Revista Nossa América

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Número 37 ISSN 0103-6777

EDITORIAL

04

FERNANDO LEÇA

DOCUMENTO

ADOLPHO MELFI SHOZO MOTOYAMA

06 DIFUSÃO

12

TEREZA DE ARRUDA

OLHAR

18

IARA vENANZI

ARTES

26 TEATRO

GOVERNADOR

ALBERTO GOLDMAN SECRETÁRIO DE RELAÇÕES INSTITUCIONAIS

REVISTA NOSSA AMÉRICA DIRETOR

FUNDAÇÃO MEMORIAL DA AMÉRICA LATINA

EDITORA EXECUTIVA / DIREÇÃO DE ARTE

DEPOIMENTO

CONSELHO CURADOR

COLABORADORA DE EDIÇÃO

35

JOSÉ HENRIQUE REIS LOBO SECRETÁRIO DE CULTURA

JOÃO SAYAD

SECRETÁRIO DE DESENVOLVIMENTO

LUCIANO SANTOS TAVARES DE ALMEIDA REITOR DA USP

JOÃO GRANDINO RODAS REITOR DA UNICAMP

FERNANDO FERREIRA COSTA REITOR DA UNESP

HERMAN JACOBUS CORNELIS VOORWALD PRESIDENTE DA FAPESP

CELSO LAFER

ALMINO MONTEIRO ÁLVARES AFFONSO JOSÉ VICENTE DIRETORIA EXECUTIVA DIRETOR PRESIDENTE

FERNANDO LEÇA DIRETOR DO CENTRO BRASILEIRO DE ESTUDOS DA AMÉRICA LATINA

ADOLPHO JOSÉ MELFI

FERNANDO LEÇA LEONOR AMARANTE

ANA CÂNDIDA VESPUCCI ASSISTENTE DE REDAÇÃO

CURTAS

TRADUÇÃO

40

MÁRCIA FERRAZ

CLÁUDIA SCHILLING

DIRETOR ADMINISTRATIVO E FINANCEIRO

SÉRGIO JACOMINI CHEFE DE GABINETE

JOSÉ OSVALDO CIDIN VÁLIO

DIRETOR PRESIDENTE

HUBERT ALQUÈRES DIRETOR INDUSTRIAL

TEIJI TOMIOKA

HENRIQUE DE ARAUJO DIAGRAMAÇÃO E ARTE - ESTAGIÁRIOS

LUANA DE ALMEIDA TOMÁS BITTAR BONANI REVISÃO - ESTAGIÁRIO

ADRIANO TAKESHI MIYASATO COLABORARAM NESTE NÚMERO

EXPOSIÇÃO

46 HOMENAGEM

Adolpho José Melfi, Andrés Martín, Elvira Gentil, Fernando Calvozo, Iara Venanzi, Joca Reiners Terron, Marco Aurélio Filgueiras Gomes, Paulo Mendes da Rocha, Ricardo Sennes, Shozo Motoyama, Tereza de Arruda, Tuca Vieira e Verónica Goyzueta.

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CONSELHO EDITORIAL

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Aníbal Quijano, Carlos Guilherme Mota, Celso Lafer, Davi Arrigucci Jr., Eduardo Galeano, Luis Alberto Romero, Luis Felipe Alencastro, Luis Fernando Ayerbe, Luiz Gonzaga Belluzzo, Oscar Niemeyer, Renée Zicman, Ricardo Medrano, Roberto Retamar, Roberto Romano, Rubens Barbosa, Ulpiano Bezerra de Menezes. NOSSA AMÉRICA é uma publicação trimestral da Fundação Memorial da América Latina. Redação: Avenida Auro Soares de Moura Andrade, 664 CEP: 01156-001. São Paulo, Brasil. Tel.: (11) 3823-4669. FAX: (11)3823-4604. Internet: http://www.memorial.sp.gov.br Email: publicacao@fmal.com.br. Os textos são de inteira responsablidade dos autores, não refletindo o pensamento da revista. É expressamente proibida a reprodução, por qualquer meio, do conteúdo da revista. CAPA Foto: Iara Venanzi

vERÓNICA GOYZUETA

INTEGRAÇÃO

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RICARDO SENNES

URbANISMO

60

MARCO AURÉLIO GOMES

LIvRO

64 POESIA

DIRETOR DE GESTÃO DE NEGÓCIOS

66

LUCIA MARIA DAL MEDICO

JOCA REINERS TERRON

HISTÓRIA

DIRETOR FINANCEIRO

CLODOALDO PELISSIONI

PAULO M. DA ROCHA

PRODUÇÃO

DIRETOR DE ATIVIDADES CULTURAIS

FERNANDO CALVOZO

ELvIRA GENTIL FERNANDO CALvOZO

32

MARCOS ANTONIO DE ALBUQUERQUE

PRESIDENTE

ANDRÉS MARTÍN

LEONOR AMARANTE

ROQUE DALTON MEDAL

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EDITORIAL Em um ano especialmente significativo, pela circunstância da celebração de 200 anos da independência de vários países da América Latina, outros eventos vêm agregar especial significação e densidade política ao momento atual. Alguns deles de conteúdo positivo, como as eleições no Uruguai, em Honduras e Bolívia (realizadas no ano passado, com posse dos eleitos neste ano), na Costa Rica e no Chile, marcando avanços na consolidação da democracia na região. O mesmo ocorrerá no Brasil e na Colômbia, ganhando relevância o fato de que a Corte Constitucional deste país rejeitou a realização de um referendo que Uribe pretendia levar a efeito para tentar um terceiro mandato. Bendita Corte que se arrogou o papel de guardiã da democracia colombiana! Em dramático contraste, os acontecimentos registrados no Haiti e, mais recentemente, no Chile, da alternância democrática e contínua prosperidade, momentaneamente interrompida. Tanto um quanto outro revelaram, contudo, uma corrente de solidariedade internacional que continua a manifestar-se, não apenas em palavras mas também em ajuda concreta, sobretudo ao infelicitado povo haitiano. Nesta edição de Nossa América, os leitores saberão por que o Brasil demorou tanto a criar sua primeira universidade, fundada somente no início do século XX. O fato intriga, uma vez que o Novo Mundo teve suas três primeiras instituições ainda no século XVI: as de Santo Domingo, Lima e México. Quem esclarece são os professores Adolpho José Melfi e Shozo Motoyama, da Universi-

dade de São Paulo, o primeiro também diretor do Centro Brasileiro de Estudos da América Latina. Outra questão com viés acadêmico refere-se a dois dos mais importantes centros de estudos sobre a América Latina, ambos em Berlim, na Alemanha, em artigo de Tereza de Arruda, historiadora e curadora brasileira, radicada naquele país. Um olhar especial recai na mais europeia cidade latino-americana, cujos cafés dão graça e movimento à paisagem, conforme captaram as lentes sensíveis da fotógrafa Iara Venanzi. E o Museu de Belas Artes de Havana, que nos dá a dimensão da riqueza cultural, no texto de Andrés Martín, coordenador de exposições do MAM de São Paulo. O Memorial da América Latina realizou seu III Festival de Teatro IberoAmericano, trazendo dezenas de companhias e as mais recentes montagens de destacados grupos teatrais da Espanha, Portugal, Brasil, Argentina, Uruguai, Cuba, Peru, México e Colômbia. Fernando Calvozo, diretor do Departamento de Atividades Culturais do Memorial da América Latina, e Elvira Gentil escrevem sobre o saldo positivo que o evento tem deixado no meio teatral. Outro fato a ser comemorado, a fundação de Brasília, há 50 anos, traz às páginas de Nossa América um dos mais importantes arquitetos brasileiros, Paulo Mendes da Rocha, prestando um depoimento exclusivo sobre a importância da iniciativa para o cenário regional. E uma novidade nesta edição: uma nova seção para tratar de assuntos variados e curiosos. Chama-se Curtas e vai percorrer diversos países da América Latina para registrar diferentes temas, de

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política, à moda, de economia a costumes, em textos curtos, mas saborosos. Em análise de Joca Reiners Terron, escritor e editor, a morte trágica de Tomás Eloy Martínez, em janeiro deste ano, representa o fim de toda uma geração que consolidou o boom da literatura latino-americana no cenário internacional. Mas o ano de 2010 é também de celebrações: vários países latino-americanos comemoram seu bicentenário de independência, e na opinião de Verónica Goyzueta, mestre em educação, arte e história da cultura, o momento é propício às reflexões sobre passado e futuro. Como estão neste momento as relações entre os países latino-americanos e qual o papel do Brasil nesse processo é o que conta Ricardo Sennes, professor de relações internacionais da PUC-SP, para quem definir um projeto comum em uma região de diversidades é um grande desafio. Importante também para toda a América Latina foi o intenso intercâmbio na área de urbanística que os profissionais experimentaram entre os anos 30 e 60, período de industrialização e desenvolvimento, conforme aponta Marco Aurélio de Filgueiras Gomes, professor da Universidade Federal da Bahia. Por último, Leonor Amarante, editora de Nossa América, analisa um livro bem-elaborado e curioso, a Roupa de Artista – O Vestuário na Obra de Arte, da historiadora Cacilda Teixeira da Costa, sobre o papel da indumentária na expressão artística. A poesia que encerra a edição é El Gran Despecho, de Roque Dalton Medal, jornalista e renomado poeta salvadorenho.

