“O artista independente não quer ser à margem” Para Malu Aires, artistas podem conciliar indie e mainstream Humberto Resende Rodrigo Coelho Paulistana que vive em Belo Horizonte desde 1996, Malu Aires é um dos principais nomes da música independente brasileira. Além de escrever, produzir e cantar no projeto de art rock Junkbox, ela já foi solista do maior grupo de rock progressivo da América Latina, o Sagrado Coração da Terra. Entre os seus principais trabalhos, destaca-se a trilha sonora da novela O Clone, da Rede Globo, da qual Malu foi, ao lado de Marcus Viana, a principal intérprete. Desde 2007 ela organiza o festival de música BH Indie, que reúne artistas independentes de várias partes do país e que é considerado o principal evento do gênero no Brasil. Nesta entrevista, além de falar sobre sua carreira e sobre o festival, Malu Aires comenta sobre os espaços para a música independente no Brasil e também sobre o mainstream nacional. Você veio de SP e aqui em BH fundou a Junkbox. Como é o retorno do público a esse projeto? É um trabalho experimental, a gente precisa ter muita paciência como artista pra ter um retorno do público. Não é de imediato. Você não tem essa intenção de agradar a maioria, não é um trabalho que você tem a pretensão de chegar na grande mídia, de entrar na rádio FM, de ser mainstream. Então a gente vai vendo que a resposta do público é individual, é um ou outro que chega e fala para você o que aquele trabalho representou para ele, e isso é muito gratificante. Então, você não vira uma massa, não vira um rótulo. Você consegue ter um retorno do público muito mais rico, cada um chega e dá um retorno diferente do seu trabalho. Seu primeiro disco começa com uma música do Nirvana e em uma das faixas você mistura Pink Floyd com Chico Buarque. Você gosta de fazer experimentações na música? Sim. Gosto, mas não faço sempre. A criação de uma música nunca é inédita, sempre tem uma referência. Quando vejo essas referências, brinco com elas. Eu credito a Chico Buarque o título de maior roqueiro do Brasil. Acho que não exista um cara tão Rock and Roll como Chico Buarque. Tudo que ele diz, na forma que ele diz, o faz ser tão Rock and Roll que ele nem precisa de uma guitarra. Nem guitarra o cara usa mais. Ele é muito ousado musicalmente. É quem melhor usa o português para escrever músicas. Construção [quinto álbum de Chico Buarque] é um épico, uma obra prima da música nacional. A junção de Construção com Pink Floyd é um trabalho que eu queria levar para o lado humanista. Construção fala sobre a humildade do homem, do ser, a miséria e a rejeição social desse homem. The Wall do Pink Floyd chega para dizer que existe um muro muito grande. A cada dia a gente constrói um muro de desigualdade, de distância entre classes sociais e intelectuais. Nós somos um grande muro de desigualdade. Foi uma brincadeira muito feliz
mesmo. Quem não entendeu com palavras, já sentiu esse muro. No segundo álbum eu brinco com Janis Joplin e Mutantes. Meu refrigerador não funciona [dos Mutantes] é baseada em Janis Joplin. Eu sinto uma aproximação muito grande de Rita Lee com Janis Joplin. E foi assim que inventei essa história. Você trabalhou com Marcus Viana, no grupo Sagrado Coração da Terra. Como foi participar do projeto? Fui chamada pra fazer parte de um grupo de rock progressivo, um grupo de história no rock progressivo. Estou inclusive fazendo um trabalho agora, um trabalho de releitura do Sagrado Coração. Quando houve o convite para participar do Sagrado eu fiquei muito feliz. “Vocês são tão machistas, mulher em banda faz no máximo o backing vocal, estão me chamando pra frente, que legal!”, pensei. O Pink Floyd coloca três mulheres, mas todas lá no fundo. Participar de um grupo de rock progressivo exige um trabalho de pesquisa muito grande, é uma imersão absurda. Você tem que se desligar de todos os estilos musicais e focar somente naquilo. E ali não é fácil, é tudo cheio de notas, é praticamente uma orquestra com um cantor. Isso foi uma experiência maravilhosa. Depois de 10 anos eu estou revisitando isso com outra ótica. Tenho a discografia completa do Pink Floyd pra trabalhar isso e cheguei a conclusão que Sagrado Coração da Terra é melhor que Pink Floyd. A gente não dá valor ao que é produzido aqui. Se o brasileiro desse valor, o país seria mais rico, não compraríamos coisas de fora, mas as daqui. E isso faria nossa economia girar. É com consciência musical que falo isso. Sagrado Coração da Terra é muito mais complexo que Pink Floyd. É um trabalho de nível musical muito elevado. Você pensa: “nossa, eu fiz parte disso, que bacana”. Não fiz parte do Pink Floyd, mas do Sagrado Coração da Terra eu fiz! Como foi participar da trilha sonora da novela O Clone? Quando Marcus Viana foi chamado para fazer a trilha sonora da novela ele me convidou. São dois universos diferentes. O Sagrado tinha 20 anos de trama, o Clone teria nove meses. E era uma coisa compacta, de nove meses, que tinha que servir simplesmente para a novela. Não ia ser uma música que depois de séculos as pessoas lembrariam. Mas foi um trabalho muito específico, algo que não se vê em outras novelas. O Clone teve uma trilha composta especificamente para a trama. Normalmente você tem um apanhado de musicas e faz um disco. Você convida apenas alguns músicos para fazerem as incidentais das músicas mais famosas. Aquele trabalho não. Ele começou do zero e todas as músicas faziam parte de uma grande ópera. Uma hora eu cantava em árabe, outra em português. As músicas de Marina Lima, de Lenine tocavam apenas de vez em quando. Esse é um diferencial muito bacana. Ainda tem o fato de que seu trabalho como artista é ouvido por 80 milhões de pessoas todas as noites. Isso te dá um nó na cabeça. O quanto você pode dizer pra essas pessoas em uma música de 1 minuto?
