara da vida [diária] se rompe e cai.” 15
A essência desse método que busca o gesto significativo, a quintessência dos símbolos, essa ousadia, casa-se perfeitamente e contribui para inaugurar os novos conceitos de arte que vão se apresentando ao longo da pósmodernidade que se instaura no séc. XX. No prefácio de Em busca de um teatro pobre Peter Brook aponta: “Ninguém investigou a natureza e a ciência de seus processos (teatrais) mental, físico-emocionais tão profunda e completamente quanto Grotowski. O trabalho dessa natureza só é livre se baseado na confiança, e a confiança para existir não pode ser traída. O trabalho é essencialmente não verbal. Ele está criando uma forma de culto... É um relacionamento unindo o privado e o público, o íntimo e a multidão, o secreto e o aberto, o vulgar e o mágico. Seu trabalho nos deixa um desafio diariamente.” 16
Jerzy Grotowski apresenta seu método resgatando a essência dos ritos que envolve o indivíduo por completo, o que definirá como teatro pobre:
É Peter Brook também quem nos apresenta as bases para elaborarmos conceitos como o da linguagem performática que pretendemos utilizar, fundamentada nos extremos da experiência interior. Assim, a expressão dramática torna-se apenas conseqüência dessa vivência como exercício de favorecer a fluência entre o invisível e este invisível que contém todos os impulsos escondidos do homem, atualizar-se na obra.
“O homem, num elevado estado espiritual usa símbolos articulados ritmicamente, começa a dan-
Nas entrelinhas de sua obra Peter Brook nos apresenta vários conceitos que se consolidam na performance contemporânea e que 27
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igualmente nos nutrem e complementam apontando-nos que teatro vivo é redescoberta. O teatro sagrado trabalha com o invisível e este invisível contém todos os impulsos escondidos do homem.17 Esses aspectos mais intensos encontram liberdade na linguagem da performance que Renato Cohen18 descreve como arte da experimentação; arte que resgata a liberdade da criação, sendo uma arte de transcendência, não é, na sua essência, uma arte de fruição, é uma arte de intervenção, transformadora em vários sentidos. Podemos chamá-la de transformadora de idéias, do público, do próprio performer ou da experiência e vivência de arte. Havendo assim, uma evolução da representação, para a apresentação. Ainda é esse autor quem define a linguagem da performance que abordamos em nossa investigação e experimento como produção inaugural e, pelas artes de fronteira incorpora códigos artísticos que utilizam narrativas superpostas a partir de emissões polifônicas e polissêmicas, na ordem da sincronicidade e da pluralidade, operando nessa trama, linguagens que transitam pelo texto, imagem, pelas emissões subliminares, pelo texto/partitura possibilitando a fruição e cognições ambivalentes. Nessa operação criativa, constitutiva de novas linguagens e narrativas, são incorporados procedimentos axiomáticos do happening e da performance como o uso do work in process, a absorção do “erro” e do acaso, da caoticidade e das vicissitudes cotidianas, da produção mutante que carrega o efêmero élan vital subvertendo a representação e o apriorismo próprios do contexto teatral.19 Encontrando a liberdade de investigação e de experimentação para aprofundar experiências intensas, coletamos em cada autor o material que nos configura um labirinto interligado de informações, elementos que nos
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ampararam diante do desconhecido, fosse o desconhecido do inconsciente, ou da expressão que esse conteúdo inconsciente encontra para atualizar-se como arte.
Skenos Do grego: skénos: o corpo humano, enquanto alma que aí habita temporariamente. De certa forma, o “tabernáculo da alma”, o invólucro da Psyché (Psique). A raiz gerou, igualmente, a palavra skénoma que significa, também, o corpo humano.20 O que nos interessa nesses eventos é que o corpo humano torna-se uma forte mídia da arte. Ainda baseados em Cohen, nessas práticas estéticas, não só o próprio corpo do artista, sua história, suas peculiaridades são fonte e suporte para a sua arte; o inconsciente em todos os contextos e dimensões alimenta a criação e as possibilidades de mediação. O momento da criação é valorizado e pode ser estendido ao momento da apresentação. A obra aberta é legitimada, o work in process é uma estética que surge dessas práticas. Veremos também em Medeiros21 que há eficácia nesses procedimentos quando há interação reconfigurada das partes artistaobra-público – as interfaces da performance ressaltando o aspecto único e não reprodutível da ação corporal. Considera que a linguagem artística performance, modifica o conceito de arte e redimensiona o teatro por envolver elementos estéticos novos como o corpo do artista sendo objeto da arte, a efemeridade da ação, a participação, não só intelectual e emocional, mas física do público que ela chama de interator. Assim, como cita Medeiros22, toda “obra aberta, como quer Umberto Eco seria performance”, reflexão interessante, pois expande o campo da performance e valoriza a participação intelectual do espectador como parte da obra, enquanto elemento estético da
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obra de arte. São as dimensões somáticas, físicas, cognitivas, emocionais e espirituais que estão se reconfigurando. É o conceito mesmo de dimensão que está, aqui, sendo questionado. O corpo em movimento enquanto mídia da performance, através de arranjos de movimentação, diferentes estados de corporalidade, diferentes percepções de espacialidade, dramatizações de universos simbólicos, um processo que, ao se atualizar, denuncia sempre um estado inacabado, ainda que traga um senso de plenitude e um estado de devir simultâneos; torna-se elementar considerar que a individuação acontece no corpo, não que este seja instrumento, ou tabernáculo, mas é a entidade única e existencial daquilo que somos. É a totalidade na unidade. Esse é o topos23 que pretendemos atingir. Ao articular o corpo, às emoções, às imagens, ao som, ao mesmo tempo em que o movimento é buscado em sua forma mais crua, ele borbulha complexo, transbordando elementos que se alimentam mutuamente. Identificamos que apresentar os desafios e enunciar imagens interiores na gestualidade, o mítico e o arcaico se fundem no contemporâneo, indicando que memória corporal e memória psíquica não se restringem ao tempo factual, mas sim vivenciam o tempo mítico trazendo em si seus registros arquetípicos, e ancestrais manifestos em formas pós-modernas ou mesmo atemporais.
Just be your self24 A questão do self ou Self é a problemática central da performance. A concepção dos diferentes diretores podem divergir. Ora considerando o self (consciência, ego) do ator como o logos da performance, ora que o self do ator procede do grupo e de sua presença
diante do público, mas o que Philip Auslander25 considera é que a ação demonstra o self. Ou seja, a performance permite simplesmente que ele (o ator) seja ele mesmo. Estaremos considerando Self, como um encontro maior que o reconhecimento de si mesmo, seria um encontro único e integrado com aspectos profundos. Levantando várias possibilidades, esperamos tornar clara nossa proposta para encontrar na liberdade, a luz. Na sobreposição não o fragmento, mas a integração; ou apenas a oportunidade de que cada um seja Si-mesmo.
Intérpretes de nós mesmos Intérpretes de nós mesmos, estamos sempre em performance, sempre em processo de nos individuarmos. Nosso corpo e nossa arte vão revelando aos poucos tudo aquilo em que estamos nos tornando. Sem códigos que reduzam ou rotulem, queremos o mítico, não a massa. A hipermídia, não o mass media.
Pré-improvisação O momento que antecede a improvisação é geralmente uma preparação do corpo e da alma para que haja uma aproximação mais estreita entre ambos, tão estreita que a experiência simbólica ocorra no corpo e o corpo, ampliado em sua sensibilidade, percebe-se e existe como alma. A esse momento de preparação, chamamos de pré-improvisação. Trata-se de gerar um ambiente de fluxo de conteúdos a serem conscientemente evocados, inconscientemente vivenciados e esteticamente manifestos que o chamamos de espaço sagrado, ou temenos.
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Determinamos que a pré-improvisação seria um mergulho em forças interiores que fujam ao controle, numa tentativa de trazê-las objetivadas no movimento. Não pretendendo, obviamente com essa objetivação qualquer tradução ou manipulação dessas forças, mas apenas amplificá-las no movimento. Considerando a experiência sensível do movimento uma oportunidade para a elaboração interna e dessa elaboração desenvolver o conhecimento das próprias habilidades e a expansão de um estado de consciência, que, por sua vez, amplia o repertório expressivo do artista. É nesse aspecto que abordamos a imagem: o corpo pode vivenciar conteúdos simbólicos e psíquicos. O encaminhamento do processo de criação na performance torna consciente a vivência de ampliação psíquica do indivíduo, através de seu contato com dimensões profundas, comungadas com a manifestação artística. O desafio do performer é então, realizar essa transposição, repetindo: apresentando sua síntese de opostos, que é basicamente, integrar seus aspectos sombrios (inconscientes) aos seus aspectos luminosos, não como contrário de sombrio, mas transcendente e renovador.
belecemos uma relação desses processos, apontando suas interfaces. Nossa pesquisa pretendeu demonstrar que é a si mesmo que o performer gestual apresenta ou representa, interpreta ou interpela, e que isso ocorre corporalmente,. Como nos ressalta Sandra Rey: “A arte e a vida, mantendo-se aos seus olhos indissociáveis, fazem com que o discurso da obra e a história pessoal do artista encontrem-se sempre estreitamente imbricados”.26
Vera Cristina Marcellino, Mestre em Artes pelo Instituto de Artes – UNICAMP. E-mail: vera.marcellino@gmail.com Orientadora: Profa. Dra. Elisabeth Bauch Zimmermann, Docente junto ao Depto. de Artes Corporais do Instituto de Artes – UNICAMP. E-mail: zimmandrade@terra.com.br
Notas 1. Ou “hipermoderna” como defende Gilles Lipovetsky (PERES, 2004, p. 5-6.), que propõe a pós-modernidade como uma exacerbação da modernidade portanto “hipermodernidade”. 2. RODRIGUES, 2000, p. 32. 3. MEDEIROS, 2000, p. 125. 4. HUXLEY and WITTS, 1996, pp. 25, 26. 5. COHEN, 1989. 6. Idem, p. 46.
Instante Segundo os apontamentos levantados, fomos construindo e tornando consistente uma percepção de que, pelo momentâneo que carrega diversos elementos, pode-se atingir experiências profundas que são dinâmicas e apontam para o único e total, ou seja: a percepção do Self. A possibilidade de Individuação. Sem um olhar hierarquizado de que uma grandeza (performance) depende ou inspira a outra (processo de individuação). Esta-
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7. GOLDBERG, 1998, pp. 53 e 72. 8. AUSLANDER, 1997. 9. GOLDBERG, op. cit, p. 160. 10. Idem, p. 161. 11. HUXLEY, op. cit., p. 235. 12. GOLDBERG, op. cit., pp. 9, 10. 13. GROTOWSKI, 1971, p. 2. 14. Palavra no texto original do tradutor. 15. GROTOWSKI, op. cit. 16. Idem.
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17. Ibidem, p. 49. 18. COHEN, op. cit., p. 46. 19. Idem, 1996, p. 67. 20. MEDEIROS, op. cit. 21. Idem, p. 32. 22. Ibidem. 23. A palavra topos será utilizada em substituição a espaço ou lugar, no contexto que COHEN, op. cit., p. 116, a utiliza, como um espaço filosófico, psicológico, espaço de relações, um espaço próprio da arte. 24. AUSLANDER, op. cit. 25. AUSLANDER, op. cit., pp. 29, 30. 26. BRITES, 2002, p. 123.
Referências Bibliográficas AUSLANDER, Philip. From acting to performance – essays in modernism and postmodernism. London and New York: Routledge, 1997. BRITES, Blanca e TESSLER, Elida (organizadoras). Porto Alegre: Editora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2002. BROOK, Peter. O teatro e seu espaço. Petrópolis, RJ: Ed. Vozes, 1970. COHEN, Renato. Performance como linguagem. São Paulo: Ed. Perspectiva-USP, 1989. GROTOWSKI, Jerzy. Em busca de um teatro pobre . Trad. Aldomar Conrado. Rio de Janeiro: Ed. Brás, 1971. GOLDBERG, Roselee. Performance – Live art since the 60s. Foreword by Laurie Anderson. London: Ed. Thames and Hudson, Britsh Library, 1998. HUXLEY, Michael and WITTS, Noel. The twentieth-century performance Reader. London: Routledege, 1996. MEDEIROS, Maria Beatriz de. Bordas rarefeitas da linguagem artística performance suas possibilidades em meios tecnológicos. Brasília: Revista Transe, 2000. PERES, Marco Flamínio. O Caos Organizado – Gilles Lipovetsky, entrevista ao caderno MAIS!, Folha de São Paulo, 14 mar. 2004. RODRIGUES, Eliana. “Dança e pós modernidade”, in Temas em contemporaneidade, imaginário e teatralidade. São Paulo: Annablume, 1ª ed., 2000.
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A Produção Plástica e a Psiquiatria José Otávio Motta Pompeu e Silva Lucia Reily Resumo: Este artigo faz parte da dissertação de mestrado A psiquiatra e o artista: Nise da Silveira e Almir Mavignier encontram as Imagens do Inconsciente, defendida pelo autor no Programa de Pós-Graduação em Artes do Instituto de Artes da UNICAMP, com orientação da Profª. Drª. Lucia Reily. Desde o século XIX a produção plástica dos alienados despertou interesse em psiquiatras e artistas da época. Neste artigo é feita uma breve revisão bibliográfica sobre a relação entre arte e produção plástica de alienados até a primeira metade do século XX, na Europa e no Brasil.
Desde o século XIX, a psiquiatria se interessava pela produção plástica dos alienados; em diversos manicômios ou hospitais psiquiátricos promoveram-se suas produções, colecionaram-nas e estudaram-nas. Segundo MacGregor, surgiram as primeiras coleções de que se tem notícias: a do Bethlem Mental Asylum de Londres e do Crichton Royal Hospital da Escócia, ambas no início do século XIX. No final do século XIX, começam a surgir obras de psiquiatras, como o livro Genio e Follia escrito por Lombroso, em 1882, analisando a relação entre a criação artística e a doença mental. No hospital de Heildelberg, sob a direção de Kraepelin, inicia-se uma importante coleção de obras configuradas por doentes mentais1. Entre os psiquiatras que se interessaram pela arte dos insanos também podemos citar: Mohr, Simon, e Prinzhorn. Talvez o ponto mais importante que marcou o Zeitgeist, espírito desta época, foi o início dos estudos de Freud sobre o inconsciente, ainda no século XIX. O advento da psicanálise mudou a forma de fazer arte no século
XX. Esta inovação alavancou uma sucessão de movimentos e de novos interesses dentro do campo da arte e também da psicologia. O termo Zeitgeist foi definido pelo pensador Johann Wofgang von Goethe como um conjunto de opiniões que dominam um momento específico da história e que, sem que nós nos apercebamos, determinam o pensamento de todos os que vivem num determinado contexto2. Este termo, presente também na historiografia, manteve a grafia e foi incorporado a diversas línguas como o inglês, o francês e o português; nesta última encontramos no Dicionário Houaiss a significação para o vocábulo Zeitgeist de espírito de uma época determinada; característica genérica de um período específico. O interesse pelo primitivismo também foi marcante por volta de 1900 e transformou o pensamento intelectual e estético da época. Vários artistas viajaram para terras distantes e foram influenciados por novas culturas, novas formas de ver o mundo e de produzir plasticamente. Picasso ficou fascinado com a arte 33
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tribal. Kandinsky ficou maravilhado com o que hoje chamamos de arte naïf. Paul Klee estudou a arte das crianças. A obra de Prinzhorn Bildnerei der Geisteskranken reflete estes encontros ao justapor e comparar a obra de pacientes psiquiátricos com a produção de crianças, artistas naïf, arte primitiva e a obra de expressionistas. Este livro chegou às mãos de vários artistas como Paul Klee, Max Ernst, Paul Eluard, Jean Arp, André Breton, Jean Dubuffet.3 Dubuffet cunhou do termo l’Art Brut e afirmava que arte bruta não era só a arte dos insanos e sim uma arte espontânea, inventiva, que foge dos padrões culturais e do mundo das artes, feita por pessoas visionárias. Nessa mesma época os surrealistas, convencidos de que o inconsciente poderia enriquecer o processo de criação artística, criavam várias estratégias de produção plástica a partir da livre associação. Marx Ernst usou o automatismo na criação de duas técnicas, a colagem e a frotagem e foi diretamente influenciado pelo trabalho de August Natterer, publicado no livro de Prinzhorn que Ernest usou como inspiração para fazer seu Oedipus que foi capa de uma edição especial da revista Cahiers d´art em 1937.4
Fig. 2: Auguste Natterer, The Miraculous Shepherd, c. 1919. Lápis e guachê, sobre papel cartão com aquarela. Prinzhorn Col. , Heidelberg. Fonte: Peiry, 2001, p. 28
Paul Klee confirma este processo de diálogo entre a produção plástica de sua época com a produção plástica de loucos: “Na opinião dos médicos, minhas pinturas são, basicamente o trabalho de um doente. Certamente você conhece o excelente livro de Prinzhorn, Bildnerei der Geisteskranken. Nós mesmos conseguimos nos convencer disso. Veja: ali está Klee no seu melhor! E aqui e ali também! Veja esses temas religiosos: existe uma profundidade e um poder de expressão que eu jamais conseguirei atingir. Arte verdadeiramente sublime. Uma visão puramente espiritual... Crianças, os loucos, e os primitivos preservaram - ou redescobriram - a habilidade de enxergar. E o que eles vêem, e as formas que utilizam para mim são as mais valiosas confirmações.” 5
Nise da Silveira 6 classifica o livro BILDNEREI DER GEISTESKRANKEN, de Prinzhorn como monumental e comenta: “que uma pulsão criadora, uma necessidade de expressão instintiva, sobrevive à desintegração da personalidade”.
Fig. 1: Marx Ernst, Oedipus, para uma edição especial de Cahiers d´art, 1937. Collage
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No livro The discovery of the art of the insane, o autor MacGregor realiza uma investigação histórica e cultural sobre a produção
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artística do doente mental, afirmando que as manifestações plásticas dessa população não acontecem num vácuo, e sim em determinados contexto e momento históricos. “Sua produção pode ser identificada ou ignorada, valorizada ou desprezada, conforme as concepções correntes sobre o que é arte e o que é loucura.” 7 Valorizada pelos artistas contemporâneos, a produção plástica dos insanos foi utilizada pela máquina de propaganda do regime nazista na Alemanha para difundir o conceito de eugenia e de degenerência das pessoas acometidas por algum tipo de doença mental.8 Joseph Goebbels organizou em 1937 a exposição Entartete Kunst (Arte Degenerada) que foi inaugurada em Munique e percorreu nove outras cidades na Alemanha e na Áustria.9
A primeira referência de que se tem notícia no Brasil do termo psicanálise foi de Juliano Moreira no ano de 1899, nos primórdios da aplicação desta técnica psicológica no mundo. O interesse pela produção plástica dos alienados surgiu com Osório César, em 1923, quando ele iniciou seu trabalho como estudante interno do Hospital do Juqueri, em Franco da Rocha, São Paulo. No ano de 1925, o paraibano Osório Thaumaturgo César realizou o primeiro estudo sistemático sobre arte e loucura no país: A Arte Primitiva dos Alienados. No seu estudo de 1929: A Expressão Artística nos Alienados, prefaciado pelo intelectual Cândido Motta Filho, César realiza um estudo psicanalítico de desenhos, pinturas, esculturas e poesias de pacientes do Hospital do Juqueri; além de um histórico de outros estudos sobre a expressão plástica dos alienados.10 Também afirma que a arte para ser genial tem que ser livre. O alagoano Arthur Ramos, colega de turma de Nise da Silveira, defende em 1926 a tese Primitivo e Loucura11, onde tece algumas relações entre a arte, o pensamento primitivo e a alienação mental, utilizando escritos de Freud e Jung.
Fig. 3: Cartaz comparando obras de arte com doentes – Exposição Arte Degenerada
Fig. 4: Fila de entrada para exposição Arte Degenerada.
Constam outras experiências isoladas como a de Ulisses Pernambucano e posteriormente em 1946 nasce o interesse da psiquiatra Nise da Silveira pela obra desenvolvida no ateliê de pintura do Centro Psiquiátrico Nacional que deu origem ao Museu de Imagens do Inconsciente em 1952 e que hoje tem mais de 300 mil obras tombadas pelo Conselho do Patrimônio Cultural do Rio de Janeiro. Antes disso, em 1917, ocorreu uma polêmica entre Monteiro Lobato e Anita Malfatti. Lobato em artigo intitulado Paranóia ou Mistificação?, compara os trabalhos apresentados por Anita Malfatti com a produção de internos de hospitais psiquiátricos. E vai além: afirma que as obras de Malfatti não eram tão sinceras quanto as obras produzidas no interior dos 35
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hospícios. Esta afirmação indica o conhecimento do escritor paulista sobre os modernos estudos psiquiátricos da produção plástica dos alienados.12
FERRAZ, M. H. C. T. Arte e Loucura: limites do imprevisível. São Paulo: Lemos Editorial, 1998.
José Otávio Motta Pompeu e Silva, Terapeuta Ocupacional, Mestre e Doutorando em Artes pelo Instituto de Artes – UNICAMP. E-mail: jotavios@terra.com.br
MELO JUNIOR, W. Ninguém vai sozinho ao paraíso: o percurso de Nise da Silveira na psiquiatria no Brasil. Tese de Doutorado em Psicologia – Instituto de Psicologia da Universidade Estadual do Rio de Janeiro – UERJ, Rio de Janeiro, 2005.
Orientadora: Profa. Dra. Lúcia Reily, docente credenciada junto ao Programa de Pós-Graduação em Artes do Instituto de Artes – UNICAMP. Arte-Educadora e Doutora em Psicologia. Docente junto a FCM – Faculdade de Ciências Médicas – UNICAMP. E-mail: lureily@terra.com.br
Notas 1. MELLO, L. C., 2000, p. 35. 2. BROZEK, 2002. pp. 103-109. 3. PEIRY, 2001, pp. 12-13. 4. Idem, pp. 31-32. 5. Idem, p. 30 – tradução nossa. 6. SILVEIRA, 1992. p. 88. 7. MACGREGOR, apud REILY, 2001, p. 37. 8. BEIGUELMAN, 1997. 9. PEIRY, op. cit., p. 33. 10. FERRAZ, 1998, p. 46. 11. MELO JUNIOR, 2005, p. 55. 12. FERRAZ, op. cit., p. 37.
Referências Bibliográficas BEIGUELMAN, B. Genética, Ética e Estado. Jornal Brasileiro de Genética, Campinas, v. 20, n. 3, set. 1997. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid= S0100-84551997000300027&lng=en&nrm=iso> Acesso em: 19 maio 2006. BROZEK, J.; MASSIMI, M. (ed.). (2002) Curso de Introdução à Historiografia da Psicologia: Apontamentos para um curso breve - parte segunda: Da Descrição à interpretação. Disponível em: <http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos02/brozek02.htm>. Acesso em: 25 fev 2004.
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MACGREGOR, J. M. The discovery of the art of the insane. Princeton, New Jersey: Princeton University Press, 1989. MELLO, L. C. In: MOSTRA DO REDESCOBRIMENTO. Imagens do Inconsciente: catálogo. São Paulo: Associação Brasil 500 anos artes visuais, 2000.
PEIRY, Lucienne. Art Brut. Paris: Flammarion, 2001. REILY, Lúcia. Armazém de imagens: ensaio sobre a produção artística de pessoas com deficiência. Campinas, SP: Papirus, 2001. SILVEIRA, Nise. Mundo das Imagens. São Paulo: Editora Ática, 1992.
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Critérios de legitimação utilizados pela crítica de arte brasileira frente aos trabalhos plásticos de pacientes psiquiátricos: o estado patológico do sujeito criador Tatiana Fecchio Gonçalves Lúcia Reily
Resumo: Nos textos da crítica de arte brasileira, analisados entre os anos de 1933 a 2003, aparece a referência aos trabalhos de pacientes psiquiátricos de pelo menos duas formas. Uma delas caracterizando formalmente esta produção e a outra argumentando mais explicitamente sobre a legitimação ou não deste conjunto de trabalhos no campo da Arte Erudita. Foi desta segunda forma que foram retirados os critérios aqui apresentados, através da categorização dos argumentos da crítica contidos em textos e catálogos deste período, embora a caracterização mais genérica seja de interesse e complementar a esta.
A produção de trabalhos plásticos por pacientes psiquiátricos, independentemente da técnica utilizada, é propiciada de diferentes formas e seu fomento é função da Instituição e do período no qual se inscreve. A bibliografia existente, relativa a estas produções, é variada e apresenta diversas abordagens. Algumas intencionam a interpretação dos significados destas produções sobre diversos pontos de vista. Há publicações que abordam a questão de forma terapêutica, outras que abordam a relação entre a vida do paciente e sua produção construindo relações biográficas ou que se debruçam sobre elementos plásticos ou subjetivos das próprias produções. Algumas pesquisas se trabalharão com discussões mais específicas em estudos de caso, processos mentais dos pacientes ou documentação histórica. Existem ainda trabalhos que comentam e discutem propostas de atividades adotadas em determinadas institui-
ções, que elaboram metodologias e programas de atuação em oficinas de artes em hospitais psiquiátricos ou hospitais-dia ou mesmo em clínicas numa abordagem arteterapêutica. Este artigo, resultado parcial da Pesquisa de Mestrado concluída em 2004, junto ao Programa de Pós-Graduação em Artes do Instituto de Artes - UNICAMP, intenciona, diferentemente das abordagens descritas acima, entender de que forma a crítica de arte contribuiu para estabelecer parâmetros e critérios que fazem com que um trabalho realizado por pacientes psiquiátricos seja, em determinados momentos da história atual brasileira, incluído ou não no sistema erudito de Arte, legitimado ou não, neste sentido, como trabalho artístico e não apenas expressivo. Não se encontrará aqui a questão da subjetividade destes sujeitos, da desrazão, nem a discussão sobre a relação entre arte e loucura; tampouco discussões sobre resulta37
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dos clínicos das atividades plásticas. Serão tratados diretamente os argumentos de sujeitos específicos –, socialmente reconhecidos como proferidores de conceitos sobre a Arte, os Críticos e Curadores – em textos que aproximam ou distinguem trabalhos plásticos tidos, na própria História da Arte inicialmente como Informais a um outro grupo tido como Erudito. Na verdade, abordará o limiar entre o que é ou não é considerado Arte, implicando inevitavelmente em quem profere este discurso e de que forma o conduz. No Brasil, a primeira exposição na qual se encontram expostos trabalhos de pacientes psiquiátricos se deu no ano de 1933 com a Exposição, “Semana dos Loucos e das Crianças” no Clube dos Artistas Modernos – CAM, São Paulo, e que foi organizada por Flávio de Carvalho. A partir desta, diversas outras exposições aconteceram, ora em espaços não legitimados de Arte, como os Hospitais Psiquiátricos, ora em espaços denominados oficiais, como Galerias ou Museus. Independentemente, há por traz destas exposições sempre um sujeito, crítico ou curador que fundamenta, justifica e apresenta tais eventos e cujas falas contém inevitavelmente critérios que legitimam ou não as produções em questão, de diversas maneiras. Foi a partir da leitura desta crítica envolvida diretamente nas exposições nas quais estavam presentes trabalhos plásticos de pacientes psiquiátricos – em textos, livros, jornais e catálogos – que se identificou e se categorizou os critérios utilizados para a legitimação desta produção. Ao todo foram identificadas seis categorias de argumentos, sendo que neste artigo se abordará a primeira delas. 1. Critérios relacionados ao ESTADO PATOLÓGICO DO SUJEITO CRIADOR;
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2. Critérios relacionados à questão da subjetividade e do inconsciente; 3. Critérios relacionados à questão da intenção de se estar fazendo arte; 4. Critérios advindos do confrontamento ou da relação com a arte oficial; 5. Critérios advindos da relação de recepção dos trabalhos e 6. Critérios advindos de características intrínsecas destes trabalhos.1
1. CRITÉRIOS RELACIONADOS AO ESTADO PATOLÓGICO DO SUJEITO CRIADOR Este critério se constitui de quatro termos de argumentação: 1. Não é arte pois deixa transparecer o estado doentio do sujeito criador; 2. Não é arte, pois o sujeito criador não teria intenção, consciência da sociedade na qual vive, sendo deficiente de inteligência e razão; 3. É arte pois, como toda a obra de arte, advém de impulsos interiores (para todos perene ou momentaneamente existentes); 4. É arte, independentemente do estado patológico do sujeito criador, e não arte patológica. Propositalmente foi evitada a repetição das citações hierarquizando sua classificação em função da contundência e clareza do argumento ou pela exclusividade deste. A apresentação dos argumentos foi feita respeitando-se a cronologia das fontes.
• Não é arte pois deixa transparecer o estado doentio do sujeito criador, sendo obras casuais, inconscientes.
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Este tipo de argumentação foi encontrado na fala de Campofiorito depois da exposição de 1949 na qual foram expostos os trabalhos dos internos do Hospital D. Pedro II, no Salão da Câmara dos Vereadores. A esta exposição seguiu-se um grande debate entre Mário Pedrosa (jornal: Correio da Manhã) e Quirino Campofiorito (jornal: Diário da Tarde). Campofiorito entendia que esta exposição poderia apenas “ter valor como ‘expressão científica’: observando-se os trabalhos expostos salta-lhe à vista o estado doentio que se acha inscrito na superfície dos mesmos.” 2 Assim por uma caracterização determinada que seria nitidamente patológica já se teria para ele configurado motivo suficiente de desmerecimento dos trabalhos. A este estado descrito de patologia se acresceriam outros como a casualidade, o improviso, a falta de inteligência e a desrazão; todos confluindo para a impossibilidade de caracterização destes trabalhos como arte. Em O Jornal, Campofiorito escreveu: “A nossa opinião sobre estes desenhos e essas pinturas é de que são medíocres demonstrações artísticas e trazem as fraquezas de obras casuais, improvisações inconsistentes, deficientes todas dessas condições de inteligência e razão que deve marcar a criação artística. Se usarmos dessa franqueza quando nos referimos à produção de muitos artistas profissionais, isto é, indivíduos absolutamente conscientes do que fazem e para que fazem, o mesmo devemos fazer nesse caso de uma mostra de trabalhos de enfermos mentais, recolhidos desde a infância a um hospital de alienados, e que só há muito pouco tempo foram levados a desenhar e pintar apenas por necessidade terapêutica. E com maior razão essa franqueza se impõe quando desejam muitos dar a essa exposição o valor de uma excepcional exibição de obras de arte. De excepcional aí só existe o resultado obtido com o definido tratamento terapêutico, que positivamente representa um humano benefício para essas infelizes criaturas.” 3
Num outro trecho deste mesmo Jornal escreve: “o artista não é um trabalhador inconsciente sem saber por que nem para que, como um tolo, sem consciência da sociedade em que vive, nem tampouco criatura capaz de conscientemente aceitar o ridículo entre os seres semelhantes.” 4
Subentendendo, portanto, que o trabalho de um paciente psiquiátrico seria o de um tolo, entendendo-se por isto provavelmente a inadequação social, inconsciente dos motivos pelos quais produz e que aceitaria o papel de ser um ‘ridículo’ na sociedade. Provavelmente aqui Campofiorito nomeie de ‘ridículo’ o comportamento não adequado destes sujeitos no convívio social. De qualquer forma interpreta que a consideração dos trabalhos por estes realizadores, como Arte, só se justifica por um afrouxamento dos critérios para ele tidos como os de qualidade, como o uso da inteligência e da razão.
• Não é arte, pois o sujeito criador não teria intenção, consciência da sociedade na qual vive, sendo deficiente de inteligência e razão. Este argumento foi encontrado em uma publicação de Campofiorito, num texto publicado em O Jornal de 1949 quando, referindose à questão da aproximação da Arte Moderna à espontaneidade e força expressiva reconhecida na infância e na loucura – fato que já deveria ter estado em questão quando da exposição promovida por Flávio de Carvalho em 1933 –, comenta: “Há em Kandinsky e Paul Klee, por exemplo, uma disposição de afrontar o ridículo para obter uma posição puramente anárquica e não construtiva. São adultos que se revestem de semelhanças ou semeblantes infantis, ou talvez (por que não 39
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ter a coragem de dizê-lo?) semelhanças ou semblantes de esquizofrênicos. Hoje que vemos o que nos mostram os enfermos de Engenho de Dentro, podemos com segurança encontrar-lhes semelhança.” 5
Num outro trecho: “há muito já avançamos nas experiências da arte moderna para acreditarmos que do artista não se deva exigir também condições de inteligência e de raciocínio condizente com o grau de civilização de seus semelhantes.” 6
Reforçando assim, a questão do diálogo intencional, inteligente e adequado à sociedade e ao período histórico no qual este sujeito artista vive, valorizando claramente a presença da razão, da consciência e da intenção de fato. Mesmo em obras abstratas a exploração formal é entendida, por Campofiorito, menos como uma nova maneira de configuração do que uma aproximação ‘anárquica’; ou seja, no fundo parece não considerar a opção abstracionista conseqüente. Sendo os artistas citados ‘adultos que se revestem’, eles não o são verdadeiramente, ou seja, a diferença retorna mais ao estado do sujeito do que de fato à configuração dos trabalhos e neste sentido à razão, à consciência e à intenção.
• É arte pois, como toda a obra de arte, advém de impulsos interiores (para todos perene ou momentaneamente existentes). Sobre a exposição de 1949 com os trabalhos dos internos do Hospital D. Pedro II, Mário Pedrosa comenta sobre a possibilidade de um sujeito criador ter um estado mental diferenciado, no sentido de patológico, e isto não implicar na depreciação de sua capacidade produtiva,
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“...tivemos uma demonstração experimental psíquico-estética da mais alta importância. Era difícil dizer que aquelas produções eram de doentes mentais. Pode-se, evidentemente, encontrar nelas, como aliás em toda obra, em toda criação humana, manifestações provenientes de almas conturbadas, perene ou momentaneamente, de impulsos interiores que a técnica psiquiátrica geralmente identifica como pertencentes à constituição psíquica do esquizofrênico.” 7
Mas porque seria difícil dizer que aqueles trabalhos seriam de doentes mentais? Parece que o que se esperaria da produção plástica de um sujeito internado não seria, para Mário Pedrosa, trabalhos comparáveis aos de artistas. Nesta primeira fala aparentemente desqualifica os sujeitos. Porém, prossegue justificando tal fato com o argumento de que há nos trabalhos manifestações de impulsos interiores, e que estes existem em toda a obra ou criação, equiparando neste sentido os sujeitos internos a artistas sãos. Assim autoriza esta expressão retirando por semelhança estética a lacuna que haveria entre a produção patológica e não-patológica. Toda a produção pode ser, perene ou momentaneamente, ‘patológica’. O elemento de análise para constatação da força do trabalho foi exatamente o próprio trabalho.
• É arte independentemente do estado patológico do sujeito criador e não arte patológica (a questão da sanidade ou insanidade mental implicando ou não na possibilidade ou impossibilidade de realizar uma obra de arte). Embora não faça parte da crítica brasileira, Jean Dubuffet, artista francês que definiu o conceito de Arte Bruta, apresentará alguns argumentos que serão recorrentemente citados pela crítica brasileira. Assim, consideramos expor alguns destes discursos para me-
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lhor compreensão e contextualização do movimento na crítica nacional. Dubuffet irá comentar sobre o interesse a respeito da expressão plástica em estudo que é pejorativamente adjetivada, por outros diversos sujeitos, como patológica: “todo um domínio da instauração humana, diversificada no uso de materiais e técnicas absolutamente distintas da arte apoiada nas normas consagradas pela história da arte e monopolizadora das atenções dos museus de arte, tomava aos poucos lugar ao sol, mas não raro acoimada de ‘arte patológica.” 8
Em um outro depoimento Dubuffet pontua como absurda a diferenciação entre arte patológica ou sadia. A arte existiria independentemente da condição patológica do sujeito criador: “Quanto ao resto, e de todo modo, a noção de uma arte patológica, que se opõe a uma arte sã e lícita, parece-nos de todo sem fundamento; não somente em virtude daquilo que uma definição de normalidade apresenta de arbitrário e ocioso.” 9
Num outro trecho completa: “fazem rir as acusações feitas a algumas obras de serem demasiado imprevistas ou imaginativas e sua conseqüente relegação ao departamento de uma arte patológica. O melhor, o mais coerente, seria dizer, para terminar, que não importa onde surja, existe sempre em todos os casos patológicos.” 10
Assim, além de questionar a própria definição de normalidade, não vincula características como uma imaginatividade e imprevisibilidade exageradas, a um tipo de expressão inerente ao estado de patológico do sujeito criador, nem desqualifica por estes mesmos motivos.
É interessante perceber esta adjetivação de ‘patológico’ aderida ao trabalho plástico, pois seria de se esperar que fosse referente ao sujeito. Uma expressão nunca é em si patológica, pois a patologia não reside no trabalho, no máximo o rótulo recai sobre o sujeito criador. A utilização desta transposição quase sem ressalvas denota esta indiferenciação. Em Arte, necessidade vital, texto elaborado a partir de conferência de Mário Pedrosa, publicada por ocasião do encerramento da exposição de pintura organizada pelo Centro Psiquiátrico Nacional, sob os cuidados da Associação dos Artistas Brasileiros na ABI, em março de 1947 no Correio da Manhã, Mário Pedrosa comenta que “Normalidade e anormalidade psíquica são termos convencionais, da ciência quantitativa. Sobretudo no domínio da arte, elas deixam de ter qualquer prevalência decisiva.” 11 Somando-se à fala de Dubuffet, temos, além do questionamento de normalidade, o questionamento sobre a efetividade desta classificação do sujeito diante do seu potencial artístico, como sendo independentes e deixando de ter, neste sentido último, prevalência. No campo das artes são outras as questões de maior interesse, como a imaginação e a capacidade de apreensão e autenticidade. Considera que: “Do ponto de vista dos sentidos e da imaginação, uma criança retardada ou um adolescente mentalmente enfermo é, em geral, bastante normal; é por isso que se tornam possíveis de sua parte manifestações e realizações artísticas autênticas.” 12
Osório César também se colocará a respeito desta questão. Em 1954, citado nas crônicas de Quirino Silva e Angel Nieto Vicente, escreve:
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“É um erro classificar a obra de arte criada pelo doente mental, de arte degenerada ou patológica. Na expressão artística do doente, descortinamos um mundo calmo, ingênuo, rico de colorido, do qual a doença não participa como degenerescência. É, pois, uma clamorosa injustiça classificá-la como tal. O Panorama artístico do doente mental tem a mesma ampliação, a mesma beleza, daquele do homem chamado normal.” 13
Um outro tipo de argumentação que libera a vinculação entre doença a uma expressão indigna de ser considerada arte é o utilizado por Maria Heloisa Ferraz, em 1998, no catálogo da exposição Juquery, encontros com a Arte, no qual participou como curadora. Diz que para a mostra são selecionados os trabalhos de “vinte pacientes-artistas”14, o que implica na existência de pacientes não artistas. Ainda comenta: “Se muitos artistas modernos buscaram na expressão dos psicóticos elementos para a própria criação artística (Paul Klee, Max Ernst), e outros vislumbraram a riqueza de suas produções (Picasso, Flávio de Carvalho, Dubuffet), sem contar aqueles cujas expressões manifestam estados depressivos ou de delírio (Miro – auto retratos dos anos 30/40 – Van Gogh), por que não considerar a possibilidade de que algumas pessoas, com sofrimento mental ou não, possam ser verdadeiros artistas e suas obras representações culturais consideradas pela sociedade?” 15
A autora constrói, em relação à discussão da patologia, uma argumentação retórica: se existem sujeitos artistas que apresentaram patologias psíquicas, por que então um paciente psiquiátrico não poderia ser também um artista? Se as produções desses são consideradas pela sociedade, por que os trabalhos daqueles também não o seriam? Neste ponto quase chega a utilizar a patologia como elemento de legitimação, não fossem os comen-
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tários anteriores de que para a citada exposição foram, conforme disse, selecionados pacientes-artistas. Mas é exatamente neste momento que surge a verdadeira questão: o sujeito que seleciona os trabalhos que vão para uma exposição retém o critério do que é, dentre toda a produção analisada, considerado arte. É na seleção deste sujeito, no seu olhar, intelecto e emoções, que está embutido o que daquela diversidade deva ser visto e entendido como tal. Argumento muito parecido é encontrado no texto de Thomas Josué, pesquisador brasileiro que redigiu dissertação de Mestrado intitulada Caminhos da expressão: criação, loucura e transcendência defendida em 1997, em Porto Alegre, RS. Na sua dissertação retoma a questão levantada por Dubuffet sobre considerar sem fundamento a distinção entre uma arte patológica que se oporia a uma arte sã e lícita: “Essa afirmativa, nos faz andar, sobre caminhos insólitos acerca do que compreendemos como arte patológica e arte saudável. Leva-nos a refletir, se de fato, existe uma distinção precisa da criação plástica de um artista integrado no sistema das artes e supostamente considerado como são, e de uma artista ou produtor, à margem deste sistema denominado insano.” 16
Continua argumentando a favor de uma visão transpatológica, “dimensão criadora que não pode ser reduzida a um fenômeno de natureza meramente patológico”17, da expressão plástica. Para defender este argumento analisa os trabalhos plásticos de três pacientes por ele estudados, “ acometidos de sofrimento mental”18, no Ateliê de expressão do Serviço Municipal de Saúde Mental de Novo Hamburgo/RS, entre os anos de 1990 e 1994. Sobre as expressões plásticas em si destes pacientes, comenta que “encontramos nelas, uma complexidade formal capaz de
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estabelecer paralelos com a produção de artistas modernos contemporâneos, levandonos ao seguinte questionamento: qual das expressões plásticas é doente e qual é sã?” 19
e formal: “Esta expressão criadora do ‘louco’, nos remete a reconhecer [...] experiências de relevância expressiva, constituídas de estruturas formais de qualidade incontestável.” 21
O fato de serem parecidas com obras de artistas modernos implica em dois desdobramentos cabíveis neste raciocínio. Ou os pacientes fizeram arte e não são loucos, ou os artistas têm um quê de loucura. No texto apresentado anteriormente, já temos a fala de Dubuffet questionando a questão da normalidade ou sanidade e desvinculando esta como não-condição no sujeito criador. Mas, e a outra questão, o paciente deixaria de ser louco, de ter esta experiência no seu repertório pessoal, apenas por apresentar um trabalho semelhante a uma obra modernista? Há a fragilização do argumento da complexidade formal dos trabalhos quando Silva coloca a produção plástica do paciente psiquiátrico em semelhança, ou em função, da sanidade ou não de outros artistas. O elemento caracterizador dos trabalhos como arte não seria nem a questão da sanidade, nem a semelhança entre as obras de pacientes e artistas do sistema erudito de arte. A questão central seria, na verdade o elemento formal destes trabalhos.
O crítico de arte, Agnaldo Farias, em entrevista por nós realizada em 2004, referese a esta questão da importância do elemento sanidade e insanidade no campo da arte, referindo-se ao trabalho de Arthur Bispo do Rosário:
“Se dirigirmos a questão, sob a ótica formal, pouco restará do patológico como argumento sustentável diante de criações elaboradas por indivíduos denominados de ‘loucos’, que representam qualidades formais comparáveis às produções dos artistas da oficialidade...” 20
Novamente afere-se à obra uma força plástica passível de ser apreendida por uma análise formalista, mas o autor peca novamente ao vincular este fato à semelhança a outros trabalhos aceitos no sistema erudito da arte.
“E ficou difícil você marcar a linha de quem é louco e quem não é. Mesmo porque até aonde isto interessa para justificar ou não a qualidade de um trabalho. O trabalho dele é bom porque em razão de suas particularidades. O fato dele ser louco fala-nos da condição psíquica dele, um problema que ele tinha e que, ainda que marque profundamente o trabalho, não deve ser tido na conta de algo que rebaixa seus predicados estéticos.”
Neste sentido, a questão da loucura passa a ser vista como uma contingência da história do sujeito criador. Assim, dentro do critério analisado referente à patologia do sujeito criador é possível identificar, ao longo tempo, uma significativa mudança de argumentos, passando a ser, o estado patológico, de claramente limitador de qualquer possibilidade artística para uma contingência de sujeitos que possuem em suas vidas a história da patologia. Esta argumentação de forma intensa se relacionará com outros critérios de legitimação identificados, como a questão da subjetividade e do inconsciente, a questão da intenção de se estar fazendo arte e aos critérios advindos de características intrínsecas destes trabalhos, como se pode identificar na íntegra desta pesquisa.
Neste outro trecho, sim, há a valorização do trabalho pelo seu conteúdo expressivo
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Tatiana Fecchio Gonçalves, Mestre e Doutoranda em Artes pelo Instituto de Artes – UNICAMP. Especialista em Arteterapia FCM/UNICAMP, Coordenadora do Curso de Extensão Lato Sensu em Arteterapia da Universidade São Marcos/ Campus Paulínia e São Paulo, licenciada em Educação Artística/UNICAMP. E-mail: tati_goncalves@uol.com.br O presente trabalho faz parte dos resultados obtidos na realização da Dissertação de Mestrado ‘A Legitimação de Trabalhos Plásticos de Pacientes Psiquiátricos: Eixo Rio-São Paulo’/ UNICAMP 2004. Orientadora: Profa. Dra. Lúcia Reily, docente credenciada junto ao Programa de Pós-Graduação em Artes do Instituto de Artes – UNICAMP. Arte-Educadora e Doutora em Psicologia. Docente junto a FCM – Faculdade de Ciências Médicas – UNICAMP. E-mail: lureily@terra.com.br
Referências Bibliográficas
ARANTES, O. B. F. (org.). PEDROSA, Mário. Forma e Percepção Estética. São Paulo: EDUSP, 1996. CAMPOFIORITO, Q. “A arte dos Esquizofrênicos”. In: FRAYZEPEREIRA, João A. Olho D’água arte e loucura em exposição. São Paulo: Escuta, 1995. Publicado originalmente na imprensa em O Jornal, 22 de dezembro de 1949. CESAR, Osório. A Expressão Artística nos Alienados: Contribuição para os estudos dos Symbolos na Arte. São Paulo: Officinas Graphicas do Hospital de Juqyeri, 1929. FERRAZ, Maria Heloisa Corrêa de Toledo. Arte e loucura limites do imprevisível. São Paulo: Lemos, 1998. FERRAZ, Maria Heloisa de Toledo (curadora), Catálogo Juquery, encontros com a arte – Juquery Cem Anos, São Paulo, 1989. FRAYZE-PEREIRA, João A. Olho D’água arte e loucura em exposição. São Paulo: Escuta, 1995.
Notas
PEDROSA, Mário. Arte, forma e personalidade. São Paulo: Kaiós, 1979.
1. Para acesso aos demais Critérios acessar SBU Unicamp, http://libdigi.unicamp.br/document/?code=vtls000343472
ZANINI, Walter (curador Geral). Catálogo Arte incomum - XVI Bienal de São Paulo, Fundação Bienal São Paulo, Catálogo Outubro/Dezembro, Volume III. São Paulo: FUNARTE, 1981.
2. FRAYZE-PEREIRA,1995, p. 39. 3. CAMPOFIORITO, p. 7. 4. Idem. 5. Ibidem. 6. Ibidem, p. 9. 7. PEDROSA, 1979, p. 106. 8. ZANINI, 1981, p. 7. 9. Idem, p. 34. 10. Ibidem, p. 35. 11. ARANTES, 1996, p. 54. 12. Idem. 13. FERRAZ, 1998, p. 13. 14. FERRAZ, 1989, p. 8. 15. Idem, p. 9. 16. SILVA, 1997, p. 102. 17. Idem. 18. Ibidem, p. 12. 19. Ibidem, p. 103. 20. Ibidem, p. 112. 21. Ibidem, p. 118.
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Corpos em Trânsito: um relato intercultural através da análise Laban em Movimento Ciane Fernandes Resumo: Através de uma análise dinâmica, o artigo conecta espetáculos, apresentações musicais, exposições, arquitetura, cinema, publicidade, aulas de dança e o cotidiano (trânsito, transporte, supermercado, idiomas, etc.) em uma metrópole multicultural (Berlim). O Sistema Laban/Bartenieff atravessa todas estas instâncias, impregnando o discurso escrito com a natureza interrelacional do movimento corporal, presente tanto nas diferentes tradições culturais quanto na contemporaneidade cênica e cotidiana.
ACERTOU!!! A divindade indiana da dança é SHIVA (Fig. 1). Você acaba de ganhar dois ingressos para assistir ao espetáculo de dança clássica Indiana que vai acontecer hoje à noite no Staatliche Museen-Dahlem, aqui em Berlim. Parece que cada movimento significa alguma coisa. Mesmo que você não entenda nada, não faz mal: é beleza pura! (Estação de Rádio Multikulti, Berlim, novembro de 2001)
Fig. 1: Shiva.
04 de setembro. “Ick liebe dir fuer sempre” (“Eu te amo para sempre,” misturando alemão berlinense e português) está pintado em letras garrafais em um viaduto caindo aos pedaços na Rua York de Berlim. Uma peruana me ajuda a encontrar a estação de metrô. Uma chilena me ajuda a comprar o bilhete. Uma colombiana me ajuda a achar o caminho da estação até o Instituto. Um venezuelano é meu colega de carteira durante quarto horas de aula de alemão. O almoço é em companhia de outro colega de classe, um mexicano. An Englishman in New York, An American in Paris, e apenas mais uma latina em Berlim. No Brasil, nossas temperaturas estáveis não permitem a queda das folhas no outono, mas não têm ajudado nossa economia. “Você está sempre andando e caindo. A cada passo, você cai para frente um pouco”, canta Laurie Anderson em seu show esgotado na Hochschule der Kuenste dia 18 de outubro. Junto com outros fãs, pude escutar parte do show pelos autofalantes do saguão, antes que os seguranças nos mandassem embora. Enquanto a temperatura cai drasticamente durante a noite, Berlim vai ficando coberta de folhas laranjadas. Meus 45
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dedos azulados se aquecem fazendo mudras indianos neste cenário de Barba Azul de Pina Bausch (Fig. 2).
Fig. 3.
Fig. 2: foto de Francesco Carbone.
Meus cabelos brancos eu venho tingindo de henna Indiana. Corra Lola (e Ciane) Corra. 15 de setembro. “Zug nach Rathaus Steglitz: Einsteigen bitte!” (“Metrô para Rathaus Steglitz: Entre, por favor!”). Ao meio-dia de sábado, as pessoas andam pelas ruas de bicicleta ao imponente som de vários sinos de igrejas, sobreposto ao de um helicóptero. Talvez como boa brasileira, estou atrasada para minha aula de dança clássica sul-indiana no sudoeste berlinense. Segundo minha mestra de Bharatanatyam , Rajyashree Ramesh (Fig. 3), a pelvis é o centro de energia para todo e qualquer movimento, por isso devemos mantê-la perfeitamente imóvel ao dançarmos. Pela mesmíssima razão, nós brasileiros movemos principalmente a pelvis, e o resto do corpo segue. Como na Rotação Gradual, um dos Princípios Corporais do Sistema Laban/Bartenieff, as pernas em Bharatana-
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tyam movem-se a partir de uma rotação profunda na coxo-femural, ao invés de simplesmente flexionando os joelhos. Em direção à boquinha da garrafa, na dança de rua da Bahia, a pélvis desce mais e mais fundo para o chão. Na dança indiana clássica, ela permanence estável, mas a imagem usada é a de que afunda também. E Ramesh fala com veemência enquanto suamos muito: “Tiefer, tiefer gehen!” (“Mais fundo, vão mais fundo!”) E é justamente esta imagem de enraizamento, com o cóccix caindo para baixo enquanto a cabeça cai para cima (Laban/Bartenieff) que permite a estabilização da pélvis enquanto alternamos com rapidez os movimentos de uma perna e outra. Sino alemão, quadril brasileiro, ritmo indiano: “Tah tai taaaahm – pausa. Tah tai taaaahm – Knie beugen (joelhos flexionados), Fuss hoch (pés altos), Ellbogen hoch (cotovelos altos), Armen fest (braços firmes)”!!! “Jetzt machen wir die Nattadavu, Hände im Tripataka (Agora fazemos o exercício Nattadavu, gesto das mãos: Tripataka)”. Bharatanatyam e alemão têm algo em comum: no começo do primeiro semestre, a
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sala é cheia de alunos, que vão saindo gradualmente até o final do semestre, e a cada semestre o número de estudantes é tão menor que mal se consegue juntar uma turma. A conexão entre sânscrito e alemão, que acontece alí a cada aula, é um bom exercício para minha comunicação nada-verbal. Este é um truque para tornar alemão um idioma fácil e familiar: encontrar algo ainda mais estranho e distante, que reforce a estética da forma pura, puríssima. 15:00hs. Enquanto almoço em um restaurante iraniano, repasso na memória cada exercício da aula de dança indiana, agora sob o pomposo fundo musical do Bolero de Ravel. O suco de laranja feito na hora finalmente me faz sentir em casa. O climax do Bolero acontece quando um iraniano me pergunta algo em alemão, e eu o olho com a expressão facial n. 4 de Bharatanatyam (Adbhutha: admiração). Enquanto minhas mãos seguram os talheres com cuidado no gesto indiano Kataka-mukha, sinto falta de um pouco de significado centroamericano: onde estaria o “avocado”? Meu experimento mais recente é encaixar passos de dança clássica Indiana no ritmo da salsa. Isso já tinha dado certo no samba, numa festa brasileira no bairro internacional de Kreuzberg: Em uma organização corporal homóloga (superior/inferior), dancei samba da cintura para baixo, enquanto realizava movimentos de dança indiana com a parte de cima do corpo. Isto produziu algumas faces n. 4, e outras n. 9 (Shantam / tranquilidade), ou melhor, inexpressivas mesmo. Tenho reparado o talento norte-europeu para esta face (ainda) não classificada no repertório indiano, e que é quase impossível para mim. O efeito interessante de uma festa brasileira aqui fora é a mistura de duas tendências: brasileiros subitamente tão orgulhosos de saber sambar “perfeitamente”, e não-brasileiros interpretando este ritmo, vibrando diferentes partes do corpo em algo que poderíamos chamar de “cen-
tro” difuso de energia. Ou seja, estrangeiros se sentem “nativos”, e “nativos” europeus se sentem estrangeiros no seu próprio país. Demorei um ano, quando morei em Nova York nos anos de 1990, para aprender o ritmo da salsa sem cair no ritmo do samba. Agora, graças ao ritmo sincopado da salsa, espero conseguir aprender com os indianos. Além disso, tenho conseguido aumentar minha difícil sensação de enraizamento através dos tão famosos sapatos ortopédicos alemães, que fazem mais sucesso no Brasil, onde custam uma fortuna e servem de modelo para outros mais acessíveis e bem mais elegantes. Após dez anos de ajuda desta fábrica alemã de sapato, posso bater com mais força no chão, usando toda a sola dos pés e criando sons, como exigido em Bharatanatyam. Esta foi a contribuição alemã para meus esforços contemporâneos em aprender a tradição indiana. Pelo pouco que sei de alemão, parece que sempre temos que pensar se uma frase se refere a algo estável (acontecendo em um lugar específico) ou a algo dinâmico (indo para algum lugar). Porisso, ao construir uma frase, sempre nos perguntamos “wo” (“onde” – caso estável, dativo) ou “wohin” (“para onde” – caso dinâmico, acusativo), antes que façamos qualquer conjugação de artigos, pronomes, nomes, enfim, antes que ousemos abrir a boca e cometer erros inevitáveis. Como posso dividir minha compreensão em “movimento” e “nãomovimento” se, segundo Rudolf von Laban, ambos estão sempre presentes em todos os lugares e coisas?! E como posso, como uma (ainda) boa brasileira, deixar o verbo, a ação, para o final da minha frase, da minha linha (tridimensional) de pensamento, como se faz em alemão?! Brasileiros não poderiam nunca fazer isso, porque a regra é ser interrompido antes de terminar a frase, como um bom sinal de interação. Se queremos nos comunicar verbalmente, a última coisa que faremos é 47
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deixar o mais importante para o final!! Além disso, prefiro que a forma gere o significado, e não o contrário. Eu penso ao mesmo tempo – e talvez até depois – de falar. É impossível organizar todas as declinações de uma frase conforme algo que vem depois de tudo!! Sábado à noite, Rádio Multikulti. Estou ligada nas Drogas Genéticas, programa com duas horas de música techno indiana, como se Gandhi de repente fosse DJ de música eletrônica. “Takajini Takajani Takajunu Tarakthaka Taraktum Taka... tu tchi tum tu tchi tum...” Na festa de abertura do Festival Ásio-Pacífico, um DJ mistura música de ciganos da Índia e do Oriente Médio com sons eletrônicos, enquanto um video mostra a vida cotidiana daqueles povos, limpando animais domesticados, cozinhando e dançando numa paisagem seca e quente. Na pista de dança, rasta-faris loiros, vestidos com várias camadas de roupas de inverno coloridas e soltas, dançam com movimentos fragmentados e simultâneos de diferentes partes do corpo. Em um clube techno, numa pequena sala no subsolo, de teto baixo e luz cor-de-rosa cintilante, garotos performam movimentos (propositalmente?) descoordenados, com o tal difuso “centro” de energia, ao som ensurdecedor de batidas eletrônicas. Três pessoas japonesas me chamam para ir para um clube de salsa, e se intimidam com meus beijinhos em suas bochechas solitárias. A Cinesfera brasileira é ainda menor que essa salinha no subsolo, ou que aquelas câmeras japonesas alugadas para dormir por algumas horas, onde só cabe uma pessoa deitada. 08 de novembro. Congresso de Dança na Akademie der Kuenste. Gabriele Wittmann apresenta sua palestra intitulada: Dançar Não é Escrever. Completemos esta idéia inicial: Dançar não é apenas escrever, uma vez que também é compreender, caminhar, conversar, assistir, analisar, e ler. Com qual olho, preferencialmente, você está lendo essas palavras? Em outra aula de Bharatanatyam num sába48
do, fazemos o que poderia ser chamado de Escalas Espaciais Laban com os olhos. Com o corpo na posição Sthanaka (pernas juntas e retas, pés paralelos, mãos na cintura, pescoço longo), movemos os olhos para o alto, para o centro (olhando para frente), para baixo, de volta ao centro, para a esquerda, centro, para a direita, e para o centro (Escala Dimensional do Octaedro); depois para a direita alta, para a esquerda baixa, para a esquerda alta, para a direita baixa, e de volta ao centro (Plano Vertical do Icosaedro). Só então percebi quão pouco uso meu olho esquerdo. Em Rainbow Melodies ( Melodias de Arco-Íris), no Staatliche Museen-Dahlem, a mestra Rajyashree Ramesh e suas dançarinas (em sua maioria não-indianas) flutuam pelo espaço com perfeição rítmica em delicadas nuances faciais e gestos manuais. A obra de dança clássica indiana conecta as notas da música clássica indiana a divindades hindús à estória de cada planeta do sistema solar, interagindo com imagens abstratas projetadas em todo o espaço do teatro, visíveis principalmente no palco. Como na Harmonia Espacial de Laban, percursos conectam o micro e o macrocosmo, desde a relação entre composições bioquímicas até o espaço tridimensional ao redor do corpo e os planetas. Em perfeita técnica indiana clássica, Rajyashree Ramesh descreve Escalas Circulares completas (escalas do Icosaedro semelhantes aos anéis de Saturno, mas ao redor do corpo), ou desliza de modo surpreendente ao longo de uma das diagonais do Cubo, descendo até sua direitaembaixo-atrás. E como já havia me avisado o locutor da rádio Multikulti, a empatia com que Ramesh descreve personagens e estórias cativa a mim e a tantos outros espectadores, talvez ainda mais estrangeiros. Segunda-feira, 17:00hs. Eu perco o trem de propósito e fico olhando para o alto, admirando os 180 graus de arco-íris na estação Savigny-platz, enquanto outros correm
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olhando para a frente. “Zug nach Flughafen Berlin-Schoenefeld: Zurueckbleiben, bitte!” (“Trem para o aeroporto Berlim-Schoenefeld: Por favor, mantenha distância!”). Em outro trem, continuo minha observação em movimento. Os olhos das pessoas fazem a dança do medo, evitando-se reciprocamente enquanto dois músicos sobrepõem seus sons aos dos anúncios mecânicos: “Próxima estação: Lehrter Stadtbahnhof,” próxima ao centro político da cidade. O trem flutua sobre uma Berlim desconstruída, com seus cabos expostos e blocos de cimento concreto da mesma cor do céu. Márcia Strazzacappa certa vez me contou que decidiu voltar da França para o Brasil quando sua filha, de três anos, apontou uma blusa cinza na vitrine e disse: “Mamãe, quero aquela cor-de-céu”.
guranças fecharam todas as possibilidades de se atravessar de um lado para outro do portão, e fiquei presa do lado ocidental (justo eu que adoro o oriente). Enquanto um coral afro-americano cantava um blues num pequeno palco à frente, à minha esquerda cinco operários trabalhavam numa construção subterrânea, numa perfeita forma de dança funcional, e maquinárias gigantes flutuavam distantes no céu (Fig. 5).
Os prédios caem, as folhas caem, pessoas caem, mas o muro (entre as pessoas) ainda está esperando por uma declinação gramatical mais acusativa, dinâmica. Fig. 5.
O Portão de Brandenburgo tem estado coberto desde que cheguei aqui, no começo de setembro. No plástico enorme, vemos impressa a imagem do portão com um clima de eterno verão, com dois turistas posando à frente com suas mochilas.
Fig. 4.
Em meados de setembro, muita gente se juntou no Portão de Brandenburgo (Fig. 4), em uma demonstração contra a palavra mais falada no rádio: terrorismo (um exercício constante em poesia minimalista e a única parte compreensível de reportagens alemãs, croatas, turcas, húngaras, russas, chinesas, e outras ainda piores que Labanotação). Se-
É interessante comparar os supermercados em diferentes regiões da cidade. Cada um tem produtos, preços e organização completamente diferentes dos outros. O excesso de quantidade de carne de porco provoca minha face n. 7 (Bibatsia / nojo), desafiada pela peça Gelage fuer Langschweine (Festa para um Grande Porco), direção de Helena Waldmann, apresentada no Podewill em meados de Novembro. Guiados por dois estrangeiros, entramos no palco após caminharmos por cada passagem e escada do prédio, com pouquíssima luz, casualmente assistindo à paisagem de prédios em desconstrução pelas janelas. No palco, tiramos nossos casa49
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cos de inverno e deslizamos em cadeiras rolantes até a platéia, que de fato é organizada conforme um grande banquete. Sentamos ao redor de duas mesas longas, ao lado de desconhecidos que, durante a performance, serão colegas de jantar.
dente e oriente. Representando os EUA e Europa está a loiríssima Elke Czischek falando de modo bem sexy, especialmente ao produzir sons de porco. Já Adnan Maral, com seu estereótipo terrorista, representa os estrangeiros imigrantes, e atua com total carisma.
Nos supermercados, desconhecidos passam rápida e diretamente por mim, empurrando seus carrinhos, enquanto eu fico ali horas a fio, tentando entender os ingredientes de uma variedade imensa de produtos, sem dicionário. Existe até um creme de chocolate e nozes para passar no pão, chamado “Samba”. Tento inutilmente cheirar ou apertar o que não consigo entender (quase tudo), mas as embalagens impecavelmente impermeáveis são como o plástico ao redor do Portão de Brandenburgo, ou como as intermináveis camadas de roupas que temos que usar e ainda assim congelamos como carne de porco.
No natal berlinense, Papai Noel também é um estrangeiro. Mas primeiro ele tem que mostrar seu visto e passar num teste de alemão. Tempos difíceis!! Todos os anos, em dezembro, uma empresa contrata Papai Noéis para entregarem presentes nos endereços de seus clientes. É um free-lancer que rende algum dinheiro para os estrangeiros, especialmente os estudantes. Afinal, quem é que quer andar pelo frio entregando pacotes para desconhecidos?! Que decepção: Papai Noel não é de verdade! E, de repente, uma surpresa (literalmente) grande: o Grande Porco, esquecido na escura parte do palco durante nosso banquete terrorista não é parte do cenário, ele é real!! Tentando escapar do insistente cameraman, nosso big star – no caso, pig star – gira vagarosamente e nos mostra a parte posterior de seu “centro” de energia pélvica. Como ele, a diretora Helena Waldmann e vários dos meus novos amigos (colegas de banquete) também vão virar de costas em breve e fugir do frio, indo para o tal sonho paradisíaco, a saber: a Bahia.
Num contraste coreográfico, corpos nús são insistentemente expostos em imensos posters, às vezes giratórios ou ambulantes, por toda a cidade, em prédios, caminhões, outdoors e, obviamente, estações de metrô. Esta pop arte de mercado de carne também é comum no Brasil, mas se derrete no contexto de peles reais super expostas. Além disso, as partes enfatizadas são diferentes, coerentes com os respectivos centros de energia (“pélvico” no Brasil e “difuso” na Alemanha). Curiosamente, os tempêros nos supermercados são organizados de acordo com a origem: francês, chinês, indiano, grego, mexicano, italiano. Os estrangeiros gerenciam a maioria dos restaurantes, e podemos assistir àquelas mãos ágeis preparando comidas exóticas que dominam outras nacionalidades economicamente dominantes em suas entranhas. Esta luta de poder é um dos jogos sutis de Langschweine. Comemos carne de porco e bebemos água mineral enquanto assistimos a imagens cliché de uma ilha paradisíaca, e um casal representa uma disputa entre oci50
“Naechste Station: Amrumer Strasse” (“Próxima estação: Rua Amrumer”). Caminho até a Auslaender-Behoerde, um prédio que mais parece uma grande caixa cinza como uma prisão em uma paisagem gélida. Ali, estrangeiros recebem seus vistos para ficar na Alemanha, ou uma notificação para deixarem o país em 24 horas. Também somos avisados em cima da hora de que temos que deixar o quarto que alugamos. Morei em quatro lugares diferentes em duas semanas, carregando malas e sacolas entre baldeações intermináveis de metrô e prédios em eterna reconstrução e renovação.
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Dança (e turismo) funcional: procurar apartamentos por toda a cidade me ajudou a compreender as intersecções entre diferentes linhas de metrô, multicoloridas como as peles das incontáveis pessoas que passam de um lado para outro nessa cidade subterrânea. Em um clube africano sexta-feira à noite, todos os casais são de estrangeiros negros e nativos brancos; mais ou menos como no carnaval baiano, mas na composição oposta (estrangeiros brancos e nativos negros). “No pensamento indiano, nada nunca é totalmente branco ou preto, sim ou não”, diz Ramesh abrindo um sorriso sutil (face n.1: Shringara / amor) e balançando sua cabeça levemente em um gesto indecifrável entre sim e não. Resistência brasileira: Não posso nunca respeitar o sinal de tráfego ao atravessar a rua, e acabo cometendo infração de pedestre e provocando faces n. 8 – Raudra / Raiva.
ções são particularmente atraentes e me ajudam a conectar essas peças de dança estrangeira. Berlim é uma corrente significante subterrânea: pessoas de diferentes raças, roupas, costumes, alfabetos, idiomas, entrelaçando-se como gens ao longo de túneis e escadas abaixo de ruas ordenadas e frias. Este cenário inspirou-me a criar o solo Uebergang – Una Latina en Berlin (2002), onde sobreponho gestos, figurinos, idiomas e imagens de vários locais e culturas (Fig. 6). A obra de dança-teatro foi apresentada também em espaços públicos, como no andar subterrâneo do Mercado Modelo de Salvador (Fig. 7).
Minha palavra favorita em alemão é “Uebergang” (transferência, transição, baldeação) e “uebersetzen” (traduzir; literalmente: sentar por cima). As preposições e conjun-
Fig. 7: foto de Marcos MC.
Fig. 6: foto de Artur Ikishima.
Mapas genético-geográficos: Meu SelfUnfound (Ser-NãoEncontrado) procura pelo Self-Unfinished (Self-Inacabado) do coreógrafo francês Xavier Le Roy, numa vila chamada Braunschweig. Por cerca de uma hora, este Ph.D. em biologia molecular desfaz e refaz o tempo e o corpo em detalhes microscópicos sob lentes macroscópicas. 51
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Meu mapa de Berlim está cansado de ser dobrado e redobrado e reaberto o dia todo, e rasgou em dois pedaços: Não mais ocidente e oriente (estes já estão integrados no meu corpo de conhecimento Laban- Bharatanatyam), mas norte e sul – duas cidades, acima e abaixo do chão; dois corpos, acima e abaixo da pélvis; dois horários e estações distintas, acima e abaixo do equador. Penso no calor que deve estar fazendo na Bahia enquanto ando (supostamente sendo carregada, mas de fato) carregando pesadas botas impermeáveis para a neve. Em uma das aulas de canto clássico indiano, praticamos o Jantai Varisaigal com notas duplas: “Na filosofia Indiana, tudo vem em pares, até mesmo as células”, diz Rajyashree Ramesh. Enquanto praticamos o estável ciclo rítmico Aditala (8 tempos) com nossa mão direita, ela nos pergunta sobre passos de Bharatanatyam, e nós tentamos não mudar o ritmo básico (tala). Fala e gesto, pensamento e movimento, não são uma coisa só, mas não são separados: são ações simultâneas, autônomas e independentes. No Altes Museum, esculturas chinesas do Buda do século VI estão expostas sem algumas partes de seus corpos – dedos, pernas, braços, cabeças (Fig. 8). Desafiando a gramática e a arquitetura alemãs, aqui se mostra o movimento do não-movimento, a perfeição da imperfeição: em um prédio clássico e pomposo, ideogramas mutilados fazem mudras variados e misteriosos para corpos em trânsito também estrangeiros e fragmentados. Um Buda sem a cabeça me esclarece a dificuldade de minha face n. 9 (Shantam / tranquilidade): “Der Kopf ist verloren” (“a cabeça está perdida”) avisa a legenda ao pé da estátua. No vôo para o Rio de Janeiro, uma das imagens projetadas do Brasil enfatiza apenas o torso e topo das pernas de uma mulher de biquini. Uma legenda redundante diria “Algo além da cabeça está perdido”. No coração de Berlim, entre 52
Fig. 8.
as estações Zoologischer Garten e Tiergarten, podemos ver a imagem das Asas do Desejo da Siegessaeule (Fig. 9).
Fig. 9: foto de Euler Paixão
No topo deste mo(nu)mento, flutuamos ao centro do cruzamento de cinco avenidas, como no encontro de cinco arestas numa das esquinas do Icosaedro nas Escalas de Laban (Fig. 10).
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Fig. 10.
04 de fevereiro. “Flug nach Salvador da Bahia” (“Vôo para Salvador da Bahia”): apaguem seus cigarros e não prestem atenção na posição das cadeiras, pois não irão conseguir sentar em pleno carnaval. A cidade está tão cheia de estrangeiros que sou apenas mais um Estranho no Ninho. No carnaval brasileiro, como na última cena de Langschweine, sons cada vez mais fortes de gargalhadas contaminam a platéia participante em faces n. 5 (Hasia / Risada). Da Ásia até a América do Sul, através da Europa e África, a dança-teatro recompõe uma passarela “co-movente” de diferenças em destaque.
Ciane Fernandes, Professora do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da Universidade Federal da Bahia UFBA; pesquisadora associada do Laban/Bartenieff Institute of Movement Studies. PhD em Artes e Humanidades para Intérpretes das Artes Cênicas pela New York University. E-mail: cianef@gmail.com
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O Contorno e a Criação: uma questão metodológica para a pesquisa em dança Flávio Soares Alves Marília Vieira Soares Resumo: Toda pesquisa é um esforço duplo: ao mesmo tempo em que se abre às relações de investigação – dando ânimo ao estímulo motivador da pesquisa – é também o esforço em dar contorno a experiência, como prerrogativa metodológica. Assim a pesquisa é, ao mesmo tempo contorno e criação. Todavia, a análise dicotômica vicia nosso olhar, na medida em que prioriza o investimento analítico, como recurso para a prelazia da síntese. A experiência do corpo, no entanto, não se dobra a falácia da síntese, pois é uma experiência dinâmica. Surge aí o engodo sobre o qual todo pesquisador deve se defrontar para dar curso aos rumos de pesquisa. Para tanto, é preciso ver nas entrelinhas da investigação e encontrar o corpo e não o que dele se especula. Eis aí o campo onde reina a pesquisa em dança, trabalho este derivado da dissertação de Mestrado do autor.
Introdução Quando o corpo dança e se entrega à plenitude desta experiência, é como se o movimento corporal entrasse em ebulição. O fervor, borbulhando por entre a combinação de movimentos desperta no corpo sensações inefáveis que arrebatam a ação motora, dandolhe luminosidade. Aberto a esta intensidade, lá onde era no instante mesmo, e que é, aqui, só opaca lembrança do que foi, não me encontrei em mim, mas num estado alterado da percepção, no qual estranhava a mim mesmo, seduzido por este estranho desconhecido em mim. Como, senão nesta estranha agitação, poderia experimentar novas maneiras de ser e de reinventar o corpo? A dança é o processo desta agitação. É deveras equívoco pensar nesta atuação, se considerarmos a lógica do sujeito unificado, senhor no comando do pensamento e
da ação, que nos foi herdada pelo cartesianismo, mas a experiência insiste em apontar esta atuação outra, forjada. Quando, por exemplo, somos chamados a expressar verbalmente o que sentimos na atuação da dança, falam mais nossos olhos reticentes e nossas interjeições vacilantes do que nossas proposições mais eloqüentes. Que efeitos são estes que nos acometem de tal modo que confundem a voz da razão? A dança nos embevedece... Quem dança mesmo? Questão capciosa acomete o sujeito ávido pela unidade do saber e pela providência de conhecimento. Todavia, a solução deste questionamento é deveras insolúvel, quando na efusão da dança, o corpo atua na suspensão do sujeito cartesiano, portanto, fora do alcance de sua manipulação analítica.
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Pode parecer insensato tomar como insolúvel, assim de pronto, a questão que deu origem a este trabalho. A precoce conclusão, porém, tem o propósito de amainar, desde já, minhas expectativas mais otimistas, quanto à satisfação daquele que em mim indaga. Afinal, quem indaga em mim senão eu mesmo? Se esta questão surgiu em mim, e tenho certeza de que sou eu mesmo, então há uma injunção aí, que fratura a certeza do eu, visto que, algo foge a este contorno afirmativo que define o sujeito, e insiste em retornar questionando a si próprio. Revela-se aqui o engodo que resume o sujeito a seus próprios limites, para garantir a certeza de ser, e que mantém o questionamento deste contorno, apontandoo como arbitrário – daí a impossibilidade de dissolver a questão. Eis o âmago deste trabalho: verificar o contorno que tenta dar conta da experiência do corpo, tomando-o como um esforço especulativo produzido sob a perspectiva racional, que suspende a experiência, tomandoa como objeto. Sob esta perspectiva dicotômica, lá onde a razão não alcança, reina intocável, a experiência em si. É aí que o corpo se encontra em meio à espontaneidade e a criação. É aí, portanto, que reina o universo da dança. O artista e o espectador percebem este momento no ato em que a dança está sendo, já para o pesquisador – quando imerso numa perspectiva epistemológica – resta trabalhar com os indícios de uma experiência primeira que, fatalmente cai nas rédeas da percepção racional. Todavia, não antes de deixar seu brilho, seu arrebatamento. Como encarar este furtivo campo de verificação sem cair nas querelas da análise determinista e sistêmica? Este texto quer mostrar uma possibilidade – dentre as infinitas ainda não desbravadas – para se alcançar este estranho universo de verificação.
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O Contorno O pensamento ocidental distorceu a visão do corpo, interpretando-o num mal-entendido que esconde a índole corporal sob um disparate metafísico mais preocupado com sintomas de determinados corpos, do que com o valor existencial destes corpos. Esta visão sobre o corpo tem origem na concepção do corpo platônico, na qual, há uma distinção entre corpo e alma, como requisito necessário para que haja pensamento. O corpo é visto como um estorvo para a prática do pensamento. Desta forma, o pensamento deve ser deliberadamente estruturado, para que a razão possa alçar seus domínios sobre as vontades individuais, controlando-as.1 Assim, o corpo é visto destituído de sua potencialidade afirmativa, pois sobre sua vontade individual, pesa uma vontade reguladora que reduz a experiência a uma ilusão. O homem pensa sua condição de ser nos domínios desta ilusão e, através deste ponto de vista, convenciona a verdade do ser: só ser na consciência do pensamento. A consciência é a faculdade do saber e do entendimento, na qual se assenta o conhecimento. Ela organiza o pensamento fazendoo operar em detrimento das vontades individuais. Assim, é possível instalar no corpo um pensamento que o toma como mero operador de funções não próprias do corpo, mas nele instaladas, como se os sentidos da existência pudessem se resumir à ação de um corpo operacional alienado de si mesmo. O corpo assim verificado se resume a uma máquina. Foi René Descartes (15961650) quem estendeu a concepção mecânica de universo físico, de Galileu Galilei, para o comportamento humano, instalando sobre o corpo, a figura do sujeito universal. Descartes
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enquadra a dualismo platônico sob as rédeas da ciência moderna, distinguindo corpo – objeto da natureza (res extensa) – e uma substância imaterial da mente pensante que anima o sujeito. A mente, segundo Descartes é “sinônimo de consciência, de alma e definidora do eu, dá expressão à essência humana, da qual o corpo está ‘excluído’.” 2 Estendendo sua concepção de sujeito para o âmbito das ciências, Descartes indaga sobre o que é possível saber, uma vez instalada definitivamente a fratura cartesiana na ótica do pensamento. Assim, distingue-se o possível saber – circunscrito no limites da representação – do que não se pode reduzir no campo do conhecimento.3 Esta distinção considera o saber na existência de um Eu unívoco que sabe que é no movimento do pensamento: “Penso, logo existo”, a partir daí, Descartes pergunta sobre os limites deste sujeito do saber, segregado de plena sabedoria, pois o pensamento racional não alcança o que a ele se mostra equívoco, indeterminado e que, por isto, é posto fora de qualquer discussão racional.4 A existência de uma alteridade no “Eu” que constitui, neste “Eu” mesmo, um “Tu” fraturado, em oposição à univocidade do “Eu” é uma exigência cartesiana: o sujeito deve saber que não compreende a infinitude – resguardada na segunda pessoa deste “Eu” fraturado – para poder ser um sujeito do saber. Assim, é possível lidar com as funções que operam na faculdade do entendimento, convencionandose que não existe entre elas uma indeterminação. O conhecimento se depara com sua própria finitude, pois verifica que os saberes podem até convergir, mas somados não são mais, se não outra coisa, neste mesmo campo onde é possível saber. Neste sistema a faculdade do entendimento humano convenciona a verdade universal, numa circunscrição que
se fecha em si mesma para garantir sua univocidade. Descartando qualquer equívoco, o homem estrutura logicamente suas bases do saber, e sobre elas edifica um pensamento que se instala no sujeito para tentar subjugá-lo, aos toques imperativos desta suprema ilusão do pensamento desencarnado. Trilhas para se encontrar a criação A noção de subjetividade humana legada pelo cogito cartesiano dominou o pensamento ocidental e atravessou ilesa e soberana por alguns séculos. A identidade do sujeito racional fundou a modernidade científica e filosófica e esteve subjacente, até recentemente, as principais teorias sociais e políticas ocidentais. “É ele, ainda, que está no centro da própria idéia moderna de educação.” 5 Entretanto, desde o final do século XIX, esta primazia passou a ser sumariamente questionada. Nas diversas áreas da humanidade e das ciências, alardeia-se à morte do sujeito universal.6 A subjetividade humana tornou-se uma construção em ruínas.7 Anunciando esta demolição, surge Carl Marx sob a égide da humanização, pela urgência do desalojamento do cogito cartesiano. Marx descreve a trajetória histórica, na qual o homem foi gradativamente se separando das condições objetivas de trabalho – aquelas que satisfaziam diretamente as vontades do corpo. Neste percurso, o homem teve que renunciar a seus desejos, em função da reprodução do capital, assim ele alienou-se de seu próprio corpo, para dar conta de uma vida social que fazia dele mais um, agregado a um organismo maior que o subjugava. A noção de homem foi se tornando genérica, desumana. Com isto, do corpo, só importa o que dele se faz função.
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Todavia, o homem forja vida em meio a esta “imposição de vida”, produzindo para si outras determinações, não só a despeito das determinações impostas, mas em favor de suas próprias vontades. Ao se confrontar com o real, o homem negocia com este real posto, com a apresentação de um pressuposto, mortal e limitado: o corpo. Este primeiro levante contra a subjetividade alienada, anunciado por Marx em seu materialismo dialético, não foi único, depois dele prosseguiu uma incansável demolição do cogito cartesiano, causando um estrago irremediável e irreversível na pretensa unidade do sujeito. Sigmund Freud resgata o sujeito cartesiano e instala uma outra discussão sobre a dualidade que o constitui, ao verificar que, na suspensão de um “Eu” pensante (que anuncia: “Penso logo existo”), se apresenta um “Outro”, estranho e inconcebível que constitui o “Eu” nos interstícios desta unidade possível de se inscrever enquanto ser. É neste enquadramento que Freud introduz o conceito de sujeito do inconsciente, para mostrar que também há pensamento, sem a presença de um Eu que cogita.8 O que nos interessa em Freud é o achado do sujeito inconsciente e a noção de corpo pulsional, que desestabiliza o status do “Eu”, surpreendendo-o com sinais estranhos a seus domínios restritivos. Através deste novo viés de conhecimento, Freud retoma a questão da representação abordada por Descartes, inserindo a dimensão do inconsciente (em efetuação na linguagem) na determinação desta representação. Freud, no entanto, fecha esta nova realidade na ordem do sintoma9, na medida em que busca, nas suas análises, baseadas na verificação do referente, uma relação causal entre o físico e o psíquico – paralelismo psicofísico.
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É aí que as prerrogativas freudianas se tornam inadequadas para a verificação do símbolo artístico. Isto acontece porque, o paralelismo freudiano nos aproxima da relação entre estados internos e movimentos expressivos. Esta relação, no entanto, não se restringe a uma dimensão pessoal. Entre o “Eu” e o “Tu”, diria Jung, uma terceira dimensão relacional se evidencia em meio à criação, dando origem ao símbolo artístico. Para além do Eu e do Tu que reservam a perspectiva sob o foco da dimensão pessoal – o que reforça uma relação de causalidade entre o ato e um suposto referente em projeção na atuação – Jung nos alerta para a irredutibilidade de uma terceira dimensão que atravessa o Eu e o Tu, sobrepondo sua determinação. Esta dimensão traz a luz o universo dos arquétipos e conecta a atuação ao nível de um milenar inconsciente coletivo. Mediante tal ampliação da síntese corporal, o homem desloca sua percepção para uma direção prospectiva. Visto daí, já não interessa o “porque” do movimento, mas sim o “para que”, num encaminhamento sempre à diante da experiência vivida, na busca por sua transformação. Assim, o Tu, como segunda pessoa constitutiva de um Eu que delibera, não comporta plenamente algo que não admite redução no contorno de um avesso reprimido, daí a projeção desta terceira dimensão que aponta para o infinito, e que só tange a dimensão pessoal como uma potência arquetípica, que inspira o corpo a dar curso a seu movimento, não num paralelo consigo mesmo, mas em direção ao encontro de uma dimensão mística. A tensão entre forças opostas, portanto, visto sob esta perspectiva, só é justamente verificada se desta tensão irromper espontaneamente uma terceira dimensão conciliadora. Só aí que o corpo criativo se ilumina e dá curso ao símbolo artístico.
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A tensão por si só não faz nada, todavia ela é um começo. É o símbolo que lhe atravessa e este não se faz sem movimento. Não seria este caminho “entre” a tensão e o movimento a chave para o entendimento da natureza do processo criativo? É fato que só se alcança esta natureza nas vias insólitas de uma consciência alterada. É aí que a atuação se desprende da perspectiva cartesiana, para dar vazão ao corpo criativo. Neste enquadramento, observamos a dança em sua dimensão fantástica, só tangível na atuação em si. Só então é possível debruçar sobre a dança e seu processo criativo, ciente de que, sob este olhar, é possível trilhar uma outra cena de sentidos, forjada do enquadramento cartesiano. Emendando os pontos A ciência moderna inaugurou uma fase onde o mundo parecia não ter outra escolha a não ser deixar-se levar pelas trilhas do racionalismo cartesiano. Neste enquadramento não cabe o que foge à dimensão da razão especulativa. Um grande exemplo deste âmbito analítico é o engenhoso pensamento de Isaac Newton (1643-1727). Graças a Newton, o homem descobriu as leis que a natureza fala e obedece. As leis de Newton reproduzem as leis da natureza com uma exatidão inexorável. 10 Sob os trilhos deste pensamento logicamente estruturado11, as medidas entre uma causa e os efeitos por ela desencadeados podem ser mensurados. Todavia, as certezas clássicas foram abaladas, depois que Max Planck (1858-1947) isolou o fenômeno do quantum , e Albert Einstein (1879-1955) apresentou ao mundo suas Teorias da Relatividade Especial e Geral12, abrindo caminho para a formulação da Quântica por Niels Henryk Böhr (1885-1962), entre outros.13
A Física Moderna desloca seu campo de observação, ao perceber que nem tudo no mundo obedece às leis clássicas (referindose ao comportamento dos elétrons), não obedecem, sequer, a um tipo clássico de lei – isto é, uma lei que rege o movimento dos objetos reais.14 Um deslocamento semelhante aconteceu no campo das ciências humanas com a descoberta do “sujeito do inconsciente”. A partir daí, o homem ganha uma nova perspectiva de verificação de si. É aí que podemos deslocar a verificação da dança e encontrar um campo de análise fundado em prerrogativas não deterministas, atentas à relação em si, autora da criação, e não aos efeitos dela decorrentes. Em suma, o conhecimento nos apresenta as diversas maneiras como as ciências humanas contornam a noção de ser, dando uma forma especular ao que se designa experiência humana. A dança, como uma experiência humana, por excelência, não foge à eminência deste contorno, é aí, portanto que devemos ter cuidado e dar voz a uma pesquisa atenta as querelas da lógica racional. Só então daremos o devido valor à experiência da criação, tomando-a não como um objeto de pesquisa, mas como um atuante determinante dos próprios rumos da pesquisa. Um rumo por vir, na medida em que o pesquisador mergulha na experiência de criação. Sob este olhar o objeto se confunde com o próprio pesquisador, ambos se constituem no movimento da pesquisa. É aí que o artista tem um grande trunfo: o seu próprio corpo, como campo laboratorial, no qual as relações de pesquisa vão sendo tecidas. O artista consegue um diálogo bastante fecundo entre as ciências e a arte, quando mergulha na análise de suas próprias criações. É aí que seu eixo epistemológico vai sendo traçado, não como efeito do que se apresentou
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na experiência, mas como extensão da própria criação experimentada, como traços constitutivos de algo ainda em formação. É por isto que se deve ter cuidado na prévia determinação dos caminhos da pesquisa. Quando algo instiga a pesquisa, só temos deste estímulo um breve auscultar. Como prever sua eminência se sua apresentação foge aos limites do conhecimento? O próprio apontamento da pesquisa já indica tal injunção, afinal, não haveria pesquisa se o que se quer pesquisar já fosse conhecido. A pesquisa é sempre um movimento à diante, na busca por um conhecimento. Podemos traçar indícios, hipóteses, assumir um campo metodológico instituído, enfim, apontar traços mínimos sobre os quais a análise vai sendo destrinchada, afinal de contas pesquisar é traçar um contorno, mas o itinerário da pesquisa foge a um controle mais incisivo sobre o que é de fato experimentado pelo corpo, e é exatamente aí que a criação se evidencia, alimentando o próprio curso da pesquisa. Levando a investigação nas vias da experimentação15, tal como Nietzsche fez com sua filosofia, assumindo a falência da determinação com o desdobramento de uma resposta, que figura não mais que uma possibilidade translúcida – daí o eterno retorno da pesquisa ao âmbito do processo – é possível olhar para a pesquisa de movimento e perceber aí também um discurso metodológico. Ao pesquisador, cabe escutar este discurso no diálogo entre a arte e a ciência, tecendo o perfil de sua pesquisa mediante sua motivação (o estímulo à pesquisa apontado no projeto), sua projeção (o que foi transformado em meio ao movimento da pesquisa) e sua produção (o que se constituiu como efeito no discurso da pesquisa). Sob esta dinâmica de pesquisa, a investigação estará aberta a uma via metodológica prospectiva, ou seja, uma via mutante
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de acordo com as demandas da experimentação. Assim, a pesquisa só se justifica neste movimento dinâmico. Sua apresentação inspira a novos investimentos de pesquisa, mas outros, não mais estes mesmos já desbravados. Surge aí a essência intangível da própria pesquisa: um processo investigativo por vir em meio às negociações entre pesquisador e seu desejo de pesquisa. Só se faz pesquisa, portanto, neste movimento relacional que forja outros caminhos – contornos – em meio a seu poder de criação. Este poder potencial só é verificado nas entrelinhas do quadro sistêmico e determinista posto. Tal como o deslocamento da física quântica sobre a clássica, é preciso ver a experiência corporal com outros olhos e extrair daí, uma outra dimensão de investigação. Atenta às relações e aos corpos atuantes e não ao que deles se especula, como efeito de uma análise dicotômica. É aí que a pesquisa em dança encontra sua inesgotável fonte de investigação.
Flávio Soares Alves, Mestre em Artes pelo Instituto de Artes – UNICAMP. É coreógrafo e pesquisador interessado na análise do processo criativo na sua relação com a experiência corporal. E-mail: flavio_salves@hotmail.com Orientadora: Profa. Dra. Marília Vieira Soares, Docente junto ao Depto. de Artes Corporais do Instituto de Artes – UNICAMP. É diretora do grupo “Ar Cênico”, no qual desenvolve trabalhos criativos a partir da Técnica Energética. E-mail: mvsoares@iar.unicamp.br
Notas 1. Cf. Aurélio Guerra Neto. In: LINS, D. GADELHA, S. 2002, pp. 19-20. 2. SANTAELLA, 2004, p. 15. 3. GAUFEY, 1996, p. 22. 4. Idem, pp. 22-23. 5. SANTAELLA, op. cit., p. 14.
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6. Idem, p. 15. 7. Ibidem, p. 16. 8. GAUFEY, op. cit., p. 11. 9. JUNG, 1991, pp. 58-59. O sintoma é da ordem do perverso, é algo que vem à luz quando deveria estar oculto. O sintoma revela um comportamento doentio no sujeito, e que deve ser reprimido, devido a sua incompatibilidade moral com o consciente.
KATZ, H. Um, dois, três. A dança é o pensamento do corpo . Tese de Doutorado. São Paulo: PUC-SP, 1994. LINS, D; GADELHA, S. Que pode o corpo? Rio de Janeiro: Relumé Dumará; Fortaleza, CE: Secretaria de Cultura e Desporto, 2002. SANTAELLA, Luís. Corpo e Comunicação: sintoma da cultura. São Paulo: Paulus, 2004.
10. Idem, p. 49. 11. Ibidem, p. 49. 12. SOARES, 2000, pp. 18-19. Einstein observa que os processos clássicos de apreensão de um fenômeno físico se sustentam na separação entre o espaço e o tempo, criando assim uma falsa noção de continuidade ao se verificar o movimento da matéria. Esta separação torna relativa a relação entre ambas, pois, ao pensar em coisas espaciais é preciso considerar que cada observador, dependendo da perspectiva que confere esta coisa no espaço, tem um tempo e um movimento, dado na sua perspectiva de observação, de maneira que, a coisa no espaço parece de uma forma relativa, sua aparência é produto de um olhar situado num espaço e num tempo. Quando as observações variam no espaço e no tempo, as formas (as medições) também se alteram, daí a relatividade. Conceber uma forma absoluta só é possível na relação indissociável do espaço-tempo. HERBERT, 1989, p. 53. Einstein alterou profundamente nossas idéias comuns de tempo e espaço, noções tão profundamente incrustadas na experiência humana que pareciam inquestionáveis, quando expostas ao olhar pragmático e reducionista da física clássica. 13. KATZ, 1994, p. 8. 14. HERBERT, 1989, p. 51. 15. Aurélio Guerra Neto. In: LINS, D.; GADELHA, S. 2002, p. 34. Para Nietzsche, o pesquisador deve ser como um “experimentador” que se põe à prova em vários domínios, sem certeza e sem segurança, para ver até onde pode ir. Como um navegador que avança num mar desconhecido, o que faz confundir sua trajetória com os rumos de sua própria vida.