FOTOs: reprOduçãO

Boa Leitura !

Fernando Leça Presidente do Memorial da América Latina

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DOCUMENTO

UNIVERSIDADES

BRASILEIRAS SÉCULOS DEPOIS

AMÉRICA HISPÂNICA PIONEIRA ADOLPHO MELFI SHOZO MOTOYAMA

A

o longo dos primeiros quatro séculos após sua descoberta, o Brasil não viu surgir qualquer tipo de instituição universitária. O fato intriga e inquieta muita gente interessada no estudo da educação superior brasileira. Por que a universidade tardou tanto em aparecer nas terras descobertas por Cabral? Afinal, esse tipo de instituição surgiu há muito tempo atrás, possuindo uma história quase milenar. Mesmo no Novo Mundo, os nossos vizinhos da América Espanhola podem se orgulhar de ter criado entidades universitárias já no século XVI. Com efeito, as primeiras universidades brasileiras foram fundadas somente a partir dos primórdios do século XX, apesar de várias 6 30406009 miolo.indd 6

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iniciativas visando a sua criação nas centúrias anteriores. A primeira delas parece ter sido a Universidade do Brasil, instalada pelos padres jesuítas em 1592, na Bahia, mas que não recebeu autorização e reconhecimento para funcionar nem por parte da Igreja e nem do governo português. Na Europa, as primeiras universidades surgiram na Idade Média, sendo a Universidade de Bolonha (Itália) a mais antiga, fundada em 1088, seguida por Oxford, em 1096, e pela Universidade

colonial, a América Espanhola chegou a formar cerca de 150 mil universitários (Trindade e Blanquer, 2002), enquanto que, no Brasil, durante o mesmo período (1500-1822), somente o ensino médio era oferecido, pelos jesuítas. Para os habitantes do país, o ensino superior tinha de ser feito na Europa, em Portugal, na Universidade de Coimbra (Teologia e Direito), fundada em 1290, em Lisboa, – depois transferida para Coimbra – ou na França, na Uni-

FOTOs: reprOduçãO

A Universidade de Santo Domingo, na República Dominicana, de 1538, é a mais antiga do Novo Mundo.

de Paris, em 1170. Entretanto, nos anos 1500, as universidades deixam de ser privilégio do Velho Mundo, pois na América Espanhola o sistema universitário de fundo religioso da Contra-Reforma católica começou a ser implantado ainda no século XVI. A Universidade de São Domingos, na República Dominicana, fundada no ano de 1538, é considerada a mais antiga da América Latina. Logo a seguir, em 1551, foram criadas universidades no Peru (Universidade Nacional de San Marcos) e no México (Universidade Autônoma do México). Por ocasião da separação dessas colônias da Espanha, já existiam em funcionamento cerca de 20 universidades. Na época

versidade de Montpellier (Medicina). Nesse período, somente 2.500 pessoas obtiveram o nível universitário. Por que tanta diferença entre dois complexos coloniais de metrópoles situadas na mesma Península Ibérica? As questões têm várias origens: políticas de dominação, política interna das metrópoles, bem como suas realidades e de suas colônias. Por exemplo: nos domínios espanhóis, os nativos possuíam um grau de civilização elevado. Ninguém duvida da alta cultura engendrada pelos maias, astecas e incas. A Coroa espanhola tinha de se esmerar para poder se impor culturalmente. Dentro dessa perspectiva, a universidade – uma das

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expressões mais altas da cultura europeia – tinha de desempenhar o seu papel. No território dominado pelos portugueses, os nativos da terra não possuíam grande sofisticação cultural. A transferência da família real portuguesa para o Brasil, em 1808, viria a contribuir decisivamente para a evolução do ensino superior no país. O fato gerou profundas modificações na educação superior brasileira, pois exigiu principalmente a formação de quadros para atender as demandas do governo e da sociedade. Porém, a implantação do ensino superior não se deu por meio de universidades, consideradas pelo governo português como centros reacionários, mas sim por meio de faculdades e escolas isoladas, seguindo o modelo francês napoleônico, focado na formação de profissionais civis e militares. Logo em seguida à chegada do príncipe regente ao Brasil, em janeiro de 1808, em Salvador, Bahia, um Decreto Real criava a Escola de Cirurgia da Bahia, hoje Faculdade de Medicina da Universidade Federal da Bahia. Em fevereiro, a Corte se transfere para o Rio de Janeiro, e neste mesmo ano é criada a Escola de Cirurgia e Anatomia, atual Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Merece destaque, ainda, a fundação, em 1808, da Academia dos Guardas-marinhas e, em 1810, da Academia Real Militar, além de outras escolas superiores, sempre com a marca do prático, como o Gabinete da Química (Rio de Janeiro) e o Curso de Agricultura (Bahia, 1812). Somente quatro séculos após seu descobrimento o Brasil teria as suas primeiras universidades, e mesmo assim não de forma permanente. Foi o caso da Escola Livre de Manaus, criada em 1909, depois denominada Universidade de Manaus, e da Universidade do Paraná, impedida de funcionar, já que só se reconhecia a criação

de instituições de ensino superior em cidades com mais de 100 mil habitantes. Uma história curiosa refere-se à fundação da Universidade do Rio de Janeiro, criada em 1920, reunindo a Escola Politécnica e as Faculdades de Direito e de Medicina, com o objetivo de conceder o título de “Doutor Honoris Causa” ao rei da Bélgica, em visita ao Brasil. A partir de 1929 o governo começou a fomentar a criação de universidades, cujo modelo guardava pouca relação com o conceito atual, de associar ensino, pesquisa e extensão. Em 1923, em um artigo publicado em jornal do Rio de Janeiro, o matemático Amoroso Costa reclamava da mentalidade: “a ciência é útil porque dela precisam os engenheiros, os médicos, os industriais e os militares; mas não vale a pena fazê-la no Brasil, porque é mais cômodo e mais barato importá-la da Europa”. Em 1930, foi criado o Ministério da Educação e Saúde, que promoveu, já em 1931, uma grande reforma educacional em todo o ensino médio e criou o primeiro Estatuto da Universidade Brasileira. A criação da Universidade de São Paulo (USP) constituiu um marco, por iniciar uma nova fase no desenvolvimento científico e cultural do país. Criada sobre uma sólida base científica, obedecia a um ambicioso projeto político e cultural. Outras universidades foram criadas logo depois, como a do Distrito Federal (atual Rio de Janeiro), em 1935, e as várias instituições católicas de ensino superior (embriões das futuras Universidades Católicas), apoiadas pelo poder público, como resultado da aliança entre a Igreja e o regime em vigor. Nos anos seguintes, refletindo a ascensão das classes médias e o avanço do processo de industrialização, intensificou-se a demanda pela educação superior, atendida pela criação de novas instituições e pela progressiva absorção, pelo Governo Fede-

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ral, da responsabilidade em manter uma larga parcela das faculdades. No final da década de 40, o país contava com 10 universidades e um número bem maior de instituições isoladas de ensino superior. Os quase trinta anos que medeiam a ditadura do Estado Novo (1937) e aquela do Regime Militar (1964) marcam um tempo em que foram lançadas as bases do Brasil contemporâneo. Houve mudanças no aparelho do estado, no seio da economia, da educação e, sobretudo, da Ciência e Tecnologia (C&T). A industrialização, por sua vez, avançava. A partir de 1955, a economia brasileira entra em um novo patamar. Deixando de lado a postura nacionalista do governo anterior, do presidente Café Filho (agosto de 1954 - novembro de 1955) abriu as portas para o capital estrangeiro e permitiuse a importação de equipamentos sem a necessária cobertura cambial, provocando um desenvolvimento industrial acelerado. Em seguida, no governo de Juscelino Kubitschek (1956-1961), deu-se a instalação da indústria automobilística dentro do seu famoso “Programa de Metas”. A educação sofreu, igualmente, grandes transformações. A atuação do governo foi essencial para essa expansão, criando mecanismos para facilitar o acesso ao ensino superior. Em 1964, o Brasil possuía 37 universidades, sendo 28 públicas e nove privadas. O regime ditatorial (1964-1985) teve papel relevante na definição dos padrões educacionais do país. A discutida e desejada modernização do ensino

foi realizada segundo o modelo norteamericano, simbolizado pelo acordo MEC-Usaid – Ministério da Educação e Cultura e United States Agency for International Development – , abominado pela maioria de estudantes e professores. Como não era possível para o poder público atender toda a demanda, o Ministério da Educação facilitou os processos de credenciamento de instituições privadas, embora nem sempre contemplando os preceitos de qualidade. No final do período da ditadura militar, o país contava com 859 instituições de ensino superior, sendo 68 universidades, 49 públicas, 20 privadas. Hoje o ensino superior no Brasil encontra-se consolidado dentro do mesmo modelo organizacional estabelecido no período ditatorial, com pequenas mudanças introduzidas pela constituição de 1988 e pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, de 1996. Em 2007, o Brasil possuía 2.281 instituições de ensino superior, sendo 183 universidades, 120 centros universitários e 1.978 instituições isoladas. Se entre as universidades existe certo equilíbrio entre as públicas e as privadas, o mesmo não ocorre com os centros universitários e as instituições isoladas, onde o predomínio das privadas é quase total. O setor privado responde hoje por 80% das matrículas. Segundo dados no Ministério da Educação o número de alunos matriculados em 2008 era de 4,8 milhões, número considerado baixo para uma população de cerca de 23 milhões de jovens na faixa etária entre 18 e 24 anos.