Qual é o espaço pra música indie aqui em BH? Quando a gente começa a falar de música independente, a gente acha que é um nicho novo que deve ser consumido goela abaixo. O espaço independente é autoral, antes de mais nada. Quando a gente chega com um trabalho independente, a gente está chegando com os autores, com os artistas que criam, que compõe. Então, se você for parar para pensar, todo mundo já foi independente um dia. O trabalho que a gente faz dando um foco maior no independente é para a gente conseguir desenvolver um trabalho novo na música, não só em Belo Horizonte, mas no país inteiro, para a gente fazer com que os artistas criem mais, copiem menos. Então, quando você tem um grande número de artistas compondo nessa mesma linha de pensamento, você consegue abrir mais espaços para o gênero. Hoje é muito mais tranquilo você chegar num espaço e se expor independente. Antes, as pessoas não entendiam esse rótulo que o artista se colocava. Hoje não, hoje é mais tranquilo. Agora, independente do rótulo, qualquer trabalho artístico, seja ele autoral ou cover, depende de público para conseguir espaço. O dono do espaço é um empresário, ele é um comerciante. Então, ele vai abrir as portas a cada dia, tem espaços que custam 2 mil, 5 mil reais por dia, e ele vai querer um retorno nisso. A banda ou o artista que pensa que vai chegar na casa e vai fazer seu público com o público da casa está muito equivocada, o caminho é outro. Primeiro você chega com o seu público e apresenta sua proposta para a casa. Aí, a gente chega nessa dificuldade de o artista independente alcançar um público suficiente para esse comércio. Tem que ter paciência. Não é de um show pro outro, de um mês pro outro ou de um disco pro outro. É um trabalho em que você vai angariando a simpatia do público pouco a pouco. Às vezes não é no primeiro show, e nem no segundo. Então, a gente não pode focar no espaço isoladamente. O espaço depende do público, então vamos focar no público, tentar ampliar o público do trabalho independente de uma forma geral, que é o que faz o BH Indie ao ampliar o público que está a fim de consumir música independente, música autoral, música nova. Mas só isso não é o suficiente para aquela banda ou aquele artista, que tem que por si também buscar sua fatia de público. Qual a sua opinião sobre o atual mercado mainstream? Sempre foi o mesmo. As fórmulas são aquelas, as composições artísticas são as mesmas. Uma coisa que eu acho chata pra caramba no Brasil é que a gente copia o que é de fora, o que é pior ainda. E isso vem desde o começo do mercado fonográfico no país. Quando a Jovem Guarda começou aqui, os Beatles já cantavam. A indústria já era multinacional e já fabricava os seus produtos para que a gente pudesse consumir uma cultura que se parecesse com a deles e acabasse consumindo Jovem Guarda e Beatles também. O mainstream é comércio, e como a gente consegue colocar isso no patamar arte? Os caras que produziam nos anos 70 e produzem até hoje são artistas. Roberto Carlos é artista. Caetano Veloso é artista. Então, os caras que estão há 30, 40 anos na ativa, produzindo até hoje, hoje eles são artistas. Mas quem hoje vende um milhão de cópias, 500 mil cópias ou 200 mil cópias a gente não pode dizer que é um artista, um artista criador. Eles produzem
apenas entretenimento e há uma grande mídia por trás que faz com que esse artista seja consumido goela abaixo para vender um número de cópias suficiente para a gravadora. Então, a arte que a gente fala na música vai perpetuar com o tempo. É como o vinho, o uísque. O que a gente produz hoje de música arte no Brasil nós só vamos conseguir entender e consumir daqui a dez, vinte anos... Porque o entretenimento está aí pra emburrecer a gente. E o público aceita isso porque vê novela, não lê livro. 