Referências Bibliográficas ALVES, Fábio Soares. Face a ecaF: quando ´Tu´ Dança. Campinas, SP: Dissertação de Mestrado - Instituto de Artes UNICAMP, 2006. GAUFEY. G. L. L´Incomplétude du symbolique: de René Descartes à Jacques Lacan. Paris: EPEL, 1996. HERBERT, N. A realidade quântica: nos confins da nova física. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1989. JUNG, Gustav Carl. O Espírito da Arte e na Ciência. Petrópolis, RJ: Vozes, 1991.
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Encarnando o Verbo Sara Pereira Lopes Resumo: A função poética da voz encontra um percurso, em sua construção, na identificação, reconhecimento e experimentação dos componentes corporais da voz e da palavra. Este texto nomeia alguns destes componentes e propõe seu exercício na busca pela vocalidade poética.
O trabalho do intérprete compõe uma inscrição do poético no corpo. Esta inscrição se refere ao significante que marca o corpo, que o desenha, que o põe em movimento, que o produz e que, gravado no corpo, como voz e movimento, deixa-se ler, dando-se ao olhar, e ouvir, como sons que compõem uma musicalidade. Por essa inscrição, o espectador é conduzido e tomado pelo corpo do intérprete que deve prestar-se menos ao que o texto supostamente pode significar, mas principalmente ao que é estimulado e posto em movimento diante de sua escuta dos significantes do texto e da inscrição destes no seu corpo. Na voz, há um potencial inato para uma vasta escala de tons, harmonias e texturas. Sua articulação, num discurso claro, responde a um pensamento claro e ao desejo de comunicar. Assim, à voz configurada - e não inibida - pelo pensamento cabe revelar - e não descrever - os impulsos e processos internos da palavra significante para que se faça ouvir aquele que fala, e não apenas sua voz. O condicionamento social e o desenvolvimento da tecnologia da comunicação causam interferência direta na conexão das palavras com o aparato sensorial do corpo. Como elemento de representação, na configuração
das artes de transmissão oral, cabe à voz restabelecer esta ligação, não para retomar um modo antigo e incompreensível de falar, mas para revelar as energias sonoras que formam o discurso e reverberam em sentidos não-verbais inesperados. A construção da vocalidade começa pelo reconhecimento das respostas sensoriais, sensuais, emocionais e físicas contidas nas vogais e consoantes que constituem as palavras. A beleza de uma vogal não reside na correção de sua pronúncia, de acordo com um modelo arbitrário; está na sua musicalidade intrínseca, sua sensualidade, seu movimento gerador interno, seu tom étnico, sua expressividade. Compostas por vibrações da voz humana, as vogais são moldadas por alterações sutis no formato dos canais por onde fluem essas vibrações. Como os canais se estreitam ou se alargam, as vibrações também mudam sua forma - emissão1 e altura2 - para criar, na entoação3, os elementos fundamentais da música da fala. Quando a entoação da vogal se funde com as inflexões do pensamento, o resultado é a harmonização de uma multiplicidade de aspectos.
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As vogais podem ser vistas como o componente emocional da construção das palavras e as consoantes como seu componente intelectual. As vogais pedem o canal aberto da respiração até a boca. As consoantes são formadas por oposição de partes da boca à passagem do ar, criando explosões, reverberações, zunidos e liqüescências por meio da respiração e da vibração. Por sua conexão direta e ininterrupta com a respiração, as vogais podem se ligar diretamente à emoção, desde que o impulso inicial do ar esteja ancorado no diafragma. O plexo solar - primeiro centro nervoso receptor e transmissor emocional - entrelaça-se às fibras do diafragma. A emoção, o desejo, e o impulso criativo estão intrinsecamente ligados ao sistema nervoso central. As consoantes fornecem uma experiência sensorial traduzida em estados de espírito, modulando e canalizando as vogais em percursos que fazem de suas emoções, sentido. O som das consoantes comunica-se mais externamente, através do corpo, dando origem a estados de espírito e efeitos, mais que emoções. As vibrações das consoantes trabalham através dos ossos, dos músculos, da pele, para sua percepção. As vogais tem acesso direto ao plexo solar. Consciente ou inconscientemente, um bom compositor de textos utiliza sons internos às palavras para transmitir impressões e acentuar sentidos. E não o faz apenas através das imagens que cria mas, também, através dos sons das palavras com os quais constrói as imagens. As vogais e consoantes são agentes sensoriais do discurso. Elas comunicam informações nas ondas sonoras, transmitem sentidos não-verbais de quem fala para quem ouve. Entrar no tom de um texto, para poder comunicá-lo totalmente, significa tornar-se permeável à sensação das vogais e consoantes, à anatomia das palavras tanto quanto ao
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seu significado. Para a voz isto quer dizer: restabelecer a ligação da fala com o corpo, permitindo que os sentidos sejam informados pelo gosto, toque, cor e sonoridade das palavras, que o som aja fisicamente, que o conteúdo físico, sensorial, sensual e emocional das vogais e consoantes seja experimentado. O encontro daquele que diz com os significantes que organizam o texto é sensual: constitui um prazer por meio da pronúncia e do saborear das palavras que, como materialidade corpórea, chegam ao corpo do espectador pelo ouvido e pelo olho. Para Roland Barthes a escritura vocal não é a fala e consiste no que Artaud recomendava: “a escritura em voz alta não é expressiva..., ela pertence... à significância; é transportada, não pelas inflexões dramáticas, pelas entonações maliciosas, os acentos complacentes, mas pelo grão da voz, que é um misto erótico de timbre e de linguagem, e pode portanto ser por sua vez, tal como a dicção, a matéria de uma arte: a arte de conduzir o próprio corpo... Com respeito aos sons da língua, a escritura em voz alta não é fonológica, mas fonética; seu objetivo não é a clareza das mensagens, o teatro das emoções; o que ela procura (numa perspectiva de fruição) são os incidentes pulsionais, a linguagem atapetada de pele, um texto onde se possa ouvir o grão da garganta, a pátina das consoantes, a voluptuosidade das vogais, toda uma estereofonia da carne profunda: a articulação do corpo, da língua, não a do sentido, da linguagem.” 4
As informações sonoras, contidas nas vogais e consoantes, vão se justapor na formação das palavras, estabelecendo o poético do discurso, a criação de alguém que assume uma nova relação simbólica com o mundo. Nele, as energias da linguagem se desenvolvem em circuitos que são, ao mesmo tempo, introvertidos e extrovertidos.
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O desenvolvimento da capacidade de falar poeticamente depende, pois, da consciência de como as palavras devem ser ditas. É fácil afirmar ter ouvido e, portanto, entendido as palavras. É o que se faz o tempo todo. As palavras são um hábito; o pensamento segue parâmetros. Uma experiência diferenciada e mais profunda deve se livrar da audição e seu significado, parar de ter a audição como garantia de saber o que se ouve e, portanto, entender o que é dito. O poético permite que o intérprete possa suspender o nível do significado para trabalhar no nível do significante que, por não constituir um sentido preestabelecido, afeta o corpo em sua materialidade sonora. Essa perspectiva considera o prazer provocado pela inscrição do poético no corpo. Corpo que, então, mostra-se como resultado de uma dada rede organizada de significantes que o produz. Trata-se de entender o poético como aquilo que, por se sustentar no jogo de significantes traz, por isso mesmo, a possibilidade de rupturas, de surpresas, de criação, de novo e de exploração dos sons de uma língua no que esta, em sua ordem – e (diz!)ordem – autoriza e desautoriza em termos de jogos metafóricos e metonímicos. Quando as palavras são vistas, saboreadas, sentidas, tocadas, elas criam profundidade e rompem os padrões estabelecidos do pensamento; despertam emoções, memórias, associações e detonam a imaginação; trazem vida. A necessidade de algo concreto nas palavras associa-se à paixão do processo criativo do artista: as palavras devem ser as coisas, devem ser os sentidos, devem ser as emoções para poderem revelar a profundidade da condição humana. Transferir a palavra, da página impressa, para o nível sensorial, constitui um processo artesanal: o caráter e a função autônomos de cada palavra devem criar vida na imagina-
ção e ser experienciados nas centrais e terminações nervosas dos sistemas sensorial e emocional; o sentido experienciado da palavra, então, pode ser encaminhado aos canais das vibrações pelos articuladores de desejo que são as vogais e consoantes. A palavra, na página, ganha sentido na imaginação; seu sentido torna-se imaginação experienciada no corpo; o sentido experienciado transforma-se na palavra falada. A imaginação está ligada à criação de imagens, concretas ou não. Uma imagem, no pensamento, pode ser pura e simplesmente contemplada com os olhos da mente; ou pode envolver, provocando impressões, emoções, despertando reações: experienciar é diferente de apreciar. Um diz respeito a pensar sobre; outro significa apenas pensar. Se tratadas como signos puros, as imagens geram um discurso vazio; experienciadas, criam uma ação interna a ser revelada, de modo direto e transparente, pelas palavras. Assim, aquilo que deu origem à linguagem vai dotar as emoções de um sentido inteligente se, apenas, se falar. Intrínsecas às palavras, as imagens revelam a linguagem como uma arte ao mesmo tempo figurativa e abstrata, guiando mais diretamente, com menos justificativas, à emoção do que a lógica racional. Quando concretas, a visualização é facilitada; quando abstratas, pedem um pouco mais de empenho do imaginário na formação do olhar. Introduzir a visão ao sentido da palavra permite a emergência e a multiplicação das imagens. Independente de sua categoria, qualquer palavra é passível de associação e conexão com as emoções ou os sentidos, variando seu grau de intensidade de acordo com seu conteúdo, revelando o emocional e o racional que há na linguagem. Todas acordam modos de ser, estados de espírito, sensações, emoções. Todas são passíveis de representação: re-apresentam o despertar interno da condição humana, integrando um imaginário. 65
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Explorar vogais, consoantes e suas combinações dá acesso a sensações e energias do som e abre a possibilidade de organizar o caos sonoro ao propor alguma coisa que pode ser ouvida, vista, trocada entre pessoas. As coisas se organizam pelo estabelecimento de relações e pela proposta de uma certa progressão dos elementos. Assim é possível ver como os elementos afetam uns aos outros e como podem ser usados em combinações complexas, a partir da escolha de possibilidades. As vogais, por exemplo, têm relação com o espaço. É possível projetá-las e fazêlas moverem-se. Cada uma delas tem qualidade e formas diferentes no corpo, bem como senso de direção no espaço. A esta exploração devem se juntar as consoantes, que vão alterar a textura e propor a sintaxe. Experimentar as possibilidades de articulação, mesmo que fora dos limites do uso comum dos sons, dá liberdade e conduz à compreensão da fisicidade presente na construção da mecânica da palavra. Se as possibilidades de articulação forem vistas como formas, é possível esculpir o som numa seqüência de movimentos, ou coreografar os movimentos da boca construindo um móbile de som. É possível criar uma ‘palavra’ por meio de processos físicos, mais do que através de um conceito intelectual sobreposto a uma coleção de sílabas. O objetivo é abrir, no sistema nervoso, tantos canais quanto seja possível, que respondam a uma palavra quando ela é recebida ou concebida pelo corpo. Enquanto a boca molda fisicamente as vibrações, o corpo é contaminado por um movimento próprio, interno, que se manifesta até o exterior. O resultado que se ouve, nesse momento, deve ignorar o retorno mental em favor da consciência física. Esta palavra pode ser usada como base para improvisações que mantenham a
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‘coreografia’ mas permitam que as mudanças de energia alterem suas qualidades - ritmo, volume, tom, direção -, impedindo que ganhe um sentido literal ou seja transposta para um contexto familiar. A palavra física serve para guiar a uma comunicação não referencial. A mesma atitude pode ser tomada em relação a palavras já existentes. Uma seqüência que tenha início com onomatopéias deve, a princípio, ignorar seu significado. É na elaboração de suas formas, no corpo, que se construirá uma imagem, ou sentido, formado pela coleção de sons. Este sentido físico, que se soma às vibrações do som, provoca sensações, associações, movimento. As palavras com imagens concretas, anatomizadas, inspiradas para o centro do corpo, geram sensações que vão encontrar o som, moldado pela boca, como se precisassem daquelas formas específicas para se expressar, fazendo-as servirem à imagem. As sensações se manifestam por meio da palavra que pode contêlas. O mesmo se dá com as palavras de imagem abstrata, de ação e de ligação. Na construção de uma seqüência, o que se exercita é a condição de deixar que uma imagem siga a outra, deixando as sensações fluírem de imagem para imagem. O objetivo é permitir que as palavras, conectadas ao corpo, via imaginário, alterem a voz criando sentidos para além dos significados. As imagens guiam mais diretamente, com menos justificativas, à emoção do que a lógica racional. Essa conexão profunda e instintiva das palavras com o sensorial encaminha para uma compreensão mais total do texto, tornando a fala mais apta a revelar do que descrever o conteúdo interno da expressão: a palavra, de símbolo, torna-se feita carne. Na relação com um texto é preciso encarar os sentidos acumulados que as palavras acabam por constituir em suas várias combi-
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nações. Uma categoria de palavras liga-se a outra, estabelecendo relações e criando o drama da linguagem na geração de novas imagens. Falar, nesse caso, demonstra as relações entre emoção, impulso instintivo, resposta sensorial, ação física e vocal. Este quadro de trabalho é complementado por uma inteligência racional que molda tudo isso em formas que constituem sentidos e significados. Este pensamento não deve estar sufocado pela emoção, nem disfarçado por defesas, nem confundido por impulsos anárquicos. Desenvolver e experienciar o percurso de respostas palavra-imagem-emoção pede a modificação de hábitos arraigados. No caso da leitura, o hábito preexistente é, provavelmente, linear: ler rapidamente as linhas impressas para saber, ao final, quais as informações que contêm. Isto não é errado. Mas não é tudo. Deixar de lado o interesse pelos resultados faz parte do processo. A leitura em voz alta, feita da forma habitual, segue um padrão: palavra impressa olho - lobo frontal - pensamento sobre - fala sobre. Modificar este hábito pede um novo modelo: palavra impressa - olho - imagem respiração - sensação - experiência/memória/ emoção - som - palavra falada. O corpo tornase mais sensível às sutilezas dos impulsos do pensamento/respiração/som quando o olhar físico e o mental tornam-se um só. A matéria densa do corpo refina-se na matéria sutil das ondas de som e pensamento e as palavras ganham um estado físico mais sólido, tornamse sensorialmente familiares, criando sua própria reserva de associações, memórias, melodia e ritmo. Esta reserva garante vida, caráter e independência às palavras, enquanto constroem um sentido geral que será revelado com um significado mais profundo do que aquele alcançado pelo esforço puramente intelectual.
A abordagem do texto, já escrito ou improvisado, pode trabalhar fixando temas e estruturas e experimentar sobre os ritmos, alternando sentidos ao alterar palavras e ou relações entre elas. As formas tornam-se menos abstratas e arbitrárias, tornando possível expressões verbais e físicas originadas mais diretamente nas emoções, por meio dos sons. A voz cria ligação entre várias coisas que vêm do corpo, enquanto ele dá sentido à produção verbal.
Sara Pereira Lopes, Docente junto ao Depto. de Artes Cênicas do Instituto de Artes – UNICAMP. E-mail: slopes@iar.unicamp.br
Notas 1. A emissão caracteriza uma voz e uma fala pois diz respeito à forma dada ao som pelo trabalho da musculatura dos órgãos fonadores (palato mole, língua, lábios), definindo o que se pode chamar de postura vocal. 2. A altura, juntamente com a duração e a intensidade, é um dos parâmetros do som. 3. A entoação é a curva melódica criada pela fala, garantia de seus sentidos. 4. BARTHES, 2004, pp. 85-86.
Referências Bibliográficas BARTHES, Roland. O Grão da Voz. São Paulo: Martins Fontes, 2004. LINKLATER, Kristin. Freeing the Natural Voice. New York: Drama Book Publishers, 1976. MURCE, Newton. O ator, a vocalidade poética e uma escritura no corpo. Monografia. Campinas, 2002. ZUMTHOR, Paul. A Letra e a Voz. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. ___________. Introduction à la Poésie Orale. Paris: Édition du Seuil, 1983.
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O Acontecimento da Voz Márcia Cristina Baltazar Sara Pereira Lopes Resumo: A intenção deste artigo é fazer um paralelo entre o pensamento de Paul Zumthor e o de Gilles Deleuze onde ambos concebem a voz ou a linguagem (esta aqui entendida como fala) como acontecimento, onde o corpo fala e a voz gesticula na duração do instante do ato vocal. As obras aqui tratadas são Introdução à Poesia Oral, de Paul Zumthor, e Lógica do Sentido, de Gilles Deleuze.
OS AUTORES Paul Zumthor, medievalista contemporâneo, impulsionou os estudos sobre a poética da oralidade, entendendo a oralidade como um campo para além da antropologia e fundamentada na materialidade da voz em presença. Por isso, preferiu o termo vocalidade ao de oralidade e dedicou-se ao estudo da voz enquanto poética. Deleuze, filósofo também contemporâneo, junto com outros pensadores e fundamentado noutros (Espinosa, Nietzsche, Foucault, entre outros), pensou a imanência, a diferença, o espaço-tempo fronteiriço entre o virtual e o real, o devir enquanto eterno devir-outro. Seu pensamento se constrói em torno do relacional, de um espaço-tempo impessoal constituído pelo acontecimento do encontro. A VOZ E A FALA Paul Zumthor, inicia seu livro Introdução à Poesia Oral (1997) com um capítulo sobre a voz enquanto presença.
“(...) Ora, a voz é querer dizer e vontade de existência, lugar de uma ausência que, nela, se transforma em presença; (...).” 1 “(...) A voz não traz a linguagem: a linguagem nela transita, sem deixar traço. (...) A voz se diz enquanto diz; em si ela é pura exigência. Seu uso oferece um prazer, alegria de emanação que, sem cessar, a voz aspira a reatualizar no fluxo lingüístico que ela manifesta e que, por sua vez a parasita.” 2 “O sopro da voz é criador.” 3
O autor, em toda sua obra, desenvolve a tese da poesia da voz como fugaz. Fugaz não em termos históricos, por ser esquecida ou modificada com o tempo-espaço, embora isso também ocorra e seja conceituado como a “movência” da poesia oral. Mas fugaz, sim, devido à própria natureza da voz, sua concretude, materialidade ou fisicidade (a “voz é uma coisa”).4 A voz é enquanto é. A voz é expressão concretizada em presença do emissor e do
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ouvinte, ou seja, só se concretiza enquanto expressão na relação. Por isso, a dicotomia da voz: por um lado a sua materialidade e exterioridade enquanto som, por outro, sua expressão (e interioridade) pelo universo dos signos, indo, o som vocalizado, “de interior a interior e liga, sem outra mediação, duas existências”.5 Por outra via, mas em confluência com o pensamento de Zumthor, Deleuze analisa a linguagem como possível apenas no acontecimento. Para Deleuze, a linguagem é capaz de realizar uma síntese (“síntese disjuntiva”) do antes e do depois que surgem com a atualização do acontecimento, pois a linguagem é um acontecimento enquanto acontecimento. Enquanto se fala, se cria o falável-falado. “A efetuação nos corpos (encarnação ou atualização do acontecimento) gera apenas a sucessão de dois estados de coisas, antes-depois, segundo o princípio da disjunção exclusiva, ao passo que a linguagem recolhe a diferença desses estados de coisas, o puro instante de sua disjunção (Aion): ocorre realizar a síntese disjuntiva do acontecimento, e é essa diferença que faz sentido.” 6
Mas, para Deleuze, a linguagem não pertence apenas ao universo dos signos, aliás, ela só é acontecimento por pertencer também ao mundo. Os sons (do universo do mundo) e os signos (do universo da linguagem) só acontecem e têm sentido porque se dão num instante de ainda-futuro e já-passado. “(...) Há sempre alguém que começa a falar; aquele que fala é o manifestante; aquilo que se fala é o designado; o que se diz são as significações. O acontecimento não é nada disto: ele não fala mais do que dele se fala ou do que se o diz. (...) É sempre de corpos e de suas misturas que falamos, mas os sons cessaram de ser qualida-
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des atinentes a estes corpos para entrar com eles em uma nova relação, a de designação e exprimir este poder de falar e ser falado. (...) A expressão se funda no acontecimento como entidade do exprimível ou do expresso. O que torna a linguagem possível é o acontecimento, enquanto não se confunde, nem com o estado daquele que a pronuncia, nem com o estado de coisas designado pela proposição.” 7 “Quando se diz que o som se torna independente, pretende-se dizer que deixa de ser uma qualidade específica atinente aos corpos, ruído ou grito, para designar agora qualidades, manifestar corpos, significar sujeitos e predicados. Justamente, o som não toma um valor convencional na designação _ e um valor costumeiro na manifestação, um valor artificial na significação_ senão porque leva sua independência à superfície de uma mais alta instância: a expressividade.” 8
Como Deleuze, Zumthor desenvolve seu pensamento sobre a poética da oralidade referindo-se ao território-tempo da imanência, ao instante de seu acontecimento, à expressividade, ao poético e ao momento de distinção/conjunção profundidade-superfície. “Toda palavra poética (passe ou não pela escrita) emerge de um lugar interior e incerto, que bem ou mal, se nomeia por metáforas: fonte, fundo, eu, vida... Ela nada designa, propriamente falando. Um acontecimento se produz, de modo quase aleatório, (o próprio rito não é mais que uma apropriação do acaso), num espírito humano, sobre os lábios, sob a mão, e eis que se dilui uma nova ordem, revela-se outra, abre-se um sistema, e interrompe-se a entropia universal. Lugar e tempo onde, num excesso de existência, um indivíduo encontra a história e, de maneira dissimulada, parcial, progressiva, modifica as regras de sua própria língua.” 9 “(...) Em torno do poema que se faz, turbilhona uma nebulosa mal extraída do caos. Súbito, um ritmo surge, revestido de trapos de verbo, vertiginoso, vertical, jato de luz: tudo aí se revela e se
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forma. Tudo: simultaneamente o que fala, aquilo de que se fala e a quem se fala.” 10
Assim, para esses autores pouco importa a subjetividade dos que falam e dos que ouvem, mas a confluência de forças tempoespaciais que atuam no ato da fala e configuram um momento criador. O CORPO QUE FALA Adiante em sua obra aqui tratada, Zumthor analisa a relação entre os corpos no ato da poesia oral, em sua materialidade. Para tal empreitada, parte para um estudo de uma “fenomenologia da recepção”11, embora sempre retorne ao acontecimento da voz enquanto tal. Assim, o pensamento de Zumthor sobre os atores e as circunstâncias de tempo e espaço onde ocorrem as relações da oralidade poética, ou se quisermos, o seu estudo sobre a fenomenologia da poesia oral, ilumina a questão da voz não só do ponto de vista de uma expressão em devir, mas também a questão da voz enquanto um fenômeno da poesia. Como já dissemos, o autor não trata da pessoalidade das relações, mas de papéis e funções no discurso da poesia oral. “O emprego do eu importa pouco. A função espetacular da performance torna bastante ambíguo esse pronome, porque se dilui, na consciência do ouvinte, seu valor referencial.” 12 Dessa forma, o autor formula, então, seu conceito de performance. “A performance é a ação complexa pela qual uma mensagem poética é simultaneamente, aqui e agora, transmitida e percebida. Locutor, destinatário e circunstâncias (...) se encontram concretamente confrontados, indiscutíveis.” 13
E pelo ponto de vista da recepção:
“A performance configura uma experiência, mas ao mesmo tempo é a própria experiência. Enquanto ela dura, suspende a ação do julgamento. O texto que se propõe, no ponto de convergência dos elementos desse espetáculo vivido, não provoca a interpretação. A voz que o pronuncia não se projeta nele (como o faria a fala na escrita): ela se faz, no texto e com o texto, todapresente; entretanto, não mais que a voz, ele não se fecha.” 14 “Portanto, o texto poético oral leva necessariamente o ouvinte a se identificar com o mensageiro das palavras sentidas em comum, ou até com as próprias palavras. (...) a performance unifica e une. Essa é sua função permanente.” 15
Zumthor, também caracteriza o ato da performance poética como aquele que requer algum grau de formalização e uma tomada de responsabilidade de seus atores (intérprete e ouvinte). Além disso, a performance requer competência. “Performance implica competência. Além de um saber-fazer e de um saber-dizer, a performance manifesta um saber-ser no tempo e no espaço. O que quer que, por meios lingüísticos, o texto dito ou cantado evoque, a performance lhe impõe um referente global que é da ordem do corpo. É pelo corpo que nós somos tempo e lugar; a voz o proclama (...). A voz aceita beatificamente sua servidão. A partir desse sim primordial, tudo se colore na língua, nada mais nela é neutro, as palavras escorrem, carregadas de intenções, de odores, elas cheiram ao homem e à terra (ou aquilo com que o homem os representa). A poesia não mais se liga às categorias do fazer, mas às do processo ...” 16
Portanto, “a oralidade não se reduz à ação da voz”17, ela implica na integração do corpo. “O gesto gera no espaço a forma externa do poema.” 18
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Assim, Zumthor pensa a unicidade da voz e do corpo na performance poética, e novamente seu pensamento se encontra com o de Deleuze, que considera toda criação artística como uma reflexão do raciocínio (operação da linguagem) no corpo e do corpo no raciocínio. Especificamente com relação ao teatro, o ator em ato, criando o momento poético teatral, necessariamente reflete no palco um corpo-linguagem, sem dualismos entre gesto e voz, entre mímica e raciocínio, mas antes, explicitando suas mesclas. Citando Zumthor, ao falar do teatro performático (segundo o seu conceito de performance) que envolve gesto e voz:
Notas 1. ZUMTHOR, 1997, p. 11. 2. Idem, p. 13. 3. Ibidem, p. 12. 4. Ibidem, p. 11. 5. Ibidem, p. 15. “A enunciação da palavra ganha em si mesma valor de ato simbólico: graças à voz ela é exibição e dom, agressão, conquista e esperança de consumação do outro; interioridade manifesta, livre da necessidade de invadir fisicamente o objeto de seu desejo: o som vocalizado vai de interior a interior e liga, sem outra mediação, duas existências.” 6. ZOURABICHVILI, 2004, p. 16. 7. DELEUZE, 2003, p. 187. “Da linguagem”. 8. Idem, p. 191. “Da oralidade”. 9. ZUMTHOR, op. cit., p. 167, grifo nosso. 10. Idem, p. 167.
“’Polifonia de informação’, como dizia Roland Barthes, o teatro aparece como uma escritura do corpo: integrando a voz portadora de linguagem a um grafismo traçado pela presença de um ser em toda a intensidade do que o torna humano. Nisto, ele constitui o modelo absoluto de toda poesia oral.” 19
11. Ibidem, p. 155. 12. Ibidem, p. 243. 13. Ibidem, p. 33. 14. Ibidem, p. 247. 15. Ibidem, p. 247. 16. Ibidem, p. 157. 17. Ibidem, p. 203.
Enfim, na arte enquanto acontecimento, assim como na voz, toda distinção entre raciocínio e ação, linguagem e gesto, mente e corpo, profundidade e superfície se dilui, pois o devir, como o compreende Deleuze, ou, o poético, como compreende Zumthor, põe todas essas forças em conexão. Quanto à voz em presença ou à fala, esta só se manifesta enquanto acontecimento, e só é acontecimento porque conflui espírito e matéria ou corpo e mente.
Márcia Cristina Baltazar, Doutoranda em Artes, Instituto de Artes – UNICAMP. E-mail: marciabalta@yahoo.com.br. Orientadora: Profa. Dra. Sara Pereira Lopes, Docente junto ao Depto. de Artes Cênicas do Instituto de Artes – UNICAMP. E-mail: slopes@iar.ubnicamp.br
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18. Ibidem, p. 207. 19. Ibidem, p. 58.
Referências Bibliográficas DELEUZE, Gilles. Lógica do Sentido. São Paulo: Perspectiva, 4a. ed, 2003. ZOURABICHVILI. François. O Vocabulário de Deleuze. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 2004. ZUMTHOR, Paul. Introdução à Poesia Oral. Trad. Jerusa Pires Ferreira. São Paulo: Hucitec/Educ,1997.
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Os Estúdios Teatrais e a Cultura do Ator Camilo Scandolara Maria Lúcia Levy Candeias Resumo: Este artigo sintetiza parte da dissertação de mestrado “Os estúdios do Teatro de Arte de Moscou e a formação da pedagogia teatral no século XX”, defendida pelo autor. O artigo aponta algumas das influências das pesquisas realizadas por Stanislávski, Sulerjítski e Vakhtângov no contexto dos estúdios teatrais formados junto ao Teatro de Arte de Moscou na tradição teatral ocidental do século XX.
Uma das principais realizações do século XX teatral foi a afirmação absoluta da necessidade de existência de espaços de desenvolvimento e sistematização de pedagogias de formação de ator. Voltados a este fim, formaram-se núcleos, na maioria das vezes afastados do teatro comercial, nos quais se desenvolveram experimentos que alteraram definitivamente a visão ocidental de formação do ator. No início deste processo podem ser colocados o Primeiro Estúdio do Teatro de Arte de Moscou – TAM, e a École du Vieux Colombier, de Jacques Copeau. Seus desdobramentos cronologicamente mais próximos podem ser analisados por meio dos trabalhos do Teatro Laboratório de Jerzy Grotowski e do Odin Teatret, de Eugenio Barba, dentre outros. Os estúdios são vistos por Fabio Mollica como manifestações da insatisfação dos renovadores do teatro do século XX em relação às instituições. Franco Ruffini afirma que os estúdios foram uma invenção de Stanislávski, a partir do Primeiro Estúdio do TAM, fundado em 1912. Para Mollica este estúdio é um exemplo do processo de fuga do teatro que caracterizou muitos movimentos
teatrais do século passado. O gesto de Stanislávski de fundar o Estúdio é visto por Mollica como uma “reação do artesão às imposições da indústria do teatro, do ator à invasão do diretor, do homem à instrumentalizaçao cada vez mais condicionante da atividade criativa.” 1 Mollica refere-se a Stanislávski como um “criador de possibilidades de teatro”.2 Para isto considera sua atuação dentro do Primeiro Estúdio, onde se buscava dar um caráter de investigação constante ao fazer teatral, fugindo da repetição de fórmulas. Este caráter de investigação e de criação de possibilidades de teatro é uma característica determinante do trabalho dos estúdios, núcleos e laboratórios citados acima, bem como de outros formados ao longo do século XX. A pedagogia teatral anterior era baseada em procedimentos externos transformados em códigos para expressão de sentimentos. Resultava numa representação convencional de estados de ânimo e de imagens. A experiência do Teatro Estúdio de 1905 já havia mostrado a Stanislávski que qualquer tentativa de renovação cênica dependia, necessariamen73
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te, da reconsideração da pedagogia teatral, da estruturação de um projeto eficaz de formação de um novo tipo de atores. Esta busca se deu, principalmente, no contexto dos vários estúdios fundados em torno da companhia principal do TAM. As experimentações ali realizadas e que confluíram no “sistema” não foram realizações solitárias de Stanislávski. Os principais estúdios caracterizam-se como projetos de experimentação levados a cabo em estreita colaboração com outros artistas-pedagogos. No período que se estende de 1909 a 1922 os mais destacados colaboradores de Stanislávski na exegese e experimentação dos princípios do “sistema” foram Leopold Sulerjítski e Evguiêni Vakhtângov. Seria mais adequado, portanto, pensar no sistema como conseqüência de um amplo contexto de experimentação prática da arte do ator, coordenado por Stanislávski, mas alimentado e experimentado por diversos atores e pedagogos reunidos em torno ao TAM. Com suas atividades no Primeiro Estúdio e nos demais estúdios nos quais desenvolveram suas subseqüentes pesquisas os três mestres russos instituem um modelo de espaço de pesquisa e sistematização de procedimentos voltados à formação do ator que exerceu enorme influência no teatro do século XX. As realizações dos estúdios, sem dúvida, influenciaram a estética do espetáculo teatral no século XX. No entanto, sua principal contribuição reside na busca obstinada por uma nova forma de se fazer teatro, de compreender o ofício do ator. A este é reservado o papel de dar um novo significado ao fazer teatral modificando as bases éticas e operativas por meio de seu próprio posicionamento frente ao seu ofício. Dentro dos estúdios opera-se uma reformulação completa do universo teatral. Inventa-se uma maneira de se fazer teatro em sua totalidade, desde as bases mais prosai74
cas (organização do espaço, postura no ambiente de trabalho), até a concepção estética do espetáculo e a estruturação de metodologias para a transmissão da experiência adquirida. Utilizando a expressão de Mollica, trata-se de um contínuo processo de invenção do teatro. Não são reproduzidos procedimentos consagrados. Temos aqui o estabelecimento de uma real abordagem experimental do teatro, ou seja, de um fazer que gera seus próprios e inéditos/exclusivos processos de acordo com uma lógica que é gerada organicamente pelo próprio desenvolver da pesquisa. Esta busca por uma nova maneira de fazer teatro tinha sua primeira e talvez mais significativa expressão na atividade pedagógica. A prática pedagógica não era vista como uma aplicação de fórmulas de atuação consagradas, mas sim como uma jornada criativa em direção à estruturação de um corpo de procedimentos que pudesse ser visto como uma real e concreta arte do ator. A estética do espetáculo, o resultado artístico, não surgia como produto da mente criativa de um encenador excepcionalmente dotado, mas como resultado de um processo cotidiano de experimentação realizado por professores/diretores e alunos/atores. Fabrizio Cruciani qualifica a pedagogia desenvolvida nos estúdios como ato criativo. Afirma que a busca realizada neles por professores e alunos era a de invenção de instrumentos da própria criatividade e não a de uma mera formação de quadros de atores e diretores para os teatros instituídos. A pedagogia teatral é vista, portanto, como um espaço de invenção de um novo e revitalizado fazer teatral. O processo de formação é um processo investigativo e criativo, pois busca estabelecer novos paradigmas para a atividade criativa do ator. Trata-se de um processo vivo, que rechaça a imitação dos modelos de atuação institucionalizados e fossilizados. Cruciani diz:
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“A procura de leis pelos professores-diretores é mais uma necessidade de fazer do que uma necessidade teórica do saber. A pedagogia como um ato criativo é uma realização da necessidade de criar uma cultura teatral, uma dimensão do teatro cujos espetáculos somente satisfazem parcialmente, e que a imaginação traduz em tensão vital. É por isso que o teatro, nas primeiras décadas do século, existiu primariamente por intermédio da pedagogia [...] e porque a pedagogia deve ser vista como uma linha direta na continuidade da maioria das experiências teatrais significantes da época.” 3
Para Cruciani esta “... apaixonada procura, frenética e insatisfeita, pela verdade em situação pedagógica” realizada nos estúdios do TAM funda uma cultura teatral que será extremamente significativa na fundação das escolas de teatro posteriores.4 Encontrar uma nova maneira de fazer teatro ou reencontrar um sentido para o ofício era, portanto, um anseio que encontrava sua expressão inicial na atividade pedagógica. Reformar o teatro dar-lhe sólidas bases artísticas, significava, inicialmente, criar uma verdadeira pedagogia teatral pensada sobre bases sólidas e operativas. Esta constatação aparece de maneira clara nas práticas e nos escritos de todos os grandes reformadores teatrais do início do século XX. Cabe ressaltar que esta especial importância dada à atividade pedagógica também é resultante de um ideal mais amplo: reformar, renovar o homem e a sociedade. À tentativa de reconstruir o teatro e de redefinir a função do ator relaciona-se um ideal utópico de reformulação e aprimoramento das relações humanas e das estruturas sociais. Rompemse as fronteiras do que se entendia por especificamente teatral para buscar reencontrar um sentido para um fazer teatral esvaziado. Em relação ao trabalho do ator, esta questão se reflete na dificuldade de definição
de limites entre o trabalho técnico especificamente teatral e o trabalho de aprimoramento do humano. Esta é uma característica presente em muitos dos experimentos pedagógicos do século XX, como ressalta Marco de Marinis. Os escritos de Copeau, as práticas de Laban, a condução do Primeiro Estúdio por Sulerjítski são exemplos da ligação entre o projeto de formação de um novo ator e o projeto de formação de um novo, e melhorado, ser humano. Nesta perspectiva, o trabalho sobre si mesmo não pode ser visto como um acúmulo de habilidades e truques do ofício, mas, pelo contrário, como um processo de auto-revelação, de fuga dos clichês para reencontrar o contato com a autenticidade da vida. Esta abordagem do treinamento encontraria eco no trabalho que Grotowski iria desenvolver durante as décadas de 60 e 70. As relações entre o grupo e a individualidade dos participantes são fatores decisivos nos aportes estéticos e pedagógicos de cada coletividade teatral. Neste sentido é exemplar o funcionamento do Primeiro Estúdio e sua abordagem particular dos ensinamentos de Stanislávski mediada, principalmente, pela inquietude do espírito artístico de Vakhtângov. Esta aparente insubmissão do Primeiro Estúdio é manifestação da necessidade de desenvolver os procedimentos organicamente, respeitando individualidades e aproveitando o material humano disponível. Isto só confirma o que Stanislávski, e posteriormente Grotowski, afirmaram a respeito da impossibilidade de se chegar a um sistema possível de ser aplicado como uma receita infalível para se chegar à criatividade em diferentes grupos e contextos. Os estúdios, por meio da aparente rebeldia de Vakhtângov e de outros atores-diretores, demonstraram a afirmação de Sulerjítski de que é impossível separar rigidamente procedimentos técnicos daquilo que de essencial reside no humano.
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A experiência dos Estúdios do TAM também demonstra que a coesão em torno de uma proposta comum não implica na eliminação das individualidades. Ao Primeiro Estúdio estava integrado um forte grupo de jovens atores que, aos poucos foram desenvolvendo seus estilos e suas concepções sem uma subordinação servil aos caminhos então traçados por Stanislávski. Talvez esta visão da formação teatral não como uma reprodução de procedimentos, mas como uma constante busca centrada em um sólido núcleo de princípios norteadores seja uma das principais e menos assimiladas contribuições dos Estúdios à pedagogia do século XX. O surgimento dos estúdios também marca o surgimento da figura do diretorpedagogo, que não se limita a ter uma função de gerador de uma interpretação cênica da obra dramatúrgica. Passa a ser um pesquisador da pedagogia e de propostas estéticas em estreita colaboração com os participantes do núcleo. Para Mollica a perspectiva do surgimento desta nova abordagem do trabalho do diretor foi criada por Stanislávski ao fundar seus estúdios. Ele vê, neste momento, a possibilidade de estabelecimento de um corte historiográfico entre as figuras de diretor-intérprete e diretor-pedagogo.5 Marco de Marinis propõe que se inverta a relação normalmente estabelecida entre encenação e pedagogia e que se passe a “... pensar a pedagogia teatral como um ponto de chegada da encenação no século XX, o resultado da transformação de diretor-demiurgo em diretor-maiêuta, [...] ou diretor-pedagogo.” 6 Marinis observa esta transformação em quase todos os grandes homens de teatro do século XX, geralmente quando se envolveram mais profundamente no trabalho teatral prático e, em particular, no trabalho com o ator. Na trajetória de Stanislávski esta mudança tem como sintoma e como catalisador o trabalho realizado dentro dos estúdios. 76
Nas cartas de Stanislávski e nos relatos de Minha Vida na Arte é possível observar que o foco de suas inquietações vai progressivamente distanciando-se das questões formais do espetáculo em favor de um aprofundamento em problemas relativos ao ofício do ator. Um dos pilares do pensamento teatral de Stanislávski é o de que o saber do ator é um saber prático, adquirido de modo ativo. Portanto, tanto a construção deste saber, quanto a sua transmissão só podem se dar por meio da auto-exploração por parte do ator de procedimentos práticos que lhe guiem no caminho de um domínio cada vez mais complexo e profundo de seu ofício. Fica clara, assim, a necessidade do trabalho sobre si mesmo, do exercício, do treinamento. Para Ruffini, o aparecimento dos exercícios como parte constituinte do trabalho do ator foi uma revolução do teatro do século XX, já que tradicionalmente o trabalho do ator limitava-se ao ensaio e ao espetáculo.7 Os estúdios foram, por excelência, os locais de surgimento e desenvolvimento dos exercícios. São, portanto, fundamentais para compreendermos o surgimento de uma nova dimensão do trabalho do ator, que sem dúvida, revolucionou também a maneira de se pensar o fazer teatral. O sentido do ofício, aquilo que permite a alguém se intitular ator passa a não mais residir, ou pelo menos não mais somente, na apresentação de espetáculos públicos. Afirma-se pela primeira vez de maneira explícita a necessidade de uma prática cotidiana de exercícios como base para o trabalho criativo do ator. E, principalmente, este espaço do exercício, do trabalho cotidiano passa a ser visto como o espaço de construção da identidade profissional e artística do ator. Este novo enfoque teve profunda influência sobre o desenvolvimento da prática e da teoria teatral do século XX. Colocando-se como espaços de criação de uma nova maneira de fazer teatro, os
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estúdios rompem os limites do que até então se compreendia como teatro, expandem as fronteiras do trabalho do ator e do diretorpedagogo e absorvem elementos extrateatrais. Isto também pode ser visto como uma resposta teatral às rápidas transformações pelas quais passava a sociedade da época. A propósito, ao tecer comentário sobre as pesquisas dos renovadores do teatro do início do século XX, Cruciani diz: “... o novo teatro não era nascido do teatro e no teatro, mas pela recuperação da complexidade cultural, social e humana do teatro, como uma forma de comunicação expressiva e como um meio para a realização do homem.” 8 Para Marco de Marinis isto também implica numa profunda ressignificação da visão sobre a possibilidade de relação do teatro com o contexto sócio-cultural. O esforço pedagógico de transformação também busca afastar o teatro da limitação de ser uma mera atividade de entretenimento. O teatro passa a ser visto como produção de saber, como um instrumento cognitivo. Reconstruí-lo também significa redescobrir meios para torná-lo, ou fazer com que ele voltasse a ser, um instrumento eficaz para a compreensão do homem e do mundo. Marinis diz: “[O teatro do século XX] é um teatro que se dilata, que transborda materialmente e metaforicamente de seus espaços tradicionais e, ao fazêlo, transmuta e se regenera, tanto nos processos materiais e criativos quanto nos princípios estéticos, seja nas formas artísticas e expressivas seja – sobretudo – nos pressupostos e na finalidade do próprio operar. Partindo do horizonte tradicional [...] do divertimento e da evasão [...], o Novecentos Teatral tende a desenvolver sólidas ambições pedagógico-ético-político-espirituais, chegando [...] a fazer do ator e do grupo criativo os modelos ideais respectivamente para o homem e para a comunidade do futuro...” 9
Nos programas e nas práticas dos estúdios é evidente a busca por conhecimentos e procedimentos extrateatrais. Elementos de práticas esportivas, de outras áreas da criação artística e até mesmo da ciência são “emprestados” e recontextualizados para fazer com que o teatro deixasse de ser um objeto decorativo e conseguisse acompanhar, ou mesmo provocar as mudanças da sociedade. Para Pradier, este caráter transdisciplinar é imprescindível para o desenvolvimento do saber teatral: “... o saber não progride sobretudo dentro de uma disciplina. As grandes idéias nascem no lado de fora ou nas fronteiras [...]. A intelligenza do teatro deve nutrir-se de desviações exteriores ao teatro, do mesmo modo que uma cultura não sobrevive a não ser através de contaminações, empréstimos e erros.” 10
Evidentemente o que motiva a formação dos estúdios é a insatisfação com os modelos de formação instituídos. A necessidade de fundar novos ambientes pedagógicos é um resultado da incapacidade das escolas e teatros tradicionais em dar uma formação ao ator que não fosse uma mera reprodução de padrões fixados e de truques do ofício. Para Cruciani, na base da formação dos estúdios está uma “tentativa de dar sentido e dignidade ao teatro”, que tem como ponto de partida a “luta contra as instituições teatrais de seu tempo, seu conservadorismo vagaroso e a luta contra o desinteresse da profissão teatral.” 11 Odette Aslan ressalta o processo de isolamento, de afastamento do centro da produção teatral da época para poder gerar novos procedimentos e novas visões do fazer teatral. Esta é uma característica que marca a organização dos estúdios e núcleos: fecharse em núcleo, criar procedimentos sólidos e, somente então, dividir o conquistado.
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A partir destas experiências não se pode mais ver a pedagogia teatral como a reprodução de procedimentos arraigados em hábitos do ofício consagrados por uma tradição ligada ao entretenimento. Ao proporem e desenvolverem abordagens sistematizadas do ofício do ator, os diretores-pedagogos do século XX estabeleceram uma tradição com a qual qualquer proposta atual tem a obrigação de dialogar. Os processos de formação do ator devem ser encarados como processos de descoberta e criação, mas devem manter uma constante relação com esta tradição. Cruciani diz: “Se, por um lado, uma escola (como o teatro) é um compromisso com o que já existe, por outro é um lugar onde as utopias se tornam realidades, onde as tensões que sustentam o ato teatral assumem formas e são colocadas em teste.” 12 Portanto, o movimento de formação dos estúdios teatrais, tendo o Primeiro Estúdio do TAM como seu deflagrador e ícone, dá início ao processo de sistematização de uma tradição da arte do ator no Ocidente. Tradição esta que é compreendida não como a aquisição passiva de fórmulas, mas como um contínuo processo de criação de procedimentos gerados pelo questionamento a respeito do sentido do fazer teatral. É uma tradição que deve ser buscada, sobretudo, nesta dimensão da criação teatral que não está diretamente ligada à produção de espetáculos e que, por esta razão, muitas vezes foi subvalorizada pela historiografia teatral. Para Cruciani a continuidade das experiências teatrais se dá, principalmente pelos modos de operar que elas produzem e não pelas obras, das quais só permanecem testemunhos e registros parciais ou setoriais. “Os modos de operar existem na permanência dos homens de teatro e dos espectadores, na civilização que produzem e da qual fazem parte, na tradição enquanto sistema ativo de criar rela78
ções com o acontecido. Neste sentido o teatro não é efêmero, como não o é o operar dos homens: o teatro é uma categoria de longa duração que vai além do evento presente do espetáculo.” 13
Nesta perspectiva podemos considerar a pedagogia do ator como um elemento central da cultura teatral do século XX. Fabio Mollica acredita que a maneira como esta foi tratada no Primeiro Estúdio possa ser ainda hoje um estímulo para novos caminhos de pesquisa: “Investigar o Primeiro Estúdio significa lançar luz sobre um momento essencial da cultura teatral do Novecentos. Isto porque a sua prática e o seu mito foram um estímulo, nas mais diversas situações culturais, para aqueles homens que se colocaram na busca de um modo diferente de pensar e produzir teatro.” 14
Mollica observa nos vários estúdios e laboratórios do século XX uma continuidade com as experiências de Stanislávski, Sulerjítski e Vakhtângov, que não estão ligadas às formas do espetáculo, mas sim ao “modo de colocar-se em relação ao trabalho do ator, à pesquisa de fontes criativas, à definição de uma ética de trabalho, à vontade de pensar e criar teatro organicamente em relação às exigências do grupo antes que às do mercado.”15 Novamente vemos a pedagogia colocada como um processo de criação, de descoberta de concepções acerca do fazer teatral e não como uma mera aquisição de um repertório técnico. Os estúdios e laboratórios são manifestações desta nova visão de teatro. Uma visão que passou a se manifestar não somente por meio dos espetáculos, mas principalmente por meio da “criação pedagógica”. Trata-se da tentativa do estabelecimento de uma tradição para o trabalho do ator ocidental; do estabelecimento de um saber teatral que transcende, ou antecede a dimensão
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do espetáculo. Para Fabrizio Cruciani as escolas, ateliês, laboratórios e centros foram os espaços teatrais onde a criatividade teatral se expressou com o mais elevado grau de determinação. Ocorre uma expansão dos limites do trabalho do ator que se manifesta, por exemplo, na invenção do trabalho laboratorial e na transformação do caráter do processo de ensaios. Estes passam a ser não mais somente o momento da atualização cênica de um texto, mas tornam-se um real espaço de investigação, de produção de um saber cênico centrado no ator a partir da manipulação dos elementos que são específicos de seu trabalho. Esta investigação abrange desde os elementos éticos que baseiam o trabalho cotidiano do ator, até os elementos ligados à eficácia de sua ação sobre a percepção do espectador. Com isto a pedagogia adquire um valor inédito. O processo de formação passa a ser visto não como um processo de aquisição de um repertório, mas como espaço de projeção de um fazer teatral renovado. Ao conceber a pedagogia como criação e não como reprodução de fórmulas os diretores-pedagogos do início do século XX redimensionaram a noção de escola de teatro. Se não há sistema a ser reproduzido, se não há validade em reproduzir procedimentos, é preciso manter uma constante relação dialética entre os procedimentos empregados, a tradição teatral e o significado que se dá à atividade do ator. A escola passa a ser espaço de produção de modos de fazer e pensar, espaço de busca ativa pelo sentido do ofício.
Camilo Scandolara, Mestre em Artes pelo Instituto de Artes – UNICAMP. Bacharel em Interpretação Teatral pela Universidade Federal de Santa Maria – UFSM. E-mail: camiloscan@hotmail.com
Orientadora: Profa. Dra. Maria Lúcia Levy Candeias, Docente junto ao Depto. de Artes Cênicas do Instituto de Artes – UNICAMP. Autora do livro Duas tábuas e uma paixão: o teatro que eu vi. Editora Imprensa Oficial. E-mail: mlcandeias@terra.com.br
Notas 1. MOLLICA, 1989, p. 12. 2. Idem, p. 11. 3. BARBA e SAVARESE, 1995, p. 28. 4. Idem, p. 27. 5. MOLLICA, op. cit., pp. 217-218. 6. MARINIS, 2000, p. 57. 7. RUFFINI, 1996, p. 80. 8. BARBA, op. cit., p. 28. 9. MARINIS, op. cit., p. 12. 10. PRADIER, 1992, p.160. 11. BARBA, op. cit., p. 27. 12. Idem, p. 26. 13. CRUCIANI, 1992, p. 47. 14. MOLLICA, op. cit., p. 12. 15. Idem, p. 12.
Referências Bibliográficas ASLAN, Odette. O ator no século XX. São Paulo: Perspectiva, 2003. BARBA, Eugênio e SAVARESE, Nicola. A arte secreta do ator: Dicionário de Antropologia Teatral. Campinas: Editora da UNICAMP, 1995. CRUCIANI, Fabrizio. Il “luogo dei possibili”. In: GUCCINI, Gerardo; VALENTI, Cristina (Org.). Tecniche delle rappresentazione e storiografia: materiali della sesta sessione dell’ISTA. Milano: Biblioteca Universale Synergon, 1992. MARINIS, Marco de. In cerca dell’attore: um bilancio del Novecento teatrale. Roma: Bulzoni Editore, 2000. MOLLICA, Fabio (org). Il teatro possibile: Stanislavskij e il Primo studio Del Teatro d’arte di Mosca. Firenze: La Casa Usher, 1989. PRADIER, Jean-Marie. Verso um’estetica della stimolazione. In: GUCCINI, Gerardo; VALENTI, Cristina (Org.). Tecniche delle rappresentazione e storiografia: materiali della sesta sessione dell’ISTA. Milano: Biblioteca Universale Synergon, 1992.
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RUFFINI, Franco. I Teatri di Artaud: crudeltá, corpo-mente. Bologna: Società Editrice Il Mulino, 1996. ___________. Stanislavskij: Dal lavoro dell’attore al lavoro su di sé. Roma: Laterza, 2003. SCANDOLARA, Camilo. Os estúdios do Teatro de Arte de Moscou e a formação da pedagogia teatral no século XX. Campinas/SP. Dissertação de Mestrado. Instituto de Artes – UNICAMP, 2006. STANISLAVSKY, Constantin. Minha vida na arte. Tradução Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1989. TAKEDA, Cristiane Layher. O cotidiano de uma lenda: Cartas do Teatro de Arte de Moscou. São Paulo: Perspectiva, 2003.
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O Conceito de Organicidade na Interpretação Realista: uma investigação de seus elementos e fundamentos Martha Dias da Cruz Leite Eusébio Lobo da Silva Resumo: Este artigo promove uma reflexão sobre a problemática da organicidade do ponto de vista da interpretação realista. Partindo do uso comum que a palavra organicidade adquire nos meios artísticos, como uma qualidade relativa à “vida” de uma cena, espontaneidade, naturalidade e fluidez de uma representação, buscamos investigar alguns dos principais elementos e fundamentos aferentes de organicidade à representação realista. Para operar tal análise, fizemos uso do processo de montagem da peça “Intersecções: peças curtas de Harold Pinter”, encenada pelo professor Marcelo Lazzaratto com alunos do último ano do curso de Artes Cênicas da UNICAMP do ano de 2005. Os resultados a seguir apresentados foram frutos de uma observação intensa do processo de montagem e minha participação como Auxiliar Didático de Professor, na posição de assistente de direção, o que tornou possível implantar, além da diretriz investigativa de observação, uma diretriz experimental, a partir de exercícios e laboratórios de criação e investigação efetuados com os alunos.
INTRODUÇÃO Antes de darmos início a nossas considerações sobre a organicidade na interpretação realista, cabe aqui argumentar e definir o que conceituamos como organicidade.
nica e organicidade podem ser conceitos próximos na medida em que ambos têm como alvo principal a “vida” que emana da representação do ator.
Em teatro ou dança comumente se utiliza a palavra orgânico para aferir um certo grau de qualidade expressiva que uma cena ou performance artística pode adquirir. Geralmente chamamos de orgânico a representação que ou tem o mérito de trazer em si sensações de fluidez e autenticidade, ou quaisquer características que nos faça sentir a cena como natural e dotada de uma verdade artística imanente à sua realização. A partir daí, podemos inferir que, falando de organicidade estamos também resvalando na questão da verdade cênica, e, sendo assim, verdade cê-
Burnier1 se refere à palavra organicidade como a verdade teatral em termos de ações físicas, ou seja, um estado satisfatório de expressividade cênica por parte do ator no que diz respeito à execução de ações físicas. Relaciona organicidade com a palavra órgão, termo que dá uma idéia de tudo aquilo que é orgânico, por fazer alusão a tudo aquilo que diz respeito aos órgãos e seres organizados. Partindo desta idéia, ele conclui que chegar a um estado de organicidade na execução das ações físicas significa “desenvolver um conjunto complexo de ligações e 81
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interligações internas à ação física ou a uma seqüência de ações2”. Também difere os dois tipos distintos que esta palavra pode adquirir quando usada em relação ao ato cênico: organicidade como um fluxo de energia que alimenta a ação responsável pela vida que emana do ator (que ele denomina de organicidade interna real e viva) e, nesse caso, referente a uma impressão de “natural”3 que essa coerência de organização interna gera; e organicidade no sentido de uma impressão de artificial naturalidade que emana do ator e é percebida pelo público como se fosse um fluxo coerente da linha de força de uma ação física ou de uma seqüência de ações. Neste caso, está se referindo ao primeiro tipo de organicidade, ou seja, ao fluxo de energia que alimenta a dá “vida” às ações do ator. Do ponto de vista de quem assiste ao ato cênico e percebe, na posição de um observador, a organicidade presente ou não nas ações, Bonfitto apresenta importantes considerações. A partir de uma experiência pessoal prática em um curso de dança Kabuki, o pesquisador traça uma reflexão a este respeito, e verifica que o kata- grupos de movimentos considerados a célula da linguagem Kabuki - não se reduzem simplesmente a uma forma pronta a ser copiada, mas sim possuí um algo diferente em sua execução para que sua eficácia em termos cênicos seja atingida: “Em muitos momentos, enquanto observava o mestre que nos mostrava as ações que deveriam ser aprendidas, revivia certas sensações experimentadas quando vi pela primeira vez um espetáculo Kabuki. Os gestos, as ações tinham um quê de especificidade não decodificável. A formalização das ações, seus percursos cinéticos, muitas vezes não se diferenciava daquela presente nos códigos, digamos, cotidianos. E, no entanto, a sua percepção era diferente, continha algo específico. Nos momentos em que as ações eram executadas individualmente sem a utilização da música, buscava compreender por
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que alguns atores, apesar de executarem o trabalho com precisão, não conseguiam reproduzir o mesmo fenômeno.“ 4
A partir dai, Bonfitto conclui que deveriam existir alguns componentes “invisíveis” que estariam sob o desenho e o percurso cinético daquelas ações, e divide em dois níveis constitutivos a execução de tais ações: o nível estrutural (elementos que podem ser reproduzidos visualmente no espaço, ou seja, movimentos) e a qualidade de energia (modo como uma ação é realizada). Portanto, o kata, apesar de ser uma estrutura codificada e rígida, teria, então, um espaço para a interpretação do ator, ou seja, um mesmo movimento executado pode suscitar sensações diferentes dependendo do “como” ele é executado, ou seja, dependendo da qualidade de energia que se coloca pelo ator na execução. Desta forma, podemos dizer que organicidade, neste caso, também se refere a esta percepção sensível de uma qualidade de energia calculada para o que é necessário a uma cena. Neste ponto, a questão que surge é: quais os elementos que o ator utiliza para controlar esse fluxo de energia? Bonfitto escreve que os elementos que determinam um fluxo de energia são as variações rítmicas, impulsos (início da ação) e contra-impulso (passagem de uma ação a outra ou o fim da ação).5 Ou seja, quando presenciava seu mestre Kabuki executando as ações, o que fazia com que ele percebesse diferenças entre ações aparentemente iguais era o nível de qualidade de energia através de seus elementos constituintes: variação rítmica, impulso e contra-impulso. Apesar da riqueza das contribuições destes dois pesquisadores abordados para a problemática da organicidade, tal questão ainda se encontra em aberto, pois se faz necessário perguntar sobre qual linguagem de interpretação se está trabalhando quando se pro-
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cura encontrar os elementos constitutivos de organicidade em uma representação. A questão colocada é: seria a organicidade um conceito absoluto em termos de verdade cênica, ou seja, estar orgânico é a mesma coisa em qualquer linguagem de representação? Burnier quando fala em organicidade trabalha com uma técnica de representação baseada em codificações de ações físicas, e seu conceito de organicidade está ligado a esta forma de representação. Seria o caso, então, de questionar se em uma outra linguagem de interpretação - como a interpretação realista, por exemplo - estar orgânico baseia-se nos mesmos elementos presentes em uma interpretação baseada em codificação e re-codificação de ações. Talvez, não seja o caso de nos questionarmos sobre o que é organicidade, mas sim, perguntar o que é ser orgânico em cada linguagem de interpretação adotada. Partindo do pressuposto de que a forma e o conteúdo de uma cena caminham juntos, supomos portanto, que a organicidade tem de estar em função de uma determinada proposta de trabalho e da linguagem de interpretação com a qual se trabalha. O objetivo de se montar tal peça era fazer com que os alunos vivenciassem um percurso de montagem baseado na interpretação realista, de forma que foi possível a mim, durante este processo, investigar sobre quais elementos repousam a idéia de organicidade em uma interpretação realista. A partir de tal participação, pude chegar às conclusões a seguir apresentadas. O CONCEITO DE ORGANICIDADE NA INTERPRETAÇÃO REALISTA: ALGUNS DOS PRINCIPAIS ELEMENTOS OBSERVADOS Para falar sobre interpretação realista, é mais do que necessário recorrermos, inicialmente, as idéias de Konstantin Stanislavsky, cujo trabalho foi o marco mais expressivo de
investigação sobre os fundamentos da interpretação do ator realista. Em seus últimos anos de vida, Stanislavsky teve como o carro chefe de suas pesquisas o Método das Ações Físicas. Nele, o diretor russo vê a necessidade de elementos exteriores (as ações físicas) para funcionar como catalisador de elementos interiores (sentimentos e emoções) para que as ações externas não se tornem puramente mecânicas e sem “vida”. Para isso, o ator deve acreditar sinceramente nas ações físicas executadas, para que estas possam funcionar como iscas para o sentimento interior. Desta forma, a organicidade depende da verdade física orgânica com que o ator executa suas ações, e aponta como um ponto importante neste aspecto os impulsos. Stanislavsky define como impulso um ímpeto interior que, quando satisfeito, leva à ação, e afirma que se o ator consegue recuperar o impulso originário da ação, sua ação exterior será rica em verdade.6 Portanto, assim como em técnicas codificadas (lembrando a definição de organicidade por Burnier), um dos caminhos para a organicidade em uma interpretação realista também se dá pela recuperação do impulso originário da ação. Stanislavsky, entretanto, frisa a necessidade de uma completa união entre a vida física e a vida espiritual do personagem.7 Entendemos por vida espiritual todo o complexo conjunto de processos mentais interiores que darão ao ator material para compor sua representação. Propomos, para tanto, uma análise de alguns dos elementos interiores que compõe a vida espiritual de um personagem que, de certa forma, podem ter responsabilidade pela organicidade do ator em uma interpretação realista. Os elementos aqui selecionados foram: a lógica da personagem, a capacidade do ator em estabelecer o jogo teatral e o pensamento da personagem. Tal seleção se deu a partir do que ocorreu no processo de monta83
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gem analisado e, então, houve uma escolha dos principais pontos que, neste processo, pareceram contribuir para a questão da organicidade. A lógica da personagem Pode-se dizer que a lógica da personagem é o conhecimento que o ator tem sobre sua personagem e sobre as possibilidades de ações e reações desta nas situações previstas na peça. Este conhecimento é importante para o ator na medida em que, quando ele compreende absolutamente o que faz e diz em cena, ele está muito mais apropriado de seu papel e, conseqüentemente, mais orgânico. Viu-se, no processo de montagem com os alunos que a aplicação de alguns conceitos de Stanislavsky leva o ator a um domínio vasto da lógica de pensamento de sua personagem. O professor/diretor propôs uma etapa de trabalho em que tais conceitos foram estudados e experimentados na prática. São eles:
Instalação: Instaurar, climatizar, organizar; tempo que se dá antes da ação cênica propriamente começar para que o ator se instale e instale o espectador na peça. Stanislavsky define instalação como entrar nas circunstâncias propostas. Isto significa que o ator deve entra em cena com sua energia carregada de elementos acumulados proveniente das informações que ele tem a respeito da personagem (passado da personagem, o que aconteceu a ela antes da cena, etc). “Estado de prontidão do sujeito para a execução de uma ação adequada, (...) mobilização coordenada de toda a energia física que possibilita a satisfação de uma determinada necessidade dentro de uma determinada situação”, ou seja, é uma ação proveniente do mundo subjetivo do artista.8
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Gênese da Personagem – individualização, humanização x tipificação: Conjunto de respostas a perguntas que se faz sobre o passado da personagem e que, dependendo da resposta, a energia do ator em cena é diferente (ritmo interno, corpo, humor, etc). Estas perguntas geram a humanização do personagem. No processo de humanização o importante é descobrir pequenos detalhes que calcam a realidade da personagem, e não sublinhar demais suas características principais, como ocorre na personagem-tipo. Circunstâncias Propostas: Contexto o qual está inserida a ação da personagem em cena (quem ela é, onde ela está e o que ela está fazendo). “Durante cada segundo que estivermos no palco, a cada momento do desenrolar da ação da peça, temos de estar cônscios; ou das circunstâncias externas que nos cercam (...) ou de uma cadeia interior de circunstâncias que foram imaginadas por nós mesmos, a fim de ilustrarmos nossos papéis.” 9 Mágico “SE”: Significa se colocar em situação, ou seja, fé cênica. Aceitar as circunstâncias propostas da personagem como sendo suas. Stanislavsky escreve que o “se” tem um poder que os sentido captam e que produz no ator um estímulo instantâneo de aceitar a suposição de uma situação como realidade. O “se” “desperta uma atividade interior e real e o faz com recursos naturais.” 10 Objetivos – Vontade – Contra-vontade: Para Stanislavsky, toda ação deve ter um objetivo11. Objetivo é o propósito de uma ação ou o que a personagem deseja alcançar em cena. As escolhas dos objetivos para a personagem definem as escolhas da cena, e estas opções têm de estar em função do superobjetivo. A
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vontade e contra-vontade são, respectivamente, o que a personagem quer e o que a personagem não quer, e estão ligados à questões inconscientes; elas dão o “como” ao objetivo.
Superobjetivo: Propósito básico da peça, ou seja, o aspecto humano abordado que serve de rumo para todas as ações da peça. “Toda a corrente dos objetivos individuais, menores, todos os pensamentos, sentimentos e ações do ator devem convergir para a execução do superobjetivo.” 12 Curva da Personagem: Transformação pela qual passa a personagem ao longo da peça. Esta é a base do trabalho realista, pois através dela presenciamos a revelação do personagem. Monólogo Interior/ Subtexto: O monólogo interior ou subtexto revela o pensamento da personagem, ou seja, o caminho mental que ela faz e que tem de ser revelado ao espectador através de ações. Os pensamentos da personagem se tornam “monólogos interiores” quando o ator transformá-los em falas mentais. Subtexto ou monólogo interior é, portanto, tudo aquilo que o ator estabelece como pensamento antes, depois e durante as falas. 13 Adaptação: Stanislavsky define como “tanto os meios humanos internos quanto externos, que as pessoas usam para se ajustarem umas as outras, numa variedade de relações e, também, como auxílio para afetar um objeto”.14 Está ligada à imprevisibilidade. São ajustamentos interiores, conscientes ou inconscientes, a uma situação nova. A adaptação dá o frescor à cena, pois só se adapta quando se surpreende, revigora. A cena é um processo de adaptação do personagem a outro.
Tempo-Ritmo: Kusnet15 coloca que o ritmo existe em todas as atividades humanas, inclusive na prosa em teatro. O ator, por sua vez, deve saber encontrar o tempo-ritmo adequado à sua cena e/ou ação. Entretanto, durante o processo de montagem da peça “Intersecções: peças curtas de Harold Pinter”, este conceito foi trabalhado não em termo de ritmo musical, mas sim no sentido de intensidade, ou seja, a pulsação interna do ator em relação à atividade externa onde ela se reflete. Círculos de Atenção: Pode ser definido como a linha de interesse pela qual a personagem trafega; maneira pela qual o ator joga com as coisas que existem em cena e que desperta a atenção do personagem. Setor de grande ou pequena dimensão que delimita a atenção do ator. O ator seleciona, através de sua atenção cênica, detalhes da visualização que possam mais facilmente exercitar sua imaginação e impulsioná-lo para ação.16 Todos estes conceitos estudados convergem para uma série de procedimentos que dão ao ator um conhecimento profundo sobre sua personagem e sobre a situação a qual ela está inserida. Durante a montagem da peça percebia-se que a lógica de cada personagem foi sendo descoberta pelos alunos ao longo do processo, e muitas vezes por vias não racionais. Cito como exemplo um exercício feito, que consistia em colocar a personagem da peça de cada um em outras cinco situações dadas: sair atrasado de casa, escolher fruta no supermercado, atender um telefone que era engano, verificar que cobraram sua conta errada, preparar um sanduíche. A partir daí, verificava-se, pela prática, o que cada personagem tem em comum nas diferentes situações. Uma sugestão dada durante a execução do exercício foi a de eleger um movimento corpo-
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ral (sutil ou não) que se repete nas cinco situações. Segundo relatos dos próprios alunos, em uma discussão sobre o exercício após seu término, foi que este possibilitou “disparadores”, isto é, espécie de insight que pode vir de um comando físico ou de uma frase dita, em que a lógica da personagem começa a fazer sentido. Ou seja, a lógica da personagem foi sendo descoberta desta vez por uma via prática sensorial. Outro comentário interessante foi o de que a repetição destas cinco situações pelos alunos ajudava neste processo, pois nas primeiras vezes era difícil improvisar as falas dentro da lógica da personagem, mas com a repetição os alunos iam fazendo links de pensamentos e, conseqüentemente, iam entendendo coisas do texto que não eram percebidas antes. Outro ponto importante a respeito da lógica da personagem é que existe um caminho a ser percorrido a cada vez que o ator vai acumulando material para descobrir esta lógica, até o momento em que este material passa a fazer parte da atuação de maneira orgânica. Durante o semestre, foi feito o seguinte exercício com os alunos: dar uma situação proposta (ex: uma filha vai contar ao pai que está grávida), depois, rechear com perguntas sobre a situação e sobre as personagens de forma a individualizar a situação (ex: como é a situação financeira desta família? Quais são os valores deste pai em relação a ter uma filha solteira grávida? Este pai sabia que ela mantinha relações sexuais? Ela deseja ter este filho? etc.). Como resultado, os alunos apresentaram dificuldades em saber externalizar em ações todas as informações sobre as personagens. Não sabiam “o que fazer” com todo aquele conteúdo mental. Alguns chegaram a dizer que todas essas informações atrapalhavam a improvisação porque limitavam algumas reações, e também porque acabavam ficando
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o tempo todo pensando sobre elas e em como deveriam aplicá-las na cena. Então, a reação espontânea ficava prejudicada. Isso demonstra que nesta hora o pensamento era do ator e não da personagem. Com isto, vimos que existe a necessidade de ensaio e tempo para que o ator “absorva” as informações de tal forma que ele não precise ficar pensando nelas o tempo todo e consiga, ao mesmo tempo em que age de acordo com elas, concentrar-se no jogo entre os atores e raciocinar de acordo com a lógica da personagem. Para que isso aconteça, todas essas informações têm de ser incorporadas pelo ator, ou seja, estarem presentes em sua memória operacional17, feita de imagens prontas para serem ativadas no momento que for necessário, sem que o pensamento do ator precise ficar se ocupando o tempo todo com elas. A importância do jogo teatral para a organicidade No caso exposto acima, vimos que a lógica da personagem, quando não bem incorporada pelos atores, pode prejudicar o jogo teatral, pois, neste caso, o ator está em cena ainda “pensando” no que fazer ao invés de reagir ao outro ator. Este é um outro elemento interior do ator importante para a organicidade, pois se o jogo não acontece a “vida” da cena fica prejudicada, porque se o ator não reage verdadeiramente aos estímulos recebidos, suas ações se tornam vazias e mecânicas. Uma cena sem jogo não é interessante e um ator que só reproduz mecanicamente suas reações sem estar aberto aos estímulos dados não pode ser “vivo” em cena. Ele pode até ter uma forte presença cênica obtida através de uma atuação com bastante energia, mas a cena como um todo não se sustenta, e isso com o tempo prejudicará a apreciação do espectador.
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O problema do ator não conseguir jogar com o outro, de não conseguir estabelecer uma relação verdadeira com seu parceiro em cena e sentir suas reações espontâneas prejudicadas pode acontecer quando o ator ainda não conseguiu incorporar a lógica da personagem, pois, neste caso, sua mente está ocupada tentando processar todas as informações a respeito desta personagem. Sua atenção, portanto, se encontra voltada mais para este processamento de informações do que para uma “abertura” do espírito do ator aos estímulos dado pelos outros atores no momento presente. Entretanto, o jogo também pode ser prejudicado até mesmo em uma cena considerada já “pronta” (uma cena, portanto, em que os atores já possuem um certo domínio da lógica da personagem) se o pensamento do ator encontrar-se ocupado com alguma preocupação alheia aos elementos necessários ao jogo teatral. Um exemplo disto foi com a cena intitulada ”Esse é o seu problema”. O dia da estréia estava perto e havia uma preocupação geral com o tempo de duração da peça, que até então estava com mais de duas horas e meia, o que foi julgado um pouco longo demais. Em um determinado ensaio, quando chegou o momento desta cena, tínhamos a impressão que o jogo não estava acontecendo. Uma cena que era boa agora não estava mais funcionando (e segundo depoimentos das próprias atrizes elas também sentiram isto). Após algumas conversas foi visto que a preocupação constante em fazer com que a cena não demorasse muito, fez com que as atrizes desviassem a atenção que deveriam dar ao jogo de ação e reação entre elas, para uma preocupação do tipo “temos que fazer a cena rapidamente, pois a peça tem de ter um tempo de duração menor”. Esta preocupação tomou conta do pensamento das atrizes e, então, o jogo não acontecia e a organicidade na interpretação das atrizes se perdeu.
Mais uma vez, verificou-se a necessidade do ator ter sua mente livre para que o pensamento da personagem se manifeste e a atuação se torne orgânica. O pensamento da personagem Mas para onde fluem os pensamentos do ator no momento da cena? Como ele consegue alcançar um estado em que seu pensamento se abre para uma outra lógica que não a de sua própria identidade e também para uma relação com o outro ator que, apesar de tudo combinado (texto, marcações de cena), tem de estar acontecendo como se fosse pela primeira vez? Ou seja, o que o ator faz consigo mesmo quando em sua mente o que o toma são os pensamentos da personagem, mas ao mesmo tempo ele não só não perde a consciência de cada ato seu como também os direciona e controla? Primeiramente, é necessário desconsiderar esta separação entre ator e personagem, pois a partir do momento em que o ator é o seu corpo e a personagem é este mesmo corpo, ator e personagens não são entidades diferentes que habitam o mesmo invólucro físico. Desta forma, podemos colocar o personagem não como uma entidade a qual damos vida, mas sim como uma resultante construída a partir de uma série de detalhes que o ator executa, e que o público lê como uma personagem. Adotamos, para tanto, a argumentação de Oida para a nossa definição de personagem: “No teatro é impossível tentar analisar Hamlet, porque é impossível analisar o personagem totalmente. Por Exemplo: “Ser ou não ser eis a questão”. Você pode dizer “ser ou não ser” preguiçosamente ou você pode simplesmente falar alto, você sempre fala a partir da emoção. É a sua emoção que comanda quando se diz com alegria “Ser ou não ser”, e também é quando você fala “Ofélia” com raiva. São esses tipos de deta87
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lhes. Mais tarde as pessoas podem pensar que Hamlet tem uma personalidade muito interessante, outras pensarão que você tem uma personalidade muito boa. (..) As pessoas irão pegar as informações na sua atitude. (...) De um certo modo o ator não precisa saber o que o personagem é, mas precisa saber que ‘aqui eu irei levantar’, ‘aqui eu irei gritar’, ‘aqui eu quero chorar’. O ator não pode fazer um estado, ou uma idéia, ou uma concepção. O ator provavelmente pode fazer os detalhes.” 18
de ser e, por ainda estarem presentes, não deixam o ator reagir a nenhuma outra sensação ou sentimento: “Por exemplo, se estivermos dominado pela raiva, é impossível que surja espontaneamente qualquer outra emoção; nada poderá mudar. Então precisamos jogar fora a raiva para poder criar um espaço vazio em nossa mente”.20 Oida completa dizendo que uma vez que o ator tenha aberto este espaço, ele terá a liberdade de reagir e de responder ao que vier no aqui - agora.
Abordando a questão do personagem por este aspecto, podemos inferir que “pensar como o personagem” é o mesmo que agir conforme uma série de detalhes logicamente construídos e encadeados, e que dão a sensação no espectador de uma determinada personalidade. Mas este estado só se concretiza quando o ator não desvia sua atenção do que é essencial à cena para coisas que dizem respeito a outras preocupações, como por exemplo, o caso relatado anteriormente, em que as ações das atrizes eram executadas tendo como base uma preocupação em acelerar o tempo da cena, e não a elementos provenientes do jogo de ação e reação que deveria ter sido estabelecido. O pensamento da personagem antes de tudo é uma concentração e atenção total por parte do ator aos elementos realmente pertinentes à cena e ao jogo teatral.
O pensamento da personagem, portanto, não se trata apenas de um processo interno do ator, e sim envolve todos os demais elementos do espetáculo, principalmente os estímulos dados pelo demais atores e pelo público, pois “pensar” em cena como o personagem trata-se também de reagir a cada instante de acordo com o que é dado ao ator pelo ambiente externo. A forma como ele reage, por sua vez, tem haver com a lógica da personagem que, se estiver muito bem dominada por parte do ator, levará a uma liberdade de reações com a qual ele poderá jogar, mas sem perder o contexto e a coerência de sua personagem.
Um conceito importante em relação à vida interior do ator e que podemos utilizar nesta nossa análise sobre o pensamento da personagem é o que Oida19 chama de espaço vazio mental. Ele baseia o fundamento deste conceito no fato de que o ambiente externo está sempre em constante mudança, então o ator deve ser capaz de reagir, a cada momento, conforme o que vem em sua direção. Estar vazio interiormente não significa sentir absolutamente nada ou um estado rígido de tranqüilidade, mas sim, não estar preso a emoções turbulentas que já perderam sua razão 88
CONSIDERAÇÕES FINAIS Em suma, o pensamento da personagem é um elemento que pode ser considerado como um dos principais responsáveis pela organicidade na interpretação realista. Durante o processo de montagem da peça foi visto que, em uma interpretação realista, o pensamento da personagem tende estar presente para que a ação seja orgânica, ou seja, o espectador tem de “perceber no olho da personagem o seu pensamento”, ou então temos a sensação de que ele, apesar de executar ações e dizer um texto, parece vazio, suas falas são mecânicas e não possuem conexão umas com as outras. Organicidade na interpretação realista está ligada ao pensamento
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da personagem. A verdade das reações vem do que a pessoa está pensando naquele momento daquela situação. Neste ponto de nossas argumentações, lógica da personagem, jogo teatral e pensamento da personagem se articulam, pois é o pensamento da personagem bem definido e processado que permite o jogo teatral - que sempre ocorre dentro dos limites da lógica da personagem - já que a reação de um personagem em uma peça realista se encontra na revelação ao público de seu pensamento diante de uma situação. Para falarmos de organicidade em uma interpretação realista chegamos, portanto, no que poderíamos chamar de uma técnica do pensamento: a capacidade do ator de conseguir dominar o discurso da personagem de maneira tão profunda (as circunstâncias dadas, seu passado, suas tendências, etc) que ele acaba conseguindo processar o pensamento de forma diferente a cada apresentação, mas sem perder o contexto e lógica desta personagem. Tal técnica permite até mesmo ao ator mudar certas intenções e inflexões do texto em cada apresentação, sem deixar de lado a lógica e os objetivos desta personagem. Isto em termos de “vida” da cena e, portanto, de organicidade (já que, como foi dito, organicidade e verdade cênica são conceitos próximos) talvez seja o mais importante, pois permite ao ator criar um espaço em que suas reações podem ocorrer de formas inúmeras, apesar das ações de seu personagens serem sempre as mesmas. Desta forma, o ator não precisa cristalizar uma forma de representar e, portanto, pode reagir verdadeiramente aos estímulos recebidos em cena, tanto do público quanto dos outros atores, a cada momento do espetáculo.
Martha Dias da Cruz Leite, Mestre em Artes pelo Instituto de Artes – UNICAMP. E-mail: mdiasleite@gmail.com
Orientador: Prof. Dr. Eusébio Lobo da Silva, Docente junto ao Depto. de Artes Corporais do Instituto de Artes – UNICAMP. E-mail: elobosilva@yahoo.com.br
NOTAS 1. BURNIER, 2001, p. 53. 2. Idem, p. 53. 3. É importante ressaltar que esse “natural” não tem nada haver com algo próximo do realismo e não artificial, mas sim com uma impressão de “natural” que, por serem orgânicos, esse comportamento traz. 4. BONFITTO, 2002, p. 121. 5. Idem, p. 92. 6. STANISLAVSKY, 1990. 7. Idem. 8. KUSNET, 1987, p. 54. 9. STANISLAVISKY, 1998, p. 86. 10. Idem, p. 69. 11. Ibidem, p. 27. 12. Ibidem, p. 281. 13. KUSNET, 1987, p. 71. 14. STANISLAVISKY, 1998, p. 236. 15. KUSNET, op. cit., p. 87. 16. Idem, p. 49. 17. DAMÁSIO, A. O Mistério da Consciência . Trad. Laura Baldovino, Carlos David Szlak. São Paulo: Ed. Senac, 1999. O termo memória operacional é definido pelo neurologista Antônio Damásio e consiste na capacidade de reter na mente as imagens que definem o objeto para o organismo, para que estas imagens possam ser manipuladas de maneira inteligente toda vez que for necessário. Esta memória tem paralelos com a chamada “memória corporal”. 18. Trecho de entrevista feita com o ator Yoshi Oida, em 2001, por Martha Leite e Matteo Bonfitto. 19. OIDA, 2001. 20. Idem, p. 72.
Referências Bibliográficas BONFITTO, M. O Ator Compositor: as ações físicas como eixo. São Paulo: Perspectiva, 2002. BURNIER, Luís Otávio. A Arte do Ato da técnica à representação. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2001.
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DAMÁSIO, A. O Mistério da Consciência . Trad. Laura Baldovino, Carlos David Szlak. São Paulo: Ed. SENAC, 1999. KUSNET, E. Ator e Método. 3ª. Ed. Rio de Janeiro: Instituto Nacional de Artes Cênicas, 1987. OIDA, Y. Um Ator Errante. Tradução Marcelo Gomes São Paulo: Beca Produções Culturais, 1999. ___________. O Ator Invisível. Tradução Marcelo Gomes.São Paulo: Beca Produções Culturais, 2001. STANISLAVSKI, Constantin. A Construção da Personagem. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998. ___________. A Criação do Papel. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1990. ___________. A preparação do Ator. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999.
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A Performance do Ator como Teatralidade no Cinema Andréa Stelzer Walder Gervásio Virgulino de Souza Resumo: A teatralidade pode ser abordada de várias formas tanto no cinema como no teatro, mas existe um elemento principal – a performance do ator como artista da obra. Esse não se contenta apenas com a representação realista do seu papel, ou com a produção de uma ilusão; cópia imperfeita de outra imagem que ali não está. O ator-artista cria, a cada instante, uma ação poética em cena, uma ação única que gera um acontecimento também único. E isso só se dá quando ele passa a ser o criador de um vocabulário de movimentos e imagens, como uma partitura corporal pela qual a ação é vista e pensada. Como no teatro, é também importante a criação do ator no cinema, e imprescindível a presença do diretor que harmoniza a estética do filme e cria sua originalidade. Este artigo procura então responder as seguintes questões: a teatralidade advinda do domínio do movimento dos atores é uma arte do passado? A construção da gestualidade do ator foi sublimada pela tecnologia do cinema? Ou pode ser retomada como um recurso de originalidade do filme?
INTRODUÇÃO A redescoberta da importância dos mecanismos corpóreos concretos no movimento do ator faz com que suas ações sejam expressivas e tornem-se fator de autenticidade longe dos clichês do corpo cotidiano. Afinal, o público espera ver o jogo e a invenção em cena. É arte o ator ser ele mesmo em cena? Como mostrar ao público as mil facetas do personagem? Conforme afirma a pesquisadora francesa Picon-Vallin1, ao citar Meyerhold, diretor de teatro russo, o ator produz teatralidade nas suas imagens a partir de três princípios: - “o estatismo, que revela – em sua imobilidade – a essência dinâmica do teatro, a ação do gesto que, ao contrário do ir-e-vir cotidiano, torna per-
ceptíveis os movimentos das linhas e das cores, mostrando-se mais sugestivo do que o naturalismo; - o desenho dos movimentos, que diz algo diferente, contrário ou em substituição às palavras, manifestando sentimentos ocultos, e penetrando mais seguramente no domínio do indizível. Ou seja: a não coincidência entre gestos e palavras funda a verdade das relações com a teatralidade, aquela que permite atuar o diálogo interior; e - a artificialidade, que faz nascer a impressão mais intensa da vida, partindo da dilatação da energia do ator na cena”.
A teatralidade, como elemento da performance do ator, se refere ao seu desempenho na interpretação de uma obra. Portanto, é um modo de realização que não implica
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na autoria da obra em sua totalidade. A presença corporal do artista é parte integrante da obra. A arte da performance submete o discurso corporal a uma decodificação que entra em conflito com as imagens do corpo normatizado. Nesse sentido, a atuação sai do campo da representação e mostra o confronto do artista com o próprio corpo, passando a criar uma situação autêntica. 2
Segundo Walter Benjamin , com a emergência dos meios de comunicação de massa, entra em jogo o processo de destruição da aura da obra de arte devido à sua reprodutibilidade técnica. Na reprodução mecânica da obra em série, o contexto do espectador ganhou primeiro plano e a autenticidade deixou de ser um critério aplicável à arte. A performance do ator no cinema é exemplar em relação ao novo modo de produção artística mediado pelo desenvolvimento tecnológico: a separação entre o corpo e as imagens do corpo. Do posicionamento da câmera à edição do filme, baseado em cortes e montagem de seqüências, tudo na produção cinematográfica parece concorrer para a dissociação da continuidade da performance do ator mediatizada pela imagem. Pode-se dizer que no teatro moderno a performance do ator foi mediatizada pela figura do encenador, pois sua atuação se tornou parte integrante da linguagem do espetáculo, e elemento vital na sua articulação. Além disso, a autenticidade do personagem se mostrou inseparável da performance do ator, mantidas – ambas – pela presença dos espectadores. Nesse sentido, a relação ator-personagem-público no teatro é vista por Benjamin como reduto da irreprodutibilidade técnica da obra e de sua autenticidade. Segundo Susan Sontag3, o verdadeiro contraste entre o teatro e o cinema é que o teatro demanda artificialidade enquanto o cinema é cometido pela realidade. O teatro visi-
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velmente ameaçado diante da inclinação do cinema para o espetacular, redescobriu uma aproximação direta e real levando a limites extremos o elo com a imaginação da platéia. Entretanto, o cinema permaneceu acorrentado àquilo que nos mostra a realidade da imagem. Ou será que ele não pode ser feito de uma forma artificial, abstrata e, portanto, teatral? Peter Brook4 afirma que, para se fazer teatro, é preciso apenas o ator, o espectador e o espaço vazio. Daí, podemos concluir que o corpo do ator é espetacular, pois desperta uma série de emoções no espectador. Hoje, através de uma simples expressão do ator, podese perceber o que se passa: algo significativo ou pré-expressivo. E tal percepção acontece, mesmo através da imobilidade do ator, como no filme Boulevard do Crime, em que emoções indescritíveis parecem percorrer silenciosamente o rosto branco de giz do mímico, interpretado por Barrault. Sabemos que o cinema nasceu com as feiras de atrações, e uma das primeiras formas de encenação a que teve acesso foi o “vaudeville”, performances de atores, mímicos, acrobatas, dançarinos e “clowns” presentes nessas feiras e em praças. O prazer que era proposto então pelo cinema nas situações de espetacularidade apresentadas não demandava narrativas complicadas, pelo contrário, essas eram praticamente suspensas. E o afeto viria de uma maneira mais perceptiva e menos intelectual ou emotiva. Cabe então a pergunta: pode a performance do ator, no cinema, redescobrir a teatralidade? Ou essa seria uma linguagem privativa do diretor? Ouve-se muito falar que os cineastas não buscam a performance dos atores como fator principal na realização de sua obra. As imagens e a tecnologia cinematográfica substituiriam, portanto, a interpretação dos atores. Sendo assim, uma representação realista do personagem bastaria, pois a linguagem do ci-
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nema ou a sua realidade poética se daria muito mais pelo movimento dos enquadramentos, pela seleção das imagens e pela montagem do diretor. Já o teatro buscaria a presença viva e urgente do ator, e seus gestos, imobilidades e movimentos participariam do próprio processo de montagem e plasticidade da cena. O ator – essência do teatro –, por suas ações e por seu processo de criação, provocaria assim a aproximação do espectador, na tentativa de leitura dos signos corporais. Mas, até que ponto, atitudes e gestos do ator também marcam suas personagens no cinema? Henry Jenkins e Kristina Brunovska Karnick, em seu Classical Hollywood Comedy5, afirmam que o ator considerado virtuoso desenvolvia um vocabulário de gestos e truques performativos que constituíam uma potencialidade expressiva individual no entretenimento da comédia muda. Tais atores sabiam mostrar emoções pelos gestos de modo mais eloqüente que a maioria das linguagens, fazendo os espectadores descobrirem a beleza da gestualidade muito acima do alcance das palavras. Os atores cômicos, particularmente, pela sua excessiva e espetacular atuação, tiravam muitas vantagens no espaço provido pelo sistema clássico narrativo. No meio da história, eles colocavam movimentos “interessantes”, capazes de transformar personagens em performers, através da adoção de identidades alternadas, mentiras, exageros e máscaras, que testavam suas habilidades como atores e instigavam nos espectadores uma consciência diferente das identidades sociais e pessoais. As estrelas da comédia desenvolviam maneiras de falar e de se mover, expressão facial e gestos excêntricos, que exploravam o aspecto não representativo da performance. Ou seja: ao envolverem movimentos altamente estilizados, chamavam atenção para o modo como o ato estava sendo performado,
ao invés de simplesmente feito. Dessa maneira, tais performances passaram a assumir um status semi-autônomo na narrativa, como fragmentos que provocavam prazer por si-só; tornaram-se, pois, fontes de fascinação separadas da função da trama. Pode-se concluir que a performance no cinema não é então um gênero hermético. Marcada por uma estrutura narrativa mais aberta e mais expansiva, ela permite ao espectador perceber uma exposição narrativa dos atores que saem de suas personagens para uma artificialidade e uma desconstrução da prática significativa. Dessa forma, torna-se interessante perceber como a performance do ator pode coexistir com a narrativa do filme. 1. Charles Chaplin – Luzes da Cidade Charles Chaplin, ator, diretor e performer, nos anos 20 e 30, foi o primeiro a levar a teatralidade para o cinema como modelo do domínio do movimento. Ele é um precursor do modernismo que, ao assumir o cinema, não larga sua arte de ator de teatro – leva-a para seus filmes. Preocupado com as limitações do cinema mudo, passou um tempo desenvolvendo uma base realista nas narrativas de seus filmes antes de abrir as possibilidades para uma performance estilizada, que lhe permitiria uma alternância entre a comédia e o patético. Assim, ele “negociou” com as competitivas demandas entre duas estéticas: a espetacular, do “vaudeville”, propulsora de rupturas na narrativa (levando as imagens para um plano fora da realidade, como fugas através do onírico ou da fantasia); e a do verdadeiro melodrama sugerido, por exemplo, no conflito da cena final com a garota das flores em Luzes da cidade. Em Luzes da cidade, Chaplin inclui na performance do seu personagem – o Vagabundo – o bastão do palhaço, a pantomima, a sua hábil coordenação motora, o melodrama e a 93
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Fig. 1: Charles Chaplin
graça. Seu personagem é um mímico da alma; a expressão corporal é a forma que ele encontrou para falar. Sobrevivente, num plano diferente das outras personagens, se mantém afastado de suas vidas e realidades. Sem endereço, nem família, é julgado pela sua aparência, e interage com o mundo apenas pelas suas ações. A sua aparência exterior contrapõe-se à sua beleza interior, criando contraste entre o conteúdo e a forma, e subordinando o psicologismo ao corpo grotesco, como indica Meyerhold6. É assim que a inverossimilhança consciente e a dissonância de seus gestos suplantam o cotidiano. E é assim também que a sua performance quebra o clichê do melodrama e torna-o original e emocionante, como na já citada cena em que a cega com a visão então restaurada, toca suas mãos, o reconhece pelo tato e o aceita tal como é. Os sentimentos contraditórios de rejeição e aceitação, de medo e ternura são vistos pela expressividade de seu olhar e gestos. Dessa forma, sua performance caminha nos limites do trágico e do cômico, desenvolvendo todo o seu potencial expressivo de atuação que até hoje nos emociona. 2. Jean-Louis Barrault - Boulevard do Crime O filme Boulevard do Crime não aborda somente a performance atoral, mas tam94
bém o cinema como meio de mostrar o próprio teatro, sem que um anule o outro. Encontra-se ali o drama do espetáculo da pantomima, uma arte de imagem em movimento criada quando não era permitido falar no teatro, e quando um mimo ainda não era considerado um ator, justamente por não ter o domínio da palavra. A performance da mímica, apresentada pelo ator Jean Louis Barrault faz parte da narrativa do filme, como na cena em que Baptiste vê Lemaitre seduzindo sua amada nos bastidores e pára de repente a sua atuação no palco. Nesse momento, a realidade da ficção confunde-se com sua performance no teatro; há uma transposição mútua; uma como que prolonga e continua na outra. O rosto de Barrault, congelado e em silêncio, tem uma expressão que é um misto contraditório de sentimentos em um precioso momento.