Universidade de São Paulo: criada em 1934, constituiu um marco no desenvolvimento científico e cultural do país.

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UNIVERSIDADE NACIONAL MAIOR DE SÃO MARCOS

A Universidade de São Marcos, em Lima, Peru, foi fundada em 1551.

UNIVERSIDADE DE SANTO DOMINGO A Universidade Autônoma de Santo Domingo, pode ser considerada a mais antiga do Novo Mundo. Sua história teve início com o ensino de Estudo Geral, ministrado por padres dominicanos, desde 1518, em São Domingo, na época sede do Vice-Reinado da colonização espanhola. O ensino seguia o modelo adotado na Universidade de Alcalá de Herrares, criada na Espanha em 1499. Após funcionar por 263 anos sem interrupção, ensinando Medicina, Direito, Teologia e Artes, ela fechou devido a ocupação da colônia pelos haitianos e a consequente saída dos dominicanos. Reabriu em 1815, como instituição laica, voltando a fechar em 1822 por falta de alunos, obrigados ao serviço militar por causa de uma nova ocupação dos haitianos. A independência, em 1844, levou São Domingo a pensar na sua reabertura, o que ocorreu somente em 1866, com o nome de Instituto Profissional, mas que fechou, de novo, de 1891 a 1895. Em 1914, o presidente Ramón Báez, que também era reitor do Instituto Profissional, assinou um decreto transformando o instituto em Universidade de Santo Domingo.

A Universidade de São Marcos foi criada por um ato do rei da Espanha, Carlos V, em 1551, assinado em Valladolid, acolhendo iniciativa dos dominicanos, de ensino de Teologia e Artes, nos conventos de Cuzco e Lima. Por muitos historiadores considerada a mais antiga do Continente, suas atividades começaram dois anos mais tarde com a solenidade de instalação realizada na sala Capitular do Convento do Rosário da Ordem dos Dominicanos. UNIVERSIDADE NACIONAL AUTôNOMA DO MÉxICO Desde o início de 1536, havia entre os Franciscanos o desenho de que a Nova Espanha tivesse uma Universidade. O desejo foi acolhido, pouco mais tarde, em 1547, pelo Vice-Rei Antonio de Mendoza e pela Coroa espanhola. O México, entretanto, teria sua universidade somente em 1551 (alguns meses após a criação da Universidade de São Marcos), com a criação da Real Pontifícia Universidade do México, que iniciou atividades em 1553. Com a independência, passou a ser chamada de Universidade Nacional Pontifícia, para depois ficar com o nome de Universidade do México.

Adolpho José Melfi - professor titular da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (USP) e diretor do Centro Brasileiro de Estudos da América Latina/CBEAL do Memorial da América Latina; Shozo Motoyama é professor titular da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas/USP.

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DIFUSÃO

BERLIM

PRESENÇA IBERO-AMERICANA

ALEMANHA MANTÉM INTERESSE NA REGIÃO TEREZA DE ARRUDA

A

configuração geopolítica mundial tem passado por várias alterações. Ao revermos os últimos vinte anos após a queda do muro de Berlim podemos contabilizar uma grande alteração principalmente referente aos países da Europa Oriental. Muitos deles foram também incorporados à Comunidade Europeia, enfatizando uma nova relação interdisciplinar contínua. O foco das relações internacionais alemãs esteve, portanto, voltado a esta região, se estendendo consequentemente à Ásia e mais especificamente à China. Contudo, a Alemanha não perdeu seu interesse por outros países e nem mesmo por outros continentes, como é o caso da América Latina. Aliás, existe uma relação 12 30406009 miolo.indd 12

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FOTO: reprOduçãO

A imponente biblioteca da Universidade Livre de Berlim mantém um acervo com numerosos títulos de escritores latinos.

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contínua institucional, que atua de forma abrangente como plataforma de ensino, pesquisa, intercâmbio e divulgação da cultura latino-americana na Alemanha. O Brasil conquistou certo destaque sendo uma das maiores potências do Bric – sigla criada para representar Brasil, Rússia, Índia e China –, quatro países com um crescimento anual entre 5 e 10%, o que os levará possivelmente a se tornarem grandes potências mundiais nas próximas décadas. O Brasil, o único do grupo localizado na América Latina, desvia a atenção para este continente e seus países vizinhos, com os quais possue diversos acordos bilaterais.

Em Berlim se encontram dois grandes centros, os quais contabilizam focos potenciais de aproximação contínua com a América Latina, representados pelo Instituto Ibero-Americano da Fundação do Patrimônio Cultural Prussiano e pelo Instituto Latino-americano da Universidade Livre de Berlim. O primeiro foi criado em janeiro de 1930, tendo já como legado a biblioteca particular de Ernesto Quesada composta de 82 mil volumes, sendo ainda agregado a este valioso acervo 25 mil volumes da Biblioteca Mexicana, reunidos por Hermann Hagen com o apoio de vários colaboradores. Este é o ponto de partida para o entendimento cultural não

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O Instituto de Estudos Latino-Americanos oferece várias disciplinas e uma atuação abrangente.

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FOTOs: reprOduçãO

O Instituto Ibero-Americano manteve-se ativo mesmo durante a Segunda Guerra Mundial.

só com a América Latina, mas também com a Península Ibérica. A partir de 1934 o Instituto passou a ser dirigido pelo general de divisão reformado Wilhelm Faupel, e passou a ser instrumentalizado, criando material propagandístico alemão a ser distribuído no exterior, sem, porém, ter um papel mais decisivo na política externa do sistema nazista. O Instituto conseguiu manter-se ativo mesmo durante a Segunda Guerra Mundial, independente do baixo número de funcionários e de recursos limitados. Em 1945, no en-

tanto, contabilizou-se a perda de uma grande parte de seu legado, aproximadamente 40 mil volumes, os quais continuam desaparecidos até hoje, após terem sido destruídos nos bombardeios ou retirados clandestinamente de depósitos provisórios. Suas atividades foram reiniciadas como Biblioteca Latino-Americana, e rapidamente se retomou a publicação de periódicos específicos, voltando a ser um local abrangente de pesquisa científica. Em 1977 o Instituto Ibero-Americano se mudou para as dependências

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atuais em um prédio do complexo arquitetônico criado por Hans Scharoun na Potsdamer Strasse, centro de Berlim. Hoje o Instituto possui a maior biblioteca europeia especializada em América Latina, Caraíbas, Espanha e Portugal. Como um centro interdisciplicar de trabalho científico e acadêmico, organiza em sua sede simpósios, exposições, oferece bolsa de pesquisa, entre outras facilidades destinadas ao entendimento e à integração cultural das regiões aqui mencionadas. A Universidade Livre de Berlim criou em 1970 o Instituto de Estudos Latino-Americanos, dedicado ao ensino e à pesquisa, contendo atualmente seis disciplinas distintas: Antropologia das Américas, História, Estudos de Língua, Literatura e Cultura da América Latina (América hispânica e Brasil), Ciências políticas, Sociologia e Economia. Com um campo de atuação tão abrangente, o Instituto passou a estender seus tentáculos por toda a América do Sul, criando parcerias efetivas com diversas universidades e instituições nas quais trabalham hoje pessoas atuantes, que passaram, em muitos casos, um período de sua formação no instituto berlinense. Com relação ao Brasil especificamente, foi recém-criado o Centro de Pesquisas Brasileiras, celebrado com uma conferência realizada entre os dias 4 e 6 de fevereiro deste ano. Com uma programação abrangente e interdisciplinar, sua intenção é criar e coordenar projetos e pesquisas na área de ciência, cultura e sociologia, levando à análise do Brasil no contexto mundial. Contando com professores alemães e estrangeiros, este há de ser mais um atrativo, que levará a uma maior visibilidade do Brasil em termos comparativos. Um dos mais atuantes no setor de “Brasilianística” do Instituto de Estudos Latino-americanos é o Professor Berthold Zilly. Atraído pelo Brasil por

vias indiretas, Zilly estudava em Caen, na França, em meados da década de 60, quando passou a se interessar pela literatura e pela cultura brasileira, que na época eram muito divulgadas naquele país. Nos anos de 1968 e 1969 ele vivenciou o Brasil, quando frequentou a Universidade de São Paulo. A partir daí, sua vivência profissional evoluiu lado a lado com a cultura brasileira. Uma das últimas publicações da qual participou foi o livro Brasil, País do Passado, no qual ele revê a evolução sócio-política nacional – ainda respaldada em estruturas e problemáticas já conhecidas, como a desigualdade social e a falta de cidadania. Em uma entrevista concedida para esta matéria em Berlim, o professor Berthold Zilly salienta que é um defensor e divulgador da cultura e da literatura brasileira por meio de sua atuação como especialista na área. Por meio de sua dedicação, esse contexto tem sido difundido na Alemanha há muitas gerações. Ele pede a liberdade de se expressar como um “brasileiro” e ressaltar suas inquietações e ambições nesse sentido. Se em algum momento se apresenta muito crítico, isso ocorre de forma construtiva e progressiva, sem vestígios de conformismos ou passividade, mas sim com grande otimismo. Poderíamos dizer que sua “bíblia” literária é o livro Os Sertões, de Euclides da Cunha, que traduziu para o alemão, além de ser ponto de partida para sua formação e sua atuação. O livro Os Sertões, segundo Berthold Zilly, não perde sua atualidade, pelo fato de Euclides da Cunha ter salientado na época várias características e problemáticas locais que continuam em vigor até hoje. “Houve sim numerosas melhorias no setor social e econômico brasileiro, porém nos encontramos em um processo lento que tem de permanecer em vigor e ser aprimorado de forma progressiva”. Segundo Berthold Zilly,