80% dos jovens hoje estão ouvindo música eletrônica, que são beats, batidas. Não tem uma poesia. Aquilo é tão fácil de fazer no computador que você não imagina. E o público não entende que um trabalho artístico leva dois, três anos dentro do estúdio. Ele quer consumir rápido. Um artista pode fazer um trabalho artístico, mas ao mesmo tempo voltado para o mercado? Claro que sim! Estávamos falando de artistas com 40 anos de carreira que são realmente artistas... Para você consumir Chico Buarque, você tem que gostar de arte, e ele é um cara que entende bastante. Falamos também do Radiohead, aquilo é arte pura na música. Então, há espaço para as duas coisas sim. No Brasil é mais complicado, porque a gente já vem comprando o rótulo do exterior. Tudo o que rola lá fora entra aqui, na MTV daqui. Então, aí a gente tem essa complicação. Mas o artista independente não quer ser à margem, não quer ser consumido por poucas pessoas, pessoas muito inteligentes... Não! O que a gente mais quer é chegar à grande massa. Todo artista criativo, que tem alguma coisa pra dizer, pra acrescentar de melhor pra humanidade, quer chegar a muitas pessoas. Mas o mainstream não deixa. A gente tenta furar essas barreiras com a internet, com a imprensa que abre espaço para o artista não-mainstream... A gente vai chegando aos poucos. É lógico que a gente ainda não chegou a 80 milhões de pessoas no horário nobre da TV, mas chegamos a 2 mil, 3 mil, 4 mil... Mas o que nós sonhamos é que todo mundo nos consuma, e nós trabalhamos para chegarmos às pessoas. E aí, quando a gente chegar a vender um milhão de cópias a gente não é mais artista, não é mais independente, não é mais criativo? Não, a gente continua sendo. Agora, o que acontece é o seguinte: o artista que é mainstream quando chega com um pacote pronto pra vender um milhão de cópias nunca mais vai conseguir voltar e fazer uma coisa artística, porque aí a indústria vai passa a cobrar dele 1,2 milhão, 1,8 milhão de cópias. Ele vai ter que continuar produzindo uma coisa semelhante com aquele objeto de entretenimento que ele fez para agradar aos patrocinadores, para agradar à gravadora e nunca para agradar o seu público. O seu público já foi comprado pela empresa. Ele nem sabe por que gosta de você. A empresa diz: “goste, ame”, e essas pessoas vão obedecendo. Sobre o BH Indie. Qual é a resposta do público ao longo das 5 edições? Não tem como ser diferente. Se você coloca um artista talentoso que tem um bom trabalho, o público tem que gostar. Nem perguntamos mais se o público gostou. O público vem até nós e diz que gostou. Quando o público sai de casa pra ir a um festival de música independente, ele busca uma programação interessante, e se você tem uma grande
qualidade, é impossível ele não gostar. Nessas cinco edições estamos trabalhando no desenvolvimento dos produtos do artista independente. O artista não quer se sentir um produto, ele não é um produto, ele não é aquele cara que quer vender tênis porque está cantando pras meninas. Mas ele tem seus produtos. Seus produtos são a música, o disco, a camiseta, bottoms. Trabalhamos para isso. Esse é o próximo passo. A música está perfeita. Agora falta o artista gravar disco. Não é só colocar música no MySpace, precisa de um bom disco, um bom encarte. Você não pode dizer que faz música se não tem um CD. Você não é músico se não empregar profissionalismo no seu trabalho. Você tem que se inserir no mercado. Não é só ouvir as músicas que fazem sucesso lá fora. Não é assim. Você sabe como o mercado está trabalhando lá fora? Tem que pensar como empresário, não é só pegar um violão e achar que as meninas vão gostar de você. Na quinta edição eu já consegui excluir todos os amadores. Os amadores não podem prejudicar os profissionais. Se você quer dar a sua música de graça, tomar uma cerveja e subir no palco pra cantar, vai pra outro lugar. Aqui a gente quer se aproximar do público com responsabilidade. Artistas estrangeiros também participam do festival? Sim. Os artistas pagam pra vir pra cá. Eles pagam tudo. O BH Indie é o único grande espaço para a música independente no Brasil. Quando se tem Sepultura, Malu Magalhães, não se pode chamar de independente. Quem é que tem colhões para ganhar um milhão e meio da Petrobrás e colocar só gente desconhecida em cima do palco? Eles não têm. Nos não temos nenhum tostão e colocamos só gente que não aparece na TV. O mais bacana é vermos esses artistas chegarem a TV com a mesma música que eles tocaram no festival. Você já está planejando o próximo? Lógico. Quando acaba uma edição já começamos a planejar a próxima. Estamos trabalhando para que o cenário independente se transforme em mercado. Queremos discos à venda, shows, artistas trabalhando cada vez mais. Todo ano o festival se projeta para mais um passo da abertura do mercado. Este ano só trabalhamos com bandas que tinha discos prontos. Para o ano que vem já temos novas metas. Neste ano criamos uma rádio virtual que só tocava músicas dos artistas do BH Indie. A galera achou o máximo ouvir sua música tocando dentro de uma programação.