Fig. 2
Marcel Carré, diretor do filme, soube se controlar para não filmar simplesmente um grande espetáculo teatral. Devido à sua precisa pontuação, as performances atorais agigantam-se, mas sem exageros. Pelo seu reconhecimento do talento de Barrault, não só no drama, mas também como virtuose da mímica, é possível que o filme tenha sido concebido já com base na versatilidade desse ator. O filme é uma metáfora em que o mundo é um palco com homens e mulheres, que são atores. As personagens da pantomima no teatro são Pierrô, Arlequim e Columbina, eter-
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nas figuras da “Comédia dell’Arte” que – no filme – atravessam da ficção para uma mesma situação na “vida real”. Trata-se, pois, de um filme cuja atmosfera é teatral, cujas personagens do teatro confundem-se com as personagens do cinema, e todas fornecem uma visão artística da época. 3. Mastroianni e Fellini – La Dolce Vita Em se tratando da teatralidade no cinema, não se pode esquecer de Fellini e o poder metafórico de suas imagens. Aproximando o fantástico à vida de suas personagens, ele nos faz perceber o próprio cotidiano como espetáculo, do mesmo modo que o espetáculo – sob sua direção – tende a extravasar sobre o real. Desse modo, pela teatralidade, identificam-se as personagens aos próprios atores. Mastroianni, por exemplo, foi um ator que, através da expressividade singular, mostrou o caminho para a teatralidade encenada por Fellini. No filme La Dolce Vita, rodado em 1959, em Roma, pode-se observar a identificação dos dois Marcellos, o ator e o personagem, que – juntos – fluem no interior de um homem vistoso, sonhador e desesperado, preso na armadilha de uma vida sem sentido. Seu olhar “blasé” encaixa-se perfeitamente no personagem mulherengo que se deixa envolver pelo mundo da fantasia, da sedução e do “glamour”, despertados com a chegada da estrela americana na cidade, pela qual se apaixona. A cena em que Marcello a persegue pela cidade, na madrugada, até a Fontana di Trevi, é o ápice do filme. Durante essa seqüência, insistentemente, ele tenta uma aproximação com a atriz, sempre interrompida por ela de uma forma banal. O exterior, nesse contexto, mostra-se como um elemento ao mesmo tempo de sedução e de frustração, atuando sobre as personagens, forçando a sua aceitação do belo da vida, que é também contraditório.
Fig. 3
Neste filme, também através de personagens carnavalescas, a teatralidade é enfocada, como na cena do palhaço com dançarinas que imitam animais, no restaurante freqüentado por famosos e empresários. É uma característica em Fellini mostrar uma condição de naturalidade no estranho do ser humano; uma relação de impessoalidade para com o bizarro da humanidade. De modo que homem e ator não mais parecem se opor, assim como a arte e a realidade, que então se fundem. Talvez o que tanto nos afeta em seus filmes seja a transformação do aspecto contraditório da vida das personagens em algo espetacular, ou a percepção do elemento humano como teatral. 4. Almodóvar – Má Educação As fortes características de personalidade nas personagens de Almodóvar aproxima-as do melodrama teatral e demandam do ator uma performance “sem vergonha” de se expor no mundo dos desejos, das frustrações, do lado obscuro X do ser humano. Almodóvar sempre procurou filmar com graça e naturalidade as mais absurdas situações de suas personagens, misturando o ordinário com o extraordinário em suas cenas. As personagens exageram os sentimentos apresentados até o seu limite, e tal obsessão se mostra
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numa mistura balanceada de comédia e drama, na alegria de viver por trás do ridículo da existência. Os temas principais dos seus filmes são desejo, família e religião experimentados por suas personagens de uma forma fora dos padrões considerados normais pela sociedade, o que as torna críticas (ou em crise) em relação às regras da tradição. O melodrama em seus filmes se baseia sempre na teatralidade dos gestos, da postura e do comportamento assumidos no corpo do ator, definindo a narrativa pelas fortes imagens que então se criam. No filme Má Educação, o protagonista possui um forte desejo de ser outro, como fuga à realidade, tornando-se ator ou travesti. Para isso, ele age em cena através do seu corpo como espetacularidade, como na cena em que o ator Gael Garcia faz uma performance ao som de “Ne me quite pas”. Deslizando por sobre o seu vestido justo, a câmera explora a artificialidade intencional do corpo do ator como contradição tragicômica do personagem.
CONCLUSÃO Assim como em Almodóvar, a realização de Chaplin, Barrault e Fellini estão de acordo com o que afirma Brook7. Segundo ele, para se fazer teatro, é preciso que se dê uma relação autêntica do ator com o espectador. Quanto ao cinema, é preciso ainda mais. O olhar da câmera precisa fazer com que cada imagem signifique de forma autônoma e produza emoções que possam surpreender os espectadores. É assim que o cinema quebra a linearidade da narrativa e visualiza novas possibilidades de coexistência com a linguagem teatral. A teatralidade – inerente na performance do ator – talvez seja mesmo a química de sucesso dos grandes cineastas: do cinema mudo até os dias atuais.
Andréa Stelzer, Mestranda em Teatro na Universidade do Rio de Janeiro – UNIRIO. Atriz na Cia. Amok (Mímica Corporal Dramática) e professora da rede municipal. E-mail: andréa.stelzer@bol.com.br Orientador: Prof. Dr. Walder G. Virgulino de Souza, Docente junto ao Depto. de Teatro da UNIRIO. E-mail: walderdesouza@yahoo.com.br
Notas 1. PICON-VALLIN, 2006, p. 20. 2. BENJAMIN, 2000, pp. 67-113 (Tradução nossa). 3. SONTAG, 2001, pp. 99-100. 4. BROOK, 2002. Fig. 3
5. JENKINS, 1995, p. 149. 6. PICON-VALLIN, op. cit., p. 35.
O filme converte-se então numa crônica do universo do cinema, tematizando, questionando e chocando os conceitos morais. Na ambigüidade, de várias formas presente na performance do ator, reside a força do filme de Almodóvar.
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7. BROOK, op. cit., p. 12.
Referências Bibliográficas BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era da reprodutibilidade técnica. São Paulo: Brasiliense, 1985.
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___________. “L’ouvre d’art à l’éte de sa reproductibilité technique”. In: Euvres completes, tome III. Paris: Gallimar, folio essais, 2000. BROOK, Peter. A porta aberta. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002. CALIL, Ricardo. “Almodóvar reencontra Almodóvar”. In: Revista Bravo . Junho 2006. Disponível no site http:// www.bravonline.com.br/noticias.php?id=2218. DELEUZE, Gilles. A imagem-tempo. São Paulo: Brasiliense, 2005. JENKINS, Henry e KARNICK, Kristina Brunovska. Classical Hollywood Comedy. New York, Routledge, 1995. PAVIS, Patrice. Dicionário de Teatro. São Paulo: Perspectiva, 2005. PICON-VALLIN, Béatrice. A arte do teatro entre tradição e vanguarda: Meyerhold e a cena contemporânea. Rio de Janeiro: Teatro do Pequeno Gesto: Letra e Imagem, 2006. SONTAG, Susan. Styles of radical will. New York: Vintage, 2001.
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Expressionismo e Contemporaneidade Fábio de Bittencourt Luise Weiss Resumo: Este artigo trata do Expressionismo na contemporaneidade, ao relacionar alguns de seus aspectos à produção do autor, a qual pode ser descrita por características como a desconstrução espacial, ênfase na deformação das figuras, expressividade técnica e liberdade temática enfatizando o cotidiano, concernentes à poética expressionista .
Abordar o Expressionismo, a partir de seu surgimento na Europa, poderia ser entendido como uma tarefa no campo da História da Arte, contextualizando-se manifestações de um ponto de vista historiográfico e linear, tantas vezes já cumprida por autores competentes e obras clássicas da literatura em questão. Pretende-se aqui, por outro lado, tecer considerações de outra ordem, isto é, situar e analisar um contexto que diz respeito a minha formação e produção artística, demonstrando, desse modo, a contemporaneidade de correntes de ordem “expressionista”, ao apontar nas obras de alguns de seus participantes, características comuns ao meu trabalho. Antes de mais nada, segundo Cardinal1, no prefácio de seu livro “O Expressionismo”, este seria um movimento trans-histórico, atemporal. Por outro lado, pode-se afirmar que o “expressionismo” se desdobra em três principais momentos: Expressionismo Histórico, até a década de 20, com os grupos “A Ponte” [Die Brücke] formado por Kirchner e seus seguidores, e “O Cavaleiro Azul” [De Blaüe Reiter], encabeçado por Kandinsky; Expres-
sionismo Abstrato, a partir da década de 50 e Neo-Expressionismo, da década de 80 até a atualidade [Novos Selvagens, Bad-Painting, Transvanguarda ou Nova Figuração]. De uma maneira ou outra, já tomamos como pressuposto que se pode falar numa contemporaneidade do Expressionismo na qual situo minha formação como artista e minha produção. Uma nascente importante da corrente expressionista na Europa foi a obra do norueguês Edward Munch, com uma poética intimista. Ainda ligado a correntes impressionistas, revelou uma grande influência na formação do expressionismo germânico, expondo e indo morar na Alemanha, ainda no final do século XIX. O começo da escola moderna alemã, isolada e distinta da escola parisiense, está na arte de Munch, segundo Read.2 Em Berlim, expondo e participando ativamente dos movimentos, influiu na formação do grupo “Die Brücke”, em 1905. As características essenciais da poética expressionista estão assim colocadas na declaração de Maillard sobre este grupo:
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“...Todos estes artistas são inquietos, de sensibilidade doentia, atormentados de obsessões religiosas, sexuais, políticas e morais. Paisagens e nus dramáticos, composições místicas e visionárias, cenas rurais e urbanas, de circo, de caféconcerto, de gente suspeita, tais os temas principais. As cores puras brilham em ácidos estridentes, cercados de contornos abruptos nos quais se traduz a influência da arte negra e das madeiras gravadas primitivas. Através das variedades dos meios pintura, escultura, gravura em madeira, litografia, água-forte, cartazes, impressão em pano, etc.” 3
Para Lopera4, é na obra de Picasso, “Les Demoiselles D’Avignon”, que se encontra o germe do expressionismo, um conjunto justificável de fatores que iniciam a poética expressionista, como a exacerbação de realidades existentes ou até, como afirma este autor, mulheres nuas e esquálidas que “... eram uma forma de realismo emocional tão neurótico como se deseje, mas da extirpe dos realismos”. Argan5, analisando a obra citada acima, observa a contribuição de Picasso na fundação de uma nova abordagem temática com relação a realidade do artista e ao aspecto sócio-cultural, presente nas obras dos expressionistas. A partir de então, vê-se uma avalanche de obras modernistas com características ditas “expressivas” e de início centro minha atenção no grupo “Die Brücke” [A ponte]. Observo já nesta formação aspectos emergentes que são fundamentais para a descrição de meus trabalhos: o universo temático de caráter social e cotidiano, a predominância da gestualidade através de fortes e decisivas pinceladas na constituição de uma fatura acidental e coloração instintiva e uma composição truncada; lotando de elementos o espaço pictórico a fim de causar uma atmosfera conflitante, tensa e sinuosa que contextualize o sujeito representado.
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Reforçando, Argan6 coloca que os artistas do grupo “A Ponte” resgatam as origens do Romantismo frente a sua realidade e define a condição do artista como fecundo ou emergente, anti-burguesa, recusando as linguagens já constituídas, justificando a sua rudeza técnica e temática. Devo ressaltar em minha formação artística a importância da obra do artista russo, radicado no Brasil, Lasar Segall pois, desde a minha infância, a partir dos meus oito anos freqüentei as dependências do Museu Lasar Segall, próximo a minha residência em São Paulo, capital. Desde então tive um aprendizado através da apreciação de suas obras expostas e posteriormente vim a estudar, fazendo os cursos de desenho artístico e modelagem no atelier do museu. Destaco a ligação direta deste expoente do expressionismo no Brasil com as primeiras correntes expressionistas, citando seus próprios comentários, a seguir: “Minhas melhores e mais preciosas horas, porém, vivi-as em meu miserável quartinho dum bairro popular de Berlim, em que, inflamado pela possibilidade de pintar sem fórmulas e restrições asfixiantes, tentava encontrar minha própria expressão artística.” “[...] Foi nessa época crítica que tomei contato com alguns jovens pintores que pertenciam a Secessão de Max Liebermann como também a de Lovis Corinth. Juntei-me a eles. Meus quadros foram aceitos na Secessão, ganhei o prêmio Liebermann.” 7
Em seu livro “A forma difícil”, o historiador Naves comenta a relação de Segall com o expressionismo germânico, afirmando o aspecto incisivo do expressionismo na realidade: “Para o expressionismo - sobretudo o germânico -, a arte era muito mais do que um aspecto da atividade humana. Em última análise, ela circuns-
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crevia o único momento em que a subjetividade podia dar provas da sua potência e integridade, num mundo em que os limites impostos pelos processos objetivos praticamente anulavam qualquer autonomia do sujeito. Mesmo que o resultado final desse ato de rebeldia testemunhasse acima de tudo a incapacidade da arte para converter o real a sua dinâmica, restavam os indícios de um empenho desmesurado para manter viva a possibilidade de uma nova existência.” 8
Com relação a minha formação, cabe lembrar a importância da obra de Oswaldo Goeldi, notando o rigor de seu trabalho e seu esforço no sentido de apurar uma linguagem própria através de seus desenhos e gravuras. De uma maneira direta e poética, Goeldi nos fala de seu cotidiano, transformando a paisagem do Rio de Janeiro em um lugar sombrio e claustrofóbico, repleto de seres abandonados e ameaçadores, numa paisagem noturna e marginalizante. Suas intenções expressivas e técnicas, enquanto a conformar uma forte poética, que viria depois a se assemelhar com a dos “expressionistas”, são relatadas por Reis: [...] “O domínio da técnica, a ponto de, através dela e com os próprios dados da realidade, recriar o mundo subjetivo, lírico ou trágico, com força comunicativa comovedora, é a transcendente aspiração do artista, aspiração dramática que lhe inflige cruciante labor. Mais padecem essa tortura os artistas de aguda sensibilidade, donos da vida interior exuberante, original e por isso mesmo, tirânica. Cada trabalho realizado é uma súmula de esforços despendidos para que a correspondência entre a emoção e sua representação plástica se torne intrínseca.” 9
Afirmando a ligação de Goeldi com as raízes do expressionismo, Reis lembra que: [...] “A obsessão de que a obra de arte seja a representação dos impulsos subjetivos, da von-
tade artística que subordina a própria razão, é característica essencial do expressionismo.”[...] “incluem-se todos os grandes artistas, todos os que contaram o seu drama, com toda a força de vontade artística. Nele situa-se Goeldi, não por influências de seus contatos com os expressionistas germânicos, mas por seu temperamento.” 10
No segundo momento do expressionismo, a partir da década de 40, na América e na Alemanha do pós-guerra ressalto a importância de dois artistas, basicamente figurativos que trabalharam uma poética intimista, reanimando preocupações dos primeiros expressionistas, enfrentando a problemática da expressão em grandes pinturas figurativas, com relação a sua realidade. São eles Philip Guston e Markus Lüpertz. Ambos trabalharam com um universo temático voltado para a figura humana, seja simbolizando ou expressando esse universo íntimo do sujeito [artista] frente a sua realidade espelhada no universo particular do ateliê, nos objetos, na rua, na paisagem, ou num universo lírico, limiar entre estas realidades figurativas e simbólicas. Esta escolha foi fortemente direcionada em virtude de manifestações ocorridas nas décadas de 80 e 90 em torno da pintura, as quais acompanhei pessoalmente, que fizeram parte do meu cotidiano e da minha formação artística. No decorrer destas décadas, identifiquei pressupostos importantes, citados a seguir, na obra destes dois artistas, que serviram como paradigmas na análise das produções pictóricas da época. Em entrevista, Guston descreve seu processo de criação, através da escolha do seu campo temático, restrito e cotidiano, ligado ao dia a dia, mais especificamente a sua relação com seu universo íntimo, no caso, o próprio ateliê, e da ligação com a tradição da pintura, citando alguns importantes pintores da Historia da arte como Matisse e Bonnard por Hopkins11.
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Além da questão temática, pode-se ver na obra de Guston, a tensão entre a linguagem abstracionista e a figuração, pois no processo de construção, emergem imagens do que ele chamaria de “sujeira colorida”, tal como, usando sua própria metáfora, o “Golem”, figura da mitologia germânica, que surge do barro. Objetos retirados do dia a dia, pintados em pequenas telas são recompostos em formatos maiores, num movimento de permutação e metamorfose, como por exemplo, blocos de prédios de uma paisagem urbana se transformando nas duas partes de um livro por Storr12. Assim, as imagens criam uma dualidade, situando-se entre o campo abstrato e o figurativo. Storr chama atenção, entretanto, para o cuidado em se atribuir à obra de Guston características do que se veio a conhecer como neo- expressionismo pois isso poderia ignorar complexidades de sua arte. Apesar do conteúdo biográfico, ele não estava preocupado com a auto-expressão nem estava apenas reagindo contra o formalismo crescente no abstracionismo que predominou os anos 60/70. Ele era convicto, por exemplo, segundo este autor, da importância de um Mondrian e outros abstracionistas nos quais identificava uma “idéia fixa”. Os limites entre o representacional e o abstrato são tênues em sua obra pois a questão para ele não era escolher entre um e outro mas em como manter a identidade do autor e preservar o momento - o instante na construção da obra - contra a tendência do enrijecimento de fórmulas. Na Bienal Internacional de São Paulo, nas edições de 1981 e 1983, respectivamente, pude apreciar “in loco” as obras de Philip Guston e Markus Lüpertz, apenas para citar, estes precursores do ressurgimento da pintura nos anos 90, entre outros. Observo que por serem suas poéticas construídas nas décadas de 60 a 80 são estas as fontes deste movimento. 102
O artista alemão Markus Lüpertz me despertou interesse desde 1992, quando pude acompanhar através de um vídeo13 uma amostra significativa do seu processo de trabalho. Neste vídeo, vê-se nitidamente o procedimento particular adotado pelo artista na concepção e construção de suas pinturas que servem de paradigma para cercar algumas bases ou princípios que a meu ver coincidem com proposições contidas em algumas de minhas obras. Considero importante ressaltar a apreciação deste artista em ação no vídeo citado, visto acompanhar visualmente com detalhes a confecção da fatura da pintura e a gestualidade requerida no fazer de suas obras. Lüpertz é um artista vigoroso, em ação, age de maneira enérgica, intensa e usando de uma ampla gestualidade na construção de suas pinturas. Sua medida é a intuição, é ela que guia suas ações e escolhas quanto a opções temáticas e colorísticas. Assim como outros pintores expressionistas, ele se atira num embate com a matéria, a tela é um espaço onde o artista esta inserido, sua dinâmica é tomada por ações repetitivas onde ele arremete incansavelmente com grandes pinceladas e esguichos de tintas na obtenção de um descanso do olhar. O gesto, a sua gestualidade é de suma importância nesta realização. Zweite assinala que “o gesto de realização triunfa sobre o motivo, mas sem o extinguir totalmente, sem o desfigurar absolutamente. Embora Lüpertz pinte no estilo concreto[objetivo temático] ele tem mais interesse no próprio pintar do que no motivo representado pela própria pintura”14 e reforça dizendo “[...] Especialmente as pinceladas rápidas e largas cobrem todos os pormenores e coagem o material heterogêneo numa forma total que aparece como natural, anulando a fixação e o conteúdo dos elementos individuais sem os extinguir totalmente. [...]”15 No desenvolvimento da obra de Lüpertz percebemos uma atitude notavelmente ines-
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perada e oscilante com relação a aspectos temáticos. Suas grandes telas gestuais muitas vezes são iniciadas com uma atitude absolutamente abstrata e informal, chegam a conformar uma realidade figurativa, ainda que crua. E velada, camuflada, na constituição de uma rica matéria pictórica, até que, como num embarque seguro, resolvem-se em formas biomórficas ou zoomórficas reunindo universos distintos como objetos e figuras [humanas ou não], objetos e paisagens ou figuras e paisagens. Neste sentido, observamos a abertura temática e processual na obra de Lüpertz, quando permite esta rica variação em torno de temas e as adequações técnicas possíveis no processo de conformação da obra. Segundo o historiador Klaus Honnef16, esta nova geração de artistas que surge no final da década de 70, mesmo alguns que já tinham sua produção madura em andamento desde a década anterior, como é o caso de Markus Lüpertz, George Baselitz, Anselm Kiefer e A. R. Penk, na Alemanha e Francisco Clemente, Enzo Guchi e Sandro Chia, na Itália, encabeçam toda uma lista de artistas europeus, especialmente italo-gêrmanicos. Esta nova geração apresentava em suas obras, em grande parte pinturas de grande formato, telas maiores que a escala humana, na sua maioria ultrapassando em suas dimensões a faixa de 2 metros, no sentido deste suporte potencializar valores expressivos e gestuais da imagem representada. Com o aumento da produção de obras pictóricas, produtos artísticos facilmente adquiridos pelo mercado, aconteceu uma grande expansão do mercado de arte e conseqüentemente a proliferação de galerias pelo mundo a fim de comercializar a nova produção, tão divulgada pela mídia mundial a partir da década de 80. Neste momento, o Brasil também vai receber as influências desta produção con-
temporânea através do seu maior evento artístico que é a Bienal Internacional de São Paulo onde, a partir da sua XVI edição, no ano de 1981, recebe os primeiros representantes desta nova geração de pintores destacando-se, entre eles, o canadense Philip Guston. Em sua edição seguinte, a Bienal apresentaria obras significativas dos artistas alemães Markus Lüpertz e A.R. Penk. Outras Bienais de extrema importância foram a XVII e XVIII edições nos anos de 1985 e 1987, respectivamente, reunindo, em 85, grande parte da produção emergente européia na concepção de um grande corredor de pinturas de artistas internacionais. Apresentavamse, lado a lado, na chamada “A grande tela”, estrangeiros, em sua maioria europeus, e brasileiros. Pude apreciar obras representativas de pintores como: Walter Dahn, Helmut Middendorf, Jorg Immendorff, Georg Dokoupil, Peter Bommels, Rainer Fetting, Martin Kippenberger, Sandro Chia, Enzo Guchi, Salomé e Martin Disler entre outros. Em 87, a XVIII Bienal apresentaria uma mostra individual importante com grandes telas de Anselm Kieffer, alemão, um dos pintores mais representativos da nova pintura alemã pela especificidade da sua obra. Estes acontecimentos repercutiram fortemente em minha produção, permitindo, a partir de então, maior aprimoramento técnico e expressivo na linguagem que se desenvolvia. Com estas considerações e relatos sobre a obra de expressionistas em diferentes épocas de um movimento trans-histórico e atemporal, tentei situar a minha própria trajetória e produção, contribuindo para uma reflexão sobre a coexistência de diversas correntes artísticas no cenário contemporâneo das artes plásticas e sobre processos de formação do artista neste campo.
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Fábio De Bittencourt, Mestre em Artes – Instituto de Artes – UNICAMP. Artista plástico,arte-educador e performer. Ministra oficinas pela Secretaria Estadual de Cultura- Oficinas Regionais de Cultura Carlos Gomes-Limeira,SP. Ministra cursos de arte no Espaço Cultural Alquimia,Campinas-SP. E-mail: fabiodebittencourt@hotmail.com
NAVES, Rodrigo. A forma difícil. São Paulo: Editora Ática, 1996.
Orientadora: Profa. Dra. Luise Weiss, Docente junto ao Depto. de Artes Plásticas do Instituto de Artes – UNICAMP. E-mail: luisew@terra.com.br
REIS Júnior, José Maria dos. Goeldi . Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1966.
___________. Goeldi - Espaços da arte brasileira. São Paulo: Cosac & Naify, 1999. READ, Herbert. A arte de agora agora. São Paulo: Perspectiva, 1972.
SEGALL, Lasar. Textos, Depoimentos e exposições. São Paulo: Museu Lasar Segall, 1993. STORR, Robert. Philip Guston. New York: Cross River, 1986.
Notas
ZWEIT, Armin. Markus Lüpertz. São Paulo: Bienal de São Paulo, 1983.
1. CARDINAL,1984, p. 9. 2. READ, 1972, p. 57.
Catálogos e Textos
3. MAILLARD, 1967, p. 53.
“A Participação dos Estados Unidos da América na XVI Bienal Internacional de São Paulo”. São Paulo: Philip Guston, 1981.
4. LOPERA, 1996, p. 104. 5. ARGAN, 1992, p. 424.
Catálogo Geral: XVI Bienal Internacional de São Paulo, vol. I. Bienal. São Paulo, 1981.
6. Idem, pp. 227-228.
Markus Lüpertz. Kunstsammlung. Nordhein-Westfalen. 1996.
7. LIEBERMANN,1993, p. 13.
Oswaldo Goeldi. Galeria Thomas Cohn. São Paulo, 1999.
8. NAVES, 1996, p. 218. 9. REIS, 1966, p. 33. 10. Idem. 11. HOPKINS, 1981, p. 7. 12. STORR, 1986, p. 66. 13. Vídeo:Inter Nationes, 1983. 14. ZWEITE, 1983, p. 7. 15. Idem. 16. HONNEF, 1992, pp. 24-25.
Referências Bibliográficas ARGAN, Giulio Carlo. Arte Moderna. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. CARDINAL, Roger. O Expressionismo. São Paulo: Editora Jorge Zahar,1984. HONNEF, Klaus. Arte Contemporânea. Colônia: Taschen, 1992. HOPKINS, Henry T.- “Phillip Guston-Uma recordação”. In: A Participação dos Estados Unidos da América na XVI Bienal Internacional de São Paulo. São Paulo, 1981. LOPERA, Jose Alvarez . Picasso Modern Master Thyssen, Madri, 1996. MAILLARD, Robert. Dicionário da Pintura Moderna. São Paulo: Edimax, 1967.
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Notas sobre uma Estética Goetheana Cláudio de Souza Castro Filho Maria Lúcia Levy Candeias Resumo: O texto aborda algumas das principais diretrizes estéticas que perpassam a obra, tanto literária como teórico-filosófica, de Johann Wolfgang von Goethe. Não se trata de delimitar conceitos norteadores da produção goetheana, mas de identificar a manifestação de idéias, próprias da escrita de Goethe, que apontam para o conflito entre romantismo e neoclassicismo. Do lado romântico, temos um Goethe que se deixa levar pelas aspirações subjetivas, tal como vemos em Werther. Já do lado neoclássico, temos um Goethe influenciado pelo pensamento de Winckelmann, inspirado nas ruínas greco-romanas e numa relação salutar entre o homem e a natureza.
Um conflito primordial marca a obra de Johann Wolfgang von Goethe. Ser ou não ser romântico – ou, ser ou não ser neoclássico –, eis a questão. Ser romântico, no caso, significa ser fiel aos ideais do Sturm und Drang [Tempestade e Ímpeto], grupo pré-romântico do qual Goethe é um dos fundadores e que tem em Os Sofrimentos do Jovem Werther sua mais legítima expressão. Ser neoclássico, por sua vez, significa acreditar na idéia de que uma legítima modernidade só pode fazer sentido se balizada na resignificação, em tempo presente, das ruínas da antigüidade. A representificação do ambiente clássico grecoromano no contexto do século XVIII encontra no pensamento de Winckelmann seu mais ilustre representante. Em ambos os casos, pode-se pensar num Goethe que dialoga com a idéia de transcendência, ligada a uma paisagem poética. Cabe destacar que a idéia de paisagem, em Goethe, suplanta a noção de pintura de paisagem e abarca a imagética paisagística
evocada em tantas modalidades artísticas: a paisagem poética dá-se, assim, em relação à literatura, à música, à pintura, ao teatro de Goethe. Há, portanto, uma equivalência, em termos de formulação de belas imagens, entre a construção plástica e a construção literária, que comparecem, ambas, como formas possíveis de poetização da natureza. Mas a poesia é, para Goethe, a mais imagética das artes literárias, equivalendo à pintura no que se refere a uma especial relação com a natureza. O poeta compreende tal relação tanto pelo viés artístico como pelo viés científico, já que, em última instância, o homem, ao produzir toda sorte de saberes, estabelece com a natura uma relação de espelhamento e integração: a moderna finalidade do sujeito conhecedor é a harmonia com a natureza. Há na idéia romântica (ou hegeliana) de transcendência um interessante contra-senso no que diz respeito a uma intuição de Deus à qual a arte pode nos convocar. Existe, em tal pensamento, uma nítida perspectiva de
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transcendência no nível religioso, já que a arte pode proporcionar uma união espiritual com o absoluto. No entanto, tal experiência dá-se por um caminho subjetivo, por uma experiência fenomenológica do sujeito, que flui romanticamente a obra. Curiosamente, a divindade absoluta que se pode extrair, por intuição, da obra, não se encontra num movimento transcendente de ordem metafísica – para além da physis –, mas reside num mergulho subjetivo. Se o homem é feito à imagem e semelhança de Deus, é no próprio homem que se encontrará a centelha divina, intuindo-se a existência fenomênica de Deus. Se não se pode falar, numa perspectiva romântica (seguindo os passos de Hegel), de uma transcendência puramente religiosa ou exclusivamente subjetiva, tampouco se pode afirmar, de forma categórica, que há no modelo neoclássico de Winckelmann uma objetividade plena. Trata-se de um classicismo romantizado, já que pressupõe, por intermédio da fruição de uma paisagem idealizada, uma conciliação do homem em sua relação com o mundo. Winckelmann acredita que a partir do contato com as ruínas da antigüidade grecoromana (ele refere-se, precisamente, às paisagens mediterrâneas da Itália, entendidas como Magna Grécia) se pode experienciar uma revivificação do espírito grego, marcado por uma harmonia do homem com a natureza circundante. Um dos mais significativos legados do romantismo sem dúvida diz respeito à substituição da retórica pela nascente estética, fenômeno que redefine o lugar da arte no campo do pensamento. Nessa nova configuração, o discurso dá vez à aferição; a obra deixa de suscitar meramente uma reflexão de cunho teórico e passa a englobar suas potencialidades afetivas, sendo percebida como deflagradora de um fenômeno estético, de uma relação sensível entre sujeito e objeto.
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Percebe-se, no decorrer do século XVIII e na passagem para o XIX, uma forte tendência humanista no pensamento ocidental, marcada pela formulação e pela crescente afirmação da noção de sujeito. Tal tendência, ao que parece, deve-se a uma herança renascentista e iluminista que, em decorrência de uma crise do sagrado (ascensão burguesa, reforma protestante etc.), põe o homem no centro do universo. Hegel, por exemplo, exclui do pensamento estético o belo proveniente do mundo natural, reservando na nova ciência filosófica espaço exclusivo para o belo artístico. A vantagem do último frente ao primeiro está precisamente no fato de que a arte é produção do gênio humano, e somente por aquilo que o homem efetivamente produz podem ser percebidos os traços do absoluto. Tal tendência humanista, fortemente impregnada na metafísica hegeliana, está também em Goethe e Winckelmann, já que a arte neoclássica deve cristalizar o movimento do mundo antigo, dando um passo para além da natureza. O belo artístico supera, pois, o belo natural. No centro do indissolúvel embate entre o Goethe romântico e o clássico enfrentamse, assim, os termos ‘sentimental’ e ‘naïf’. Ao romper com os ideais veiculados em seu Werther, o poeta critica o elemento sentimental do romantismo, por enxergar nele nada além de um desmedido e tempestuoso conflito, que acarreta a impossibilidade de relação do sujeito com o mundo. Especialmente nos anos 1810, o Goethe neoclássico mostrar-se-á influenciado pelo pensamento de Winckelmann, do qual se origina a preferência por uma arte ingênua (naïf) como possibilidade de conciliação do homem com a natureza, fundindo-se ambos numa mesma substância. É nesse sentido que a idéia de uma paisagem poética (relacionada à pintura, mas também à poesia, à música, ao teatro...) será preponderante para compreender alguns as-
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pectos dessa ambígua relação que Goethe constrói, ao longo e no centro de sua obra, com romantismo, de um lado, e neoclassicismo, de outro. Winckelmann compreende a paisagem mediterrânea – não apenas em sua configuração geomorfológica, mas especialmente em seus aspectos climáticos – como determinante para o desenvolvimento da antiga arte grega. A paisagem agradável e o clima ameno em relação ao norte europeu apresentam-se como fatores favoráveis a uma relação harmônica do homem com o ambiente ao redor. Em conseqüência, será também agradavelmente fluida a relação entre o artista e a paisagem, o que gerará uma arte elevada, capaz de imitar idealmente a natureza. O artista deve usufruir do ambiente natural em que trabalha, deixando-se influenciar pela atmosfera local, possibilitando que sua arte manifeste sinteticamente o espírito favorável da natureza circundante. A passagem do século XVIII para o XIX marca, na história da arte, uma recolocação do status da pintura de paisagem. Até então, somente as naturezas-mortas conseguiam ser menos privilegiadas numa escala temática de valor atribuído à pintura. Assim, as pinturas históricas, os retratos e as cotidianas pinturas de gênero eram considerados estilos mais afins aos grandes artistas. Com os pintores românticos tal hierarquia passa a ser revista e a pintura de paisagem desponta como principal veículo pictórico do período. É pela representação da paisagem, então, que os pintores da época imprimirão à tela seus mergulhos subjetivos, suas intuições de Deus, as sutilezas ou a síntese do meio natural que lhes serviu de inspiração. Goethe vê em Jacob Philipp Hackert um dos mais interessantes artistas da época, pois enxerga em seus quadros a instauração de um nicho cósmico propiciado pelo próprio método de composição do pintor. Trata-se de uma unidade ideal que se dá pelo fato de o artista primeiro traçar a linha do horizonte e, só em se-
guida, superpor planos que se colocam à frente uns dos outros. Hackert, segundo a crença goetheana, avança em relação à chamada ‘pintura de vista’, já que ultrapassa o registro científico da paisagem em favor de uma síntese que deve aglutinar os elementos meramente necessários para a compreensão de uma lei essencial, que rege tanto aquele circunscrito universo quanto a natureza como um todo. Segundo Goethe1, é pelo conhecimento legítimo, empírico, vivencial, do fenômeno natural que se dá a ciência, isto é, a compreensão das leis essenciais que impulsionam o fluxo fenomênico das coisas naturais. Como se vê, é tênue o limite que separa arte e ciência no pensamento de Goethe. Se, em relação à ciência, é preciso conhecer a fundo o fenômeno e sua história (por intermédio de um contato estreito com a natureza), no que tange à arte, o poeta pressupõe uma relação sensual com a matéria, ainda que mediada pela razão. É a partir de um delicado contato com o particular, portanto, que se poderá, na arte, alcançar uma totalidade. O neoplatonismo hegeliano já pode ser visto em Goethe no que ambos vislumbram como possibilidade de transcendência humana por intermédio da arte. Afinal de contas, é no mais estreito contato com natureza, transmutando em arte tal fenômeno, que o homem poderá encontrar um mecanismo de elevar-se; ambos ultrapassam, assim, o registro iluminista de Lessing, para o qual a arte é vista praticamente como pura linguagem. A síntese, em Goethe, pode ser compreendida à semelhança de um processo alquímico, o qual se dá pela fusão de elementos aparentemente díspares. Em Fausto, por exemplo, mostram-se nítidas as influências que os escritos alquímicos do século XVII exerceram sobre a escrita goetheana. Quando decide abandonar a clausura de sua biblioteca gótica (abandonando também a fé nas categorias eruditas do 107
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saber) para experienciar a verdade sensual da vida mundana, Fausto (a personagem) é conduzida por Mefistófeles à Hexenküxe [Cozinha da Bruxa], onde sorverá uma poção capaz de lhe fazer rejuvenescer. Tal experiência funde, assim, aspectos místicos – marcados pela atmosfera cerimoniosa da cena – com elementos científicos – já que a Bruxa elabora todo um procedimento (um método) para preparar e servir a poção. No entanto, ao abordar Fausto procurando observar os já expostos contrastes entre elementos neoclássicos e aspectos românticos, o fragmento em que se encontrará com maior reverberação tal gama de tensões será, sem dúvida, a clássica Walpurgisnacht [Noite de Valpúrguia]. A primeira versão conhecida de Fausto data mais ou menos de 1775 e foi apresentada por Goethe como Urfaust [Fausto Original ou Pré-Fausto]. Será apenas na terceira fase de confecção da obra, entre 1797 e 1808, que a Noite de Valpúrguia se mostrará. Embora a Walpurgisnacht vá, futuramente, ganhar novos contornos e desdobramentos no Segundo Fausto, a cena à qual aqui nos referimos é, com precisão, a apresentada por Goethe no Faust I [Primeiro Fausto]. A Noite de Valpúrguia, dentro da estrutura épica do texto como um todo, marca um significativo episódio da Gretchentragödie [Tragédia de Gretchen]. Fausto abandonou Gretchen após os consecutivos assassinatos da mãe e do irmão dela, este por uma apunhalada de Fausto, aquela por veneno servido pela própria jovem. Além disso, Gretchen está grávida de Fausto, é condenada à guilhotina pelo matricídio e, já na prisão, enlouquece. Como culminância de seu suplício, ela, no próprio cárcere, dá à luz o bebê, mas o mata, afogando-o com o leite materno ao sufocá-lo junto ao seio. Simultaneamente a tão doloroso percurso, a Noite de Valpúrguia marca a radical alienação de Fausto frente ao padecimento da amante. Goethe constrói, na peculiar 108
cena, um nicho poético rico em imagens oníricas. Se, como vimos, para o poeta, a poesia equivale imageticamente à pintura, podemos equiparar a Noite de Valpúrguia aos mais célebres quadros de Pieter Bruegel ou de Hieronymus Bosch. Trata-se de uma fuga da realidade que, contrastivamente, abrirá os olhos de Fausto para o sofrimento de Gretchen, que comparecerá na cena como uma espécie de imagem espectral, sintetizando, num mesmo momento, os múltiplos crimes e expiações. As imagens sacrificiais da Noite de Valpúrguia são inúmeras e, embora o tom de fantasia com que são imaginadas (isto é, tornadas imagem) aproximem a cena dos ideais românticos de transcendência, é preciso ver na composição da cena ecos do projeto clássico goetheano de constituir uma arte legitimamente alemã. Tal legitimidade é pensada, no Goethe neoclássico, não ainda no âmbito de uma unificação nacional, mas na esfera de uma síntese da cultura européia, que abarca tanto elementos nórdicos como heranças mediterrâneas. O elemento mediterrâneo, na Walpurgisnacht, talvez esteja, basicamente, na própria estrutura épica (de fundo homérico) da cena, aliada a seu conteúdo trágico-sacrificial, que parece rememorar, em alguma medida, as Dionisíacas gregas. Já o elemento germânico encontra-se, certamente, na tradicional celebração popular que inspira a escrita da cena. Até os dias de hoje, a ocasião é anualmente celebrada, com música e vinho, nos vilarejos alemães da região montanhosa de Schierke e Elend. Diz a tradição que as meninas que, nessa noite, nascem com o cordão umbilical envolto no pescoço, são, na verdade, bruxas! Goethe parece lançar mão dessa imagem para descrever, em sua Noite de Valpúrguia, a miragem que convoca Fausto à lembrança do sofrimento de Margarida: “Não posso desse olhar libertar-me um momento! / É pouco natural; no pescoço adornada / Traz
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um fino cordão de cor avermelhada, / Tão fino quanto o fio de lâmina aguçada!” 2
Fausto, agora romântico da cabeça aos pés, depara-se diante de um suntuoso abismo:
Mas, é importante verificar, em dois exemplos distintos, como a noção de paisagem poética (isto é, de configuração imagética da paisagem na poesia, tal como se fosse numa pintura) pode ser utilizada para mencionar o contraste entre classicismo e romantismo na Noite de Valpúrguia, compreendida aqui como síntese cênica da estética goetheana. Analisemos primeiro a paisagem neoclássica, descrita na escalada do próprio Fausto, que se dirige às montanhas de Harz:
“Como fulge indeciso! Abismo! Coisa estranha! / Um clarão muito tênue, ao longe, lembra a aurora / E dos despenhadeiros na profunda entranha / Reflete-se e rebrilha ardente a toda hora. / Aqui afloram brumas, ali há exalações, / Surgem chamas do fumo, ardentes fluorescências, / Corta o ar um filete de luz em evoluções, / Que brota como fonte a iluminar distâncias. / Aqui se estende ao largo em tantas direções, / Quais veias, às centenas, a cortar campina, / Mais além num recanto o curso enfim se afina, / Unem-se novamente em lentas convulsões. / Raios brilham no infinito, / São poalha de luz. / Olha além! No alto espaço onde afinal reluz, / E rubro se incendeia um muro de granito.” 4
“Quem dera que pudesse essa estrada encurtar! / Deslizar pelo campo em meio aos arvoredos / E subir nos rochedos / De onde brotam nascentes que sussurram eternas! / Esse imenso prazer inspiram tais paragens.” 3
Talvez se possa equiparar a descrição fáustica da paisagem, nesse caso, à pintura ideal que Goethe festeja na obra de Ruysdael, em ensaio datado de 1816. Utilizando-se de tema recorrente na pintura da época, o quadro O Convento , de Ruysdael, analisado por Goethe, representa a ruína de uma antiga construção. Há grande destaque, na composição, para a paisagem natural em que se insere a ruína e, em tal contexto, Goethe destaca o equilíbrio com que o pintor apresenta signos de destruição, mas também de vida, na poetização pictórica do ambiente. A paisagem é insuflada de vida quando irrigada por fontes que jorram, por riachos que correm, por pântanos que se espraiam. Assim, na Noite de Valpúrguia, é o brotar das nascentes que inspirará primaveril prazer a Fausto, em absoluto contraste com o padecimento de Margarida naqueles mesmos instantes. Mais à frente, pouco antes de uma tempestuosa ventania se abater sobre o caminho das montanhas,
Se, antes, numa paisagem marcada pela presença da água como elemento vivificador do quadro, relacionamos a paisagem poética goetheana à paisagem pictórica de Ruysdael, desta vez, diante de um abismo marcado pela romântica imensidão que reduz à pequenez a visão humana, não há como não nos reportarmos à imagética de Friedrich e de seu quadro Le voyageur au-dessus de la mer de mages, pintado por volta de 1818. Talvez o quadro de Friedrich seja uma das imagens que com maior eficácia sintetize a poética romântica de representação da paisagem. Trata-se de compreender o ambiente retratado não exatamente com uma fidelidade científica, naturalista, mas como um espaço idílico a partir do qual se buscará um movimento de transcendência por meio do mergulho na natureza; esse mergulho transcendental, por sua vez, parece obedecer a dois sentidos opostos, mas também complementares. De um lado, é pela vastidão do abismo, pela sensação de infinitude diante da paisagem, que se alcança uma intuição de Deus, tal qual acredita Hegel ser a finalidade última do belo artísti-
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co. De outro, a presença da figura humana, que nos dá as costas (ou que nos inclui, observadores, como parte integrante do quadro), faz da pequenez do homem diante da natureza monumental ponto de partida para um mergulho subjetivo. Atravessar o abismo com a intensidade máxima do olhar – percebendo, ainda, a sonoridade de seus silêncios, o hálito de sua ventania, o percurso veloz do grito que ecoa – é, também, percorrer o abismo que nos conduz à mancha escura que nos faz humanos. Quando se desvenda como sujeito, o homem descobre-se profundamente solitário, impelindo-se assim ao mergulho circunspecto que o induz a buscar em si mesmo um sentido para a compreensão do mistério. Goethe, o neoclássico, empenhou-se com militância na crítica de um romantismo que configura na experiência subjetiva uma reflexão apaixonada sobre as coisas do mundo em suas potencialidades transcendentais. Ao fim da vida, concluindo Fausto (depois de seis décadas de incessante trabalho), o poeta revê suas posições relativas a um classicismo à maneira de Winckelmann. Na revisão final de Fausto, então, rearticula-se o hemisfério romântico do autor, que parece agregar um classicismo não tão conservador como o de outrora, mas consciente de sua raiz romântica, posto que pressupõe uma recolocação do homem no mundo, por meio de uma profunda integração com a natureza. O sujeito, embora se articulando positivamente com a natureza, está profundamente só em sua singular visão de mundo – eis a paisagem poética de uma possível estética goetheana.
Cláudio de Souza Castro Filho, Mestre em Artes pelo Instituto de Artes – UNICAMP. E-mail: claudioscf@ig.com.br Orientadora: Profa. Dra. Maria Lúcia Levy Candeias, Docente junto ao Depto. de Artes Cênicas do Instituto de Artes – UNICAMP. E-mail: mlcandeias@globo.com
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Notas 1. GOETHE, 1996. 2. ___________. 1976, p. 218. 3. Idem, p. 201. 4. Ibidem, pp. 204-205.
Referências Bibliográficas
ECO, U. História da Beleza. Tradução Eliana Aguiar. Rio de Janeiro: Record, 2004. GOETHE, J. W. Fausto. Tradução Sílvio Meira. São Paulo: Abril Cultural, 1976. ___________. Doutrina das Cores. Tradução Marco Gianotti. São Paulo: Nova Alexandria, 1996. ___________. Escritos Sobre Arte. Tradução Marco Aurélio Werle. São Paulo: Imprensa Oficial, 2005. HADDOCK LOBO, R. “A Estética de Hegel e o Ideal Romântico do Amor”. In: FRANCO, I. F. (org.) O que nos faz pensar: arte e filosofia (Cadernos do Departamento de Filosofia da PUCRio). Rio de Janeiro: PUC-Rio, 2003. HEGEL, G. W. E. Estética. Tradução Orlando Vitorino. Lisboa: Guimarães, 1993. WINCKELMANN, J. J. Reflexões Sobre a Arte Antiga. Tradução Herbert Caro e Leonardo Tochtrop. Porto Alegre: Movimento / UFRGS, 1975.
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Teatro na Estante e Teatro no Palco: considerações sobre a língua viva do Teatro Popular Neyde Veneziano Resumo: Este artigo discute as relações entre literatura dramática e teatro popular, considerando este último como oriundo da tradição oral. Puxando o fio do teatro popular, criado diretamente sobre a cena e com o pacto do público, examina-se a questão relativa, especificamente, à fala enquanto meio de comunicação no cotidiano em oposição à fala de personagens (aquela trabalhada pelo autor-dramaturgo). Tomando como exemplo a elasticidade dramatúrgica do circo-teatro no Brasil e passando pelo teatro de convenções e pelo teatro ligeiro, este artigo chega ao emblemático Dario Fo que, ao nutrir-se da tradição oral, fez sua obra merecer o Prêmio Nobel de Literatura.
Recentemente assisti, em uma certa cidade do interior paulista, a um espetáculo de uma tradicional companhia de circo-teatro. Estavam levando, a cada noite, um drama (ou comédia) diferente. Como na boa tradição circense, os atores fizeram, primeiro, uma pesquisa sobre a cidade. Informaram-se sobre a história, sobre a política, sobre os comerciantes, sobre os fatos recentes. Procuraram saber se havia, ali, algum “palacete de rico” (porque se houvesse, pela lógica popular, haveria alguém que explorou os pobres). O drama a que assisti não foi lido, nem analisado, nem decorado. Foi transmitido oralmente. Nenhum dos atores sabia o nome do autor. Denominava-se “Índia”, o tal drama. No final, mostraramme outros trechos de uma peça que se chamava “A mulher que veio de Londres”. E cada um dos componentes do elenco sabia o seu “papel”, que é muito mais do que um personagem. É uma função dramática: “o vilão”, “o galã”, “a dama-galã”, “a caricata”, “o tonto”.
Todos conheciam os roteiros dos espetáculos, as seqüências das cenas. Mas, de acordo com a realidade e com os fatos locais, muita coisa ia sendo mudada. Pois no circo-teatro, uma sessão nunca é igual à outra. E em cada cidade, a mesma história resulta num espetáculo totalmente diferente. Este é um procedimento normal, oriundo do teatro de convenções, que é próprio de todo o teatro mambembe, próprio da estética popular, que é oriunda da Commedia dell’Arte, que é oriunda das Atelanas e que, talvez, tenha vindo dos mimos gregos e das comédias de Mégara. O circo e seus remotos ancestrais estiveram sempre ligados à cultura popular e à arte de fazer rir. A rigor, é muito difícil precisar a data e origem dos espetáculos em recintos fechados ou abertos, que marcaram o surgimento do gênero. A vontade de divertir foi inventando, durante séculos, feiras populares, barracas exibindo fenômenos, habilidades extravagantes, truques mágicos e malabarismos.
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O circo, cujas remotas raízes estão nos espetáculos populares dos gregos e dos romanos, apossou-se das criações de palhaços da comédia popular e da Commedia dell’Arte. Alguns poucos trabalhos universitários já abordaram, de forma tangencial, a questão da arte da encenação e da interpretação no circo brasileiro. Fora dos meios acadêmicos, porém, é muito comum encontrarmos artigos, entrevistas, crônicas, depoimentos (mesmo fora do país), cujos discursos nos fazem crer que existe um jeito brasileiro de fazer circo (principalmente o circo-teatro), uma forma de interpretação que traduz um tipo determinado de caráter. E que este jeito brasileiro estaria combinado a uma certa descontração capaz de proporcionar um terreno fértil para a criatividade e a espontaneidade. Nada poderia se apresentar de forma menos científica ou menos rigorosa. Um tenaz preconceito acredita que a espontaneidade e a criatividade não se misturariam a técnicas e procedimentos, se colocados no mesmo cadinho. Ao se estudarem o circo, as bufonarias e os diversos meios de expressão populares, têm-se estudado as formas e os conteúdos, sem um mergulho nos processos de elaboração. Pensam-se nos enunciados, não nas formas de enunciação. Falta, também, um estudo mais aprofundado do chamado “teatro de convenções” e de como ele chegou até nós. Certamente, a Commedia dell’Arte plasmou uma estrutura que se tornou rígida para o teatro francês e que, mais tarde, retornaria afrancesada para a Itália como “teatro de convenções” no qual espera-se a “tirada” do capocomico, a esperteza da “primeira atriz”, a gag do “bufão”, tudo como manda o figurino do teatro all’improviso. Todas as formas dramáticas reconhecem, como primeira e unitária origem, o rito: nasceram com os momentos essenciais e mais significativos das cerimônias religiosas.
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Também a comédia e, em geral, aquilo que se chama de teatro profano, teve na sua ascendência características do sagrado, ainda que este sagrado pertencesse ao mundo ritualístico das religiões pagãs. Este teatro profano de origem sagrada sobreviveu durante todo o período de perseguições ao teatro, profissionalizou-se nas ruas de Veneza e se instalou nas elegantes salas de nossos dias. A oralidade geradora destas manifestações, sob todas as suas formas, determinou uma estética popular e um jeito de representar direta e exclusivamente para o público. O espírito classificador dos gregos já qualificava a tragédia como forma literária das mais apreciadas. Sobre a natureza literária da dramaturgia, perguntas, no entanto, continuam desafiando o Ocidente pensante: Haverá mesmo, diferenças significativas entre dramaturgia popular e dramaturgia elitista? Literatura dramática é somente aquela que exige o exercício solitário “em gabinete” ou também se cria literatura diretamente sobre a cena? E o público? É criador ou, apenas, espectador? As questões deslizam, umas sobre as outras. Desde Aristóteles, especialistas se ocuparam do caso. Estudos e pesquisas, desvelaram as técnicas dramatúrgicas. Todos foram unânimes: dramaturgia se apóia sobretudo na “ação dramática”1 e também nos conflitos, na superação dos obstáculos, na manipulação das situações. Há arquiteturas muito claras para os diversos sub-gêneros da literatura dramática. Trata-se de estruturas que descendem da tragédia ou da comédia nova ou do drama romântico. No arcabouço de cada gênero há o lugar certo para que um velho tio (ou médico da família, ou advogado do casal) entre para dar um conselho como porta-voz do autor, por exemplo. Há também o espaço ideal que para casais enamorados atinjam seus objetivos, criados brejeiros compliquem a vida de seus patrões, heróis incorruptíveis vençam as dificuldades2. No clássico edifício
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dramático, há princípios como “nós”, “complicações”, “desfecho”. Maleáveis e flexíveis aos tempos, estas construções se adaptaram aos estilos, às escolas, aos pensamentos filosóficos e estéticos de cada período.
servação de nossos processos criativos e à recuperação de uma estética anterior, como determinante da atual, dificultou de início o entendimento desta cena que parecia anêmica, sem tessitura. Que parecia contrafação.
Numa classificação mais exclusiva, é apropriado lembrar que, independente de épocas ou estilos, o gênero dramático comporta as três posturas que lhe são condizentes: o dramático-épico (teatro narrativo), o dramático lírico (em que a poesia compete com a ação) e o dramático-dramático, ou seja, aquele em que se trata, exclusivamente, do aqui e agora.
Os textos abordados apontavam para um perfil peculiar do teatro no país delineando gêneros que se casaram com ritmos, assuntos e fala brasileiros. Este perfil, calcado em técnicas codificadas durante longo tempo, denotava haver procedimentos próprios e um sistema de códigos através dos quais tipos brasileiros falavam e agiam em cena, comprometidos com as platéias de seu tempo.
Hoje, estuda-se, também, a dramaturgia do ator, a dramaturgia do espetáculo e até o teatro da não-dramaturgia. Não nos cabe aqui a discussão destas terminologias3. Voltemos, portanto, ao teatro brasileiro e verifiquemos como e em que medida, aqueles atores que improvisam, estariam ou não, com suas “falas” , fazendo literatura dramática.
Através de ajustes e combinações, chegamos aos procedimentos da construção da cena, da construção dos personagens-tipo e a uma conseqüente fala brasileira.
Pesquisar o espetáculo ou o passado da cena brasileira é trabalhar em ausência, pois o objeto de estudo não pode ser recomposto. Há problemas encontrados pelo artista, enquanto representa, que dificilmente poderão ser compreendidos distantes da experiência concreta. O centro de minhas pesquisas anteriores constituiu-se no levantamento das convenções e dos procedimentos dramatúrgicos do teatro de revista brasileiro, tomando este gênero como emblemático. Busquei as estruturas importadas e as comparei aos modelos brasileiros. Verifiquei significativas diferenças. A partir daí, desviei o olhar para o lado espetacular desse nosso passado teatral. Tornar orgânica a dialética entre dois pólos, dramaturgia e cena contemporânea, a fim de que se possam nutrir um do outro, transformou-se em uma constante preocupação. A aplicação de metodologias importadas à ob-
À tradição do teatro de texto da cultura européia, paralelamente, inscrevia-se a dramaturgia do ator brasileiro que tinha a ver com a construção da sua parte no espetáculo, com todo o seu processo criativo como intérprete de tipos e com uma grande dose de improvisação com a qual ele personalizava a técnica. Quanto à dramaturgia propriamente dita, a par das estruturas importadas, revelaramse estruturas peculiares, inoculadas pelos nossos ritmos (ritmos estes que podem ser musicais, ou de falar, de caminhar, de viver) e determinadas pela natureza transgressora do riso carnavalesco. Chegamos a um formato brasileiro de teatro diferente e único. Da transmigração e das combinações entre o material fornecido pelos atores e as influências estrangeiras, germinou o modelo nacional. Do comprometimento entre estruturas e cena, entre atores e seu público, verificouse uma dramaturgia pensada como texto de representação, por vezes fragmentada entre texto falado e musicado, pois escrever para teatro era, também, escrever para uma deter-
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minada companhia submetida a uma hierarquia (a do teatro de convenções), com atores treinados para o improviso e especializados na construção de tipos, bem ao contrário da atividade isolada que é a dramaturgia de gabinete. Personagens construídos por atores que elegiam um certo jeito de falar, um certo modo de mover-se, um modo de caminhar, uma certa qualidade de energia, um claro tipo capaz de manter consistência e reconhecimento em diferentes contextos entrelaçaramse para se tornarem textura: texto. Texto que abria espaços para improvisações e se utilizava destes tipos, mais máscaras do que propriamente personagens, os quais podem ser tomados como uma pré-partitura, elástica. No outro extremo, como fruto de trabalho “pensante” e não vivenciado, estaria o “grande” personagem , tradição do teatro de texto da cultura clássica tradicional. Esta dramaturgia brasileira, do autor e do ator ou para o ator, tem a ver não só com a tradição popular daquele que conhece as leis do jogo, mas também com a construção das diversas partes do espetáculo, como um conjunto polifônico de vozes independentes a serviço de uma única obra: o espetáculo. Ao examinar os conteúdos destas peças verifiquei como estes conteúdos foram codificados e estetizados pelos atores e lidos pela platéia de seu tempo. Detive-me, não só na forma dramatúrgica, mas nos elementos que delinearam o perfil deste gênero popular de teatro no país, repleto de tipos brasileiros, ritmos brasileiros e, sobretudo, com a fala brasileira. Já são conhecidas as diferenças entre as expressões técnicas “texto” e “texto espetacular”. Contudo, cabe aqui recordar que ao conjunto de todos os elementos previsíveis que entram na composição do objeto de arte de-
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nominado espetáculo chama-se “texto espetacular”. Dentre as tantas partes que compõem o espetáculo teatral (a direção, o espaço cênico, a cenografia, os figurinos, a sonoplastia, a iluminação), nenhuma é mais ou menos importante. É no ator, entretanto, que reside a essência do teatro. Ele é o centro das atenções e o espetáculo só se realiza quando um ator, no palco, torna presente (re-apresenta > representa) um papel que já existe (pois foi criado no passado). Dramaturgia, portanto, é texto dramático. Não é teatro enquanto o texto não tiver sido encenado. E ao ator compete, ao interpretar, dizer este texto. Seja na estética popular, da qual nos ocupamos acima, seja trabalhando sobre textos que comportam uma dramaturgia mais rígida e menos elástica, será, sobretudo, da fala do ator que surgirão, diante do público, as situações que vão impulsionar a ação. Em dramaturgia as parte do diálogo ditas por cada um dos personagens são denominadas “falas”. Em cena, os atores também “falam”. É natural, portanto, que a dramaturgia, na construção das “falas” se aposse dos dispositivos próprios da oralidade. Em períodos “preciosísticos”, conseqüentes do Renascimento e da sublimação das artes, o dramaturgo, então considerado “poeta”, recusava a linguagem cotidiana. Reproduzir a simplicidade do dia a dia seria banalizar a arte, fazer um teatro menor. Ao mesmo tempo, nas ruas, o povo continuava cantando, continuava esbravejando em ritmo grosseiro ou dizendo em acentos adocicados, coisas igualmente importantes àquelas que mereceriam destaque na cena dos nobres e prestigiados. O povo sabe dizer coisas profundas e complexas com grande simplicidade. O teatro do povo, aquele que sobrevivia pela mão do ator, opunha-se declarada-
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mente ao teatro de elite. Este, sim, era considerado “literatura”. Este sim era sublime. E ao sublime não era permitido “roubar” as coisas do povo. E a dramaturgia-literatura caminhou paralela àquela das praças, das estalagens, dos tablados montados ao ar livre. O poeta (feito dramaturgo) buscava a “fala” ideal, a beleza da expressão. Diseurs e diseuses foram consagrados nas cenas que mereceram título de obra artística. Não caberia aqui uma exposição retrospectiva da história teatral. A trajetória estética desta arte desvela o “faz e desfaz” de regras, manifestos, leis, vanguardas. Se pudéssemos rotular a arte da dramaturgia, organizá-la em gavetas, veríamos que as gavetas da arte popular mostravam-se repletas de linguagem viva, de falas verdadeiras, de brincadeiras e de jogos que não eram considerados material artístico nem científico. Enquanto isso, do outro lado do armário, prateleiras roubavam, aos poucos, para a pomposa arte dramática, falas e situações da dramaturgia feita e pensada diretamente sobre a cena. Molière e Goldoni foram os autores paradigmáticos destes honrados “furtos”. Molière roubou a arte das ruas, experimentou as técnicas da Commedia dell’Arte e fez delas uma grande literatura. Goldoni, o advogado veneziano, reformou o teatro italiano à procura do “verdadeiro”. Tomou as estruturas da Commedia dell’Arte, matou as máscaras e fixou-se na verossimilhança. Por máscara, Goldoni entendeu “tipo fixo” e preocupou-se em lhes dar unidade psicológica. Não tratou os Enamorados como “tipos fixos”, mas como “caracteres” (não arquetípicos) semelhantes ao ser humano, individualizados em detalhes. Plasmou-se o modelo do “teatro de convenções”, um teatro popular que subia aos palcos tradicionais, agora não mais propriedade exclusiva das ruas. E vieram os chamados “dramaturgos profissionais”. Nesta lógica inscreveu-se grande parte
do teatro brasileiro. São desta geração Gastão Tojeiro, Abadie Faria Rosa, Armando Gonzaga, Cláudio de Souza. Autores que criaram comédias “de encomenda” para um determinado elenco, pautado pela experimentada estrutura organizacional, com capocomico, primeira atriz, soubrette, ingênua, galã. Esta dramaturgia abria espaços para os improvisos, para as “tiradas”, para os “cacos” somente permitidos aos primeiros atores e proprietários da companhia teatral. Copiando as estruturas das ruas, este teatro estava, novamente, engessado. Procurava a “fala bela” ao mesmo tempo em que a desalentava. O teatro moderno é moderno porque foi capaz de olhar o popular e redefinir seus modelos. Hoje, desmanchou-se a linha que dividia a estética erudita daquela popular. Inflacionou-se a literatura com as falas do povo. À compreensão de Nelson Rodrigues quando uma vizinha reproduz o som brasileiro com “Obrigada, ouviu?” responde o metaplasmo de Carlos Alberto Soffredini: “Bregada, viu?” Um som de fala brasileira que se instala na literatura pelas mãos de hábeis dramaturgos. Volto a Dario Fo e ressalto que ele é casado com Franca Rame, uma figlia d’arte. Ser figlio d’arte, na Itália, significa ter nobres antepassados. Significa pertencer a uma famiglia d’arte, uma família que pode se orgulhar de descender, diretamente, da Commedia dell’Arte, organizada com intérpretes de tiposfixos. Há, ainda, algumas famiglie d’arte preservando vivas as tradições. A Famiglia Rame é uma delas. Na boa tradição do teatro itinerante, quando chegam a uma cidade, os atores fazem uma pesquisa. Informam-se sobre a história, sobre a política, sobre os comerciantes, sobre os fatos recentes. Procuram saber se há algum castelo (porque se houver, pela lógica popular, há alguém explorando os pobres). O drama que apresentam não foi escrito. Foi transmitido oralmente. Nem foi decorado. Cada um dos atores conhece 115
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uma infinidade de diálogos apropriados que, naturalmente, variam para cada ocasião e, principalmente, conhece perfeitamente os assuntos e mecanismos da dramaturgia feita por aqueles que conhecem jogos de encaixe e equívocos, travestimentos e reviravoltas, abertura e desfecho, frases e gestos convencionais que advertem os outros intérpretes sobre mudanças de situações ou sobre a aproximação de um final de quadro, de ato ou de espetáculo. Muitos perguntam porque Dario ganhou o Nobel de Literatura uma vez que Dario é, antes de tudo, um ator. Um crítico americano respondeu: “Talvez porque ele tenha encontrado a forma de injetar a energia do ator na linguagem escrita.” 4 Volto ao pequeno circo-teatro que vi em Araraquara...
Profa. Dra. Neyde Veneziano, credenciada junto ao Programa de Pós-Graduação em Artes do Instituto de Artes – UNICAMP. Além dos livros citados nas referências Bibliográficas, é autora de: A cena de Dario Fo: o exercício da imaginação (Editora Cónex) e Teatro de Revista em São Paulo (Imprensa Oficial do Estado, Coleção Aplauso, 2006). www.neydeveneziano.com.br E-mail: nveneziano@iron.com.br
Notas 1. Ação dramática, a meu ver, é uma expressão redundante, já que drama quer dizer ação. 2. A Commedia dell’Arte tinha 4 tipos-fixos principais: o “Velho” (nos subtipos Magnífico e Dottore), representando a condição, definitiva e irreversível, da velhice, do “ser velho”; os “Enamorados” (homem e mulher, nas variantes ingênuo e aventuroso) representam a condição de “quem ama” e devem lutar para merecerem, enfim, coroarem o seu sonho, “projeto de amor”; O “Servo” (no desdobramento de 1o e 2o e na versão feminina Servetta) representa, entre a função dramática ambivalente de fazer-e-desfazer, a eterna “luta pela sobrevivência” e o “Capitão” (o covarde com máscara de valente) representando o conflito interior entre “ser e parecer”. Cada um desses personagens tinha o seu projeto muito claro. 3. PAVIS, 1999.
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4. Declaração de um crítico americano não identificado, no vídeo A Nobel for two (acervo da Companhia Fo e Rame).
Referências Bibliográficas DUCHARTRE, Pierre Louis. La commedia dell’arte. Paris: Librairie Théâtrale, 1955. FAVA, Antonio. La maschera comica nella commedia dell’arte. Milão: Endromeda Editrice, 1999. ___________. Dario Fo, Teatro. Organizado por Franca Rame. Turimo: Einaudi, 2000. 1242 p. il. (Collana Millenni). MELDOLESI, Claudio e TAVIANI, Ferdinando. Teatro e spettacolo nel primo ottocento. Roma: Bari/Laterza, 1995. PANDOLFI, Vito. Regia e registi nel teatro moderno. Bolonha: Universale Capelli, 1973. PAVIS, Patrice. Dicionário de Teatro. São Paulo: Perspectiva, 1999. Trad. Jacob Guinsburg e Maria Lúcia Pereira. PROPP, Vladimir. Comicidade e riso. São Paulo: Ática, 1992. TAVIANI, Ferdinando. La commedia dell’arte e la società barocca: la fascinazione del teatro. Roma: Bulzoni, 1991. VENEZIANO, Neyde. O teatro de revista no Brasil: dramaturgia e convenções. Campinas. Pontes, Editora da UNICAMP, 1991. ___________. Não adianta chorar: teatro de revista brasileiro... Oba! Campinas: Editora da UNICAMP, 1996. ZUMTHOR, Paul. A Letra e a voz: a “literatura” medieval. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. ___________. Performance, recepção, leitura. São Paulo: EDUC, 2000. Tradução Jerusa Pires Ferreira e Suely Fenerich.
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Performer, Brincante... Máscara Ritual de Si mesmo Luciana Lyra Regina Muller Graziela Rodrigues Resumo: Este artigo traz uma breve explanação sobre a ressonância entre a Arte da Performance e o Cavalo Marinho (Bumba-meu-boi pernambucano), identificada por intermédio da atuação dos mediadores destas duas expressões cênicas, ou seja, o performer e o brincante, que sob a égide de suas máscaras rituais, transformam-se em portais da experiência da cena, atualizando sua própria história e de seus antepassados.
Na linguagem teatral, a mediação é estabelecida pela figura do ator, que é de capital importância para que o fenômeno da encenação aconteça. Pelo ator são reproduzidas as grandes questões ontológicas do teatro. Questões essas referentes à arte como um todo e que dizem respeito, principalmente, às máscaras de atuação. Com o recuo no tempo, entretanto, percebe-se que, até fins do século XIX, o objeto artístico principal na arte do teatro era o texto, funcionando como principal veículo da expressão, no estabelecimento do elo entre o público e os atores em cena. A partir deste período, artistas incomodados com a centralização no objeto textual, vão implementar uma série de embates, a qual desembocou, no século XX, num campo de gradativa permissibilidade ao agente da cena, que passou a descobrir, verdadeiramente, a riqueza e a variedade dos recursos e dos meios de que ele poderia dispor, fomentados por técnicas e vivências na seara da atuação.
Nesta fase, grandes teorias sobre o trabalho do ator foram desenvolvidas. Dentre as instauradoras deste estado de renovação estão as investidas do encenador russo Constantin Stanislavski com enfoque sobre a emoção do ator e a teoria do teatro épico, que visava ao surgimento de um novo ator por meio de um trabalho de interpretação calcado, principalmente, no efeito que Bertolt Brecht chamaria de distanciamento. O francês, Antonin Artaud, também se distinguiu no contexto da atuação, fazendo apologias a um ator/vítima sacrificial de um rito, que trabalha no exercício de sua musculatura afetiva, influindo, decisivamente, nas experiências de Jerzy Grotowski no Teatro-laboratório, que conclamava uma espécie de artista desvendado, um ator santo, personagem dele mesmo . Entre os anos 60 e 70, o movimento de contracultura vem absorver inúmeras das proposições dos renovadores da cena, impulsionando toda uma geração de artistas na dis-
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cussão da função do ator e do rompimento com os limites das convenções. Grupos como o Living Theatre e o Théâtre du Soleil, além de encenadores como Tadeuz Kantor e Peter Brook, por exemplo, aderiram a uma espécie de enfoque no ator como primordial conduto da experiência cênica. Esta migração do foco na arte teatral vai estabelecer um campo para a criação autônoma do ator e favorecer o surgimento de diferentes linguagens voltadas ao trabalho do artista no desenvolvimento de suas pulsões estéticas e ideológicas. No contexto da performance, entendida enquanto uma destas linguagens de renovação, o trabalho do mediador é redimensionado, como já se aponta no ator do teatro contemporâneo. O performer, diferentemente do ator de teatro convencional, que representa ou “vive” um personagem restrito a uma dramaturgia pré-estabelecida, atua num espaço mais aberto ao jogo, ao improviso, à espontaneidade, ao risco, à própria vida. Desta perspectiva, pode-se perceber que se distanciando das artes convencionais, onde há o privilégio do esteticismo e dos conteúdos externos à realidade do intérprete com o público, a Arte de Performance eleva a primeiro plano a relação do atuante com a vida, com o espectador e a própria arte, ressaltando suas características primevas de naturalidade e espontaneidade, em contraposição ao estado sistematizado e ensaiado da arteestabelecida. A incorporação dos atos cotidianos, de vida, das emissões pessoais do artista na performance adquire força de ato ritual, portanto ato modificador. Os atos cotidianos e as relações de vida na cena performática são ritualizados, promovendo a revelação de sua face não-realista, de transcendência.
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É neste plano transcendente que se estabelece o encontro entre performer e público na performance, caracterizando-se pela fugacidade, pela realização do relacionamento vivo no instante-presente e funcionando o artista como uma espécie de “médium”, de catalisador de energias no espaço e tempo simultâneos. Em conjunção com o performer, o público manifesta o rito, saindo de uma posição de espectador, apreciador de uma estética para tomar parte em uma relação mítica, de comunhão. Naturalmente, o jogo direto, frente-a-frente com público, comum a linguagem da performance, exige do performer maior destreza na desenvoltura de sua Arte, tendo em vista que não se deve sustentar em convenções mortas e ilusionistas, típicas da cena tradicional do Teatro. Não tendo o ilusionismo onde se apoiar, leia-se uma personagem para mostrar, o performer, como afirma Renato Cohen, mostra-se dentro de um vocabulário pessoal, a partir de suas próprias particularidades, estabelecendo relações com personas ou figuras, denominação que o próprio Cohen dá em lugar de personagem, como no teatro convencional.1 Na atuação em performance, a busca da persona se dá a partir do próprio performer, não de uma dramaturgia pré-concebida. É um processo radical, comumente impulsionado por um movimento de “extrojeção” do atuante, porque liberta o ego para a definição de roteiro ou do tema para representação de partes de si mesmo, sua visão de mundo, sua pessoa. É natural assim, que sendo valorizados o histrionismo e a extrojeção, o performer parta, durante o processo, mais da forma do que do conteúdo, ou seja, pelo caminho do significante desemboca-se no significado. Na performance, como visto, é o próprio artista o cerne do processo e não uma
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personagem, só que o artista trabalha sob o que podemos chamar de máscara ritual , metamorfoseando-a nas diferentes personas ou figuras, numa espécie de auto-representação.
to mais “jogo de cintura” ou pelo menos um treinamento diverso do teatro ilusionista. O processo se assemelha ao de outros espetáculos como o circo, o cabaret e o music-hall.” 4
Como presença corpórea, o performer, sob o amparo desta máscara ritual, é portal da experiência cênica e no comando da criação / atuação da cena, atualiza sua própria história e de seus antepassados. No dizer de Renato Cohen, torna-se “Um porta-voz do mundo oralizado e memorial.” 2
Estas manifestações, mesmo antes das investidas contemporâneas no artista enquanto cerne do processo, já tinham no mediador, o veículo insubstituível da vivência estética, artística-ritual.
Sobre a máscara ritual, enfatiza Cohen: “... quando um performer está em cena, ele está compondo algo, ele está trabalhando sobre sua “máscara ritual” que é diferente de sua pessoa do dia-a-dia. Nesse sentido, não é lícito falar que o performer é aquele que “faz a si mesmo” em detrimento do representar a personagem. De fato, existe uma ruptura com a representação, (...), mas este “fazer a si mesmo” poderia ser melhor conceituado por representar algo ( a nível de simbolizar) em cima de si mesmo.” 3
No que tange a atuação sob a citada máscara ritual, a Arte da Performance aproxima-se, sobremaneira, de formas espetaculares de linhagem popular, como o circo e os espetáculos do povo, também de ritos tribais ou performances rituais. Sobre a similitude destas atuações, diz Cohen: “A performance tem também uma característica de espetáculo, de show. E isso a difere do teatro. Esse movimento de “vaivém” faz com que o performer tenha que conduzir o ritual-espetáculo e “segurar” o público, sem estar ao mesmo tempo “suportado” pelas convenções do teatro ilusionista. É um confronto cara-a-cara com o público (às vezes acentuado pelo uso de espaços diferentes como ruas, praças, etc.) que exige mui-
No Cavalo Marinho, como forma de teatro de linhagem absolutamente popular e de caráter ritualístico, também a personificação das figuras pelos brincantes parece não equivaler à encarnação de uma máscara ficcional ou à representação de um personagem. O Cavalo Marinho é a denominação pernambucana para o espetáculo de Bumbameu-boi. No entender do pesquisador Marco Camarotti, esta manifestação pode ser definida como uma das espécies de Teatro do Povo do Nordeste5, já que além de conjugar dança e música, possui uma estrutura dramática definida. De acordo com numerosos especialistas, o Bumba é a mais original, a mais complexa das manifestações do povo brasileiro, sendo encontrado em todo território nacional, com ênfase, porém, nas regiões Norte e Nordeste, em zona de pescadores e na faixa litorânea da cana-de-açúcar. No passado, o Bumba era um auto hierático que fazia parte dos Reisados, nome dado a um grupo variado de representações folclóricas nas quais o canto e a dança são predominantes. Em algum momento, houve uma separação destes reisados em relação ao auto, tornando-se este, uma manifestação independente no Nordeste e em outras regiões do país. O Cavalo Marinho não utiliza palcos ou praticáveis, é representado no chão, sempre ao ar livre, com a platéia de pé, formando um
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círculo ao redor dos atores. Sobre essa afirmativa, discorre Leite: “O Bumba é um espetáculo do ar e da terra; dos espaços abertos; da circularidade e fronteiras arbitradas por seus participantes (públicos e atores). Manifesta-se em todo o Brasil e seu nome, assuntos, formas, cores, personagens ou figuras recebem denominações diferentes de acordo com o chão onde se desenvolve. A denominação mais antiga e usual é Bumba-meu-Boi, Bumba ou simplesmente Boi.” 6
Durante o espetáculo, observa-se a busca por uma total comunhão dos assistentes com os brincantes, por meio da integração das linguagens artísticas e da interferência direta no decorrer da narrativa. O momento da brincadeira é assim, um instante de partilha entre espectadores e atuantes, valendo, neste contexto, vivências do cotidiano dos brincantes, do público, além das próprias figuras, nome dado às personagens do espetáculo, que se situam nas categorias de: humanas, animais e sobrenaturais ou fantásticas. Podemos encontrar mais de quarenta figuras diferentes no Cavalo Marinho, dentre eles: o Capitão; Catirina; Mateus; Bastião; o Mestre Ambrósio; a Pastorinha; a Burrinha; D. Joana; o Babau; o Jaguará; a Ema; o Mané Gostoso; o Mané Pequenino; o morto-carregando-o-vivo, entre outros que se sucedem nos diversos e fragmentados episódios da brincadeira. Como antes apontado, no Cavalo Marinho, não há precisamente uma personificação, mas sucessivas metamorfoses, estando aberto ao brincante sair de sua máscara, reassumindo facilmente sua própria personalidade para, em seguida, retomá-la da mesma maneira, sem nenhum prejuízo para o espetáculo ou para o seu relacionamento com a platéia. 120
Como, do ponto de vista material o espetáculo de Cavalo Marinho é pobre em recursos, seu poder maior de atração também são as habilidades histriônicas dos brincantes e tudo aquilo que esse teatro pode dizer aos seus espectadores acerca deles mesmos.7 No Cavalo Marinho, a atuação é palco de experiências, de tomada de consciência para a vida e das relações sociais dos brincantes em suas comunidades. Neste espetáculo, também o sentido da atuação é acentuado, em detrimento da representação, sendo esta estreita fronteira da representação e a atuação, o limite tênue entre a vida e a arte. O processo de atuação do brincante do Cavalo Marinho, desta perspectiva, está calcado na ritualização das idiossincrasias do atuante, no desenvolvimento de suas habilidades pessoais e sociais, em detrimento da interpretação de qualquer papel. Ao referir-se a Guariba8, Hermilo Borba Filho define a idéia de brincante: “... Poeta do corpo que constrói figuras ainda não desempenhadas, poeta dos pés alados nos movimentos da dança da qual ele mesmo é coreógrafo de puro instinto artístico popular, poeta da máscara que faz com os seus olhos, a sua boca, o seu riso ou o seu grito, encarnando a dor, a raiva, a alegria, o deboche para delírio dos espectadores que com ele participam do espetáculo. Um poeta, sim senhor, representante de todo esse povo que morre de fome, que morre de tudo, mas de onde nascem a música, o canto, a dança e a escultura como acintes.” 9
Com essa afirmativa, Borba Filho não só poetiza a mola mestra do espetáculo do Cavalo Marinho, mas revela a amplitude de suas possibilidades no terreno da atuação. O brincante apresenta-se, assim, como um criador, animador cultural, agente de transformações, e, principalmente, um artista hábil nos
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diferentes níveis de interação com a vida e com a arte na cristalização de mitologias. Estes níveis de interação têm seus limites borrados, mas podem ser pontualmente identificados na relação dos brincantes com o público. Peter Harrop, segundo Camarotti, destrincha estes níveis: “(1) a interação entre o público e o ator-comoele-mesmo, como é o caso de um personagem que, após ter sido morto, prefere sentar em uma cadeira ou ajoelhar-se nela, por ficar mais fácil para levantar depois, ou que conversa informalmente ou bebe com seus conhecidos, enquanto se encontra temporariamente sem envolvimento com a ação, ou mesmo quando um ator, por meio de um sinal, indica a outro que ele deve apressar a representação; (2) a interação entre o público e o ator-como-ator, a qual permite que um ator saia de seu personagem e passe a contar piadas ou a fazer troça de alguém entre os espectadores, bem como capitalize qualquer erro que aconteça; (3) a interação entre o público e o atorcomo-personagem, a qual é inevitável, porque, por definição, é comum a todas as formas dramáticas”.10
Podemos perceber pela classificação de Harrop, no tocante ao teatro do povo, que ao botar as figuras, o brincante não é o personagem, mas não não o personagem. Também não é ele mesmo, mas não não ele mesmo. É um corpo que se multiplica na subjetividade, tornando-se ponto de passagem de diferentes estados e energias. Nos interstícios entre o brincante e as figuras, o corpo do atuante adentra em constantes fluxos e metamorfoses, gerando-se aí a possibilidade de uma ação social para a mudança, no locus alternado entre o eu e as alteridades. Assim, sob a égide da máscara ritual, o brincante transita no terreno da atuação, reassumindo facilmente sua própria persona-
lidade artística ou social para, em seguida, retomar as figuras da mesma maneira. Sobre a máscara discorre Bakhtin: “... A máscara traduz a alegria das alternâncias e das reencarnações , a alegre relatividade, a alegre negação das identidades e do sentido único, a negação da coincidência estúpida consigo mesmo; a máscara é a expressão das transferências, das metamorfoses, das violações das fronteiras naturais, da ridicularização, dos apelidos; a máscara encarna o princípio do jogo da vida, está baseada numa peculiar inter-relação da realidade e da imagem, característica das formas mais antigas dos ritos e espetáculos. O complexo simbolismo das máscaras é inesgotável...” 11
Tendo em vista este contexto de interrelações onde a atuação sob a máscara ritual é procedimento convergente, confirma-se o território de ressonância entre a Arte de Performance e o Cavalo Marinho, principalmente, no que tange aos seus mediadores, que, ao atuarem tornam-se agenciadores de si mesmos e de suas conjunções memoriais.
Luciana de Fátima Rocha Pereira de Lyra, Mestre e Doutoranda em Artes pelo Instituto de Artes – UNICAMP. E-mail: lucianalyra@gmail.com Orientadora: Profa. Dra. Regina A. Polo Muller, credenciada junto ao Programa de Pós-Graduação do Instituto de Artes – UNICAMP. E-mail: muller@iar.unicamp.br Co-Orientadora: Profa. Dra. Graziela Estela Fonseca Rodrigues, Docente junto ao Depto. de Artes Corporais do Instituto de Artes – UNICAMP. E-mail: graziela@iar.unicamp.br
Notas 1. COHEN, 1989, pp. 93-100. 2. COHEN, 2002.
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3. COHEN, 1989, p. 58. 4. Idem, p. 98. 5. CAMAROTTI, 2003. Termo utilizado pelo pesquisador Marco Camarotti para designar os espetáculos do povo com estrutura dramática definida, quais sejam: o Mamulengo, a Chegança, o Pastoril e o Bumba-meu-boi. 6. LEITE, 2003, p. 127. 7. CAMAROTTI, 1999, p. 55. 8. Guariba era um dos brincantes do Cavalo Marinho de mestre Antônio Pereira, muito atuante entre as décadas de 50 e 70, em Recife-PE. 9. BORBA FILHO, 2000, p. 188. 10. CAMAROTTI, 1999, p. 208. 11. BAKHTIN, 1993, p. 35.
Referências Bibliográficas BAKHTIN, Mikail. A cultura popular na Idade Média e no renascimento: o contexto de François Rabelais. Trad. Yara Frateschi Vieira. São Paulo, HUCITEC. Brasília. Editora da Universidade de Brasília, 1993. BORBA FILHO, Hermilo. Louvações, encantamentos e outras crônicas. Recife, Bagaço; Palmares: Fundação Casas da Cultura Hermilo Borba Filho, 2000. CAMAROTTI, Marco. Resistência e voz: o teatro do povo do Nordeste, Recife-PE, Editora da UFPE, 1999. COHEN, Renato. Performance como Linguagem: criação de um tempo-espaço de experimentação. São Paulo: Perspectiva, 1989. ___________. Performance e contemporaneidade. In: Anais do Colóquio Paul Zumthor – Oralidade em tempo & espaço. São Paulo: EDUC – FAPESP, 2002. LEITE, João Denys de Araújo. Um teatro da morte: transfiguração poética do bumba-meu-boi e desvelamento sociocultural na dramaturgia de Joaquim Cardozo. Recife: Fundação de Cultura da Cidade do Recife, 2003.
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Outros Olhares sob Ouro Preto: pesquisa de campo ou o contato com o “objeto” Carolina Romano Marília Vieira Soares Resumo: O presente artigo aborda a relação com o campo de pesquisa, seus desafios, suas limitações e o contato com o objeto de campo. Consideramos algumas maneiras de realizar esta pesquisa de acordo com aspectos do ponto de vista da antropologia e estabelecemos o recorte escolhido, focalizada em artes .
A arte, ao longo da modernidade, se apropriou do que a ciência da antropologia denominou como “pesquisa de campo”. Os antropólogos utilizam instrumentos, que aqui chamamos de concretos para realizar tais pesquisas; lançam mão de elementos da etnografia para coletar dados e elaborar discussões acerca do objeto de pesquisa. Podemos enumerar o que Rockwell1 seguindo os preceitos de Malinowski (1986) trata como aspectos fundamentais para a pesquisa de campo, no que diz respeito à antropologia tradicional: Observar; Documentar; Descrever; Co-habitar com a fonte; Interpretar e integrar conhecimentos em relação ao objeto; Construir conhecimentos por meio do caráter reflexivo, elaborando hipóteses. Na arte, apesar de utilizarmos alguns dos procedimentos acima, ultrapassamos as normas etnológicas, alterando-as conforme o foco e o interesse do artista-pesquisador. Conforme avalia Marcus ao se referir ao que os antropólogos poderiam aprender com as pesquisas de campo em arte. “(...) há práticas investigativas e preparatórias que, embora similares à pesquisa de campo quanto à
forma, têm, de fato, genealogia e propósito completamente independentes no modo como se encaixam em uma configuração característica das práticas artísticas. É com esses casos e essas arenas de produção artística, uma vez identificados, entendidos e respeitados como paralelos, mas separados da voga do mimetismo (mesmo que cuidadoso) de práticas antropológicas, que os antropólogos podem aprender algo válido com relação as consideráveis instabilidades de aplicação do modelo tradicional de pesquisa de campo em seus projetos atuais.” 2
O etnógrafo observa e paralelamente interpreta, o artista também o faz, mas a sua interpretação se dá por meio das práticas artísticas, que os distanciam da elaboração de hipóteses em relação ao campo de pesquisa. Contudo, o intérprete da cena utiliza as experiências e técnicas da antropologia para reinventar os limites e as funções da pesquisa de campo, a fim de atender adequadamente aos propósitos artísticos. A investigação-campo além de proporcionar o contato com o objeto de pesquisa torna-se importante para estimulação do fazer artístico, para buscar materiais que enriqueçam o corpo cênico. 123
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“A contribuição mais substantiva da pesquisa de campo para a produção não está no que a platéia pode literalmente ver, mas em constituir o que ele chama as narrativas internas da produção, ignoradas pela platéia, que se originam das matérias-primas fornecidas pela pesquisa de campo.” 3
Em algumas formas do fazer cênico é importante reconhecer que as práticas investigativas e preparatórias, similares à pesquisa de campo antropológica quanto à forma, modificam-se no propósito, ao tomar características que se encaixem em uma configuração particular das práticas artísticas. Portanto, neste estudo a pesquisa de campo tomou recortes próprios, que ultrapassaram a coleta de dados. Pudemos conhecer por meio do campo a experiência e as relações sinestésicas4 que este possibilita. A vivência da corporeidade na pesquisa de campo permite o contato com a simplicidade da própria criação humana, cuja compreensão e estudo podem ser transformados em arte. As freqüentes idas à campo foram fundamentais para o aprimoramento da pesquisa. “Escrevo um relato descritivo de cada figura vista neste teto. Passo por santos, que não identifico. Vejo cálices, cruzes, chaves, mastros, flechas, gavião, âncoras e muitos anjos.A pintura parece penetrar em meus poros quando a observo. Tamanha beleza e riqueza de detalhes perpassam meu campo da racionalidade, começo a me perder novamente diante da profusão de detalhes: O melhor jeito de observá-la é do fundo para o altar, posição que possibilita visão sem adentrar no campo da pintura, já que a pintura está concentrada no forro da capela-mor.” Diário de Campo 19/07/2004.
Conforme segue, fizemos os seguintes recortes para facilitar e limitar a pesquisa de campo: 124
• Na primeira viagem a campo entramos em
contato com o objeto primordial da pesquisa, os tetos das igrejas de Ouro Preto. Nessa oportunidade pudemos observar os tetos, para posteriormente analisá-los. Aproveitamos também para conhecer o ambiente no qual o teto da Igreja Nossa Senhora da Conceição se insere e tentamos buscar relações deste espaço com as pinturas. • Na segunda viagem a campo privilegiamos
observar as pessoas em suas manifestações de fé, para posteriormente “dar” um tratamento artístico ao material coletado. Fizemos a coleta de material por meio de registro videográfico e anotações em diário, durante as festividades da Semana Santa. • A terceira viagem a campo nos possibilitou a
coleta de material fotográfico das igrejas observadas e das figuras a serem utilizadas na análise, segundo os estudos de François Delsarte. Elegemos para nossa pesquisa de campo metodologia própria de observação que atendesse às nossas prioridades, que eram objetivamente coletar dados para a leitura gestual dos tetos da igreja, além de dados para a criação artística. Os métodos selecionados para a documentação foram: anotações; registros fotográficos e videográfico; descrição dos objetos observados; vivência em campo; fruição dos conhecimentos adquiridos. Em relação ao último método citado, utilizamos o critério “o que primeiro chamou a atenção da pesquisadora”, segundo a orientação da professora Grácia Navarro5, ou seja, os fatos registrados levaram em consideração uma identificação com o objeto de pesquisa. “Não se deve deixar de reconhecer também que no trabalho artístico como no científico existe um caráter subjetivo na forma de se trabalhar e de
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se encontrar soluções criativas. O fluxo ordenativo segue os comandos dados pelo cérebro do indivíduo que está procedendo ao arranjamento, de uma forma individual, espelha, ipso facto, o seu interior. A criação artística espelha a visão pessoal do artista, da mesma forma que a criação científica reflete a visão do cientista. A diferença entre uma obra e outra não se dará no ato criativo, mas no processo de trabalho fundamentado num determinado paradigma, e no conhecimento açulado de quem realiza a obra.” 6
As experiências vividas nas viagens foram registradas no diário de campo, neste transcrevemos nossas observações, reflexões e evocamos de algum modo nossa sensibilidade a respeito dos acontecimentos. “Chego em Ouro Preto. Saio para reconhecer a cidade e entro na primeira igreja que vejo. Aquele templo e aquele universo pareciam me engolir. Fui tomada por uma emoção sem fim, tive vontade de chorar e me senti pequena diante daquela imensidão.” Diário de Campo 17/07/2004.
O primeiro contato verbal com os paroquianos de Ouro Preto se deu após a observação de um ritual de reza chamado Sagrada Face, descrito a seguir, em uma das passagens do Diário de Campo. “Um grupo de dez mulheres se reúne para rezar, em homenagem à sagrada face de Jesus, cuja figura é colocada no altar. Cantos e louvações são feitos durante uma hora. Os corpos conversam com Deus, de joelhos, em postura recolhida, talvez por se sentirem pequenas diante da cena. Alguns olhos estão fechados, outros olham com sinal de piedade, a garganta parece apertada ao tentar dizer algo que não consegue. Às vezes o olhar é direcionado ao infinito, como se enxergassem Deus, muito longe. Quando saem dos joelhos e começam a cantar, as gargantas parecem se soltar e se vê uma sensação de alí-
vio. Quando voltam a rezar, o aperto volta. Acaba a oração, as senhoras beijam a sagrada face, as velas são apagadas, e a face retirada do altar.” Diário de Campo 19/07/2004.
Após a cerimônia da Sagrada Face, uma das funcionárias da Igreja, se aproxima interessada em dialogar: “Ela começou a me contar histórias da Igreja, da irmandade que é a ‘dona’ (sic) da igreja, e que o Santíssimo Sacramento tinha um altar privilegiado que com o tempo foi acoplado ao principal. Depois ela começou a me falar da vida dela, me contou onde morava e como era a casa dela. Disse que a casa tinha cerca de vinte cômodos e pertenceu a um dos inconfidentes, fiquei muito curiosa. Contou-me que morava lá por mais de cinqüenta anos. Viúva, mora com a mãe e três filhas. A conversa acabou com um convite de D. Marilda para um café em sua casa.” Diário de Campo 19/07/2004
Esse contato se tornou importante por alguns motivos: Esta senhora acabou por permear e facilitar o nosso7 acesso à comunidade da igreja; por meio de suas relações estabelecemos outros contatos e uma maior proximidade com o ambiente pesquisado. Outra relevância da aproximação com Dona Marilda foi a possibilidade de perceber que os papéis de pesquisador e pesquisado podem se inverter. De acordo com Rockwell (1989), nós pesquisadores não adentrarmos no campo com a hipotética neutralidade. Principalmente porque quando estamos em campo de alguma maneira interferimos na rotina das pessoas do ambiente pesquisado, as pessoas se interessam em saber o que fazemos, quem somos e até que ponto como pesquisadores relataremos a vida delas. Isso de alguma maneira acaba por modificar o comportamento e as relações: até acontecer uma “aproximação”, entre pesquisador e o “objeto”, os pesquisados
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acabam revelando apenas o que é de seu interesse. Neste ponto o pesquisador deve ter tato e saber conduzir as relações para que estas facilitem o desenvolvimento da pesquisa. “As pessoas da comunidade começaram a se preocupar em saber o que eu fazia ali. Resolvi dizer que estava interessada apenas em pesquisar a pintura da Igreja de Nossa Senhora da Conceição, o que não deixaria de ser verdade, já que a prioridade desta pesquisa é a análise gestual dos tetos da igreja. Porém, também observei o gestual das pessoas que freqüentam a igreja, para enriquecer a criação artística.” Diário de Campo 30/07/2004.