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FOTO: ArQuIVO pessOAL BerTHOLd ZILLY

O Instituto é a casa do professor Berthold Zilly, laureado na Alemanha com o prêmio Wieland, em 1995, pela tradução da obra Os Sertões de Euclides da Cunha. No Brasil, foi eleito pela União dos Críticos de São Paulo o melhor do ano na categoria de difusão da literatura brasileira.

“o desempenho depende do empenho”. O motivo do fascínio não é somente a obra literária de Euclides da Cunha, mas também sua postura inovadora e pioneira. O autor pode ser visto como um dos primeiros ativistas ecológicos, ao alertar que a paisagem e, neste caso, o sertão, não existe somente por conta das condições climáticas, mas pelas queimadas, e também pela simbiose entre natureza e ser humano. O metabolismo natureza/ homem deveria ser considerado como um fenômeno atuante neste processo, desde seus primórdios. O ano de 2010 demarcará uma nova fase para Berthold Zilly: ao se aposentar e se distanciar de suas atividades como professor de literatura brasileira, ele poderá se dedicar inteiramente ao conteúdo de seu interesse, publicando e traduzindo obras literárias a

serem divulgadas entre os meios já existentes e os que virão a surgir. No ano de 2010 ainda se celebra mundialmente o bicentenário do movimento de independência na América Latina. A Casa das Culturas do Mundo, renomada instituição berlinense criada há 20 anos, apresentará um programa interdisciplinar composto de concertos, filmes, exposições e discussões, abrindo mais uma plataforma democrática de integração entre a Alemanha e a América Latina na atualidade.

Tereza de Arruda trabalha como historiadora de arte e curadora independente desde 1989 em Berlim, onde estudou História da Arte na Universidade Livre de Berlim.

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OLHAR

O ChARME DISCRETO

CAFÉS DE bUENOS AIRES IARA vENANZI

O

s cafés, casas às vezes centenárias, surgem a todo instante imprimindo graça, cor e movimento às ruas de Buenos Aires. Para conversar, ler, sonhar, ou simplesmente derramar emoções pelas calçadas adjacentes, o hábito pertence ao charmoso cotidiano da mais europeia cidade latino-americana. Importados nos tempos áureos de prosperidade argentina, vieram para ficar calados na alma portenha, como mostram as lentes sensíveis de Iara Venanzi. Fotógrafa do mundo, ela correu os bairros mais boêmios da cidade captando a magia que emana desses espaços transformados em verdadeira instituição local e sem rivais na América Latina.

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FOTOs: IArA VeNANZI

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O PALÁCIO vIROU

MUSEU NACIONAL DE bELAS ARTES

DE HAvANA ANDRÉS MARTÍN

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Torso de Sátiro, réplica de um original grego do século XV, parte do acervo.

O Museu Nacional de Belas Artes de Havana foi inaugurado oficialmente no 28 de abril de 1913. A instituição teve várias, inadequadas e inóspitas sedes (nesse período houve constantes doações e compras apenas esporádicas). Destaca-se a árdua luta de intelectuais, jornalistas e da direção do museu pela construção de uma sede definitiva com as condições adequadas – arquitetônicas, museológicas e financeiras. Já em 1925 tinha-se escolhido o espaço ideal para o museu, o mesmo que ocupa hoje a coleção de arte cubana. Assim, depois de controversas discussões arquitetônicas com relação aos projetos apresentados, e da contur-

bada situação política nacional nos anos 1950, o tão ansiado Palácio de Belas Artes é inaugurado em 1954, com sucesso controverso. A 2ª Bienal Hispano-americana de Arte abriu o museu, ao mesmo tempo em que era rejeitada pela quase totalidade dos artistas plásticos significativos. O evento foi chamado de bienal franquista. Em resposta, foi organizada, no Lyceum de La Habana, a Mostra Plástica Cubana Contemporânea, Homenaje a José Martí, conhecida como a Contrabienal A instalação das coleções no novo prédio, construído sobre a base do projeto do arquiteto Alfonso Rodríguez Pichardo, ocorreu em 1955.

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A presença do Museu do Instituto Nacional de Cultura nessa mesma sede que, com a assessoria de destacados intelectuais e artistas, tinha adquirido obras sobretudo de arte contemporânea nacional (posteriormente doadas ao MNBA), tem um papel decisivo na inclusão de obras da produção contemporânea cubana na coleção do museu. Com o triunfo revolucionário em 1959, a visão dos líderes do movimento fez triunfar a grande tradição de pensaRetrato de Mary, 1938. mento e ação emancipatórios que havia Óleo sobre tela Jorge Arche. nascido no alvorecer da nacionalidade. Acontecem, então, mudanças transcendentais no MNBA. Aos 46 anos de existência, a instituição vive uma mudança radical na concepção museológica, que o converte num verdadeiro museu de arte. Com o êxodo massivo da burguesia dominante em 1959, sai à luz um copioso e pouco conhecido tesouro artístico: obras de arte, objetos, joias, tapeçaria, objetos de design e esculturas, que até então eram propriedade da elite e desfrutados apenas por ela. Esse rico acervo, que vai da antiguidade à contemporaneidade, é colocado à disposição do povo. A incorporação das obras favorece o MNBA, e a instituição aumenta de forma significativa sua coleção. Foram transferidas para outras instituições, como consequência da intervenção do governo revolucionário em todas as esferas da sociedade, as coleções de história, arqueologia, artes decorativas e etnologia. O MNBA deixa de ser um museu de tipo enciclopédico para se converter numa instituição de arte, em cujo patrimônio somente permaneceram as coleções de pintura, gravura, desenho e escultura, de Cuba e do resto do mundo. Em 1964, com o estabelecimento das Galerías de Arte Cubano, oferece-se pela primeira vez um panorama histórico e crítico das artes visuais de Cuba.

Essa ação serve como suporte para a reflexão sobre toda a produção nacional, bem como para o estabelecimento das linhas de trabalho do museu (em prática até os dias de hoje), destacando-se a distribuição das coleções sob critérios artísticos e históricos; o enriquecimento, a atualização e a ampliação contínuos das coleções, garantindo uma discussão coerente com a tradição e a evolução da produção plástica nacional; e os riscos e desafios a que uma instituição cultural dessa magnitude e com essa responsabilidade está exposta. Espaços expositivos foram criados simultaneamente, servindo de suporte para instrumentalizar e consolidar o objetivo de divulgação da tradição plástica nacional. Vale mencionar El Artista del Mes e El Pequeño Salón. Por esses espaços transitaram artistas do calibre de Raúl Martínez, Acosta León, Antonia Eiriz, Zaída del Rio, José Bedia, Consuelo Castañeda, Kcho, Tonel, Eduardo Rubén Rodríguez, Carlos Alberto Estéves, entre outros. A Sala Didáctica, criada em 1966 com um viés pedagógico, tinha como objetivo proporcionar ao público material preparatório da visita às salas permanentes do museu. O MNBA é, se não a única, uma das poucas instituições culturais cubanas com sólido e respeitado trabalho educativo, que possibilita que a arte seja vivida e experimentada numa ampla perspectiva. Em pleno Período Especial, no decorrer dos anos 90, o memorável esforço do Estado Cubano, do Ministério da Cultura e dos Trabalhadores e de especialistas da instituição, em 2001 finalmente reabriu as portas do Museu Nacional de Belas Artes, no Palácio de Belas Artes fechado naquele período para obras de restauro. Depois de vários anos de restauração e ampliação das dependências, houve um incremento no estudo da coleção, bem como na restauração de milhares

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de peças e na ampliação da capacidade expositiva em mais de 50%, atendendo aos padrões internacionais de exibição e conservação. Uma questão a se destacar é a situação da arte contemporânea, pelo fato de que Cuba não conta com um museu para este fim. Cabe ao MNBA desempenhar a função de adquirir, conservar, estudar e expor a arte atual do país. No MNBA, a instalação das obras não é definitiva, já que há uma dinâmica própria no processo de interação do público. Os especialistas e os projetos nacionais e estrangeiros que demandem ou incidam na rotatividade de exposição das obras possibilitam a pluralidade de discussões e a inserção nas discussões sobre a arte de modo geral. Uma vez que a coleção de arte cubana encontra-se no edifício que desde 1954 alberga a sede definitiva do MNBA, o aumento significativo de obras e o desejo de poder mostrar separadamente a produção nacional levaram à reforma do antigo e majestoso prédio das Sociedades Asturianas de Cuba, inaugurado em 20 de novembro de 1927 e desenhado pelo arquiteto espanhol Manuel del Busto Com curadoria e projeto do arquiteto e museógrafo José Linares, o prédio se converte na sede das coleções de arte universal do MNBA. A recuperação do edifício constitui em si um grande aporte à cultura nacional, misturando as chamadas belas artes e artes decorativas como vidraçaria, ebanesteria e autorrelevos, que dão um forte testemunho da época e da luxuosa arquitetura eclética de inspiração espanhola. As coleções internacionais incluem obras de sete nações tradicionais, Itália, Alemanha, Bélgica, Holanda, Espanha, França e Inglaterra, possibilitando percorrer a história da pintura desde o século XV até o século XIX. Expõem-se também, de forma per-

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manente, recortes das coleções de arte asiática, norte-americana e das antigas escolas do México, Antilhas e América do Sul. A arte mais contemporânea é mostrada numa sala que expõe de forma rotativa as transformações, os movimentos e estilos dos século XX e XXI. Essas coleções desempenham um papel fundamental na consolidação do alto nível cultural do povo cubano, entendido como uma forma de liberdade. A experiência das transformações que têm ocorrido em Cuba desde a Revolução oferece um panorama diferente, cujos exemplos práticos são a ampliação e a remodelação do museu, com a consequente reavalização da posição que deve ocupar a arquitetura no marco da cultura. As soluções arquitetônicas precisam ser totalmente alinhadas com as necessidades do homem e da sociedade. Livre de obstáculos econômicos, sociais e políticos, bem como das estruturas dominantes

La explicación de Dios, de Carlos Alberto Estévez, 1993.

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exercidas sobre a sociedade e sobre o indivíduo, começa a integração de todas as manifestações artísticas em torno de um objetivo único: satisfazer as necessidades de um homem que procura chegar ao pleno desenvolvimento. Não se trata de um desenvolvimento material, e sim do desenvolvimento espiritual e cultural, garantindo que em sua plenitude a arquitetura seja um instrumento, e não um fim. E, assim como comenta Robert Venturi, fala-se de uma arquitetura complexa e contraditória, baseada na riqueza e na ambiguidade da experiência moderna, incluindo a experiência inerente à arte. Uma arquitetura de complexidade e contradição tem uma especial obrigação para como o todo: sua verdade deve estar na sua totalidade ou em suas implicações de totalidade. Deve encarnar a difícil unidade da inclusão, melhor que a fácil unidade da exclusão. Mais não é menos. O MNBA tem se inserido em praticamente todos os eventos relevantes

da história das artes visuais em Cuba: o Salón de 70, os Salões da Uneac, as Bienais de Havana. Ao mesmo tempo, o museu é um trampolim de divulgação e consolidação da produção de artistas participantes desses eventos. Pode-se lembrar a memorável performance de Tania Bruguera durante a 5ª Bienal de Havana, nos jardins do MNBA. Bruguera é hoje uma artista que conta com grande reconhecimento internacional. Vale destacar a importância que a equipe do MNBA tem dado às publicações que acompanham os excelentes projetos de exposições organizados pela instituição ou em parceria com outras instituições, tais como: Novecento cubano: La naturaleza, el hombre los dioses; Pintura cubana del 1900 (com curadoria de Alejandro Alonso, e a parceria do MNBA com o governo italiano em 1995); Exposição e catálogo da obra de Wifredo Lam, em parceria com Caja Duero (Espanha) nas salas do Palacio

A obra Gallo del Caribe, de Wifredo Lam, 1954.

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de San Boal; Escuela de Nobles y Bellas Artes de San Eloy (curadoria de Roberto Cobas Amate); Exposição e catálogo La ciudad de las columnas, também em parceria com Caja Duero na sede do MNBA, em 1997. Evidencia-se, desse modo, o interesse do MNBA pela qualidade nos projetos que desenvolve, bem como pela intensificação do intercâmbio cultural com outras instituições internacionais, que oferece a possibilidade de discussão sobre a produção nacional em contextos variados. Exemplo significativo é a exposição CUBA! Art and History from 1868 to Today, no Montreal Museum of Fine Arts em parceria com o MNBA, em 2008. Vale também destacar a exposição da coleção de arte pop do Ivam (Instituto Valenciano de Arte Moderna). No Brasil, em parceria com o Banco do Brasil, a exposição Arte de Cuba foi apresentada em 2006 nas três sedes do Centro Cultural Banco do Brasil, em São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília. A exposição, com 117 obras entre pinturas,

esculturas, desenhos e fotografias da coleção do MNBA, proporcionou um amplo panorama do movimento modernista cubano, com destaque para os representantes das gerações dos anos 1960, 1970 e 1980 e para uma seleção de obras de artistas contemporâneos. A discussão e a compreensão das artes visuais em Cuba, em todos seus contextos, ressaltando a relação com a produção brasileira, foram destaques da exposição. O trabalho desenvolvido pelo MNBA tem, assim, contribuído de maneira palpável e decisiva para a fecundidade, o impacto, a evidência e a importância da produção cubana nos circuitos nacionais e internacionais das artes visuais. Uma parte significativa do patrimônio artístico do país está indissoluvelmente ligada ao MNBA. E a instituição continua e continuará se inserindo e orientando a história da arte visual em Cuba.

Isla de la Juventud - 1970, de Kcho (Alexis Leyva Machado).

Andrés Martín é cubano, historiador e coordenador de mostras do Museu de Arte Moderna de São Paulo.

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TEATRO

MISSÃO CUMPRIDA 3º FESTIvAL IbERO-AMERICANO DE TEATRO DE SÃO PAULO

Mais de mil pessoas aplaudiram, na abertura do festival, a peça A Alma Boa de Setsuan, de Bertold Brecht, com Denise Fraga.

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ELvIRA GENTIL FERNANDO CALvOZO


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O Festival Ibero-Americano de Teatro nasceu com a missão de difundir a produção contemporânea das artes cênicas e traçar um paralelo entre os países da América Latina, da Espanha e de Portugal. A ideia é fazer uma ponte cultural que possibilite a troca de experiências entre artistas e companhias para refletir sobre a evolução do fazer teatral dentro da realidade desses países. Isso, sem abstrair a realidade cultural de cada um, suas origens e a ligação do teatro com suas comunidades, descobrindo semelhanças e dificuldades comuns a grupos ou companhias. A iniciativa deu certo, e atraiu um público bastante expressivo, que aprovou o evento e seus propósitos nas edições realizadas em 2008 e 2009.

A edição de 2010, mais encorpada, reuniu grandes nomes do cenário teatral e teve como Comissão Artística Elvira Gentil, Lima Duarte e Paulo Betti. O III Festival Ibero-Americano de Teatro de São Paulo realizado pela Fundação do Memorial da América Latina, abriu-se, assim, a mais uma possibilidade de estimular o intercâmbio cultural entre as novas dramaturgias e discutir temas do universo teatral. “Estou muito satisfeito com a qualidade dos espetáculos e com o impacto no público. Todos os dias tivemos casa cheia. Sem dúvida, faz sentido organizarmos um festival desses no Memorial. O Festibero é uma boa forma de integrar a América Latina por meio da Cultura. Ora, essa é a missão do Me-

Gris Mate, de Iñaki Rikarte, do grupo Katu Beltz, do País Basco, Espanha.