As relações de dualidade (pesquisadorpesquisado) começaram a tomar corpo e, em diversos momentos, a pesquisadora se confundiu com pesquisada e as relações se tornaram híbridas, ao mesmo tempo em que a própria função de “ser” pesquisadora se confunde com “ser” humana. “Fiquei muito confusa. Às vezes me dava uma vontade enorme de rezar. Um desejo de vivenciar as emoções deste momento. Ficava em dúvida se observava as pessoas, se filmava, ou se chorava. Difícil não se entregar ao prazer de viver intensamente cada momento desta procissão.” Diário de Campo 23/03/2005. “Primeira Missa- Neste meu primeiro contato com a missa, (nunca tinha ido a uma missa antes) tentei observar as pessoas e absorver o que aquele lugar e aquela situação causavam no meu corpo. Tiveram momentos divertidos, cometi muitos erros ao acompanhar a cerimônia, não sabia muito bem quando sentava ou levantava, foi confuso, e as pessoas notaram a minha inexperiência, às vezes ao invés de pesquisadora, me senti pesquisada pelos olhares dos paroquianos. No fim da missa me pego rezando, agradecendo a Deus por esses momentos sublimes.” Diário de Campo 19/07/2004.
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O fato de ter que, de alguma forma, armazenar os momentos efêmeros do campo nos permitiu a possibilidade de tornar presente o passado vivido. As anotações, sob a forma de registros escritos, eram normalmente realizadas durante os fatos, ou ainda no fim do dia trabalhado, sobre os efeitos emocionais causados pela oportunidade de vivenciar a pesquisa, portanto as anotações contêm também as dúvidas e inquietações da pesquisadora. “O discurso que você produz no diário de campo é mais do que aquele que você produz numa caderneta de campo, em que você registra curtas observações, dados quantificáveis e alguns diálogos sumários que lhe parecem essenciais”. 8 Pudemos observar nos diários de campo o retrato emocionado dos sentimentos, e as impressões físicas e sinestésicas causadas pelo contato com o objeto de pesquisa. Apesar de muitas vezes, observarmos o esforço controlado, em vão, de conter as emoções e não se perder no campo da subjetividade. Dentro do escopo da pesquisa artístico-científica, encontramos certa dificuldade de focar e limitar o que observar. Passamos a abordar os eventos que faziam mais sentido à pesquisadora, para garantir solidez ao trabalho e revisão contínua da interpretação do objeto. “Essa constante postura interrogativa possibilita-nos questionar o que nos parece familiar e, portanto ao que nos faz sentido, pois aos eventos que assim concebemos conseguimos atribuir significados.” 9
A seguir veremos um relato, no qual aparecem os pontos, há a contestação da objetividade em campo. “Para fugir dos arredores da minha pesquisa fui andar um pouco por Ouro Preto, mais especifi-
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camente no Bairro do Pilar. Este lugar tem uma das igrejas mais belas e ricamente ornamentadas da cidade. Hoje, no entanto, a pobreza toma conta do Pilar e de toda Ouro Preto, é impressionante que tanta riqueza gerada tenha se transformado em abandono e penúria. As casas em geral têm uma característica muito interessante, são pequenas em sua fachada, mas por dentro são muito grandes. Caminho pelas ruas e noto que as pessoas são muito peculiares, elas cumprimentam desconhecidos. Conversam e passam o dia na janela.Deparo-me com uma casa magnífica, vejo uma moça na porta e começo a conversar com ela. A moça me convida para entrar, a casa é maravilhosa e se encontra dividida em duas partes, superior e inferior. Conserva características originais, com poucas modificações e restauros, ou seja, estava bem danificada, o que não comprometia sua beleza, consigo ver alguns detalhes, o chão que parece pé-de-moleque, calçamento muito antigo, um oratório por cima dos móveis e minha imaginação vai longe.” Diário de Campo 19/07/2004.
Entretanto, observamos que nestes períodos o pesquisador “sai” do foco de sua investigação é quando acontece a “abertura do campo”, - momentos que o pesquisador começa a fazer parte do campo - onde as relações entre campo e pesquisador se estreitam, se individualizam, e podemos observar com maior clareza as particularidades daquele local e daqueles sujeitos. Isso quer dizer que não existem momentos separados ou não relacionados, durante o período que nos propomos “estar em campo”, porque todas as experiências vivenciadas desde o cafezinho até as procissões fazem parte da pesquisa, principalmente porque de alguma forma aproximam o pesquisador com seu objeto de pesquisa, permeando as relações e facilitando a compreensão das questões relacionadas à pesquisa. “Nada acontece num vácuo; todas as conversas, todos os eventos, mediados ou não, acontecem
em lugares, em espaços e tempos, e alguns podem ser mais centrais ao campo-tema de que outros, mais acessíveis de que outros ou mais conhecidos de que outros. Algumas conversas acontecem em filas de ônibus, no balcão da padaria, nos corredores das universidades; outras são mediadas por jornais, revistas, rádio e televisão e outras por meio de achados, de documentos de arquivo e de artefatos, partes das conversas do tempo longo presentes nas histórias das idéias.” 10 “Combinei encontrar dona Marilda na igreja para irmos juntas até sua casa. Uma bela casa de esquina, bem em frente a um dos passos11 de Ouro Preto. A casa muito antiga, do século XVII, possuía diversos elementos da religiosidade daquela senhora, cruzes atrás das portas, imagens de santos, santinhos, terços pelos vinte cômodos. Logo partimos para o cafezinho, conversamos horas a fio, quando ia embora, muito timidamente uma de suas filhas perguntou se poderia me mostrar suas poesias. Li com entusiasmo e emoção; era como se me confidenciasse um segredo, um tesouro: fiquei emocionada com seu gesto. Fui embora com a sensação de fechar com chave de ouro minha pesquisa de campo.” Diário de Campo 31/07/2004.
A segunda visita a campo aconteceu durante os eventos da Semana Santa de Ouro Preto (20 a 27/03/2005). A Semana Santa, celebração do Mistério da Morte e Ressurreição de Jesus Cristo, propõe reviver o martírio de Cristo, os passos de sua morte ao caminho da salvação. Este é momento ímpar nas celebrações da fé cristã em Ouro Preto, por trazer e reviver as tradições, simbolismos e passagens importantes da história cristã, principalmente a corporeidade deste momento. “No cristianismo, em particular, o corpo tem um papel decisivo na salvação e na cura do Homem. O Verbo se fez carne, o divino se fez humano, anulando a maior e mais original (no sentido de começo, fundamento) das dualidades. O mesmo Senhor está vivo ontem e hoje. A salvação 127
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não se refere unicamente à ‘alma’, mas ao Homem.” 12
O cerne da Semana Santa é o reviver, proporcionar ao fiel vivenciar as agonias de um Jesus humano e ao mesmo tempo celebrar a glória de um Deus vivo onipresente. Além do aspecto litúrgico, a convivência com os paroquianos nessa época é um aprendizado de religiosidade. “Nunca vou me esquecer deste povo e destes momentos de consagração da sua fé. Eu, que nem sei bem o que é fé, ou onde ela está. Onde está a minha fé? Essa resposta não sei dar de imediato, mas sei ‘ver’ onde tá (sic) a fé deste povo. Cada cruz, cada vela que se acende, cada joelho que se esfola, cada ladeira subida e descida por esses senhores, nestas pedras lisas, tem que ter alguma explicação. Tem que ter uma força grande que faz essa pessoas vararem a noite, atrás desta procissão, onde está?” Diário de Campo. 24/03/2005.
Durante Semana Santa acontecem diversas comemorações, especialmente preparadas pelos fiéis da irmandade anfitriã. Em Ouro Preto há uma maneira peculiar de celebrar a Semana Santa. Por características de sua formação, a cidade possui duas igrejas matrizes, a Matriz de Nossa Senhora do Pilar e a Matriz de Nossa Senhora da Conceição. As duas matrizes se revezam durante os anos na realização da Semana Santa, isso dá muita riqueza à manifestação. O comportamento que existe desde o período colonial, competição entre as irmandades, acaba por refletir positivamente na organização do evento, e é a grande oportunidade que as paróquias têm de exibir suas riquezas. Pudemos vivenciar neste período os acontecimentos programados pela Semana Santa e também os episódios isolados de histórias anônimas que enriqueceram nosso campo imaginário.
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A diversidade de pessoas observadas nos permitiu entender a corporeidade e as linguagens gestuais presentes e implícitas nos freqüentadores daquele espaço sagrado, para posteriormente inserí-las no exercício cênico que complementa a pesquisa. As histórias são diversas e se misturam nas procissões, artifícios ímpares no que tange à propagação das manifestações individuais e coletivas. Observamos não só os corpos que caminham atrás da procissão, mas também aqueles que ficam nas calçadas, nas escadas, nas janelas e de alguma maneira são sujeitos dos festejos. Neste lugar, cheio de histórias e tradições, o espaço físico da cidade serve de suporte para as procissões e oferece o sustentáculo cenográfico para que estas ocorram. Neste campo os atores são os fiéis, que durante os cortejos revelam o espírito religioso do povo de Ouro Preto ao passear nas procissões levando em punho suas “armas” e seus estandartes. “Nas procissões vi muitas representações de figuras bíblicas caracterizadas por pessoas da comunidade, Isaac, Jacó, Moisés, Verônica (como é luminoso seu canto ao desenrolar o pano da Sagrada Face). E que lindas são as crianças da cidade vestidas de anjo, correndo pela procissão. Tudo isso ao som das matracas, das varas dos soldados que batem duras no chão e dos sinos que anunciam o luto do Senhor, e no fundo a chuva lavando as ruas e as agonias deste povo.” Diário de Campo 22/03/2005.
As festividades da Semana Santa, segundo os preceitos da Igreja católica, revivem momentos de sofrimento, e dá ao povo a força necessária para seguir, renovando os votos para um tempo próspero. “Mesmo acordado durante a noite fazendo tapetes, o povo de Ouro Preto, cedinho, estava embaixo da chuva fina, para acompanhar o último
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festejo da Semana Santa. A cidade inteira se enfeita para a despedida, do que penso ser o evento mais importante de seus festejos. As janelas das casas estavam decoradas com colchas de retalho, toalhas bordadas e vasos de flores. Aos poucos, a procissão passa por cima dos tapetes, estes feitos de serragem se desmancham. Feitos de efemeridade e serragem.” Diário de Campo 25/03/2005.
O período mais importante no decorrer da Semana Santa foi o entendimento de algumas relações que a fé proporciona. A questão constante era entender porque as pessoas seguiam por quilômetros as imagens, porque senhoras e senhores se sacrificam subindo as ladeiras para no final da procissão beijar o santo. Em uma das últimas procissões essas dúvidas foram sanadas. A exaustão causada ao seguir por horas a procissão permitiu à pesquisadora desligar-se dos fatos pesquisados e foi neste instante que o entendimento foi alcançado. Ao vivenciar essas emoções do campo, a pesquisadora percebeu que as pessoas não cultuavam a imagem pura e simplesmente; ao contrário, essas imagens estão intimamente ligadas ao que representam ou simbolizam, e que na verdade as pessoas estavam atrás de vivenciar as passagens de Cristo, orientando-se pelos seus símbolos. A terceira viagem a campo ocorreu no período de 11 a 20 de julho de 2005, onde foi realizada a coleta de material fotográfico. Aproveitamos esta última viagem para “amarrar questões”, ponderando nossas reflexões a respeito do campo. Atentos para a realidade que
de Ouro Preto, visitando outras paróquias e pontos turísticos, a fim de buscar outros olhares sobre Ouro Preto. “A diversidade dos acontecimentos, em geral contraditórios e ambíguos, provenientes dos diversos momentos do trabalho de campo dificulta traçar conclusões que nos pareçam prontas e, se não fosse por ‘um pequeno detalhe’ seriam perfeitamente transponíveis a essa realidade específica. Justamente, em função desses ‘pequenos detalhes’ podemos compreender, através da aparência dos fenômenos empíricos, o significado que garante a particularidade dos modos de ser. Além disso, porque há condições para a produção dos discursos, é necessário conhecer cada contexto particular para compreender os significados atribuídos localmente aos conteúdos das falas.” 14
Carolina Romano, Mestre em Artes pelo Instituto de Artes – UNICAMP. Bailarina, Coreógrafa, Pesquisadora, Professora de Dança e Ballet formada pela Royal Academy of Dance, Bacharel e licenciada em Dança pela UNICAMP. E-mail: carolromano@terra.com.br Informação relevante: Este artigo é parte da pesquisa realizada no Mestrado em Artes intitulado “O gestual humano e o Barroco Mineiro à luz dos estudos de François Delsarte”. Orientadora: Profa. Dra. Marilia Vieira Soares, Docente junto ao Depto. de Artes Corporais do Instituto de Artes – UNICAMP. E-mail: mvsoares@iar.unicamp.br
Notas 1. SATO, 2001, p. 13. 2. MARCUS, 2004, pp. 133-158.
“o processo de pesquisa não é um processo de achar o real ou uma investigação para descobrir a verdade, mas ao contrário, é uma tentativa de confrontar, entrecruzar e ampliar os saberes.” 13
Traçamos um panorama geral de investigação, procuramos explorar outros lugares
3. Idem. 4. Sinestesia - relação subjetiva que se estabelece espontaneamente entre uma percepção e outra que pertence ao domínio de um sentido diferente (por exemplo, um som que invoca uma cor ou um cheiro que invoca uma imagem). 5. Grácia Navarro, professora junto ao Depto. de Artes Corporais do Instituto de Artes – UNICAMP. 6. ZAMBONI, 2001, p. 30.
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7. Refiro-me a nosso, no plural, porque apesar de estar em campo sozinha, a todo o momento os passos tomados em campo, foram dirigidos por minhas orientadoras. 8. Entrevista de Roberto Oliveira concedida a SAMMAIN e MENDONÇA. www.scielo.br/pdf/ra/v43n1/v43n1a05.pdf, (Consultado dia 29 de março de 2006). 9. SATO, op. cit., p. 14. 10. SPINK, 2003. 11. Capelinhas utilizadas nas procissões da Semana Santa. 12. MIRANDA, 2000, p. 31. 13. SPINK, op. cit. 14. SATO, op. cit., p. 13.
Referências Bibliográficas MALINOWSKI, B. e E. Durhan (org). Malinowski, Série Antropologia. São Paulo: Ática S.A. 1986. MARCUS, George E. “O intercâmbio entre arte e antropologia: como a pesquisa de campo em artes cênicas pode informar a reinvenção da pesquisa de campo em antropologia.” Revista Antropologia. 2004 vol. 47, n. 1, pp. 133-158. MIRANDA, Evaristo Eduardo. O corpo, território do sagrado. São Paulo: Loyola. 2000. OLIVEIRA, C. J. P. de. Fé, Esperança e Caridade. São Paulo: Paulinas, 1998. SATO, Leny e SOUZA, Marilene Proença Rebello de. Contribuindo para desvelar a complexidade do cotidiano através da pesquisa etnográfica em psicologia . Psicol. USP, 2001, vol.12, no. 2. SPINK, Peter Kevin. Pesquisa de campo em psicologia social: uma perspectiva pós-construcionista. Psicol. Soc. [online]. jul./dez. 2003, vol.15, no. 2. Acesso em: 06 de janeiro de 2006. ZAMBONI, Silvio. A pesquisa em arte: um paralelo entre arte e ciência. Campinas, São Paulo: Autores associados, 2001. Entrevista de Roberto Oliveira concedida a SAMMAIN e MENDONÇA. www.scielo.br/pdf/ra/v43n1/v43n1a05.pdf (Consultado dia 29 de março de 2006).
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O Global e o Tribal: o corpo na sociedade contemporânea e nas sociedades indígenas brasileiras Rafael Franco Coelho Regina Muller Resumo: O objetivo desta reflexão é esboçar, ainda que superficialmente, uma comparação entre o conceito de corpo no mundo contemporâneo, valendo-se de exemplos da chamada body modification e de um movimento intitulado de “modern primitives” e nas sociedades indígenas brasileiras. Por ora, pretende-se verificar as possíveis relações que as marcas corporais, tais como a pintura corporal e os ornamentos das sociedades tribais, especificamente das sociedades indígenas brasileiras, estabelecem com expressões da sociedade contemporânea como a tatuagem, os piercings e as escarificações, examinando seus pontos de similitude e divergência.
Sociedade contemporânea e sociedades indígenas Antes de iniciar esta reflexão, julga-se necessário esclarecer outras questões. Em primeiro lugar, respeitar as muitas e óbvias diferenças existentes entre essas sociedades, como a histórica, a cultural, a social, a geográfica e enfim, de contexto, é condição essencial para atingir o objetivo desta análise, que deverá sempre proceder a partir destes contextos culturais específicos, evitando, desse modo, uma generalização. Ainda assim, pode-se dizer que, respeitando as particularidades étnicas de cada sociedade indígena brasileira, o corpo, nestas sociedades em geral, é suporte constante para expressão de conceitos sociais e cosmológicos e que “a originalidade das sociedades tribais brasileiras (de modo mais amplo, sul-americanas) reside numa elaboração particularmente rica da noção de pessoa, com referência especial à
corporalidade enquanto idioma simbólico focal”.1 Em segundo lugar, quando se coloca a questão das sociedades contemporâneas em relação às sociedades indígenas brasileiras, o senso-comum remete diretamente a uma oposição entre os termos, como se as sociedades indígenas brasileiras estivessem mortas, perdidas no éden de um passado distante e estereotipado. Estas sociedades estão cada vez mais vivas e crescendo exponencialmente, reelaborando e recriando suas respectivas culturas através das gerações, como nos mostra o último censo da população brasileira, sendo nossa “contemporânea” e pelo que tudo indica, fazendo parte do presente e do futuro da nação brasileira. Quando utilizarmos o termo sociedade contemporânea no texto, estaremos nos referindo a uma sociedade “glo-
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bal”, partindo do pressuposto de que a globalização é um processo “atuante numa escala global, atravessa fronteiras nacionais, integrando e conectando comunidades e organizações em novas combinações de espaço-tempo, tornando o mundo, em realidade e em experiência, mais interconectado.”2 Stuart Hall afirma que “A maioria das nações consiste de culturas separadas que só foram unificadas por um longo processo de conquista violenta [...] as nações são sempre compostas de diferentes classes sociais e diferentes grupos étnicos e de gênero [...] sendo ‘unificadas’ apenas através do exercício de diferentes formas de poder cultural [...] As nações modernas são, todas, híbridos culturais.”3 Desse modo, dentro deste contexto globalizado, acredita-se que na sociedade contemporânea os procedimentos de modificação corporal como a tatuagem, os piercings e as escarificações podem ser observados na grande maioria das nações do mundo, não sendo exclusividade de uma única cultura nacional. Além do foco específico desta reflexão, podemos ter outra discussão como pano de fundo, algo que não se pretende explorar nem se aprofundar no momento, mas apenas deixála como uma questão, sem qualquer preocupação de respondê-la. A partir dos exemplos que se seguirão, como pensar as identidades nacionais no período pós-moderno ou contemporâneo? Stuart Hall formula três hipóteses para responder a esta questão: “primeiramente, coloca como possibilidade que as identidades nacionais estão se desintegrando, como resultado do crescimento da homogeneização cultural e do ‘pós-moderno global’. Em segundo lugar, que possivelmente as identidades nacionais e outras identidades ‘locais’ ou particularistas estão sendo reforçadas pela resistência à globalização. E finalmente, que as identidades nacionais estão em declínio, mas novas identidades – híbridas – estão to-
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mando seu lugar.”4 Acredita-se que no decorrer do texto, estas hipóteses serão relembradas pelas discussões que faremos. Corpo Segundo Le Breton em seu livro “Adeus ao Corpo”, o corpo não é mais apenas, em nossas sociedades contemporâneas, a determinação de uma identidade intangível, a encarnação irredutível do sujeito, o ser-nomundo, “mas uma construção, uma instância de conexão, um terminal, um objeto transitório e manipulável suscetível de muitos emparelhamentos [...] onde o corpo é escaneado, purificado, gerado, remanejado, renaturado, artificializado, recodificado geneticamente, decomposto e reconstruído ou eliminado [...] Sua fragmentação é conseqüência da fragmentação do sujeito [...] Nunca o corpo-simulacro, o corpo-descartável foi tão exaltado como na contemporaneidade [...] Boca, seios, olhos, pernas, genitália esfacelada, moldada: não se trata mais de um corpo, mas de um acumulado de órgãos colados em algo que se denomina corpo.”5 Outros autores como Deleuze & Guattari em um texto intitulado “Como criar para si um corpo sem órgãos”, afirmam que “O corpo é o corpo. Ele é sozinho. E não tem necessidade de órgãos. O corpo nunca é um organismo. Os organismos são inimigos do corpo. O corpo sem órgãos não se opõem aos órgãos, mas a essa organização dos órgãos chamada organismo.”6 Para compreender a concepção do corpo nas sociedades indígenas brasileiras, retiramos um trecho do artigo “A construção da pessoa nas sociedades indígenas brasileiras”, onde os autores afirmam que “Na maioria das sociedades indígenas do Brasil, o corpo ocupa posição organizadora central. A fabricação, decoração, transformação e destrui-
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ção dos corpos são temas em torno dos quais giram as mitologias, a vida cerimonial e a organização social.”7 Além disso, Renate Brigitte Viertler também mostra que “o mundo indígena apresenta grande variedade de padrões estéticos e efeitos visuais do corpo humano criados por diversas técnicas: a mutilação, a pintura, a tatuagem, a ornamentação, a expressão facial, a postura do corpo e os gestos.”8 Assim como para os índios brasileiros, para a sociedade contemporânea “a anatomia não é mais um destino, mas um acessório da presença, uma matéria-prima a modelar, a redefinir, a submeter ao design do momento [...] O homem contemporâneo é convidado a construir o corpo, conservar a forma, modelar sua aparência, ocultar o envelhecimento ou a fragilidade, manter sua saúde potencial.”9 De acordo com as afirmações acima, talvez possamos sugerir que os procedimentos de construção, fabricação e transformação dos corpos estão presentes tanto na realidade social indígena quanto na contemporânea. A questão que se coloca é como e porque estes procedimentos de construção culturais são feitos em ambas as sociedades e quais os seus significados em cada uma em questão. Segundo Beatriz Ferreira Pires “O maior número e a maior variedade de adornos corporais e técnicas para modificar as formas, as cores e os contornos do corpo tiveram origem nas tradicionais sociedades ‘pré-letradas’, fonte de referência para os modern primitives.”10 Para Mark Dery o primitivismo moderno é: “uma categoria que recobre tudo, que compreende os fãs do tecno-hard-core e da dance-music industrial: os fetichistas da escravidão; os artistas de performances; os tecno-pagãos; finalmente os que gostam de pendurar-se com ganchos subcutâneos e outras formas de mortificação ou de jogo corporal, que pretensamente produzem estados al-
terados [...] Todas pessoas não-tribais que reagem a uma urgência primal e que fazem alguma coisa com seu corpo”.11 “Estes indivíduos partilham da idéia de só se sentirem completos a partir do momento em que adquirem suas respectivas marcas pessoais.”12 Modificações corporais Antes de nos aprofundarmos no movimento dos primitivos modernos, podemos dividir os adeptos das modificações corporais em três grupos. O primeiro foi formado por pessoas que adquiriram marcas corporais como um sinal de exclusão social, a exemplo das antigas práticas recorrentes durante a Segunda Guerra Mundial contra judeus nos campos de concentração e nas prisões em geral, descritos por Clastres no texto intitulado: Da tortura nas sociedades primitivas : “Nas colônias penais da Mordávia, a dureza da lei encontra, como meio para enunciar-se, a mão, o próprio corpo do culpado-vítima. O limite é alcançado, o prisioneiro está inteiramente fora da lei: quem o diz é o seu corpo escrito.”13 Por muito tempo, a tatuagem foi associada a indivíduos sempre à margem da vida social, desde piratas saqueadores até prisioneiros e só mais recentemente ela saiu da clandestinidade e perdeu seu caráter de exclusão. O segundo seria como um sinal de inclusão aos modismos e padrões estéticos atuais dos jovens na sociedade contemporânea e a adesão a uma comunidade urbana particular, as chamadas “tribos urbanas”. E finalmente o último, no qual podemos incluir os primitivos modernos, sendo composto por pessoas que procuram através dos procedimentos de modificação do seu corpo adquirir marcas que funcionam como um sinal de diferenciação, individualidade e memória. Para os primitivos modernos, as tatuagens, piercings e escarificações funcionam
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como uma forma de identificação, não mais aquela utilizada nos prisioneiros para identificálos e excluí-los, mas para diferenciá-los dos demais membros de uma sociedade, reforçando sua singularidade e identidade pessoal. O corpo seria como um diário, onde estariam os principais fatos, os momentos-chave de sua existência, a memória de experiências íntimas e marcantes, um texto sobre sua vida, em sua própria pele, escrito no decorrer de sua história pessoal. “O símbolo pessoal surge da associação, geralmente inconsciente, que o indivíduo estabelece entre um desenho, uma forma, e o sentimento, a sensação que determinado fato lhe despertou. Como essa associação se dá de forma absolutamente particular, o real significado de qualquer uma das marcas corporais só é totalmente compreendido pelo indivíduo que a possui.”14 Para eles, essa colagem de práticas e de rituais fora de contexto social, longe de seu significado cultural original e muitas vezes ignorado e esterilizado por aqueles que o empregam, fazem de suas marcas corporais uma espécie de sincretismo radical, que vão dos samoanos aos índios, passando pela cibernética e robótica. Le Breton sintetiza de que forma as modificações corporais funcionam no mundo contemporâneo: “Em uma sociedade de indivíduos, a coletividade de pertinência só fornece de maneira alusiva os modelos ou os valores da ação. O próprio sujeito é o mestre-deobras que decide a orientação de sua existência. A partir de então, o mundo é menos a herança incontestável da palavra dos mais velhos ou dos usos tradicionais do que um conjunto disponível à sua soberania pessoal mediante o respeito de certas regras. O extremo contemporâneo define um mundo em que a significação da existência é uma decisão própria do indivíduo e não mais uma evidência cultural.”15
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Marcas corporais No artigo A construção da pessoa nas sociedades indígenas brasileiras, os autores mostram de que forma essas modificações ocorrem no contexto social indígena: “Assim, os meninos, prestes a se transformarem em homens (serem sociais), devem ter seus lábios e orelhas furadas. É essa penetração gráfica, física, da sociedade no corpo que cria as condições para engendrar o espaço da corporalidade que é a um só tempo individual e coletiva, social e natural. Quando tal trabalho se completa, o homem está completo, sintetizando os ideais coletivos de manter a individualidade, tal como nós a concebemos, reforçando a coletividade e a complementaridade com ela.”16 Pierre Clastres, a descreveu da seguinte forma “a sociedade dita a sua lei aos seus membros, inscreve o texto da lei sobre a superfície dos corpos. Supõe-se, pois, que ninguém se esquece da lei que serve de fundamento à vida social da tribo.”17 A pintura corporal nas sociedades indígenas brasileiras enfatiza o rico vocabulário iconográfico presente nos desenhos geométricos e grafismos como um sistema altamente estruturado de comunicação visual, social e de conceitos cosmológicos, que obedecem a regras precisas de grafia e significação, sendo memória social advinda da tensão entre repetição e variação, tradição e inovação através da ação da história e dos indivíduos em seus contextos culturais particulares.18 Os ornamentos corporais, como os discos dos lóbulos das orelhas, em algumas etnias de língua Jê como os Xavantes e os Suyá são colocados durante o período de maturidade sexual. Para os Xavantes, os batoques auriculares, além de estarem relacionados com o ritual de iniciação, tem funções e significados específicos de acordo com o objetivo do indivíduo. Cada tipo de madeira serve para
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uma finalidade, a madeira Wamari serve para sonhar, outra madeira tem a função de afugentar as serpentes, outra serve ainda para prevenir doenças e assim por diante. Segundo Anthony Seeger, para os Suyá e a maioria das sociedades tribais “a ornamentação de um órgão pode estar relacionada com o significado simbólico desse órgão numa sociedade. O ornamento das orelhas e da boca pode perfeitamente indicar a importância simbólica da audição e da fala na medida em que essas faculdades são definidas por uma sociedade específica. Os ornamentos físicos devem ser tratados como símbolos com uma variedade de referentes. Devem ser examinados como um sistema...”19 Já as escarificações podem estar relacionadas com preparações para lutas corporais até métodos terapêuticos de medicina tradicional. Durante o ciclo ritual do Kuarup, realizado pelas diversas etnias do Parque Indígena do Xingu, após o período de reclusão e durante a preparação para as lutas corporais do huka-huka, os jovens lutadores e futuros guerreiros devem ter sua pele arranhada ou raspada com dentes de piranha por seu pai ou avô, como uma forma de adquirir bravura para as disputas. Os Xavantes acreditam que as doenças têm geralmente duas origens: físicas ou espirituais. No primeiro caso, considerado como “sujeira do sangue”, a solução seria amarrar a região dolorida ou inchada de modo a prender o sangue neste local como num torniquete. Em seguida fazer pequenos cortes superficiais sobre a pele, dispostos paralelamente, usando um pequeno pedaço de bambu preparado de modo a servir como uma faca ou bisturi. Em alguns casos, além da sangria, ainda são passadas infusões ou cinzas de determinadas plantas medicinais na região escarificada, não só limpando o sangue, mas também para absorver as propriedades curativas de cada planta.
Global e tribal Henri-Pierre Jeudy, ao discutir as comparações feitas por etnólogos entre as pinturas corporais dos Papuas da Nova Guiné e as práticas ocidentais da maquiagem, coloca outro ponto de vista quanto à questão da pintura corporal como elemento de inclusão ou diferenciação social. “Não se sabe porque as pinturas corporais responderiam a uma função coletiva nas sociedades primitivas e a uma função de individualização nas sociedades ocidentais. Ao contrário, a complexidade da pintura sobre a pele liga-se ao fato de que ela traduz simultaneamente uma expressão coletiva e individual [...] como se a própria pele fosse lugar da manifestação coletiva daquilo que é justamente pessoal. Pinturas corporais e maquiagens são, cada uma à sua maneira, provas públicas de uma socialização da pele como texto oferecido à visão coletiva.”20 Já Le Breton tem outro ponto de vista sobre a questão, dizendo que diferentemente da maquiagem, efêmera, feminina e destinada ao rosto, a tatuagem é definitiva, é feita em homens e mulheres e atinge essencialmente o conjunto do corpo (ombro, braço, peito, costas, etc.), mas raramente o rosto.21 No ritual de iniciação dos jovens Xavantes, realizado em 2005, em um dia específico chamado Wanoridobe, os iniciandos tiveram seu corpo pintado e padronizado de acordo com linguagens visuais preestabe-lecidas socialmente para a sua classe de idade, enquanto que seus padrinhos (iniciados aproximadamente 14 anos atrás) e conhecedores do vocabulário iconográfico presente nos desenhos geométricos e grafismos da pintura, tiveram liberdade de expressar sua criatividade e individualidade através de vários tipos de pintura, embora sempre utilizando esse vocabulário. Uma dinâmica entre repetição e variação, coletividade e individualidade.
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Apesar de Jeudy contestar a diferença entre a pintura corporal e a maquiagem, o ponto de vista que Le Breton defende se aproxima do que aqui se pretende. Após os exemplos e argumentos levantados, acreditamos ter elucidado que, apesar dos procedimentos de modificação corporal estarem presentes tanto no universo contemporâneo quanto no indígena brasileiro, eles são bem diferentes no que se refere aos seus significados e funções sociais e pessoais. Mesmo que muitas das referências do movimento dos primitivos modernos e dos adeptos dessas modificações em nossa sociedade venham das sociedades tribais espalhadas pelo mundo, a forma como esses procedimentos foram se adaptando e se misturando, recriados atualmente no contexto contemporâneo os difere radicalmente das culturas e lugares de sua origem. Para as sociedades indígenas brasileiras é inconcebível se misturar ao grupo sem esse trabalho de integração e identidade coletiva que as construções imprimem na pele de todos os indivíduos. Já para os primitivos modernos a fabricação do corpo obedece a um processo de individualização e busca de identidade individual e do sujeito, mas ainda assim de integração a esse grupo social, o movimento dos primitivos modernos.
Notas
Num período histórico onde a internet, a virtualidade da vida e das relações sociais e a informática imperam como características do nosso tempo, é interessante notar como o corpo, esse objeto tão concreto e humano, volte a ser considerado como um suporte prioritário para a arte e a ciência contemporâneas.
CLASTRES, Pierre. A sociedade contra o estado: pesquisas de antropologia política. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1978.
Rafael Franco Coelho, Mestre em Artes pelo Instituto de Artes – UNICAMP. E-mail: rafaelcoelho@iar.unicamp.br Orientadora: Profa. Dra. Regina Aparecida Pólo Muller, credenciada junto ao Programa de Pós-Graduação em Artes do Instituto de Artes – UNICAMP. E-mail: muller@iar.unicamp.br
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1. SEEGER, 1979. 2. HALL, 2005. 3. Idem, pp. 59-60, 62. 4. Ibidem, p. 69. 5. LE BRETON, 2003, pp. 10, 26 e 28. 6. DELEUZE, 1996. 7. SEEGER, op. cit., p. 11. 8. VIERTLER, 2000, p. 179. 9. LE BRETON, op. cit., pp. 28 e 30. 10. PIRES, 2005. 11. LE BRETON, op. cit., pp. 36, 38 e 39. 12. PIRES, op. cit., p. 61. 13. CLASTRES, 1978, p. 125. 14. PIRES, op. cit., p. 166. 15. LE BRETON, op. cit., p. 31. 16. SEEGER, op. cit., pp. 14-15. 17. CLASTRES, op. cit., p. 129. 18. VIDAL, 2000. 19. SEEGER, 1980. 20. JEUDY, 2002, p. 90. 21. LE BRETON, op. cit., p. 34.
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Antônio Parreiras: a trajetória de um pintor através da crítica de sua época Liandra Motta Paulo Mugayar Kühl Resumo: O presente artigo é baseado na dissertação de Mestrado: A Obra do Pintor Antônio Parreiras vista através da crítica de sua época, defendida pela autora e realizada a partir do levantamento e transcrição de críticas à obra e vida do artista brasileiro Antônio Diogo da Silva Parreiras (1860-1937), publicadas por jornais e revistas em circulação entre os anos de 1883 e 1937, nas cidades do Rio de Janeiro e São Paulo.
O estudo teve como objetivo disponibilizar um volume maior de informações sobre a trajetória do pintor Antônio Parreiras através das críticas publicadas em periódicos da época, levando-se em conta o contexto em que os artigos foram publicados, quem os escrevia e quem os publicava, a receptividade da crítica à sua obra, sua relação com a Academia Imperial de Belas Artes, mais tarde Escola Nacional de Belas Artes, a criação e direção da Escola Ao Ar Livre, sua busca por uma arte nacional respeitável e de qualidade e sua efetiva contribuição para a arte brasileira. Foram inicialmente selecionados os períodos em que houve exposições, e em seguida feita a busca de periódicos em arquivos e bibliotecas, principalmente no Arquivo Edgard Leuenroth, do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas – IFCH, da UNICAMP. Outras instituições como o Centro de Documentação Cultural Alexandre Eulálio, do Instituto de Estudos da Linguagem – IEL, da UNICAMP, a Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro-RJ, o Museu Antônio Parreiras de Niterói-RJ e a Biblioteca do Museu Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro-RJ também foram consultadas,
assim como as bibliotecas do Instituto de Artes – IA, do IFCH e do IEL da UNICAMP. Os jornais e revistas pesquisados foram: A Época, A Estação, A Noite, A Notícia, A Semana, A Vida Moderna, Careta, Cidade do Rio, Correio da Manhã, Diário de Notícias, Diário do Comércio, Diário Ilustrado, Fon-Fon, Gazeta da Tarde, Gazeta de Notícias, Jornal do Brasil, Jornal do Commercio , Kósmos, Novidades, O Apóstolo, O Imparcial, O Jornal, O Malho, O Paiz, Renascença, Revista Ilustrada (todos publicados no Rio de Janeiro – RJ); O Fluminense (em Niterói – RJ); Diário de Campinas (em Campinas – SP); Correio Paulistano, Comércio de São Paulo e O Estado de São Paulo (publicados na cidade de São Paulo – SP). Uma breve biografia do Artista Antônio Diogo da Silva Parreiras nasceu em 20 de janeiro de 1860, na cidade de Niterói, Rio de Janeiro. Foi pintor, professor e escritor. Pintou paisagens, gênero, nus e cenas históricas. Na década de 80 do século XIX, matriculou-se na Academia Imperial de 139
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Belas Artes, onde teve aulas com o artista alemão, especialista em pintura ao ar livre, George Grimm. Seguindo o mestre, abandonou a Academia para formar, em São Domingos, Niterói, o Grupo Grimm e, mais tarde, a Escola Ao Ar Livre. Em 1883 realiza sua primeira exposição, seguida de aproximadamente outras 68 até o final de sua carreira, alternadas com excursões artísticas por praticamente todo o Brasil. Viaja para a Itália, em 1888, com o intuito de aperfeiçoar sua formação artística, freqüentando a Academia de Belas Artes de Veneza por quase dois anos. Na primeira década do século XX monta um ateliê em Paris, para onde viaja constantemente, alternando temporadas no Brasil e na França até o início da década de 20, quando retorna em definitivo para o país natal. Em 1926 publica o livro autobiográfico História de um Pintor Contada por Ele Mesmo e entra para a Academia Fluminense de Letras. Em 1933 comemora seu Jubileu Artístico com três grandes exposições nas cidades do Rio de Janeiro, Niterói e São Paulo, expondo trabalhos realizados durante toda a sua carreira artística. Quatro anos mais tarde, em 17 de outubro de 1937, vem a falecer de maneira súbita, deixando cerca de 850 pinturas.
tico de música, artistas como França Júnior, Benedito Calixto e o próprio Antonio Parreiras, o caricaturista Angelo Agostini, e um único especialista em artes visuais, Gonzaga Duque. Já no século seguinte, o volume de publicações decresce, provavelmente porque, entre outras razões, a crítica se torna mais especializada. Assim, logo no início do século XX, encontramos textos de Morales de Los Rios e Escragnolle Doria e, mais adiante, na década de 20, de Fléxa Ribeiro e Tapajós Gomes. A Trajetória do Pintor através da Crítica
Década de 80 - século XIX Parreiras é visto como um jovem e promissor artista. Os críticos buscavam nos trabalhos a aproximação da arte com o público, sem as referências e regras da composição acadêmica, valorizando a representação verdadeira da natureza – cores e perspectiva – e a impressão das emoções. Mostravam também a preocupação com o destino dos quadros, protestando contra a falta de museus e espaços adequados às exposições. No final dessa década, parte Parreiras para a Europa em busca de aperfeiçoamento profissional.
A crítica da época
Década de 90 - sec. XIX No final do século XIX havia um grande volume de publicações, mas poucas eram assinadas e muitos escritores usavam pseudônimos. Após a identificação de alguns desses nomes literários, foi possível perceber que os intelectuais da época, como: Afrânio Peixoto, Alcindo Guanabara, Armando Erse, Carlos de Laet, Coelho Neto, Dunshee de Abranches, Filinto de Almeida, Olavo Bilac, Raul Pederneiras e Valentim Magalhães, eram os que mais escreviam sobre arte, ao lado de críticos especialistas em outras artes, como Arthur Azevedo – teatrólogo, e Oscar Guanabarino – crí-
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De volta da Itália, o artista é recebido por uma crítica mais exigente, que demanda críticos especializados para forçar um maior progresso dos artistas. Reclama-se que as pinturas históricas e encomendas tolhem a liberdade e espontaneidade dos pintores e demonstra-se preocupação com uma produção genuinamente brasileira, apontando-se a pintura de paisagens como o tema de representação mais nacionalista. Então, em 1896, Antônio Parreiras, em resposta às exigências da crítica, finaliza e expõe a tela Sertanejas, sín-
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tese de todas as observações feitas nas florestas, que o consagra como importante pintor paisagista.
peramento, considerado forte e “rústico”, justificando seu estilo de pintura. Fléxa Ribeiro mantém sua opinião sobre o artista.
Anos 1900-1909
A relação com a Academia Imperial de Belas Artes e com a Escola Nacional de Belas Artes
O artista sai em busca de uma maior diversificação, praticando a pintura de gênero, os nus e a pintura histórica. Nas primeiras exposições, é criticado pela falta de conhecimentos de anatomia e pela ausência de perspectiva na pintura de figuras. Nesse período é possível notar uma influência romancista em suas obras.
1ª década - século XX Parreiras monta um ateliê em Paris e intensificam-se as encomendas de quadros históricos. Sempre em viagem, o número de exposições diminui e, conseqüentemente, as críticas também. Este é um período de transição entre os escritores remanescentes do século XIX e o surgimento dos novos críticos do século XX, o que também contribui para o pequeno volume de publicações.
Década de 20 – século XX Parreiras retorna em definitivo da Europa e encontra críticos que, apesar de mais especializados, são mais tolerantes com o pintor, já com 60 anos de idade, renomado e com grande produção artística. Fléxa Ribeiro é o único crítico de arte ainda a se queixar de duas antigas dificuldades do pintor que, segundo os demais críticos, já haviam sido superadas: o colorido e a perspectiva do desenho de figura.
Década de 30 – século XX Antônio Parreiras comemora seu Jubileu Artístico. Os críticos da época associam sua obra com sua aparência física e seu tem-
Com a Proclamação da República em 15 de novembro de 1889, tudo que era ligado ao antigo regime ou levava o nome do imperador, foi substituído; assim, a então Academia Imperial de Belas Artes passa a se chamar Academia Nacional de Belas Artes. Esta instituição, em junho de 1890, nomeou Parreiras professor de pintura de paisagem, cargo que exerceu até novembro do mesmo ano, quando Rodolfo Bernardelli, Rodolfo Amoedo e Moreira Maia, este logo substituído por Décio Villares, com o intuito de reformar o ensino artístico do Brasil, instituíram a Escola Nacional de Belas Artes. A reforma afastou todos os professores ligados ao antigo regime, entre eles Parreiras. Novos professores foram nomeados sem concurso, inclusive estrangeiros. Vários protestos foram publicados em jornais e revistas. Antônio Parreiras chegou a acusar Rodolfo Bernardelli de o afastar do cargo para nomear seu irmão, Henrique Bernardelli, para a cadeira de paisagem, que, ao final, acabou extinta. Essa atitude do governo republicano levou a uma ruptura e à formação de dois grupos distintos de artistas, “os velhos” e “os novos”, sendo a arte brasileira provavelmente a maior prejudicada por essa cisão. Os artistas ligados ao antigo regime não mais participavam dos eventos artísticos proporcionados pela Escola e o processo de seleção, muito rígido para o ingresso, afastou os alunos, que acabaram procurando os ateliês dos artistas não mais ligados à instituição.
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A criação da Escola Ao Ar Livre Foi então que, em julho de 1891, Antônio Parreiras inaugurou, em combate ao ensino oficial, a Escola Ao Ar Livre. Sem nenhum investimento financeiro público ou dos alunos, a Escola tinha sede no próprio ateliê de Parreiras e as “aulas” eram ministradas ao ar livre. Não havia nenhum programa de disciplinas a seguir; os alunos apenas acompanhavam o mestre nas excursões artísticas que ele normalmente realizava e, durante as viagens ou passeios, recebiam orientação. Na volta de cada excursão, acontecia uma exposição, da qual participavam alunos e mestre. O pintor, que não tinha intenção de seguir a carreira de professor, foi indicado várias vezes para o cargo em diferentes instituições, mas sempre recusou. Sua atenção parecia mesmo voltada para a produção artística. Em 1902, Parreiras ainda chega a criar um curso feminino de pintura, mas quando institui seu ateliê em Paris, com os longos períodos de estadia na capital francesa, passa a orientar apenas o filho e o sobrinho. É possível que tenha ainda orientado outros artistas, mas com grau de envolvimento muito menor. A Cultura Artística Em muitas das críticas, é possível encontrar desde pequenos trechos a textos quase inteiros de queixas e reclamações quanto à cultura artística brasileira. Essa manifestação se dá de várias formas e com diferentes focos. Na maioria delas, a crítica, para avaliar as produções expostas, contextualiza o momento artístico presente ao mesmo tempo em que protesta contra ele, evidenciando vários aspectos, como o preconceito com a profissão de artista, a ausência de incentivos governamentais, a falta de museus, a ignorância e a má educação artística do público, a baixa 142
qualidade do próprio ensino artístico, a falta de espaços destinados à crítica de arte nos periódicos e a escassez de críticos qualificados. Não raramente, a crítica expressa o desejo frustrado de que essa cultura se desenvolva e a importância que isso teria para a evolução do país em geral. Outras vezes, demonstra esperança de que no futuro se consiga chegar a uma cultura artística consolidada. Apesar de terem sido escritas há mais de cem anos, elas continuam muito atuais. Quanto a essas questões, Antônio Parreiras sempre foi reconhecido pela crítica, pois apesar da falta de incentivo do meio artístico em que se encontrava, sempre esteve produzindo. Além disso, tomava iniciativas, como a Escola Ao Ar Livre, que incentivava outros artistas a produzirem também; escrevia e publicava críticas de arte e, com suas constantes e gratuitas exposições, tentava criar no público o hábito de freqüentar eventos artísticos daquela natureza. Em um meio que parecia infértil, toda e qualquer manifestação artística era bem vinda, na tentativa de se criar uma cultura artística na população. Conclusões Através das críticas de arte publicadas nos principais veículos da época, foi possível acompanhar o percurso profissional de Antônio Parreiras e perceber que o pintor sempre esteve atento a elas e consciente de sua importância. Para a crítica, o pintor de gênero, nus e cenas históricas nunca superou o paisagista. Na paisagem, ele reunia todos os requisitos para uma pintura genuinamente nacional e moderna. Antônio Parreiras muito contribuiu com a arte nacional: criou uma nova escola de pintura, deixou mais de 850 quadros, foi professor, crítico de arte, escritor e, sobretudo, defensor da arte brasileira.
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Liandra Motta, Mestre em Artes pelo Instituto de Artes – UNICAMP. E-mail: liandra_motta@yahoo.com.br Orientador: Prof. Dr. Paulo Mugayar Khül, Docente junto ao Depto. de Artes Plásticas do Instituto de Artes – UNICAMP. E-mail: paulokuhl@iar.unicamp.br
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A Representação do Universo Caipira: fator de renovação na produção de Almeida Júnior. Paula Giovana Lopes Andrietta Frias Paulo Mugayar Kühl Resumo: Quando se trata de avaliar as contribuições da produção de Almeida Júnior para a arte brasileira, fica claro que o artista conseguiu trazer uma nova discussão para a pintura brasileira ao tratar os temas regionalistas em suas obras. Dentre as questões que permeiam esta discussão, a inserção do ambiente “caipira” nos assuntos artísticos do século XIX é um dos pontos fortes. Este artigo faz parte das pesquisas desenvolvidas para a Dissertação de Mestrado Almeida Júnior, uma alma brasileira?, realizada pela autora.
O “novo” em Almeida Júnior José Ferraz de Almeida Júnior (18501899), pintor nascido em Itu, interior de São Paulo, proveniente de uma família de poucos recursos, foi para o Rio de Janeiro estudar na Academia Imperial de Belas Artes graças a uma coleta de fundos feita pelo padre Miguel, pároco da Igreja matriz de Itu, seu primeiro incentivador. Complementou seus estudos na Escola de Belas Artes de Paris através de uma bolsa de estudos cedida pelo Imperador. Destacou-se como pintor e recebeu diversos prêmios.¹ Sendo um pintor de formação acadêmica, sua produção se caracterizava pela excelente qualidade técnica, que manteve durante toda a sua trajetória. Dentre sua extensa produção, as obras que mais chamaram a atenção da crítica foram as que apresentam temas regionalistas, retratando o trabalhador rural do interior paulista e seus costumes. A obra de Almeida Júnior apresenta temática bastante variada: retratos; cenas nar-
rativas como O Descanso do Modelo, O Importuno ou A família do Dr. Adolfo Augusto Pinto; paisagens; obras sacras; pintura histórica²; obras regionalistas que retratam arquitetura de pau-a-pique, o homem do interior de barba rala e pés descalços, como Caipira Picando Fumo, Violeiro ou Amolação Interrompida. Uma das características significativas da produção de Almeida Júnior é a proximidade que consegue criar entre o espectador e a cena retratada. A forma como compõe a cena, envolve o espectador com a intimidade do personagem, em Descanso do Modelo, por exemplo, onde retrata o momento de repouso da modelo, descontraída ao piano, numa conversa informal e não posando para um retrato. Em Repouso, onde a modelo é retratada dormindo, bastante à vontade, com as roupas semiabertas. Na obra Saudade, envolve o espectador na dor da personagem que vestida de luto chora segurando um retrato, cuja história ficamos a imaginar. Em Partida da Monção, em
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que retrata o momento da despedida dos “desbravadores” que estão por partir, o abraço das famílias ressaltando a intimidade, o lado psicológico dos monçoeiros e não a cena de uma partida heróica. Em várias de suas telas, torna o expectador cúmplice do “realismo cotidiano” de suas cenas, retratando situações por vezes embaraçosas como em Recado Difícil, em que o garoto envergonhado não consegue dizer a mulher que o atende qual é o recado que trazia, ou ainda em O Importuno onde a modelo escondida observa a conversa do pintor com uma visita indesejada. A produção regionalista do artista tem início com a obra O Derrubador Brasileiro – 1879, a primeira de sua autoria a apresentar tema nacional. Esta obra foi produzida no período em que o pintor estava na Europa e a paisagem que foi pintada de memória difere das demais obras regionalistas que foram pintadas a partir da observação do real. O modelo que posou para a obra era italiano, enquanto os personagens retratados nas demais obras que apresentam temática caipira tem como modelos pessoas que realmente faziam parte daquele ambiente, moradores das fazendas que o artista visitava para buscar inspiração. Almeida Júnior parecia ser atraído pelo ambiente caipira, do qual manteve-se próximo, também por ter fortes laços com parentes e amigos que lá viviam. Quando retorna de Paris em 1882, o artista instala seu atelier em São Paulo, na Rua da Glória, distanciando-se do Rio de Janeiro. Havia recusado um convite para lecionar na Academia Imperial de Belas Artes, atitude que causou estranhamento. A crítica da época condena esse comportamento: “Entre os artistas que enviaram quadros à última exposição acadêmica de 1884, aquele que acu-
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sava, por suas obras, maior originalidade e mais nítida e moderna compreensão da arte era Almeida Júnior... ...Desde essa exposição até hoje não sei e ninguém sabe o que ele tem feito. Dizem que vive em sua província pintando retratos. É pena que vocação artística desse feitio se isole e viva embrenhado no interior de uma província, onde pode erigir fortuna, porém obscuramente...” 3
Tomando como ponto de partida a Exposição Geral do Segundo Reinado em 1884, da qual o artista participa com as obras Fuga para o Egito, Descanso do Modelo, Remorso de Judas e O Derrubador Brasileiro, que são elogiadas pela crítica, fica claro que Almeida Júnior havia atingido um elevado grau de conhecimento técnico na pintura. Havia chegado de Paris há apenas dois anos e já estava entre os mais respeitados pintores da época. O pintor mantinha uma boa relação com o mercado artístico do período, tendo inclusive algumas de suas obras compradas por órgãos do governo.4 Um dos pontos que chama a atenção é que, apesar desta boa relação com a crítica e o mercado, após algum reconhecimento, Almeida Júnior parece não estar satisfeito, talvez buscando dedicar-se a uma pesquisa que considerava importante naquele momento, podendo também, estar mais perto de sua terra. Certamente, já que o artista pretendia viver da pintura, São Paulo era uma opção interessante, pois assim se mantinha perto de seus familiares e do ambiente do interior, onde poderia se beneficiar de encomendas pagas com os recursos provenientes do café, bastante promissores naquela região. Na época, muitos artistas garantiam sua subsistência pintando retratos, o que acontece também no caso de Almeida Júnior, que continua pintando retratos, mesmo durante o período em que se dedicou a produção das obras de tema regionalista. Dentro desse contexto, a produ-
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ção regionalista, parece acontecer de forma paralela, resultando de um conjunto entre as buscas pessoais do artista e as exigências do mercado. Desde meados do século XIX, as discussões sobre os rumos da arte brasileira, relacionavam várias questões, dentre elas, a busca por uma identidade nacional e por uma pintura genuinamente brasileira, que representasse elementos da cultura nacional. A produção regionalista de Almeida Júnior veio ao encontro desses anseios. Entre 1893 a 1895 está compreendido o período em que o artista mais produziu obras com esta temática: Caipira Picando Fumo em 1893, Amolação Interrompida em 1894, Apertando o Lombilho, Cozinha Caipira, Recado Difícil e Nhá Chica de 1895, e ainda Garoto com Banana de 1897, Velha Beata de 1898, O Violeiro e Saudade de 1899, ano de sua morte. E uma das características marcantes dessas obras é a representação do “caipira” em todo o seu contexto. A produção regionalista de Almeida Júnior documenta a vida do caipira, mostrando suas casas, vestes, utensílios e registrando seus costumes. A estética caipira representada nas obras de Almeida Júnior é vinculada em boa parte de sua fortuna crítica com a busca por uma expressão nacional e ao desenvolvimento de uma pintura voltada para uma realidade nacional. E o fato de o artista ter conquistado tanto espaço, seja em relatos biográficos, críticas ou ensaios jornalísticos, é um indício significativo da representatividade da sua produção. Dentre as questões que permeiam a produção regionalista de Almeida Júnior, uma das mais complexas é a questão do clareamento da paleta de cores apresentado nessas obras. As cores usadas nas obras regionalistas são mais vivas, o artista altera alguns tons de cores de sua paleta tornando-a
mais clara. Uma das explicações dos críticos para o uso das “novas cores” estaria relacionada à representação da luminosidade natural das paisagens que o pintor retratou, que seriam reflexos da natureza tropical. Outra explicação seria a influência da “luz impressionista” com a qual o pintor teria tomado contato durante o período em que esteve em Paris. Considerando a formação do pintor e o percurso natural de sua viagem, sempre orientado pelo pensamento da Academia Imperial, o contato com o movimento impressionista é algo improvável. A representação da “luz tropical” pode ser apontada como o dado mais significativo, a partir da observação desta “luz” e apropriando-se das conquistas acumuladas em termos de técnicas artísticas, Almeida Júnior conseguiu ser original para o meio artístico brasileiro do século XIX. “E por que desejar que Almeida Júnior fizesse o mesmo percurso dos impressionistas da Escola de Paris? Por que considerar uma regressão ou centralização de sua trajetória as telas que ele produziria a seu regresso da Europa somente porque se dedicaria, a par de suas encomendas, a uma temática que, longe do usual, exemplificaria sua autonomia de vôo em um meio novo que acolhe sua produção? Como só ver sentimentos e empatia com seu entorno e não reconhecer que essa motivação o tornou original como obra? Não importa que outros tenham vindo depois, imitindo-o com mediocridade em academia regionalista. Almeida Júnior permanece sensível à luz, à luz local, manipulando-a com rara mestria ao tirar dela partido do ponto de vista formal. Daí porque a poética de obras como Saudades, Leitura e Cozinha Caipira, destacam uma peculiar apropriação do valor de “luz”, distanciada das preocupações impressionistas. Mas também parece projetar visualmente uma deglutição do impressionista a partir da cultura e da sensibilidade brasileiras de um tempo de que Almeida Júnior foi, sem duvida, o porta-voz mais expressivo.” 5
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A questão do tema como fator de renovação. Um dos momentos mais importantes da reflexão sobre o artista acontece no início do século XX quando Almeida Júnior veio a ser reconhecido pelos modernistas como precursor, pioneiro em representar o nacional. Quando se trata de apontar o moderno na obra de Almeida Júnior, o tema se torna o centro da discussão por sua significativa importância social, pois a produção do pintor acontece em meio à decadência da produção de cana-deaçúcar do nordeste e o florescimento da produção cafeeira paulista. O nosso grande pintor do fim do século passado deveria, com irrepreensível lógica, ser paulista. De Pernambuco se deslocava para São Paulo a primazia da nossa riqueza agrária, com a decadência da lavoura do açúcar e o surto vitorioso do café. O contexto é complexo, as realidades artística e cultural tinham características próprias, que apresentavam limitações e necessidade de afirmação. É envolvida nesse ambiente que a produção regionalista de Almeida Júnior afirma seu valor. O desejo dos modernistas era de renovação do pensamento artístico nacional, de afirmação da cultura brasileira especialmente a paulista. De fato, as contribuições deixadas por Almeida Júnior são resultado de todo um contexto cultural e de um conjunto de valores e anseios que nasciam dessa necessidade de afirmação, o que não as tornam menos significativas e singulares no que se refere ao contexto da arte brasileira.
Orientador: Prof. Dr. Paulo Mugayar Kühl, Docente junto ao Depto. de Artes Plásticas do Instituto de Artes – UNICAMP. E-mail: paulokuhl@iar.unicamp.com.br
Notas 1. Dentre os prêmios que o artista recebeu, um deles representa o reconhecimento internacional de sua obra, medalha de ouro em 1893 em Chicago na Exposição Internacional Colombiana em comemoração ao IV Centenário do Descobrimento da América, onde expõe: Caipiras Negaceando, Descanso do Modelo e Leitura. 2. Almeida Júnior produziu somente uma obra com tema histórico: Partida da Monção, de 1897. 3. ESTRADA, 1888, p. 154. 4. Em 1882 a Academia de Belas Artes comprou as obras Derrubador Brasileiro, Descanso do Modelo e Remorso do Judas, em 1890 a instituição adquiriu a obra Caipiras Negacendo e novamente em 1895 a obra Recado Difícil. A obra Partida da Monção, cuja produção é incentivada pelo então secretário do interior Cesário Motta Júnior, foi adquirida pelo governo do Estado de São Paulo em 1899 para compor a galeria de obras do Museu Paulista. 5. AMARAL, 1999, p. 60.
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Paula Giovana Lopes Andrietta Frias, Mestre em Artes pelo Instituto de Artes – UNICAMP. Professora do Centro Universitário Nossa Senhora do Patrocínio. E-mail: giandri@uol.com.br
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Lygia Clark e Maurice Merleau-Ponty: algumas aproximações Daniela Pinotti Maluf Maria de Fátima Morethy Couto Resumo: Este artigo é fruto da Dissertação de Mestrado: Lygia Clark e Merleau-Ponty: paralelos, defendida em 2007, e que teve por objetivo encontrar alguns pontos de contato entre a obra plástica da brasileira Lygia Clark, uma das artistas mais importantes do cenário nacional no século XX, e o filósofo francês Maurice Merleau-Ponty, um dos principais articuladores do pensamento fenomenológico. O primeiro paralelo traçado entre as duas obras foi a noção de abertura de ambos, aproximando-as da idéia trabalhada pelo ensaísta italiano Umberto Eco, em seu estudo intitulado Obra aberta. O segundo ponto de contato diz respeito a relevância e o papel do processo. Clark e Merleau-Ponty propunham que o fazer é mais importante do que o resultado obtido através dele. E, por fim, a interação entre sujeito e objeto, que se utiliza do corpo e do mundo para se construir, rompendo com a concepção positivista de mundo interno e mundo externo.
Este trabalho tem como objetivo encontrar pontos de ligação entre a obra filosófica do francês Maurice Merleau-Ponty (1908-1961) e a obra plástica da brasileira Lygia Clark (19201988), não restrito ao contexto histórico no qual algumas aproximações da teoria merleaupontyana se deram com o trabalho de Lygia, e sim ressaltando a “empatia” e a “similaridade” observadas entre os pressupostos teóricos de um e as obras e/ou proposições de outro. Optou-se por utilizar a palavra “paralelos”, pois tanto Lygia quanto Ponty traçaram seus próprios caminhos, e, tal como duas retas paralelas, encontram-se no infinito. Um desses “pontos de contato” entre ambos pode ser encontrado quando compreendemos que tanto a obra de Lygia quanto a teoria de Ponty partem do fato de que devemos “ir às coisas mesmas” se desejamos conhecê-las.
A metodologia fenomenológica consiste na descrição das essências, não sendo um método dedutivo nem empírico, considerando o que está perante a consciência, ou seja, a própria coisa em si. Esta abordagem valoriza uma visão particular, singular, pois cada ser humano percebe o mundo a sua maneira e é somente a partir desta percepção que ele “está no mundo” e interage com ele. A fenomenologia (estudo do fenômeno; aquilo que se mostra) está baseada na descrição. Ela entende o homem como ser-nomundo, sem a separação entre sujeito e objeto. O mundo é um caráter do ser, assim como o ser é intrínseco ao mundo, além disso o homem é visto como um ser inacabado, que está em constante vir a ser. O filósofo Edmund Husserl (1859-1938) delimitou as linhas mestras da fenomenologia baseado no princípio metodológico que se 151
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chamou de “redução fenomenológica” ou “epochê”, o qual consiste na “colocação entre parênteses” dos pressupostos que traçamos sobre o mundo, buscando uma percepção livre de idéias pré-concebidas. A partir deste arcabouço metodológico procurei aproximar as obras de Merleau-Ponty e de Lygia Clark, com o intento de perceber o modo e o como elas poderiam se entrelaçar, fazendo uso da análise qualitativa de material documental, sempre à luz da fenomenologia, especialmente a de Merleau-Ponty, o qual serve tanto como sujeito de minha análise, como base metodológica. Maurice Merleau-Ponty publicou sua tese de doutorado em filosofia em 1945, Fenomenologia da Percepção1. Esta é sua obra mais conhecida e também a de maior influência sobre o presente trabalho. Nela, o autor destrincha o “como” percebemos. Neste texto o filósofo discorre sobre os tópicos fundamentais para a compreensão da fenomenologia, partindo de uma retomada da perspectiva husserliana, referindo-se à fenomenologia como o estudo das essências sem se esquecer da importância da “facticidade”, ou seja, a existência e a condição de ser-no-mundo, para essas essências, e das limitações da epochê. “Na percepção, nós não pensamos o objeto e não nos pensamos pensando-o, nós somos para o objeto e confundimo-nos com esse corpo que sabe mais do que nós sobre o mundo, sobre os motivos e os meios que se têm de fazer uma síntese.” 2
O mundo, para Merleau-Ponty, nunca esteve distante do sujeito que o percebe e as idéias só poderiam existir através, a partir e para o mundo. A fim de explicitar esta unidade, ser-no-mundo ou sujeito-objeto, o filósofo entende a arte como uma das provas desta “união indelével” e aproveita para alertar que, 152
ao tentarmos separar esta união, corremos o risco não apenas de perdermos o todo, mas também as partes. A arte, segundo Ponty, é muitas vezes responsável por “esclarecer” a nossa condição e é daí que resulta a função da produção artística em seus escritos, neles a arte não aparece com um fim alegórico ou de exemplificação. “Um pintor como Cézanne, um artista, um filósofo devem não somente criar e exprimir uma idéia, mas ainda despertar as experiências que vão enraizar em outras consciências. Se a obra é bem sucedida, tem o estranho poder de transmitir-se por si. (...) O pintor só pode construir uma imagem. É preciso esperar que esta imagem se anime para os outros. Então a obra de arte terá juntado estas vidas separadas, não mais unicamente existirá numa delas como sonho tenaz ou delírio persistente, ou no espaço qual tela colorida, vindo a indivisa habitar vários espíritos, em todo presumivelmente, espírito possível, como uma aquisição para sempre.” 3
As obras têm uma “vida” para além delas mesmas, por isso Merleau-Ponty faz uso desta riqueza de relações geradas e propiciadas por elas. Uma “boa obra” tem um “poder germinador”, ou seja, ela consegue “brotar” nas pessoas que entram em contato com ela e, desta maneira, ganham uma amplitude extraordinária. Em Ponty o artista é visto como alguém que é capaz de catalisar o ser-no-mundo em suas obras; é aquele que expõe a união do dito “interior” com o “exterior” agregando a isso seus sentimentos. Os escritos de Ponty chegaram ao cenário artístico brasileiro através de Mário Pedrosa (1900-1981) e, posteriormente, por Ferreira Gullar (1930-), os quais encontraram em suas idéias os fundamentos para a arte que estava sendo realizada no Brasil na década de 1950, principalmente no Rio de Janeiro.
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Não é sem propósito que os artistas Neoconcretos (grupo carioca integrado por Ferreira Gullar, Lygia Clark, Lygia Pape, Hélio Oiticica, entre outros) encontram na teorização de Merleau-Ponty um dos embasamentos do movimento. O que os Neoconcretos buscavam era a libertação de velhas formas de se fazer arte, o que resultou em uma nova relação entre o espectador e a obra, que ficava mais próxima e acessível. No próprio Manifesto Neoconcreto, redigido por Ferreira Gullar em março de 1959, evidencia-se a importância das idéias Ponty: “Acreditamos que a obra de arte supera o mecanismo material sobre o qual repousa, não por alguma virtude extraterrena: supera-o por transcender essas relações mecânicas (que a Gestalt objetiva) e por criar para si uma significação tácita (M. Ponty) que emerge nela pela primeira vez.”4
Esta aproximação se deve principalmente às críticas efetuadas por Ponty à Gestalt (teoria utilizada pelos Concretos Paulistas), evidenciando a relação intrínseca entre a fundamentação teórica, as obras de arte produzidas e a diferenciação estética-ideológica dos dois grupos. Todo este arcabouço teórico chega de modo diluído às obras de Lygia Clark. Seria, portanto enganoso falar que as obras de Clark se basearam na fenomenologia desenvolvida por Ponty, porque, como ela mesma diz, era tudo “coisa de orelha”, ou seja, este universo intelectual lhe chegava com distância, devido ao seu parco interesse. Porém, não é enganoso falar que as obras de Lygia têm um modo fenomenológico de apreensão do mundo, e é por isso que a teoria se apresenta tão adequada para a compreensão de suas obras. As transformações propostas por Lygia, como a quebra da moldura (Composição nº 5, de 1954), a inserção da linha orgâni-
ca (Planos em superfície modulada nº 1 , de 1957) ou mesmo o descolamento da obra em relação à parede (Casulo, de 1959), podem ser entendidas como movimentos de aproximação do espectador em relação a obra. O ser humano, para Lygia Clark, transcende a soma das partes, ele é capaz de criar e, por isso, pode também ir “além” do “real”. Por meio da transformação da obra, Lygia propunha uma transformação da percepção do espectador da própria obra. Buscava um envolvimento que levasse em conta todas as sensações e sentimentos que foram mobilizados e despertados diante e com relação ao objeto em questão, dando sentido e significado ao objeto de arte, fazendo dele um exemplo concreto da condição de ser-no-mundo. Lygia Clark construiu obras que podemos chamar de “abertas”, servindo-se do conceito criado por Umberto Eco (1932-). A discussão sobre a abertura das obras e suas possibilidades de interpretação se faziam necessárias às “demandas históricas” daquele momento, em razão das transformações nas relações estabelecidas entre obra e público. O que estava aparecendo nas décadas de 1950 e 1960 era uma nova proposta de compreensão da arte. Umberto Eco esclarece: “A poética da obra “aberta” tende, como diz Pousseur, a promover no intérprete “atos de liberdade consciente”, pô-lo como centro ativo de uma rede de relações inesgotáveis, entre as quais ele instaura sua própria forma, sem ser determinado por uma necessidade que lhe prescreva os modos definitivos de organização da obra fruída; mas (...) poder-se-ia objetar que qualquer obra de arte, embora não se entregue materialmente inacabada, exige uma resposta livre e inventiva, mesmo porque não poderá ser realmente compreendida se o intérprete não a reinventar num ato de congenialidade com o autor.” 5
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Desta maneira, Eco coloca a abertura da obra como condição para sua assimilação pelo fruidor, porque é através da “reinvenção” da obra e da aproximação com o autor que o espectador adquire condições de criar um diálogo com a mesma. Para Eco, todas as obras são abertas, porque sempre é possível estabelecer novas relações com elas. Já Merleau-Ponty, em seu ensaio A linguagem indireta e as vozes do silêncio, aponta: “A obra que se cumpre não é, logo, a que existe em si como coisa, mas a que atinge o espectador, convidando-o a retomar o gesto que a criou e, saltando mediações, sem outro guia que não o movimento da linha inventada, a alcançar o mundo silencioso do pintor, ora proferido e acessível.” 6
Nossos olhos olham o mundo ao mesmo tempo em que olham para si mesmos. Em grande parte das obras/proposições, realizadas por Lygia a partir dos anos 1960, tais como Bichos, Obras Moles, Caminhando, Respire Comigo - pedra e ar, Baba Antropofágica, Roupa-Corpo, a própria obra ou proposição pode ser transformada ou mesmo gerada pelo fruidor-criador-participante. Neste caso, as obras não estão propriamente “abertas”, elas ainda não estão “prontas”, elas aguardam o diálogo com o espectador. Lygia entregava propostas e não necessariamente “obras”. Dentro dessa perspectiva, público e obra compõem um cenário particular, no qual as texturas, as cores, as sensações, as nuances são oriundas de um subtexto que compete a cada experiência. Somente o espectador tem condições de explicitar como se deu sua relação com a obra de arte, e que sentidos agregou ao objeto.
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Segundo Merleau-Ponty, lidamos com o mundo e com os outros como prolongamentos de nosso corpo e desta maneira somos levados a nos relacionar sempre de modo aberto. Uma bengala para um cego não é um objeto, é uma extensão de seu corpo, e as pessoas com quem convivemos também o são. “Sinto meu corpo como potência de certas condutas e de um certo mundo, sou dado a mim mesmo com um certo poder sobre o mundo; ora, é justamente meu corpo que percebe o corpo de outrem, e ele encontra ali como que um prolongamento miraculoso de suas próprias intenções , uma maneira familiar de tratar o mundo; doravante, como as partes de meu corpo em conjunto formam um sistema, o corpo de outrem e o meu formam um único todo, o verso e o reverso de um único fenômeno (...).” 7
Ponty nos traz uma noção de abertura inalienável aos seres humanos e a toda e qualquer ação humana. Deste modo, generalizase a compreensão de abertura, mas não se aprofunda em temas peculiares do objeto artístico. Tomemos como exemplo desta abertura os Bichos de Lygia, que são estruturas metálicas com partes móveis ligadas através de dobradiças, devendo ser manipuladas pelo “espectador”. Num primeiro momento, diante de um Bicho, nos perguntamos: o que desejo fazer? Logo depois passamos para outra pergunta: o que ele pode fazer? E de repente tudo se transforma e a questão que nos surge é: o que “nós” (eu e o Bicho) podemos fazer? A ação passa a ser “feita a dois”, o diálogo se estabelece, e é neste sentido que as palavras de Lygia sobre o fato de que só os Bichos sabem o que eles são capazes de fazer se concretizam, pois esta relação não tem como ser delimitada. Porque por mais que o
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objeto Bicho possa ser finito enquanto estrutura, ele se mantém infinito enquanto relação com o objeto. Relação esta que só se dá no processo, que constitui a etapa do trabalho de maior importância.
é cortada, no sentido da fita, por cada um dos co-criadores da obra, e quando a tesoura chega ao ponto de partida, no lugar de se dividir a fita em dois se escolhe entre cortar à direita ou à esquerda do corte já efetuado.
Com Lygia Clark esse processo se dá tanto na confecção de suas obras como no próprio modo de ser delas, assim como nas vivências propiciadas por diversas de suas proposições.
É evidente que cada um de nós pode fazer o Caminhando, pode inclusive realizá-lo diversas vezes, sem nunca deixar de ser, concomitan-temente, o mesmo e um outro.
“Por Deus a vida é sempre para mim o fenômeno mais importante e esse processo quando se faz e aparece é que justifica qualquer ato de criar, pois de há muito a obra para mim cada vez é menos importante e o recriar-se através dela é que é o essencial.” 8
Fica nítido que o interesse que ela tem em sua produção não diferia do seu interesse para com a experimentação em sua vida. Ao longo de sua existência sua criação e sua vivência estiveram sempre ligadas, e essa relação refletia-se diretamente em sua produção. Já com Ponty esse processo pode ser percebido tanto no interior de um mesmo texto ou ensaio como nas mudanças de um escrito para o outro, e, mais do que isso, esse processo é descrito como condição do texto. Suas idéias propõem o abandono das conclusões prévias a fim de que adotemos uma postura que mantenha as características fundamentais das coisas, ou seja, o seu caráter provisório e inacabado. O processo é, para Merleau-Ponty, o único modo de compreensão do mundo que respeita sua “essência”; a teorização sobre ele vem em segundo plano. Para ilustrar o que venho a afirmar, gostaria de traçar algumas considerações sobre a obra que representa uma das maiores rupturas da trajetória de Lygia, o Caminhando, de 1964, que consiste em uma tira de papel torcida em 180º, que forma uma Fita de Moebius e
Com Caminhando fazemos escolhas, optamos por caminhos, mudamos de direção, provocamos o destino, nos perdemos, nos encontramos, temos dúvidas, temos certezas, somos exatos, hesitamos, desistimos, somos pacientes, obsessivos, descuidados, ficamos atentos, brincamos, andamos a grandes cortes, tomamos cuidado, somos indiferentes, nos arrependemos, nos entregamos, morremos. Todas as sensações e questionamentos cabem enquanto dura a experiência.
Caminhando repete a condição humana em si, a de sermos sempre os mesmos e mudarmos constantemente. Desta maneira, esta “obra” poderia ser considerada uma “ode ao processo”. A efemeridade da obra contrasta com a duração do sentido da vivência da obra, pois a experiência não se encerra nela mesma, o Caminhando continua sempre no gerúndio, permanece infinitamente se fazendo. Em diversas ocasiões Merleau-Ponty compara a construção da filosofia fenomenológica à construção das obras de arte. É uma edificação do pensamento, que, por tentar apreender o mundo e não teorizar sobre ele, necessita de uma atenção especial, que nunca se distancia de seu “objeto” de estudo. Assim como as palavras de Ponty: “Se a fenomenologia foi um movimento antes de ser uma doutrina ou um sistema, isso não é nem acaso nem impostura. Ela é laboriosa como a obra de Balzac, de Proust, de Valéry ou de
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Cézanne – pelo mesmo gênero de atenção e de admiração, pela mesma exigência de consciência, pela mesma vontade de apreender o sentido do mundo ou da história em estado nascente.” 9
De forma semelhante à de Ponty, Lygia, em 1966, escreve um texto intitulado “Nós recusamos” e nele propõe: “Recusamos a obra de arte como tal e damos mais ênfase ao ato de realizar a proposição; Recusamos a duração como meio de expressão. Propomos o momento do ato como campo de experiência. (...) Propomos o precário como novo conceito de existência contra toda cristalização estática na duração.” 10
Lygia recusa os dogmas preestabelecidos, recusa todos os tipos de determinismo, inclusive o psíquico, recusa o seu lugar de “artista”, quando recusa a obra de arte, enfim, Lygia Clark prega a liberdade. Ela é contra a cristalização e contra todas as tentativas de se compreender o real como sendo algo já dado e estático. Como em seus Objetos Relacionais que são construídos a partir de materiais baratos e facilmente encontráveis no cotidiano (pedras, sacos plásticos, meias de nylon, bolinhas de isopor, entre outros), e podem ser facilmente reconstruídos por qualquer um de nós, bastando-nos ter os materiais necessários e, em alguns casos, uma ilustração ou foto da proposta de Lygia. No entanto, a reprodução material ou física do objeto não significa quase nada, porque é como se ele não existisse em si mesmo, ele só existe em contato com o sujeito. Os Objetos Relacionais de Lygia nos remetem ao exemplo utilizado por Husserl e por Ponty sobre o toque da mão direita sobre a mão esquerda, quando somos impelidos a perguntar: Qual mão está tocando e qual mão está sendo tocada? Qual delas é sujeito e qual é objeto? 156
“Assim, porque eu me toco tocando, meu corpo realiza “uma espécie de reflexão”. Nele e por ele não há somente um relacionamento em sentido único daquele que sente com aquilo que ele sente: há uma reviravolta na relação, a mão tocada torna-se tocante, obrigando-me a dizer que o tato está espalhado pelo corpo, que o corpo é “coisa sentiente”, “sujeito-objeto”.” 11
Merleau-Ponty, tenta assim explorar o impasse da neutralidade ao qual a nossa percepção está exposta, já que ela nunca é neutra, pois dependemos de nossa relação com o mundo e com as coisas para poder sentir e perceber. O corpo é tanto sujeito como objeto. Na realidade para Ponty não é possível compreender ou existir a noção de sujeito-objeto se não partirmos do corpo. Na filosofia de Merleau-Ponty o corpo é o lugar no qual o mundo se dá, ele não é um suporte e pode ser comparado a uma obra de arte. “Um romance, um poema, um quadro, uma peça musical são indivíduos, quer dizer, seres em que não se pode distinguir a expressão do expresso, cujo sentido só é acessível por um contato direto, e que irradiam sua significação sem abandonar seu lugar temporal e espacial. É nesse sentido que nosso corpo é comparável à obra de arte. Ele é um nó de significações vivas e não a lei de um certo número de termos co-variantes.” 12
O corpo faz parte do mundo e está aberto a ele. O corpo capta o mundo e o transforma. O corpo traz em si “sujeitobjeto”. E este entendimento é fundamental na obra de Ponty, uma vez que, deste modo, falar do corpo é falar da relação sujeito-objeto. Assim como, nas propostas de Lygia, a manipulação ou o contato com os objetos estavam constantemente direcionadas ao corpo, a serviço do corpo, recompondo e resgatando o corpo vivido.
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A tônica central das propostas de Lygia é este movimento de mão-dupla, eu pertenço ao objeto assim como ele me pertence, e este sentido de pertencer não é o de posse, mas sim o de comunhão, o de reconhecimento da similaridade da matéria, com a finalidade última da re-experimentação e a redescoberta das sensações e dos sentidos provenientes do corpo. A redescoberta do corpo e, conseqüente-mente, a redescoberta de nós mesmos passa a ser o tema central das proposições de Lygia Clark, bem como se pode ver nos escritos de Ponty. Cada um a sua maneira buscou retirar o corpo de uma condição subjugada de receptáculo e conduzi-lo a uma posição que lhe compete mais, a condição sine qua non da existência.
Clark não separa arte e vida, por isso prescinde da arte para encontrá-la, pois se seguirmos seu modo de pensar e conceber o mundo todos os nossos gestos podem ser vistos como atos criadores e por isso artísticos. É claro que Lygia reconhece que, em grande parte do tempo, estamos desconectados de nossas ações, de nosso sentir e perceber, no entanto, a fim de resgatá-los a artista utiliza-se de materiais banais e cotidianos, propondo que o participante saia de seu lugar costumeiro e passe a habitar, ou melhor, cohabitar o lugar do artista. Lygia potencializa o sujeito, resgata no humano uma de suas características fundamentais, a de ser um “animal criador” que transforma a natureza. Lygia Clark retira-nos da passividade e devolve-nos nossa origem e nosso destino, de sermos perpetuamente seres criadores.
“Não somos esta pedra, mas, quando a vemos ela ressoa no nosso aparelho perceptivo, a nossa percepção surge-nos como provindo dela, isto é, como existindo por ele, como nossa recuperação daquela coisa muda que, desde que entra na nossa vida, se mexe, desenvolve o seu ser íntimo, se revela a si própria através de nós. O que julgávamos ser coincidência é coexistência.” 13
Arte e vida, assim como filosofia e vida não poderiam estar separadas para meus interlocutores. Sujeito e mundo estão unidos, eu e os outros, estamos unidos, o pensamento se constrói de modo coletivo, minhas sensações dizem respeito a todo o meu corpo e também ao mundo. Dentro desse espírito, Merleau-Ponty expõe o como vê a filosofia:
Esta fala de Ponty nos remete a proposição de Clark; Nostalgia do corpo: diálogo, de 1968. Nesta proposta, que é realizada em dupla ou com mais pessoas, cada participante, ou “jogador”, passa um pequeno seixo da mão de um para o outro.
“Se filosofar é descobrir o sentido primeiro do ser, não é possível filosofar abandonando a situação humana: é, pelo contrário, preciso assumi-la. O saber absoluto do filósofo é a percepção. A percepção funde tudo porque, por assim dizer, nos comunica uma relação obsessiva com o ser, que está perante nós e, todavia, nos atinge interiormente.” 14
A proposta de Lygia consiste no simples fato de passar a pedra da mão de uma pessoa para outra, mas com isso ela consegue retirar esta ação do lugar comum e transmutá-la para uma vivência repleta de sentido para cada um dos participantes. Esta proposição pode nos ajudar a compreender a importância do contato, não só com os objetos, mas também com os outros.
Deste modo, perante as palavras de Ponty, só nos resta admitirmos que estamos no mundo interagindo com ele e não como simples “espectadores”. Estamos com o mundo, somos o mundo, somos as coisas, e talvez o papel do “espectador” nem possa existir perante essas condições. O homem não possui 157
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valores absolutos, pois a sua condição existencial lhe impõe uma precariedade de certezas. O que Lygia realizou durante toda a sua vida foi um “exercício experimental de liberdade”, conforme dizia Mário Pedrosa, foi uma proposta para que o homem retomasse suas “origens”, como ser criador, e que se projetasse no futuro como ser integrado a si mesmo e ao mundo. Do mesmo modo, os escritos de Merleau-Ponty permitiram um entendimento mais amplo e profundo da condição humana, a fim de que o ser humano pudesse olhar para si mesmo, para seus iguais e para o mundo como a grande unidade que é.
Daniela Pinotti Maluf, Mestre em Artes pelo Instituto de Artes - UNICAMP e Psicóloga. E-mail: dpinotti@usp.br Orientadora: Profa. Dra. Maria de Fátima Morethy Couto, Docente junto ao Depto. de Artes Plásticas do Instituto de Artes UNICAMP. E-mail: mfmcouto@iar.unicamp.br
Referências Bibliográficas CLARK, Lygia. “Carta de 26.10.1968, França.” In: FIGUEIREDO, Luciano (org.). Lygia Clark - Hélio Oiticica: Cartas, 19641974. Rio de Janeiro: UFRJ, 1996. CLARK, Lygia. “Nós recusamos”. In: CLARK, Lygia. Lygia Clark. Textos de Lygia Clark, Ferreira Gullar e Mário Pedrosa . Rio de Janeiro: FUNARTE, 1980. ECO, Umberto. Obra Aberta. Tradução: Pérola de Carvalho. São Paulo: Perspectiva, 1971. GULLAR, Ferreira. “Manifesto Neoconcreto”. Apud BRITO, Ronaldo. Neoconcretismo - Vértice e ruptura do projeto construtivo brasileiro. São Paulo: Cosac & Naify, 2002, p. 10 e 11. Publicado originalmente no Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 22 de março de 1959. HUSSERL, Edmund. A idéia da fenomenologia. Lisboa: Edições 70. Tradução Artur Morão, 2001. MERLEAU-PONTY, Maurice. “A dúvida de Cézanne”. Textos selecionados. Seleção Marilena de Souza Chauí. São Paulo: Nova Cultural, 1980. ___________. Elogio da filosofia. Lisboa: Guimarães Editores, 1986. ___________. “A linguagem indireta e as vozes do silêncio” In: Textos selecionados. Seleção Marilena de Souza Chauí. São Paulo: Nova Cultural, 1989. ___________. “O filósofo e sua sombra”, In: Textos selecionados. Seleção Marilena de Souza Chauí. São Paulo: Nova Cultural, 1989. ___________. Fenomenologia da Percepção . São Paulo: Martins Fontes, 1999.
Notas 1. MERLEAU-PONTY, 1999. 2. Idem. p. 320. 3. MERLEAU-PONTY, 1980, p. 121. 4. GULLAR, 2002, pp. 10 e 11. 5. ECO, 1971, pp. 41 e 42. 6. MERLEAU-PONTY, “A linguagem indireta e as vozes do silêncio” In Textos selecionados. Seleção Marilena de Souza Chauí. São Paulo: Nova Cultural, 1989, p. 98. 7. MERLEAU-PONTY, 1999, p. 474. 8. CLARK, 1996, p. 56. 9. MERLEAU-PONTY, 1999, p. 20. 10. CLARK, 1980, p. 30. 11. MERLEAU-PONTY, “O filósofo e sua sombra”, 1989, p. 195. 12. Idem. pp. 209 e 210. 13. MERLEAU-PONTY, 1986, p. 26. 14. Idem, pp. 23 e 24.
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Entre o Museu e a Praça, o legado de Lygia Clark e Hélio Oiticica Marcia Moraes Maria de Fátima Morethy Couto Resumo: O descompasso entre a arte contemporânea e as convenções museológicas já se delineia há algumas décadas, e pode ser explicado pelo fato de que o museu convencionado durante o modernismo tornou-se inadequado frente às produções artísticas mais recentes e não oferece lugar apropriado a este tipo de arte. Neste artigo discutimos a incorporação dos trabalhos de Lygia Clark e Hélio Oiticica por parte deste museu tradicional, atentando para a posição avessa e crítica dos dois artistas frente a estrutura museológica.
Entre o Museu e a Praça, o legado de Lygia Clark e Hélio Oiticica A partir da década de 1960, presenciamos em diversos países o crescimento da importância do conceito da obra e do pensamento do artista em oposição à noção fetichizada de objeto de arte, o que, em linhas gerais, resultou numa série de trabalhos que criticavam o circuito fechado das artes e que buscavam subverter o modelo expositivo moderno, convencionado como “Cubo Branco”1. Os ataques aos mecanismos inerentes ao sistema da arte e suas instituições, museus e galerias era devido ao fato de que, ao mesmo tempo em que estes locais expunham trabalhos de arte, criavam valores simbólicos e econômicos que contrariavam os artistas. Neste período, o eixo das preocupações dos artistas brasileiros também se deslocou dos objetos para o conceito de seus trabalhos, o que desencadeou a criação de obras que iam além da experiência perceptiva visual direta, como as de Hélio Oiticica, Lygia Clark,
Lygia Pape e dos conceituais Ana Bela Geiger e Arthur Barrio2 entre outros. Para o crítico inglês Guy Brett, era possível perceber no Brasil desta época, “dois tipos de trajetórias artísticas que podem ser descritas em termos de uma distinção entre a obra “fechada” e obra “aberta”. A “fechada” está representada por Sérgio Camargo e Mira Schendel, dois artistas favoráveis à idéia predominante que vê o artista como um criador de objetos autônomos para serem apreciados em determinados locais institucionais – a galeria e o museu –, mas que, dentro desses limites, continuaria a fazer descobertas e a desafiar a ordem perturbadora na linguagem que lhe é própria. Já no caso dos praticantes da obra “aberta”, como Clark, Oiticica e Lygia Pape, são exatamente estes limites que eles questionam.” 3 Foi inicialmente sob os preceitos do Movimento Neoconcreto que Lygia Clark e Hélio Oiticica saltaram da superfície bidimensional 159
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para o espaço real e elaboraram as obras-objeto ou não-objetos, como os denominou Ferreira Gullar, que transcendiam o sentido de obra de arte ligado apenas à materialidade e que efetivaram a idéia de uma relação dinâmica e dialógica entre artista, obra e espectador. Clark e Oiticica propunham a ampliação do acesso à arte e o fim do caráter de ‘sacralidade’ dado à obra; ambos afirmaram que suas obras-objeto deveriam ser dispostas em espaços públicos e abertos, nos quais o público pudesse não apenas olhá-las mas tê-las como parte integrante de suas experiências cotidianas, e nunca expostas em pedestais ou coladas às paredes dentro das isoladas salas de museus e galerias. Hélio Oiticica observou em 1961, que suas proposições de arte-totalidade, arte–participativa, eram impossíveis de serem adequadas às estruturas de museus ou galerias modernas, pois estes espaços não se interessavam por experiências artísticas que não pudessem ser reduzidas a seus próprios interesses e normas. Para o artista e teórico Brian O’Doherty, as “galerias modernistas ideais subtraem da arte todos os indícios que interfiram no fato de que ela é arte. A obra é isolada de tudo o que possa prejudicar sua apreciação de si mesma.“4 Em 1969 Hélio Oiticica realizou sua mais importante mostra individual, a Experiência Whitechappel. Dentro da Galeria Whitechappel, em Londres, o artista criou um ambiente no qual subvertia as normas de comportamento tradicionalmente esperadas dos visitantes de uma exposição. Para Oiticica, a experiência consistia em um ‘campo experimental’, no qual todas as experiências humanas seriam permitidas, já que, para ele, o importante não era o objeto, mas a forma como ele era vivido pelo espectador. Neste mesmo ano, Hélio Oiticica escreveu em carta para Lygia Clark que, para ele, a idéia de objeto-arte vendável era coisa do passado; em suas palavras, afirmou: “o objeto-arte não existe hoje 160
para mim, (...) isso e é uma posição real a que devo ser fiel; quero um novo comportamento, integral, que exclua toda sorte de idéia corrupta, pequenez de ‘mundo de arte’.“5 Ainda na década de 1960, para sua participação na Bienal de Veneza de 1968, Lygia Clark criou uma estrutura labiríntica a qual denominou A casa é o corpo. A proposta consistia em uma seqüência de salas escuras pelas quais o público-participante caminhava em meio a bolas de borracha para chegar em uma tenda cheia de luz, como uma analogia ao nascimento. Na mesma esteira de pensamento, Lygia Pape criou as obras Ovo e Divisor, ambos de 1968. Estas novas propostas acerca da experiência artística e da relação do sujeito com o objeto de arte, formuladas por Lygia Clark, Hélio Oiticica e Lygia Pape tiveram início dentro do Movimento Neoconcreto, o qual teve seu manifesto escrito por Ferreira Gullar em 1959. O Manifesto apontava que a motivação do grupo de artistas e teóricos para o desenvolvimento do Neoconcretismo foi a procura de uma saída para o movimento anterior, o Concreto. Os Neoconcretos passaram a propor a retomada da subjetividade na arte, embora não os interessasse “retornar ao subjetivismo tradicional, inclusive por aceitar explicitamente os postulados básicos da vanguarda construtiva”6. De acordo com Ferreira Gullar, o Neoconcretismo apoiou-se nas concepções de Merleau–Ponty quando esse apontou em sua teoria fenomenológica, que a percepção teria que ser temporal e fluir no corpo e contestou a distância entre sujeito e objeto. No final dos anos 1950 e após inúmeras tentativas de renovação do espaço pictórico - série Superfícies Moduladas de Clark e Metaesquemas e Monocromáticos de Oiticica – Lygia Clark e Hélio Oiticica alegaram que a pintura já teria esgotado todas as suas possibilidades formais e que a pura e simples contemplação visual do quadro, bem como a imo-
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bilidade do recorte sobre a parede não mais os satisfazia. Neste período, Lygia Clark e Hélio Oiticica realizaram proposições de estruturas espaciais, como os Contra-relevos e Casulos e os Bilaterais e Relevos Espaciais.
produções deslocou-se na direção do envolvimento entre artista, obra e espectador, pois passaram a propor a eliminação da pura contemplação visual, visando a transformar o espectador um ‘participador’ da obra de arte.
Em seus próximos trabalhos, Oiticica se distancia das modalidades em escala ambiental e passa a criar trabalhos em escala mais intimista. Em 1963, cria obras-objeto que denomina Bólides ou Transobjetos, em que explora o que chamou de ‘coorporização da cor’, pesquisando e se apropriando de diferentes objetos e materiais de texturas e cores variadas e colocando-os a disposição dos sentidos do espectador.