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A Tempestade e os Mistérios da Ilha, da obra de Shakespeare, da Santa Estação Cia. de Teatro.

morial”, segundo Fernando Leça, presidente do Memorial. Na opinião do diretor português João Leitão, o festival já é uma realidade. Lima Duarte abriu o festival com o monólogo O Ator, de Chico de Assis, escrito especialmente para ele. Outra surpresa da noite foi sua estreia como roteirista no curta metragem de animação Folha da Samaúma, produzido pelo Projeto Bem-Te-Vi com crianças da aldeia indígena Guarani Tekoa Pyau, de São Paulo. Na sequência Denise Fraga apresentou o premiado espetáculo A Alma Boa de Setsuan, de Bertold Brecht. O Brasil apresentou ainda A Tempestade e os Mistérios da Ilha, da Santa Estação Cia. de Teatro, de Porto Alegre; Sonho de uma Noite de Verão, do Grupo Rotunda, de Campinas; Balada de um Palhaço, da Cia. Arte & Fatos, de Goiás. Além de As Troianas, com direção de Zé Henrique de Paula; As Viúvas, direção de Sandra Corveloni, do Grupo TAPA e Homem das Cavernas, direção de Alexandre Reinecke, as três de São Paulo. As atrações internacionais mostraram desde o teatro tradicional até experiências contemporâneas. Fizeram parte da Maratona Cênica do III Festival Ibero-Americano de Teatro de São Paulo: Espanha/Países Bascos, Gris Mate, da Cia. Katu Beltz; México, Tom

Pain, da Cia. Entre Piernas Produciones; Colômbia, Tu Ternura Molotov, da Cia. Fundación Teatro Nacional; Portugal, Lost in Space, da Cia. Kind of Black Box; Peru, La Importancia Del Abrazo, da Cia. Komilfó Teatro; Cuba, Final de Partida, da Cia. Argos Teatro/Havana; Argentina, Rodando, e do Uruguai, Los Padres Terribles. A Mostra Paralela resgatou o circoteatro, gênero popular dos primórdios, com o Circo Tubinho, que montou sua lona na Praça das Sombras. Entre os clássicos apresentados pelos 35 profissionais da companhia estavam: O Ébrio, Marcelino Pão e Vinho, A Canção de Bernadete, além de uma comédia da própria Cia. Ainda entre as atividades da Mostra Paralela, foram programadas a oficina de dramaturgia, com Chico de Assis, e mesas de debates sobre o universo teatral. Para falar sobre o panorama atual do teatro foram organizadas três mesas de debates, coordenadas por Analy Alvarez, que discutiram os temas: As tendências da nova dramaturgia; A viabilidade das produções alternativas; e As escolas de teatro melhoram o nível dos atores da nova geração? Para debater foram convidados profissionais conceituados, como Ligia Cortez, Ênio Gonçalves, José Leitão (diretor teatral e coordenador do Festival Fazer a Festa / Porto / Portugal) e Glória Levy (professora e diretora teatral / Uruguai), entre outros. A presença de artistas, técnicos e diretores num festival deste tipo reforça o intercâmbio que naturalmente acontece e poderá se transformar em parceria vitoriosa, tal como a direção de Gloria Levy (Uruguai) da peça Rifar El Corazón, uma montagem da Bolívia. A parceria foi iniciada na primeira edição deste mesmo festival. Fernando Calvozo é Coordenador do III Festival Ibero-Americano de Teatro de São Paulo; Elvira Gentil é membro da Comissão Artística do Terceiro Festival Ibero-Americano de Teatro de São Paulo.

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DEPOIMENTO

BRASÍLIA IDEIA DE UM NOVO BRASIL

PAULO MENDES DA ROCHA

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Brasília lançou a ideia de um novo Brasil. Foi a realização de um projeto em andamento, porque não vejo o país antes ou depois, o que vejo é a continuação de um processo, o sonho de ocupação do território, que era um sonho americano. A América foi fundada com essa visão, a de construção, a da possibilidade de habitar o planeta; aqui não havia nada. Portanto, como nós sabemos, é um projeto antigo este de transferir a capital para o interior do Continente, que se realizou por manifestação da vontade. Acho que foi uma etapa con-

solidada. Veja que uma coisa tão extraordinária não constituiu uma grande polêmica nacional, ao contrário, hoje, por exemplo, quem perguntar para qualquer cidadão brasileiro sobre Brasília, ele vai dizer que foi ele que construiu, que é uma realização do povo brasileiro. A República estabeleceu-se assim, com a visão nítida de que na América a questão é a ocupação territorial. Vale ressaltar que o interessante no caso é que essa ocupação já pressupõe parcerias. Por exemplo: no que diz respeito à navegação fluvial e à ligação Atlântico-

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Niemeyer e Lúcio Costa trocando ideias.

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Catedral de Brasília pelo traço de Oscar Niemeyer.

Pacífico, uma questão americana que tem de ser realizada por meio da solidariedade entre Chile, Peru, Bolívia, Brasil, Argentina. São projetos já continentais o que está sendo hoje discutido em política internacional, horizontes futuros, a posição da América, tudo fica muito ligado a esse espaço territorial latinoamericano e, sob esse aspecto, é muito importante o que foi feito em relação à construção de Brasília. Os detalhes precisam ser discutidos após a conclusão e a ocupação da cidade. Dependem de uma harmonização das cidades satélites, mas, como atitude fundamental, o estabelecimento daquela mudança imediata e a construção da cidade significaram uma experiência muito interessante. Por outro lado, também acho que a ideia de um concurso com júri internacional mobilizou uma ampla discussão pública, o que também foi positivo. Niemeyer e Lúcio Costa foram exemplares,

inclusive do ponto de vista das relações do Brasil, ou seja, da expressão do Brasil como cultura no mundo. Na opinião de amigos de grande prestígio internacional, Brasília representou um exemplo de aplicação do princípio da arquitetura contemporânea, no que se refere à questão habitacional. A graça e o prazer, a justa proporção do que seria já a moradia vertical, agregando lazer, trabalho, tudo isso é muito interessante. Também a ideia dos eixos: um eixo monumental e um eixo habitacional, os vazios associando, por exemplo, no caso da universidade, lazer e conhecimento de uma forma muito positiva. Eu me lembro, nos primeiros anos da Universidade de Brasília, de experiências de convivência com gente do Brasil inteiro, de vários pontos do país, estudando na Capital Federal. O que foi uma continuação do que já se havia visto nos primórdios da República, homens como Drummond

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de Andrade, Pedro Nava, provenientes de fora para estudar medicina, estudar direito, ou como a família de meu pai que era baiana, veio ao Rio de Janeiro, onde ele estudou engenharia. Agora, com Brasília comemorando seus 50 anos, devemos lembrar que desses 50, 20 foram de ditadura militar, o que nós não esperávamos, é um fator de amargura. Na prática, não é para se esquecer e, no plano político, podemos dizer que Brasília está sendo, agora, mais uma vez refeita, a duras penas nesses primeiros governos democratas. Esperamos que tudo isso continue. Eu vejo assim Brasília, como uma tarefa para nós. De todo modo, Brasília é uma obra que contém o máximo valor quanto ao aspecto artístico, principalmente daquelas realizações de grande envergadura, que envolvem a mobilização do esforço público, a parceria entre o pú-

blico e o privado. Brasília é exemplar, é uma atitude de governo, assim como representa o aproveitamento máximo das técnicas da engenharia e da sabedoria específicas, todos solidários para implantar o projeto; isso é muito importante na construção de uma nação. Ninguém, em particular, pode se responsabilizar por Brasília, porque Brasília é um projeto nacional, mas é estimulante saber que tivemos, em sua construção, artistas à sua altura. O grande mérito de Brasília é a fundação de uma cidade inteira e a consequente ocupação de um território. Isso, claro, se nós tivéssemos explorado essa realização como deveríamos. Aliás, já estamos muito atrasados, basta citar a questão da navegação fluvial, num país com uma rede dessas que temos. Frank Gary disse certa vez em uma entrevista para o Mais (Folha de São

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Palácio da Alvorada no gesto de Niemeyer.

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FOTO: TuCA VIeIrA

Paulo), que não acredita em urbanismo, para ele urbanismo estaria nas mãos das incorporadoras. No entanto, para mim a ideia de urbanismo e planejamento é uma ideia que envolve uma visão nacional. É claro que envolve o caráter arquitetônico, mas ninguém, isoladamente, vai dar a solução. Um projeto desses exige uma nação, uma consistente forma de planejamento nacional abrangendo todas as variáveis envolvidas. Não se pode imaginar que a América Latina seja feita, enquanto planejamento, pelas mãos exclusivas da iniciativa privada. A empresa privada vai estar contemplada dentro dos objetivos de uma República, mas nenhuma das duas partes deve ser submetida à outra, é uma questão de consenso. E não existe nada que possa ser feito na dimensão de um continente, de uma América, sem planejamento e consistência, que tem de começar pela atitude do Estado. São projetos que só podem ser implementados com larga visão, como as barragens, que foram construídas por empresas privadas, mas com planejamento de caráter abrangente, estatal. Basta lembrar que todas as barragens possuem eclusas, portanto, o Tietê, para citar um caso, é navegável até o Paraná; ou seja, a ligação do Amazonas com o Prata é possível. É muito importante para o escoamento da produção da agroindústria, um sistema que associado às ferrovias constituiria uma rede mais ampla. A navegação fluvial é particularmente muito estimulante, pois substitui os caminhões: barcaças transportam o equivalente a 200 caminhões e não há nada que se compare. Por isso é fácil imaginar porque outros países já fizeram os famosos sistemas como o Volga, o Don, o Ruhr e o Mississipi. Então, ainda há muito a fazer para transformar a América Latina, justamente naquilo que sempre se sonhou. Uma esperança para as angústias do mundo. Sabe-se que o mundo necessi-

ta de uma discussão permanente sobre a construção da paz para inverter essa produção toda destinada à guerra. A paz implica em novas fontes de trabalho. Tudo isso, na minha opinião, do ponto de vista simbólico, mas com muita força, está ligado à esta operação, pensar na interland com a mudança da capital. Embora ainda seja um gesto simbólico, é necessário diante do tempos que esperamos para todos. Hoje eu penso em cidades novas, fundadas dentro desse horizonte de ligações entre o Atlântico e o Pacífico, com a navegação fluvial, que podem criar um horizonte interessante para as cidades já saturadas e quase impossíveis de serem sustentadas, como São Paulo, particularmente, e o próprio Rio de Janeiro.