As criações espaciais de Clark e Oiticica, tanto dentro do movimento Neoconcreto quanto após seu desmembramento, deram-se, de acordo com Mário Pedrosa, em meio a uma grande “crise escultórica mundial”, revelando a importância do movimento Neoconcreto e das criações dos dois artistas. Para Pedrosa, as obras-objeto revolucionaram o velho conceito tradicional de escultura assim como das esculturas ditas cinéticas, pois adicionaram “às anteriores realizações no domínio das construções e criações de movimentos cinéticos” um elemento novo, de maior transcendência: a arte de Clark e Oiticica “convida o sujeito-espectador a entrar numa relação com a obra, quer dizer, com o objeto, de modo a que o sujeito participe da criação do objeto(...).” 7
Desde a criação da série Superfícies Moduladas em 1958, Lygia Clark substitui a tela e a tinta a óleo por chapas de madeira pintadas com pistolas de tinta industrial. Nas séries seguintes, Contra-Relevos e Casulos, a artista utiliza chapas de madeira e de ferro, só que desta vez as recorta e dobra criando formas que se situam entre o espaço bidimensional e o tridimensional. Os Casulos são placas de metal que se dobram sobre si mesmas, criando um espaço interno que se assemelha e remete a um útero ou um ovo, como um plano estufado. Em 1961, como se os Casulos tivessem caído das paredes para o chão, Lygia cria os Bichos. Inicialmente feitos de alumínio dobrado, os Bichos possuíam dobradiças que lhes davam articulação. Neste momento, Clark cria a possibilidade de que a obra se transforme a partir do toque de quem com ela interage. Em 1962, Lygia construiu obras moles, feitas de borracha, para serem alisadas e apalpadas, de textura irregular: os Trepantes, que abriram caminho para suas futuras proposições sensoriais e para um processo de abandono das preocupações materiais e estéticas. Com a criação dos Bichos de Clark e os Bólides de Oiticica, os dois artistas iniciaram um processo em que a ênfase de suas
Após a criação dos Trepantes (1964), os trabalhos de Clark caminharam em direção à desmaterialização da obra e a experiências que envolviam de maneira ainda mais direta o ato, o corpo e as sensações do participador. Em 1964, Clark cria a proposição Caminhando, na qual o sentido da obra residia no ato de se fazer a experiência, no caso cortar a fita de Moebius. É neste momento que Clark rompe de vez com a estrutura convencional do museu e de espaços expositivos tradicionais, afirmando que o “ato do Caminhando é uma proposição dirigida ao homem (...)” A artista afirmou na época que, após Caminhando, o objeto perdeu para ela seu significado e que, se ainda o utilizava era para que fosse o mediador para a participação. Em 1966, Clark elaborou a proposição Nostalgia do Corpo, dita por ela como um conjunto de experiências realizadas com pequenos objetos que marcam seu abandono das “cogitações estéticas’”. 161
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Na década de 1970, a artista se desligou totalmente do mundo das artes; entre 1970 e 1975, residiu em Paris e lecionou no curso de Artes Visuais da Sorbonne, onde realizou ‘exercícios de sensibilização’ com seus alunos. A partir das propostas de sensibilização, cresceu seu interesse em direção ao caráter “terapêutico” de suas proposições; começou então a questionar sua condição de artista e a se colocar como ‘não-artista’, realizando sessões terapêuticas em seu apartamento no Rio de Janeiro. A trajetória de Hélio Oiticica foi extremamente criativa e experimental, desde o fim dos anos 1950 até o ano de 1980, quando faleceu. Os marcantes Parangolés foram criados em 1964, em meio a um período efervescente na produção de Oiticica. Foi neste ano que o artista passou a freqüentar os ensaios da escola de samba Mangueira e, conseqüentemente, todo o universo do morro. O contato com esta nova maneira de organização social, cultural e arquitetônica, passou a influenciálo, fazendo com que desenvolvesse trabalhos que estabeleciam a participação e interação total entre espectador e obra, como o Parangolé e a Manifestação Ambiental Tropicália que são fortemente inspirados na arquitetura fragmentária das favelas. As Manifestações Ambientais, como a Experiência Whitechappel expandiram as origens arquiteturais do Parangolé e trouxeram um novo conceito espacial aos trabalhos de Oiticica, pois consistiam em ambientes em que o público podia caminhar, se movimentar e escolher a maneira de nele permanecer. Oiticica propunha uma experiência do espaço, criava espaços incomuns, labirínticos “em vez de criar um espaço para determinado programa de usos e funções, propõe o espaço, para, em seguida, deixar que sejam descobertos os usos e funções possíveis.” 8 Durante muitos anos após o término do Movimento Neoconcreto, as propostas artísti162
cas desenvolvidas por seus integrantes ficaram afastadas da preocupação da crítica de arte, só sendo retomadas na década de 1980. A mostra Lygia Clark e Hélio Oiticica, realizada na Sala Especial da IX Salão de Artes Plásticas do Rio de Janeiro, em 1986, com curadoria de Luciano Figueiredo, deflagrou um processo em que as críticas de arte nacional e internacional passaram a olhar com mais atenção para as produções dos dois artistas, resgatando-as e inserindo-as em mostras importantes, como as Bienais de São Paulo e organizando expressivas retrospectivas individuais. Nos anos 1990, a crítica de arte internacional se adiantou à crítica nacional e organizou grandes retrospectivas individuais de ambos, que circularam por países da Europa e América. Os trabalhos de Lygia Clark e Hélio Oiticica passaram a estarem inseridos em grandes mostras nacionais e internacionais, a discussão acerca do sucesso destas exposições no que diz respeito à preservação da atualidade da obra e do pensamento destes artistas, teve início. Para Guy Brett, qualquer tentativa póstuma de reunir e apresentar as obras de ambos estaria fadada a trazer à tona essa questão, a qual, para Ricardo Fabbrini, “não se resume apenas em verificar qual é a estratégia museológica mais adequada de exposição destes trabalhos, trata-se de uma questão ética, política, cultural e ideológica”9. Quando discutimos a incorporação, por parte de Instituições, dos trabalhos de Clark e Oiticica, discutimos a incorporação do que se propunha ser transitório e que negava a perenidade exigida pelos museus, entretanto, estes trabalhos que à primeira vista estariam negando sua própria essência ao serem museologizados, não seriam também, “como toda e qualquer obra de arte, documentos de civilização? Afinal, não deveria também o museu de arte contemporânea estar envolvido nesse programa?” 10
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Apesar de termos enfrentado a passagem da arte moderna para a contemporânea, a Instituição que a abriga não sofreu muitas mudanças, apesar de algumas tentativas, quanto à sua adequação para exibir a produção artística contemporânea. De acordo com Cristina Freire, o museu de arte contemporânea não deve se limitar a uma função passiva, com salas de exposições abertas apenas à contemplação de poucos privilegiados, deve preservar a obra exposta dando fundamentalmente, inteligibilidade à ela.
Esta retrospectiva de 1992-1994, que percorreu países europeus e os Estados Unidos e que não foi mostrada no Brasil, suscitou discussões acerca de sua montagem, mas foi inegavelmente, a primeira e até agora única grande mostra internacional póstuma do legado do artista. A exposição apresentou um completo levantamento dos trabalhos de Oiticica, incluindo trabalhos originais, reconstruções de instalações e montando pela primeira vez a instalação Cosmococas (1973), que nunca havia sido executada pelo artista em vida.
O que verificamos atualmente é que os museus se adequaram ao papel econômico ao qual foi alçada a cultura contemporânea e não procuraram se modificar para abrigar as novas obras, daí o descompasso que encontramos atualmente nas inúmeras mostras retrospectivas de Lygia Clark e Hélio Oiticica. Como podemos encarar o fato de que os projetos dos dois artistas, de embaralhamento entre arte e vida (ou de estetização do real) acabaram por integrar as reservas técnicas deste tipo de museus? E também como encarar o fato de que acabaram sendo expostos, em várias mostras, da forma mais tradicional possível?
A mostra internacional Caminhando – Retrospectiva Lygia Clark, de 1998-1999, que foi exibida no Brasil no fim de 1998 e início de 1999 no Paço das Artes, no Rio de Janeiro, foi a maior e até agora, a única grande mostra internacional do legado da artista. Sua montagem obedeceu a uma ordem cronológica, da produção da artista situada entre os anos 1960 e os anos 1980, foram expostos os Bichos e Objetos Relacionais. Para Paulo Herkenhoff, esta exposição foi um marco para o conhecimento e a divulgação internacional da obra de Lygia Clark.
O que encontramos frequentemente são dois modelos de exposições: em um modelo tradicional, os Bichos, Trepantes, Objetos Relacionais, Máscaras Sensoriais, etc. de Lygia e Parangolés, Capas, Tendas, Bólides etc de Oiticica, são dispostos em vitrines e, portanto, separados e isolados, longe da participação do público, transformado novamente em simples espectadores, como aconteceu na mostra Documenta X de Kassel de 1997, sob curadoria de Catherine David. Já em um segundo modelo, encontramos tentativas de recriar, dentro do espaço da exposição, a força mobilizadora das ações de Lygia Clark e Hélio Oiticica de forma “artificial”, como aconteceu na exposição retrospectiva de Oiticica de 1992 – 1994.
Paulo Herkenhoff foi o curador da exposição retrospectiva Lygia Clark de 1999, realizada no Museu de Arte Moderna – MAM de São Paulo, que contou com cerca de 110 obras, entre pinturas, objetos, obras participativas e a montagem inédita da obra Maquete para Interior n. 1, idealizada por Clark em 1955. No entanto, “nessa exposição os Bichos ficaram abandonados numa bancada lateral. Eles estavam enfileirados e, sendo obras originais, não podiam ser tocados: apenas um, o mais travesso, tendo saltado ao chão, saudava os visitantes.”11 Inúmeras réplicas se misturavam aos Bichos e a outras peças originais, entretanto, o público só podia manipular tais réplicas sob o olhar dos educadores do MAM, o que estabelecia uma situação curiosa para o visitante.
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Ainda no contexto nacional, a exposição Hélio Oiticica: Obra e Estratégia, de 2002, com curadoria de Luciano Figueiredo e realizada no MAM do Rio de Janeiro, foi uma das mostras mais completas feitas até hoje no Brasil acerca da obra do artista. A exposição, na qual “réplicas de Parangolés foram especialmente confeccionadas e cuidou-se pela primeira vez em espaço museológico de informar o visitante e encorajá-lo a retirar o Parangolé de sua posição estática e vestindoo, explorar suas possibilidades” 12 exibiu não apenas as obras de Oiticica e suas réplicas, como também registros de seus projetos nunca realizados, anotações do artista e uma série de fotografias e informações da época de cada criação de Hélio Oiticica, contextualizando sua produção. A exposição Lygia Clark - Da Obra ao Acontecimento – Somos o Molde, A você cabe o Sopro de 2005 - 2006, com curadoria de Suely Rolnik e Corinne Diserens, trouxe ao público uma nova maneira de expor a obra de Clark. Diferente das duas formas já utilizadas anteriormente em mostras retrospectivas de Lygia Clark. Suely Rolnik afirmou que a partir da mostra retrospectiva entre 1997 e1999, Lygia Clark passou a ser figura constante em grandes exposições nacionais e internacionais mas, mesmo tamanha circulação de suas obras, não solucionou o problema do acesso insuficiente a sua produção. Para a curadora, a alternativa encontrada para sanar este problema foi a realização de 56 entrevistas com pessoas que foram ligadas à Lygia Clark, que estudaram seu trabalho e o utilizam como referência. Suely Rolnik afirmou ainda, que todo o projeto da exposição nasceu das entrevistas e da necessidade de realizar uma mostra que tivesse a exibição dos depoimentos como algo diferenciador e que pudesse, ao menos em parte, sanar o problema do acesso insuficiente à produção de Clark. A importância que
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a curadoria destinou aos depoimentos foi a mesma dada ao restante da exposição. Duas grandes questões embasaram a curadoria da mostra: como mostrar essa obra em um espaço museológico e como manter acessíveis as ações experimentais de Lygia Clark. Na tentativa de responder estas questões impostas por ela mesma, a curadora optou, nesta mostra, por tornar presente a memória da experiência viva dessas ações experimentais, por meio dos depoimentos, resultando nesta “exposição-arquivo”. É impossível reviver o ambiente e a proposta da artista dentro de uma instituição, já que o tempo e o espaço exigidos por Lygia não são os encontrados quando se visita uma exposição de arte. Os Objetos Relacionais, as Máscaras e Roupas sensoriais e a proposta de construção de Caminhando sempre se tornam, dentro do museu, registros curiosos de uma proposta outrora inovadora. O que percebíamos ao visitar a mostra era uma tentativa, por parte da curadoria, de comunicar e explicar da forma mais detalhada possível a obra de Lygia Clark. Quando tratamos da exposição dos trabalhos de Lygia Clark e Hélio Oiticica, deve-se levar em consideração a relação do público com os objetos expostos. Em muitas mostras, o impedimento de que o público possa manipular as obras e a falta de explicações acerca das propostas dos artistas transformava os trabalhos de Clark e Oiticica em grandes objetos curiosos e paralisados. Com a intenção de facilitar a compreensão dos trabalhos de Lygia Clark e Hélio Oiticica quando expostos, podese usar recursos de apoio ao visitante, como dados biográficos sobre os artistas, dados técnicos sobre a obra, textos críticos sobre a exposição e sobre toda, ou parte da produção do artista, documentos da época da criação, como projetos e anotações pessoais, filmagens da época, entrevistas com pessoas que tenham
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tido contato com os artistas, réplicas dos trabalhos que exigem participação e confecção de catálogos. Ao lado destes recursos de apoio, o desenho museográfico ganha papel estratégico e de destaque no processo de construção da comunicação a ser estabelecida entre os trabalhos mostrados e o visitante da mostra. Ao nosso ver, mais importante do que tocar os objetos originais ou as réplicas, é que o público entenda as propostas de Lygia Clark e Hélio Oiticica, que visava a uma intensa aproximação entre arte e vida. A compreensão dos trabalhos dos dois artistas pode acontecer quando se possibilita que o público assista a registros filmados da década de sessenta, tornando-o consciente de que se trata de trabalhos que tiveram grande importância na época em que foram criados, e que atualmente exercem grande influência na produção artística contemporânea, principalmente a nacional. Acreditamos que não existe um modelo expositivo único que possa ser utilizado em exposições de Lygia Clark e Hélio Oiticica, já que há inúmeras diferenças entre os trabalhos de ambos. Hélio Oiticica e Lygia Clark fugiram das instituições e galerias e negaram se inserir no mercado das artes, cada um a seu modo. Enquanto Clark rompeu com as artes plásticas e se fechou em um consultório trabalhando com terapia, Oiticica continuou refletindo acerca de sua produção e nunca abandonou seu trabalho artístico e sua intensa pesquisa plástica. Em linhas gerais, Oiticica refletia de que maneira sua crítica às instituições seria mais eficaz, talvez levando sua arte para a rua? Fugindo do museu para a praça? Já na década de 1960, com sua exposição Experiência Whitechapell, o artista estava dentro do espaço convencional intentando sua transformação, como observou Guy Brett, a obra de Oiticica está intimamente ligada ao “contínuo desafio à instituição de arte como museu de coisas mortas.”13
A mostra Cosmococas – Program in Progress com curadoria de César Oiticica Filho que aconteceu na Pinacoteca do Estado de São Paulo em 2003 reflete este desafio. Para Oiticica, em Cosmococas “não se trata mais de impor um acervo de idéias e estruturas acabadas ao espectador, mas de procurar pela descentralização da “arte”, pelo deslocamento do que se designa como arte, do campo intelectual racional para a proposição criativa vivencial.”14 Na mostra foram expostos também os cadernos de anotações de Oiticica com os projetos para a execução das cosmococas. Como na exposição Hélio Oiticica Obra e Estratégia, de 2002, a exposição que ocupou as salas da Pinacoteca também se preocupou em trazer ao público os documentos, anotações, reflexões e registros deixados por Oiticica. No caso da exposição Lygia Clark Da Obra ao Acontecimento (20052006), as curadoras Suely Rolnik e Corinne Diserens optaram por exibir 33 das 56 entrevistas realizadas por Rolnik, pois os depoimentos das experiências vividas são o registro das atividades terapêuticas desenvolvidas por Clark, e foram necessárias para o aprofundamento do entendimento do legado da artista. Será que no caso de uma exposição do legado de Hélio Oiticica este registro da experiência vivida se faz tão necessário como no caso de Clark para a compreensão de sua obra? Em relação a algumas propostas de Oiticica o registro se faz necessário, por exemplo, quando tratamos das manifestações coletivas que o artista propunha nas ruas e locais públicos de cidades como Rio de Janeiro; mas quando nos referimos a outros trabalhos como os seus Penetráveis, o registro não é tão importante quanto a própria obra. No caso de Hélio Oiticica, registros documentais de suas criações, seus projetos, seus rascunhos e textos reflexivos talvez sejam mas importantes para ampla compreensão de seu legado artístico do que depoimentos de quem vestiu um parangolé.
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Esta junção entre “experimentalismo” e “museu”, gera discussões acerca da revitalização de obras de arte como as de Clark e Oiticica e as inúmeras incompatibilidades entre estas obras e a estrutura museológica moderna que encontramos em voga ainda hoje. A grande questão que permeia as exposições retrospectivas póstumas de Lygia Clark e Hélio Oiticica é se a instituição de arte pode se adaptar às demandas e estruturas da arte dos dois artistas ou são suas obras que devem adaptar-se à instituição? Já em 1972, Hélio Oiticica escreveu o texto Experimentar o Experimental, no qual o artista defendeu a impossibilidade de convívio entre o experimental e todos os “re” - representar, revitalizar, reviver, recriar, mas admitiu a retomada, o retorno: “não confundir reviver com retomar (...) o experimental pode retomar, nunca reviver (...) os fios soltos do experimental são energias que brotam para um número aberto de possibilidades”. Atualmente, experimental e museu podem viver juntos se o museu transformarse em um distribuidor destes fios soltos.
Márcia Martins Rodrigues de Moraes, Mestre em Artes pelo Instituto de Artes – UNICAMP. E-mail: marciademoraes@gmail.com Orientadora: Profa. Dra. Maria de Fátima Morethy Couto, Docente junto ao Depto. de Artes Plásticas do Instituto de Artes – UNICAMP. E-mail: fmorethy@uol.com.br
Notas 1. As mudanças desencadeadas pelo fim do paradigma acadêmico refletiram tanto na maneira dos artistas se expressarem como na forma com que passaram a ser expostas suas novas criações. O modelo de museu moderno, convencionado como “Cubo Branco” foi iniciado pelo MOMA - Museu de Arte Moderna de Nova York, para abrigar não apenas pinturas e esculturas modernas mas também exposições “não-históricas”. A primeira exposição no MOMA a utilizar tal modelo foi “Arte e nosso tempo”, de 1939. 2. Arthur Barrio nasceu em Portugal, mas reside no Brasil desde 1955.
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3. BRETT, 1997, p. 283. 4. O’DOHERTY, 2002, pp. 3-10. 5. OITICICA, 1986, p.111. 6. BRITO, 2002, p. 84. 7. Idem, p. 196. 8. BEREINSTEIN, 2003, p. 83. 9. Observação feita por Ricardo Fabbrini, no exame de qualificação da Dissertação de Mestrado da autora MORAES, Márcia, em 2005. 10. FREIRE, 1999, p. 41. 11. Idem, s/p. 12. FIGUEIREDO, 2002, p. 15. 13. BRETT, 2005, p. 79. 14. Hélio Oiticica apud Fábio Cypriano. Mostra visita radicalidade de “Cosmococas”. Ilustrada. Folha de São Paulo, 26 de abril de 2003.
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A Pesquisa Iconológica nas Artes: o legado da Escola de Warburg Ana Tagliari Haroldo Gallo Resumo: O presente texto aborda algumas considerações teóricas a respeito da importância de Warburg e de sua herança na área do estudo imagético, iconográfico e iconológico nas artes e na arquitetura, destacando seus principais teóricos. Este artigo é parte do texto realizado para a disciplina Teoria das Artes: Aby Warburg e a Historiografia da Arte Contemporânea, oferecida pela Profa. Dra. Claudia Valladão de Mattos, em 2006, junto ao Programa de Pós-Graduação em Artes - UNICAMP.
Considerado por muitos como o “pai da iconologia”, Aby Warburg (1866-1929), nascido na Alemanha, desde o início de sua vida acadêmica, não se contentava com as interpretações e os estudos textuais sobre arte realizados até então. Sua intenção era de descobrir o significado próprio das imagens e as informações que elas carregavam, portanto sua linha de pesquisa era o do estudo imagético. Após sua morte, em 1929, seu fiel assistente Fritz Saxl, deu continuidade as pesquisas dentro do Instituto Warburg. A Biblioteca de Warburg, fundada no final do século XIX em Hamburgo na Alemanha, é uma referência no estudo das artes, especialmente no método iconológico e na pesquisa imagética. Muitos estudiosos e pesquisadores passaram por essa Biblioteca, que mais tarde se tornou um Instituto, anexado a Universidade de Londres em novembro de 1944. Estes estudiosos formam a chamada Escola de Warburg ou Círculo de Warburg, cujos representantes que mais se destacaram foram Erwin Panofsky (1892-1968), com a importan-
te obra intitulada Significado nas Artes Visuais, e Ernst Gombrich (1909-2001) que se tornou diretor deste Instituto a partir de 1959, e escreveu a Biografia Intelectual de Warburg1. Segundo Giulio Carlo Argan2, apesar do método Iconológico ter sido instaurado por Warburg, no campo das artes visuais foi desenvolvido por Panofsky. Este método de investigação iconológica escrito por Panofsky, que também estabeleceu um programa de iconografia para a Escola de Warburg, analisa conteúdos e significados das imagens. Baseado no sistema de Warburg e também em Ernst Cassirer (1874-1945), Panofsky procura revelar os significados das formas artísticas e seus sistemas de representação. Ele relaciona mecanismos de percepção visual, representação espacial, conceitos culturais e significados de cada período. Por outro lado, segundo o filósofo francês George DidiHuberman3 (que recentemente realizou uma interpretação filosófica da obra de Warburg) o método Iconológico foi constituído e desenvolvido por Erwin Panofsky, enquanto que
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Warburg havia apenas instituído o método de análise imagética, dando a base para os estudos de Panofsky.
famosa frase resume esta idéia: “Deus se esconde nos detalhes”.6
O sucesso obtido por Warburg durante suas pesquisas deveu-se especialmente graças a época em que viveu, uma vez que em grande parte de suas pesquisas, Warburg se baseava na manipulação de fotografias. Assim, os produtos químicos descobertos no século XIX, foram essenciais para que a fotografia se fixasse em seu suporte físico. Em suas pesquisas, Warburg se ocupa essencialmente do conteúdo que a imagem carrega, em detrimento da análise apenas de sua forma. Sua intenção era de estudar a antropologia e epistemologia da imagem, ou seja, delinear motivos, padrões e formas que sobreviveram ao tempo e seu conteúdo simbólico, implícito na informação imagética, o pathosformel. Por outro lado, o filósofo alemão Ernst Cassirer, importante pesquisador dos estudos iconológicos e imagéticos, estudava a herança dos símbolos contida nas imagens. Segundo Carlo Ginzburg4, em A Filosofia das Formas Simbólicas, realizada com base no acervo iconológico da Biblioteca de Warburg, Cassirer estabelece uma base filosófica em seus estudos imagéticos que, mais tarde, serão a base dos estudos de Panofsky. Cassirer exercia o papel de mentor filosófico dentro da Escola de Warburg, como observou o Professor Marcos Seligmann Silva5. Warburg acreditava que a imagem carregava a herança de uma memória coletiva e que, a cada momento da história, essas imagens sofriam algum tipo de transformação, numa relação forma e época de conteúdo psíquico cultural baseado no sintoma de Freud e que alguns desses motivos permaneciam nestas imagens. Desta forma podemos entender a razão de Warburg em se ater aos mínimos detalhes das imagens, na busca destas formas constantes muitas vezes ocultas. Sua
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Fig. 1: Aby Warburg. Fonte: www.anisn.it
Fig. 2: Erwin Panofsky. Fonte: www.panofsky.com
De 1924 a 1929, num projeto radical e inovador, Warburg realiza o Atlas Mnemosyne, uma história da arte centrada e contada apenas por imagens e sem o recurso textual. Mnemosyne é formada por 2000 mil fotografias extraídas da imensa coleção reunida por Warburg, dispostas em 63 grandes suportes de telas negras esticadas sobre painéis de 1,50m por 2,00m. O espaço ocupado foi a sala de leitura da Kulturwissenschaftliche Bibliothek Warburg – um espaço elíptico, que sugere um saber cíclico e sem fim.
Fig. 3: Ernst Gombrich. Fonte: www.anisn.it
Fig. 4: Fritz Saxl. Fonte: www2. sas.ac.uk
Atlas Mnemosyne foi iniciado por Warburg em 1924, desde o regresso da clíni-
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ca psiquiátrica de Kreuzlingen e desenvolvido até sua morte em 1929. Segundo DidiHuberman, Mnemosyne apresenta toda a riqueza do trabalho cientifico warbuguiano, sob a forma de uma “unidade”, vista de uma plenitude iconográfica. Mnemosyne comporta assim todos os traços da linguagem privada e da procura autobiográfica do autor. Um das questões principais que Didi-Huberman expõe em seu livro é a da sobrevivência ou Nachleben , que segundo Giorgio Agamben7: “O termo alemão Nachleben não significa propriamente “renascimento”, como foi muitas vezes traduzido, nem “sobrevivência”. Ele implica a idéia daquela continuidade da herança pagã que, para Warburg, era essencial”. Didi-Huberman utiliza esta palavra para expressar a idéia de “sobrevivência”.
Fig. 5: Salão elíptico da Biblioteca Warburg. Fonte: www2.sas.ac.uk
Com a possibilidade de fundir várias imagens num só painel, Warburg consegue extrair do conjunto, comparações e diálogos entre as imagens jamais imaginados. Sua intenção era de criar uma nova teoria de arte baseada neste tipo de análise imagética da arte, se opondo a teoria de arte da época. Como observou o filósofo Didi-Huberman, o pensamento de Warburg, especialmente em Mnemosyne, era rizomático, no sentido que Gilles Deleuze8 o descreveu, sendo o princípio da conexão e de heterogenei-dade um dos principais que o fundamentam. Segundo Deleuze9, um rizoma não cessaria de conectar cadeias, é um mapa aberto com várias conexões, como no funcionamento das sinapses, assim como em Mnemosyne Warburg havia idealizado a fusão e a metamorfose das imagens. Até então, na Renascença Vasari havia relatado a história da arte por meio de narrativas da vida dos artistas baseado numa teoria evolucionista de conquistas técnicas e representativas gradativas de cada período (perspectiva, claro/escuro, anatomia...). Winckelmann, considerado o pai da história da arte, publica seu primeiro texto sobre a história da arte baseado numa teoria evolucionista, em 1764. A idéia de Warburg era inovadora e peculiar, uma história da arte muda e, ao contrário das teorias anteriores, baseada numa teoria cíclica da história da arte, apenas com o poder de informação e metamorfose entre as várias imagens das obras de arte. Podemos afirmar que a história da arte narrada pelos teóricos que antecederam Warburg baseava-se numa teoria semelhante ao sistema arborescente de Deleuze, que parte de um centro hierárquico que se opõe ao pensamento rizomático que se assemelha ao de Warburg.
Fig. 6: Arquivos da Biblioteca Warburg. Fonte: www2.sas.ac.uk
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A Escola de Warburg e a Escola de Viena A linha de pesquisa imagética e iconológica da Escola de Warburg tinha uma grande dualidade com a linha da Escola de Viena, pois enquanto a primeira se preocupava em estudar as formas e as imagens considerando-se seu conteúdo, na Escola de Viena o conteúdo era ignorado. Nas pesquisas de Alois Riegl (1858-1905), um dos mais importantes teóricos representantes da Teoria Formalista, podemos notar a exclusão do conteúdo na análise da imagem da forma. Nas pesquisas de Heinrich Wolfflin (1864-1945), outro importante herdeiro da Escola de Viena, há a clara separação entre a forma e conteúdo. Em Conceitos Fundamentais da História da Arte , Wolfflin cria os conhecidos “esquemas”10 da chamada Pura-Visualidade11, para explicar as transições entre períodos. Trata-se de uma Teoria Evolucionista, diferente da linha de pensamento da Escola de Warburg. Numa análise de uma obra de arquitetura, baseada na Teoria Formalista de Riegl, sua forma interna deveria corresponder exatamente ao que se vê externamente. Portanto a forma externa deveria ser perfeita para que o espaço interno também o fosse. Como observou o Professor Jens Baumgarten12, a Escola de Viena não chegou a desenvolver profundamente um programa real de pesquisa iconológica, devido a disputas teóricas entre os integrantes. Hans Sedlmayer tentou introduzir o programa para a escola de Viena, com estudos sobre o conteúdo, mas suas pesquisas foram interrompidas com a II Guerra Mundial. Sua idéia era de desenvolver uma análise da forma relacionando com o contexto social e político, uma iconologia política.
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Principais características da Escola de Warburg e Panofsky É importante ressaltar que iconologia é diferente de iconografia, sendo, no entanto, a imagem o centro de estudo de ambas, e tem seu significado próprio.13 Considerando Panofsky um dos mais importantes legatários da Escola de Warburg, destacamos algumas considerações sobre sua Teoria. Segundo o método de análise estabelecido por Panofsky, há 3 níveis de significados nas imagens, sendo eles: 1. Tema Primário ou Natural: Neste momento há uma descrição pré-iconográfica, ou seja, uma análise das formas puras, volumes, cores e linhas com significados primários; 2. Tema Secundário ou Convencional: Neste momento é estabelecida uma relação ou associação de motivos, combinações e composições artísticas com conceitos e temas pré-estabelecidos. Para Panofsky há uma descrição iconográfica. 3. Significado Intrínseco, constituindo o mundo dos valores simbólicos: Nesta fase é necessário que haja uma maior familiaridade com conceitos ou temas específicos, baseados em várias fontes e no repertório, no objetivo de se estabelecer comparações e interpretações do conteúdo que a imagem carrega. Sendo assim, há uma interpretação iconológica. Segundo Panofsky, a pré-iconografia se revela muitas vezes difícil de ser exata, no caso da análise de uma obra de arte, aplicando-se apenas nossa experiência prática de descrição e familiaridade com temas específicos, devido a intenção premeditada do artista no ato de conceber sua obra. Assim como, para uma
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correta análise iconográfica de uma pintura Renascentista, pressupões-se um conhecimento prévio de histórias bíblicas. Desta maneira, podemos concluir que, baseado no método de Panofsky, para se realizar uma boa interpretação iconológica, primeiramente deve se fazer uma correta análise iconográfica. No entanto, as três operações fundem-se de maneira indivisível no processo de análise de uma obra. Principais características entre a linha de pensamento de Warburg e Panofsky: WARBURG 1. Entender a vida da imagem, seu paradoxo: sobrevida, memória das imagens. 2. Compreender o valor expressivo das imagens e delas mesmas suas significações. 3. Revelar dentro da unidade aparente dos símbolos, a ordem ou caos estrutural dos sintomas. 4. Parte da Teoria de Nietzsche: saber-tragédia, testemunho da não-exatidão de sua obra, a extraordinária dor de seu pensamento, o lugar que é ocupado pelo não-saber e pela empatia, a grande quantidade de questões sem respostas que ele nos endereça. 5. Decompor e discernir forma e conteúdo, para trabalhar à partir destas intrinca-ções: dos indiscerníveis iconográficos. PANOFSKY 1. Definir a significação das imagens com auxilio de desenhos e textos. 2. Interpretar conteúdos e temas figurativos ao lado de sua expressão. 3. Reduzir os sintomas particulares em símbolos numa unidade da função simbólica.
4. Parte da Teoria de Kant: saber-conquista, testemunho da fecundidade de sua obra, a perpétua consciência de si, a grande quantidade de resultados obtidos. Valores intangíveis da arte, poder da imaginação e autonomia das linguagens e das formas artísticas. 5. Separação entre forma e conteúdo, necessidade de discernimento iconográfico. A pesquisa aplicada à análise arquitetônica No campo da arquitetura o método iconológico analisa mutações e repetições, nas várias maneiras de se associar as imagens na busca de novos significados. Alguns autores são referências devido ao método analítico adotado por eles no estudo das obras arquitetônicas. Dentre eles podemos citar os mais importantes como Rudolf Wittkover, Colin Rowe e Banister Fletcher. Banister Fletcher desenvolveu uma teoria na qual a história da arquitetura é narrada por meio de um método comparativo, com desenhos e imagens de motivos, tipologias e estilos arquitetônicos, podendo ser comparado ao método instituído por Warburg em Mnemosyne. Fletcher, no entanto, baseia-se numa teoria evolucionista na qual no-ta-se um progresso na comparação entre épocas e estilos precedentes. Sua teoria chega a ser resumida em uma árvore, onde na base encontra-se Fig. 7: Árvore baseada numa teoria evolucionista da Arquitetura. Fonte: FLETCHER, 1950.
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a arquitetura egípcia e na região mais alta os arranha-céus americanos. Assim sendo, notamos que a teoria de Fletcher, que foi publicada em 1896, nos remete ao sistema arborescente de Deleuze. Rudolf Wittkower (1906-1971), foi quem instaurou e desenvolveu o método de interpretação iconológica na análise de edifícios. Em sua análise iconológica, Wittkower relaciona a obra de arquitetura com o contexto cultural da época na busca de significados e interpretações das formas dos edifícios. Portanto a análise de Wittkover nos revela o significado simbólico e cultural de uma época que estão implícitas nas formas arquitetônicas. Colin Rowe (1920-) obteve uma bolsa no Instituto Warburg, onde estudou e desenvolveu uma pesquisa como colaborador de Wittkower aplicando o método de pesquisa iconológica no campo da arquitetura. Ele desenvolve uma pesquisa analítica com métodos gráficos baseados em comparações entre cidades, edifícios e culturas. Rowe realiza comparações entre obras e desenhos do arquiteto moderno Le Corbusier e do renascentista Andrea Palladio, por meio de seu método analítico gráfico. Desta maneira o autor discute o vocabulário da arquitetura do século XIX, suas origens filosóficas, suas manifestações e seus caminhos por meio de esquemas e diagramas, estabelecendo relações com outras culturas. Na Arquitetura O uso da pesquisa iconográfica para análise de edifícios de arquitetura nos permite revelar valores intrínsecos à imagem e ao desenho, os quais não seriam possíveis apenas com o recurso textual. Por meio da análise gráfica podemos identificar e sistematizar o partido arquitetônico, comparar princípios utilizados em diferentes soluções na ordenação de formas no espaço. 174
A criação de itens para a análise de uma obra arquitetônica por meio de desenho nos revela e destaca informações ocultas ao projeto que foram geradas pelo arquiteto a partir deste mesmo instrumento. Desta maneira a análise iconográfica se mostra indispensável para uma boa compreensão do conjunto. Os diagramas resultantes das análises facilitam a extração e separação de informações discretas ou complexas e permitem o pesquisador identificar e explicar visualmente características específicas do edifício seja de parte ou de seu todo. A análise das obras pelo método comparativo iconográfico nos auxilia na medida em que podemos estabelecer relações entre diferentes obras e revelar possíveis semelhanças na maneira em que o arquiteto solucionou certas questões, sejam elas projetuais ou conceituais. Comparar diagramas de edifício diferentes num mesmo desenho é uma das qualidades que faz a análise gráfica ser um válido e eficiente meio de pesquisa. Considerações Finais O pensamento de Warburg contribuiu para a formação de pesquisadores e de teóricos na área da pesquisa iconográfica. Nas artes visuais Panofsky foi o que mais se destacou como propagador das idéias de Warburg. No campo da análise de obras de arquitetura, teóricos que estudaram na Escola de Warburg desenvolveram suas teorias baseadas no pensamento warbuguiano, multidisciplinar e pós-estruturalista, enquanto teóricos do século XIX ainda estavam presos a uma teoria evolucionista, hoje suplantada. Warburg era um pesquisador a frente de seu tempo, e sua importância, além de suas pesquisas, reside no fato dele ter criado condições para que outros teóricos pudessem desenvolver suas investigações.
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A teoria da arte que Warburg desenvolveu não obteve muito sucesso, e, portanto a História da Arte que conhecemos hoje, foi escrita baseada em teorias estruturalistas. Assim, como afirmou Thomas Kaufmann14, se a teoria de Warburg tivesse sido aplicada, talvez toda a história da arte tivesse sido contada de forma diferente.
12. Palestra “Warburg e a Escola de Viena” proferida pelo Professor Dr. Jens Baumgarten no dia 20/04/06. MATTOS, Claudia Valladão de. Notas de aula Teoria das Artes - Aby Warburg e a Historiografia da Arte Contemporânea. Campinas: UNICAMP, 2006. 13. FERREIRA, 2004. p. 1064. Iconologia: Explicação de imagens e seus atributos. Iconografia: Arte de representar por meio de imagem. 14. KAUFMANN, 2004.
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O Arts and Crafts e a Arquitetura Orgânica de Frank Lloyd Wright Ana Tagliari Haroldo Gallo Resumo: O ideal socialista no qual se baseava o movimento de vanguarda artística inglês do século XIX, o Arts and Crafts liderado por William Morris, seria mais tarde concretizado na cultura capitalista norteamericana pelo arquiteto Frank Lloyd Wright. Desta maneira pontuamos os conceitos mais importantes, bem como semelhanças e diferenças, estabelecendo um paralelo entre o movimento inglês e a arquitetura residencial orgânica realizada por Wright.1
Frank Lloyd Wright (1867-1959), importante arquiteto norte-americano do século XX, considerado um dos grandes mestres do modernismo, é conhecido pela arquitetura orgânica que desenvolveu, principalmente na área residencial. Alguns autores atribuem sua importância ao fato de Wright ser um dos primeiros arquitetos a desenvolver uma arquitetura “genuinamente norte-americana”, se compararmos com as obras e estilos que o precederam, em que os americanos recebiam referências externas. Wright, ao contrário, passa a referenciar a produção externa e sua obra foi publicada por importantes núcleos de renovação, como a publicação alemã Wasmuth. A arquitetura orgânica, segundo Wright,2 não pertence a nenhum estilo. É uma arquitetura concebida de acordo com o local específico e com as necessidades individuais de seus habitantes, uma arquitetura “para o homem”. Elimina elementos desnecessários, ressaltando as propriedades naturais dos materiais, suas cores e texturas. Arquitetos do centro-oeste americano que atuaram na 2º metade do século XIX, como
Henry H. Richardson e Louis Sullivan, foram os pioneiros de uma arquitetura que seria desenvolvida por Wright no século XX. A arquitetura orgânica desenvolvida por Wright também recebeu influência do poeta da democracia, o norte-americano Walt Whitman, da arte e arquitetura japonesas e de movimentos de vanguarda, entre eles o movimento inglês Arts and Crafts, liderado por William Morris (1834-1896). O movimento inglês Arts and Crafts A base da estética moral do Arts and Crafts foi criada pelo arquiteto e teórico A.W.N. Pugin (1812-1852), que em seus livros deixou a herança que deu origem ao movimento. Pugin queria reunificar o papel do artista e artesão como acontecia na Idade Média. Defensor dos princípios da arte gótica, assim como seu contemporâneo Eugène Viollet-le-Duc, Pugin escreveu as três regras básicas que deveriam ser seguidas pela nova arquitetura: 1- Honestidade na estrutura e no uso e aplicação dos materiais; 2- Originalidade no projeto, portanto sem imitações estilísticas; 3-Uso de
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materiais regionais preservando suas propriedades e suas cores. Inspirado pelas idéias de Pugin, John Ruskin (1819-1900) deixou como legado para o movimento inglês As Pedras de Veneza (sendo um dos capítulos intitulado The Nature of Gothic, de 1853). Os escritos de Ruskin pregavam a natureza como inspiração e instrução para os artistas e arquitetos, influenciando William Morris, o líder do Arts and Crafts. Ruskin era contra a divisão do trabalho na era capitalista e defendia o trabalho artesanal e uso de materiais naturais.3 Alguns artistas do Arts and Crafts lutavam por reformas sociais por meio das artes. Ironicamente o movimento teve sucesso apenas entre grandes e ricos industriais, os quais podiam pagar pelos serviços mais exclusivos destes artistas e arquitetos. É importante ressaltar que Morris era contra o uso de máquinas e a industrialização no processo de construção das obras de arte. Entretanto, o ideal anti-industrial encarecia o objeto, visto que este era feito apenas por uma pessoa do começo ao final. Nota-se que o movimento não obteve sucesso total de suas aspirações diante dos avanços tecnológicos. Os quatro princípios que norteavam o movimento do Arts and Crafts eram: unidade na composição artística, valorização do trabalho artesanal, individualismo e regionalismo. Após a Revolução Industrial houve uma desvalorização do trabalho do artesão e o objetivo do Arts and Crafts era de restabelecer este valor, a harmonia entre o trabalho do arquiteto, designer e artesão, e de realizar objetos de arte de uso cotidiano para todos. Na arquitetura o edifício deveria ser construído com materiais locais, desenhados para se moldar à paisagem e refletir uma construção tradicional e vernacular. A unidade da construção deveria ser alcançada por meio da união de desenhos e linguagens da estrutura
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até o mobiliário de maneira simples e honesta, ou seja, sem revestimentos que escondessem a beleza e coloração inerente ao material natural. A primeira residência considerada pertencente ao movimento Arts and Crafts foi a Red House (1859-60), em Upton, Kent, projetada por Philip Webb (1831-1915) para a família de William Morris. A Red House, que tem este nome devido à coloração do tijolo usado, foi construída com base num método de construção tradicional local e exerceu certa influência na arquitetura das próximas décadas. Desde o material utilizado até suas formas e estrutura, a Red House se diferencia das construções feitas na época e local. Webb não desejava que a residência fosse enquadrada em nenhum estilo, mas sim nos princípios comuns do movimento, que eram funcionalismo (quando a forma decorre do desempenho da função), relação do edifício com a paisagem e seleção dos materiais.
Fig. 1: Philip Webb – Red House, Upton, Kent – 1859-60. Fonte: CUMMING, 1991.
Webb seguiu as recomendações de Pugin e de Ruskin, segundo as quais o edifício deveria ser a reflexão honesta dos materiais utilizados e cuidadosa relação com a paisagem. Pugin também alertava para o fato de que o edifício não deveria ter características comuns a outros projetados pelo mesmo arqui-
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teto ou por uma determinada Escola (que caracterizasse um estilo), o que poderia enquadrá-lo em normas a serem seguidas, e que conduziria à fuga dos princípios do regionalismo e individualismo pregados por ele. Segundo Pugin, a arquitetura deveria ter variações de acordo com a região e os usuários. Charles Rennie Mackintosh (18681928) foi o arquiteto que levou ao extremo a idéia de unidade na arquitetura Arts and Crafts. Ele projetava todos os detalhes da residência, desde frisos em materiais da fachada até tapetes, floreiras, luminárias e cinzeiros. Para ele o interior da residência tinha que refletir a maneira de viver de seus habitantes. No entanto, segundo Cumming4, diferentemente dos outros arquitetos do movimento, Mackintosh não dava tanta importância para um bom acabamento na feitura do mobiliário, o que resultava num trabalho relativamente mal acabado. Os interiores das residências de Mackintosh são muito semelhantes aos de Wright, em sua fase inicial, e Nikolaus Pevsner5 considera Mackintosh como o equivalente inglês a Wright.
Fig. 2: Mackintosh – Hill House, Helensburgh 1903-04. Fonte: CUMMING, 1991.
Fig. 3: Frank Lloyd Wright – Robie House, Chicago – 1906. Fonte: HILDEBRAND, 1991.
Século XIX e XX – Arte e Arquitetura nos Estados Unidos A idéia de que cada país deve possuir sua própria arquitetura que reflita sua história particular, geografia e clima, era central para o movimento do Arts and Crafts. Nos Estados Unidos, o extenso e diverso território geográfico permitiu vários tipos de arquitetura vernacular. Na região de Illinois, as planas pradarias eram a inspiração, enquanto na Califórnia eram o mar, o sol e o clima tropical. Como notou Bruno Zevi6, para entender a verdadeira contribuição da arquitetura norte- americana, devemos considerar seus edifícios residenciais e não apenas seus famosos arranha-céus, posição que endossamos, uma vez que essa reflete a identidade do lugar . Na região da Califórnia, no período de 1907-09, a arquitetura considerada muito próxima aos princípios do Arts and Crafts foi a dos Bungalows (Figura 4). O Bungalow era a residência democraticamente correta, pois seu custo era baixo e acessível a todos os cidadãos. Caracterizada como uma construção californiana pelas qualidades espaciais, espaços interiores amplos e abertos, um pavimento, grandes beirais que protegiam do sol e uso
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intenso de materiais naturais como a madeira e uso de técnicas tradicionais na construção, o Bungalow passava uma imagem de informalidade típica da sociedade californiana, com grande mobilidade, transitória, open-mind e pronta para mudanças. O Bungalow era uma residência feita de madeira, influenciada pelas técnicas tradicionais de construção americanas, o Ballon Frame7. A característica visual do Bungalow dava uma impressão de leveza e de fácil montagem. No centro-oeste dos Estados Unidos, a arquitetura que englobou esse tipo de postura foi a orgânica. Em meados do século XIX, o arquiteto Louis Sullivan (1856-1924), inspirado na arquitetura funcional de Henry H. Richardson e William Le Baron Jenney, realizou uma arquitetura livre de ornamentos, com nova tecnologia e funcional. Sua célebre frase “A Forma segue a função” resume sua postura com relação à questão estética. Considerado um arquiteto de vanguarda, Sullivan era uma pessoa muito culta e consciente dos acontecimentos artísticos da Europa. Foi o mentor e líder filosófico do grupo de arquitetos que desenvolveram a arquitetura orgânica e original no centro-oeste americano, a Prairie School. O ideal orgânico, instaurado por Sullivan a partir da década de 1880, tinha o objetivo de depurar ornamentos
Fig. 4 : Bungalow californiano – Pasadena, 1911. Arquiteto: Arthur S. Heineman. Fonte: CUMMING, 1991.
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e de criar uma arquitetura que crescesse de acordo com a necessidade de seus usuários. Frank Lloyd Wright (1867-1959) trabalhou no escritório de Sullivan por alguns anos e em 1893 abriu seu próprio estúdio em Oak Park, região do subúrbio de Chicago. Wright foi o grande disseminador das idéias de Sullivan na arquitetura residencial, e em seus livros se refere a ele com muito respeito, chamando-o de grande Mestre. Como observou Bruno Zevi8, Wright proporcionou uma nova arquitetura residencial aos norte-americanos. Comparando-se com o que vinha sendo feito, Wright adaptou e desenvolveu as idéias de arquitetura orgânica de Sullivan na concepção de espaços residenciais. Além de romper com tipologias da arquitetura que vinha sendo desenvolvida na região, uma de suas grandes inovações esteve relacionada aos espaços internos, que se tornaram mais amplos e sem divisões rígidas, depurando as formas arquitetônicas, como notou Vilanova Artigas9. Wright se preocupou com a criação de espaços integrados com a natureza, cuja intenção era promover bem estar e liberdade ao individuo, o que, segundo Wright,10 torna o espaço muito mais habitável. Wright11 preconizava o uso honesto dos materiais naturais, ressaltando que suas qualidades inerentes como cores e texturas qualificam a arquitetura moderna. Durante os primeiros anos de sua carreira, sua obra orgânica esteve baseada em 4 conceitos, como ele mesmo explica em seu livro The Natural House: simplicidade, plasticidade, integridade e uso de materiais naturais, com o objetivo de conceber um espaço funcional e confortável para seu habitante. Nesse período inicial de sua carreira, conhecido como Prairie houses, Wright projetou a Robie House – 1909 -, considerada por muitos autores e críticos de Wright como sua obra-prima e por outros ainda como a casa emblemática do século XX.
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Em sua fase madura, após a década de 30, Wright ampliou esse conceito, construindo residências orgânicas de baixo custo, as Usonian Houses.
7. Concepção de dentro para fora. Crescimento de acordo com necessidades dos habitantes; 8. Espaço projetado com o objetivo de criar uma arquitetura que integra interior e exterior. A Arquitetura Orgânica e o Arts and Crafts. Princípios comuns ao Arts and Crafts e a arquitetura orgânica de Wright
Fig. 5: Usonian House. Residência Goetsh-Winkler – 1939. Okemos, Michigan - Fonte: PFEIFFER, 1991
As Usonian Houses apresentam algumas similaridades aos Bungalows construídos na Califórnia no começo do século XX. Ambas são construções em que há o predomínio do material natural e que remetem à tradição vernacular do Ballon-Frame norte-americano, bem como a uma arquitetura vernacular da região. Características semelhantes entre a Red House de Philip Webb e a arquitetura orgânica residencial Prairie e Usonian de Wright
Semelhanças podem ser notadas entre os princípios da arquitetura orgânica de Frank Lloyd Wright e as idéias do Arts and Crafts, e essas referências programáticas são a seguir apontadas: 1. Unidade das artes: todos os artistas têm seu valor único e juntos podem fazer uma obra completa de qualidade; 2. Valorização do trabalho e do processo de projeto artesanais; 3. Levar arte a todos os cidadãos, principalmente por meio de objetos de uso cotidiano; 4. Uso de materiais naturais e locais, preservando suas características inerentes (cor e textura);
São apontados a seguir pontos de semelhança entre a obra de Webb e a de Wright:
5. No caso da arquitetura, o edifício deveria ser desenhado para fazer parte da paisagem;
1. Uso de material natural sem revestimento;
6. Simplicidade e honestidade: não esconder as características inerentes dos materiais, como cores e texturas, por meio de revestimentos;
2. Simplicidade e diferença dos estilos da época (vitorianos); 3. Desenhos de abstração da natureza usados nos vitrais e tapeçarias; 4. Respeito à natureza circundante; 5. Ênfase na assimetria, diferente dos padrões da época; 6. Economia de recursos referentes à construção/ ausência de ornamentos;
7. Respeito, admiração e inspiração à cultura e arte oriental; 8. Ideais sociais e vontade de mudar a sociedade por meio das artes; 9. Arte individualista, ou seja, concebida e construída especialmente para uma determinada pessoa; 181
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10. Arquitetura vernacular e regionalista: respeito pela cultura local e sua identidade, de preferência localizada longe de aglomerados urbanos; 11. Trazer mudança e ruptura à arte e arquitetura. 12. Realização de uma arte e arquitetura em geral doméstica; 13. Idéia de guilda como na Idade Média: os mestres reuniam seus aprendizes em seus estúdios para passar o conhecimento do oficio; 14. Inspiração em poetas que pregavam a liberdade, democracia, vida simples e natural. (para o Arts and Crafts, Edward Carpenter e para Wright, Walt Whitman). Características que diferenciam o Arts and Crafts e a arquitetura orgânica de Wright No entanto as diferenças também podem ser notadas. Uma característica que diferenciou Morris e Wright foi a questão do uso da máquina no processo artístico. Como já foi dito, Morris condenava seu uso, mas Wright dizia que se usada de maneira adequada seria um ótimo instrumento para se levar arte a todos os cidadãos. Num gesto de crítica e discussão intelectual com o movimento Arts and Crafts, Wright publica em 1901 um célebre artigo intitulado The Art and Craft of the Machine12, que causou grande repercussão na época. Neste caso havia um paradoxo com as idéias do Arts and Crafts que pregavam uma valorização do trabalho artesanal. Na cultura norte-americana não havia tantas restrições com relação à comercialização da arte e o anti-industrialismo não era algo tão rígido quanto na inglesa. Desta maneira a arquitetura orgânica de Wright atingiu uma grande parte de cidadãos americanos, ao 182
contrário dos ingleses do Arts and Crafts, com seu rígido ideal socialista de que sua arte poderia ser uma ferramenta para a resolução dos problemas da sociedade, independente de todo o sistema e da época em que viviam. Nas primeiras décadas do século XX, a sociedade americana passava por uma boa situação financeira e com grandes transformações na área industrial e urbana. Enquanto isso, na Inglaterra havia pobreza e a minoria que se enriquecia eram os industriais, odiados por Morris, entretanto, paradoxalmente, seus únicos clientes. Nas Usonian Houses, Wright realiza uma arquitetura regional, individual, com materiais naturais locais, que dialoga com a paisagem e acessível à maioria dos cidadãos norte-americanos. O que foi somente um ideal romântico do movimento inglês Arts and Crafts, teve sua concretização de maneira bem sucedida nos Estados Unidos. Segundo Argan13, Wright une o respeito à natureza, valorização do artesanato, indústria, sabedoria oriental, racionalismo ocidental, tudo para criar uma arquitetura única e inimitável.
Ana Tagliari, Mestranda em Artes pelo Instituto de Artes – UNICAMP, Arquiteta e Urbanista. E-mail: anatagliari@iar.unicamp.br Orientador: Prof. Dr. Haroldo Gallo, Docente junto ao Depto. de Artes Plásticas do Instituto de Artes – UNICAMP. E-mail: haroldogallo@uol.com.br
Notas 1. Este texto foi elaborado pelos autores a partir de um trabalho para a disciplina “Imagem: meios e conhecimento Cor: linguagem e informação”, do Programa de Pós-graduação em Artes, oferecido pela Profa. Dra. Anna Paula S. Gouveia, em 2006. 2. WRIGHT, 1954. 3. Outro importante legado desses teóricos e estetas foi a teoria do restauro, a forma sistematizada de abordar a préexistência, pois a contraposição de suas posições,
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intervencionista em Le Duc e conservadora em Ruskin, continuam ainda hoje sendo pontos de partida para a abordagem da questão da preservação. 4. CUMMING, 1991, p. 55. 5. PEVSNER, 1994, p. 167. 6. ZEVI, 1949. p. 120. “To see what America has really given to architecture we must consider its domestic buildings and not its skyscrapers”. 7. O Ballon Frame é um método de construção leve com madeira, tradicional dos Estados Unidos. 8. ZEVI, 1985, p. 41. “(...)a arquitetura wrightiana propõe na América um caminho alternativo. O objetivo: criar um novo gosto no americano médio, elevando o padrão qualitativo da arquitetura residencial”. 9. ARTIGAS, 1999, p. 58. “(...) Assim, a casa norte-americana de Wright perdeu paredes, ligou-se com a paisagem, com o exterior. Confundiu contorno e compartimentos e passou a definir-se pela dinâmica da vida, pela dinâmica da atividade humana a que se destinava”.
GOUVEIA, Anna P. Notas de aula “Imagem: meios e conhecimento - Cor: linguagem e informação”. Campinas: UNICAMP, 2006. KAUFMANN, Edgar. FLW Writings and Buildings . USA: Meridian Books, 1960. PEVSNER, Nikolaus. Os Pioneiros do Desenho Moderno: de William Morris a Walter Gropius. São Paulo: Martins Fontes, 1994. PFEIFFER, Bruce Brooks. Frank Lloyd Wright Selected Houses – collection. A.D.A. Ed. Tokyo Co. Ltd., 1991. WRIGHT, Frank Lloyd. An American Architecture. New York: Horizon Press, 1955. ___________. The Natural House. New York: Horizon Press, 1954. ZEVI, Bruno. Frank Lloyd Wright. Barcelona: Gustavo Gili S.A., 1985. ___________. Towards an Organic Architecture . London: Faber & Faber Limited, 1949.
10. WRIGHT, 1955, p. 65. “Freedom of floor space (…) worked a miracle in the new dwelling place. A sense of appropriate freedom had changed its whole aspect. The dwelling became more fit for human habitation…and more natural to its site. An entirely new sense of space values in architecture of the modern world”. 11. Idem, p. 99. “To be modern simply means that all materials are used honestly for the sake of their qualities, and that the materials modify the design of the building”. 12. KAUFMANN, 1960, pp. 55 a 73. The Art and craft of the machine. Artigo publicado no Chicago Arts and Crafts Society, Hull House, 06/03/1901 e no Western Society of Engineers, em 20/03/1901. 13. ARGAN, 1992, p. 418. “Para Wright, o edifício é um acontecimento primeiro e único, inimitável e irrepetível”. P. 419. “ Natureza, artesanato, indústria, sabedoria oriental, racionalismo ocidental, tudo concorre e se funde na criação do gênio”.
Referências Bibliográficas ARGAN, Giulio Carlo. Arte Moderna. São Paulo: Companhia das Letras,1992. ARTIGAS, Vilanova. Caminhos da Arquitetura. São Paulo: Cosac & Naify Edições Ltda., 1999. CUMMING, Elizabeth e KAPLAN, Wendy. The Arts and Crafts Movement. London: Thames and Hudson Ltd, 1991. HILDEBRAND, Grant. The Wright Space: Pattern & Meaning in Frank Lloyd Wright’s Houses . University of Washington, 1991.
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A Cor na Obra de Gastão Manoel Henrique Márcia Elisa de Paiva Gregato Marco Antonio Alves do Valle Resumo: Sem que exista a pretensão de esgotar o tema, este artigo apresenta como meta a análise de parte da obra do escultor Gastão Manoel Henrique, sob a ótica do elemento cor. Trata-se de um conjunto de investigações significativas a respeito dos atributos que envolvem a presença da cor nas esculturas do artista e suas manifestações através da própria matéria empregada ou do uso de tons acromáticos, matizes saturados e mesmo da harmonia entre luz e sombra que se revelam através contrastes e saturação de pigmentos.
Introdução Importante nome na história da arte brasileira, o escultor, pintor, desenhista e professor Gastão Manoel Henrique, construiu ao longo das últimas quatro décadas um trabalho de experimentação e procura, que aponta a geometria como componente marcante e quase invariável em sua produção, primando pelo desejo intuitivo de ordenação e construção, que segundo Ferreira Gullar, é a evolução de uma linguagem que se inicia com rigorosas formas geométricas, em trabalhos executados nos anos 60.1 Além da geometria, um outro fator importantíssimo na obra de Gastão é o rigor obedecido na feitura de suas peças, definido por Marco do Valle como “rigor formal e executivo”2, explicitamente identificado nas esculturas executadas entre os anos de 1985 e 1989, expostas na Bienal de Veneza, na Itália, em 1986 e posteriormente na Petite Galerie, no Rio de Janeiro, em 1987. No que diz respeito a esse rigor, Gastão reporta sua origem ao atelier de seu pai - artis-
ta gráfico, cartazista e pintor – que desde muito cedo lhe ofereceu fartos materiais e orientou-o no aprendizado e uso adequado de cada instrumento, arte-final, limpeza e rigor no acabamento dos trabalhos que Gastão se propunha a realizar. Cronologia O início de sua produção artística se dá no final da década de 50, com a execução dos primeiros trabalhos, marcados pela intenção deliberada de realizar uma série bem definida e coerente, tanto na técnica e material utilizados – guache de cores vivas e foscas sobre cartão – quanto na temática – influência marcante de Giorgio de Chirico e Bem Shan: paisagens urbanas, perspectivas alongadas, sombras projetadas, muros de fábricas, telhados de galpões, chaminés de pequenas indústrias, treliças de metal de torres e pontes, trilhos de estradas de ferro, vagões, ou seja, cenas presenciadas pelo artista, vividas em
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sua primeira infância, no bairro da Barra Funda em São Paulo. Nestes trabalhos já se evidenciava uma nítida preferência pelo volume geométrico que a cidade oferecia. Neste mesmo período, Gastão ganha o primeiro prêmio no Concurso de Cartazes para o “Festival Catarinense de Folclore”, cujo valor correspondia ao preço de uma passagem de terceira classe no navio italiano “Conte Grande” para Barcelona. Diante disso, o ainda estudante da Escola Nacional de Belas Artes, no Rio de Janeiro, interrompe seu curso e embarca para Europa, onde, além de trabalhar em uma oficina de silk-screen que imprimia edições para Arp, Wassarely e Herbin, também tem a oportunidade de conviver com jovens artistas franceses em uma cidadezinha próxima a Paris, dividindo seu tempo entre a realização de trabalhos em atelier e visitas a galerias e museus da região; quando então surge seu interesse pelos pintores contemporâneos abstratos. No final da década de 60, Gastão retorna ao Brasil, fixando-se na cidade do Rio de Janeiro, onde passa a realizar uma série de maquetes para esculturas, rigorosamente geométricas e de matizes saturados, com encaixes que lembravam jogos de armar. Em 1963 Gastão faz sua primeira exposição individual, e depois desta, muitas outras. Participa de várias Bienais de Artes Plásticas, Salões de Arte Moderna e exposições coletivas – dentre os quais destacam-se a VII Bienal de São Paulo, em 1963; Opinião 65; IX Bienal de São Paulo, em 1967; V Bienal de Paris, em 1967; Nova Objetividade Brasileira, em 1967 e a 42ª. Bienal Internacional de Veneza, na Itália em 1986. Dentre as atividades exercidas pelo artista, ainda podem ser mencionados a execução de dois cenários para teatro; álbuns de serigrafia e lito; esculturas de grandes dimen-
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sões sob encomenda; coordenação de mostras e exposições; realização de palestras; além de atividades docentes na Faculdade de Arquitetura da Universidade de Brasília – UnB, Escola de Artes Visuais do Parque Lage – EAVParque Lage, no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro – MAM-RJ e Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas – IA – UNICAMP. Matéria, Forma e Cor A matéria básica de seus trabalhos é a madeira, que sempre o atraiu por sua presença e intimismo oferecidos, fazendo-se presente na quase totalidade de sua produção artística. Os primeiros relevos executados em 1962 foram pintados a óleo com tons quentes e densos, mas sempre respeitando a qualidade da matéria. Considerando-a inesgotável, Gastão tem na forma, a preocupação central de sua pesquisa escultórica. O artista dedica-se à sua exploração ao longo dos anos, através das inúmeras articulações e experimentos realizados, o que pode ser considerado uma descendência direta de Brancusi e Max Bill, porém, paralelamente à forma, a cor também pode ser nitidamente identificada na obra de Gastão – seus atributos, encontram-se divididos em três distintas fases, cujo uso da cor pode ser visto nos trabalhos das décadas de 60 e 70 com a pintura de algumas peças em tons acromáticos ou matizes saturados; nas últimas décadas, com a escolha de determinada madeira, valorizando a cor natural da matéria através de seu matiz principal; ou mesmo na combinação de dois diferentes tipos de madeira (claro-escuro), que revelam harmonia e contraste, nos recentes trabalhos dos últimos dois anos.
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Tons Acromáticos – O Branco
Fig. 2: Esculturas das décadas de 60 e 70. Fig. 1: Conversível No. 4 – Série “Conversíveis”, 1965.
Nas décadas de 60 e 70, Gastão realizou uma série de esculturas em madeira, pintadas com tinta industrial branca. Esta série de doze trabalhos - chamada “Conversíveis” era composta por cubos seccionados em várias partes, acondicionados em caixas também cúbicas, onde a idéia era o que mais importava, devendo a matéria então, desaparecer. Os Conversíveis foram concebidos sob a influência dos “Bichos” de Lygia Clark, que estimulava a interação com o espectador, que poderia manipular o objeto de arte. Sendo a forma o foco central deste projeto, a escolha do branco se dá em função de sua neutralidade e contrastes entre luz e sombra que ele pode oferecer. Matizes Saturados Ainda nas décadas de 60 e 70, o artista reformula toda sua linguagem anterior e passa a ter maior interesse pelo objeto de ordem geométrica mais definida. Tais objetos foram executados também em madeira e policromados com tintas criadas a partir de pigmen-
tos minerais misturados à cola e água, o que resultou num acabamento fosco aveludado, propositadamente pensado a fim de evitar o reflexo da imagem do observador sobre as peças, o que de certa maneira, seria uma interferência sobre a geometria, seu principal objeto de pesquisa. Nesta série, são utilizados matizes saturados, preparados com pigmentos aleatoriamente escolhidos, cobrindo os desenhos dos veios da madeira, em áreas delimitadas, impostas pela própria geometria externa e interna do objeto. Entretanto, a madeira, ainda que coberta, continuava presente. Contraste e Saturação Nas últimas décadas, Gastão passa a desenvolver projetos que dispensam o uso dos pigmentos, dando espaço ao próprio matiz da matéria aparente. A madeira passa a ser apenas encerada, para que sua presença natural se torne mais viva. Nesta fase, a matéria predominante é o Cedro Rosa, escolhida por sua textura e cor, que de maneira geral é clara, o que em contraste com a luz ambiente, proporciona ao observador várias modulações de um 187
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Os últimos trabalhos de Gastão resumem-se na combinação harmônica de dois diferentes tipos de madeira em uma única peça. O predomínio destes contrastes de claro-escuro tem a intenção deliberada de criar uma escultura “desenhada”, sendo que o desenho é realizado justamente pela combinação dos dois matizes das madeiras escolhidas.
Fig. 3: Esculturas das últimas décadas.
mesmo matiz, escurecendo-o ou clareandoo, de acordo com as sombras projetadas na peça. Além do Cedro Rosa, o artista também faz uso de outras madeiras mais escuras, como o Pau-Brasil e o Mogno. Sobre estes trabalhos, Ferreira Gullar escreve: (...) “A madeira é apenas encerada, para que não se perca sua trama, sua fibra e seu calor. E é exatamente essa presença viva da matéria natural que nos induz a tocar nas peças, a senti-las no tato, e acariciá-las mesmo, como para quebrar a frieza da composição abstrata.” 3
Harmonia e Contraste
A atual pesquisa é ainda, conseqüência das anteriores, sendo caracterizada pelos grupamentos de elementos anteriores, como o cubo, a pirâmide, o cilindro, o cone, o tetraedro e os prismas. Esses elementos se tocam e se apóiam entre si através de seus vértices, arestas, faces planas ou curvas e se contrabalançam mutuamente. São organizados de forma a valorizar as cores contidas em sua matéria, tornando o conjunto, um misto de beleza e harmonia através dos contrastes propositadamente criados. Conclusão Na arte da escultura, cada material tem as suas propriedades estéticas próprias. E cada um deles tem também a capacidade de despertar emoções no observador. A escultura de Gastão nos prova que não há limites para a exploração de determinado material. Em sua obra, ao longo dos anos, percebe-se que o conhecimento técnico aperfeiçoou os métodos de se trabalhar materiais antigos como a madeira, o que não altera seus atributos básicos na escultura, tornando-a ainda surpreendente e enriquecedora de uma linguagem emocional proposta pelo artista. Dentro deste contexto, a cor passa a ser elemento fundamental, quer seja através do uso de pigmentos ou da valorização dos matizes contidos na própria matéria.
Fig. 4: Esculturas recentes.
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Márcia Elisa de Paiva Gregato, Doutoranda e Mestre em Artes pelo Instituto de Artes – UNICAMP. E-mail: mgregato@pathware.com.br Orientador: Prof. Dr. Marco Antonio Alves do Valle, Docente junto ao Depto. de Artes Plásticas do Instituto de Artes – UNICAMP. E-mail: profvalle@bol.com.br
Notas 1. GULLAR, Ferreira. Revista “Isto é”, publicada em 18.04.1984 por ocasião das exposições de Gastão na Petite Galerie – RJ, e Thomas Cohn Arte Contemporânea – SP. 2. VALLE, Marco do. Texto que acompanha o convite para a exposição individual de Gastão Manoel Henrique, realizada na Galeria de Arte do Instituto de Artes da Unicamp, em novembro de 1996. 3. GULLAR, Ferreira. Revista “Isto é”, 18.04.1984.
Referências Bibliográficas CHIPP, Herschel B. Teorias da Arte Moderna. Martins Fontes, 1988. MORAES, Frederico. Escultura, Objeto e Participação. Revista GAM no. 9/10. Rio de Janeiro, ago/set/1967. VALLADARES, Clarival do Prado. Um estudo sobre alguns elementos e situações construtivas da pintura remota em nossa contemporaneidade – Cadernos Brasileiros. Ano V, jul/ago, no. 4.
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Dança dos Brasis: o corpo índio-espetáculo na arena do Esporte Graziela Rodrigues Regina Muller Resumo: O foco é o corpo construído pelos índios para a ocasião de espetacularidade e as tensões que se estabelecem com a concepção esportiva ocidental do evento do qual participam povos indígenas para público não-índio em nível nacional e regional. Trata-se, neste caso, do ”II Jogos Tradicionais Indígenas do Pará”, realizado em 2005, na cidade de Altamira, interior do estado do Pará, Amazônia, com a participação de 20 ”etnias”.
Altamira, agosto de 2005. Um movimento mais intenso de visitantes agitava a cidade, lotando um dos seus principais hotéis e, nos demais, notava-se a presença de hóspedes, alguns estrangeiros, comentando sobre locais e horários do evento que reunia ali centenas de índios da região. A grande surpresa era mesmo a espetacular arena com arquibancadas, portal e pira monumentais que se erguiam na parte mais elevada da cidade, à margem do rio Xingu, onde em tempos passados localizava-se apenas a sede do quartel do Exército nacional, com posição estratégica sobre a cidade. Desse modo, era vista de várias ângulos da mesma, principalmente do cais, atualmente urbanizado como área de lazer e de onde saem e chegam as inúmeras embarcações que sobem ou descem o rio. Hoje, esta espécie de colina, abriga além do quartel, um loteamento residencial chamado “Altavile” em cujo terreno, ao lado das casas já existentes, erigiu-se a imponente arena. Dizia-se que somente a arquibancada de alumínio havia custado cifra da ordem de centenas de milhares de reais. A cenografia deste es-
paço que reproduzia o clima e estilo das arenas dos rodeios milionários do interior do estado de São Paulo, distinguia o conteúdo do evento com a colocação, na entrada do público, de um portal de troncos esculpidos como totens decorados e amarrados entre si, numa estilização das grandes moradias indígenas. Compunham ainda a ambientação do evento, cabanas suntuosas com folhas de palmeira cujo projeto arquitetônico (também muito bem pago) buscava integrar a inspiração na estética indígena à funcionalidade de espaços para atividades paralelas (exposições de fotografia, cinemateca, oficinas e venda de artesanato). Completavam esta ambientação, o cartaz de divulgação em tamanho gigantesco, cujos vários exemplares se espalhavam pelas ruas de Altamira, e a pira atlética, chamada pelos organizadores de “Fogo Indígena”, erguidos como dois mastros portentosos no alto do “Mirante”, o local onde se situou a parte extrema da arena, à beira do rio. Sinalizava-se, assim, o aspecto grandioso da iniciativa do governo do estado do Pará de encampar a principal atividade a que se dedica atualmente o líder 191
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indígena Marcos Terena. No material de divulgação, atribui-se a realização dos “II Jogos Tradicionais Indígenas do Pará” à Secretaria Executiva de Esporte e Lazer e à Secretaria Especial de Promoção Social do governo do Estado, com o apoio de outros órgãos (“Programa Raízes”, Secretaria Executiva de Justiça e Paratur, do governo do Estado, FUNAI - Fundação Nacional do Índio, Caixa Econômica e Prefeitura Municipal de Altamira) e do Comitê Intertribal/ Memorial e Ciência Indígena - ITC, ao qual pertencem Marcos Terena e seu irmão Carlos Terena. O principal patrocínio ficou por conta da ELETRONORTE - Centrais Elétricas do Norte do Brasil, seguido da CELPA – Centrais Elétricas do Pará S.A., empresas privadas do setor elétrico brasileiro. Os objetivos de integração dos povos indígenas entre si e destes à sociedade brasileira encontravam-se também explicitados no material de divulgação bem como os de divulgação da “cultura indígena” a fim de estimular o “respeito”, tal como se enunciava no subtítulo do evento : “Um show de esportes, cultura e respeito às tradições”. Nas falas de Marcos Terena, como animador do “show”, eram várias as descrições do comportamento, crenças e valores morais dos participantes atletas, conclamando o público a respeitar e tomar o exemplo dos povos indígenas na defesa do meio-ambiente, harmonia familiar e religiosidade. De outro lado, o locutor profissional contratado pela organização do evento, incitava o público a torcer pelos competidores, como estratégia de animação eficiente e coerente com o objetivo propagandista dos realizadores e patrocinadores. “Palmas para o guerreiro caiapó...” “E a platéia delirava...”, nas palavras do locutor, desempenhando o papel de animador de competição esportiva, com direito a prêmios e treinadores. Equipes de professores de 192
Educação Física da rede estadual de educação acompanhavam as delegações, ministrando alongamentos preventivos contra “contusões”. As delegações eram formadas por grupos de indivíduos enviados por povos indígenas de territórios localizados no estado do Pará, Rondônia e Mato Grosso. O evento reunia, assim, sociedades indígenas por estado brasileiro, como se encontra definido no próprio título do evento, “II Jogos Indígenas do Pará”, considerando-se como convidados os provenientes de territórios localizados em outros estados. As delegações representavam as “etnias”, nome dado pelos organizadores aos povos indígenas participantes. O Governo divulgava o “Programa Raízes” como ação de uma política do estado do Pará para os povos indígenas e quilombolas que compreende atividades sociais e de proteção dessas “comunidades”, com o slogan “Pará. Estado que avança respeitando suas tradições”. No mesmo texto, lê-se que “os II Jogos Tradicionais Indígenas do Pará, às margens do Xingu, em Altamira, têm o mérito de mostrar os povos indígenas integrados à sociedade” e “ao mesmo tempo, destacam a inventividade, estimulam a integração, a confraternização e revelam a autenticidade de uma cultura que precisa ser valorizada por todos nós”. Estas mensagens revelam a incorporação do evento pela máquina administrativa do estado, dando a ele o sentido de uma concepção multiculturalista e de respeito à diversidade étnica da região amazônica, construída e propagada, entretanto, sob a ideologia da integração do índio à sociedade nacional e da negação da autonomia política destes povos enquanto nações indígenas, reduzindo-as a “comunidades” assistidas pelo estado. De outro lado, o evento permitia a afirmação de identidades étnicas e o reconheci-
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mento compulsório de sua forte presença, particularmente na região da cidade de Altamira, cuja história foi marcada desde sempre pelo confronto entre índios e não-índios. Do quase extermínio dos Juruna, Xipáia e Curuaya, no século XIX a mais recente “atração e pacificação” dos belicosos Arara, nos anos 80, é uma história que alimenta o imaginário local e o preconceito de seus habitantes, negando a existência dos que foram contatados no passado remoto ou colocando os de contato recente a uma tal distância geográfica que os apaga da realidade atual. Fomos testemunha, desde os anos 70, de como a população de Altamira manifestava repulsa pelos índios que haviam assassinado invariavelmente um ou outro parente de quase todos os antigos migrantes da região nordeste que vieram para a Amazônia, na época de exploração da borracha (começo do século XX) e que representam os primeiros contingentes que dão início a ocupação do médio Xingu e à criação deste núcleo urbano. Nos anos 70, com a abertura da rodovia Transamazônica que provoca mudanças na economia e no perfil da população, com colonos do sul do país e profissionais liberais de diversos estados que buscam embarcar no “milagre brasileiro”, o preconceito se reveste de outros conteúdos. Os índios sempre foram considerados um empecilho ao progresso, coisa de um passado atrasado, e selvagens que deveriam ser domesticados, mas mantidos à parte. Estórias de selvageria de um passado histórico e um oportuno ou real desconhecimento da existência de uma grande população indígena nos municípios de Altamira e Senador José Porfírio constituíram a versão destes novos pioneiros da frente de expansão da sociedade nacional no sentido de afirmar o desejo de tê-los à parte. A civilização chegava ao Xingu e índio era coisa do passado ou de um local muito distante que as dificuldades de acesso pelo rio, famoso por suas cachoeiras perigosas, ajudavam a manter como algo qua-
se inexistente. Índios que habitavam na cidade de Altamira, então, nunca ouvimos falar. Considerados remanescentes de antigos povos, protagonizaram índios “verdadeiros” no filme de Cacá Diegues, “Bye bye Brasil”, em 1978. Apenas em 1988, quando um projeto de construção de usinas hidrelétricas no rio Xingu exigiu para os estudos de impactos ambientais o levantamento da população indígena a ser atingida, os Xipáia, Curuaya e Juruna foram computados e desde então, e principalmente, no bojo da promulgação da Constituição de l988 e do movimento indígena em defesa de seus direitos, vêm recebendo reconhecimento pelo órgão governamental de assistência, a FUNAI, com a demarcação de territórios indígenas e outras ações que respondem à legitimação de sua identidade étnica. Muitos continuam vivendo na cidade de Altamira, assumindo hoje a identidade escondida por tantos anos. A cidade também se transformou, oferecendo contexto favorável ao “ressurgimento” de povos nativos habitantes destas terras. A moda dos grandes centros urbanos chega à Altamira, valorizando adereços de origem indígena que nos surpreenderam ao decorar, exatamente na época do evento, vitrines de lojas freqüentadas pelo público de maior poder aquisitivo. É neste novo cenário, radicalmente diferente daquele de menos de 20 anos atrás, que os “II Jogos Tradicionais Indígenas do Pará” foram oportunidade para que os Xipáia, Curuaya e Juruna, pudessem representar ostensivamente, através da decoração do corpo e da performance de cenas rituais, sua identidade como grupo étnico cultural diferenciado vivendo no contexto urbano da sociedade nacional. Povo indígena e delegação esportiva. Esta equação confere, de um lado, distinção enquanto grupo de referência identitária e, de outro, a incorporação da diferença através de 193
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um sistema de classificação e representação do não-índio. A organização esportiva marca, pela competição entre diferentes, a diversidade cultural entre os povos indígenas e, ao mesmo tempo, sua integração à sociedade nacional através do exercício das modalidades esportivas oficiais do mundo dos brancos. Os chamados “jogos tradicionais” são atividades cerimoniais de algumas sociedades indígenas consideradas esportivas porque implicam em competição e exibição de performance como a corrida de tora (de povos Jê), o jogo de flechas, o arremesso de lança, a luta corporal, o futebol de cabeça e a peteca. No programa, alguns constam como “demonstração” mas, em alguns casos, como no jogo de flecha, a condução se assemelhou à competição pelo melhor desempenho, com premiação para o realizador da tarefa (acertar o olho da figura de um peixe reproduzida num painel). As modalidades futebol, atletismo 100 metros, natação e canoagem seguiam a condução oficial das competições esportivas da cultura ocidental. A modalidade “cabo-de-guerra” considerada “tradicional” pelos organiza-dores não é encontrada nas sociedades indígenas, ao menos, de acordo com nosso conhecimento etnológico. O evento que proclama o “respeito à tradição” e “a integração do índio à sociedade” se caracteriza, assim, pela mistura de atividades lúdicas/cerimoniais e esportivas dos contextos índio e não-índio, sobrepondo classificação dos sistemas culturais indígenas ao da cultura ocidental. Fazem parte da programação, entretanto, atividades denominadas pelos organizadores de “apresentações culturais” as quais compreendem excertos de rituais das sociedades indígenas participantes. De certo modo, práticas religiosas (ritos litúrgicos e danças) de sistemas de representação cujos significados se encontram nos valores e visão de mundo baseados na tradição, são comparados e colocados no mesmo lugar dos “espor194
tes” para se legitimar a “indianidade” da mistura. Esta, por sua vez, realiza, através do espetáculo, com suas regras e comportamentos, a pretendida integração, princípio que norteia a competição esportiva na cultura ocidental. Outro princípio norteador, a exibição e o desempenho físico do corpo, ganha neste evento um caráter próprio, enfatizando-se a qualidade do corpo “índio”, saudável e forte, estereótipos do “bom selvagem”. Este corpo de desempenho atlético deverá, entretanto, estar, antes de mais nada, devidamente identificado como “índio” e, então, a ornamentação corporal, a par das cenas rituais, toma lugar importante na apresentação dos atletas participantes dos “Jogos Indígenas Tradicionais”. Figurinos suntuosos, com plumária, pintura corporal, joalheria (colares de contas de miçangas e sementes de árvores), roupas de fibra vegetal, adereços diversos compunham a apresentação visual dos corpos indígenas. Aqueles com muitos anos de contato e situação atual de convívio intenso com o branco, nos espaços urbanos da sociedade nacional local, como os Xipáia, Curuaya, Juruna, Tembé, Anambé, Manoqui, Guarani e Gavião usaram indumentária criada neste contexto de relações interculturais. Seu significado remete a este conteúdo de produção da identidade étnica contrastiva que se expressa pela plumária, pintura corporal e saias de palha. Os sutiãs eram peça quase obrigatória das mulheres desses grupos, buscando-se uma solução para combinar o uso destes sinais diacríticos com esta peça da indumentária cotidiana, já há algumas gerações incorporada por elas. Os Asuriní do Xingu, Parakanã, Araweté, Arara e Nambikwara, por sua vez, traziam ornamentação corporal de uso tradicional e os Kaiapó, Xikrin do Bacajá e Asuriní do Tocantins combinavam alguns elementos tradicionais com a estilização do figurino indígena, padronizando, por exemplo, o uso de cocares para todos os homens. No figurino tra-
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dicional, este era combinado com elementos padronizados do vestir ocidental. As mulheres Asuriní do Xingu vestiam bermuda e “top” de malha, desenhado especialmente para esta ocasião pelos responsáveis por sua participação. Os Parakanã usavam calções verdes e os Arara, calções amarelos. Havia ainda as camisetas, com logotipo do evento, usados indistintamente. A maneira de ornamentar o corpo particularizava cada grupo e algumas de suas características se relacionavam à situação de contato. Todos, entretanto, pintavamse, usavam colares de conta e plumária. No que diz respeito aos Asuriní do Xingu, os quais conhecemos melhor , apresentava-se uma condição e sentimento forte de pertencimento ao grupo, através da pintura em jenipapo, muito elaborada em desenhos geométricos. Jovens que nunca ou raramente foram vistos nos últimos anos com a pintura corporal, exibiam-se orgulhosos com ela, mais os adereços que complementam a ornamentação tradicional. Pode-se dizer que nestas apresentações, seja do corpo decorado, seja dos rituais, nota-se, assim, ambigüidades e talvez até conflitos se atentarmos, por exemplo, ao semblante tenso e perplexo de indivíduos vestidos de índio a caráter na arena de exibição. Notava-se também posturas de silêncio e observação que contrastava com os gritos da platéia e o som dos alto-falantes com a voz dos locutores e as músicas que a animavam . O desempenho físico, a linguagem e postura corporal sugerem ainda uma leitura importante do evento que pode oferecer algumas interpretações sobre participação dos índios nas ocasiões de afirmação da multiculturalidade, promovidas pelos brancos. A leitura corporal que realizamos se fundamenta no método BPI, Bailarino-Pesquisador–Intérprete1 através da qual o corpo em movimento é visto dentro de suas performances artísticas e quando destituídas destas. Busca-
se a realidade gestual daquele indivíduo ou grupo que é decodificada como sendo de maior intensidade e freqüência. Trata-se de uma forma integrada de ver o movimento, onde não há dissociação de seus vários aspectos sejam físicos, emocionais, sociais e culturais. A partir de uma análise do corpo em contexto, a proposta é captar a essencialidade do corpo visto através do convívio, no trabalho de campo. Capta-se aquilo que se faz mais contundente na expressão do corpo atuante, em suas estruturas físicas impregnadas de sensações e sentimentos. Os alongamentos Com um caráter de apresentação cênica, os exercícios de alongamentos eram feitos dentro da arena, ao mesmo tempo em que ocorriam outras exibições. Em muitos momentos, o foco maior de atenção estava voltado para esta cena dos alongamentos, assim anunciado por um dos locutores: “Aquecimento para evitar qualquer tipo de contusão, distensão muscular e desequilíbrio físico”. Os índios eram colocados em forma circular e o espaço central deste círculo era ocupado por uma estudante de educação física da Universidade Estadual do Pará, fazendo a demonstração dos movimentos. Os índios prontamente copiavam estes movimentos. Os alongamentos apresentados são uma padronização em forma de seqüência de movimentos que as academias de ginástica em geral, das mais simples às mais sofisticadas, utilizam como preparação do corpo. Trata-se de um modelo padronizado norte-americano, vinculado à idéia de eficácia inquestionável para todo tipo de atividade física e para todo tipo de corpo voltado à prevenção de lesões. Estes alongamentos são realizados tendo como referência a postura vertical com ênfase na parte superior do tronco em elevação. 195
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As partes do corpo são alongadas de forma segmentada, tais como: alonga-se o pescoço fazendo uma tração com uma das mãos na cabeça em direção ao ombro oposto, uma perna permanece com o joelho alongado enquanto o outro é mantido flexionado em relação ao dorso com o objetivo de alongar a parte inferior da coxa. E assim, sucessivamente, umas partes em relação às outras partes do corpo vão solicitando um equilíbrio do corpo numa luta contra a gravidade na postura vertical. Pode-se dizer que este padrão de trabalho corporal chega a ser antagônico ao preparo corporal que se encontra em sociedades indígenas do Brasil, cuja relação com o solo se dá de forma contrária a esta, pois é a partir de uma intensa relação com o mesmo que se dão as suas organizações corporais. A entrega à gravidade, fundamenta todas as suas atividades, seja no cotidiano ou nos rituais e, ao contrário da segmentação de partes do corpo, o movimento que eles realizam envolve toda a unidade corpórea. Ocorria, de fato, na arena dos “Jogos Tradicionais Indígenas”, que os índios, na tentativa de realizarem os movimentos que lhes eram dados, reproduziam as formas sem a postura adequada a esta linguagem de movimentos e sem a ação do esforço preciso para que se obtivesse o alongamento almejado. Como exemplo, observamos que em um dos movimentos demonstrados, no qual uma das mãos segura o cotovelo, exercendo uma força de tração para que se faça o alongamento de todo o braço, foi interpretado, por uma das índias, como sendo apoiar o cotovelo na palma da mão, sem nenhuma força de tração empregada, de modo a ocorrer o movimento solicitado para a pretendida eficácia. Outros fatos observados foram a solicitação de equilíbrio em uma das pernas ocasionando desequilíbrios e várias outras disposições de posturas demonstradas que eram desconhe196
cidas pelos índios, deixando em evidência a inadequação desta proposta para este público alvo. A realidade dos corpos indígenas definitivamente não estava sendo levada em consideração, como se estivessem sendo oferecidos aos índios instrumentos para as suas necessidades corporais, quando vemos que em suas performances, os corpos são outros, talhados quase ao inverso do que é a visão de corpo do homem ocidental globalizado. O som amplificado com músicas populares de temas diversos cujas letras falavam de paixão, de abandono e de “que o índio descerá...”, mesclava-se à voz do locutor. Compunha esta cena dos alongamentos a distribuição de spray contendo antiinflamatórios, fornecidos pela produção dos jogos aos índios que usavam excessivamente o medicamento como sendo algo de bom para os seus desempenhos corporais na competição dos jogos. Os esportes A demonstração de um corpo forte e a disputa do grupo que tem mais força significaram as marcas dos jogos, exaustivamente estimuladas. O locutor, referindo-se às etnias chamando-as de “as guerreiras” e “os guerreiros” instigava: “Vamos animar a galera, vocês conseguem ou não conseguem? Sob o sol quente a galera quer ver.” E para o público: “Cadê o grito da Galera!!! Solta o grito!!! A arquibancada que soltar mais o grito vai ganhar camiseta.” Cada “etnia” estava organizada para a competição através de distintas modalidades esportivas. O “cabo de guerra” Na modalidade “cabo de guerra”, uma corda é esticada ficando um grupo de cada
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lado, segurando nas extremidades e fazendo resistência. Vence quem tem a força para fazer com que o outro grupo se desloque. Era dado um microfone para um dos integrantes de cada grupo que, em sua língua, estimulava o seu grupo a dar o máximo de força. Alguns índios desmaiaram e a fala do locutor denotava uma certa banalidade para isto valorizando o atendimento médico imediato. O grupo vencedor tinha para os demais grupos a imagem de força, um modelo a ser alcançado. Na fala do locutor vemos que esta modalidade de esporte era a preferência: “E o público vai ao delírio!!!” O futebol de cabeça A impulsão na bola (pequena e feita de látex) é realizada pelo topo da cabeça e a bola não pode ser tocada por nenhuma outra parte do corpo. A partir de uma impulsão de todo o corpo em direção à bola, os braços realizam uma flexão, ficando todo ele em paralelo ao solo para, em seguida, o tronco mergulhar dentro dos braços e dar o impulso de cabeça na bola. Em alguns momentos, o corpo fica suspenso no ar apoiado apenas nas mãos para em seguida deitar-se por segundos no solo. Por um momento, o rosto encosta-se no solo. Perde quem encostar outra parte do corpo na bola que não a cabeça. Esta modalidade cheia de habilidades corporais e fluência do movimento, permeada de sutilezas, não causou nenhum impacto na platéia passando quase despercebida. A referência dada pelo locutor para esta modalidade era a de outro futebol como “paixão nacional”, mas nada que pudesse validar aquele futebol específico. Possivelmente a pouca aderência do público deve-se ao fato de que neste futebol não há vários participantes disputando num clima de maior agressividade.
Não possibilitava o intuito do evento”, como dito pela locução, de produzir mais e mais “adrenalina”. Fragmentos de Rituais Cada povo indígena trouxe para a arena um fragmento de seus rituais, anunciado pela locução como “apresentação cultural.” Por um momento, o corpo dos povos indígenas era revivido com pertencimento a um lugar próprio, mesmo estando situado num espaço estranho a eles. Os Nambikwara apresentavam uma estrutura física com uma postura de abaulamento do tronco bem definido, com um posicionamento da pelve reforçando este desenho propiciado pelos ísquios que se direcionavam para o solo. Os movimentos dos pés com esforço máximo, de penetração no solo, eram acompanhados pelo toque da flauta também direcionada para o solo. Os Asuriní com as flautas do “Turé”, apontando para o solo ou para frente, mantinham a postura perpendicular com mais freqüência. O olhar acompanhava as mudanças posturais. Como se estivessem introduzindo o som das flautas no solo, realizavam um deslocamento com avanços e recuos, tendo os pés em movimento um esforço médio, isto é, como se suas raízes deslocassem por debaixo da terra. Com os braços enlaçados na cintura ou no pescoço uns dos outros, compunham uma coesão grupal. Percorreram a arena sempre com um sentido de agregar os seus membros, os seus corpos unidos e concentrados numa disposição espacial que os favoreciam enquanto unidade grupal. Os Kaiapó apresentaram uma postura abaulada, tendo o dorso da mão esquerda próximo aos olhos e a mão direita na altura da cintura, ambas voltadas para o solo, assim
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como o olhar. Os pés mantinham uma forte impressão no solo, marcando o ritmo de forma acentuada nos momentos de deslocamento pela arena. O canto acompanhava o fluxo do movimento. Não havia uma relação direta com o público, fechando-se um circuito entre eles de perfeita harmonia de canto, ritmo e movimento. Um bloco uníssono. O povo Aikewara centralizou a sua apresentação na figura do xamã, com a participação de todos os demais membros de seu grupo presentes. O xamã com um maço de folhas percorreu o corpo de uma jovem jogando água em sua cabeça, enquanto cantava. Todo o grupo percorria de forma circular este momento. Os Tembé apresentaram dois momentos de distintos rituais. Num primeiro momento, jovens casais de braços dados deslocavam-se no espaço em fileiras que se cruzavam ao centro, trocando de lugares. Os homens usavam os chocalhos, acentuando o ritmo em direção ao solo. Homens e mulheres realizavam uma batida forte do pé direito seguida de uma elevação dos calcanhares que voltavam pontuando o solo, acompanhado de uma báscula da pelve impulsionando-a frente e trás. Predominava o impulso do corpo para cima sem perder a relação com o solo. Num segundo momento da apresentação dos Tembé, um xamã, referido como “pajé”, inicia a ação fumando um cachimbo e trabalhando a fumaça de modo a envolver o espaço e as pessoas de seu grupo. Enquanto estrutura física era mantida uma firme base em ambas as pernas, os joelhos encontravamse flexionados e os pé não perdiam a base em nenhum momento. Realizavam o movimento de transferência do peso do corpo, frente e trás e também nas laterais, com a mesma base fincada ao solo. O ato de pressionar os pés no solo retirava a força de impulso de todo o corpo para trabalhar a fumaça no espaço e nas pessoas do grupo que o circulava. Em segui198
da, outros “pajés” se juntaram a este primeiro, no total de três. Eles traziam um charuto em uma das mãos e, na outra, o chocalho, num movimento ondulatório com o tronco para frente e para trás, de onde tomavam um impulso para se lançarem à frente, num gesto que era acompanhado pelos braços e com uma das mãos em concha, como se tirasse do seu corpo algo que era então lançado no espaço. Este movimento foi se intensificando até ocorrer uma relação de troca entre o que se tirava do corpo e o que voltava para o corpo. Com estes sentidos, o movimento ganhava uma característica de maior projeção no espaço, com grande impulso para fora e, com a mesma intensidade, retornava ao eixo. Na medida em que ia havendo esta ampliação do movimento, os joelhos ganhavam maior flexão e molejo. A mão que retirava também lançava de volta para o centro do corpo. Um dos “pajés” ampliou este movimento até atirar-se ao solo e lá ficar entregue como se estivesse inconsciente. Outro “pajé” trabalhou este corpo estendido no chão como se estivesse retirando algo dele. Em seguida, os outros “pajés” se agruparam para erguer do solo o corpo até então estendido. De mãos dadas realizam o movimento de saltar retornando ao solo com intensidade. Depois, colocaram as mãos abertas em direção ao solo mantendo uma postura perpendicular do tronco. A dinâmica foi ganhando outros movimentos sutis e bem definidos como o esfregar as duas mãos, com impulsão dos pés, retornando com maior penetração no solo. Quanto à disposição espacial, os três “pajés” mantiveram uma triangulação sem nunca perdê-la, durante os seus deslocamentos. Os membros do povo Tembé ali presentes mantiveram o canto com a coesão de seus corpos, envolvendo o trabalho dos pajés durante todo o tempo. O tempo elástico que requer um ritual desta natureza, gerava certa inquietude na platéia e o locutor ao microfone anunciava: “mes-
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mo que o público não entenda, isto é importante para eles. É cultura curtida na floresta.” Em vários momentos de demonstração destes fragmentos de rituais, ora o locutor ora a platéia se pronunciavam com muitos ruídos ou gritos. O show precisa continuar. O locutor anunciava: “ritual sagrado do guerreiro... ritual mais que sagrado. Um ritual de purificação.” Uma síntese da linguagem corporal presente Pudemos observar que a anatomia simbólica, fruto de decodificações da Estrutura Física de um corpo do Brasil, aspectos que dizem respeito ao BPI, se fizeram presentes em alguns momentos da atuação destes corpos indígenas no decorrer dos “Jogos tradicionais Indígenas”. “A partir de uma intensa relação com a terra o corpo se organiza para a dança. A capacidade de penetração dos pés em relação ao solo, num profundo contato permite que toda a sua estrutura física se edifique a partir de sua base. A imagem que temos do alinhamento é de que a estrutura possui raízes.” 2
Em outros momentos, quando eram solicitados a traduzir outras linguagens corporais que não a deles, esta estrutura sofreu fragmentação, como nos do alongamento. Encontrava-se plena, entretanto, na linguagem de seus rituais. Observamos ainda, como plenitude de sua postura corporal, as mulheres carregando os seus filhos, durante todo o tempo da jornada dos “Jogos Tradicionais Indígenas”, que perdurou sete dias, de manhã à noite. Interessante notar que o corpo mãe-criança é indissociável. Mesmo quando estas mulheres participavam dos rituais, esta estrutura era a de filho como parte do corpo da mãe e em nenhum momento ouviu-se um choro de cri-
ança. A proximidade dos corpos e o sentido de coesão grupal foi um fator observado em todos os povos indígenas. A concentração que mantiveram ao longo de suas apresentações também foi um aspecto preponderante, mesmo num clima de muita dispersão, com o locutor solicitando que a platéia se pronunciasse aos gritos. O corpo observado no espaço à margem da arena, paralelo ao evento, quando aparentemente não estavam fazendo nada, ou seja, em estado de repouso, demonstrava um incomodo ímpar. Ao largo das apresentações chamadas de esportivas e culturais, as posturas comumente eram de encurralamento, os índios ficavam encostados e recolhidos nas grades que circundavam a arena. Olhares longínquos, olhares perdidos, corpos mostrando certo desconforto de estarem naquele ambiente, como se o estar ali fosse um tributo a pagar pelo reconhecimento de suas existências. Por um instante, via-se um erguer de corpo orgulhoso por uma apresentação de suas representações, ali aceitas pelo público branco. Os olhares curiosos e surpresos eram menos freqüentes do que os olhares ausentes. Os sentimentos de inadequação eram recompensados por uma busca de adequação ao que lhes era solicitado nos alongamentos e nas disputas que eram o foco do evento. A saudade dos filhos ausentes foi por vezes mencionada numa postura de recolhimento, não raro de tristeza. Corpos que não se afastavam de seus iguais, pois raramente se via um índio apartado de seu grupo. Sentimentos de medo e de estranhamento se faziam sentir, misturados a um esforço de se adequar àquelas propostas dos jogos como estratégia de sobrevivência. Considerando os corpos dos povos indígenas presentes neste mega evento, o sentido de corpo encurralado apresenta-se como sendo a mais contundente de suas realidades gestuais, superando o corpo atento, dócil e 199
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solícito que se esperava deles. Como bons intérpretes que são, procuravam atingir um público que os vissem como uma humanidade possível de adquirir algum valor.