Paulo Mendes da Rocha em seu escritório.

Paulo Mendes da Rocha, nome consagrado da arquitetura, recebeu os prêmios Mies Van Der Rohe de 2001 e Pritzker de 2006.

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O AssAssINATO dAs IrMãs MIrABAL

As irmãs Mirabal, Patria Mercedes Mirabal, Minerva Argentina Mirabal e Antonia María Teresa Mirabal, também conhecidas como Las Mariposas, cresceram em uma zona rural, na República Dominicana. Quando o ditador Trujillo chegou ao poder, a família das irmãs perdeu a casa e todo o dinheiro que tinha. Elas acreditavam que Trujillo levaria o país ao caos econômico e formaram um grupo de oposição ao regime. Embora presas e torturadas várias vezes, continuaram na luta contra a ditadura. Trujillo decidiu, então, acabar com elas. Em 25 de novembro de 1960, armou uma tocaia. Quando as três mulheres iam visitar os maridos na prisão, foram pegas e levadas para uma plantação de cana de açúcar, onde foram apunhaladas e estranguladas. Trujillo acreditou que havia eliminado o problema. Ao contrário. O assassinato teve péssima repercussão no país. Causou uma grande comoção e levou o povo a ficar cada vez mais inclinado a apoiar os ideais de Las Mariposas, o que resultou no assassinato de Trujillo em maio de 1961. Em homenagem ao sacrifício das irmãs Mirabal, em 17 de dezembro de 1999, a Assembleia Geral das Nações Unidas declarou que 25 de novembro é o Dia Internacional da Eliminação da Violência contra a Mulher.

2 MArx x BOLÍVAr O desprezo de [Karl] Marx por Simón Bolívar era tão profundo que, no verbete biográfico que escreveu para a New American Encyclopedia, ele analisa em detalhes cada uma de suas campanhas, nega suas aptidões militares e, pior ainda, nega-lhe a valentia. Segundo Marx, Bolívar sempre abandonou seus homens em batalha para fugir covardemente. Marx vai além, dizendo que ele queria unificar a América do Sul ‘numa república federal da qual seria ditador’. Numa carta que escreveu para Engels, em 14 de fevereiro de 1858, disse ‘Simón Bolívar é um canalha covarde, brutal e miserável’ e o compara com Faustin Soulouque, o negro haitiano que se proclamou imperador. * artigo de José Enrique Miguens (Argentina)

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3 BueNOs AIres

Buenos Aires tem mais de 8 mil editoras, 160 selos musicais, 500 cinemas, 3.200 livrarias e 740 museus, mercado que responde por 6% do PIB argentino. Nada mais lógico que fosse eleita pela Unesco como Capital Mundial do Livro de 2011. É a décima primeira capital nomeada e pelo visto é preciso ter muito gabarito para ganhar o título: suas antecessoras, pela ordem, foram Madri, Alexandria, Nova Dehli, Montreal, Turim, Bogotá, Amsterdã, Beirute e Liubliana. Buenos Aires foi selecionada pela quantidade e pela qualidade do programa de eventos que apresentou em sua candidatura. A indicação não representa qualquer prêmio financeiro, mas sim o reconhecimento de uma cidade que preza os livros e a leitura. E como! É terra de escritores como Jorge Luis Borges, Ernesto Sábato, Julio Cortázar, César Aira e Manuel Puig, só para citar alguns dos mais conhecidos no mundo todo. O ano de 2011 será, portanto, será um período de grandes eventos culturais em Buenos Aires.

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4 sãO pAuLO

CIdAde MAIs dIGITAL Na América Latina, a cidade mais digitalizada é São Paulo. A pesquisa feita por uma empresa de consultoria apontou em segundo e terceiro lugares Chiuahua e Mérida, no México, depois San Luis, na Argentina, e Guadalajara, também no México. O levantamento começou há um ano e avaliou os níveis de digitalização de 150 cidades em 15 países latinoamericanos. Considerou principalmente a qualidade da rede de serviços online oferecidos pela administração municipal. Além disso, foi avaliado também o uso de tecnologias da informação entre cidadãos, empresas e outras instituições públicas. Santiago, do Chile, aparece em sétimo lugar, depois de Florida, no Uruguai. Do Brasil, também entra no ranking, a cidade de Salvador, colocada pelo estudo em 12º lugar.

5 deu NA CABeçA

O que Winston Churchill, Al Capone, Getúlio Vargas e Santos Dumont poderiam ter em comum? Nada? Ao contrário, a cabeça. Como? É: todos eles, e muitos outros figurões de diferentes estirpes e vertentes usavam o chapéu do Panamá. Que, aliás, nem do Panamá é, é do Equador, feito de Carludovica palmata, planta comum no litoral daquele país e que fez a cabeça de homens ilustres como eles. O apogeu do modelo começou no início do século passado, quando ficaram conhecidos como Panamá-Hats. O nome é fruto de um grande mal-entendido: os operários que abriram o Canal do Panamá usavam chapéus feitos no Equador para se proteger do sol. Os panamenhos gostaram e passaram a comprar chapéu e revender no mundo todo; para os Estados Unidos eram embarcados pelo próprio Canal do Panamá, o que reforçou o nome. A palha usada para confeccionar o chapéu do Panamá é muito fina, e só está pronta para entrar em linha de produção depois de dias submetida à umidade e à sombra, levando o processo de fabricação a perdurar, dependendo da sofisticação, quatro meses até a última etapa, a colocação da fita.

ALex VALLAurI 6 O prIMeIrO GrAFITeIrO dO BrAsIL

Alex Vallauri está em São Paulo: nas ruas, túneis, passarelas, viadutos – Alex e seus discípulos comunicam para o povo, para o pedestre, para o motorista... Em 27 de março de 1987, Alex Vallauri deixou lembranças. Um ano após a sua morte, esse dia foi instituído. O trabalho de Vallauri inspirou diversos artistas e tornou a arte do grafite mais conhecida e respeitada no país. Alex Vallauri, artista plástico etíope, naturalizado brasileiro, é o pioneiro do grafite nacional. Na década de 80, Alex Vallauri e o grupo “Tupi não dá”, compunham a primeira geração de grafiteiros de São Paulo. O trabalho deles era panfletário e rebelde, uma reação ao momento histórico que vivíamos, e que gerou o diálogo maior do grafite com o mercado das artes de hoje, mudando a interação dessa arte com o público e a intensificação de seu consumo.

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CURTAS

NO uruGuAI se ApreNde pOrTuGuês

Desde de 2008, a língua portuguesa é disciplina obrigatória para os estudantes uruguaios do ensino médio. Para o governo uruguaio, a medida atende as necessidades dos jovens luso-descendentes que vivem no país. Até então, o ensino do idioma como língua estrangeira tinha caráter facultativo. Os estudantes do ensino médio podiam optar por fazer a disciplina como matéria extracurricular, exceção feita às escolas primárias de fronteira com o Brasil, onde a matéria já era ensinada, e também eram feitas pesquisas sobre os dialetos portugueses no Uruguai, conhecidos na gíria como “portuñol”. Por questões geográficas e sociológicas, na região fronteiriça já existiam várias escolas primárias em que estava implementado desde 2003 o ensino bilíngue em espanhol e português. O objetivo do governo é formar cidadãos que dominem os dois idiomas.

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AGrONeGóCIOs é TeMA dA CáTedrA MeMOrIAL uNesCO

Está em curso mais um módulo da Cátedra Unesco Memorial da América Latina, projeto realizado em conjunto com a Universidade de São Paulo, a Universidade Estadual Paulista e a Universidade Estadual de Campinas. O tema desta vez é Agronegócio na América Latina: Desafios e Oportunidades, desenvolvido pelo professor Roberto Rodrigues, ex-ministro da Agricultura do Brasil, e se estenderá até meados do ano. O programa, voltado à pesquisa e ao estudo de questões concretas da América Latina, ocorre nos campi universitários das instituições parceiras e no Memorial, com cursos de extensão, seminários, orientação de pesquisa e conferências. Inovação tecnológica, integração do continente, desenvolvimento sustentável, energia, mercado e processos de trabalho, são alguns dos temas abordados por esse módulo. Participam, além de brasileiros, estudantes estrangeiros indicados por universidades, que têm a oportunidade de um contato mais estreito com as questões políticas, econômicas e culturais brasileiras, enquanto se aprofundam no conhecimento sobre a América Latina.

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A FAVOr dA INTeGrAçãO

Durante o último encontro da Cúpula da Unidade da América Latina e do Caribe, realizado em fevereiro deste ano em Cancún, no México, chefes de Estado e representantes diplomáticos de 32 países da região subscreveram a constituição da Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos. O bloco deverá promover o respeito ao direito internacional, evitar a ameaça de força, trabalhar a favor do meio ambiente da região, tratar da igualdade entre Estados e da integração regional, bem como do diálogo com outros blocos. Várias questões também foram avaliadas, como a prospecção de petróleo nas Ilhas Malvinas por uma empresa britânica. Entendeu-se que o Reino Unido deve respeitar a resolução da ONU, que recomenda aos dois países não tomarem decisões unilaterais enquanto a disputa não for resolvida. Para os Estados Unidos, a união de países latino-americanos é positiva, pois favorece a cooperação regional.