Graziela Estela Fonseca Rodrigues, Docente junto ao Depto. de Artes Corporais do Instituto de Artes – UNICAMP. Desenvolve atualmente pesquisa sobre o BPI, o corpo em movimento, Dança do Brasil, processos de criação e ensino da dança. Autora do livro Bailarino-Pesquisador-Intérprete: Processo de Formação , e de vários capítulos e artigos sobre dança e BPI. E-mail: graziela@iar.unicamp.br Regina Aparecida Polo Muller, Docente credenciada, junto ao Programa de Pós-Graduação em Artes do Instituto de Artes – UNICAMP. Desenvolve atualmente pesquisa sobre performance, interculturalidade e o corpo em movimento na cena contemporânea. Autora do livro Os Asuriní do Xingu, historia e arte. E-mail: muller@iar.unicamp.br
Notas 1. RODRIGUES, 1997. 2. Idem.
Referências Bibliográficas RODRIGUES, Graziela Esteta Fonseca. Bailarino–Pesquisador-Intérprete: Processo de Formação. Rio de Janeiro: FUNARTE, 1997.
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Apresentação
Os textos aqui reunidos foram apresentados no colóquio Convergências na Arte Contemporânea, organizado pelos professores Maria de Fátima Morethy Couto (IA/UNICAMP) e Dária Jaremtchuk (USP Leste) - responsáveis pelo grupo de pesquisa Vanguarda e Modernidade nas artes no Brasil e no exterior - e por Hermes Renato Hildebrand (IA/UNICAMP). O evento foi realizado no auditório do Instituto de Artes da UNICAMP nos dias 7, 8 e 9 de junho de 2006 e contou com o apoio da FAPESP, do FAEPEX, do Programa de Pós-Graduação em Artes e dos Departamentos de Artes Plásticas e Multimeios, Mídia e Comunicação da UNICAMP. O evento contou com a participação de professores/pesquisadores de diferentes Instituições de Ensino Superior do país - UERJ, UFRJ e UFF (Rio de Janeiro); PUC-RS e UFRGS (Porto Alegre); UnB (Brasília) e USP, PUC-SP, FAAP e UNICAMP (São Paulo) - e de artistas atuantes em diferentes áreas (cinema, artes plásticas, fotografia, novas mídias). As conferências foram organizadas em mesas-redondas temáticas (Arte e Fotografia, Arte e Vídeo, Arte e Curadoria, Arte e Historiografia, Arte e Crítica, Arte e Novas Mídias, Arte e Política, Arte e Corpo), com a presença de dois ou três docentes/artistas de destacada atuação em sua área de competência. Aos conferencistas foi solicitado que relacionassem o tema proposto para a mesa-redonda às pesquisas que realizam na Academia e/ou aos trabalhos práticos que desenvolvem, cabendo-lhes a escolha do recorte a ser apresentado. As conferências abrangeram um amplo leque de questões referentes ao tema geral do Colóquio, oferecendo novas perspectivas de leitura e análise para todos os participantes e contribuindo decisivamente para a formação de nossos alunos de graduação e pós-graduação. Analisou-se a natureza da produção contemporânea, em seus diferentes meios de expressão, discutindo-se noções como especificidade e convergência, obra de arte e trabalho artístico e refletindo-se sobre a assimilação das novas mídias pelo artista contemporâneo, as mudanças ocorridas no pensamento historiográfico e na crítica de arte a partir da segunda metade do século XX, a relação entre arte e política hoje. Optamos por organizar os artigos por nome do autor, não respeitando assim a ordem da apresentação dos trabalhos no evento. Alguns dos conferencistas não puderam enviar seus textos a tempo para esta publicação, outros entenderam que sua participação se dera de maneira informal. Ressalto, porém, que a contribuição de todos foi decisiva para o sucesso do colóquio e deixo aqui meus agradecimentos aos colegas que aceitaram tomar parte deste nosso projeto.
Profa. Dra. Maria de Fátima Morethy Couto Depto. de Artes Plásticas - Instituto de Artes - UNICAMP. E-mail: mfmcouto@iar.unicamp.br
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Convergências na Arte Contemporânea
Problemas da crítica e da curadoria no panorama recente da arte brasileira Agnaldo Farias
“Da adversidade vivemos” Hélio Oiticica
O ponto de partida dessa nossa conversa pode muito bem ser o convite que foi feito a um crítico amigo meu, há uns de dez anos, pelo jornal Folha de São Paulo, para que escrevesse um artigo sobre a obra de Alfredo Volpi. Pois bem, a natureza do convite foi explicada ao meu colega da seguinte maneira: estava sendo preparada uma grande exposição sobre a obra de Volpi, uma exposição que previsivelmente seria muito comentada pela imprensa em geral, comentários que, como era de se esperar, seriam muito favoráveis. Diante disso, dessa unanimidade entendida pelo funcionário do jornal, tal como se verá mais a frente, como ultrajante, o convite feito ao meu colega era para que ele escrevesse sobre Volpi mas, atenção!, não a favor de Volpi e sim contra. Meu colega declinou a gentil oferta argumentando que não era o caso. Presumese que a partir disso o jornal saiu à procura de quem se ocupasse desse encargo, a bem dizer um insulto encomendado. Naquela altura, assim como anos a fio, a Folha de São Paulo mantinha uma página semanal dedicada à sua compulsão maniqueísta. Como todos se lembram, um determinado assunto era apresentado no alto da página, seguido de dois artigos escritos a seu propósito, o primeiro deles debaixo do tí-
tulo “Contra”, e o segundo sob a etiqueta “A Favor”. Com o tempo, a fórmula foi aprimorada com a inclusão de uma terceira possibilidade, qual seja ela, “Em termos”. Em que pese seu caráter anedótico, a situação descrita diz muito da situação atual da crítica de arte no Brasil contemporâneo. No que se refere especificamente à crítica que até os anos 80 se produzia nos jornais, também ela foi obrigada a acompanhar a tendência avassaladora que faz com que toda a notícia, em nome do suposto interesse de servir ao público, termine antes por atender, em maior ou menor medida, mas sempre predominantemente, ao mercado. Em relação a isto não se pode perder de vista as avassaladoras mudanças ocorridas nos últimos anos nesse veículo, premido pela necessidade de vender mais em resposta aos seus anunciantes, situação agudizada pela retração no mercado da publicidade em geral e da mídia em particular, e que termina por dotar as notícias de uma tônica puxada pelo escândalo, patente nas manchetes apelativas. Prova disso são as primeiras páginas dos cadernos de cultura que passaram a ser tomadas por imagens publicitárias, encimadas por uma discreta chamada sobre algum assunto tratado lá dentro.
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Diante desse comprometimento que mais e mais vem pesando sobre essa modalidade de texto, a maior parte da crítica de arte ou abandonou o barco, refugiando-se na academia, cursos livres ou pesquisas marginais, imaginando que assim garantiria sua idoneidade e compromisso com a produção artística, ou se manteve na imprensa às custas de regredir, salvo algumas notáveis exceções, ao estágio da reportagem, da útil não obstante superficial tarefa de noticiar o evento – no caso de uma exposição - sem entrar no âmbito do juízo sobre sua qualidade, ou regrediu ao estágio da opinião pura e simples. Pensando especificamente nas formas com que o mercado repercute na crítica de arte, vemos que a saída pelo comentário arbitrário e desprovido de fundamento, a superabundância de opiniões eventualmente até mesmo insultuosas, revela-se como mais uma mercadoria. Dentro dessa dinâmica perversa, a subjetividade, a opinião, quanto mais abusada, peremptória e agressiva melhor, ganhou o status de grife. Notadamente quando o objeto de análise é a arte contemporânea, que conta com um grande número de desafetos, a começar pela parcela a um só tempo ingênua e arrogante do público, qual seja aquela que não suporta conviver com aquilo que não entende à primeira vista e insiste em reduzir o mundo àquilo que cabe no acanhado horizonte descortinado pelo seu olhar. Cumpre salientar que, freqüentemente, o ataque mais impiedoso provém daqueles que um dia praticaram com dignidade e eventualmente com muita competência o diálogo com a arte de seu tempo. Este é o caso de Ferreira Gullar, embora não se possa dizer o mesmo de Affonso Romano de Santana, com seu esforço tão equívoco quanto ruidoso em medir a qualidade da produção contemporânea através da régua da arte moderna e correntes antecessoras. Nunca, como na imprensa do Brasil de hoje, houve tanta possibilidade para aquele que, 206
desassistido de lastro teórico e conhecimento de causa, no dizer do escritor português Mario de Carvalho, quer chamar a atenção de todos para a sua existência. E o triste consolo quanto a esse quadro reside na constatação de que essa mesma história vem acontecendo com poucas modificações nos mais variados quadrantes do planeta. Ainda assim, o Brasil possui algumas peculiaridades. Vamos a elas deixando claro que não pretendo aqui fazer um inventário de lamentações, mas dar a medida de uma situação urgente e que, em respeito a epígrafe de Helio Oiticica, devemos nos empenhar em resolver. E discutir faz parte desse processo.
Um intermezzo necessário para a apresentação da entrada do Brasil na era dos espetáculos
A história é bem conhecida mas deve ser repassada. Trata-se da ampliação súbita do meio artístico brasileiro, fenômeno que se deu ao longo dos últimos quinze anos. A partir de então, no Brasil, a exemplo do que acontece em tantos países, a cultura em geral e as artes plásticas em particular, passaram a ser vistas como um excelente horizonte de inversão de capital, capaz de atrair sólidos rendimentos. No nosso país, a eficácia dessa nova visão traduziu-se no surgimento de um grande número de novas galerias, na criação de novas instituições culturais, no fortalecimento de antigas, na presença progressivamente maior de nossos artistas no exterior, em particular nas feiras de arte, a coqueluche do momento. Deve-se sublinhar ainda como corolários desse processo a redefinição do lugar da crítica e a presença cada vez mais conspícua e ubíqua, não obstante muito controvertida, da figura do curador, os alvos dessa conversa de hoje.
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Voltando a situação brasileira, graças às leis de incentivo surgidas a partir do final dos anos 1980, leis segundo as quais os contribuintes passaram a poder deduzir parte dos impostos fiscais devidos para investir em cultura, a cena passou a ser cada vez mais comandada pelo assim chamado “marketing cultural”. Profissionais cuja especialidade consiste em oferecer a uma empresa qualquer um determinado “produto cultural”, supostamente mais afinado com o seu perfil, e que ela patrocinaria através da isenção do pagamento de impostos. Se no Brasil essa medida efetivamente significou um divisor de águas no meio cultural como um todo, trouxe algumas deformações dignas de serem assinaladas. A mais importante delas decorre de um meio empresarial imaturo, de natural desinteressado dos problemas da cultura, ao mesmo tempo que ansioso pelo que ela pode lhe oferecer em termos de retorno de imagem. Num país sem tradição em investimento no âmbito da cultura, cujos empresários notabilizam-se pela sede de lucros rápidos, concebendo a arte nos termos estritos de uma relação custo/benefício, o marketing cultural, salvo algumas exceções, e coerentemente com esse empresariado, termina por se interessar quase que exclusivamente por grandes nomes, eventos do tipo “arrasa-quarteirão”. Pois tudo isso, até mesmo o progressivo reconhecimento no plano internacional da nossa produção artística, acontece sem que tenha ocorrido a contrapartida de um reconhecimento interno. Ainda que essa produção, como corretamente defende Sonia Salzstein, dos anos 1950 em diante, esteja no mesmo patamar da arquitetura moderna brasileira (Oscar Niemeyer e grupo) e do Cinema Novo (Glauber Rocha e Nelson Pereira dos Santos à frente), ela, ainda segundo essa pesquisadora, não consegue impregnar o campo social a uma dimensão pública. Não houve ainda a construção, por assim dizer, da prova materi-
al do reconhecimento da nossa história da arte, isto é, museus com acervos constituídos e submetidos a revisões críticas e aquisições orientadas e publicações elaboradas no mesmo diapasão. O tempo passa e estamos longe da consolidação de um circuito institucional capaz de dar visibilidade à nossa produção artística, seja ela moderna ou contemporânea. Nossos museus, em que pese o excelente material humano e o voluntarismo recorrente de alguns deles, continuam dotados de acervos precários e equipes de profissionais incompletas. Na falta da retaguarda de um circuito constitucional constituído, o mercado converte-se no principal protagonista do processo, o primeiro e último recurso de tudo e de todos, incapaz, pela sua natureza mesma, de contribuir para o desenvolvimento de uma produção crítica – venha ela sob forma puramente teórica ou sob a forma de uma obra de arte, dado que a vejo também na qualidade de pensamento - de natureza independente.
Todo o poder ao mercado! 1. O crítico Feitas essas considerações pode-se voltar à crítica e a constatação de que no Brasil, de meados dos anos 1950 até o fim dos anos 1980, a obra de arte com pretensões experimentais visava principalmente a ela. Na ausência de mercado, até porque este quando principiou suas investidas, o que aconteceu em princípios dos anos 1970, interessava-se apenas por valores consagrados - Di Cavalcanti, Portinari, Pancetti, Bonadei etc -, o crítico comparecia como o grande interlocutor do artista contemporâneo. E a invenção de categorias como “nãoobjeto”, resultado do diálogo cerrado entre Ferreira Gullar, Lygia Clark e Helio Oiticica; 207
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“aparelhos”, Ronaldo Brito e Waltércio Caldas, entre alguns outros exemplos, apontam para a fertilidade dessas relações e a compreensão da crítica como uma tarefa que ultrapassa os limites da interpretação e os problemas de avizinhamento do objeto pela via da palavra. Não é que essa tradição de diálogo entre artistas e críticos, iniciada no anos 1950 com as conversas entre Mario Pedrosa, Lygia Clark e Hélio Oiticica, tenha se perdido. Ela pode ser verificada em outras associações de artistas e críticos, como Cildo Meireles e Frederico Morais, Antônio Dias e Paulo Sérgio Duarte, Nuno Ramos e Rodrigo Naves e, mais recentemente, no uso ampliado que Lisette Lagnado fez do termo “instauração”, inventado por Tunga. Também vale a pena mencionar dois exemplos no terreno da curadoria, a operatividade dos conceitos de “Cartografia”, elaborado por Ivo Mesquita a propósito de uma exposição do início dos anos 1990, e “Antropofagia”, conceito nuclear da Bienal de São Paulo de 1998, que Paulo Herkenhoff tomou emprestado de Oswald de Andrade. Ainda que essa sorte de diálogo se mantenha, é forçoso admitir que ele, como já foi dito, arrefeceu consideravelmente a partir dos anos 1990. Nesse sentido é que parece contar a presença de um mercado cada vez mais fluente e influente. Em vez de dar continuidade às discussões internas, em alguns casos tendo como interlocutor o crítico, o artista cede muito mais facilmente às demandas do mercado, orienta-se através dele, preocupa-se mais, e desde o interior da escola de artes, com a direção dos ventos do mainstream. A naturalidade com que se admite a dinâmica desse processo deve ser confrontada, porém, com a freqüência com que trabalhos feitos de encomenda para o que se supõe seja o desejo do mercado, nomeadamente o internacional, e que quase sempre resulta em banalidade. E isso acontece mes208
mo sob a evidência de que o aspecto mais consistente da produção brasileira, aquela que de resto vem atraindo mais duradouramente o público internacional, deriva, como não poderia deixar de ser, da linha de continuidade com a tradição interna do país, de resto muito mais ampla do que o extraordinário binômio entre visão construtiva e transgressão, caso da herança neo-concreta, já bastante divulgado fora do país. Uma tradição que, naturalmente, se constituiu e continuará se constituindo a partir do diálogo intermitente e crítico com o campo geral da cultura. Mas diante dessa sedutora Esfinge - o reconhecimento e a fama - que o mercado coloca no caminho do artista, especialmente do jovem artista, avivando seus sentimentos, guiando suas opções, para que mesmo a crítica? Salvo, talvez, se ela for laudatória... De volta ao lugar da crítica feita em contato íntimo com a produção, saliente-se que ela diz respeito a um aspecto muito particular do trabalho do crítico. De fato, a operação crítica que nasce dessa modalidade de diálogo, porque existem várias modalidades de diálogo com a obra é, no mais das vezes, um lugar carregado de afeto, de intensa adesão do observador frente aquilo que ele analisa. Não que não haja limites a serem colocados, não é que não haja óbices e ressalvas por parte dessa linhagem de escritura. Toda crítica, mesmo aquela que, como defendia Baudelaire, que pretende trazer em si as ressonâncias poéticas do objeto de sua atenção, não poderá se furtar à sua dimensão pública, o que a faz buscar ser objetiva, permeada por análises e juízos de valor desdobrados de hipóteses e temas convenientemente demonstrados, com argumentos calçados por conceitos, aspectos históricos etc. Ainda assim, aquele que escreve no calor do contato com o produtor da obra é seguramente mais cúmplice dos resultados do que daquele que escreve mais distanciado e cujo texto é publicado em revistas e jornais.
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Mesmo que se trate da mesma pessoa, feita as contas, a finalidade do texto publicado em periódico, jornal e revista, é naturalmente diverso. Destinado a um público anônimo e plural, que não necessariamente compartilha as cifras do idioma do especialista, a crítica de jornal é aquela que, a partir de uma linguagem mais direta e simplificada, no melhor dos casos sem incorrer em reducionismos, busca fazer uma mediação entre o público e a obra de arte, sempre atendendo os parâmetros apresentados anteriormente. Vai daí que, em relação ao caso do crítico situado próximo ao artista, no Brasil, a exemplo do que aconteceu nos Estados Unidos nos anos 1980, ele terminou por se acomodar nos catálogos publicados pelas galerias e em livros no geral monográficos, o que sucedeu não sem alguma incompreensão e desconforto das partes envolvidas. A título de ilustração, testemunhei o caso de um artista que se recusava peremptoriamente a pagar, e, naturalmente, a publicar, o texto encomendado a um crítico para figurar no catálogo de sua exposição, por julgar que ele não era suficientemente elogioso. Quanto ao segundo lugar ocupado pela crítica, a imprensa, a tribuna de onde eram e são comentados os produtos artísticos, foi sendo abandonado ao menos pelos mais impacientes diante de toda a pressão. O lugar ainda não está de todo vago. Mas assinale-se mais uma vez que são poucas e honrosas as exceções, isto é, os profissionais que se atrevem a discordar e apontar problemas nas exposições resenhadas. Imagina-se que seus lugares ou estejam sendo disputados ou já foram tomados pelos autores de diatribes e agressões gratuitas, gente que faz o gosto da imprensa mais pedestre e do público mais ávido por opiniões sanguinolentas. Isso quanto aos jornais. Em relação às revistas é forçoso lembrar que não as possuímos mais; que, sintomaticamente, as duas únicas revistas
especializadas – Galeria e Guia das Artes – publicadas a partir da segunda metade dos anos 1980 em diante, não sobreviveram aos anos 1990. O que existe são publicações erráticas e heróicas, promovidas por artistas, grupos independentes e profissionais ligados ao setor acadêmico. Este é o caso, entre poucas outras, de revistas como Gávea, Item, Arte & Ensaios, Ars e, mais recentemente, a revista Número, apoiada pelo Centro Universitário Maria Antônia, da Universidade de São Paulo, ponto de encontro entre jovens críticos e curadores. O mercado editorial de livros – capitaneado pelas editoras Cosac & Naify, Companhia das Letras e Martins Fontes – surge aqui como notável exceção em um ambiente reflexivo pouco denso, produzindo volumes fundamentais ao entendimento crítico da produção contemporânea nacional. A Internet tem também se tornado, nesse ambiente rarefeito, um espaço privilegiado não só de difusão de informações, mas, igualmente, de elaboração crítica. Descontado os problemas, já comentados, relativos à migração do texto crítico para as folhas de pagamento das galerias, e que, como nos diz Perry Anderson, pode ser resumido como uma incompatibilidade entre interesses comerciais e reflexão simbólica, o fato é que num país como o Brasil, onde as esferas, antes mesmo de serem demarcadas já nascem destruídas, esses problemas assumem um inventivo e irisado leque de práticas venais. Assim, ao lado de contribuições sensíveis e intelectualmente honestas, temos um número ostensivamente maior, um imenso repertório de publicações que não passam de imposturas luxuosamente encadernadas com o único propósito de emprestar valor ao que não tem valor algum; um exercício editorial de baixa qualidade, forjado em escrituras vazias e impresso em papel couché de alta gramatura. Isso não haverá de ser novidade para nenhum dos ouvintes embora eu acredite, in209
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sisto nisso, na importância de compartilhar nossas experiências por dramáticas que sejam.
O curador O último tópico a ser abordado, e o farei indicativamente, refere-se ao fato de que, no Brasil dos anos 1990, igualmente facultado pela considerável entrada de capital no setor, o crítico também migrou para a prática curatorial. Não quero com isso dizer que todos os nossos curadores sejam provenientes da crítica e tampouco que todos os críticos se dediquem à prática curatorial. Mas sim ressaltar que a prática curatorial revelou-se uma extensão possível e fértil para que o crítico, diante de uma produção marcada pela variedade de disciplinas, e ainda mais colocada em confronto direto com a arquitetura e com o público, encontrasse um lugar privilegiado para a disseminação de sentidos. Há muitos casos, todavia, conforme já se assinalou anteriormente, em que a preferência do marketing cultural por blockbusters tem dado margem a quantas exposições feéricas, desprovidas de sentido estético, freqüentemente de responsabilidade de curadores que sequer se dão ao trabalho de escrever sobre o que fazem, quanto mais sob um ângulo crítico. Nesse sentido, a exacerbação de poderes do curador, porque responsável, em última instância, por legitimar e referendar a produção desse tipo de exposições – e por ser co-responsável, por esse mesmo motivo, pela alocação de recursos escassos em projetos que não agregam conhecimento algum – tem contribuído para o esgarçamento crescente da relação entre produção artística e reflexão crítica. Isso é notadamente verdadeiro em relação àqueles que, embora entrincheirados entre os auto-proclamados independentes, não deveriam intitular-se como
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tal, face a sua total dependência de estratégias de cunho puramente comercial. Prosseguindo, há o caso freqüente do convite, por parte das mais variadas instituições, a curadores de fora e muitas vezes alheios aos aspectos essenciais de quem os recebem. O que é índice de duas coisas: ou que a instituição não tem um escopo claro de atuação, uma missão e uma linha curatorial pré-definidas, ou as estão traindo. E por que as traem? Aqui novamente comparece a rapidez em atender as demandas dos patrocinadores, interessados em programações de impacto, uma dinâmica que têm como resultado imediato o fortalecimento de profissionais sem lastro crítico, produtores de mostras sem unidade ou critério estético. Quanto a isso ainda ressoam nos meus ouvidos as palavras de um produtor que, numa reunião comigo quando eu respondia pela curadoria geral do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, perguntou-me candidamente: “Eu tenho um excelente patrocinador do ramo madeireiro, você não quer criar (sic) uma exposição que envolva madeira?” A coisa prossegue e adquire contornos alarmantes: curadores de museus e instituições correlatas que re-orientam com invulgar à-vontade o rumo das instituições, ignorando toda a história durante o tempo em que passarão a sua frente; curadores que são advisers de galerias; marchands que incidem nas programações de museus; artistas que se submetem a situações constrangedoras em nome da divulgação de seus trabalhos etc, etc. Nesse sentido, o simples cruzamento entre a programação de museus com as programações das galerias comerciais pode render resultados do mais interesse. É preciso sustar a marcha desse processo, é preciso que as experiências sejam solidificadas, que nós, artistas, críticos e curadores comprometidos com a produção
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artística sejamos mais atentos aos limites naturais do mercado, sobretudo quando, num caso como o brasileiro, ele tende a se apresentar como arena da livre e feroz concorrência para onde o neo-liberalismo nos está empurrando. É somente pensando com prudência e método que lograremos enfrentar essas novas adversidades.
Agnaldo Farias - Professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo - USP, e crítico de arte. Foi curador da Representação Brasileira da XXV Bienal de São Paulo (2002), curador adjunto da XXIII Bienal de São Paulo (1996) e da I Bienal de Johannesburgo (1995). Foi curador geral do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (1998/ 2000) e curador de exposições temporárias do Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (1990/1992). Atualmente é consultor de curadoria do Instituto Tomie Ohtake. Autor, entre outros títulos, dos livros La Arquitectura de Ruy Ohtake (Celeste, 1994), Arte Brasileira Hoje (Publifolha, 2002), Amélia Toledo. As naturezas do artíficio (W11, 2004).
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Os excitáveis ou “l’art d’apprivoiser” André Parente
Em minha última temporada Parisiense1 conheci alguns quadros-objeto intitulados Excitáveis, criados pelo artista plástico cearense Sérvulo Esmeraldo. Foi um choque, literalmente ! Fui tomado por uma emoção ainda dura, e que só se intensificou desde então, à medida que me pus a pesquisá-los
do à produção de efeitos cinéticos visuais e sensoriais. Os excitáveis possuem dois componentes básicos: uma caixa, feita de cartão ou madeira, e dotada de uma cobertura de plástico transparente, em geral plexiglass, e um conjunto de pequenos elementos, móveis e leves, dispostos dentro da caixa. Os elementos são excitáveis pela ação da eletricidade estática produzida na relação do espectador com o quadro, por meio da fricção de sua superfície. “En frottant la surface du plastique avec le dos de la main, on crée des charges électriques qui par induction font apparaître des charges de signe contraire sur des éléments contenus dans la boite. Ceux-ci sont alors, tantôt attires par le plastique, tantôt repousses vers le fond de boîte.” 2
A energia estática é uma forma de energia sutil e misteriosa. Antigamente, marinheiros viajando à noite viam espectros fantasmagóricos de luz azulada dançar nos mastros dos navios. Chamavam a este fenômeno de “fogo-de-Santelmo”, patrono dos marinheiros. Os excitáveis são, antes de mais nada, quadros-dispositivo de um tipo muito particular. Pois, além de pinturas abstratas, são máquinas eletrostáticas. Isto é, um quadro sensível à energia eletrostática que emana do espectador e das condições atmosféricas, visan-
O fenômeno da estática é muito comum nos vôos aéreos, uma vez que, nos ambientes frios e secos, a energia passa das superfícies sobre a qual nos movemos e produzimos atrito para os nossos corpos, até fluírem por nossas mãos para os objetos que pegamos,
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gerando pequenos choques. Não era por acaso que Esmeraldo testava pequenos protótipos dos excitáveis em suas viagens aéreas. Desde 1967, ano da criação do primeiro excitável, e durante mais de 10 anos, Sérvulo Esmeraldo realizou centenas de excitáveis3 que variavam em função de parâmetros tais como o material, a forma, a cor e o tamanho. Os menores e mais simples eram feitos com pequenos sacos de plásticos transparentes “à fermeture étanche” ou “barquettes” de alimentos dentro dos quais eram colocados confetti de várias formas e cores que possuem a graça de um objeto híbrido, a meio caminho entre o brinquedo, o protótipo e a arte. Os maiores e mais complexos excitáveis podem ter algo em torno de um metro e meio. Ouvi falar de um excitável com dimensões ambientais. Ele teria uma forma tubular que ia do chão ao teto. Em seu centro, haveria uma haste que o percorreria de cima a baixo, sobre a qual eram presos canudos de plástico que reagiriam à presença e aos movimentos dos espectadores que entravam na sala. Uma verdadeira instalação cinética interativa! A arte cinética e a arte cibernética têm em comum o fato de serem as duas principais correntes da arte contemporânea a problematizar a relação da arte e da ciência, por um lado, e da participação do espectador na obra de arte, por outro. Embora presa aos problemas estéticos herdados do construtivismo e do abstracionismo geométrico, a arte cinética rompe com a questão da representação. Por um lado, a arte cinética não se interessa mais pela representação do movimento, mas sim pela sua produção, e isto de pelo menos três diferentes formas: movimentos óticos produzidos pela deslocamento do espectador diante das obras, movimentos mecânicos criados com a ajuda de motores e, finalmente, movimentos reali-
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zados pelos próprios espectadores em suas interações físicas com as obras. Importa dizer que as obras cinéticas integram o movimento virtual e o movimento real, o movimento ótico e o movimento mecânico. Por outro lado, a arte cinética problematiza a questão da participação do espectador na obra de arte. Na arte contemporânea, como na maior parte das obras cinéticas, a obra é fruto da participação e da interação do espectador. Pouco a pouco, a participação vai cedendo o lugar a uma participação ativa (interativa). A arte brasileira fez duas importantes contribuições, reconhecidas internacionalmente, para a arte cinética: os Aparelhos Cinecromáticos (1955) de Abraham Palatinik e os Bichos (1962) de Lygia Clark. A nosso ver, chegou a hora de nos darmos conta de que os excitáveis, embora não sejam conhecidos no Brasil, representam uma contribuição ainda maior do que as anteriores. Em relação aos Aparelhos Cinecromáticos, os excitáveis são interativos e em relação aos Bichos, eles introduzem uma interatividade não mecânica. Na verdade, como veremos, os excitáveis são como o ápice e a ruptura do movimento cinético e exprimem muito bem a passagem da arte mecânica para a arte eletrônica. A partir dos anos 1960, a arte cinética produzirá dispositivos, situações e ambientes polimórficos, multisensoriais, transformáveis, penetráveis, nos quais os espectadores são convidados a participar como parte integrante e essencial da obra. Como nas máquinas inúteis e derrisórias de Tinguely, nas máquinas cibernéticas de Schoeffer, nos dispositivos magnéticos de Takis, os dispositivos eletrostáticos excitáveis são uma das descobertas maiores da arte interativa dos anos 60. Na verdade, os excitáveis introduzem um terceiro fator que vai transformar a arte do movimento cinético em verdadeira arte da
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complexidade e da indeterminação, devido ao fato de que, neles, o movimento se faz entre a pintura e o objeto, entre o objeto e o espectador, entre o espectador e o ambiente que o circunda. Na verdade, nos excitáveis, como qualificar o movimento que vemos? Qual é o lugar do movimento? Qual é a sua origem e a sua destinação? O movimento flui ao longo do ambiente, sendo o espectador e o quadro interfaces através das quais a energia flui sem cessar. No entanto, não sabemos onde a energia começa e onde acaba. Entre o movimento do espectador e o movimento dos elementos da obra, há uma energia invisível que flui, ora gerando atração, ora gerando repulsão entre os elementos em interação. Qual é a matéria da obra fenomenologicamente falando? Como qualificar esta materialidade-imaterial dos excitáveis? Neste sentido, os excitáveis não são apenas simples objetos, embora em aparência sejam de uma grande simplicidade, mas objetos interativos eletrostáticos complexos que mobilizam não apenas o espectador, que é apenas um elemento entre outros da obra, mas o ambiente como um todo. Não é à toa que os excitáveis são extremamente sensíveis às condições ambientes, o nível de umidade do ar, a temperatura e os materiais empregados, pois estes últimos têm uma enorme influência sobre a interação entre o espectador e os excitáveis. Entre a pintura e o objeto, entre o objeto e o espectador, entre o espectador e o ambiente, os excitáveis são atratores estranhos que capturam e transformam nossas energias. Os excitáveis correspondem muito bem ao conceito seminal de Jean-Francois Lyotard de pintura como dispositivo pulsional. Isto é, uma pintura que já não pode mais ser vista como representação de nada, pois os excitáveis se apresentam como transformadores de energia que suscitam efeitos e disposições da parte dos espectadores, que deixam de ser passi-
vos e passam a ser apenas o vetor de atualização sensorial e afetivo da obra. Em matéria de arte, a única regra comum a dispositivos tão distintos é que os efeitos sejam intensos e os afetos excitáveis. O que nos surpreende nos excitáveis é como um dispositivo eletrostático de interação entre a pintura e o espectador pode se transformar em um dispositivo pulsional que, quanto mais é excitado, mais é excitante. O excitável é um puro acontecimento que toca o espírito como uma presença imaterial, qualidade singular, pura afecção nervosa não passível de representação. É quase impossível ficar ao lado de um excitável sem ser “apprivoisé” por seu fluxo energético sem destinação, igual a que sentimos diante do cachorro que balança o rabo. Para não entrarmos em discussões intricadas acerca de questões relativas ao estado da estética após o sublime, em particular a questão da materialidade imaterial e do tempo paradoxal, vejamos uma metáfora como exemplo. Na famosa passagem do encontro da raposa e do Pequeno Príncipe, Saint-Exupéry coloca de forma poética a questão da síntese passiva do tempo que está na base do sentimento estético. Ao encontrar a raposa, o pequeno Príncipe a convida para brincar. A raposa porém, diz que não pode brincar porque não se sente “apprivoisé”. Intrigado, o Príncipe pergunta o que é “apprivoiser”. A raposa então responde que se trata de uma coisa bastante esquecida: “cela signifie creer des liens”. Intrigado, o Príncipe pergunta o que é criar laços: “– Bien sûr, dit le renard. Tu n’es encore pour moi qu’un petit garçon tout semblable à cent mille petits garçons. Et je n’ ai pas besoin de toi. Et tu n’a pas besoin de moi non plus. Je ne suis pour toi qu’un renard semblable à cent mille renards. Mais, si tu m’apprivoises, nous aurons besoin l’un de l’autre. Tu seras pour moi unique au monde. Je serai pour toi unique au monde... Et puis
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regarde! Tu vois, là-bas, les champs de blé? Je ne mange pas de pain. Le blé pour moi est inutile. Les champs de blé ne me rappellent rien. Et ça, c’est triste! Mais tu as des cheveux couleur d’or. Alors ce sera merveilleux quand tu m’auras apprivoisé! Le blé, qui est doré, me fera souvenir de toi. Et j’aimerai le bruit du vent dans le blé... S’il te plaît... apprivoise-moi ! – Je veux bien, répondit le petit prince, mais je n’ai pas beaucoup de temps. J’ai des amis à découvrir et beaucoup de choses à connaître. – On ne connaît que les choses que l’on apprivoise, dit le renard. Les hommes n’ont plus le temps de rien connaître. Ils achètent des choses toutes faites chez les marchands. Mais comme il n’existe point de marchands d’amis, les hommes n’ont plus d’amis. – Si tu veux un ami, apprivoise-moi ! – Que faut-il faire? dit le petit prince. – Il faut être très patient, répondit le renard…” 4
Depois que a raposa foi “apprivoisée”, chegou a hora do Príncipe partir, e a raposa disse que ia chorar: “– C’est ta faute, dit le petit prince, je ne te souhaitais point de mal, mais tu as voulu que je t’apprivoise... – Bien sûr, dit le renard. – Alors tu n’y gagnes rien ! – J’y gagne à cause de la couleur du bleu.” 5
Esta pequena passagem é uma lição de estética. Em arte, só criamos laços quando somos afetados. E somos afetados apenas em nossa passibilidade. Ou seja, somos os laços e relações que contraímos. Antes mesmo de podermos nos representar as coisas, somos capturados por ela. Mas, para que isto ocorra, é fundamental que nossa atenção se volte para elas. A atenção é o cimento dos laços e afetos que se formam. Quando colocamos a questão da interatividade esquecemos o tipo de interatividade de que se trata. Quando nave-
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gamos um hipertexto, ou zappeamos a TV, nem sempre damos tempo para que se crie vínculos. Por outro lado, sem os vinculos, continuamos a zappear. É um círculo vicioso: não damos tempo para que haja afeto e continuamos a nos deslocar porque nada nos afetou. Na situação do zapping, dificilmente seremos apprivoisé. No caso dos excitáveis, dificilmente interagimos com eles sem que eles nos capturem em suas transformações energéticas. Tal é o mistério dos excitáveis.
André Parente – Doutor em comunicação pela Universidade de Paris VIII, onde estudou entre 1982 e 1987 sob a orientação do filósofo Gilles Deleuze. Em 1987 ingressou na Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, onde criou o Núcleo de Tecnologia da Imagem (N-imagem). Autor, entre outros títulos, de Narrativa e Modernidade. Os cinemas não-narrativos do pós-guerra (Papirus, 2000) e Cinéma et Narrativité. Le cinéma expérimental, le cinéma direct et le cinéma dysnarratif ( L’Harmattan, 2005). Organizador de Imagem máquina (Ed. 34, 1993), Redes Sensoriais: arte, ciência e tecnologia (Contra Capa, 2003) e Tramas da Rede. Novas Dimensões Estéticas e Politicas da Comunicação (Sulina, 2004). Tem como principal foco de sua pesquisa a problematização do papel da imagem no exercício do pensamento, e a compreensão das tecnologias da imagem como formas inéditas de hibridação de campos diferenciados de saber.
Notas 1. Em 2004 fui convidado como Professor Visitante da Universidade de Paris III (Nouvelle-Sorbonne), onde ministrei cursos de cinema, arte e novas tecnologias. 2. “Ao friccionarmos a superfície do plástico com o dorso da mão, criamos descargas elétricas que, por indução, fazem aparecer descargas de sinal contrário nos elementos contidos na caixa. Em decorrência disso, esses elementos são por vezes atraídos pelo plástico, por vezes empurrados para o fundo da caixa”. Cf. ESMERALDO, Sérvulo, “Méthode pratique et illustré pour construire un excitable précédé d’une notice sur l’életricité statique”. Antuérpia, Guy Schraenen Editeur, 1976. 3. Grande parte dos excitáveis se encontra em coleções francesas, suíças e belgas, lugares onde a arte cinética mais se difundiu na Europa. 4. - “Exatamente, disse a raposa. Tu não és para mim senão um garoto inteiramente igual a cem mil outros garotos. E eu não tenho necessidade de ti. E tu não tens também necessi-
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dade de mim. Não passo a teus olhos de uma raposa igual a cem mil outras raposas. Mas, se tu me cativas, nós teremos necessidade um do outro. Serás para mim único no mundo. E eu serei para ti única no mundo... (...) E depois, olha! Vês, lá longe, os campos de trigo? Eu não como pão. O trigo para mim é inútil. Os campos de trigo não me lembram coisa alguma. E isso é triste! Mas tu tens cabelos cor de ouro. Então será maravilhoso quando me tiveres cativado. O trigo, que é dourado, fará lembrar-me de ti. E eu amarei o barulho do vento no trigo... (...) - Por favor... cativa-me! (...) - Bem quisera, disse o principezinho, mas eu não tenho muito tempo. Tenho amigos a descobrir e muitas coisas a conhecer.- A gente só conhece bem as coisas que cativou, disse a raposa. Os homens não têm mais tempo de conhecer alguma coisa. Compram tudo prontinho nas lojas. Mas como não existem lojas de amigos, os homens não têm mais amigos. Se tu queres um amigo, cativa-me! - Que é preciso fazer? perguntou o principezinho. - É preciso ser paciente, respondeu a raposa”. In: SAINT-EXUPERY, Antoine de. O pequeno príncipe. Rio de Janeiro: Editora Agir, 2004, capítulo XXI. 5. - “A culpa é tua, disse o principezinho, eu não queria te fazer mal; mas tu quiseste que eu te cativasse... - Quis, disse a raposa.- Mas tu vais chorar! disse o principezinho.Vou, disse a raposa.- Então, não sais lucrando nada! - Eu lucro, disse a raposa, por causa da cor do trigo”. Idem, capítulo XXI.
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instituto de artes colóquio
Convergências na Arte Contemporânea
A “mensagem do meio”: Pop Art e fotografia* Annateresa Fabris
Num dos capítulos de Marxismo e forma (1971), Fredric Jameson propõe uma contraposição entre a concepção surrealista do objeto e a inerente à Pop Art, a partir de uma explicação econômica. Os objetos que despertam o interesse dos surrealistas são produtos de uma economia ainda não de todo industrializada e sistematizada, que trazem as marcas de uma organização artesanal do trabalho e de uma distribuição garantida por uma rede de pequenos lojistas. Como a publicidade não atingiu as proporções atuais, os anúncios podem ser “apreendidos como objetos de fascínio em si mesmos”. A energia psíquica que os surrealistas infundem nos objetos deriva precisamente da marca do gesto humano ainda presente neles. Entre esses objetos, o autor confere um destaque particular ao manequim, que considera o “verdadeiro emblema” da sensibilidade de uma época, o “totem supremo da transformação da vida pelos surrealistas”, por fazer do corpo humano um produto, por demonstrar a existência de uma outra presença que olha para a humanidade com um olhar triste e que a interpela com uma voz sem vida.1 O romantismo dos surrealistas, que haviam transformado a cidade em natureza, não tem condições de sobreviver ao advento de uma nova ordem econômica, caracterizada pela subordinação de todas as formas de produção ao sistema de mercado e pelo domínio do antinatural. O lugar do manequim é
tomado pelos objetos fotográficos da Pop Art, pela lata de sopa Campbell e pelas representações de Marilyn Monroe. As substituições são múltiplas: “basta-nos trocar o ambiente de pequenas oficinas e balcões de lojas, o mercado de pulgas e as bancas nas ruas pelos postos de gasolina ao longo das auto-estradas americanas, pelas lustrosas fotografias nas revistas, ou pelo paraíso de celofane da drugstore americana”. Os objetos do Surrealismo desapareceram, sem deixar qualquer vestígio, porque os produtos que nos cercam são absolutamente destituídos de profundidade: “seu conteúdo de plástico é totalmente incapaz de servir como condutor de energia psíquica (...). Qualquer investimento da libido em tais objetos é obstruído já de início, e podemos nos perguntar se é verdadeiro que nosso universo de objetos é doravante incapaz de fornecer algum ‘símbolo apto a despertar a sensibilidade humana’, se não estamos na presença de uma transformação cultural de proporções extraordinárias, uma ruptura histórica inesperadamente absoluta em sua natureza”.2 A dicotomia apontada por Jameson entre dois tipos de objetos – os artefatos surrealistas, portadores das dimensões do desejo e do imaginário, e os ícones mais vistosos da cultura de massa – não será objeto de uma reflexão comparativa, que não caberia no espaço dessa comunicação. O que se tentará fazer será testar a hipótese do autor à luz de um elemento que ele destaca no caso do
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Surrealismo, mas não da Pop Art: a presença da fotografia enquanto elemento qualificador de uma determinada percepção do real. Confrontados com uma paisagem, que William C. Seitz descreve nos termos de um “collage environment”, os artistas da segunda metade do século XX adotam uma atitude aberta diante de um ambiente urbano caracterizado pela presença de “letreiros confusos, luzes, anúncios, filmes comerciais, cemitérios de automóveis, detritos de bairros miseráveis”.3 Concebendo a cidade como “um fenômeno de comunicação”, os artistas pop inauguram a ideologia do “aprendendo com Las Vegas”, e propõem, como farão, em 1972, Robert Venturi, Denise Scott Brown e Steven Izenour, “questionar o modo como vemos as coisas”.4 O questionamento de um modo de ver codificado desdobra-se em várias direções, tendo como epicentro as múltiplas imagens que constelam a paisagem urbana, sob forma de símbolos de status (automóveis, objetos domésticos, alimentos, residências, etc.), publicidade, ícones técnicos, mitos de massa e simbologia sexual.5 Se a imagem está no centro das operações pop, não admira que os artistas lancem mão da fotografia, concebida quer como um estímulo visual tão enraizado no inconsciente que necessita ser redefinido como objeto e descritor mecânico, quer como um processo que permite controlar os diferentes estágios do desenvolvimento mecânico da obra.6 Graças à fotografia, os procedimentos reprodutivos são inseridos nos processos artísticos de diferentes maneiras, podendo ser destacadas algumas incidências como a concepção de ampliação inerente a muitas obras e a preferência pela técnica serigráfica por parte de um artista como Andy Warhol. Ampliações são, sem dúvida, a representação do nu feminino, despersonalizado e destituído de toda sensualidade, levada a cabo por Tom Wesselmann com uma técnica deri-
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vada da publicidade; a justaposição de fragmentos do cotidiano que dão a ver a precariedade e o caráter provisório das mensagens veiculadas pelos sistemas de comunicação social, apresentada por James Rosenquist com os recursos técnicos, as cores e a simbologia elementar da linguagem publicitária; a transposição gigantesca das imagens das histórias em quadrinhos feita por Roy Lichtenstein, que se vale da gama cromática (preto e branco, vermelho, azul e amarelo) e da retícula fotográfica dos originais; a comida de dimensões pantagruélicas valorizada por Claes Oldenburg, que pode tanto lembrar uma sociedade afluente em busca de gratificação quanto a obsessão oral que caracteriza a cultura norte-americana. Ao usarem imagens e recursos fotográficos, os artistas pop não se limitam a propor um registro do cotidiano. Como lembra Mario Amaya, a fotografia, em suas mãos, “perde misteriosamente todo significado como um descritor, tornando-se um meio de puro design”, a apontar para a nova natureza da realidade quer na arte, quer na vida7, marcada pela dimensão do artifício. A idéia de Amaya de que a Pop Art não se limita a um simples registro ganha reforço se se atentar para uma das estratégias adotadas pelos artistas na apresentação dos objetos: o deslocamento, presente nos quadrinhos ampliados de Lichtenstein, nas latas de sopa e nas garrafas de Coca-Cola de Warhol, nos objetos gigantescos de Oldenburg e nas imagens de derivação publicitária de Wesselmann e Rosenquist. Um elemento serve de traço unificador: o isolamento no qual o objeto é apresentado, separado de seu contexto por uma espécie de enquadramento fotográfico. Segundo Claudio Marra, o isolamento proposto pelos artistas pop reveste-se de dois significados: remete a uma relação unívoca com o mundo e subtrai o objeto do curto-cir-
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cuito do uso prático no qual está mergulhado. No primeiro caso, o isolamento evidencia uma suspensão de juízo, uma tomada de consciência sem escolha, uma vez que o objeto, subtraído do contexto de valores que poderiam conferir-lhe um significado, vale apenas por si. No segundo caso, assiste-se ao estranhamento do objeto, o qual, tendo perdido suas finalidades práticas, torna-se portador de uma espécie de percepção absoluta, de clara derivação fotográfica.8 Embora isolados do contexto, os objetos que comparecem nas obras dos artistas pop são chamados por eles de “minha paisagem”9, o que não deixa de ser significativo, pois aponta, mais uma vez, para uma relação com a realidade mediada pelo artifício e pelas estruturas tecnológicas. O artista pop mantém com os objetos uma relação destituída de preconceitos e dissimulações. Escolhidos por estarem ali, por integrarem o novo contexto urbano, os objetos são aceitos em sua alteridade, em sua onipresença, em sua padronização, não sendo transformados em veículos de idéias estéticas, morais ou políticas. Evidenciam sem pejo sua condição de mercadoria, sem serem portadores de significados desveladores do inconsciente e do desejo, como no Surrealismo. As latas de sopa Campbell, que se tornaram um dos emblemas da relação da Pop Art com o universo da mercadoria, não representam a primeira escolha de Warhol. Seu primeiro interesse é despertado por outros objetos emblemáticos da sociedade de consumo – televisor, aquecedor de água, aspirador de pó, furadeira –, acompanhados por seus respectivos preços e representados com as cores dos anúncios publicitários originais veiculados pela imprensa, ou seja, preto e branco. O uso de fontes fotográficas explícitas nessas obras datadas de 1960 desdobra-se, dois anos mais tarde, num olhar moldado por qualidades
precisas da imagem técnica – mecanização, serialidade e reprodutibilidade – que o artista aplica na representação das latas de sopa Campbell e das garrafas de Coca-Cola.10 A ambientação A loja, apresentada por Oldenburg em dezembro de 1961, desperta um outro paralelo com a fotografia, embora de natureza diferente das operações de Warhol. Para o crítico Jack Kroll, Oldenburg seria “o Cecil Beaton da regressiva zona degradada de nossa inocência perdida e levemente mal cheirosa”, o que acaba por colocar entre parênteses a tradição de reportagem objetiva e reminiscência histórica associada ao Lower East Side, o bairro de Nova Iorque a que o artista fazia alusão com sua ambientação, inspirada numa loja de descontos. Ao ser vista através das lentes de um fotógrafo associado à alta costura, essa região da cidade torna-se um objeto artístico e reveste da mesma qualidade o mundo do comércio, que passa a ser tratado como um espetáculo estético.11 Se as imagens comerciais de Warhol e Oldenburg suscitam uma visão fotográfica, que reafirma a relação intrínseca entre aparatos tecnológicos e Pop Art, a problemática da fotografia é ainda mais evidente no segundo grande eixo da poética, o relativo aos valores da cultura de massa. Quem mais se destaca nele é Warhol, por explorar vários ícones dessa cultura, derivados diretamente do jornalismo. Num primeiro momento (1961-1962), o artista pinta em acrílico uma primeira página notavelmente ampliada de jornais como o New York Post, o Daily News e o New York Mirror. Esse primeiro interesse por imagens provenientes do universo da comunicação de massa multiplica-se, levando-o a buscar na imprensa ou nos stills publicitários fotografias de figuras e cenas emblemáticas de uma nova cultura visual. Entre as primeiras, privilegia as imagens de estrelas do cinema, do espetáculo e da política, como Marilyn Monroe (1962), Elvis
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Presley (1964), Liz Taylor (1964) e Jackie Kennedy (1965). Em relação às segundas, manifesta preferência por acontecimentos do cotidiano, como suicídios, motins, acidentes automobilísticos, catástrofes, etc. Em muitas dessas obras, Warhol não se limita à apropriação de fotografias; leva seu gesto mais longe, aplicando em seus trabalhos um dos dispositivos fundamentais da imagem técnica, a repetição. Ao lidar, de maneira oblíqua, com a idéia de unidade e/ou identidade enquanto portadora de sentido, o artista estaria, de acordo com Oscar Masotta, colocando em pauta a questão do código. Longe de pretenderem expressar, suas repetições visam significar, isto é, “fazer-nos sentir a correlação entre dois significantes que se opõem (multiplicação-identidade) com dois significados que também se opõem (não-sentido-sentido)”, confrontando o espectador com a presença do código. Diferentemente de um artista como Arman, que transforma a quantidade em qualidade, ao fazer de suas acumulações um campo de problemas pictóricos, Warhol explora um campo de relações lógicas graças a uma imagem (multiplicada em termos de conjunto) previamente despojada de tensões gestálticas e de todo dinamismo interno. Pelo fato de a apreensão de suas obras se dar na descontinuidade, por sucessivas operações corporais, o crítico argentino acredita que o que ele produz são signos e não imagens, posto que a imagem é “um ato único, espontâneo e sintético da consciência”. Apesar dessa ressalva, que apontaria para a “identidade de indiferença” de cada imagem, Masotta afirma, por fim, a ambivalência de significados de que os trabalhos de Warhol seriam portadores: eles tanto apontam para o sentido, isto é, para a multiplicidade como signo no interior de um código, quanto para o não-sentido, ou seja, para o absurdo, para a “queda caótica da cultura na natureza”.12
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A repetição mobilizada por Warhol é analisada por outro prisma por Christopher Finch, que toma como ponto de partida Acidente branco (1963). A fotografia não poderia ser mais horrendamente real, mas, multiplicada, torna-se, de algum modo, dependente do formato da tela, distanciando o observador do acontecimento. Se o artista transforma a imagem de um fato real numa obra devedora da concepção pós-cubista do espaço e das massas nele reunidas como uma coisa em si, não deixa, ao mesmo tempo, de lançar mão da estética do tédio, própria da programação televisiva. Warhol transfere para seu trabalho aquele senso de distanciamento provocado no espectador pela repetição monótona de acontecimentos violentos, mas consegue um efeito diferente do da televisão, na medida em que retém o interesse de seus observadores.13
Fig. 1: ANDY WARHOL - White Car Crash. Serigrafia s/ tela, 1963.
Por viver numa paisagem configurada pelos meios de comunicação de massa, o artista pop não poderia deixar de usar imagens fotográficas, uma vez que a percepção da re-
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alidade do habitante das cidades foi profundamente alterada pelo predomínio do artifício. A fotografia não é um atalho para evitar a fatura manual do quadro, mas o reconhecimento da condição de existência objetiva que a imagem técnica adquire aos olhos do usuário: algo não tangível, mas dotado de todos os atributos da realidade corriqueira.14 Diante dessas evidências, é possível subscrever na íntegra a hipótese de Jameson? Um autor como Simón Marchán Fiz, embora considere a Pop Art como “a tendência mais decisiva na evolução da representação da década de 1960”, não deixa de detectar na impessoalidade, objetividade e neutralidade ostentadas pelos artistas associados a ela uma forma de apresentação do status quo sem qualquer desejo de modificá-lo. Isso explicaria não só o uso de processos mecânicos, sobretudo a fotografia, mas também a falta de qualquer crítica em sentido estrito: “Embora a ‘pop’ rechace as convenções estilísticas e temáticas da tradição aristocrática da arte e assuma o cotidiano e o banal, submete-se, praticamente sempre, aos valores simbólicos do sistema estabelecido. Revela ser a arte de uma sociedade capitalista altamente desenvolvida. A relação com essa sociedade dá-se pela técnica mecânica de reprodução e pelo princípio de multiplicação de massa, e, ainda, pelas convenções estilísticas e unidades temáticas escolhidas. Apresenta, pois, os produtos de massa e suas implicações de um modo quase literal. Embora, às vezes, se possa detectar alguma distância crítica ou irônica, pretende, via de regra, ser ‘neutra’. (...) As obras são radicais na banalidade consciente do objeto e conseqüentes na instauração da realidade do mundo da mercadoria. Estabelecem relações de ordem entre o mundo do consumidor e o mercantil, elevando tudo isso à categoria artística, convertendo-o em estética.”
A ‘neutralidade’ aparente resolve-se na identificação entre o mundo da arte e o da
mercadoria. Essa identificação tem seu lado progressivo nas novas propostas da linguagem artística. Por outro lado, apresenta seu lado conformista, regressivo e, até mesmo, repressivo em termos de totalidade social na aparente ordem e conciliação estética, não real, que recusa à arte toda possibilidade de antagonismo e negação. Exceto poucos casos em algumas obras de Kitaj, Tilson, Warhol e outros, raramente é possível detectar sinais críticos. Nunca coloca em questão a ideologia da manipulação e se movimenta, em geral, no contexto da falácia do popular, denunciada no início”.15 A poética da Pop Art é suficientemente ambígua para ser interpretada a partir de parâmetros opostos aos de Jameson e Marchán Fiz, em vários níveis. Em relação à presença determinante do objeto, é inegável que, graças a ele, foram superados determinados valores estéticos tradicionais, baseados na perenidade e na unicidade, tendo sido abertas novas possibilidades à criação artística, sobretudo a de relacionar-se com o universo urbano de maneira franca, sem atentar para a oposição (canônica) entre estético e não-estético.16 Se os artistas pop despertam a atenção do espectador para os aspectos estéticos do cotidiano, levam-no também, embora não de modo frontal – nos moldes da anterior noção de engajamento – a perceber que há algo de inquietante neste mesmo cotidiano e nos objetos onipresentes em suas telas e no ambiente urbano. Mergulhada numa nova idéia de cidade, moldada pelo predomínio do consumo e da comunicação, a Pop Art é, a seu modo, uma interpretação dessa nova situação, produzindo efeitos de estranhamento, graças aos recursos estilísticos utilizados, e negando, com suas imagens efêmeras, a eternidade dos ícones da história da arte. Imagem de um mundo sem ilusões, no qual a banalidade cotidiana se desdobra em vitrines, cartazes e no jogo 223
cadernos da pós-graduação de reflexos da sociedade do espetáculo17, a Pop Art traz em seu bojo a problemática do enfraquecimento do sujeito e da ascensão dos códigos sociais, criando uma cenografia para o banal e para o objeto, despido de sua antiga percepção empática. Confrontado com o novo universo da tecnologia da informação que, naquele momento, estava sendo analisado por Marshall McLuhan numa obra seminal como Understanding media (Os meios de comunicação de massa como extensões do homem, 1964), o artista pop não deixa de prestar atenção aos significados presentes nas estruturas tecnológicas. O próprio Mc Lunhan, numa conferência proferida em 1966, estabelece uma relação frutífera entre Pop Art, meio urbano e novas tecnologias, ao detectar na vertente “o reconhecimento de que o próprio ambiente exterior pode ser processado como arte” e a possibilidade de “treinar a percepção humana” para uma realidade inédita, a do “imediatismo” e da “totalidade eletrônica”.18
do retrato fotográfico (UFMG, 2004). Organizadora de Modernidade e modernismo no Brasil. (Mercado das Letras, 1994) e Arte e política: algumas possibilidades de leitura. (C/ ARTE, FAPESP, 1998). Recebeu o Prêmio Jabuti de Ciências Humanas pelo livro: O futurismo paulista, e o Prêmio Sérgio Milliet da Associação Brasileira de Críticos de Arte pelo livro: Cândido Portinari.
O olhar que o artista pop lança sobre a paisagem urbana tem como trâmite as imagens produzidas pelos meios de comunicação de massa. Em seu universo, feito de simulacros, mitos midiáticos, ícones pré-constituídos, não cabem mais os valores da modernidade. O significado epifânico inerente aos objetos surrealistas é substituído pela “mensagem do meio”, teorizada por Mc Luhan, abrindo caminho para um novo momento cultural, não por acaso denominado de pós-moderno.
9. COMPTON, Michael. Pop Art. London: Hamlyn, p. 34. 1970.
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Investigação realizada com uma bolsa de Produtividade em Pesquisa do CNPq. O presente artigo é um excerto da conferência “Imagens do urbano: do moderno ao contemporâneo”, proferida no Seminário Nacional “Dimensões do urbano” (Criciúma, UNESC, maio de 2006).
Annateresa Fabris – Professora Titular do Programa de PósGraduação em Artes da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo - ECA/USP e pesquisadora do CNPq, É autora, entre diversos outros títulos, de Futurismo: uma poética da modernidade (Perspectiva/EDUSP, 1987), Portinari, pintor social (Perspectiva/EDUSP, 1990), O futurismo paulista (Perspectiva/EDUSP, 1995), Identidades virtuais. Uma leitura
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Notas 1. JAMESON, Fredric. Marxismo e forma: teorias dialéticas da literatura no século XX. São Paulo: Hucitec, pp. 85-86. 1985. 2. Idem., p. 86. 3. LIPPARD, Lucy. “O ‘pop’ de Nova Iorque”. In: Lippard, Lucy et al. A arte pop. Lisboa: Editorial Verbo, p. 79. 1973. 4. VENTURI, Robert et al. Aprendendo com Las Vegas. São Paulo: Cosac & Naify, pp. 25 e 27. 2003. 5. MARCHÁN FIZ, Simón. Del arte objetual al arte de concepto (1960-1974). Madrid: Ediciones Akal, pp. 42-44. 1997. 6. AMAYA, Mario. Pop Art... and after. New York: The Viking Press, p. 22; MARCHÁN, op. cit., p. 38. 1966. 7. AMAYA. Idem, p. 27. 8. MARRA, Claudio. Fotografia e pittura nel Novecento: una storia “senza combattimento”. Milano: Bruno Mondadori, pp. 147-149. 1999.
10. ROUILLÉ, André. La photographie: entre document et art contemporain. Paris: Gallimard, pp. 410-411. 2005. 11. WHITING, Cécile. A taste for pop: pop art, gender and consumer culture. Cambridge: Cambridge: University Press, p. 28. 1997. 12. MASOTTA, Oscar. El “pop art”. Buenos Aires: Editorial Columba, pp. 64-65, 71-75. 1967. 13. FINCH, Christopher. Pop Art: object and image. London: Studio Vista, pp. 149-150. 1968. 14. Idem, p. 98. 15. MARCHÁN, op. cit., pp. 47-49. 16. Charles Schultz, num desenho animado da turma do Charlie Brown, cria uma situação que demonstra a penetração da estética pop na sociedade norte-americana. Durante uma visita ao museu de arte moderna, algumas crianças, entre as quais Charlie Brown e Patty Pimentinha, se afastam do grupo e acabam entrando num supermercado. Tomam os produtos expostos nas prateleiras por obras de arte e, no relatório apresentado no dia seguinte, demonstram ter realizado uma experiência de fruição estética. 17. PRADEL, Jean-Louis. L’art contemporain depuis 1945. Paris: Bordas, p. 39. 1992. 18. MCLUHAN, Marshall. “O meio é a mensagem”. In: McLuhan por McLuhan: conferências e entrevistas. Rio de Janeiro: Ediouro, p. 130. 2005.
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Notas sobre arte e política Celso Favaretto
1. As modalidades artísticas que enfatizam a idéia de participação parecem ser muito apropriadas para se pensar relações de arte e política, pois aí a “partilha do sensível” aparece com forte evidência. Sabe-se que na arte moderna, especialmente a de vanguarda, a participação aparece quase como cumprimento de algo inevitável, como se fosse, desde os construtivistas russos, um suposto dos desenvolvimentos das proposições e experimentações – um suposto que, freqüentemente, é emblematizado no desejo de passar da arte à vida, de pensar a arte e a vida compartilhadas socialmente. A participação surge, digamos, para suprir um deficit de ação, suposta imanente na arte desde os primórdios da arte moderna. 2. Fala-se num revival da participação na arte contemporânea das últimas décadas, depois dos grandes investimentos na participação nos anos de 1960-70 e nos desinvestimentos dos anos de 1980, no quadro do que foi considerado como pós-moderno. Mas, parece que a participação que não mais investe o político, como o que ocorria na década de 1960, virou consensual, manifestando-se por experiências sem grande interesse e vitalidade, quase sempre referidas direta ou indiretamente a esquemas da recepção midiática. Parece que as experiências mais recentes ressentem-se da falta daquilo que nos anos 1960-70 constituía-se na força de toda arte nova, de todo interesse crítico centrado
na importante questão – o que é a arte? –, e de todo o trabalho de extensão do campo da arte e das tentativas de fazer da arte um lugar de resistência no interior do campo social. 3. O que é interessante de se pensar é se a atual reproposição da “imanência” tem a ver com a insatisfação dos próprios artistas a respeito do “valor social da arte” ou com o apaziguamento crítico das tensões e debates que envolveram as discussões sobre a “função social” da arte moderna de vanguarda. No Brasil, a questão foi muito claramente enfrentada nos anos 1960-70, delineando-se nos projetos, programas e nos debates, o essencial das proposições sobre a imanência do político na arte e vice-versa – tanto nas artes em que a participação era explícita, em seus diversos matizes, às vezes até mesmo sectários, quanto nos projetos e práticas em que a participação não era direta, mas suposta intrínseca aos processos formais de modo constituinte. Passada a febre, as ilusões, ou simplesmente a necessidade de tais projetos e debates, o que restou? Ao se repor a questão, será que o que se quer assinalar é a extraordinária indiferença que salta da arte contemporânea? Por que a volta desse assunto, se as experimentações que motivaram o debate já foram devidamente codificadas? O que incomoda? Talvez uma excessiva mornidão da arte? Ou uma falta de contundência, quando e onde há claras intenções em significar o político? Mais ainda: porque a aposta na participação não mais é
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operante, caindo na indiferença? Seriam, estas práticas artísticas apenas práticas “compensatórias”, porque as “intervenções” não teriam mais a eficácia que tiveram nos anos 60? E que eficácia teria sido a daquela época? 4. Tratava-se, naquele tempo, de propor a arte como modalidade de intervenção na “realidade” como um todo, ou especificamente em alguns de seus aspectos, como o urbano, ou como intervenção no sistema de produção cultural e de comunicação. Basta lembrar a novidade da intervenção tropicalista nos festivais de música popular dos anos de 1960, por exemplo. Enfim, tratava-se de fazer a crítica dos lugares institucionalizados de evidenciação e de circulação da arte. Uma arte da ação, de convite, exigência ou imposição de participação, que seria irrecuperável pelo princípio da representação, concebia experiências que implicavam o coletivo, no modo de se apresentar e na significação, visando quase sempre a uma eficácia imediata, e mais, a uma eficácia simbólica. Estas experiências configuravam novos modos de sentir, de relacionar-se, de agir socialmente, com que pretendiam induzir “novas formas da subjetividade política”1, pelo entendimento que faziam da fusão da arte com a vida. Tempo das ilusões (revolucionárias e dos comportamentos); tempo “das promessas da emancipação”, muito diversa da desilusão histórica recente2. Aliás, dada esta visada da desilusão, entende-se porque a reposição da “participação” se faz ao modo da “reparação”e da reconciliação3. As tendências mais significativas da arte brasileira dos anos 1960, e mesmo já dos 1950, estiveram comprometidas com o imperativo modernista da emancipação; as diferenças entre os projetos dependiam da maneira como compreendiam a imbricação de arte e política, ao articularem teorias e práticas às exigências da realidade brasileira, que se impunham como necessidade.
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5. Considerando, como diz Rancière, que “as práticas artísticas são ‘maneiras de fazer’ que intervêm na distribuição geral das maneiras de fazer e nas relações com maneiras de ser e formas de visibilidade” tratava-se então de inventar proposições, soluções imaginativas, que por uma ação que visava a resultados esperados – a conscientização por exemplo –, deveriam distender as formas da experiência política, como a sempre sonhada pela arte: definição de um lugar de fala, inauguração de um tempo de promessas. Lembrando Foucault, conceber a vida como arte, implicando a constituição de modos de existência, de estilos de vida, que relevam da estética e da política, pois ambas das dimensões humanas postulam regras, ainda que facultativas para o que há para se fazer, para o que se faz e para o que pode ser feito4. Imbricamento, portanto, de ética e estética, como queriam os artistas dos 1960, visionários, que viam neste modo de generalização da arte a possibilidade de reinvenção da política. E este imbricamento, como se sabe, princípio e procedimento modernos, implicava uma intervenção no próprio coração do ato artístico: o novo, o que diferencia e abre o vulto da significação, é ruptura, abolição da representação, da forma eleita, inventor da vida nova. Busca política, isto é, busca do que é “comum”, procura “das reconfigurações do sensível comum”5. Algo que remete, sem dúvida, àquilo que Deleuze denomina “enunciação coletiva”, fraturas que Rancière entende como contribuição “para a formação de coletivos de enunciação que repõem em questão a distribuição dos papéis, dos territórios e das linguagens (...) desses sujeitos políticos que recolocam em causa a partilha já dada do sensível”6. A intervenção artística deriva, assim, dos modos específicos do sensível com que se apresentam os produtos artísticos, sendo aí que se operam as transformações estéti-
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cas que podem fazer o político repercutir sensivelmente. 6. Embora às vezes ingênuos (pensados hoje, retrospectivamente, não no seu surgimento) os projetos e ações das artes dos anos 1960, enquanto prefiguravam, imaginavam, um modo solidário de vida social, emblematizadas ou alegorizadas em suas experiências, consideravam que as ações derivadas dos propostas e programas eram já agentes efetivos, de uma maneira ou outra, de transformação das relações intersubjetivas e coletivas. Acreditava-se, quase sempre, no valor simbólico das ações, na força do instante e do gesto. Ora, estes atos eram “produzidos”. Substitui-se o mito da “criação artística” pela idéia de que a invenção é “trabalho”, é “fabricação”. Considera-se, assim, que a arte realiza o mesmo princípio do trabalho – a “transformação do pensamento em experiência sensível da comunidade”7. 7. Tomemos como exemplar a maneira como Oiticica propôs a participação coletiva. A sua proposição de antiarte ambiental, além de conceito mobilizador para conjugar a reversão artística e o interesse político, enfim as dimensões ética e estética, a superação da arte, a renovação da sensibilidade e a participação, implicava o redimensionamento cultural dos protagonistas das ações. As proposições visavam a liberar as atividades do ilusionismo, para que as ações funcionassem como intervenção nos debates daquele tempo. As propostas estéticas não se desligavam da intervenção cultural. Pois, para ele, o campo de ação de sua atividade não se reduzia à crítica do sistema da arte: inscrevia-se como uma atividade coletiva, visionária, em que se interceptavam a produção de novas subjetividades e a significação social das ações. Como ele dizia, não visava com a antiarte à criação de um “mundo estético”, pela aplicação de novas estruturas artísticas ao cotidiano; nem
simplesmente diluir as estruturas no cotidiano, mas, acima de tudo, transformar os participantes “proporcionando-lhes proposições abertas ao seu exercício imaginativo”, de modo a torná-lo “objetivo em seu comportamento ético-social”. Tratava-se, portanto, de uma outra inscrição do estético: o artista enquanto motivador da criação; a arte como intervenção cultural. 8. O imaginário que conduzia o experimental de Oiticica é aquele que se interessa pela função simbólica das atividades – o que implica a suplantação da imaginação pessoal em favor de um imaginativo coletivo – e não pelos simbolismos da arte. O requisito para que isto se cumpra é que as atividades, as ações, devem supor uma adequada perspectiva crítica para a identificação das práticas culturais com efetivo poder de transgressão o que, por sua vez, provém da confrontação dos participantes com as situações. Inconformismo estético e inconformismo social coincidem na conexão de individual e coletivo. A circularidade entre experiência pessoal e experiência artística atinge uma outra ordem do simbólico e redefine o estético pelo deslocamento social da atividade artística. 9. Se, como se sugeriu, tal posição pode hoje parecer ingênua, pois teria sido uma espécie de suplemento de sentido investido na arte, por força do imaginário da participação mobilizador das esperanças daquele tempo, pode-se perguntar que possibilidades estariam hoje à disposição para realizar alguma ação com poder de exemplaridade. Como os meios à disposição são atualmente muito maiores seria de se supor que estaríamos mais perto da possibilidade de tornar eficazes as ações. Mas não é bem assim. De um lado, o valor simbólico das ações foi comprometido na raiz, pelo enfraquecimento das imagens, do seu poder de atuar nos instantes decisivos, por razões óbvias, pelo seu desgaste pelo exces-
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cadernos da pós-graduação
so de exposição. De outro, porque a proposição de situações participativas exige do artista talentos de organização, de articulação de meios diversos, além da dificuldade de se selecionar as práticas culturais e imagens com efetivo poder de interferência – na arte, nas instituições, na vida. 10. Nesta chave, em que a participação é efeito de um conjunto de requisitos materiais para a sua aparição, e supondo que a fundação política da arte mudou de posição, importa considerar um aspecto dessa arte contemporânea interessada ainda nos efeitos de participação, que se tornou quase um princípio fundamental. Referimo-nos à prática em que o aspecto “evento” é inseparável de toda a arte que tem como requisito fundante a ambientação. Pretende-se com isto provocar, além dos efeitos artísticos, um delizamento dos rituais da arte para a política. A ambição é ressignificar a participação nas condições atuais de produção, exatamente porque expõe, torna transparente, visível e sensível, o aspecto mercadoria implícito na espetacularidade do evento8. 11. Se é verdade que a arte contemporânea é em grande parte determinada pelo caráter institucional do lugar em que aparece, então a modalidade de sua apresentação, como evento, é proposta como uma possibilidade de, de algum modo, interferir na situação, já que este modo de apresentação faz parte da própria “obra” ou qualquer outra coisa que seja. De que modo? Destinado a princípio à inserção de um trabalho artístico no meio de arte, o evento é um acontecimento que vira o próprio fato artístico, confundindo as expectativas dos receptores que buscam uma experiência estética. E uma das consequências é que a experiência estética confunde-se com a realidade mais imediata da arte, com a instância do mercado e do lazer: um exercício superior da fantasia como diz sibilinamente o críti-
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co Ronaldo Brito9. No evento, tudo se torna simplesmente interessante: nada mais releva do belo ou do maravilhoso; do novo e da ruptura. O evento não propicia a fruição dos trabalhos apresentados. A passagem da simples presença à presentificação de uma experiência significativa, de que proviria o efeito estético materializado na participação, supõe que esta derive do valor exemplar dos signos articulados ou disseminados na situação. Ou seja, os eventos tiram toda a sua eficácia do poder simbólico do espetáculo. Tudo depende, diz Lyotard, da maneira como aquilo que é designado como arte é apresentado. Ora, esta apresentação tem muito a ver com a política cultural que dá suporte aos eventos. Esta arte política é “a cultura” e “a cultura é a arte de guiar a transferência”. A transferência ocorre conforme o “estilo”, a “maneira” de apresentação, de articulação dos processos e dos seus efeitos 10. Mas, se o evento tira toda a sua eficácia do poder simbólico do espetáculo isto, a princípio, implica um tempo pseudo-crítico. Poderia ser crítico? Haveria a possibilidade de se dominar aí a fuga do instante e do prazer, da simples exposição aos acontecimentos que fluem? Aos mecanismos da simples repetição? Talvez considerando-se o peso da frustração que os participantes do evento, do público de arte contemporânea, experimentam. Pois a fruição da arte contemporânea é mediada obrigatoriamente pela reflexão sobre os limites do trabalho moderno, a experiência estética não se torna contundente diretamente a partir do sensível, uma vez que a mediação da novidade, da ruptura, da significação social não são, via de regra, aparentes. Assim, não tomar a frustração como uma atitude comum, mas espessá-la, poderia ser um modo de simplesmente se recodificar a intervenção. 12. A este regime estético, de uma estética generalizada, de uma estetização difusa
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– como aquela, narcisista, que nos convida a prestar cada vez mais atenção ao corpo, ao eu, que para além do interessante que há nisto, pois devemos nos manter e nos tratar bem, se torna fastidiosa –, deve-se associar uma outra mudança do regime estético: aquele provocado pelas novas tecnologias, que propõem mudanças substanciais no estatuto da imagem na cultura contemporânea, com repercussões profundas na experiência estética. Alain Renaud propõe que a noção de visibilidade cultural está substituindo atualmente o conceito de imagem. Deste modo, as novas tecnologias estariam redefinindo a experiência estética que, freqüentemente, não mais se refere ao vivido mas à experiência virtual, com que, aliás, com a passagem do óptico ao digital, ocorre uma transformação radical no conceito de representação. Toda a questão resume-se no seguinte: saber de que modo e em qual proporção as experimentações propiciadas pelas novas tecnologias atingem a sensibilidade, atuam no sensível de modo a relegar as imagens óticas ao passado11. Annateresa Fabris, comentando as idéias de Alain Renaud, diz que “os ensaios das novas tecnologias redefinem a relação do fruidor com a obra, obrigando-o a ter uma atenção concentrada num fluxo contínuo, que só pode ser apreendido em sua totalidade ao introjetar a temporalidade proposta pelo artista, enquanto não é raro um olhar transeunte sobre os produtos tradicionais, que nada mais fazem do que exibir estruturas e relações perceptivas conhecidas a sobejo”12. Assim, pode-se dizer esta nova situação experimental corresponde a uma nova configuração do trabalho artístico, entendido agora, diz Renaud, como um “laboratório experimental da sensibilidade e do pensamento visual”. Assim sendo, estaria ocorrendo um alargamento nunca visto, desde o Renascimento, da experiência estética e do regime estético, “em direção a uma estética de procedimentos, na qual o processo se impõe sobre o objeto: a forma cede
lugar à morfogênese”. Segundo ele, “vivemos o fim da hegemonia do espetáculo fechado e estável: a cenografia subordina-se à cenologia; em direção a relações inéditas entre o Corpo, a Materialidade e o Artificial, em direção ao deslocamento tecno-estético da ordem representativa analógica”13. 13. Uma estetização generalizada pode, contudo, ser entendida de outra maneira: como alargamento da experiência estética14. Trata-se de pensar a dimensão estética da vida a partir das experiências das vanguardas, em que o questionamento da obra de arte, ou mesmo os projetos de abolição da arte, não implicam recusa da arte, antes um desejo de mais arte. Algo que deixa a sensação de que há uma continuidade possível entre os mundos representados e os espaços cotidianos. Não se trata, obviamente, do esteticismo dos românticos do fim do século XIX, ao colocarem a sua genialidade na vida e não mais na obra, ou então daquele esteticismo da obra de arte total à maneira wagneriana. E nem, obviamente, daquele esteticismo narcisista que vem da submissão do destino individual às exigências da obra de arte, como ocorre na estetização dos comportamentos como, por exemplo, a difundida pela publicidade e seu convite de embelezamento dos corpos. Há, nas existências esteticamente bem sucedidas, diz Jean Galard, uma beleza involuntária que não leva a arte em consideração, mas que requer, entretanto, uma certa arte. Esta é uma via interessante de se pensar, por exemplo, a “arte pública”, não como uma arte na rua, mas uma arte da rua. Mas a qualificação de “artístico” aplica-se “a operações, a um trabalho, cujos resultados não podem ser involuntários”. Assim, pode-se falar em “uma experiência estética da paisagem natural, onde a intenção artística é, por definição, ausente. Há uma experiência estética de certas realidades urbanas desagradáveis, como as cidades de São Paulo e do México, que podem ser interessan229
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tes. Esses lugares monstruosos são involutariamente belos, posto que mágicos – uma reminiscência, sem dúvida, das experiências surrealistas. É claro que esta oposição entre beleza premeditada e involuntária deve ser atenuada: a beleza involuntária, de uma cidade, por exemplo, não é estranha a intenções. Esta beleza é mediatizada pelo cinema, pela fotografia, pela literatura. É uma beleza produzida por palavras e imagens, que artializando nossas estruturas perceptivas, mitologizam a cidade e produzem a sua magia15. 14. Tudo isto que aqui vem sendo dito talvez possa ser equivocadamente entendido, segundo a advertência de Rancière, como “a nostalgia de uma arte instauradora de uma copresença entre homens e coisas e dos homens entre si”, num tempo em que não mais se pode radicalmente opor “a pureza das formas ao comércio das imagens”16. Mas, ao se recusar as promessas redentoras da arte e do pensamento, enfim da representação, talvez se possa fazer uma aposta: a de não nos rendermos à tentação de colmatar o vazio. Inventar, pensar, fazer arte talvez signifiquem, cada vez mais, que temos que trabalhar nos interstícios do vazio, nas falhas e nas brechas. Na linguagem, no pensamento e na arte tratase, talvez, de assumir as coisas em sua singularidade, que, freqüentemente, está na literalidade, antes da interpretação. Trata-se de descobrir, como na música, uma dicção, um timbre, uma tonalidade. Talvez seja esta a singularidade das relações da arte com a política*.
*Uma
versão preliminar deste texto foi apresentada no colóquio “A dimensão estética imanente à política”, no seminário “São Paulo S.A.- práticas estéticas, sociais e políticas em debate”, promovido por EXO experimental org. e SESC, São Paulo, 17/04/2005.
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Celso Favaretto – Mestre e Doutor em Filosofia, com concentração na área de Estética. Professor da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo - USP. Tem vários livros publicados entre eles Tropicália. Alegoria, Alegria (Kairós, 1979 e Ateliê Editorial, 1996) e A invenção de Hélio Oiticica (Edusp, 1992), além de diversos ensaios e artigos em livros coletivos, jornais e revistas.
Notas 1. RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível. São Paulo: EXO experimental org.; Ed. 34, p. 11, 2005. 2. Idem. 3. ARDENNE, Paul. Un art contextuel. Paris: Flammarion, p. 203, 2004. 4. DELEUZE, Gilles. Conversações. São Paulo: Ed. 34, p. 119, 1992. 5. RANCIÈRE, op. cit., p. 61 6. Idem, p. 60. 7. Ibidem, p. 67. 8. Cf. nosso texto, “Arte do tempo: o evento”. In: Sexta feira, nº 5 [tempo]. São Paulo: Hedra, p. 110 e ss, 2000. 9. BRITO, Ronaldo. “Pós, pré, quase ou anti?”. Folha de São Paulo, p. 5. Folhetim, nº 350, p. 5, 2/10/1983. 10. LYOTARD, J-F. Moralidades pós-modernas. Campinas: SP, Papirus, p. 27 e ss. 11. RENAUD, Alain. “Nouvelles images, nouvelle culture: vers un “imaginaire numérique” (ou “Il faut imaginer un Démiurge heureux”). In: Cahiers Internationaux de Sociologie , v. LXXXII. Paris: PUF, 1987. 12. FABRIS, Annateresa. “Redefinindo o conceito de imagem”. Revista Brasileira de História [Dossiê: arte e linguagens], nº 35, v. 18. São Paulo: ANPUH/ Humanitas, p. 221, 1998. 13. RENAUD, op. cit., p. 126. 14. GALARD, Jean. ”Repéres pour l’élargissement de l’expérience esthétique”. In: Diogène, nº 119. Paris, 1982. 15. GALARD, Jean. “Beauté involuntaire et beauté prémédité”. In: Temps Libre nº 12. Paris, p. 112, 1984. 16. RANCIÈRE, Jacques. “O destino das imagens”. In: Folha de S.Paulo, Mais!, p. 16, 28/01/2001.
instituto de artes colóquio
Convergências na Arte Contemporânea
O Corpo da Arte Daniela Bezerra Maria Beatriz de Medeiros
Brasília, 26 de maio de 2006, 19h30
— Alô! — Alô! Oi, Dani. Fala. — Seguinte, nossa concentração em frente ao Clube de Golfe não vai ser possível. O local está cercado. São cinco carros da ROTAN. E tem montes de policiais armados.
CCBB. Está tudo cercado, tem um monte de polícia, ROTAN, etc.,mas eles não estão controlando os convites na entrada. Dá para entrar todo mundo. Avisa todo mundo que dá para entrar. — Esperamos vocês no estacionamento. Venham rápido, estamos cercados. Mensagens de celular para todo mundo.
Daniela se referia ao nosso encontro marcado (cerca de uns 20 artistas) em frente ao Clube de Golfe, que fica próximo ao Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB), para protestar contra a censura à exposição Erótica; os sentidos da arte, da qual constavam trabalhos de artistas brasileiros e outros. Essa exposição, em Brasília, foi substituída por outra: Picasso. Paixão e erotismo. Erotismo estrangeiro pode. Criticar a igreja e sua incansável e verdadeira pedofilia, não. O local onde fica o CCBB é, de acordo com o Plano de Brasília, ermo. Nenhuma concentração ali seria visível na cidade. Mas as aberturas de suas exposições são muito concorridas, e, como não tínhamos convite, ficaríamos bloqueando a entrada, fingindo buscar os convites nos carros. No entanto...
— Caramba! Onde vocês estão? — Estamos no estacionamento do
Fomos. Entramos. Éramos mais ou menos quinze.
Fig. 1: “contra censura 1”
É de sentar e chorar: Pura verdade: cinco carros, muitas motos, muitas armas e muitos policiais com coletes à prova de bala contra artistas protestando contra uma infeliz censura: 231
cadernos da pós-graduação
“Depois de três reuniões tensas, realizadas entre a semana passada e ontem, a direção do Banco do Brasil decidiu cancelar a exposição Erótica - os sentidos na arte em Brasília. O motivo do cancelamento é o impasse causado pela censura a uma obra da artista plástica Márcia X, que mostra dois pênis cruzados feitos com rosários religiosos. A mostra, que passou por São Paulo e pelo Rio, seria inaugurada no próximo dia 15. Os diretores do Banco do Brasil não aceitaram a reintegração do trabalho de Márcia X na exposição. Com isso, colecionadores e artistas, como Rosângela Rennó e Franklin Cassaro, ameaçavam retirar suas obras da exposição. Não houve acordo.” 1
Artistas participantes da exposição censurada: Alair Gomes, Albert Marquet, Alfredo Nicolaiewsky, Almeida Junior, André Masson, Anita Malfatti, Antônio Dias, Antônio Gomide, Antônio Henrique Amaral, Auguste Rodin, Cláudio Mubarac, Duane Michals, Edgard de Souza, Eliseu Visconti, Emygdio de Barros, Eric Fischl, Felix Braquemond, Fernanda Preto, Florian Raiss, Francis Picabia, François Boucher, Franklin Cassaro, Hans Bellmer, Ismael Nery, Ivan Serpa, Jean-Jacques Lebel, Jules Pascin, Luiz Zerbini, Lygia Pape, Manolo Hugué, Marcelo Grassmann, Marcelo Krasilcic, Marcia X, Marco Paulo Rolla, Nan Goldin, Newton Mesquita, Pablo Picasso, Paul Éluard, Paul Gauguin, Pierre Molinier, Pitágoras, Rodolpho Bernardelli, Rosana Monerath, Rosângela Rennó, Thomas Glassford, Thomas Ruff, Tunga, Ubirajara Ribeiro, Vera Lúcia Brandão Martins, Vicente do Rego Monteiro, Vik Muniz, Wesley Duke Lee, além de peças arqueológicas do Museo Rafael Larco Herrera (Peru) e Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo. A exposição estava cheia, digo, os pilotis do CCBB estavam cheios. Na exposição, nem entramos. Havíamos feito, com spray e estêncil, camisetas com a estampa da obra 232
de Márcia X, Desenhando com terços, que mostra diversas duplas de rosários religiosos cruzados, sendo que cada terço é disposto em forma de pênis. Aqueles que não tinham camisetas vestiram ‘batas de padre’ (de fato, velhas becas de formatura da universidade)... Tínhamos 30 ‘batas de padre’. No Rio de Janeiro, onde começou o processo de censura à exposição, com o encobrimento da obra da Márcia X, e depois, em protesto, com a retirada de trabalhos por artistas, como Rosangela Rennó, além de outros liderados pela galeria “A Gentil Carioca” (Márcio Botner, Laura Lima e Ernesto Neto com colaboração de Ricardo Basbaum), também haviam sido feitas camisetas com a obra de Márcia X e protestos em frente ao CCBB daquela cidade. O Canal Contemporâneo (Patrícia Canetti) divulgou amplamente a censura e realizou um abaixo-assinado contra a censura. Foram recolhidas cerca de 800 assinaturas. Na vernissage em Brasília juntaram-se a nós mais uns 15 artistas e a Drag Queen Lilith (Cyntia Carla). Caminhamos para a entrada da exposição: televisão, jornais, entrevistas. Nunca havia visto tanta imprensa em uma abertura de exposição no CCBB. E ela lá estava ‘para nós’.
Fig. 2: “contra censura 4”
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Depois, ficamos nos perguntando se alguns daqueles que nos entrevistavam, gravavam imagens, barravam a nossa passagem para dentro da exposição não seriam jornalistas, mas pessoal do CCBB. Aos poucos fomos pintando ‘terços’ com pontos, como se fossem as contas do rosário, em forma de pênis, nas costas das ‘batas de padres’. Diversos presentes vestiram as batas restantes. Entrevistas e mais entrevistas: pululavam repórteres e os policias armados de coletes à prova de bala olhando de longe. Formamos um grande círculo no centro do qual foram dispostos baguetes e pãezinhos formando dois grandes pênis. ‘Ave Mariíiiia’... foi entoada repetidamente, sem sair dessas palavras, pois ninguém conhecia o resto da famigerada canção. Lilith comia bananas, outras pessoas do público pediam bananas e se juntaram a nós. O pão foi distribuído. Ao oferecer os pedaços de pão aos presen-
tes, dizíamos: O corpo da arte. O corpo da arte. Alguns respondiam: Amém! O gran final contou com a participação da lançadora de fogo Iaci Szajnweld de Menezes, semidespida com um enorme ‘terço‘ trançado no corpo.
Fig. 4: “contra censura 3”
Numa semana na qual o Museu de Arte de São Paulo - MASP fica sem luz; numa semana na qual se anuncia o provável fechamento do Museu da Pampulha; numa semana na qual 40 dos 100 estudantes que participavam do 8º Fórum Nacional das Entidades de Pedagogia (FONEP), em Goiânia, foram protestar na frente do Ministério da Educação (MEC), em Brasília, contra a homologação das diretrizes curriculares do curso de Pedagogia, e foram presos; numa quinzena na qual o filme: O código Da Vinci quase foi censurado; numa quinzena na qual se discute na Câmara Legislativa de Goiânia a possibilidade de censurar a mostra: Rumos, organizada pelo Itaú Cultural; num semestre no qual o livro: Brazilian Art recebeu 1 milhão de reais do Ministério da Cultura (MINC) para produzir uma publicação que deverá ser vendida por R$ 250,00 cada, ficamos apenas com questões:
Fig. 3: “contra censura 2”
“O que significa política cultural para Bancos que dizem fazer cultura sem integrar, em seus qua-
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cadernos da pós-graduação
dros, pessoal especializado em arte? Qual é a política cultural do governo Lula? Qual a posição, de fato, do MINC, frente a toda essa realidade? Lembremos, um novo museu foi construído em Brasília. Projetos curatoriais e políticas públicas para seu real funcionamento são amplamente ignorados pela comunidade das artes.”
têm medo? De tudo. Quando não se está seguro dos passos dados, porque não há rumo nem terreno traçado, a tudo se teme. Esperamos sinceramente que o Corpo da Arte possa levá-los ao paraíso para sempre perdido. Conclusão:
A alegação da presença de tantos policiais veio com a justificativa de que o Banco temia que os artistas participantes do protesto deteriorassem as obras de Picasso ali expostas. Será que a polícia sabe a diferença entre arte, artistas, estudantes e PCC? Cabe lembrar que a exposição Picasso. paixão e erotismo trazia o pior Picasso que já vi na minha vida e muito pouco erotismo. Ainda sobre a exposição censurada, assim explica Tadeu Chiarelli, professor da ECA-USP, historiador e crítico de arte: “Como a palavra ‘erotica’ na língua portuguesa é empregada exclusivamente como adjetivo, para dar título à exposição foi escolhida a palavra inglesa ‘erotica’, que também é utilizada como substantivo. [...] Trata-se de uma Erótica na medida em que a exposição foi pensada como uma antologia de obras eróticas. A mostra se vale tanto de peças arqueológicas como de obras de arte de autores contemporâneos, modernos e tradicionais, nacionais e internacionais, para configurar uma reflexão sobre a arte e os meandros que percorre para interpretar o impulso sexual. [...] Respeitada a individualidade de cada peça exibida, elas estão reunidas formando núcleos que problematizam e potencializam noções estabelecidas não apenas sobre sexo e erotismo na arte, mas também sobre história, antropologia e psicanálise.” 2
1- nossos projetos nunca mais serão escolhidos para serem realizados no CCBB. 2- Márcia X e Desenhando com terços entraram definitivamente para a história da arte no Brasil. Ao que ficamos muito gratos. “O artista plástico Ricardo Ventura, viúvo de Márcia X, acha que a decisão do BB dará uma projeção que a obra talvez não tivesse se a exposição em Brasília fosse mantida: Se o Banco do Brasil queria evitar que a obra fosse divulgada, o tiro saiu pela culatra. Já tem site na China comentando a censura ao trabalho.” 3
Maria Beatriz de Medeiros - É artista plástica, professora Doutora da Universidade de Brasília - UnB. Pesquisadora do CNPq. Representante Adjunta para a área de Artes na CAPES. Coordenadora do Grupo Corpos Informáticos. Participa do grupo de Intervenções Urbanas de Brasília. www.corpos.org. Daniela Bezerra - É Artista Visual /Plástica, residente em Brasília. Diversas exposições individuais e coletivas. Seu trabalho faz parte do acervo do Mozarthaus Museum em SalzburgÁustria. Trabalha junto a diferentes grupos no Distrito Federal, tais como 0.17, grupo de Intervenções Urbanas de Brasília, Encontro de artistas Coração. Representante de Brasília nas Câmaras setoriais de artes visuais, suplente da Câmara Federal.
Notas 1. CARVALHO, Mário César. BB cancela a exposição Erótica em Brasília. Folha de São Paulo. Disponível em: http:// www1.folha.uol.com.br/folha/cotiano/ult95u121045.shtml. Acesso em fevereiro de 2007. 2. http://www.noitesapaulo.com.br/ccbb/index.htm 3. CARVALHO, op. cit.
Em que país será que vivemos? De que adianta pensar e fazer arte neste país? De que as ‘autoridades’ e sua colega elite branca 234
Imagens Contra censura 1, 2, 3, 4 in mbm1 escritos mbm1.
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Arte e novas mídias Lucia Santaella
Antes de entrar especificamente no tema da arte e novas mídias, sou irresistivelmente levada pela necessidade de esclarecer o sentido em que emprego a palavra mídia, pois essa palavra, seu plural “mídias” e o adjetivo “midiático” têm sido utilizados à saciedade, sem a preocupação com a demarcação mais precisa do seu significado e de seu campo de referências. Trata-se de uma palavra que vem sofrendo pelo excesso de uso e pela descaracterização do conceito. Com bastante imprecisão, muitos têm se referido a todo o complexo contexto atual sob o nome de “cultura midiática”. Essa generalização cobre o território com uma cortina de fumaça. A meu ver, para começarmos a entender o tema proposto para esta mesa, é necessário, antes de tudo, esclarecer o que se esconde por trás da generalização da palavra “mídia”. É claro que as mídias são hoje onipresentes, a começar pelo aparelho fonador, que é a primeira dentre todas as mídias. Entretanto, quais são as mídias, como se inserem na dinâmica social, em quais delas o capital está investindo, como impõem sua lógica ao conjunto da cultura? São todas questões irrespondíveis se não fizermos o esforço de precisar nossos conceitos. A confusão dos modos como nos aparecem os fatos que pretendemos compreender é proporcional à confusão conceitual.
1. Um exercício de conceituação Não muito tempo atrás, no final dos anos 1980, início dos 1990, intelectuais acadêmicos não utilizavam o termo “mídia” no Brasil. A palavra era de uso ainda restrito aos publicitários e jornalistas, para se referirem à divulgação que uma informação recebia nos meios de comunicação. Se o termo “mídia” era ainda de uso restrito, qual então era o termo empregado para se fazer referência aos meios de comunicação? Até os anos 1980, os termos da moda intelectual eram “meios de massa”, “cultura de massa”, “indústria cultural” e, com menos freqüência, “tecnologias da comunicação”. Essas expressões eram traduções das expressões correspondentes em inglês: mass media e mass culture. Quanto à “indústria cultural”, por questões políticas, este conceito foi muito mais popularizado na América Latina do que nos Estados Unidos e Europa Central. Se lançamos hoje um olhar retrospectivo dos anos 1980 para cá, essa perspectiva temporal de mais de 20 anos nos permite perceber que não foi casual a gradativa substituição de todas essas expressões anteriores por um termo genérico e bastante vago como é o termo “mídia”. A tese que venho defendendo desde o início dos anos 1990 é a de que, a partir dos anos 1980, a cultura de massas co-
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cadernos da pós-graduação
meçou cada vez mais crescentemente a perder sua hegemonia no campo da cultura.
massa” não era mais suficiente para dar conta desses novos processos de comunicação.
Antes de explicitar como venho interpretando as mídias, desde a primeira vez em que empreguei o termo no título do meu livro: Cultura das mídias, em 1992, vale a pena indicar os sentidos que essa palavra tem abarcado. Pode-se dizer que há sentidos mais estritos e sentidos mais amplos no seu campo de referência. Por volta do início dos anos 1990, com um sentido mais estrito, mídia se referia especificamente aos meios de comunicação de massa, especialmente aos meios de transmissão de notícias e informação, tais como jornais, rádio, revistas e televisão. Seu sentido foi se ampliando para se referir a qualquer meio de comunicação de massas, não apenas aos que transmitem notícias. Assim, passou-se a falar em mídia para fazer referência a uma novela de televisão ou a qualquer outro de seus programas, não apenas aos informativos. Também passou-se a chamar de mídias todos os meios de que a publicidade se serve, desde out-doors até as mensagens publicitárias veiculadas por jornal, rádio, TV. Em todos esses sentidos, a palavra “mídia” ainda está se referindo aos meios de comunicação de massa.
Entretanto, foi a emergência da cultura planetária, via redes de teleinformática, que instalou definitivamente a crise na hegemonia dos meios de massa e, com ela, o emprego da palavra “mídia” se generalizou para se referir também a todos os processos de comunicação mediados por computador. A partir de uma tal generalização, todos os meios de comunicação, inclusive os de massa, inclusive o livro, inclusive a fala, passaram a ser referidos pela rubrica de “mídia” até o ponto de qualquer meio de comunicação receber hoje a denominação genérica de “mídia” e o conjunto deles, de “mídias”, compondo aquilo que Albino Rubim chamou de Idade Mídia (2000) e outros têm chamado de cultura midiática ou era midiática1.
O termo foi se fixando cada vez mais em função do crescimento acelerado dos meios de comunicação que não podem mais ser necessariamente considerados como meios de comunicação de massa, pelo menos tal como o conceito de comunicação de massa esteve delineado até o início dos anos 1980. Quando se deu o surgimento de equipamentos técnicos propiciadores de novos processos de comunicação, tais como a multiplicação dos canais de televisão a cabo, o videocassete, o videodisco, os jogos eletrônicos, etc., esses equipamentos começaram a minar o exclusivismo dos meios de massa e, conseqüentemente, a expressão “meios de
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O uso da palavra “mídias” nas expressões em que ela aparece em inglês nos ajuda a compreender melhor uma tal expansão no seu emprego em português. Para marcar a passagem dos meios de massa aos meios digitais e as diferenças que essa passagem implica, Poster (1995) chama a era informacional ou digital de “segunda idade das mídias”2. Entretanto, muito mais comum tem sido o emprego (também utilizado por Poster) da expressão new media em oposição a mass media3. Portanto, em inglês, a expressão new media surgiu para dar conta de uma expansão dos meios de comunicação para além dos meios estritamente de massa. Lunenfeld considera a expressão “new media” ambígua e se pergunta: “O vídeo é ainda um “ new medium ”? Os sistemas operacionais são mídias? O hipertexto é um meio diferente do livro eletrônico? No fim, o autor acaba por considerar que essa expressão funciona como um termo geral, capaz de caracterizar as produções do nosso tempo,
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com a ressalva, porém, de que são novas mídias as produções que foram incorporadas ao universo digital, não importa quão similares seus resultados finais possam estar do cinema e televisão tradicionais4. Lev Manovich, no seu livro The language of new media, é um pouco mais explícito quando busca responder à questão: “o que é new media”? “Podemos começar a responder essa pergunta”, diz ele, “listando as categorias que são comumente discutidas sob esse tópico na imprensa popular: a internet, os web-sites, a multimídia computacional, os jogos eletrônicos, CD-Roms, DVD, realidade virtual. Mas isso é tudo que há nas novas mídias? E os programas de televisão que são rodados em vídeo digital e editados em estações de trabalho computadorizadas? São também novas mídias? E as composições de imagens e palavras e imagens – fotografias, ilustrações, layouts – que são criados nos computadores e então impressos em papel? Onde podemos parar com isso?” 5
Manovich conclui então que a compreensão popular identifica as novas mídias com o uso do computador para distribuição e exibição em vez de produção. Desse modo, os textos distribuídos em computador, web sites e livros eletrônicos, são considerados novas mídias, enquanto aqueles que são distribuídos em papel não o são. Do mesmo modo, fotografias em CD-Rom são tomadas como novas mídias, enquanto as impressas não o são. O autor termina por não aceitar esse tipo de distinção propondo que, por trás do emprego da expressão “novas mídias” está acontecendo uma revolução cultural profunda cujos efeitos estamos apenas começando a registrar. Assim como a prensa manual no século XIV e a fotografia no século XIX exerceram um impacto revolucionário no desenvolvimento das sociedades e culturas modernas, hoje esta-
mos no meio de uma revolução nas mídias e de uma virada nas formas de produção, distribuição e comunicação mediadas por computador, a qual deverá trazer conseqüências culturais muito mais profundas do que as anteriores. Conclusão: o emprego dos termos “mídia” e “mídias” em português alastrou-se em função da crise da hegemonia da cultura de massas, uma crise que resultou do advento de novas lógicas culturais que não mais se conformam com a lógica que é própria da cultura de massas. Infelizmente, entretanto, em português o termo “mídia” é genérico, vago e perde a distinção que ainda existe em inglês entre mass media e new media. Ora, essa vagueza no emprego do termo em português nos leva a perder a percepção das distinções que devem ser estabelecidas entre as diferentes lógicas e distintos modos de funcionamento social que regem os meios de massa e aqueles processos que não são mais regidos por essa lógica. É em função disso que venho defendendo a necessidade de se distinguir seis tipos de lógicas culturais: •
a cultura oral;
•
a escrita;
•
a impressa;
•
a cultura de massas;
•
a cultura das mídias e a
•
cibercultura.
Essas distinções me parecem imprescindíveis para compreendermos a complexidade da cultura contemporânea e, dentro dela, compreendermos não só a complexa dinâmica dos circuitos das artes, como também o papel desempenhado pelas mídias nesses circuitos. Como se pode ver, utilizo todas as palavras - “circuitos”, “artes” e “mídias” - no plural, por razões que ficarão claras mais adiante. 237
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2. Três lógicas comunicacionais distintas Para os objetivos deste artigo, vou me deter apenas nos três tipos mais recentes de formação cultural: a massiva, a das mídias e a cultura ciber. Existe um tal consenso sobre o entendimento do conceito de cultura de massas que me dispensa da necessidade de qualquer explicação para esse conceito. O mesmo não se pode dizer de cultura das mídias e cibercultura, pelo menos no sentido em que emprego essas expressões que passei a compreender como se segue. Por volta do início dos anos 1980, começaram a se intensificar cada vez mais os casamentos e misturas entre linguagens e meios, misturas essas que funcionam como um multiplicador de mídias. Estas produzem mensagens híbridas, como se pode encontrar, por exemplo, nos suplementos literários ou culturais especializados de jornais e revistas, nas revistas de cultura e de arte, no rádio-jornal, telejornal, etc. Ao mesmo tempo, novas sementes começaram a brotar no campo das mídias com o surgimento de equipamentos e dispositivos que possibilitaram o aparecimento de uma cultura do disponível e do transitório: fotocopiadoras, videocassetes e aparelhos para gravação de vídeos, equipamentos do tipo walkman e walktalk, acompanhados de uma remarcável indústria de videoclips e videogames, juntamente com a expansiva indústria de filmes em vídeo para serem alugados nas videolocadoras, tudo isso culminando no surgimento da TV a cabo. Essas tecnologias, equipamentos e as linguagens criadas para circularem neles têm como principal característica propiciar a escolha e consumo individualizados, em oposição ao consumo massivo. São esses processos que considero como constitutivos de uma cultura das mídias. Foram eles que nos arrancaram
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da inércia da recepção de mensagens impostas de fora e nos treinaram para a busca da informação e do entretenimento que desejamos encontrar. Por isso mesmo, foram esses meios e os processos de recepção que eles engendram que prepararam a sensibilidade dos usuários para a chegada dos meios digitais cuja marca principal está na busca dispersa, alinear, fragmentada, mas certamente uma busca individualizada da mensagem e da informação. Portanto, a cultura das mídias constitui-se em um período de passagem, uma ponte entre a cultura de massas e a mais recente cibercultura. A cibercultura está fundamentalmente ligada à mundialização em curso e às mudanças culturais, sociais e políticas induzidas pela mesma. Ela apóia-se sobre esquemas mentais, modos de apropriação social, práticas estatísticas muito diferentes das que conhecíamos até agora. A navegação abstrata em paisagens de informações e de conhecimentos, a criação de grupos de trabalho virtuais em escala mundial, as inúmeras formas de interação possíveis entre os cibernautas e seus mundos virtuais criam uma enorme quantidade de comportamentos inovadores cujas conseqüências sociais e culturais ainda não puderam ser suficientemente estudadas. Em suma, cada uma das formações culturais acima especificada - a cultura de massas, a cultura das mídias e a cultura digital - apresenta caracteres que lhes são próprios e que precisam ser distinguidos, sob pena de nos perdermos em um labirinto de confusões. Uma diferença gritante entre a cultura das mídias e a cultura digital, por exemplo, está no fato muito evidente de que, nesta última, está ocorrendo a convergência das mídias, um fenômeno muito distinto da convivência das mídias típica da cultura das mídias.
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Todas essas distinções que vim estabelecendo até agora visaram preparar o terreno para argumentar que as mídias não podem ser consideradas como um monolito indistinto. Cada ciclo cultural funciona socialmente de maneiras diversas. A cultura dos meios de massa, do jornal à televisão, opera de modo muito diverso da cultura das mídias e, mais ainda, do modo como opera a cibercultura. Quando levamos isso em consideração, deixamos de cometer os equívocos correntes de impor sobre um ciclo cultural critérios de julgamento que são empregados para um outro ciclo cultural distinto. Esse equívoco vem sendo cometido com muita freqüência atualmente, quando se impõem sobre a cibercultura categorias de análise e de julgamento que são próprias da cultura de massas. Aspecto relevante para o tema deste artigo diz respeito ao fato de que os distintos tipos de mídias e as eras culturais que conformam são inseparáveis das formas de socialização que são capazes de criar, de modo que o advento de cada nova mídia traz consigo um ciclo cultural que lhe é próprio e que fica impregnado de todas as contradições que caracterizam o modo de produção econômica e as conseqüentes injunções políticas em que um tal ciclo cultural toma corpo. Considerando-se que as mídias são conformadoras de novos ambientes sociais, pode-se estudar sociedades cuja cultura se molda pela oralidade, então pela escrita, mais tarde pela explosão das imagens na revolução industrial-eletrônica, etc. Esses ambientes são fundamentais para se compreender a dinâmica que cada um deles impõe sobre a produção das artes e o circuito das artes. Por isso mesmo, podemos dizer que a produção e o circuito das artes na cultura de massas são distintos da produção e circuito que são próprios da cultura das mídias e que são ainda distintos da produção e do circuito das artes na cibercultura.
3. O caldeirão de misturas da cultura e arte contemporâneas Entretanto o fator mais importante para se compreender a complexidade da cultura e artes contemporâneas encontra-se no caldeirão de misturas e hibridizações que as caracterizam. Embora cada tipo de formação cultural tenha traços específicos que diferencia uma formação cultural da outra, quando surge uma formação cultural nova, ela não leva a anterior ao desaparecimento. A cultura escrita não levou a oral ao desaparecimento, a cultura das mídias não levou a cultura de massas ao desaparecimento, e assim por diante. Ao contrário, todas as formas de cultura, desde a cultura oral até a cibercultura hoje coexistem, convivem e sincronizam-se na constituição de uma mescla cultural hipercomplexa e híbrida. É certo que, em cada período histórico, a cultura fica sob o domínio da técnica ou da tecnologia mais recente. Apesar da coexistência e das misturas entre todas as formações culturais, as mídias mais recentes acabam por se sobressair em relação às demais. É isso que vem acontecendo com as mídias digitais que instauraram a cibercultura, cuja expressão mais visível encontra-se na internet e mais recentemente nos aparelhos móveis. Contudo, esse domínio não é suficiente para asfixiar o funcionamento das formações culturais preexistentes. Afinal, a cultura comporta-se sempre como um organismo vivo e, sobretudo, inteligente, com poderes de adaptação imprevisíveis e surpreendentes. É a atual convergência das mídias no mundo ciber, na coexistência com a cultura das mídias e com a cultura de massas, juntamente com as culturas precedentes, todas ainda vivas e ativas, que tem sido responsável pelo nível de exacerbação que a densa rede de produção e circulação de bens simbólicos atingiu nos nossos dias e que é uma das mar-
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cas registradas da cultura digital. Entretanto, a atual inflação e excesso de produção cultural já começou a se fazer sentir nos anos 1960, no apogeu da cultura pop, intensificando-se nos anos 1980, justamente quando se deu o surgimento da cultura das mídias e a explosão dos debates sobre o pós-moderno, pósmodernismo e pós-modernidade. Esses debates sinalizaram o crescimento da complexidade cultural e do relevo cada vez maior da cultura na vida social. A complexidade cultural foi crescendo na medida mesma em que foram crescendo as mídias e a circulação social dos signos que por elas transitam. À maior produção somase a abertura para a cultura do outro, próximo ou distante, levando à mistura e sincretismo das culturas. Além disso, como já foi sugerido, a cultura é cumulativa. Novas mídias e as novas formações culturais que delas se originam não provocam o desaparecimento das formações culturais anteriores, o que gera justamente a enorme concentração, densidade e extensão inconsútil e abrangente da produção simbólica atual e intensifica o fluxo veloz de signos, textos, imagens, sons que configuram a trama hipercomplexa da cultura nas sociedades contemporâneas.
4. Tendências da arte e novas mídias Tendo esclarecido esses pontos que julgo cruciais para entendermos a arte na sua relação com as novas mídias, passarei a seguir a apresentar uma visão panorâmica das tendências dessa arte. As atividades artísticas abertas pela revolução digital são múltiplas e multifacetadas. Em outra ocasião (Santaella 2003: 176-180) ensaiei uma tentativa de sistematização de suas tendências. Reapresento a seguir essa sistematização, agora mais atualizada na tentativa de um possível acompanhamento dos 240
movimentos de um campo cujas fronteiras avançam a perder de vista6. Na tradição das artes computacionais dos anos 1980, a ciberarte inclui a imagem, sua modelação em 3D e a animação, assim como a música computadorizadas. Enquanto nos anos 1980 tratava-se de uma produção que começava no computador e dele saia para ser exposta em meios tradicionais, tais como, no caso das imagens, as impressões gráficas, gradativamente, o computador foi sendo cada vez mais utilizado para estender a capacidade de mídias tradicionais: a fotografia analógica manipulada digitalmente; o cinema ampliado no cinema interativo; o vídeo, no videostreaming; o texto ampliado nos fluxos interativos e alineares do hipertexto; a imagem, o som e o texto ampliados na navegação reticular da hipermídia em suporte CD-Rom ou em sites para serem visitados e interagidos, tudo isso já em plena atividade, enquanto se espera a ampliação da TV digital em TV interativa, unindo indelevelmente o computador com a televisão. Na tradição das performances, têm-se agora as performances interativas e as teleperformances que, através de webcams ou outros recursos como sensores, fazem interagir cenários virtuais com corpos presenciais, corpos virtuais com corpos presenciais e outras interações que a imaginação do artista consegue extrair dos dispositivos tecnológicos. Na tradição das instalações, vídeo-instalações e instalações multimídia, surgem as instalações interativas, as webinstalações ou ciberinstalações que levam ao limite as hibridizações de meios que sempre foram a marca registrada das instalações. Estas agora se potencializam com o uso de vídeos conectados à internet em sites abertos para a interação do internauta, com o uso de webcams que permitem transições fluidas en-
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tre ambientes físicos remotos e ambientes virtuais ou que disparam através de sensores. Enfim, as ciberinstalações hoje se constituem elas mesmas em redes encarnadas de sensores, câmeras e computadores, estes interconetados às redes do ciberespaço.
dispositivos maquínicos com o corpo, permitindo o diálogo entre o biológico e os sistemas artificiais em ambientes virtuais nos quais os dispositivos maquínicos, câmeras e sensores capturam sinais emitidos pelo corpo para processá-los e devolvê-los transmutados.
Na tradição dos eventos de telecomunicações, aparecem, via rede, os eventos de telepresença e telerrobótica, que nos permitem visualizar e mesmo agir em ambientes remotos, enquanto se espera pelo advento da teleimersão e, com ela, da promessa da ubiqüidade que se realizaria quase inteiramente não fosse pelo fato de que o corpo tridimensional teleprojetado será incorpóreo, impalpável. Em ambos, nas ciberinstalações e nos eventos de telepresença, tanto o mundo lá fora passa a se integrar no mundo simulado através de trocas incessantes, por exemplo, quando se faz uso de webcams, quanto o receptor passa a habitar mentalmente o mundo simulado enquanto seu corpo físico se encontra plugado para permitir a viagem imersiva, algo que a metáfora de Matrix soube ilustrar à perfeição.
Nos interstícios da realidade virtual e da realidade concreta, estão surgindo obras voltadas para a configuração de uma realidade aumentada. Esta nasce das diversas possibilidades a serem exploradas pelo artista de misturas entre ambientes concretos e ambientes virtuais que se amalgamam, podendo gerar uma interpenetração inconsútil de ambos.
Nos sites ou ambientes criados especificamente para as redes, as variações são múltiplas: sites interativos, sites colaborativos, sites que integram os sistemas de multi-agentes para a execução de tarefas, sites que levam o usuário a incorporar avatares dos quais se emprestam as identidades para transitar pelas redes. Neste ponto, começa a se dar a passagem da incorporação para a imersão em realidade virtual, quando, nos web sites em VRML (Virtual Reality Modelling Language) o internauta é transportado para ambientes de interfaces perceptivas e sensórias inteiramente virtuais. A realidade virtual pode também se realizar em cavernas digitais de múltiplas projeções. Utilizando softwares complexos de alta performance, o artista propõe interfaces dos
Com o surgimento dos aparelhos portáteis, dispositivos móveis, sem fio, como os telefones celulares cada vez mais turbinados, a informação sonora, visual e verbal começou a circular por todos os cantos, espalhando-se perto do corpo e distribuindo-se pelo espaço físico. Tais redes de tecnologias portáteis e mídias móveis estão nos conduzindo a uma cultura da distribuição e do compartilhamento na qual os artistas exercem o papel fundamental de pôr em evidência as mudanças profundas que se anunciam no audiovisual e seus modos tradicionais de difusão. Em quase todas essas tendências, manifesta-se aquilo que vem sendo chamado de “segunda interatividade”,7 quando as máquinas são capazes de oferecer respostas similares ao comportamento dos seres vivos, para situações geradas no interior de sistemas baseados em modelos perceptivos oriundos das ciências cognitivas, sistemas esses que simulam o funcionamento da mente, seguindo princípios de inteligência artificial e vida artificial. Tais simulações operam de forma complexa, em ambientes que evoluem em suas respostas, como, por exemplo, os dotados de redes neurais e suas camadas ou perceptrons que funcionam como conexões de sinapses artificiais e que podem ser treinadas para a
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aprendizagem, dando respostas para além da mera comunicação em modelos clássicos. “Em pesquisas mais recentes, surgem, assim, sistemas artificiais dotados de fitness, com plena capacidade de gerar e lidar com imprevisibilidades resultando em processos de solução de problemas por trocas aleatórias, seleção de dados, cruzamentos de informação, autoregulagem do sistema, entre outras funções”.8 Em todas essas tendências, as interfaces com a matemática são evidentes, e, sem elas, esse tipo de arte nem poderia existir.9 Em algumas das tendências, a interface com a física também é fator constitutivo da obra. Mas o campo de estreitamento do trinômio arte-ciência-tecnologia que se encontra hoje em grande destaque é o da biologia,10 campo esse que vem recebendo o nome de bioarte e apresentando-se nas seguintes categorias: (a) arte genética (cromossomos, ADN, hereditariedade, hibridizações); (b) arte bio-tecnológica-genética (bioengenharia, arte transgênica, arte da clonagem, manipulação genética); (c) arte bio-tecnológica (cultura de tecidos, arte celular); (d) tecnologias úmidas, semi-vivas (ciborgue, seres cíbridos); (e) vida artificial (algoritmos genéticos, tecnologias biométricas, nanotecnologias, criaturas genéticas de vida artificial, zoosistê-mica). Como se pode ver, na era digital, tanto quanto em outras eras, os artistas se lançam à frente do seu tempo. Quando surgem novos suportes, recursos técnicos e desafios estético-éticos colocados pelas descobertas científicas, são eles que sempre tomam a dianteira na exploração das possibilidades que se abrem para a criação. Desbravam esses territórios tendo em vista a regeneração da sensibilidade humana para a habitação e trânsito dos nossos sentidos e da nossa inteligência 242
em novos ambientes que, longe de serem meramente técnicos, são também vitais. São os artistas que sinalizam as rotas para a adaptação humana às novas paisagens a serem habitadas pela sensibilidade. Dado o grande número de pessoas que está hoje trabalhando com as novas tecnologias das redes, tornou-se porosa a fronteira entre a arte digital e um simples evento high tech e de entretenimento. Diferenciar as árvores da floresta está se tornando uma tarefa cada vez mais difícil. Contudo, tal dificuldade não pode nos levar à apologia da indistinção. Ao contrário, deve aguçar nossos sentidos de alerta para o fato de que a arte interativa e as novas junções promulgadas pela arte-ciência-tecnologia estão inaugurando uma nova era em que experiências inéditas sem espaço, sem tempo, sem imagens entraram no domínio da arte e para as quais não mais se aplicam os termos tradicionais da história da arte, nem mesmo os termos duchampianos e seus métodos de avaliação. Um novo campo de atividade crítica precisa ser aberto, um campo que transcenda as preocupações previamente separadas dos historiadores e teóricos do cinema, fotografia, televisão, vídeo, imagens e sons gerados computacionalmente. Uma nova estética precisa emergir, uma estética que transponha sem temor as fronteiras que a tradição interpôs entre os caminhos da ciência e da arte.
Lúcia Santaella – É professora titular no programa de PósGraduação em Comunicação e Semiótica da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUCSP. Pesquisadora 1A do CNPq. É presidente honorária da Federação Latino-Americana de Semiótica e Membro Executivo da Associación Mundial de Semiótica Massmediática y Comunicación Global, México, desde 2004. Foi eleita presidente para 2007 da Charles S. Peirce Society, USA. Recebeu o prêmio Jabuti em 2002 e o Prêmio Sergio Motta, em Arte e Tecnologia, em 2005. Tem diversos livros publicados no campo da semiótica, dentre os quais: O que é Semiótica (Col. Primeiros Passos, Brasiliense), Culturas e Artes do pós-humano (Paulus editora, 2003), Corpo e comunicação (Paulus editora, 2004) e Navegar no Ciberespaço (Paulus editora, 2004).
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Notas 1 RUBIM, Albino. Comunicação e política. São Paulo: Hacker, 2000. 2. POSTER, Mark (1995). The second media age. Cambridge: Polity Press. 3. BOLTER, J. David e GRUSIN, Richard. Remediation. Understanding new media. Cambridge, MA: Mit Press, 1999. 4. LUNENFELD, Peter . “Screen grabs: the digital dialectic and new media theory”. In:The digital dialectic. New essays on new media. Peter Lunenfeld (ed.). Cambridge, MA: The MIT Press, pp 14-21, 1999. 5. MANOVICH, Lev. The language of new media. Cambridge, Mass.: Mit Press, pp. 19-20, 2001. 6. SANTAELLA, Lúcia. Culturas e artes do pós-humano. Da cultura das mídias à cibercultura. São Paulo: Paulus, pp. 176-180, 2003. 7. COUCHOT, E., TRAMUS, Marie-Hélène e BRET, M.. “A segunda interatividade. Em direção e novas práticas artísticas”, Em Arte e vida no século XXI, Diana Domingues (org.). São Paulo: UNESP, pp. 27-38, 2003. 8. DOMINGUES, Diana. Criação e Interatividade na Ciberarte. São Paulo: Experimento, p. 84, 2002. 9. HILDEBRAND, Hermes R.. As imagens matemáticas. Tese de doutorado defendida na PUCSP, 2001. 10. SANTAELLA, Lúcia. Corpo e comunicação. Sintoma da cultura. São Paulo: Paulus. 2004.
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Convergências na Arte Contemporânea
A História da Arte: revisão e novas perspectivas Maria Lúcia Bastos Kern
A historiografia da arte no final da década de 1970 começa a ser objeto de contestação por artistas contemporâneos e por estudiosos da área. Entretanto, as questões que são colocadas em xeque já vinham sendo debatidas e reformuladas em outros campos do conhecimento desde os anos 1950 e 1960. Estas décadas são extremamente significativas para as ciências humanas e as artes, graças às mudanças epistemológicas estabelecidas pela utilização de métodos rigorosos oriundos da lingüística, das ciências da natureza e da matemática, direcionados a implantar um programa estruturalista e promover o progresso científico. Elas são importantes também pelas transformações que estão se processando, ao mesmo tempo, nas práticas artísticas que conduzem ao questionamento dos pressupostos da arte moderna e da historiografia. Na década de 1950, emerge o estruturalismo nas ciências sociais, tendo como modelo teórico-metodológico os estudos de lingüística de Ferdinand Saussure (1857-1913). O estruturalismo contesta o pensamento acadêmico nas ciências humanas, pautado pela filosofia, e acaba se difundindo em diferentes campos do conhecimento. Em busca de novo paradigma, o estruturalismo se situa na crise da modernidade e na tentativa de soluções ao reagir aos antigos postulados, bem como ao assumir o caráter libertador diante de sua postura crítica e de ruptura,1 em relação aos mo-
delos científicos vigentes. No entanto, o estruturalismo, ao investir no rigor metodológico, afasta-se da filosofia com o fim de modelar as ciências humanas ao modo das ciências exatas, num discurso lógico-matemático que estimula análises quase mecânicas, generalizadoras, ao se fundamentar em processos de auto-regulação da estrutura.2 Esse discurso nega o indivíduo como articulador de sentido de mundo, notabilizando a primazia do domínio sócio-cultural. Com isto, não estuda os atos dos discursos isolados do sistema de convenções que lhe deu lugar, e se baseia no binarismo estrutural.3 Segundo estudos dessa vertente, há uma tendência em considerar apenas a sincronia, as permanências das sociedades e a exclusão do sujeito.4 Saussure concebia a linguagem como uma rede de estruturas que poderia ser analisada ao se decompô-la em distintos elementos, como letras e palavras, que seriam definidos por suas relações que os unem entre si. Os estruturalistas aplicam os pressupostos da lingüística de Saussure no estudo de múltiplas formas de práticas culturais, porque acreditam que elas pertencem a um sistema de estruturas subjacentes.5 Seguindo estes pressupostos científicos de Saussure e Charles Pierce, a Semiótica também considera a obra de arte como totalidade significante e a sua análise detalhada exige decompô-la nos elementos que a constituem, até reconhecer em cada um
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deles o papel integrador dessa totalidade. Esta análise é imanente e de caráter sincrônico, logo, anti-histórica. Os estruturalistas consideram que os textos e as imagens constituem obras integradas no sistema de representação cultural, no qual o contexto do receptor, os modelos e as convenções de representação que lhe são familiares contam tanto quanto as intenções do autor ou do artista. Roland Barthes vai mais longe ao afirmar que é a “linguagem que fala e não o autor”.6 A partir desta acepção, muitos estruturalistas acreditam na possibilidade de uma História da Arte sem nomes e colocam em xeque não só o pensamento humanista, mas também a noção de gênio criador e de chef-d’oeuvre que durante muito tempo permeou a historiografia da arte. Michel Foucault, estimulado pelos trabalhos de Lévi-Strauss, Lacan e Barthes, desenvolve estudos no campo da filosofia e se consagra nos anos de 1960 com o livro: Les mots et les choses, no qual procura fazer uma arqueologia das ciências humanas, sem traçar as linhas de continuidade do pensamento, mas sinalizando as descontinuidades, num posicionamento anti-historicista. Ao revisar a história das ciências humanas, Foucault questiona a razão e identifica nesta o meio de estabelecer o controle social e de produzir indivíduos subordinados. Com isto, o ideal moderno de racionalização do pensamento como mecanismo de constituição de sujeitos autônomos e livres é desmontado, visto que o autor identifica no saber o exercício de poder. Já na sua primeira obra Histoire de la folie (1961), Foucault abre a perspectiva histórica para o estruturalismo, fugindo dos estudos meramente sincrônicos. Para ele, o homem está consciente de seu desaparecimento numa rede de relações, fenômeno que o conduz a reinstalar o sujeito no interior da história cultural, como sujeito ausente.
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Assim, a questão da autoria evidenciada pelas práticas artísticas7, é também verificada no campo do conhecimento, como o enfraquecimento do sujeito enquanto centro dos processos sociais, cognitivos e criativos. Michel Foucault e Roland Barthes fazem reflexões sobre o problema da autoria na área literária.8 A história da totalidade, da unidade espiritual, da temporalidade linear e do progresso do Espírito também é discutida nas obras de Foucault, como Arqueologia do saber (1968) e Ordem do discurso (1970) nas quais ele coloca em questão as concepções de História fundamentadas no pensamento filosófico hegeliano.9 A partir dos anos de 1950 e 1960, quando os paradigmas do conhecimento científico começam a ser repensados10, a arte moderna vive uma fase de crise e de abandono das premissas que a institucionalizaram, como se pôde verificar nas reflexões de Foucault e Barthes. Na década seguinte, a modernidade e seus pressupostos começam a ser questionados por intelectuais e artistas e a noção de pós-modernidade entra na pauta dos debates, porém a partir de pressupostos defendidos por pensadores modernos, como Nietzsche e Freud. Estes intelectuais, no final do século XIX, perceberam os sintomas de crise da modernidade e propuseram soluções alternativas à excessiva valorização da razão e à ausência de liberdade humana, prevista pelos filósofos das luzes. A descrença contemporânea nas ideologias e o ceticismo em relação ao futuro propiciam o abandono dos projetos utópicos pelos artistas, assim como o desaparecimento das ações de ruptura das vanguardas. A cultura das mídias invade o cotidiano e as próprias práticas artísticas. No campo das artes, as mudanças de paradigma são evidenciadas pelo abandono das ações transgressoras dos artistas, que
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conduzem ao enfraquecimento de seu poder de negação e à ritualização da arte. As categorias de pureza, autonomia, originalidade, autoria e de gosto universal não se aplicam mais, diante do hibridismo, da mescla da arte com outras atividades práticas, de sua pluralidade e banalização. Estas mudanças de paradigma são rapidamente identificadas pela crítica de arte e historiadores, porém os últimos levam mais tempo para absorvê-las e repensar os seus métodos de investigação, apesar das atitudes de protesto do artista francês Hervé Fischer e das publicações de estudiosos na Europa e EUA. A historiografia da arte que emergiu na modernidade e se estabeleceu, ao longo dos séculos XIX e XX, sob postulados de autonomia, teleologia, universal, sacralizadora do artista e da obra, começa a ser minada, exigindo ser revisada. A disciplina presa ao conhecimento erudito, especializado e autônomo é colocada em questão com o desaparecimento de fronteiras no campo do saber e do objeto de estudo, a obra de arte. Os debates dos intelectuais a respeito da modernidade, pósmodernidade e pós-estruturalismo possibilitam também a emergência de estudos revisionistas da disciplina e de seus postulados canônicos. Em 1979, Hervé Fischer declara no Centro Cultural Georges Pompidou o término da história da arte linear, cortando simbolicamente um fio branco. Porém, o livro que dá origem a essa manifestação pública só é editado em 1981, sob título L’Histoire de l’art est terminée.11 Neste estudo, o autor traça um panorama da historiografia e desmistifica os conceitos de arte e artista, assim como os seus estatutos. A partir destas premissas, Fischer faz um inventário da arte e de suas funções até a contemporaneidade, o que lhe permite concluir que a arte não está morta, mas o que acaba é a sua história como progresso em direção ao novo, ao original e à perfeição.
“O fim da História da Arte não significa a morte da arte. Ao contrário. Ao escapar à ilusão histórica e ao mito de Prometeu do progresso em arte, nós redescobrimos suas relações com o mito de Fausto: a arte é uma experiência-limite de lucidez, para iluminar a imagem do mundo”.12 Para ele, a crise generalizada da ideologia vanguardista sugere um fim ou uma mutação. Esta mutação significa a morte da história da arte hegeliana. Ele acredita que a solução está no recurso às ciências humanas, à Sociologia e, principalmente, à Psicanálise que tem por objetivo desmistificar a arte, através de sua análise e de suas práticas, interrogar com lucidez os funcionamentos ideológicos e institucionais da sociedade.13 Assim, ele propõe que a teoria freudiana deixe de ser aplicada às biografias individuais e se concentre nos estudos sociais, isto é, passe do individual ao coletivo. Nesse mesmo ano, o filósofo analítico, Arthur Danto, publica The transfiguration of the commonplace,14 livro no qual ele define a essência da arte e determina a especificidade da obra em relação aos objetos não artísticos, estabelecendo as fronteiras entre os mesmos. Ele afirma que as obras de arte possuem uma estrutura intencional, ao contrário dos objetos que se limitam a ser o que são. A estrutura intencional é produzida pelo ser humano, o artista. Com isto, ele estabelece a diferença e delimita a noção de obra de arte, destacando que ela porta intenção e, como tal, tem o caráter representacional, devido à sua estrutura semiótica, sendo plausível de ser interpretada. Observa-se que o filósofo norte-americano apóia-se no pressuposto da intenção, também focalizado pelo estruturalismo e pela Semiótica, que a considera sempre dissimulada na obra. Entretanto, a identificação da intenção do autor não possibilita se descortinar os seus significados no domínio cultural.
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Em 1983, Hans Belting publica na Alemanha o seu livro: Das Ende der Kunstgeschichte? “A história da arte acabou?”,15 e retoma as questões levantadas por Fischer, demonstrando que o fim da história da arte não significa o término da disciplina, mas de uma narrativa, pautada na totalidade, na unidade e no conceito único de arte e acontecimento artístico. O estudioso faz uma revisão da historiografia da arte desde Vasari, passando por Winckelmann e pelas vanguardas, para mostrar que esta, a partir do Romantismo, começa a se afastar dos artistas e obras contemporâneas, fixando-se apenas no passado mais distante.16 O autor demonstra que apesar dos esforços científicos, a historiografia da arte se encontra em crise, desde as vanguardas do início do século XX, provocada em parte pela negação das rupturas, pela ausência de unidade da arte até então defendida e pela manutenção de pressupostos humanistas.17 Entretanto, ela se identifica com as vanguardas no que se refere à sua confiança num progresso futuro. É somente com a crise das vanguardas e a consciência de ausência de continuidade da arte contemporânea que a disciplina não consegue mais sustentar os seus princípios norteadores.18 Belting revisa também os conceitos de obra de arte e seus distintos estatutos e conclui que os mesmos não dão mais conta das propostas das vanguardas e menos ainda da arte contemporânea. Ele justifica esta conclusão ao apresentar a noção de obra absoluta do século XIX que busca um ideal inatingível, sendo considerado pelos artistas modernos e contemporâneos como anacrônico, assim como os conceitos de chef-d’oeuvre. O anacronismo dos pressupostos teóricos da historiografia e da teoria da arte conduz, no século XX, à ausência de definição de obra de arte, sendo a mesma na sua individualidade a expressão de idéias e conceitos, resultantes 248
do experimentalismo. O autor acredita que a arte contemporânea procura se libertar dessas premissas, negadas pelas vanguardas, mas presentes nos suportes teóricos da arte.19 Diante das transformações das práticas artísticas e dos paradigmas científicos na contemporaneidade, Belting considera a arte a partir do conceito antropológico, no qual ela é pensada enquanto um sistema de símbolos como qualquer outro sistema, dissipando a antiga separação arte e vida.20 Essa nova visão rompe com a tradicional concepção sacralizadora que identifica o objeto de arte como distinto de outros objetos. O estudioso alemão acredita que são os papéis e as funções que a arte exerce na sociedade, a sua natureza como obra e seus estatutos que se modificam, não se podendo mais pensar numa história estruturada nas noções de unidade, de progresso e de autonomia. Para tal, é necessário observar as transformações operadas pela arte moderna até a arte contemporânea.21 Sete anos depois, Georges Didi-Huberman publica: Devant l’image 22, livro no qual revisa a concepção positiva de historiografia da arte, demonstrando as suas limitações, a ausência de questionamentos e os problemas relativos à leitura da imagem e à noção de legibilidade presente neste procedimento metodológico. Ele acredita que o historiador da arte deve estar consciente da fragilidade inerente à leitura da imagem, o seu caráter lacunar, em particular no domínio dos objetos figurativos. Ele questiona também a noção norteadora da disciplina de história da arte como portadora de conhecimento específico, que impôs uma forma de discurso específico e inventou fronteiras artificiais, impondo um sistema de pensamento fechado e negando conceitos de outros campos do saber. Para Didi-Huberman, “o historiador é um modelador, artesão, autor e inventor do passado”. Quando o historiador desenvolve a sua “pesquisa no tempo perdido”, “ele não se
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encontra em face a um objeto circunscrito”, mas diante de “alguma coisa como uma expansão líquida”, “uma nuvem sem contornos”, difícil de ser apreendida em toda a sua complexidade.23 Ele salienta ainda o problema de uma disciplina que se propõe ser objetiva, mas que estuda práticas subjetivas.24 Apesar dessas dificuldades destacadas pelo autor, nos livros de História da Arte todo o visível é decifrado sob “noção de ciência fundada na certeza”, sob premissas de que “a representação é unitária, como um espelho exato” ou apresenta o caráter simbólico, no qual os conceitos são traduzidos em imagens e “todas as imagens em conceitos”, 25 como é concebida pela Semiótica. Outro problema evidenciado por DidiHuberman se refere à noção de disciplina que estuda a arte do passado, considerada morta e ultrapassada, como um objeto fixo.26 Desde Vasari, a História da Arte é definida como um movimento em direção à perfeição, sendo o seu clímax Miguel Ângelo, considerado divino. Mais tarde, com Hegel, ela é concebida pela morte de suas figuras e de seus objetos singulares. O historiador, para Hegel, deveria encarnar o conteúdo total do Espírito de cada forma através de um movimento continuado, no qual cada forma morreria ao revelar para a história a sua própria verdade. O Espírito e a morte permitiram a crença e a emergência do Saber Absoluto. “A história é o devir que se atualiza no saber”. O problema da História da Arte após Hegel é que ela se apóia na premissa de que a verdade só pode ser proferida depois da morte. Não se afirma mais que a arte está morta, mas que ela é imortal.27 Didi-Huberman, ao fazer a revisão historiográfica, retoma os pressupostos teórico-metodológicos desde Vasari até Erwin Panofsky, detendo-se, sobretudo, na análise das metodologias essencialmente cognitivas, como a Iconologia de Panofsky e a Semiologia/
Semiótica, destacando os seus reducionismos ao desconsiderarem as particularidades das obras e ao se centralizarem nas suas mensagens. Panofsky apóia-se no pensamento de Kant, especialmente na crítica do conhecimento, com vistas a sistematizar e dar nova orientação à disciplina. Kant, em sua Crítica da razão pura (1781), aborda o problema do conhecimento, define os seus limites e suas condições subjetivas. Panofsky aplica com rigor o pensamento do filósofo no estudo histórico das imagens, desenvolvendo o método iconológico, porém descolado das questões formais da obra e sob pressupostos que, na atualidade, não são mais admitidos pela ciência. Dentre estes se destacam a noção de cosmovisão de mundo, que se baseia na idéia de unidade e homogeneidade, assim como nos conceitos de representação clássicos. Outro problema evidenciado por DidiHuberman é que o historiador alemão ao desenvolver um capítulo no seu livro: Significado nas artes visuais (1955), afirma que a História da Arte é uma disciplina humanista, e, com isto, limita a expansão de seu conhecimento. Para ele, a História da Arte é uma disciplina de Humanidades, por não se constituir como prática e ter o fim de estudar o passado e de avivar o que está morto.28 Verifica-se que esta concepção não é muito distinta daquela defendida por Hegel. Didi-Huberman apresenta Freud para fazer frente a Kant e ao paradigma cognitivo, porque acredita que o seu pensamento se constitui como o primeiro a oferecer novos elementos à crítica do conhecimento e rever o estatuto das ciências humanas. Freud retomou a questão do sujeito pensando em ruptura e não estabelecendo limites e fronteiras fechadas, como foram produzidas por Kant. Para o autor francês, Freud coloca em questão o paradigma crítico e permite re-situar o objeto da história da arte, ao reconsiderar o estatuto 249
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do objeto do saber em relação ao qual se deve pensar.29 A partir dessas premissas, DidiHuberman procura estabelecer uma distinção entre visual e figurável, delimitando a última categoria como própria das formações do inconsciente, diferente de figurativo, e terminando assim com a tirania do visível enquanto imitação e do figurável como lisível, próprio à Iconologia e à Semiótica. Para tal, retoma o pensamento visual cristão que não reivindicou a visibilidade, a imitação, a aparência das Vênus, a idolatria, mas o seu caráter de acontecimento “sagrado”, revolucionando com a sua verdade encarnada, como efeito do inconsciente. Os cristãos convocaram o inconsciente visual que designa o acontecimento e o sintoma visual em oposição à noção de mímesis clássica, permitindo o surgimento da Encarnação. A hipótese do autor é a de que as artes visuais cristãs têm mantido esta concepção, elas criaram outro visível, mas que não é invisível. Elas abriram a Imitação ao motivo da Encarnação. “Seria a imanência desta capacidade humana de inventar corpos impossíveis”, misteriosa que é o poder da figurabilidade, em oposição à figuração. “O encontro do corpo com a luz na Anunciação de Fra Angélico funcionava como metáfora da Encarnação”.30 A partir dessas considerações, o autor destaca a importância da Antropologia histórica, que conseguiu produzir trabalhos importantes sobre “o campo visual” da Idade Média. Antes da imagem adquirir o estatuto de obra de arte havia a exigência de abertura do visível, abertura de um mundo que permitiu apresentar sintomas e traços de mistérios.31 Didi-Huberman salienta ainda a necessidade de o historiador articular dois pontos de vista aparentemente estrangeiros: o estrutural e o do acontecimento, isto é, a abertura da estrutura.32 O estrututural é o regular que deve ser interrompido ou deslocado. O visual de250
signa o irregular dos acontecimentos-sintomas que atingem o visível, uma memória em processo que nunca foi feita ou descrita. Para ele, a categoria do visual33 se apóia em conceitos e procura resgatar o sensível, buscando ultrapassar a excessiva objetividade da Iconologia e da Semiótica, assim como o caráter fenomenal e representacional da imagem. Para o autor, o visual permite resistir aos esquemas e aos princípios reguladores dessas metodologias, que uniformizam a imagem em relação ao conjunto de outras imagens, e ignoram as suas particularidades. O visual, enquanto categoria de análise, divide o visível e resiste à unificação, à síntese do real e à redução dos signos e símbolos a um mesmo contexto cultural. Essa categoria (do visual) opera com conceitos para explorar o sensível, bem como procura penetrar no interior da imagem e nos mistérios do olhar, que também têm a sua história.34 O estudioso francês questiona as noções dominantes e generalizantes de representação e símbolo como eficazes e transparentes no processo de interpretação, argumentando que elas não evidenciam os sintomas35 e que também se caracterizam pela opacidade. A partir desses pressupostos teóricos, ele tem o interesse em conhecer a complexidade do processo de criação visual. Outro aspecto importante salientado por Didi-Huberman no livro: Devant le temps , (2000) 36 se refere à questão da temporalidade da obra. Ele defende o anacronismo como meio fecundo de se entender as obras do passado, quando afirma que o historiador não pode se contentar em fazer a história da arte sob o ângulo da euchronie, isto é, sob o ângulo conveniente do artista e seu tempo. As artes visuais exigem que se as aborde sob o ponto de vista de sua memória, isto é, das “suas manipulações do tempo” e dos diálogos que os artistas estabelecem entre si e as obras em distintos momentos históricos. Para ele, diante
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da imagem contemporânea o passado não cessa de se reconfigurar, porque ela é pensada numa construção de memória. Ela é elemento de passagem e também de futuro. Muitos estudiosos do final do século XIX e início do século XX, já identificavam nas suas análises a presença de sobrevivências de outros passados, como espécies de memórias inconscientes. É o caso, por exemplo, dos estudos de Aby Warburg sobre as obras de Botticelli - O nascimento de Vênus e A Primavera - nos quais ele verifica a permanência de expressões e gestos da antigüidade. A partir dessas sobrevivências, Warburg focaliza dois conceitos importantes que serão objeto de análise pelo filósofo francês: sintomas e pathosformal.37 Na atualidade, Georges DidiHuberman38 revisa as reflexões de Warburg e Walter Benjamin para demonstrar a complexidade temporal da imagem e colocar em cheque métodos canônicos presentes na historiografia em geral. Ele acredita que a imagem apresenta distintas temporalidades e memórias, demonstra que o seu tempo, por ser heterogêneo, é impuro e que esta nada mais é do que uma montagem de tempos distintos, formando anacronismos. Essas questões se aplicam às diferentes imagens, da arte à publicidade, passando inclusive pela fotografia, e devem ser objeto de debate pelos historiadores e historiadores da arte, visto que apontam a noção do anacronismo como meio fecundo de repensar o saber histórico. Assim, o historiador da arte deve conectar o presente com o passado para melhor compreender o processo artístico e perceber com mais acuidade as singularidades, transformações e as mudanças de paradigmas. Deste modo, a história da arte não se configura apenas como memória e conhecimentos objetivos e sistematizados do
passado. O olhar sobre as práticas contemporâneas permite ao historiador comparar e refletir sob outras premissas a respeito do passado e verificar as complexas condições de criação visual. Como se pode observar, os debates e as reflexões em torno da modernidade, pósmodernidade e do pós-estruturalismo, juntamente com as mudanças nas práticas artísticas contemporâneas, estimulam a revisão da historiografia da arte, bem como a construção de novas categorias conceituais e metodologias de pesquisa. Os estudos resultantes se detêm também nos trabalhos de antigos historiadores, pouco valorizados nos seus tempos, mas que forneceram importantes subsídios teóricos e metodológicos para a disciplina. Os historiadores retomam ainda o pensamento de Freud para fazer frente às metodologias de interpretação da arte, essencialmente cognitivas e reducionistas que não dão conta da sua complexidade, e abrem as fronteiras da disciplina para outros campos do conhecimento. Na atualidade, a história da arte totalizante é abandonada em prol de múltiplas histórias da arte, as quais evidenciam um crescente interesse pelas práticas artísticas na América Latina, África e Ásia, depois de longa tradição de pesquisas relativas aos grandes centros ocidentais. Maria Lúcia de Bastos Kern – É Doutora em História da Arte pela Universidade de Paris I (Panthéon-Sorbonne) e Pós-Doutorado pela Universidade de Paris I e pela École des Hautes Études en Sciences Sociales. É professora titular da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul e pesquisadora 1A do CNPq. É autora de: Arte Argentina: Tradição e Modernidade (EDIPUCRS, 1996) e organizadora de: As Questões do Sagrado Na Arte Contemporânea da América Latina (UFRGS, 1997), América Latina: Territorialidade e práticas artísticas (URGS, 2002) e de Imagem e conhecimento ( EDUSP, 2006).
Notas 1. DOSSE, François. História do estruturalismo. O campo do signo, 1945/1966. São Paulo: Ensaio; Campinas: UNICAMP, 1993, pp.16-17. De um lado, se situa como estruturalismo
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científico mais rigoroso que busca a lei, desenvolvido por Claude Lévi-Strauss na Antropologia, Algirdas-Julien Greimas na Semiótica e Jacques Lacan na Psicanálise; e, de outro, um estruturalismo mais flexível, liderado por Roland Barthes, Gérard Genette, Tzvetan Todorov e Michel Serres numa linha semiológica. Existe ainda um estruturalismo historicizado e epistêmico, no qual se destacam Louis Althusser, Pierre Bourdieu, Michel Foucault e Jacques Derrida. 2. Idem, p. 180. 3. O termo estrutura tem primeiramente sentido arquitetônico, depois, numa acepção mais moderna, assume a noção de estudo das partes como meio de permitir a organização da totalidade. A sua origem situa-se não apenas na lingüística de Ferdinand Saussure, mas também na Escola de Praga. Para o lingüista, na estrutura nenhum elemento individual tem sentido fora dela. 4. As reflexões a respeito do sujeito, resultantes do estruturalismo nas ciências humanas e sociais, têm continuidade com a Semiótica. Esta concebe a linguagem como sistema de signos, no qual o elemento individual não tem sentido, visto que os signos só têm significado numa rede de relações. A Semiótica estrutural busca estudar a produção de sentido no discurso como um processo de significação. 5. D’ALLEVA, Anne. Méthodes & théories de l’Histoire de l’Art. Paris: Thalia, p. 131, 2006. 6. BARTHES, Roland. Image, music, text. Londres: Fontana/ Collins, p. 143, 1977. In: D’Alleva, Anne, op. cit., p. 135.
Jacques Derrida utiliza no plano teórico o termo “desconstrução”, com o fim de analisar a construção do conhecimento e do sentido. Ele acredita que a linguagem sendo um meio de comunicação, pode veicular ao mesmo tempo a presença e ausência de sentido. Para ele, é o jogo dos signos que cria a tensão entre o sentido e não sentido. 11. FISCHER, H. L’Histoire de l’art est terminée. Paris: Baland, 1981. 12. Idem, s/ p. 13. Ibidem, pp. 15 e 194. 14. DANTO, Arthur. The Transfifuration of the Commonplace, Cambridge (Massachussets), Harvard University Press, 1981. Livro ainda não traduzido e publicado no Brasil. Na França, La transfiguration du banal. Une philosophie de l’art, foi publicado em 1989 pela Seuil. 15. BELTING, Hans. Das Ende der Kunstgeschichte?. Munique: Deutscher Kunstverlag, 1983. Na França, L’Histoire de l’art est-elle finie? Nîmes: Jacqueline Chambon, 1989. Esta publicação é resultante da aula inaugural na Universidade de Munique. Nela, ele analisa questões de método para analisar o papel da arte moderna na historiografia. Na edição brasileira, BELTING inclui novos capítulos e justifica o seu posicionamento presente na primeira versão alemã e francesa. O Fim da História da Arte. Uma revisão dez anos depois. São Paulo: Cosac & Naif, 2006. Nesta edição, ele se preocupa em focalizar as mudanças no mundo contemporâneo que possibilitaram a revisão da historiografia.
7. FLECK, Robert. La “mort de l’auteur et les questions de temps, d’original et de conservation de l’art contemporain. In: Quelles mémoires pour l’art contemporain? Rennes: Presses Universitaires de Rennes, p. 180, 1997. Barthes, R.. “De l’oeuvre au texte”, Revue d’Esthétique, nº 3, 1971.
16. BELTING, Hans. L’Histoire de l’art est-elle finie? Nîmes: Jacqueline Chambon, pp. 16-23, 1989.
8. Em 1969, Foucault profere a conferência intitulada “Qu’est que c’est l’auteur?”, na Sociedade Francesa de Filosofia, em que ele evidencia a revolução da arte e da literatura e questiona o conceito de autor, de duração da obra e de originalidade da mesma. Em 1971, Barthes publica um artigo intitulado, “De l’oeuvre au texte”, no qual constata que a obra perde a sua proeminência e se situa num nível de interações com outras obras, cujo valor de importância é similar. Nessa perspectiva, a autoria e a originalidade da obra deixam, paulatinamente, de ser os focos centrais de estudos.
19. BELTING, Hans. Le chef-d’oeuvre invisible . Nîmes: Jacqueline Chambon, pp. 13-16, 2003.
9. Foucault se equipara aos estruturalistas, mas os seus estudos evidenciam que ele não se fundamenta na noção de estrutura, como fizeram outros intelectuais na época. Cf. DOSSE, op. cit., p. 69.
24. Ibidem, p. 51.
10. O estruturalismo começa a ser revisado a partir de suas categorias básicas, como a estrutura enquanto meio de conhecimento e o binarismo. Este último era utilizado como meio de analisar um determinado contexto. O pós-estruturalismo parte da premissa de que a estrutura não se constitui como meio de atingir a verdade profunda, mas que ela é uma construção cultural criada pelo discurso. Não existem meios objetivos e universais de atingir a verdade. Esta não pode ser produzida fora das categorias de espaço e tempo.
27. Ibidem, pp. 59-63. HEGEL, Fenomenologia do Espírito, 1807.
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17. Idem, p. 25. 18. Ibidem, p. 26.
20. BELTING, Hans.L’Histoire de l’art est-elle finie?, op. cit., p. 5. 21. Idem, pp. 6-7. 22. DIDI-HUBERMAN, G. Devant l’image. Paris: Minuit, pp. 1011, 46, 1990. 23. Idem, pp. 10-11.
25. Ibidem, p. 10. 26. Ibidem, pp. 54-56.
28. PANOFSKY, Erwin. Significado das artes visuais. São Paulo: Perspectiva, p. 44, 1991. O autor alemão também concebe o historiador da arte como humanista pelo fato deste estudar o “material primário”, que consiste na obra de arte. Esta, por sua vez, é resultante das intenções do autor, condicionadas pelos padrões da época e do meio ambiente em que foi criada, pp. 30-31.
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29. DIDI-HUBERMAN, op. cit., pp. 14-15. 30. Idem, p. 37-40. A encarnação no pensamento cristão seria a união em Jesus Cristo da natureza divina com a natureza humana. A encarnação é representada em imagens que personificam o ser espiritual revestido por um corpo carnal. Entretanto, o autor vincula esta noção com o pensamento freudiano, relativo ao inconsciente.
38. DIDI-HUBERMAN, G. Devant l’image. Paris: Minuit, 1990; Devant le temps. Paris: Minuit, 2000; L’ Image survivante. Histoire de l’art et temps des fantômes selon Warburg . Paris: Minuit, 2002.
31. Ibidem, p. 64. 32. Ibidem, p. 41. 33. Panofsky não olhava a imagem, mas a analisava a partir do estudo das alegorias e símbolos em relação com as representações dos mesmos no passado e com o contexto histórico do momento em que ela foi elaborada pelo artista. A partir destas considerações e do conhecimento da obra e do artista, ele procurava identificar o seu significado e a sua mensagem. 34. DIDI-HUBERMAN, G. Devant l’image, op. cit., pp.15-6; 173175. 35. Ele utiliza a noção de sintoma de Freud, construída a partir da análise do sonho, como figuração. Para o estudioso, o sonho extrai a relação de representação do real e apresenta um caráter deformador por ser constituído por rupturas lógicas, sendo incapaz de tornar visíveis as relações temporais. A noção de sintoma procura resgatar na imagem a sua capacidade expressiva. Com isto, Didi-Huberman rompe com a noção de que o visível é legível, propalada pela historiografia tradicional, que acredita desvendar a imagem em sua totalidade. Deve-se salientar que a noção de sintoma, que será posteriormente aprofundada por DidiHuberman, foi utilizada pelo seu mestre Hubert Damisch, no estudo Théorie du nuage. Paris: Seuil, 1972. 36. DIDI-HUBERMAN, G. Devant le temps. Histoire de l’art et anachronisme des images. Paris: Minuit, pp. 10 e 39, 2000. 37. WARBURG, A. Essais florentins . Paris: Klincksieck, pp. 49-100, 1990. A noção de sintomas de Warburg lhe permite identificar as manifestações artísticas como fenômenos vinculados à história e evidenciar os seus diferentes sentidos e temporalidades presentes nas obras. Ele trabalha essa noção a partir do processo de comparação entre as obras em distintos momentos históricos, tendo em vista verificar as permanências e questioná-las. Carlo GINSBURG salienta que a Antigüidade buscada por Warburg não é a apolínea clássica, mas a dionisíaca. A noção dionisíaca, oriunda de Nietzsche, é atrelada a de pathosformal, identificada nas imagens pelas expressões de estados de espíritos das figuras representadas. Ver: Mitos, emblemas, sinais. São Paulo: Cia. das Letras, 1991, p. 45. O conceito de pathosformal inaugura uma nova percepção do Renascimento. Esse conceito é elaborado através da observação das representações das imagens, dos gestos e movimentos das figuras, de diferentes estados psíquicos. A partir do pathosformal, ele verifica o caráter híbrido da arte do renascimento, rompendo com as visões homogeneizadoras do formalismo de Wölfflin e do historicismo.
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Convergências na Arte Contemporânea
Curadoria da exposição Cinético_Digital Mônica Tavares Suzete Venturelli Com curadoria de Mônica Tavares e Suzete Venturelli, a exposição Cinético_Digital, realizada no Instituto Itaú Cultural de São Paulo, de 06 a 11 de setembro de 2005, foi configurada para ser um ambiente de exploração histórica, estética e educativa. Foi pensada a partir de três grandes eixos conceituais: a arte computacional, as instalações e a arte nas redes, que, respectivamente, estão na base da produção de Waldemar Cordeiro, Abraham Palatnik e Julio Plaza. A mostra pretendeu mostrar como os procedimentos criativos desses três artistas pioneiros fundamentam o surgimento da arte digital no Brasil. Melhor dizendo, a proposta foi identificar como os procedimentos por eles utilizados já indicavam, de modo precursor, os caminhos e percursos que sustentam a produção contemporânea brasileira de arte digital, enfocando o “como” cada obra foi produzida. Nesta perspectiva, fundamentou-se na linha de reflexão acerca de como os meios, códigos e linguagens utilizados condicionam o modo de formar do artista. Tomando como base as influências antes referidas, foi feito o recorte da atual produção da arte digital brasileira. A curadoria selecionou trabalhos de artistas que têm se destacado por utilizar as novas tecnologias eletrônicas como potencializadores poéticos e na contramão do finalismo instrumental. Cada um dos três módulos foi tratado de maneira específica no espaço disponível da
exposição, sendo de per si identificado por uma respectiva cor, com vistas a conduzir o visitante a uma compreensão das similaridades e diferenças das trajetórias criativas inerentes às obras selecionadas, se comparadas com os procedimentos utilizados pelos artistas veteranos. Em cada um dos três andares da exposição, ficaram dispostos os trabalhos de cada artista pioneiro. Tais trabalhos abrem o espaço dialogando com a produção dos artistas convidados. Em razão da importância e da contribuição das obras dos três precursores para o desenvolvimento da arte digital brasileira, cada eixo conceitual foi representado por um desses três artistas que, conseqüentemente, encabeçou uma determinada diretriz operacional de criação. Assim, cada eixo processual foi representado e identificado por uma cor (vermelho, verde ou azul). No propósito de salientar como cada obra foi produzida, relacionando-a às dominâncias processuais inerentes a cada módulo, os trabalhos expostos, a depender da poética proposta, poderiam estar vinculados a cada uma das três cores (vermelho, verde e/ou azul), estabelecendo o seu relacionamento lógico ou de dependência com dois ou mais grupos conceituais. Em razão do caráter híbrido das novas tecnologias eletrônicas, cada obra poderia manter relacionamento com cada módulo, o que remete à idéia de destacar as preponderâncias processuais a elas inerentes. Deste modo, propôs-se como conduta para a
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disposição das obras uma leitura das mesmas por meio da relação com as cores inerentes aos eixos conceituais, no intuito de conduzir o público a uma maior compreensão dos procedimentos criativos inerentes às obras da produção contemporânea. Procedimentos estes já trabalhados e indicados de modo pioneiro nas obras dos artistas Waldemar Cordeiro, Abraham Palatinik e Julio Plaza. Ademais, na pressuposição de que no fazer artístico mediado pela tecnologia os processos desenvolvidos e os produtos daí gerados exigem de quem cria uma familiarização com modelos tecno-científicos, a curadoria procurou também mostrar como a arte, ao se relacionar com os domínios da ciência e da tecnologia, torna-se um campo interdependente de exploração. Nesta perspectiva, admitiu como premissa que ao conceito tradicional de artista incorporam-se outros papéis, como por exemplo, o de programador. Não esquecendo, como dizia Plaza, que “a arte (produto) não é pesquisa ( stricto sensu), mesmo que esta faça parte (lato-senso) de seu processo”,1 cabe referir que os trabalhos artísticos expostos são resultados de investigações e indagações elaboradas pelos artistas nos principais laboratórios de arte e tecnologia das universidades do Brasil. As pesquisas por eles desenvolvidas, no contexto das matérias-primas e dos procedimentos heurísticos, referendando o que admitia Plaza, devem assim aparecer como suporte, caminhando na perspectiva de se caracterizar “como meio e não como fim”.2 Neste sentido, considerando a condição precípua, que é a de “ter a consciência de que não se está fazendo ciência”, a meta buscada por esses artistas tecnológicos, na intenção por alcançar o “equilíbrio entre norma e forma”, é justamente a de manter o “compromisso com as qualidades do objeto que cria” e não a de priorizar o pressuposto de retratar “a verdade do conhecimento do objeto”.3 E é aqui 256
que se deve refletir sobre a diferença conceitual que existe entre a idéia de “tecnologia como arte” e a de “arte como tecnologia”4, premissa esta minimamente requerida e intencionada na seleção dos trabalhos da exposição Cinético_Digital. O objetivo pretendido foi expor obras na proposta de subverter crítico e criativamente o aparelho produtor e que fossem representativas dos seguintes eixos processuais: arte computacional, instalações e arte nas redes. No módulo arte computacional, as obras de Waldemar Cordeiro (1925-1973) abriam o espaço dialogando com os trabalhos dos artistas convidados. Ele foi um dos artistas pioneiros da arte computacional no Brasil. Foi também um expoente da arte visual concreta brasileira, influenciando vários artistas com base na idéia de que o conteúdo da obra deve ser representado de modo concreto pela linguagem artística. Seu processo de criação procurava, entre outros aspectos, relacionar as idéias artísticas ao conhecimento da ciência e ao desenvolvimento tecnológico de sua época. O método por ele utilizado está na base dos processos de criação e pesquisa de artistas computacionais da atualidade. De forma geral, seu percurso criativo abrangia a transformação das retículas de imagens fotográficas em valores numéricos, o processamento algorítmico e a geração da imagem, propriamente dita. A primeira fase era realizada de modo manual, com base na sobreposição de uma retícula sobre a imagem original ampliada. Em seguida, definiam-se os dados para a criação da matriz alfanumérica a ser armazenada na memória do computador. Com isto, criava-se o algoritmo para tratamento dos seus dígitos, do qual resultavam diferentes possibilidades imagéticas. Com base no princípio em que predomina a tensão entre a poética e a utilização de modelos de programação e que estrutura as obras selecionadas de arte
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computacional, foram escolhidos os trabalhos dos artistas: Carlos Vicente Fadon, Tânia Fraga, Diana Domingues, Mario Maciel, entre outros. No módulo instalações, foram os trabalhos de Abraham Palatnik (1928) que iniciaram o percurso do visitante. O princípio orientador do módulo dizia respeito às propostas de mediação entre obra e receptor, pensadas desde a arte cinética. Quando começou sua pesquisa cinética no contexto da arte, Palatnik estava experimentando novos caminhos sobre as relações sensoriais e perceptivas entre obra e espectador. Devido a esse fato, suas idéias passaram a ser referências fundamentais na criação da arte interativa. Nos cinéticos de Palatnik, o movimento real da própria obra, construído por meio de artefatos industriaismecânicos, é utilizado como princípio poético. Este é perseguido na intenção de provocar diferentes modos de organização da sensibilidade, os quais visam capturar o receptor por meio da renovação de práticas receptivas. Há muito, o teórico Frank Popper já dizia que a intervenção do espectador dentro do processo estético varia do nível primário de participação lúdica ao nível mais elaborado de uma participação total.5 Tal engajamento mobiliza as suas capacidades e faculdades contemplativas, perceptivas e locomotoras. Segundo o autor, a passagem da atitude contemplativa ao comportamento ativo, que afinal solicita e incorpora o receptor tanto mental quanto fisicamente, tem correlação direta com a noção de environment, considerada como o lugar de encontro privilegiado de fatos físicos e psicológicos que animam o universo do receptor. É nesta perspectiva que os cinéticos de Palatnik, considerados como máquinas artísticas que propõem o movimento como forma de ludicamente capturar o receptor, já indiciam no Brasil e avant la lettre a
problemática da mediação entre obra e receptor. Por outro lado, ao considerarmos os cinéticos de Palatnik como representantes deste princípio conceitual, a proposta foi também enfatizar as possíveis relações que o seu trabalho estabelece com as questões de desmaterialização e desaparecimento do objeto artístico tradicional que, conforme Popper, estão na base do conceito antes referido de environment. Ou seja, de um ambiente estrategicamente proposto, que prevê uma participação mais acrescida do espectador, considerando a possibilidade do uso de novos materiais como forma de um engajamento mais total. E é este princípio que está diretamente na base dos trabalhos dos artistas Gilbertto Prado, Milton Sogabe, Raquel Kogan, Mario Ramiro, entre outros relacionados ao eixo das instalações. Na entrada do módulo arte nas redes, foram apresentadas as obras selecionadas de Julio Plaza (1938-2003). Um dos interesses desse artista se situava na possibilidade de organizar, produzir e veicular imagem pelos sistemas de redes. Ele encontrou nos meios de comunicação como o slow-scan , o videotexto e o computador aliados poderosos para suas experimentações artísticas. Sua obra, bastante rica, representada na exposição pela utilização da holografia, da arte computacional e de sistemas de rede, demonstra claramente o vigoroso processo de colaboração com os poetas concretistas e o forte interesse pelas questões da tradução intersemiótica. De maneira geral, o artista buscava experimentar as potencialidades que os novos meios oferecem como sistema de criação artística. É inegável e precursora sua contribuição no que concerne às poéticas da distância. Ao propor uma ruptura com as formas e os métodos tradicionais de exposição da arte, tais poéticas colocam em trânsito as diferen-
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tes culturas na direção de que a redução da distância física conduz à tendência de nivelamento planetário de repertórios. A web arte, representante mais atual destes processos criativos, firma-se hoje como um espaço de produção artística aberto para o mundo. Alguns exemplos de obras que mantêm vínculo com o módulo arte nas redes são as realizadas pelos artistas: Giselle Beiguelman, Sílvia Laurentiz, Douglas de Paula, Lúcia Leão, entre outros. No conjunto da exposição, os trabalhos escolhidos (no total de 28) foram distribuídos, de modo sincrônico, pelos três andares da mostra, não sendo proposto um percurso diacrônico e seqüencial para a visita. A vinculação das obras dos artistas convidados com os eixos conceituais da exposição se deu por meio da sua identificação à cor específica de cada módulo. Independente do piso em que estavam localizadas, as obras que foram identificadas pela mesma cor (enfim, aquelas que estabelecem uma analogia em relação a uma dada diretriz operacional de criação) dialogavam entre si. Neste pressuposto, a idéia foi enfatizar o relacionamento lógico dos trabalhos recentes com um ou mais dos eixos processuais anteriormente referidos, destacando assim os seus procedimentos de criação e, conseqüentemente, ligando a produção recente às obras dos artistas pioneiros. Na exposição, os visitantes puderam interagir com os trabalhos de arte digital realizados por artistas brasileiros, de renome nacional e internacional, como também apreenderam como as obras de Abraham Palatnik, Waldemar Cordeiro e Julio Plaza configuramse, no âmbito nacional, como precursoras e inovadoras das relações entre arte, ciência e tecnologia. Suzete Venturelli - É doutora em Artes e Ciências da Arte pela Universidade de Paris I e professora-adjunta da Universidade de Brasília - UnB. Em 2004, publicou o livro: Arte: espaço_ tempo_imagem, pela editora da Universidade de Brasília.
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Sua produção científica, tecnológica e artístico-cultural envolve a Arte Computacional, Arte e Tecnologia, Realidade Virtual, Mundos Virtuais, Animação, Arte digital, Ambientes Virtuais e Imagem Interativa. Mônica Tavares - Professora da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo - ECA-USP, e pesquisadora do CNPq. Co-autora de Processos Criativos com os Meios Eletrônicos: Poéticas Digitais. (Hucitec, 1998). Organizou, juntamente com Suzete Venturelli, a exposição Cinético_Digital.
Notas 1. PLAZA, Julio. “Arte/Ciência.” In: PLAZA, Julio; TAVARES, Monica. Os processos criativos com os meios eletrônicos: poéticas digitais. São Paulo: Hucitec, p. 8, 1998. 2. Idem. 3. Ibidem, pp. 7 e 12. 4. PLAZA, Julio. “As imagens digitais”. In: PLAZA, Julio; TAVARES, Monica. Os processos criativos com os meios eletrônicos: poéticas digitais. São Paulo: Hucitec, p. 29, 1998. 5. POPPER, Frank. Art, action et participation: l’artiste et la creativité aujourd’hui. Paris: Éditions Klincksieck, pp. 11-14, 1980.
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Convergências na Arte Contemporânea
Arte e crítica no Brasil. Desdobramentos de um processo vivido Mônica Zielinsky Nessa breve reflexão trago à luz meus próprios caminhos percorridos nos estudos sobre a crítica de arte, entremeados das inesgotáveis questões e perplexidades sobre o assunto. Cheguei à França em 1994, no intuito de desenvolver uma tese de doutorado que, em linhas gerais, delineava-se como um estudo sobre os elementos perceptivos imbricados no processo de trabalho dos artistas, elementos estes relacionados com as novas pesquisas sobre a visualidade. No entanto, ao chegar a Paris, encontrei um clima de acirrados debates sobre a arte contemporânea e sua crítica, que repercutiam amplamente no curso que eu freqüentava na universidade. Fui desde logo surpreendida e arrebatada por essa rica ambiência, em especial por ser conflituosa de idéias; ela originava-se no meio universitário, mas extrapolava-o para o mundo da arte, através de debates em museus, artigos publicados em revistas de arte e jornais ou das mais novas publicações. De imediato, reportei-me às lacunas sobre essas discussões em nosso país. A crítica de arte, como uma esfera de trabalho de importância essencial aos movimentos do campo artístico, não estava sendo, a meu ver, suficientemente pensada, em especial no que se referia à atualidade artística brasileira. De um dia para outro, substituí meu assunto de tese. Estava absolutamente convicta da necessidade de se pensar a crítica de arte contemporânea no Brasil.1
A partir desse momento, várias dúvidas colocaram-se, em especial em relação à necessidade de compreensão sobre o que seria de fato esse campo de produção intelectual hoje. Perguntava-me se efetivamente a crítica de arte ainda existe e como estaria sendo exercida. Predominariam os modelos de outrora, através do exercício da palavra ou se estaria vivendo hoje uma forte crise dos discursos? E quais seriam seus veículos, os jornais, periódicos universitários, catálogos, as revistas eletrônicas ou as curadorias haviam se tornado o veículo mais atual do exercício da crítica? E o que se dizer da crítica de arte no Brasil, como se constituía, como estaria sendo exercida e o que lhe seria peculiar? Em todas essas questões estavam subjacentes interrogações da ordem de diversas naturezas de reflexão e, para tal, detiveme mais profundamente nos estudos da área da estética contemporânea. Busquei, na essência da pesquisa, compreender os diversos conceitos de crítica, recorrendo, para sua fundamentação, às propostas de alguns filósofos da arte que pensavam esta área tão debatida em nossos dias. As visíveis transformações da arte, desde sua passagem do moderno ao contemporâneo, a emergência das novas condições de sujeito e da sua forma de se relacionar com o mundo e a vida, a interrogação sobre valores e o exercício do juízo, estruturaram o arcabouço desta tese. Naquele momento, a arte questio-
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nava, como até hoje o faz, sua própria materialidade, sua circunscrição ontológica diante das extensões e delimitações de seu campo e do seu espaço; extrapolava as noções do efêmero e fragmentário, o descontínuo e o caótico, o hibridismo em todas suas possibilidades constitutivas, inclusive em seus fluxos permanentes com o cotidiano, a mescla de culturas ou com as novas perspectivas da tecnologia e da informação. Nesse contexto, abordar o fato artístico de forma crítica geraria inevitáveis debates. Não sendo, já há algum tempo, possível aspirar a qualquer representação unificada do mundo, diante do abalo das referências estáveis do próprio conhecimento no mundo social, este campo da crítica de arte apresenta uma progressiva indagação em sua forma de exercer o espírito crítico, este concebido, segundo sua etimologia, como a capacidade de distinguir, discernir e de julgar, segundo os princípios da razão. Colocaram-se as diferentes possibilidades de entendimento dessa área de atuação, conforme os estudiosos consultados naquele momento. Alguns autores (em especial franceses e alemães) defendiam a atividade crítica conforme sua etimologia, como o exercício de uma atividade ainda em busca de normas, mesmo que essas fossem reconstruídas pelo debate intersubjetivo, este alicerçado em uma argumentação e em fatos observáveis, como defendia por exemplo Rainer Rochlitz2 e, a um modo semelhante, Martim Seel (1996). JeanMarie Schaeffer (1996), por sua vez, optava pela defesa de uma conduta crítica apoiada nas preferências subjetivas do espectador, recusando, ao contrário de Rochlitz, qualquer cunho avaliativo e fundamentado intersubjetivamente na recepção da arte. Outros autores, preferentemente de origem anglo-saxã e de tradição da filosofia analítica, optavam por considerar essa recepção como um fato interpretado por meios instituídos, tais como a história da arte (Danto, 1981), a ótica simbólica (Nel260
son Goodman, 1968), a do argumento de legitimação (Beardsley, 1981), ou as teorias institucionais da arte (George Dickie, 1964). O debate centrava-se, em especial, na questão de como avaliar a arte contemporânea e esbarrava na ausência de suporte para emitir juízos sobre os fenômenos artísticos. Deste modo, as teorias analíticas apresentavam, de uma maneira geral, as teorias institucionais da arte como uma alternativa possível diante dos impasses do contexto da crítica da arte dos nossos tempos. Todas essas discussões levaram-me, naquele momento, a tentar compreender as conformações dessa área em nosso país. Para isso, levantei farto material sobre escritos críticos brasileiros, em especial dos anos 1980 e a elaborar quinze entrevistas representativas (como estudos de caso) com críticos de arte brasileiros, em especial atuantes em São Paulo e Rio de Janeiro, extensivas também a historiadores da arte, jornalistas e artistas. Desejava conhecer como esses entrevistados brasileiros concebiam essa atividade em nosso país, como se posicionavam diante das conformações da crítica de arte contemporânea e busquei estudar sua posição sobre as questões de juízo em matéria de arte. Como resultados, encontrei, de uma maneira geral, pouca proximidade entre os textos críticos e as obras artísticas, também rara era a atribuição de valor nas análises sobre a arte. Em muitos casos prevalecia a exaltação dos artistas, em detrimento das necessárias reflexões sobre a arte do país. Diagnostiquei, ainda em muitos dos textos e entrevistas analisados, uma rara compreensão histórica da arte brasileira contemporânea, em relação à sua formação moderna no país, com exceção de alguns poucos, mas representativos escritos. A abordagem da arte, por sua estruturação no tecido social brasileiro, era quase inexistente e percebia-se freqüentemente uma fuga para textos herméticos, descritivos ou poéticos so-
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bre a arte; estes eram tratados pelos entrevistados, na maior parte das vezes, com preferência em relação a uma experiência profunda com o trabalho de arte. Adequavam-se, preferencialmente, ao consenso geral da mídia, aos interesses institucionais e do mercado de arte. Diante desses resultados, organizei, simultaneamente à escrita da tese, uma pequena coletânea de ensaios de filósofos e estudiosos europeus (em especial franceses), de alguns brasileiros e de um autor norte-americano que pensavam esse mencionado debate sobre a crítica de arte contemporânea a partir de um ponto de vista mais filosófico sobre a questão, contemplado, nesse livro, como uma interrogação sobre os limiares internos da própria arte contemporânea, dos seus discursos e sobre suas diferentes abordagens. Mesmo convicta da inegável importância desses estudos para a constituição de idéias sobre a área em questão e seus conceitos, ao estar novamente em contato com meu país de origem, novas questões colocaram-se mais recentemente e atualizaram meu pensamento sobre as relações entre a arte e a crítica. Pouco tempo após meu retorno ao Brasil, coube-me a oportunidade de assumir a responsabilidade de um trabalho na Fundação Iberê Camargo em Porto Alegre/RS, para elaborar a catalogação da obra desse artista. Essa atividade tem como base uma profunda pesquisa sobre a obra de Iberê Camargo, além de constituir-se de um trabalho técnico, que congrega a identificação de dados sobre as obras e organiza-os, com vistas à abertura das suas fontes primárias e secundárias ao domínio público, para fins de seu reconhecimento, estudos, difusão e confirmação sobre autenticidade. Parte desse empreendimento insere-se em uma atividade crítica focada na arte de Iberê, pois requer uma seleção qualitativa a ser
discriminada e disposta nas diferentes partes do catálogo, ao se considerar o conjunto da obra. Nem toda a produção do artista apresenta o mesmo perfil de resultados e a tomada de decisões, sobre a forma de apresentá-los, relaciona-se constantemente com avaliações, muitas das quais são difíceis de formular e de assumir. Menciona-se como exemplo, na elaboração do catálogo raisonné referente à obra gravada de Iberê,3 a presença de muitas gravuras assinadas pelo artista (portanto confirmadas por ele) que não apresentam a força e importância dentro do conjunto da obra de alguns dos trabalhos não assinados. O que se coloca em questão não é o elemento assinatura, mas ao que ela remete: as escolhas do artista, em alguns casos, confrontam-se com a avaliação externa a elas e que ocorrem no mundo público. No entanto, a obra de Iberê insere-se em princípios considerados tradicionais da arte, isto é, ela não apresenta as conflituosas discussões e tipo de análise sobre a recepção levantadas pela arte contemporânea. Os critérios para o discernimento da proposta artística e nível de realização das obras de Iberê não trazem as mesmas dúvidas e questionamentos levantados em momento anterior. A constante proximidade e aprofundamento do contato com esta obra provocou desafios que me levaram a repensar o exercício da crítica de arte em relação à conduta de um artista brasileiro. Estimularam outro gênero de discernimento, o que diz respeito à compatibilidade das questões atuais da arte em relação aos dados da constituição histórica da obra de Iberê Camargo. Em seu modo artístico, essa obra indica uma trama específica, a que envolve raízes de uma herança expressiva, ainda tão pouco abordada pela nossa crítica e pesquisas continuadas no país. No entanto, qualquer questão como esta que se apre-
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senta poderia ser tratada de um modo descritivo e não crítico. E é neste sentido que percebo a transformação operada em meu pensamento hoje, como conseqüência dos resultados daquela tese. O trabalho que desenvolvo não comporta apenas um relato cumulativo de dados sobre a produção do artista em relação aos fatos identificados. É acompanhado de uma reflexão e de uma crítica sistematizada. Crítica de arte é pois entendida como uma atitude intelectual, a que coloca em xeque, como vem a ser o estudo de caso sobre a obra de Iberê, as condutas artísticas e institucionais, como lembra Bruce Ferguson4 ao rever “as pautas sociais ocultadas sob as formas imagéticas”. Em outras palavras, evocando o pensamento de outro estudioso norte-americano, Johnatan Crary, pensamos ser fundamental considerar as manifestações artísticas por uma arqueologia crítica das condições históricas das obras, “como uma pré-história do nosso presente, em seus mundos ‘técnicoinstitucionais’”.5 Este autor refere-se também a uma atitude, a de suspensão da percepção, conforme seus estudos mais recentes, como uma apreensão dos fatos artísticos com um sentido de tensão, como uma exploração das condições de sua emergência histórica na atualidade. Assim, a obra do artista em questão é analisada, simultaneamente à identificação e coleta de seus dados artísticos e documentais, também pelas condições sociais e políticas da sua produção, inserção no mundo artístico e de sua visibilidade. Essas condições expõem fatos relativos à pré-história de sua constituição, como afirma Crary, das diversas épocas até sua projeção na atualidade. Nessa perspectiva, vê-se, além dessa experiência específica relativa aos estudos sobre Iberê, que é tarefa importante da crítica atual brasileira colocar em questão a forma-
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ção da arte do país em relação ao seu trânsito e suas articulações no circuito globalizado das manifestações artísticas do presente. Tem-se consciência que, na extensão do mercado de arte internacional, as obras apresentam-se quase sempre afastadas dessas conexões, de sua inserção cultural de origem. Vejo assim como essencial compreender a história da constituição dessa arte, seu enraizamento antropológico, político e social, um tipo de reflexão que, em meu ponto de vista, é primordial para o exercício contemporâneo da atividade crítica no país, tendo sempre, em minha experiência particular, esse foco como um dado fundamental. Lembro a esse respeito o trabalho de Rodrigo Naves, em seu valioso texto “Azar histórico”,6 no qual ele discute o desconhecimento, mesmo a manifestação de um “desdém” por parte do mundo artístico brasileiro em relação a importantes trabalhos de arte moderna do país, obras estas que praticamente nunca chegaram a ser suficientemente compreendidas e também mostradas fora do Brasil, como é o caso da obra de Iberê. Nesta análise, ele aponta a forte presença de parâmetros alheios à origem e à verdade dessas obras entre as escolhas do meio institucional, ao valorizar outras produções que se firmaram no meio internacional por questões contraditórias à sua proposição original. Assim ele se refere, nesse mesmo escrito, à música de João Gilberto: “Há nas interpretações de João Gilberto justeza (a afinação, o tom certo) e deslocamento ( as divisões inusuais, as durações alteradas), uma continuidade feita de ajustes sutis – um Brasil em que o “jeito” deixa de ser o escamoteamento das dificuldades para tornar-se talvez a maneira mais sábia de compreendê-las. No seu modo de captar o passado, João Gilberto, por frinchas e dribles, faz a história emergir no presente”.7
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Tais idéias parecem essenciais e aproximam o campo da crítica (quase ao fundi-lo) aos fluidos contornos que estabelece com a história da arte. Pergunto-me, pois, de que modo pode-se associar os diferentes conceitos de crítica estudados com a constituição da arte brasileira? Por que ela não se submeteu até hoje a uma avaliação aprofundada em seu solo de origem sobre as questões que lhe são constituintes? Como têm circulado os textos críticos brasileiros no próprio país e, em especial, no exterior? De que modo o mundo internacional tem acesso às obras brasileiras contemporâneas? Seriam refeitos, através das análises sobre a arte deste país, os caminhos sobre a inserção desta arte em meio às raízes culturais brasileiras? Que leituras têm sido realizadas da nossa produção artística em relação à sua emergência histórica? E ainda, como se daria esse tipo de leitura em relação às forças institucionais que estruturam o meio de arte? Cada um desses questionamentos poderia estimular ricas análises sobre o campo da crítica de arte no Brasil, ainda incipientes porém indispensáveis para a compreensão da recepção e inserção da arte brasileira no circuito global. A partir dessas reflexões, evoco o pensamento de um estudioso do romantismo alemão pouco mencionado entre nós, Karl Philipp Moritz. Ele lembra que a obra de arte significa a si própria, pelo jogo das suas partes; ela é portanto sua própria descrição.8 Essa idéia pode ser estendida ao contexto da arte do nosso país, uma vez que esta produção possui um valor próprio a ser reconhecido de dentro, a partir de seu interior. Segue Moritz, mencionando que “se uma obra de arte existisse senão para indicar algo exterior a ela, tornar-seia por isso mesmo algo acessório”,9 idéia que pode ser igualmente trazida às reflexões aqui propostas. Mais que nunca, a arte brasileira
urge ser pensada através de seu próprio escopo constitutivo, “o momento de formação prevalecerá sobre o resultado já formado”.10 Questões como ontologia da arte, expressão e fundamentação dos juízos, a crítica apoiada em elementos observáveis do trabalho, conduta estética abalizada por preferências subjetivas, a interpretação e orientação cognitiva dos filósofos da arte de tradição analítica, teorias institucionais da arte são todos dados valiosos para se refletir sobre a crítica de arte hoje. São contribuições essenciais para muitas das revisões sobre o exercício desta conturbada tarefa no presente. A arte brasileira poderia talvez exigir de sua crítica a revisão aqui proposta, necessitando-se acreditar primordialmente em ações propositivas a partir do campo da crítica de arte, ao potencializar novas e audaciosas pesquisas nessa área de trabalho. Estas podem, quem sabe, espraiar-se em ações que constituem o meio de arte e da cultura no país: na abordagem que parte do contato visceral com o trabalho dos artistas; a partir do meio universitário, mas para além dele; em atividades docentes que estimulem a formação de novos críticos e pensadores, os que possam refletir sobre a constituição social e política da arte em suas conexões com a contemporaneidade; em curadorias de exposições que tenham, antes da seleção de artistas, um profundo respeito à arte; também, em diretrizes museológicas e institucionais que criem linhas de trabalho estimuladoras para a eclosão de um pensamento interrogativo sobre as questões da arte hoje em relação às suas raízes de origem; ainda, no incentivo à criação de publicações audaciosas que fomentem debates entre críticos, artistas e representantes institucionais. São essenciais as ações que provocam aquela atitude tensa que Crary propõe, as que recusam a fixidez e a contemplação passiva de tudo o que se manifesta sob a superfície dos fatos
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institucionais, considerando os trabalhos de arte, desde sua origem, como a referência primordial. Destas idéias, a crítica no Brasil dos nossos tempos quem sabe poderá inspirar-se para alavancar suas indagações e destas ocasionar sua própria transformação e o futuro da arte brasileira.
Mônica Zielinsky - Professora do Instituto de Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS; Coordenadora do Centro de Documentação e Pesquisa do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais do Instituto de Artes da UFRGS. Autora, entre outras publicações, de “Iberê Camargo. Catálogo raisonné. Volume 1-Gravuras”. São Paulo: Cosac Naify, 2006. Responsável pela catalogação da obra completa de Iberê Camargo.
Notas 1. A tese desenvolvida a partir desses questionamentos intitulou-se “ La critique d’art contemporaine au Brésil: parcours, enjeux et perspectives” e foi defendida em dezembro de 1998, na Universidade de Paris I – Panthéon Sorbonne. 2. ROCHLITZ, Rainer. Subversion et subvention . Art contemporain et argumentation esthétique. Paris: Gallimard, 1994. 3. ZIELINSKY, Mônica . Iberê Camargo. Catálogo Raisonné. Volume I-Gravuras. São Paulo: Cosac & Naify, 2006. 4. FERGUSON, Bruce. “Exhibition rhetorica: material speech and ulter sense”. In: Thinking about exhibitions. London: Routledge, 1996. 5. CRARY, Johnatan. Suspensions of perception. Attention, spectacle, and modern culture. Cambridge, Massachssetts: The MIT Press, 1999. 6. NAVES, Rodrigo. “Azar Histórico. Desencontros entre moderno e contemporâneo na arte brasileira”. In: Novos Estudos Cebrap, nov 2002. 7. Idem, p. 19. 8. Cf. TODOROV, Tzvetan. Teorias do símbolo. Campinas: Papirus, 1996, mencionando o pensamento de Karl Philipp Moritz, p. 207. 9. Idem, p. 210. 10. Ibidem, p. 200.
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Convergências na Arte Contemporânea
Godard Curador Nelson Aguilar
A exposição de Godard no centro Georges Pompidou em Paris, coloca em questão a mostra de arte contemporânea e dispositivos: curadoria, patrocínio, cenografia, divulgação, enfim toda a maquinaria que envolve o circuito artístico. O projeto inicial da exposição seria organizado pelo então diretor do Departamento de desenvolvimento cultural, Dominique Païni, em colaboração com o cineasta, e se chamaria Collage(s) de France, arqueologia do cinema segundo JLG: uma série de 9 entrevistas com personalidades utilizando o cinema como ponto de intersecção seria veiculada durante seus nove meses de duração. O título Collage(s) de France trazia alguma ironia: há alguns anos Godard se prontificou a fundar uma cadeira de história do cinema relacionada à história do século XX no Collège de France, sem sucesso. O projeto gorou, o cineasta se desentendeu com o curador e uma nova exposição Viagem(ns) em Utopia. JLG. 1946-2006. Em busca de um teorema perdido é organizada pelo próprio cineasta (11/5-14/8/2006).
Pompidou : ANTEONTEM - TER SIDO; ONTEM - A VER e HOJE. A sala ONTEM A VER está envolta por televisores que projetam excertos de clássicos: Um dia em Nova York de Stanley Donen e Gene Kelly, Johnny Guitar de Nicholas Ray, A cor da romã de Serge Paradjanov, Dom Quixote de Orson Welles, O evangelho segundo São Mateus de Pier Paolo Pasolini, O testamento do dr. Mabuse de Fritz Lang, Gente de domingo de Robert Siodmak e Edgar G. Ulmer, entre outros. Essa oferta simultânea faz parte da metodologia godardiana oriunda do teatro de Brecht. O cinema de Godard evita que o espectador entre em hipnose profunda, siga os passos de impostos alter-egos, pelo contrário acorda o público, o som briga com a imagem, reconhecese um ator famoso ou uma atriz atraente (nesse campo, sua pontaria é infalível), mas sem transparência alguma, permanecendo enigmáticos e intransponíveis do começo ao fim do filme. A melhor maneira de ver é acordado, os
Logo à entrada está inscrita a frase inaugural do périplo, homóloga ao Lasciate ogni speranza: O que pode ser mostrado não pode ser dito. O dístico é do primeiro Wittgenstein e serve a Godard como o axioma que irá animar sua teoria de conhecimento cinematográfica. A mostra ocupa três salas, somando ao todo 11.000 m2 na galeria sul do centro
Fig. 1: Sala ONTEM - A VER
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truques à mostra, os cortes, os movimentos de câmara, a luz, a especificidade de cada objetiva, a cor. Godard ajudou os Cahiers du cinema a propagar a noção de cinema de autor, onde o que vale são as obsessões de cada cineasta, o estilo, a maneira de decupar a cena, a equipe técnica que elege. Antes disso, predominava o fã-clube consagrado aos atores. Em sua exposição, Godard pretende também quebrar a atenção do público para fazer ver. Há uma mesa e cadeiras com os pés parafusados no chão, portanto em situação de filmagem. Sentei nessa cadeira e assisti o trecho oferecido de Johnny Guitar, o diálogo entre Vienna (Joan Crawford), dona do cassino, e sua equipe, decorrido numa sucessão de plongées, ela, no alto, diante de uma balaustrada, eles, embaixo, ao lado da roleta. A economia dos cortes, a diferença hierárquica no próprio jogo de campo e contracampo, as cores saturadas que sobrecarregam o saloon, a indumentária em tons pastéis de Johnny Guitar (Sterling Hayden) sobressaem em meio ao hiperativo technicolor. Entra um grupo de cidadãos comandado por outra mulher fálica, Emma Small (Mercedes McCambridge). O filme lida com o ciúme, o ciúme é diagonal e não frontal, os casais estão trocados, Vienna gosta de Johnny, Dancin’ Kid de Vienna e Emma Small de Dancin’Kid.
Fig. 2: Sala ONTEM - A VER
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O diretor de fotografia, o grande Harry Stradling, acompanha o movimento dos afetos, uma vez que iluminou O bonde chamado Desejo de Elia Kazan. Senti medo do bando que invade o saloon, de alguma sobra, de uma bala perdida. O cinema dá, a mostra tira, o espectador torna-se adulto. O ritmo espacial onde perambulamos não é diverso de um poema de William Carlos Williams, com recorrências, aliterações, ecos, pulsações. A locação está composta por palmeiras, pedras e tijolos sobre paletes. O ambiente em instauração adquire sua suficiência por se aproximar de uma situação criada por Ilya Kabakov ou, mais precisamente, do Jardim de Inverno de Marcel Broodthaers, mostrado na 22ª Bienal de São Paulo (1994), que trata da desconstrução do dispositivo museológico, as palmeiras que servem de fronteiras entre salas que classificam ou segregam obras de arte, por exemplo, separando os fauves dos cubistas, adquirem status próprio. O artista belga descobre uma conotação póscolonialista no artifício, pois a idéia do jardim de plantas tropicais em estufa marcou a exposição mundial realizada em Londres (1851), no Palácio de Cristal, primeira armação de vidro e ferro abrigando um mega-evento. Joseph Paxton, seu inventor, arquiteto e paisagista, famoso por recriar as condições para a floração na Inglaterra da vitória-régia, usa a planta como padrão para definir as linhas de força da estrutura arquitetônica. Por sua vez, Broodthaers refere-se ao Museu Real da África central, em Bruxelas, cujo acervo provém do antigo Congo Belga, propriedade do rei Leopoldo II, em seguida incorporada à Bélgica mediante pagamento ao soberano. As palmeiras são sentinelas da periferia aclimatadas à metrópole. Esse ambiente colonial no Pompidou prossegue feérico pela presença de dois trenzinhos elétricos, um de passageiros e outro de mercadorias, que atravessam a sala e se
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conectam à vizinha, que recebe os letreiros “ANTEONTEM - TER SIDO”. O trem é um veículo extraordinariamente hierarquizado, artifício mecânico, primogênito do cinema. Sua imagem ficou no século XX definitivamente vincada pelo transporte de milhares de prisioneiros aos campos de extermínio construídos pelos alemães em seu país e na Polônia.
te em happening, numa insurreição, insubordinação, insubmissão, distante de Joseph Beuys, próxima de Allan Kaprow. Godard está habituado a lidar com a indústria do cinema a contrapelo, a lutar dentro das corporações contra a sociedade comandada pelos fluxos do capital, a empregar os canais de comunicação à revelia, suas intervenções na TV aberta sempre se transformam em operações de guerrilha cultural. Ainda na sala pequenos monitores reconstituem os tropos do discurso cinematográfico godardiano que deveriam alimentar as nove salas do projeto original: devaneio (=o real), parábola (=os canalhas), inconsciente/ aliança (=totem, tabu), lição (ões) [(=o(s) filme(s)], metáfora (=câmera), imagem (=humanidade) e alegoria(=mito), fábula (=o mausoléu) e montagem (=sésamo, teorema). Na floresta das palmeiras, dois televisores emitem A grande testemunha de Robert Bresson e um filme de Sacha Guitry (Não há etiquetas na exposição que indiquem de que filme se trata). Um trecho do chão é revestido por tacos pretos, à maneira de uma casa em vias de se decorar.
Figs. 3 e 4: Sala ANTEONTEM - TER SIDO
Há um embate entre o piso de linóleo castanho claro do museu, neutro, distinto, e cada intervenção, rude, fios à mostra, material empilhado, plantas ainda com a etiqueta do fornecedor, leito desfeito, andaime tombado, cerca de madeira, páginas de livro fotocopiadas e riscadas por marcador, a parafernália da produção cinematográfica provisória, uma constante agressão contra a instituição que acolhe o filho pródigo. A instalação se conver-
Fig. 5: Sala ANTEONTEM - TER SIDO
Na sala ANTEONTEM - TER SIDO está escrito o verso de José Lezama Lima La luz
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es el primer animal visible de lo invisible. O efeito da colagem está em ação, como no livro de Walter Benjamin, O Trabalho das Passagens. Um leito desfeito (de hospital? de prisão?) brilha ao lado da Camisa romena de Matisse, do desenho de Hartung, dos Músicos de Nicolas de Staël. O uno diante do múltiplo. As grades de proteção, que sinalizam canteiro de obra, congêneres de nossos cavaletes sarapintados, protegem as maquetes do projeto original com o famoso No trespassing do Cidadão Kane. Essa tralha acumulada chama-se Babe Lônia. O trem continua seu curso nessa sala e, ao lado dos trilhos, outro televisor emite excertos do Evangelho de Pasolini, da Palavra de Carl Dreyer e dos 10 mandamentos de Cecil B. DeMille. Roda também o filme de Godard: Verdadeiro/ Falso Passaporte. Os tacos de madeira aumentam sua inserção no piso dessa sala. Num canto, o encarte com os dizeres: é uma negociação para deixar o outro amar. Sala HOJE. Um loft. Sobre a cama de casal, o televisor emite Falcão Negro em Perigo de Riddley Scott e, ao lado, uma reprodução do divã de Freud. Há um painel de cruzes de Malta, aludindo ao parentesco entre as medalhas de guerra e o mecanismo das filmadoras.
Figs. 7 e 8: Sala HOJE
Mesa: televisores sintonizados nos canais abertos. Na da cozinha, filme pornográfico. Andaime caído. Sobre uma lousa está escrito: Em 1900, Claude Monet convida Edgar Degas a vir ver o telefone que acaba de ser instalado em sua casa. Vejo, disse Degas, que ele toca e você vai! Eu não vou. Uma frase de Matéria e Memória de Bergson decompõe-se nas três salas: O espírito toma emprestado à matéria as percepções, seu alimento, e lhas restitui sob forma de movimento onde lhe imprimiu sua liberdade.
Nelson Aguilar - Professor de História da Arte no Instituto de Filosofia, e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP. Foi curador-geral das XXII e XXIII Bienais Internacionais de São Paulo (1994 e 1996), da Mostra do Redescobrimento, organizada pela Associação Brasil 500 Fig. 6: Sala HOJE
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Anos (São Paulo, Rio, São Luís, Fortaleza, Salvador, 2000/2) e da IV Bienal do Mercosul (2004, Porto Alegre). Foi também curador-associado da exposição Brazil Body and Soul, realizada no Museu Guggenheim de Nova York (2001/2). Foi curadorgeral do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (1998 a 2000). Foi curador para a representação brasileira na XXV Bienal de São Paulo (2002). Coordena as exposições do Instituto Tomie Ohtake a partir de 2001. Autor dos livros Bienal 50 anos - 1951/2000 (São Paulo: Fundação Bienal, 2001), La Arquitectura de Ruy Ohtake (Madrid: Celeste, 1994), Nelson Leimer (São Paulo: Paço das Artes, 1994) e Arte Bralileira Hoje (São Paulo: Publifolha, 2002).
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Convergências na Arte Contemporânea
Imagens do corpo perfeito O sacrifício da carne pela pureza digital Paula Sibilia Se fosse possível enxergar a beleza em si, limpa, pura, sem mistura, sem estar contaminada de carnes humanas, de cores e de outras muitas miudezas mortais, mas se fosse possível avistar a beleza divina em si, especificamente única... Platão1 A beleza do corpo reside por inteiro na pele. Certamente, se os homens pudessem ver o que se encontra sob a pele, dotados como os linces de Beócia de penetração visual interior, bastar-lhes-ia ver uma mulher para terem náuseas: toda essa graça feminina não é mais do que saburra, sangue, humores e fel. Pensemos no que se esconde no nariz, na garganta, no ventre: só imundice. E nós que sentimos repugnância ao tocar, mesmo que com a ponta dos dedos, o vômito e o esterco, como é que podemos sentir o desejo de abraçar tamanho saco de excrementos? Odon de Cluny2
O subtítulo deste artigo pode parecer alheio a uma sociedade como a nossa, que alardeia os consumos hedonistas e na qual vigora um imperativo do gozo constante e da felicidade compulsória. Há lugar para o sacrifício em um quadro como esse? Busca de pureza? Novas formas de ascetismo? Por um lado, é indubitável que o “culto ao corpo” tem se tornado um contundente fenômeno contemporâneo; no entanto, junto com essa tendência emergem novos valores, mitos, crenças, imagens e metáforas que parecem desprezar a materialidade corporal - e, inclusive, chegam a irradiar certa vocação de conquista e ultrapassagem dos limites inerentes ao organismo humano, graças à valiosa ajuda da tecnociência. Essa última afirmação pode resultar um tanto curiosa, dado o contexto no qual estamos imersos. Contudo, não é difícil entrever que hoje
o corpo humano costuma receber uma grave acusação: seja nas academias de ginástica ou nos consultórios dos cirurgiões plásticos, nas sessões dos “grupos de emagrecimento” ou nos múltiplos salões de beleza, acima da balança ou diante do espelho; uma e outra vez, o corpo é acusado de ser impuro. E recebe, por tal motivo, a merecida punição. Mas o corpo contemporâneo revela sua impureza em um sentido completamente novo: sua falta mais grave consiste em ser imperfeito e finito. Por ser orgânico, demasiadamente orgânico, é fatalmente condenado à degradação e à obsolescência. Para compensar todas essas fraquezas da carne, faz-se necessário recorrer aos diversos rituais de purificação hoje disponíveis: um grande conjunto de privações e sacrifícios de novo cunho que, contudo, jamais serão suficientes para nos livrar da nossa indigna condição carnal. 271
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A acusação de impureza relativa ao corpo humano não é uma novidade histórica, evidentemente, embora a poluição atual não seja idêntica àquela que vigorou em outros períodos de nossa civilização. De todo modo, não convém desdenhar alguns pontos em comum, que ainda podem ser significativos para captar a peculiaridade do fenômeno contemporâneo. Neste Ocidente secularizado dos inícios do século XXI, um universo globalmente sincronizado pelos vaivéns e pela lógica do mercado, abarrotado de dispositivos tecnocientíficos que prometem saciar todos os desejos e necessidades imagináveis, parece inconcebível qualquer expiação em nome dos valores transcendentes de outrora. Por isso, as novas formas de ascetismo que se desenvolvem entre nós mantêm uma relação complexa, embora aparentemente contraditória, com as práticas hedonistas do consumismo e do império das sensações. Essa curiosa amálgama, que em principio pode parecer improvável, é sumamente prolífica: todos os dias, uma infinidade de frutos surge do seu cerne: da bibliografia de auto-ajuda até a farmacopéia anti-oxidante, passando por uma miríade de produtos e serviços que contemplam das cirurgias estéticas até os suplementos vitamínicos e os alimentos light e diet; dos spas e personal trainers até os diversos métodos de bronzeamento artificial, os pilates e os power-yoga. O novo receituário da expurgação compreende, assim, toda uma série de práticas que poderíamos denominar neo-ascéticas. Um conjunto de rituais que exigem uma disciplina férrea e uma intensa série de abnegações, além de tempo e dinheiro - enfim, nada desprezível de acordo com as cotações do mercado de valores contemporâneo. Tudo isso para atingir uma certa pureza. Mas a pergunta é inevitável: de que pureza se trata? O objetivo explícito de tais rituais não consiste em atingir a excelência pública (como na antiga polis gre272
ga), ou a comunhão com Deus (como nas experiências místicas medievais), para aludir a dois momentos emblemáticos de nossa história nos quais se desenvolveram práticas ascéticas. Agora não se almeja uma libertação dos caprichos do corpo para dominar tanto a si mesmo como aos outros, nem tampouco para transcender a vida mundana com o propósito de alcançar alturas espirituais. Em vez disso, a nova moralização das práticas corporais que prolifera entre nós persegue metas bem mais prosaicas: vencer no mercado das aparências; obter sucesso, beleza, auto-estima ou eficiência; efetuar uma boa performance física e sobretudo visual. Enfim: todos fatores bem cotados hoje em dia. O termo fitness delata, assim, sua origem etimológica em língua inglesa: como uma palavra de ordem que incita a se adequar ao modelo hegemônico. Tanto de forma literal como simbólica, trata-se de incorporar seus valores. Em uma sociedade cada vez mais impregnada pela lógica do espetáculo e pela moral das sensações, essa obsessão por adaptar as próprias aparências aos contornos do “corpo perfeito” que se apresenta como modelo universal concentra a atenção de setores crescentes da população global. E incita a desdobrar modalidades inovadoras do “cuidado de si”.3 Esse conjunto de práticas, crenças e rituais já não aponta mais para o fortalecimento da vida sentimental, como foi habitual nos tempos modernos da era burguesa, mas tampouco procura cultivar a vida pública, como ocorria na Grécia Clássica. Agora, todas as atenções tendem a se concentrar no aperfeiçoamento dos diversos aspectos da vida física. No contexto contemporâneo, “cuidar de si” deixou de remeter à preservação de costumes e valores burgueses, com sua preocupação constante no que tange ao enriquecimento da alma, aos sentimentos e às qualidades morais, para canalizar suas cerimônias em dire-
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ção ao cuidado do corpo físico. Por um lado, expande-se a busca de sensações prazerosas, inéditas e extremas; por outro lado, tenta-se burilar o próprio aspecto corporal como se fosse uma bela imagem bidimensional. Tudo isso em uma atmosfera sócio-cultural que estimula a ostentação de atributos como beleza, saúde, longevidade e “boa forma”. Os elementos resumidos nos parágrafos anteriores constituem um conjunto de novidades históricas, disseminadas especialmente nas últimas décadas. Pois tanto a educação cívica como a sentimental, que têm sido hegemônicas em outros momentos de nossa história, esforçaram-se por manter em um segundo plano as sensações corporais e o cuidado das funções e formas físicas. Ou seja, toda a trivialidade da vida biológica era menosprezada, em proveito de outros valores considerados superiores. O desdém pelo corpo orgânico é um ingrediente comum, tanto à antiga tradição política ou guerreira baseada na ação, como à educação burguesa intimista e sentimental. No primeiro quadro, o corpo era considerado um mero instrumento, uma matéria bruta que devia se submeter aos rituais da moderação dietética e erótica a fim de demonstrar virtudes cívicas e efetuar determinadas conquistas no âmbito público. No segundo caso, a brutalidade da carne podia constituir uma ameaça para a delicadeza da interioridade psicológica; por isso, paixões baixas e instintos agressivos deviam ser laboriosamente domesticados, em busca do desenvolvimento intelectual, sentimental, moral e espiritual. Nesses dois momentos históricos, o “cuidado de si” não apontava para o corpo físico como um fim em si mesmo, mas como um meio para alcançar outros fins considerados mais “nobres” ou transcendentes. Nas novas práticas aqui estudadas, porém, o “cuidado de si” passa a focalizar o corpo físico per se. É por isso que estas no-
vas formas de preocupação consigo constituem, em seu conjunto, o que alguns autores denominam bio-ascese.4 Trata-se de uma ampla série de práticas e técnicas que contribuem para criar biodidentidades, isto é, um tipo particular de “identidade”, para a qual as características anatomo-fisiológicas do corpo humano constituem um referente fundamental. Porque este curioso renascer contemporâneo do ascetismo não implica um trabalho sobre si para se colocar à disposição dos demais, do mundo ou de Deus; em vez disso, trata-se de uma corpolatria que se esgota em si própria, como um tipo de ascese com vocação imanente, “humanamente pobre e socialmente fútil”.5 Por isso, cumpre notar que este deslocamento no foco do “cuidado de si” destila suas seqüelas éticas e políticas. Se o aspecto corporal passa a ocupar o sítio antes dedicado aos grandes ideais, em contrapartida será preciso desalojar os antigos protagonistas daquelas práticas e espremê-los em algum canto menos privilegiado de nossas preocupações: os grandes sentimentos, pensamentos e ações. No entanto, embora pareçam tão modestas ou “pouco nobres”, as metas dos novos ascetismos não devem conduzir a engano, pois seus devotos praticantes costumam levá-las muito a sério. Inclusive, supõe-se que em seu nome - e somente em seu nome - qualquer sacrifício seria legítimo. Não devemos esquecer, porém, que isso ocorre em uma sociedade como a nossa, na qual os antigos valores transcendentes a que esse termo remete parecem ter se esvaziado de sentido. É habitual, porém, que as novas práticas bioascéticas levem seus adeptos até a própria morte, como informam as notícias já quase cotidianas sobre complicações em cirurgias plásticas ou falecimentos por ingerir anabólicos de uso veterinário, sem esquecer de uma vertente que tem merecido considerável atenção midiática nos últimos tempos: a 273
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transformação da anorexia em uma “epidemia de época”, que em suas versões mais graves pode ser fatal. Cada era inventa suas próprias formas de masoquismo, e a nossa não é uma exceção. Se nos velhos tempos protagonizados pela subjetividade “sentimental”, enfeitiçados pelo ideal do amor romântico e azeitados pelo dispositivo da sexualidade, os sofrimentos individuais jorravam como desejos insatisfeitos que se estilhaçavam contra as rígidas normas sociais, hoje, em pleno declínio da “interioridade psicológica” e de todo aquele paradigma subjetivo, numerosas aflições emanam da inadequação corporal. 6 Isto é, da falta de fitness. Por isso, as novas modalidades de “cuidado de si” exigem grandes doses de disciplina e força de vontade, e a moralização decorrente chega a ser implacável no julgamento àqueles que não conseguem se adequar: os indolentes, os incapazes, os fracos. É curioso que essa busca tão intensa pela felicidade corporal, tanto em termos de beleza como de saúde e bem-estar físico, em casos extremos seja capaz de incitar também à própria destruição do corpo. Os exageros nos esforços por modelar o próprio corpo para adequá-lo aos padrões da boa imagem podem ter conseqüências imprevistas: em vez de se ajustar, o organismo humano pode evidenciar violentamente seus limites e se quebrar, ou inclusive morrer. A geração que hoje tem entre 50 e 60 anos de idade encarna a viva prova dessa tendência: acostumados a executar o catálogo completo do bio-ascetismo para se manter jovens, belos e saudáveis, estes novos adultos estão “desbordando os limites convencionais das capacidades físicas da mediana idade”. Como conseqüência de tais excessos no cuidado de si, ao longo da última década, a quantidade de lesões esportivas quase dobrou nesse grupo de idade.7 Curiosamente, então, a corpolatria transforma o próprio corpo em um centro pri274
vilegiado de preocupações e sofrimentos, não apenas de prazerosas sensações. Como explica Jurandir Freire Costa, “o narcisismo sensorial leva o eu a dirigir a agressividade motora para o corpo próprio, no intuito de torná-lo conforme a imagem ideal”.8 Nesses casos, ao existir um forte desequilíbrio entre a intensidade das sensações e o nível das agressões, o sujeito pode chegar a perder a noção de que sua vida está em perigo. E, inclusive, pode obter “ganhos masoquistas com a auto-mortificação”, para além dos danos físicos e psíquicos que tais exageros podem acarretar. São diversas as manifestações dessa tendência a dirigir a agressividade em direção ao próprio corpo: da compulsão pela correção cirúrgica de todos os “defeitos” presentes na própria superfície corporal até os excessos na prática do fisiculturismo a fim de obter um corpo musculoso (um tipo de comportamento obsessivo que se conhece como vigorexia); da obsessão pelo consumo exclusivo de alimentos “saudáveis e naturais” para evitar engordar ou adoecer (ortorexia) até a intensa busca da magreza que pode gerar patologias como a anorexia ou a bulimia. Cabem ainda, neste conjunto de novos mal-estares de época, as ansiedades suscitadas pela temível exposição ao olhar alheio, que poderá julgar severamente o próprio aspecto corporal caso este seja “inadequado”, desatando fobias sociais como a síndrome de pânico ou a depressão. Todos esses exemplos refletem as diversas faces de uma “doença” tão penosa como vergonhosa: a desgraça da inadequação corporal. Daí a virulência, às vezes tão insensata que chega a beirar o absurdo, do ódio à flacidez e à gordura que se espalha entre nós: a lipofobia. Tamanho desconforto com relação à materialidade orgânica do corpo humano costuma ter algumas ressonâncias insólitas, que podem ser interessantes para iluminar estas questões pois se apresentam como sintomas extremos do problema aqui examina-
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do. Uma delas é aludida em uma reportagem publicada originalmente no jornal The New York Times sob o título: “O jejum prolongado vira moda em um setor da classe média alta”. O artigo alude a um novo hábito considerado saudável, que se explica da seguinte maneira: “deixar de comer alguns dias ajuda a purificar o corpo contaminado pela comida-lixo e a mente castigada pelo estresse”. Uma nutricionista citada no texto assevera que o jejum conduz a uma depuração completa do corpo: “permite que o sistema digestivo descanse e dá tempo para que as enzimas se dediquem a curar os órgãos, rejuvenescer as células e voltar o tempo para atrás, além de fazer com que a agulha da balança retroceda”. Também são citadas, porém, as vozes dissonantes de alguns profissionais da área de saúde, que alertam contra os perigos envolvidos nessa retórica da pureza corporal, esclarecendo que “nossos corpos não estão sujos”. Uma psicóloga especializada em transtornos alimentares, por sua vez, afirma que “a mera idéia de que seja possível superar as necessidades corporais e a estimulação ambiental para o consumo de comida transmite uma sensação de pureza e virtude”. A nova moda talvez não seja tão estranha assim: ela tem “motivos óbvios”, conclui o artigo, porque hoje a dieta e a saúde suscitam um interesse crescente; “muitas pessoas reagem com força diante da atitude insalubre da sociedade com relação aos alimentos”, esclarece, porque temem “o impacto da comida-lixo em suas vidas e o fantasma da obesidade, que cresce com os anos”.9 Pode-se vislumbrar, aqui, uma leitura paradoxal - e, sem dúvida, carregada de feroz ironia - da música de Chico Buarque intitulada Brejo da Cruz, que em 1984 comentava uma novidade: o hábito de “comer luz” entre as crianças das favelas cariocas. Neste caso, porém, a novidade de “se alimentar de luz” deixa de ser um atributo exclusivo dos pobres abjetos famélicos das urbes subdesenvolvidas,
passando a ser também um hábito dos membros do extremo oposto da pirâmide social; isto é, aqueles que desejam fugir desesperadamente de uma nova ameaça de abjeção: a gordura. Essas duas faces do drama corporal contemporâneo parecem se aparentar hoje em dia, parodiando o capitalismo contemporâneo como uma fabulosa máquina de produção de excesso e falta ao mesmo tempo. Muito bem delimitados em términos socioculturais e econômicos, o fantasma da fome e o fantasma da gordura assombram os sujeitos contemporâneos de modos bastante diferentes e até mesmo contraditórios (e, provavelmente, também complementares). Em ambos os casos, embora de forma perversamente distinta, impõe-se o mesmo sacrifício: não comer. O fenômeno se deixa ilustrar de maneira incrivelmente literal com “o casal que se alimenta de luz”, uma notícia bastante divulgada pela mídia do mundo inteiro em anos recentes. Parece uma fábula, mas não é: a brasileira Evelyn Levy Torrence e seu marido norteamericano Steve Torrence afirmam ter perdido “o vício de comer”. Ambos juram não ter ingerido alimento algum desde 1999, diminuindo também drasticamente todo consumo de líquidos. “Trata-se de um processo de purificação orgânica, como uma cura de desintoxicação”, explica o casal, que mora na Flórida (Estados Unidos) e integra uma associação internacional composta por milhares de pessoas dedicadas a seguir os ensinamentos da australiana Jasmuheen, autora do livro: Viver da Luz, que também afirma praticar esse “estilo de vida” desde 1993.10 Segundo esta perspectiva, o hábito de comer não constitui uma necessidade biológica do organismo humano mas um “vício mortal”, que se pode perder - e que, sem dúvida alguma, se deveria perder. “Só comemos porque somos viciados em comida, uma dependência capaz de provocar 90% das doenças que afetam a humanidade”.11 275
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Pode ser interessante comparar o site que este etéreo casal mantém na Web intitulado: Vivendo da Luz,12 com toda sua eloqüência espiritualista de superação triunfante das constrições corporais - com os weblogs que aderem ao movimento conhecido como ProAnorexia. Nesses sites, adolescentes vítimas de distúrbios alimentares e transtornos dismórficos afirmam sua opção por tais “estilos de vida” e defendem seu “direito de não comer”. As autoras desses relatos cotidianos trocam informações e conselhos para perder peso e glorificam a capacidade de “controlar” o próprio corpo, além de publicarem na Internet fotografias delas próprias e das modelos e atrizes que lhes fornecem thinspiration ou “inspiração para emagrecer”. Uma delas, por exemplo, confessa o seguinte: “tenho que eliminar essa gordura que está no meu corpo, tenho que conseguir e vou conseguir; todas nós vamos ser magras e lindas, vamos ser perfeitas; unidas, temos muita mais força para combater a comida!”.13 Outro desses sites se apresenta assim: “a anorexia não é uma doença e nem um jogo; é uma habilidade, aperfeiçoada somente por umas poucas pessoas: os eleitos, os puros, os impecáveis”.14 Como se vê, a retórica é quase idêntica à utilizada pelo casal que “se alimenta de luz”. E pode ser comparada, também, com os discursos dos adeptos do biochip, um grupo que defende a adoção de uma dieta baseada exclusivamente em brotos de sementes. Segundo seus cultores, esses alimentos seriam portadores não apenas de nutrientes mas também de “memória natural” e “informação viva”, em uma comparação explícita (e algo insólita) com os chips dos computadores.15 No mesmo movimento em que se abraçam comportamentos alimentares desse tipo, tende-se a condenar todos os demais hábitos nutricionais: aqueles adotados pelos “outros”, categoria contra a qual estes costumam se recortar.
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Porque são desagradáveis, impuros e biocidas, por exemplo: contaminam a Terra, envenenam as próprias células, intoxicam o corpo e degradam a saúde, entre outros malefícios igualmente sombrios e vinculados com a idéia de impureza. Assim, sob o amparo de um certo clima new age de inspiração orientalista, a luz do sol é apresentada como uma energia capaz de nutrir os corpos humanos e mantê-los vivos - além de mais bonitos, magros e saudáveis - evitando a necessidade de “contaminálos” com alimentos grosseiramente materiais. Mas não se trata de vertentes isoladas, visto que propostas comparáveis emergem de outro campo fundamental da cultura contemporânea: a tecnociência. São inúmeras as pesquisas que tentam descobrir nos laboratórios entidades como o “gene da obesidade” (ou da magreza) e o “hormônio da fome” (ou da saciedade), como dispositivos técnicos capazes de desprogramar a vontade de comer e, sobretudo, a capacidade de engordar. Outro exemplo desta tendência é a chamada “comida digital”, um tipo de alimento composto de software: substâncias imateriais escritas em código informático. De fato, esse sonho foi apresentado originalmente na ciência-ficção: na primeira parte da trilogia Matrix, diante de um suculento prato de comida prestes a ser devorado, um personagem desse filme explica a outro que tanto o prato como os alimentos que ele contém na realidade não existem, já que se trataria de mera informação. Ou seja, instruções de software capazes de disparar no cérebro todos os efeitos sensoriais que uma versão real do alimento produziria materialmente. Costuma ocorrer que a tecnociência se proponha a realizar os devaneios da ciência-ficção que povoam o imaginário contemporâneo; assim, o jornal Technology Research News anunciou que “investigadores da Universidade Tsukuba elabo-
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raram um simulador de comida que reproduz os sonidos, as texturas e os sabores vinculados com o ato de comer comida real”. 16 O aparelho consiste em uma complexa interface para morder, um alto-falante que acrescenta o som (das mordidas, da mastigação e do ato de engolir), um vaporizador que espalha cheiros e aromas, e um dispositivo que combina os elementos básicos que definem o sabor (doce, azedo, amargo, salgado), todos captados com sensores específicos a partir de alimentos reais. Porém, também neste caso, o que se come é nada. Só se ingere a mais pura luz, embora neste caso ela seja literalmente digital. Mera informação imaterial processada pelos circuitos cerebrais. Por tal motivo, este curioso e ainda precário artefato parece traduzir um grande sonho contemporâneo: a possibilidade de conservar o prazer sensorial de consumir certos alimentos, porém sem incorporar matéria alguma ao corpo que “come” evitando assim, também, o conseqüente excesso de peso, bem como as culpas e as promessas de sacrifícios purificadores. Para além da veracidade ou da viabilidade de todas estas propostas, convém lembrar que seus defensores não pretendem utilizar estas técnicas para mitigar as virulentas necessidades dos famintos que ainda existem em nosso planeta globalizado (em número crescente, cumpre esclarecer). Em todos os casos, ao contrário, a intenção consiste em aplicar essas “técnicas mágicas” para saciar a voracidade do outro extremo da abjeção contemporânea: a quantidade também crescente de obesos e pessoas com sobrepeso em todo o mundo. Mas a nossa tecnociência e seus sonhos de digitalização universal vão ainda mais longe. Não é por acaso que programas de edição gráfica como o PhotoShop desempenham um papel cada vez mais primordial na construção das fotografias que expõem “corpos belos” na mídia, e que constituem uma pode-
rosa fonte de imagens corporais no mundo contemporâneo. Essas técnicas oferecem às imagens corporais tudo aquilo que a ingrata Natureza costuma escamotear aos organismos vivos, e tudo aquilo que as duras práticas bio-ascéticas também insistem em lhes negar, com seus métodos tão analógicos, ainda tão grosseiros em sua maneira de operar sobre a materialidade carnal. Já os afiados bisturis de software conseguem que todos os “defeitos” e outros detalhes demasiadamente orgânicos sejam eliminados facilmente dos corpos fotografados, ao retocá-los e corrigi-los na tela do computador. Tecnicamente purificados, os “corpos modelos” exibidos nas vitrines midiáticas aderem a um ideal de pureza digital, longe de toda imperfeição toscamente analógica e de qualquer viscosidade demasiadamente carnal. Todos os dias, esses modelos digitalizados - e, sobretudo, digitalizantes - desbordam das telas, dos outdoors e das páginas das revistas, para impregnarem os nossos corpos e as nossas subjetividades. As imagens assim editadas se convertem em objetos de desejo a serem reproduzidos na própria carne, que de algum modo se “virtualiza” nesse movimento. Não é por acaso que, em nosso peculiar contexto sociocultural, a profissão exercida pelos cirurgiões plásticos se ofereça como a promessa de realização de tais sonhos imagéticos nos corpos orgânicos, vendendo a possibilidade de deletar todas as imperfeições da carne com total limpeza e eficácia. Tudo ocorre como se os cirurgiões estéticos também operassem sobre imagens de software, em vez de trabalharem sobre corpos orgânicos, e como se a sua tarefa consistisse em redesenhar os traços “defeituosos” em vez de rasgar peles e cortar ossos. A promessa que se vende e se compra, também nestes casos, é a de gerar uma beleza tão asséptica como descarnada: luminosa, imaterial, bidimensional. 277
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Contudo, é atroz o contraste entre os diversos tipos de estratégias purificadoras que foram rapidamente apresentadas nos parágrafos anteriores. Toda a pulcra imaterialidade, a pureza não-orgânica e a cândida luminosidade dos “comedores de luz”, bem como a pureza “viva e digitalizante” dos adeptos do biochip e das brilhantes imagens corporais depuradas com programas de edição como o PhotoShop, estilhaçam-se violentamente nas macas dos cirurgiões e nos padecimentos anoréxicos. Em franco contraste com toda aquela leveza supostamente incorpórea, nestas outras experiências, corpos mortificados protagonizam um drama marcado pela insistência material da carne e pelo intenso sofrimento psicofísico daqueles que desejam se livrar de seu peso. De alguma maneira, porém, todas essas práticas estão aparentadas e sugerem a existência de uma raiz comum: uma atmosfera que as excede e as engloba, certo clima sociocultural, econômico e político que as ampara e as torna possíveis. Não constituem, de certo, os únicos exemplos de “artistas da fome” que hoje proliferam, entre os quais também cabe mencionar os crudivoristas e os vegans, entre muitos outros. Enfim: genuínos puristas e fundamentalistas das normas vigentes, em uma cultura cada vez mais articulada em função dos riscos e da “liberdade de escolha”. Entretanto, há quem vislumbre novas modalidades de “resistência” nestas formas tipicamente contemporâneas de jejum voluntário. Posições desse tipo costumam brotar de uma fonte muito bem delimitada: certo feminismo acadêmico dos Estados Unidos, particularmente sensível diante da possibilidade de politizar a anorexia, por exemplo.17 Os argumentos mais habituais procuram provar que essa capacidade de mortificar e “controlar” o próprio corpo equivaleria a utilizar a última cidadela da autonomia para inscrever nela uma mensagem de oposição. O corpo flagelado seria, segundo esta perspectiva, um campo 278
propício para exercer a resistência política quando já não restam outras formas de fazêlo, assim como em outros tempos e espaços teria ocorrido com santos, faquires e grevistas. Alguns autores reivindicam, inclusive, o parentesco entre estes comportamentos atuais e outros tipos de resistências femininas à opressiva cultura patriarcal ao longo da nossa história, como é o caso de santas, bruxas e histéricas.18 Apesar de mostrar algumas arestas interessantes do problema, as explicações desse tipo não terminam por nos convencer. Entre outros motivos, porque não parece clara a fronteira entre o “controle do próprio corpo” e a falta total de controle nestes casos, defendendo uma resistência mortal cujo valor político é no mínimo duvidoso. Em vez de um desafio às tirânicas regras vigentes, a estratégia da fome parece expressar uma obediência excessiva a tais ditames; até mesmo por abdicar, nesse gesto fatal, de toda possibilidade de fazer realmente alguma coisa. Não há nada de inócuo, portanto, na insistência das imagens corporais irradiadas pelos meios de comunicação, fortemente atreladas a uma série de mitos, crenças e valores hoje vigentes. Ao vincularem de maneira tão estreita a magreza aos padrões de beleza atuais (cada vez mais universalizados e obrigatórios) às conseqüentes práticas de purificação corporal, essas imagens estimulam o “sacrifício da carne” em prol de uma beleza imagética e descarnada, eminentemente visual. Para se aproximar desse protótipo, todo sinal de materialidade orgânica deve ser eliminado. Assumindo o trono do grande ideal contemporâneo, o “corpo perfeito” se apresenta como um alvo ao qual todos os membros da nossa sociedade parecem aspirar. Uma meta moralmente admirável, um objetivo pelo qual é preciso se esforçar, trabalhar, lutar e até morrer. Cabe perguntar, porém, parafraseando Gilles Deleuze, “a que somos levados a servir”.19 Quais são os dispositivos de poder
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que demandam esse insólito sacrifício vital? Quais são as engrenagens que tamanha energia contribui para alimentar, fagocitando tantos esforços e sofrimentos? O que pode (e o que não pode) esse corpo? Eis uma questão fundamental para as artes e as políticas contemporâneas. “Vou me esforçar, preciso disso.. eu venho nessa há muito tempo, mas é o que sempre digo, se um dia eu tivesse parado, pode ter certeza, eu seria uma obesa mórbida, porque minha vontade de comer é intensa, e é essa a razão pela que eu tenho que forçar meu corpo a entrar em starvation... Gordos precisam de dieta para o corpo, magros precisam de Ana para a alma.”
Netotchka - Anorexic Life 20
“A culpa é sempre indubitável.” Franz Kafka 21
4. ORTEGA, Francisco. “Da ascese à bio-ascese, ou do corpo submetido à submissão ao corpo”. In: Orlandi, Luiz; Rago, Margareth.; Veioga-Neto, Alfredo (Orgs.). Imagens de Foucault e Deleuze: ressonâncias nietzchianas. Rio de Janeiro: DP&A, pp. 9-20, 2002. 5. COSTA, Jurandir Freire. O vestígio e a aura: Corpo e consumismo na moral do espetáculo. Rio de Janeiro: Ed. Garamond, p. 20, 2004. 6. Sobre o declínio da “interioridade psicológica” e de todo o paradigma subjetivo representado pelo homo psychologicus, cf. BEZERRA, Benilton. “O ocaso da interioridade e suas repercussões sobre a clínica”. In: Plastino, C. A. (Org.). Transgressões. Rio de Janeiro: Contracapa, 2002; pp. 229239; e Sibilia, Paula. “Do homo psico-lógico ao homo tecnológico: a crise da interioridade”. Semiosfera. Rio de Janeiro: ECO-UFRJ, Ano 3, nº 7, 2004. 7. PENNINGTON, Bill. “Mediana edad: elbaby boom llenalos gimnasios... ylos consultorios”. La Nación. Buenos Aires, p. 12, 17/04/2006. 8. COSTA, op. cit.; p. 123. 9. GRIGORIADIS, Vanesa. “El ayuno prolongado se puso de moda en un sector de la clase media alta norteamericana”. Clarín, Buenos Aires, 02/09/2003.<http://old.clarin.com/diario/ 2003/09/02/s-03701.htm>. 10. JASMUHEEN, Viver da Luz. São Paulo: Ed. Aquariana, 2001. <http://www.jasmuheen.com>. 11. SANTOS FERREIRA, Paula. “Viver da Luz”. A Capital. Lisboa, 7/09/2001.
Paula Sibilia - é professora do Departamento de Estudos Culturais e Mídia do Instituto de Artes e Comunicação Social da Universidade Federal Fluminense - IACS-UFF. Fez graduação em Comunicação e em Antropologia na Universidad de Buenos Aires (UBA),instituição na qual também exerceu atividades docentes e de pesquisa. Em 2002 concluiu o mestrado em “Comunicação, Imagem e Informação” da UFF, publicando o livro: O Homem Pós-Orgânico: corpo, subjetividade e tecnologias digitais (Ed. Relume Dumará), também lançado em espanhol. Em 2006 defendeu sua tese de doutorado em “Saúde Coletiva” na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IMS-UERJ), e em 2007 concluiu o doutorado em “Comunicação e Cultura” da Universidade Federal do Rio de Janeiro - ECO-UFRJ.
Notas 1. PLATÃO. “El Banquete”. In: Diálogos. México: Editorial Porrúa, 1991. 2. CLUNY, Odon de (século X). Apud, PAQUET, Dominique. La historia de la belleza. Barcelona: Claves, p. 109, 1998. 3. Sobre o conceito de “cuidado de sí”, cf. FOUCAUT, Michel História da Sexualidade III. O cuidado de si. Rio de Janeiro: Graal, 1985; e Taylor, Charles. As fontes do self: A construção da identidade moderna. São Paulo: Ed. Loyola, 1997.
12. Vivendo da Luz. <http://www.vivendodaluz.com>. 13. EPPRECHT, Catharina. “Grupos defendem anorexia e bulimia”. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 20/9/2004. 14. DOMINGO, Laura. “Centenares de ‘webs’ proanorexia animan a jóvenes a adelgazar”. El Mundo, Madri, 15/9/2001. Convém esclarecer que sites deste tipo costumam ser objeto de denúncias e são periodicamente retirados da Internet. Porém, continuam a proliferar em todo o mundo; basta digitar o termo “proanorexia” em um site de busca como Google para se ter acesso a vários exemplares, procedentes de diversos países e escritos em uma ampla variedade de línguas. 15. Ana Branco: <http://venus.rdc.puc-rio.br/anabranc>; Vida S a u d á v e l : < h t t p : / / w w w. r i o t o t a l . c o m . b r / s a u d e / arqsau54.htm>; Biochips: aprendendo com os alimentos vivos . <http://wwwusers.rdc.puc-rio.br/anabranc/ portugues/arquivos/ biochip_mayra.doc>. 16. “Device Simulates Food”. Technology Research News, 6/ 08/2003. <http://www.technologyreview.com/articles/ rnb_080603.asp>. 17. Alguns exemplos: Eckerman, Liz. “Foucault, embodiment and gendered subjectivities. The case of voluntary selfstarvation”. In: Petersen, Alan; Bunton, Robin (orgs.) Foucault, Health and Medicine. London: Routledge, pp. 151169; Bordo, Susan. “Eating disorders: The feminist challenge to the concept of pathology”. In: Leder, Drew (Org.). The
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body in medical thought and practice . Londres: Kluwer Academic Pubs., 1992; p. 179-196; MILES, Margaret. “Textual Harasment: Desire and the Female Body”. In: Cole, Letha; Winkler, Mary (orgs.). The good body: Ascetism in contemporary culture New Haven: Yale University Press, 1994, pp. 49-63. 18. Cf. FENDRIK, Silvia. Viagem ao País do Nuncacomer. São Paulo: Ed. Via Lettera, 2005; BELL, R. M. Holy anorexia. Chicago: The University of Chicago Press, 1985. 19. DELEUZE, Gilles. “Post-Scriptum sobre as sociedades de controle”. Conversações. Rio de Janeiro: Ed. 34, p. 226, 1992. 20. Netotchka tem 16 anos, mora em Marília e possui um blog na Internet chamado Anorexic Life. A frase aqui citada foi postada na Web no dia 24/10/2004.<http:// www.anorexics.blogger.com.br>. Convém esclarecer que “Ana” é o termo utilizado para nomear a anorexia, no jargão das adeptas do movimento ProAnorexia, enquanto “Mia” nomeia a bulimia. 21. KAFKA, Franz. Na colônia penal. Rio de Janeiro: Ediouro, p. 15, 1996.
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instituto de artes colóquio
Convergências na Arte Contemporânea
Alguns efeitos de plasticidade a partir da crítica em rede Ricardo Basbaum
Os ouvidos daqueles que trabalham com arte contemporânea estão já habituados à expressão crise da crítica: desde os primeiros momentos que se seguiram à Segunda Guerra Mundial, já se percebia uma perda de eficiência do paradigma de pensamento crítico-humanista, iniciado com o Iluminismo.1 Eventos tais como as atrocidades do holocausto, a explosão de bombas nucleares, a franca instrumentalização e industrialização da ciência, o franqueamento do campo da arte aos jogos do mercado, constituem apenas alguns dos traços que indicavam, naquele momento, um quadro complexo de enfrentamento, frente ao qual as ferramentas conceituais disponíveis - com que se tinha até então praticado as manobras de intervenção emancipatória do pensamento frente aos jogos do poder - não se mostravam mais apropriadas. Diversos autores, a partir de muitas disciplinas, irão procurar contribuir, desde então, para o desembaraço deste fio, em busca de alguma recuperação da potência do pensamento. Fascinante, sob esse aspecto, é se perceber como sem dúvida há um grande, múltiplo e contínuo esforço para tornar clara a presença de mudanças significativas no quadro geral das coisas e se buscar caminhos diferenciados para a reinvenção da potência do pensamento: é claro que se trata, como sempre, de um campo de disputas de diversas posições mas a presença no cenário, desde os anos 1950, de áreas de interesse como estruturalismo, semiologia, semiótica, cibernética e topologia,
por exemplo, contribuem para animar, com novos impulsos, campos diversos do pensamento (filosofia, antropologia, lingüística, psicanálise, etc.) e apontar para um decisivo redelineamento epistemológico dos saberes no final do século XX e início do XXI. Não que a ‘crise’ tenha sido diminuída, debelada ou dissolvida, mas que certamente não permaneceu a mesma – na presença de outros operadores conceituais os impasses do pensamento adquirem diferentes contornos. Ou seja, mais correto seria buscar referências às crises da crítica – assim, no plural –, indicando tanto a presença de mutações em seus impasses, quanto a reiteração de uma certa condição própria do campo de continuamente trazer ao primeiro plano uma investigação acerca de seus contornos, limites e fronteiras, de forma afirmativa (conferindo positividade às regiões de clausura). Para a área da arte contemporânea, a presença reiterada e constante do vetor crise não indicaria necessariamente um impasse ‘paralisante’, mas sim a necessidade de assumir a condição de mutabilidade, fluência e deslocamento contínuos2 – se as coisas deslizam e escapam, por que também o gesto de intervenção crítica não deveria, a seu modo, igualmente refazer-se a cada diferente dobra, corte ou desvio? Ou seja, buscar potencializar-se quando há impasse, inventar possibilidades de deslocamento quando se percebe forçosamente imóvel. Claro que hoje, no limiar de um novo século, frente à expansão do capitalismo 281
cadernos da pós-graduação globalizado,3 fortemente ancorado nas inovações mais avançadas da informática, a tarefa de ‘abrir as coisas’, permeabilizá-las à dúvida e tornar visíveis as relações de poder e construções estratégicas torna-se esforço considerável, frente à escala aparentemente totalizante da “instalação progressiva e dispersa de um novo regime de dominação”.4 Para o estudioso italiano Omar Calabrese (crítico de arte, semioticista), é próprio da crítica de arte o exercício de um “antimétodo”, a “rejeição dos métodos”,5 ou seja, evitar partir de um “esquematismo teórico”, um método de trabalho fixo e decidido a priori, para buscar a configuração de sua metodologia a partir da relação direta com o objeto junto ao qual se pretende exercer a mediação discursiva.6 Ainda que, desde as pontes entre arte e fenomenologia estabelecidas por MerleauPonty (e que se mostraram influentes no desenvolvimento da crítica de arte contemporânea a partir de meados dos anos 1950, tendo Ferreira Gullar entre seus pioneiros), tenha se tornado imprescindível o estabelecimento de um enfrentamento presencial – o chamado “embate corpo-a-corpo” com a obra –, podese perceber o campo da crítica contemporânea marcado por alguma disponibilidade experimental, isto é, frente ao conhecido e celebrado “campo ampliado” da arte contemporânea é possível a indicação de alguns traços em que também a crítica de arte procura reinventar-se em seus pressupostos, de modo a continuamente refazer suas relações com a produção. Voltando à referência anterior, o pequeno ensaio de Rosalind Krauss7 é representativo, sem dúvida, da atitude renovadora do grupo de historiadores e críticos de arte reunidos em torno da revista October: abrir-se à perspectiva de aproximação de diversos campos de estudo – psicanálise, lingüística, semiótica, literatura, etc. – para configurar sua abordagem do objeto de arte a partir da utilização de instrumentos conceituais de várias pro-
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cedências, onde o saber que se constrói em torno da arte resulta da experiência de articulação conceitual realizada. É interessante enfatizar, para a crítica de arte, como um dos caminhos possíveis de desenvolvimento – ou seja, possibilidades de reinvenção frente a um permanente estado de crise – o exercício de aproximação com a utilização de ferramentas plásticas e sensíveis extraídas das obras, realizado a partir de características pertencentes à sua modalidade própria de escrita. Sabe-se que este é um caminho que acredita na força característica da escrita; logo, não haveria qualquer coincidência no fato de diversos poetas terem contribuído decisivamente no encaminhamento de muitas das discussões deste campo: acostumados a trabalhar com os limites da escrita, trazem para o exercício da crítica certa desenvoltura estrutural que os permite arrancar novas palavras, termos e conceitos frente à linguagem estabelecida, plasmando novos sentidos junto às exigências concretas derivadas do enfrentamento da obra plástica. Percebese que, quase sempre – nos textos mais instigantes, naqueles decisivos –, há a inauguração de um vocabulário novo, uma sintaxe particular, um uso de recursos gráficos, necessários para a escrita investida da força de aproximação para com as obras de arte. Há um trabalho conjunto, assim como há a elaboração de uma modalidade de objetos plásticos, a partir da escrita. Escreve Omar Calabrese: “a forma poética secreta e enigmática da linguagem dos críticos não é um truque ocasional, mas algo de co-natural à sua tendência de autolegitimação valorativa”8: ou seja, junto ao seu papel de mediação discursiva em contato com o trabalho de arte – no qual se propõem manobras de construção de sentido e instauração de um campo problemático – é próprio do texto crítico, enquanto peça de escrita, um olhar para si próprio em sua materialidade constitutiva, atento
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à sua própria construção, vocabulário, sintaxe, dicção, textura, aspecto gráfico, etc. Claro que esta atenção do texto para consigo mesmo não é privilégio – dentre os campos discursivos que se diferem da literatura – da crítica de arte; assim como, entre aqueles que praticam a crítica, não é necessário atuar como poeta para manifestar atenção e inventividade para com a escrita. Mas é importante que se considerem tais cuidados não como exercício de estilística literária, mas enquanto portadores de um modo plástico próprio da escrita – importante produtor de sentido, tanto em relação à construção formal do texto quanto em ressonância e homologia com as características próprias das obras em questão naquele momento. Nesse caso, é decisivo que se perceba o texto crítico também como ferramenta de produção de sentido plástico – e não apenas ‘conteudístico’. Ao se referir a seu livro Lógica do sentido, Gilles Deleuze afirma que sua busca – expressa naquela obra – por “uma forma que não seja aquela da filosofia tradicional”9 passou por uma investigação topológica da história da filosofia e da literatura: o encontro com a literatura de Lewis Carroll (“trata-se de um explorador, um experimentador”) e seus “três grandes livros Alice, Alice através do espelho e Sílvia e Bruno”, se deu a partir da capacidade do autor inglês em “renovar-se segundo as dimensões espaciais, os eixos topológicos”: “Em Alice, as coisas se passam em profundidade e altura (...). Em Alice através do espelho existe, ao contrário, uma surpreendente conquista das superfícies (...). Com Sílvia e Bruno, trata-se de outra coisa: duas superfícies coexistem com duas histórias contíguas (...).” E mais: desta vez em relação direta com o campo mesmo da filosofia, indica as seguintes co-relações: “o platonismo, e a altura que orienta a imagem tradicional da filosofia; os présocráticos e a profundidade (...); os estóicos e sua nova arte das superfícies...” O interesse
de Deleuze concentra-se na investigação de “como o pensamento se organiza segundo eixos e direções”, desenvolvendo uma apreensão sensível em termos de espacialidade, uma vez que “segundo as direções, não se fala da mesma maneira, não se reencontram as mesmas matérias: com efeito, é também uma questão de linguagem ou de estilo”. Se o filósofo francês está em busca de outro modo de pensar, sua escrita terá que atentar à plasticidade de que é portadora, indicar possibilidades de se aproximar e se articular a seus objetos, procurar como se dará o envolvimento com o leitor, perceber-se como produtora de proposições que dizem respeito ao eixo espaço-tempo em suas várias derivações – isto é, investir no processo de construção de linguagem próprio do texto, uma vez que os aspectos plásticos e sensíveis de sua materialidade já configuram caminhos na produção do sentido que se pretende configurar.10 O que se nota aqui é que a renovação do discurso crítico passa de modo significativo pela busca de caminhos de estruturação plástica ou topológica da escritura, com a consciência de que se trata de um percurso em que é necessária atenção em trabalhar as articulações entre escrita e percepção, entre as ferramentas conceituais adotadas e a linguagem das obras a que se quer construir referência e mediação. Expressando as inquietações trazidas pela vivência dos novos objetos a que se vê confrontado, Frederic Jameson escreve: “Ainda não possuímos o equipamento perceptual que nos permita perceber esse novo tipo de hiperespaço (...) em parte porque os nossos hábitos de percepção foram formados naquele antigo tipo de espaço que denominei o espaço do alto modernismo”.11 Se tais limitações indicam com clareza a necessidade de se buscar as ferramentas conceituais adequadas, é preciso também investir na organização topológica da escrita, de modo a costurar as linhas argumentativas do pensa283
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mento crítico – “a própria palavra escrita abstrai propriedades do fluxo da experiência e as fixa em forma espacial”.12 Nesse sentido, pode ser experimentado um caminho de desenvolvimento das relações entre discurso e obra de arte através da investigação das possibilidades dos arranjos espaciais e plásticos – topológicos – envolvidos na operação.13 Somos conduzidos, então, para mais um diagnóstico de crise da crítica, que parte da necessidade de uma “mudança topológica” para que se possa experimentar outra modalidade de construção argumentativa frente às coisas – trata-se das pesquisas desenvolvidas a partir dos anos 1990 por Bruno Latour (entre outros), que sugere que “ao invés de pensar em termos de superfícies – duas dimensões – ou esferas – três dimensões – o que se propõe é que se pense em termos de nós, que possuem tantas dimensões quanto suas conexões”.14 Tal caminho tem sido investigado por Latour a partir de sua constatação de que, de fato, se queremos continuar desenvolvendo alguma potência ligada ao pensamento, será necessário questionar as premissas do que foi chamado de “modernidade”: sua afirmação, transformada em pergunta, pretende localizar o trabalho investigativo no quadro das problematizações contemporâneas: “jamais fomos modernos”15, escreve. Para o autor, a atual crise do pensamento se deve a diversos impasses decorrentes das promessas modernas, nunca enfim atingidas em sua plenitude – a “passagem do tempo”, por exemplo, que caracteriza o “novo regime” da modernidade através de “uma aceleração, uma ruptura, uma revolução no tempo”, não permite mais, hoje, que se “mantenha essa dupla assimetria: não podemos mais assinalar a flecha irreversível do tempo nem atribuir um prêmio aos vencedores (...) nada mais nos permite dizer se as revoluções dão cabo dos antigos regimes ou os aperfeiçoam”. O caminho que indica inclui “retomar a definição de 284
modernidade, interpretar o sintoma da pósmodernidade, e compreender porque não nos dedicamos mais por inteiro à dupla tarefa da dominação e da emancipação”. De fato, a hipótese de trabalho de Latour não implica em simples e sumária rejeição da modernidade, mas na compreensão de recente transformação em seus pressupostos – cujo desdobramento produtivo efetivamente implicará, como veremos, em significativa reformulação das condições de organização do pensamento: “(...) a palavra moderno designa dois conjuntos de práticas totalmente diferentes que, para permanecerem eficazes, devem permanecer distintas, mas (...) recentemente deixaram de sê-lo. O primeiro conjunto de práticas cria, por ‘tradução’, misturas entre gêneros de seres completamente novos, híbridos de natureza e cultura. O segundo cria, por ‘purificação’, duas zonas ontológicas completamente distintas, a dos humanos, de um lado, e a dos não-humanos, de outro. Sem o primeiro conjunto, as práticas de purificação seriam vazias ou supérfluas. Sem o segundo, o trabalho de tradução seria freado, limitado ou mesmo interditado. O primeiro conjunto corresponde àquilo que chamei de redes, o segundo ao que chamei de crítica.”
O problema da modernidade residiria, principalmente, em uma busca crítica que isola uns dos outros “epistemólogos, sociólogos e desconstrutivistas”, cada qual “alimentando suas críticas com as fraquezas das outras duas abordagens”, sendo que “cada uma (...) [das] formas de crítica é potente em si mesma, mas não pode ser combinada com as outras”: entretanto, a crescente percepção de que é necessário interconectar “natureza”, “política” e “discurso” em busca de “uma nova forma que se conecta ao mesmo tempo às coisas e ao contexto social, sem contudo reduzir-se nem a uma coisa nem a outra” aponta, para Latour e seus colegas, para o fato de que “a própria crítica deve entrar em crise por cau-
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sa destas redes contra as quais se debate”. Ou seja, ainda que reconhecendo a importância da “tripartição crítica” e sua construção “purificada” dos “conceitos”, do “social” ou da “retórica”, é preciso se perceber que a única forma de compreendermos nossos próprios impasses (e Latour indica aqui a necessidade de realizar uma etnografia sobre nós mesmos, “fazer uma antropologia do mundo moderno”) se dará através da busca de “continuidade” entre as diversas análises. Atravessando “as fronteiras entre os grandes feudos da crítica” – e sem ser “nem objetivas, nem sociais, nem efeitos de discurso” –, “as redes são ao mesmo tempo reais como a natureza, narradas como o discurso, coletivas como a sociedade”. O ponto-chave residiria, então, em trabalhar de maneira dupla, considerando a necessidade de articular a produção de objetos – através da purificação – com a construção de redes – por meio de mediações produtoras de “híbridos”: “enquanto considerarmos separadamente estas práticas, seremos realmente modernos, ou seja, estaremos aderindo sinceramente ao projeto da purificação crítica, ainda que este se desenvolva somente através da proliferação de híbridos. A partir do momento em que desviamos nossa atenção simultaneamente para o trabalho de purificação e o de hibridação, deixamos instantaneamente de ser modernos, nosso futuro comeca a mudar. (...) Qual o laço existente entre o trabalho de tradução ou de mediação e o de purificação?”
Bruno Latour considera que a tarefa de se pensar duplamente, nos termos de “trabalho de mediação (...) e de purificação” nos indicaria o processo de uma verdadeira “contrarevolução copernicana”, em que ocorre uma “inversão da inversão”, onde os “extremos” (pólos intermediários/natureza e purificação/ sujeito-sociedade) “deslizam rumo ao centro e para baixo, [fazendo] girar tanto o objeto quan-
to o sujeito em torno da prática dos quase-objetos e dos mediadores”: “a natureza gira, de fato, mas não ao redor do sujeito-sociedade. Ela gira em torno do coletivo produtor de coisas e de homens. O sujeito gira, de fato, mas não em torno da natureza. Ele é obtido a partir do coletivo produtor de homens e coisas.” Trata-se de pensamento cuja complexidade escapa aos limites deste ensaio; entretanto, está aí delineado um caminho onde os limites e impasses de um formato de operação crítica, voltado para o pólo purificador-disciplinar, são contrapostos à possibilidade de reorganização dessa modalidade de discurso. Lembrando que o termo réseau origina-se com Diderot – que o utilizou para descrever “matérias e corpos de modo a evitar a divisão cartesiana entre matéria e espírito”16 – Latour retoma a “mudança de topologia” trazida pelo pensamento em rede, ao apontar que, “ao invés de superfícies, tem-se filamentos (ou rizomas)”17; ao invés de “espaço social ou ‘real’, simplesmente associações”. É próprio da noção de rede o desenvolvimento de uma potência que não parte de “concentração, pureza ou unidade”, mas da sensação de que “resistência, obstinação e firmeza são mais facilmente obtidos através de enredamento, entrelaçamento, costura e trama de amarras que são fracas em si mesmas”, sendo que “não importa quão forte for a ligação, ela terá sido tecida de fios ainda mais frágeis”. O fato de partirem de “localidades irredutíveis, incomensuráveis e desconectadas, que então, a grande custo, conduzem a conexões provisórias e comensuráveis” indica que, no caso das redes, a “Universalidade ou ordem não são a regra, mas as exceções”. Para Latour, está em jogo aqui uma “reversão figura/fundo”: ao invés de se trabalhar com objetos isolados, em sua autonomia e contornos claramente definidos,18 tem-se um campo de relações preenchido por incontáveis tramas. “Literalmente, não há nada a não ser redes, não há nada en285
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tre elas, (...) não há ‘éter’ no qual poderiam estar imersas” – este seria o primeiro passo em direção a uma “ontologia não-reducionista e relacional”.19 Somos conduzidos assim a percorrer um caminho argumentativo que, procurando reagir à crise da crítica, busca desenvolver um olhar diverso sobre as coisas: é importante perceber que tal desdobramento demarca uma clara consciência de organização espacial – ou seja, há uma elaboração argumentativa que aposta ao mesmo tempo em um modo de entrelaçamento entre campo discursivo e objeto. Qualquer procedimento de uma operação crítica, nesse caso, irá apontar para as estratégias conceituais e argumentativas de um funcionamento em rede, ao mesmo tempo em que compreende que a caracterização topológica do conjunto discursivo a ser elaborado também trabalha, simultaneamente, na construção material e concreta de um tecido onde texto e obra de arte estabelecem conexões, ligações reais e efetivas. Somando-se às preocupações de Bruno Latour, o pesquisador inglês John Law20 sintetiza mais algumas características deste procedimento problematizador, desenhado a partir das características dinâmicas próprias das redes: trata-se de um modelo de pensamento decorrente da junção de “materialidade relacional” e “performatividade” – enquanto que o primeiro aspecto decorre de uma “semiótica da materialidade”, onde a noção de que “as entidades são produzidas em relações” é “aplicada a todos os materiais, e não simplesmente àqueles não lingüísticos”, o segundo indica que, uma vez que “as entidades atingem sua forma como conseqüência das relações em que se localizam”, elas então são “performatizadas nas relações, assim como por meio e através delas”. A partir daí, fica apontada a condição de se “pensar topologicamente”, já que “a topologia se ocupa da espacialidade, em particular com os atri286
butos que asseguram a continuidade de objetos enquanto são deslocados através do espaço”: o “ponto importante é que a espacialidade não é dada [nem] fixa, não é parte da ordem das coisas” – logo, “a noção de ‘rede’ é em si mesma um sistema topológico alternativo”, já que “em uma rede, os elementos retém sua integridade espacial em virtude de suas posições em um conjunto de ligações ou relações”. Ao confrontar-se com noções do senso-comum relativas à apreensão do espaço, este pensamento em rede efetivamente atua como “uma máquina para declarar guerra ao Euclidianismo”, contribuindo para sua “desestabilização”, uma vez que “mostra que o que aparenta ser topograficamente natural, dado pela ordem do mundo, é na verdade produzido em redes”. Neste momento, é necessário que se inicie um deslocamento que traga novamente a crítica de arte para nosso campo de discussão: ao apontar as características de um pensamento em rede, indicando sua própria estruturação topológica como ferramenta de enfrentamento dos impasses da modernidade, o que nos interessaria seria indicar de que maneira o campo do debate crítico da arte contemporânea poderia avançar em sentido produtivo, isto é, verificar se de alguma maneira se abrem algumas possibilidades de associação entre texto e obra de arte frente à constante presença de uma crise. Imediatamente se destacam quatro comentários ou percursos possíveis, trazidos aqui em forma de rápidas anotações – cada qual mereceria uma articulação mais detalhada, assim como uma investigação que se aproximasse da obra de certos artistas, de modo a experimentar concretamente processos de intervenção crítica.
1. O que me parece mais impactante nas teorias que se propõem a trabalhar um pensamento em rede21 é a utilização forte e franca
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do discurso como forma mesma de produção de articulações entre os objetos. A convergência, já mencionada, da ‘forma’ rede para com seus pressupostos epistemológicos de construir um pensamento a partir da referência ontológica ao aspecto conectivo, implica na revelação de um impressionante potencial de aproximação entre ‘as palavras e as coisas’: segue-se a possibilidade de uma escrita mais do que nunca ‘táctil’, que eventualmente se aventure no compartilhamento com a obra de um espaço conjunto, onde algumas dessas tramas sejam processadas. Imagina-se a ferramenta discursiva construindo gestos de intervenção crítica em inédita proximidade com as obras. 2. Outro ponto que imediatamente se destaca é a possibilidade de se perceber a espacialidade própria da obra de arte como construção conjunta da rede discursiva somada às características sensíveis e materiais das obras. Tendo a organização espacial como resultado deste pensamento em rede, que articula texto e obra de arte, vê-se o quanto o desenvolvimento discursivo se coloca também como agente na proposição de modelos de espaço: ocorre uma articulação entre agregado sensível e campo textual, de modo a produzir formações espaciais próprias. Logo, seria possível dizer que cada novo texto crítico redesenha os contornos espaciais das obras de arte a que se refere. 3. Não é difícil de se perceber que as articulações entre texto crítico e obra, mencionadas nos dois itens anteriores, são de certa forma experimentadas nos casos em que artista e crítico desenvolvem trabalho conjunto de ‘fôlego’, permeado por um olhar recíproco de um sobre o outro: este seria o caso do desenvolvimento de Ferreira Gullar junto ao neoconcretismo, ou de Ronaldo Brito junto a Waltércio
Caldas. Em ambos os casos, a força de invenção presente nos textos é capaz de arrastar obras para um enredamento em que é instaurado um processo de indissocia-bilidade entre ‘obra’ e ‘discurso’. Certamente o que ocorre nesses casos já se passa em outra região, diferenciada em relação ao mero discurso ‘crítico’. As características topológicas de um pensamento em rede certamente podem auxiliar na determinação das manobras e operações que são ali postas em jogo. 4. Uma aproximação das teorias de pensamento em rede com certos desenvolvimentos da arte conceitual apontam para a constatação de que, efetivamente, o campo da arte contemporânea colocou em funcionamento uma modalidade de percepção capaz de, em um mesmo ato perceptivo, proceder a uma “dupla captura”: o objeto artístico é percebido tanto nos contornos próprios de sua autonomia, quanto em seu enredamento com outras entidades fora de si, pertencentes a seu entorno concreto material ou imaterial. Ou seja, a arte contemporânea já tem exercitado, em suas produções das últimas décadas do século XX, uma verdadera percepção em rede – cuja importância reside, sem dúvida, em trazer para junto das experiências corporais um procedimento de extrema complexidade formal e epistemológica. Claro que é tarefa da crítica de arte – e seus campos afins da história e teoria da arte, por exemplo – mergulhar nesta ampla área de possibilidades; assim como, por outro lado, enquanto elemento decisivo, participante deste mesmo enredamento, também a dinâmica das práticas artísticas deve focalizar esforços experimentais nesta mesma direção. Afinal, ainda sendo ‘duplo’, trata-se de um mesmo trabalho, cujo objetivo é manter a potencialidade do pensamento e sua capacidade de intervenção no entorno.
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Ricardo Basbaum - É artista plástico e professor do Instituto de Artes da Universidade Estadual do Rio de Janeiro - UERJ. Possui textos publicados em catálogos de exposições e em diversas revistas especializadas, no Brasil e no exterior, entre as quais se incluem Verve, Galeria, Guia das Artes, Gávea, Arte & Ensaio, Trans, Lapiz, Atlantica, Poliester, Blast, Revista da USP, Porto Arte, O Carioca, Confidências para o exílio, Número e Concinnitas. Colaborador dos livros The next documenta should be curated by an artist (Nova York, Revolver, 2004), e Interaction: artistic practice in the network (Nova York, Eyebeam Atelier e D. A. P., 2001), entre outros. Organizou a coletânea Arte Contemporânea Brasileira – texturas, dicções, ficções, estratégias (Contra Capa, 2001). Autor dos livros de artista de G. x eu (1997) e NBPx eu-você (2000).
Notas 1. ARGAN, Giulio Carlo. Arte Moderna, São Paulo, Cia. das Letras, 1992. Um dos mais conhecidos diagnósticos é aquele relatado em diversos de seus escritos, entre os quais o célebre último capítulo denominado: “A crise da arte como ciência européia”. 2. DELEUZE, Guilles. Conversações. São Paulo: Editora 34, 1992. É nesse sentido o autor procura apontar indicações de construção de um pensamento fluido de “resistência”. Cf. “Post-scriptum sobre as sociedades de controle”. 3. HARVEY, David. “Do fordismo à acumulação flexível”. In: Condição pós-moderna. São Paulo: Edições Loyola, 1992. O autor aponta para a “passagem para um regime de acumulação inteiramente novo, associado com um sistema de regulamentação política e social bem distinta. (...) A acumulação flexível, como vou chamá-la, é marcada por um confronto direto com a rigidez do fordismo”. 4. A expressão é de DELEUZE, op. cit. 5. CALABRESE, Omar, “A linguagem da crítica de arte”. In: Como se lê uma obra de arte. Lisboa: Edições 70, s/d. 6. Uma rápida observação: Lucy Lippard e Frederico Morais, entre outros, são alguns exemplos de críticos de arte que procuraram experimentar o exercício da crítica a partir de mediações não-discursivas. Trata-se, certamente no caso do brasileiro, de produções pouco estudadas – F. Morais, nos anos 1970, chegou a estabelecer diálogos com artistas a partir da realização de exposições, além de dedicar-se à elaboração de obras audiovisuais com a utilização de diapositivos. 7. KRAUSS, Rosalind . “A escultura no campo ampliado”. Gávea, Rio de Janeiro, nº 1, s/d. 8. CALABRESE, op. cit., p. 18. 9. DELEUZE, Gilles. “Note pour l’édition italienne de Logique du sens“. In: Deux regimes de fous - textes et etentretiens 1975 - 1995. Paris: Les Éditions de Minuit, 2003. As demais citações que se seguem provém da mesma fonte.
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10. DELEUZE, op. cit. Continuando a pesquisar nesta direção, o autor relata que, a partir de seu encontro com Félix Guattari, se dá a produção de O Anti-Édipo: neste livro, “não há mais altura, nem profundidade, nem superfície. Ali tudo chega, as intensidades, as multiplicidades, os acontecimentos, tudo se faz sobre uma espécie de corpo esférico ou moldura cilíndrica– corpo sem órgãos”. 11. JAMESON, Frederic. “The Cultural Logic of Late Capitalism. Apud HARVEY, op. cit. 12. HARVEY, David, op. cit. Vale lembrar a formação de Geógrafo do autor inglês. 13. BASBAUM, Ricardo. “Convergências e superposições entre texto e obra de arte”. Dissertação de Mestrado. Orientação de Rogério Luz, ECO-UFRJ, 1996. Desenvolvi uma primeira aproximação do problema em minha dissertação de mestrado, através de referências à antropologia e filosofia, seguindo sobretudo os trabalhos de Foucault e DeleuzeGuattari. 14. LATOUR, Bruno. “The trouble with Actor-Network Theory”, disponível em <http://www.ensmp.fr/~latour/poparticles/ poparticle/p067.html>. 15. LATOUR, Bruno. Jamais fomos modernos. Rio de Janeiro: Editora 34, 1994. “Eu seria então, literalmente, um pós-moderno? O pós-modernismo é um sintoma e não uma nova solução. Vive sob a Constituição moderna mas não acredita mais na garantias que esta oferece. Sente que há algo de errado com a crítica sem no entanto acreditar nos seus fundamentos”. p.50. As citações que se seguem, salvo quando indicado, têm este livro como referência. 16. LATOUR, Bruno. “The trouble with Actor-Network Theory”, 1994, op.cit. As citações que se seguem têm como referência este mesmo texto. 17. Latour menciona o trabalho de Gilles Deleuze e Félix Guattari: “Introdução: rizoma”, in Mil Platôs. Rio de Janeiro: Editora 34, Vol. 1, 1995. Em outro texto, Bruno Latour comenta acerca de como a noção de rede se tornou banalizada na última década: “Este é o grande perigo de se utilizar uma metáfora técnica antes de seu uso comum, por todos. Agora que a World Wide Web existe, todos acreditam que sabem o que é uma rede. Enquanto que há vinte anos atrás havia ainda algum frescor no termo, como ferramenta crítica contra noções tão diversas como instituição, sociedade, estado-nação e, em geral, qualquer superfície plana, agora perdeu seu radicalismo e tornou-se a noção favorita de todos aqueles que querem modernizar a modernização. ‘Abaixo as instituições rígidas’, dizem, ‘vida longa às redes flexíveis’. (...) Naquele momento, a palavra rede, como o termo rizoma, de Deleuze e Guattari, claramente significava uma série de transformações – traduções, transduções – que não poderiam ser capturadas por qualquer dos termos tradicionais da teoria social. Com sua nova popularização, agora a palavra rede siginifica transporte sem deformação, um acesso instantâneo, imediato, a toda peça de informação. Isso é exatamente o oposto do que queríamos dizer. Gostaria de chamar de ‘informação de duplo-clique’ [double click information] aquilo que assassinou a última porção de radi-
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calismo crítico da noção de rede.” “On recalling ANT”. In: LAW, John e HASSARD, John (orgs.). Actor network theory and after, Oxford: Blackwell Publishing, 1999. É claro que estamos aqui utilizando o termo ‘rede’ em sua primeira acepção. 18. HARAWAY, Donna. “Manifesto ciborgue: ciência, tecnologia e feminismo-socialista no final do século XX”. In: Silva, Tomaz Tadeu da, Antropologia do ciborgue. Belo Horizonte: Autêntica, 2000. Donna Haraway registra a mesma questão, indicando, através de paráfrase de Michel Foucault, que vivemos em um momento de ocaso da análise clínica que diagnostica claramente seus objetos, através de linhas e contornos definidos: “É hora de escrever A morte da clínica. Os métodos da clínica exigem corpos e trabalhos; nós temos textos e superfícies. Nossas dominações não funcionam mais por meio da medicalização e da normalização; elas funcionam por meio de redes, do redesenho da comunicação, da administração do estresse.” 19. LATOUR, B. “The trouble with Actor-Network Theory”, 1994, op.cit. 20. LAW, John , “After ANT: complexity, naming and topology”. In: Org. In: LAW, John e HASSARD, John (orgs.), 1999, op.cit. 21. LAW e HASSARD, op. cit. Recentemente este corpo de pensamento foi batizado de actor-network theory (uma versão aproximada poderia ser ‘teoria do agente-rede’), e organizado sob a sigla ANT. Entretanto, alguns de seus principais pensadores – como os aqui citados Bruno Latour e John Law – reagem fortemente a tal etiqueta, procurando escapar da fixação de seu pensamento em uma ‘teoria’, sob risco de excessiva simplificação e banalização.
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Convergências na Arte Contemporânea
Troca-troca: arte e história como transversalidade Sheila Cabo Geraldo 1. A obra em deriva “Onde o senhor vai estacionar a obra?” Ouvindo essa pergunta, Jarbas Lopes termina o vídeo-registro da deriva dos três carrosbólides, como descritos no Diário de Bardos1, que protagonizara em 2002. Nos carros, além de Jarbas, viajavam Luis Andrade, Aimberê César, Marssares, Ducha, Jorge Melodia, Sérgio da Torre e Léo. Os oito artistas-anti-artistas-não-artistas-an-artistas2 jogaram durante cinco dias o jogo da viagem nos três “fuscas” de Jarbas, que havia sido convidado a levar a “obra” para a inauguração do Museu de Arte Contemporânea de Curitiba, hoje chamado Museu Oscar Niemeyer. A viagem havia começado em uma oficina no Méier, subúrbio do Rio de Janeiro, onde os carros foram preparados e pintados de azul, vermelho e amarelo, tendo, além de sonorização em rede, as cores de suas partes alternadas, ou seja, as portas, os capots e os porta-malas haviam sido trocados, resultando em três besouros mondrianescos, que receberam, ainda, adesivos com palíndromos de Luis e som de Marssares. Passando pelo bairro da Lapa, no centro boêmio do Rio de Janeiro, o comboio segue para Austin, na Baixada Fluminense, onde acontece a primeira parada-para-comer-e-sambar. Depois dessa, entre oficinas, hotéis baratos e banhos de rio, param em Seropédica, Resende, Itatiaia, Aparecida do Norte, Jacareí, Grande São Paulo, São Paulo, Avenida Paulista, São Lourenço de São Paulo, Registro e Barra do Turvo até
chegar a Curitiba. As paradas, nem sempre prazerosas, muitas vezes são forçadas pelas condições dos carros, que, muito antigos, enguiçam constante e sucessivamente. Empurrar carro na chuva, pernoitar em hotel de estrada, perder-se e achar-se nas ruelas e avenidas é parte do que chamam hoje Troca-troca: um objeto-proposição-performance-vídeo. O historiador de arte, na aproximação de Troca-troca, tanto do vídeo quanto dos carros ou do Diário, é levado indiscutivelmente à reflexão sobre as formas e apresentações que as manifestações artísticas tomam na contemporaneidade, mas, sobretudo, é lançado no debate sobre a possibilidade da história da arte dar conta de tal manifestação, assim como é lançado às discussões sobre a escrita histórica que essas manifestações requerem. Uma vez sendo o fato artístico rarefeito em sua historicidade, a obra apresentada por Jarbas - que também poderíamos nomear, seguindo a história, de não-objeto, ou não-obra, ou ainda anti-arte, na sua incerteza - lança aquele que a quer historiar ao mesmo tempo na percepção e análise do projeto, no exercício de acompanhamento reflexivo de seu intrincado processo, assim como na elaboração conceitual, que os recursos de registro de fatos artísticos implicam, na media em que esses registros se tornam fatos artísticos em si. O que se apresenta como discurso histórico necessário, então, aproxima-se inconteste do discurso da teoria, pela proximidade não só 291
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com outros objetos artísticos, mas, sobretudo, com os esquemas de pensamento, que esses objetos fazem aflorar, como o desencadeado pela adoção em Troca-troca da relação de cores ou, ainda, pela referência explícita aos Ready-mades de Marcel Duchamp, os quais nos remetem aos exemplos de anseio de reconstrução plástica do mundo coincidente com a dúvida sobre a permanência da arte no mundo moderno e contemporâneo. Mas, nesse trabalho-projeto-registro afloram, ainda, os discursos de viagem, que tomam aqui a forma do relato impresso e da imagem-cinema, assim como aqueles referentes ao mapeamento geográfico e à cartografia cultural, os quais de alguma forma envolvem o debate sobre a institucionalização das relações em arte, que o processo de globalização vem ampliando. A expressão do rosto de Jarbas, registrada no vídeo, ao ouvir do segurança do Museu a frase com a qual iniciamos esse texto, é absolutamente reveladora desse debate. Partindo da constatação de que a realidade da obra é que se impõe, mas percebendo igualmente que a obra de arte é, em si, uma ficção, já que sua existência e seu valor dependem do sentido que admitem no tempo, na cultura e na história, é fácil concluir que a própria história da arte é uma ficção, abrindo-se para infindáveis experimentações. Segundo Belting, “A arte é uma ficção histórica, como já provou Marcel Duchamp, do mesmo modo que a história da arte, o que André Malraux descobriu sem querer quando escreveu sobre o ‘museu sem paredes’”.3 Sendo assim, libertos da necessidade de uma certa tradição histórica, há que se procurar a ficção que dê conta da cultura artística moderna, mas, sobretudo, da contemporânea, a qual se liga à cultura artística numa relação transversal e não necessariamente pelo método da procura da tradição, da influência, do desenvolvimento, da evolução, da fonte e da origem.
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2. História e transversalidade A expansão do sentido da arte no mundo contemporâneo está intimamente associada ao questionamento da hegemonia e da centralidade cultural e política européia e norte-americana. Pensar a arte hoje, significa portanto ter em mente o debate dos acontecimentos no nível cultural global dos últimos anos. Mas, para se falar em arte, do ponto de vista da história, teremos que falar, necessariamente, do debate em torno do deslocamento do campo específico das experimentações de linguagem e meio artístico para o campo ampliado das relações, quando a arte conecta distâncias e negocia significados.4 Assim, há que se estabelecer um espaço de debate histórico cujo foco central recaia nos encontros, onde possam ser analisadas as semelhanças e diferenças nos comportamentos artísticos, teóricos e culturais dos mais diversos centros. Um debate em história que dê conta do fenômeno da globalização e das diversidades culturais, das múltiplas concepções de arte daí decorrentes e de teorias que admitam essas diversidades. Nesse sentido, ao pensar no fazer histórico, enquanto história da arte, além do mapeamento dos problemas e dos enfrentamentos específicos da produção, circulação, recepção e teorização da arte, impõe-se, de imediato, o debate no campo da própria história, já que, mais do que nunca, irrompem questões de campos exteriores, como o da antropologia, o da teoria política e o da sociologia, os quais vão concorrer para o levantamento das contradições mas também para a identificação dos sentidos da arte no mundo contemporâneo, ainda que os reconheçamos como provisórios. Fazendo parte dessas questões estão os debates em torno da imigração e da exclusão, debates diretamente ligados à noção de “outro” cultural em todas as suas situ-
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ações, tanto fora das fronteiras - como é o caso das culturas não ocidentais, não brancas e não homogêneas, ou seja, híbridas, que desestabilizam o sentido da arte no ocidente, reconhecidamente hegemônico -, mas também dentro das próprias fronteiras culturais, que envolvem a marginalização e os sistemas de controle do “diferente”, como é o caso do debate sobre o gênero na arte, negado por séculos. Participando, ainda, da discussão da historiografia da arte contemporânea estão os debates sobre a profusão de iniciativas de auto-produção artística e curatorial, as quais abrem novas relações de poder, mas que, sobretudo, apontam para outras possibilidades de relações, como as que se dão na rede livre de informação, ou seja, na Internet. Essas iniciativas podem levar à reavaliação dos sentidos da arte, já que possibilitam a visibilidade de práticas, teorias, conceitos e valores artísticos locais, na relação global-local. Sem dúvida essa é uma prática que está envolvida com a discussão do poder e da representação, assim como com o debate em torno da memória histórica e poder, um problema que se coloca especialmente entre nós, pois mesmo tendo ultrapassado há muito a formação colonial, encontramos, sobretudo no campo da história e da crítica de arte, muitos resquícios desse processo. Pergunta-se, então: qual história da arte se faz necessária quando nos encontramos envolvidos por uma produção que abriga a diversidade e aciona o debate cultural e político? Para responder a essa pergunta, pareceme interessante observar o que escreveu Hubert Damisch a respeito de Rosalind Krauss5, quando identifica a autora fazendo um deslocamento epistemológico no que diz respeito ao estudo histórico da fotografia, o qual se acaba mostrando determinante para a história da arte como um todo. Segundo Damisch, Krauss entendera que “o automatismo do pro-
cesso fotográfico não era apenas uma questão de ótica”.6 Correlato do automatismo psíquico, ou escritural, o automatismo mecânico da fotografia teria o poder de alavancar a história como uma teoria que, partindo do objeto fotográfico, se lançasse como pensamento para além da forma e, portanto, para além da história da arte moderna. Como escreveu ainda Damisch: “a fotografia é sempre do outro, do outro discurso que não o estritamente artístico. Ela opera no discurso da viagem, do arquivo, da ciência”.7 Assim é que teria a capacidade de anunciar a história da arte na contemporaneidade, já que não trata dos fatos, mas daquilo que, sendo-lhes exterioridades, explicitam-nos nas transversalidades. Constitui, portanto, uma outra história, num registro que recusa os limites constituídos pela crítica moderna, sobretudo a greenberguiana,8 acionando o que Stéphane Huchet9 considera exemplar na história que o próprio Hubert Damisch, assim como a que Didi-Huberman, desenvolvem, ou seja, uma história por sintoma, aberta aos mitos e aos desejos, que possibilita a utopia em arte e história, relacionada, em Didi-Huberman, com a discussão do visível e do invisível. O que estamos aqui chamando, apoiados em Damisch, de uma história de transversalidades nos remete necessariamente ao conceito de descontinuidade em história e nos aproxima da discussão que Michel Foucault desencadeou a partir da escrita de História da loucura, Nascimento da clínica e As palavras e as coisas, que ele discute em A arqueologia do saber: um estudo teóricometodológico da história. A história que se anuncia com os conceitos de descontinuidade, limite e transformação, como assinala Foucault, coloca não só problemas de procedimentos, como também problemas teóricos. Isso implica o imperativo de se pensar historicamente a diferença, os afastamentos, as dispersões. Implica, portan293
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to, a desintegração da forma tranqüilizadora do idêntico, assim como o reconhecimento das autonomias, mas, sobretudo, um desvincularse da procura das origens, da volta linear aos antecedentes, da reconstrução desses antecedentes, das tradições, das curvas evolutivas, das projeções teleológicas. São renúncias diretamente ligadas à rejeição da “função fundadora do sujeito”, já que é na história contínua que o sujeito vê a possibilidade de desenvolver tudo que lhe escapou no tempo e, como escreve Foucault: “O tempo é aí concebido em termos de totalização, onde as revoluções jamais passam de tomadas de consciência”.10 Com as pesquisas concomitantes e de certa forma determinantes, em psicanálise, lingüística e etnologia, sobre as descontinuidades, acabam vindo à tona e constituindo a história as leis do desejo, as formas da linguagem, os jogos de simbolização, os discursos míticos e fabulosos. Diante desse esfacelamento, o problema que se apresentou não foi mais apenas o da perda da história centrada no sujeito transcendental, mas também o de imobilidade sincrônica da estruturalização. A essas ameaças Foucault responde conclamando uma “abertura viva da história”, onde no lugar das escansões colocar-se-ia o devir, no lugar do sistema um árduo trabalho de liberdade, num esforço de recompor-se e de tentar readquirir o domínio de si própria. Essa abertura levaria, como ele escreveu, “ a uma história que seria, ao mesmo tempo, longa paciência ininterrupta e vivacidade de um movimento que acabasse por romper todos os limites”.11 Talvez o que mais interesse nessa teoria de uma história aberta e viva, na procura de uma história que dê conta das implicações político-culturais da produção contemporânea seja o que Foucault chamou jogo de remissões. Ao se pensar em fazer história da arte no mundo globalizado, há que se ter em mente, como alertara o historiador referindo-se a 294
uma outra circunstância, mas que penso ser possível aplicar aqui, que os objetos materiais não são unidades fracas, acessórias ao discurso. São objetos presos em um sistema de remissões a outros objetos - um livro a outros livros, uma pintura a outras pinturas - os quais, para além de sua autonomia formal (configuração interna), apresentam-se, nas palavras de Foucault, como um “nó em rede”. Há ainda que se pensar que esse jogo de remissões não é homólogo. A unidade de um objeto, ao ser questionada, perde sua evidência, não se indica a si mesma, só se constrói através de um campo complexo de discursos. Além disso, a obra de um artista não pode ser vista como o lugar tranqüilo de onde questões podem ser levantadas, mas como colocando por si mesma um feixe de questões na forma de enunciados. Assim, como explica Foucault, a recusa das formas de continuidade abre um domínio constituído pelo conjunto de enunciados efetivos, na dispersão de acontecimentos e na instância de cada um. A análise do campo discursivo, não sendo alegórica, é voltada para a compreensão dos enunciados na estreiteza e singularidade de sua atuação. Operando por relações entre enunciados “ mesmo que escapem à consciência do autor, mesmo que não pertençam ao mesmo autor, mesmo que os autores não se conheçam “, ou entre grupos de enunciados, ou mesmo entre enunciados, grupos de enunciados e acontecimentos de uma ordem inteiramente diferente “ teórica, econômica, social, política “ a história, então, seria a história dos jogos de relações entre acontecimentos discursivos, ou ainda a história das transformações através do discurso. A história por relações entre acontecimentos discursivos em Foucault me parece correlata da história que Damisch vê Rosalind Krauss desenvolver em seu estudo sobre a fotografia, como percebemos no ensaio “Corpus delicti”,12 quando as teorias psicana-
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líticas não são acionadas para esclarecer os objetos, mas enquanto discursos que na relação com o próprio discurso fotográfico, assim como com o discurso dos signos imagéticos, constroem significados sempre transitórios. Assim, essa história não é aquela transdisciplinar, para a qual concorrem disciplinas diversas no sentido de esclarecer o sentido submerso da obra de arte. O que Foucault reclama é, como escreveu na introdução de: As palavras e as coisas, uma aproximação de dispersos de graus variados, os quais, em seu cotejamento estabeleçam sentido, sempre em transformação. Assim, no Troca-troca de Jarbas Lopes poderíamos identificar, facilmente, o jogo da ordem do formal com o campo do antropológico, em um choque capaz de criar o que Walter Benjamin chamou de “um relâmpago para formar uma constelação”.13 Densos, na contenção dialética da forma e cultura, estão os três carros, cuja pintura demonstra preocupação formal e apurado envolvimento com a cor; três carros cujo modelo remonta ao pós-segunda guerra e que está fora de linha, mas é muito usado nas periferias, sobretudo por pessoas de baixa-renda; um deslocamento através de localidades “perdidas”; o filme-documentário da viagem; a participação de artistas reconhecidos no circuito e a chegada ao Museu de Arte Contemporânea de Curitiba, num arranjo de inteligência artística que propicia múltiplos enunciados, construindo, assim, o sentido da arte e da história da arte em uma relação transversal.
Notas 1. LOPES, Jarbas. Catálogo. Rio de Janeiro: Capacete Entretenimentos, 2003. 2. KAPROW, Allan. “A educação do an-artista II”. In: Concinnitas, nº 6, Rio de Janeiro: Instituto de Artes da UERJ, 2004. 3. BELTING, Hans. “A história da arte no novo museu: a busca por uma fisionomia própria”. In: O fim da história da arte. São Paulo: Cosac & Naify, 2006. 4. BELTING, Hans. Art History after Modernism. Chicago: The University of Chicago Press, 2003. Seguimos aqui a demarcação que Hans Belting identificou entre a modernidade – caracterizada pela discussão que a arte empreendia nas estruturas do fazer, do exibir e do interpretar – e a contemporaneidade, caracterizada pelo que o historiador alemão enumerou como: a perda da hegemonia norte-americana conquistada no pós-segunda-guerra; a globalização cultural, que desafia a definição ocidental de arte; e a revisão da participação das chamadas minorias na história da arte. 5. DAMISH, Hubert. Prefácio de Krauss, Rosalind. O Fotográfico. Barcelona: Editorial Gustavo Gili. Prefácio de Hubert Damisch, 2002. 6. Idem. 7. Ibidem. 8. DANTO, Arthur C. After the End of Art: contemporary art and the pale of history. Princeton: Princeton University Press, 1997. 9. HUCHET, Stéphanne. “Passos e caminhos de uma teoria da arte”, prefácio da edição brasileira Didi-Huberman, George. O que vemos, o que nos olha. São Paulo: Editora 34, 1998. 10. Idem. 11. Ibidem. 12. KRAUSS, Rosalind. “Corpus delicti”. In> O Fotográfico. Barcelona: Editorial Gustavo Gili, 2002. 13. Apud. DIDI-HUBERMAN, George. “O anacronismo fabrica a história: sobre a inatualidade de Carl Eistein”. In: Zielinsky, Mônica (org), Fronteiras. Arte,Crítica e Outros Ensaios . Porto Alegre, Editora da UFRGS, 2003.
Sheila Cabo Geraldo - Doutora em História pela Universidade Federal Fluminense com tese sobre Arte e Modernidade Germânica. Professora Dra. do Departamento de Teoria e História da Arte do Instituto de Artes da Universidade Estadual do Rio de Janeiro - UERJ e do Curso de Especialização em História da Arte e da Arquitetura no Brasil da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro - PUC-RJ. Autora do livro Goeldi: uma modernidade extraviada, Rio de Janeiro, Ed. Diadorim, 1995, publicou diversos artigos sobre história e historiografia da arte. É editora da revista Concinnitas, do Instituto de Artes da UERJ.
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