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10 MILIONárIOs

LATINO-AMerICANOs Carlos Slim Helú e a sua família lideram este ano o ranking da Forbes: valem US$ 53,5 bilhões. É a primeira vez que um latino-americano lidera a lista, elaborada anualmente pela revista americana há 24 anos. Bill Gattes e Warren Buffet, se intercalaram como os mais ricos do planeta por uma década e meia. A privatização da companhia telefônica mexicana nos anos 90 foi a alavanca para Carlos Slim se lançar no mundo dos negócios globais, sendo uma das referências nas telecomunicações (a América Móvil é a maior operadora da América Latina), construção, energia e agora, aos 70 anos, até na comunicação social, com destaque para a posição que detém no capital do New York Times. “A economia global está se recuperando. Os mercados financeiros reagiram, especialmente os emergentes. Houve

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um aumento de 50% na riqueza geral global em relação ao ano passado”, afirmou Steve Forbes, presidente do grupo editorial Forbes. Esse fenômeno se aplicou ao caso de Carlos Slim, cuja fortuna cresceu em um ano US$ 18,5 bilhões e já chega a US$ 53,5 bilhões. O mexicano apareceu em terceiro lugar na lista o ano passado. O Brasil também está representado no “top oito” por Eike Batista (US$ 27 bilhões), dono de gigantes nas áreas do minério e do petróleo (OGX), matériaprima que tem cada vez maior peso na economia brasileira, por causa da descoberta regular de novas reservas, essencialmente em alto mar – o pré-sal. Batista é ainda proprietário do grupo EBX, que reúne empresas de mineração, energia, logística e exploração de petróleo e gás.

O OsCAr VAI pArA... ArGeNTINA

O Segredo dos Seus Olhos, de Juan Jose Campanella, ganhou o Oscar de melhor filme estrangeiro, dando à Argentina a segunda estatueta e a sexta nomeação da Academia de Cinema de Hollywood. O filme venceu o grande favorito, o alemão A Fita Branca, bem como outro bastante conceituado no meio, o hispano-peruano A Teta Assustada, além do francês O Profeta e do israelita Ajami. Apesar da trama, que trata da solução de um assassinato depois de 25 anos de investigação, o filme é marcado por um sutil bom humor. Realizadores, críticos, atores, todos se alegraram na noite de entrega do prêmio com a vitória conquistada pela produção hispano-argentina. O ator protagonista, Ricardo Darín, que é argentino e assistiu à festa em Buenos Aires, disse que ao ver os demais filmes concorrentes achou que O Segredo de Seus Olhos tinha muita chance de vencer: “O filme conta uma história dura e áspera sem, contudo, perder o bom humor e a essência do cotidiano.”

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CURTAS

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Os 638 ATeNTAdOs CONTrA FIdeL CAsTrO

El que debe vivir é uma série com oito capítulos de 70 minutos cada um, que levou três anos de filmagens. É uma série sem precedentes em Cuba: 243 atores e atrizes, mais 800 extras e figurantes, encarnam figuras históricas como Fulgencio Batista, o ex-diretor da Cia Allen Dulles e os principais líderes revolucionários, incluindo Fidel Castro. A série sobre os 638 atentados contra Fidel Castro mescla ficção e é um drama baseado em material de arquivo e que irá ao ar todos os domingos em horário nobre. A lista de planos e atentados frustrados é ampla e rebuscada: desde simples atentados e granadas disfarçadas de bolas de beisebol, até a famosa batida de chocolate com cianureto na cafeteria do hotel Havana Hilton, pouco depois do triunfo da revolução, um dos mais ameaçadores à vida de Fidel. O primeiro capítulo é dedicado às tentativas de matar Fidel Castro antes de 1959, quando se preparava no México a invasão do iate Granma e depois, já em Sierra Maestra, ao ser traído por um camponês chamado Eutimio Guerra. A série é toda permeada pela mensagem de que Cuba tem direito de se defender do seu principal inimigo: os Estados Unidos da América. O último capítulo é dedicado às tentativas de magnicídio durante as cúpulas ibero-americanas de presidentes, sobretudo o ocorrido no Panamá no ano de 2000.

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MALVINAs Ou FALkLANds ?

A população das ilhas Malvinas vive mais um impasse duas décadas depois da guerra entre Argentina e Grã-Bretanha pela soberania do arquipélago, que fica no sul do Oceano Atlântico e é chamado de Malvinas pelos argentinos e de Falklands pelos britânicos. O anúncio de que o governo britânico teria autorizado a prospecção de petróleo em uma área próxima às ilhas causou protestos do governo argentino, que questiona a soberania britânica sobre o arquipélago. A Argentina levou a questão para a Cúpula da América Latina e Caribe, em Cancún, buscando apoio dos países da região. Durante o encontro, foram aprovados dois textos, um dos quais foi uma declaração de presidentes em que os chefes de Estado e de governo reafirmam o seu apoio aos legítimos direitos da República Argentina na disputa de soberania com o Reino Unido da Grã-Bretanha e da Irlanda do Norte relativa à questão das Ilhas Malvinas”. O outro foi um comunicado sobre a exploração de hidrocarbonetos na plataforma continental das Malvinas, pela Argentina. No final da cúpula, os líderes latino-americanos afirmaram que o Conselho de Segurança das Nações Unidas “deve reabrir” a discussão em torno da jurisdição sobre as Malvinas e questionou a soberania britânica sobre as ilhas.

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GALERIA MARTA TRABA

40 ARTISTAS EM

JOGOS DE GUERRA 30406009 miolo.indd 46

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OBRA DE REGINA SILVEIRA

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campo simbólico, com a escultura O Campo Todo Fraturado, enquanto Márcia X discute questões religiosas e sexuais em Desenhando com Terços, e Rosana Palazyan toca na violência doméstica com Love Story II, uma fita rósea e bordada. Jovens artistas também marcam presença em Jogos de Guerra, com trabalhos pertinentes, caso de Felipe Barbosa, com Homem Bomba, e Leo Ayres, autor de Operação Camuflagem e Together, feeling lonely, um vídeo e uma série de fotos que desvendam os bastidores da Academia Militar das Agulhas Negras. Já Daniel Senise preparou uma obra inédita, e Cildo Meireles e Regina Silveira participaram com dois marcos de suas carreiras, Zero Cruzeiro/Zero Dólar e Encuentro.

FOTO: dIVuLGAçãO

No piso, Rendido 2008, intervenção de Guga Ferraz.

Jogos de Guerra trata de confrontos. Toda sorte de confrontos: em terrenos simbólicos, como os jogos; na guerra propriamente dita; na política; na economia; na defesa da individualidade; nas batalhas emocionais; no duelo do artista com sua obra. Projeto de Leo Ayres, realizado pela Coletiva Projetos Culturais, em cartaz na galeria Marta Traba, reúne obras de Daniel Senise a Cildo Meireles e Regina Silveira. Nelson Leirner, por exemplo, remonta sua instalação A Lot(e), na qual mistura figuras religiosas, animais e personagens pop de desenhos animados. Adriana Varejão comparece com um trabalho pouco conhecido, mas identificado com sua obra, a foto Contingente. Raul Mourão, por sua vez, trata da guerra no

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HOMENAGEM

JORNALISTA & ESCRITOR UM ARGENTINO DA RESISTÊNCIA JOCA REINERS TERRON

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morte de Tomás Eloy Martínez em 31 de janeiro de 2010 representa o fim de toda uma geração. Nascido na província de Tucumán em 1934, o jornalista e escritor argentino pertenceu àquela geração que atingiu a maturidade na mesma época em que ditaduras militares se impuseram em toda a América Latina. Marcados pela perseguição política e pelo exílio, esses intelectuais escaparam de uma América Latina que “foi o manicômio da Europa, assim como os Estados Unidos foram sua fábrica”, no dizer do escritor chileno Roberto Bolaño, mas “a fábrica agora está em poder dos capatazes e loucos fugidos são sua mão de obra”. 49

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Não imagine que a citação de Bolaño é fortuita, pois não é. Excerto de seu artigo póstumo “Os mitos de Chtulhu”, é um ataque aos “capatazes”, representantes de uma literatura linear e alinhada à lógica de mercado, entre os quais identifica Eloy Martínez, cuja obra apresenta ingredientes raros na canônica ficção argentina, de

núcleo irradiativo de matiz fantástico como consagrado em Macedonio Fernández e em Jorge Luis Borges, não sendo fortemente marcada pelo naturalismo. Na visão de Bolaño, porém, essa herança do poder transfigurador da literatura (de Onetti, Rulfo, Cortázar e Bioy, por exemplo) cessa na legibilidade e na clareza de obras

FOTOs: reprOduçãO

Exilado na Venezuela e nos Estados Unidos após o golpe militar de 1976, Eloy Martínez prosseguiu com a carreira consolidada no jornalismo de seu país natal.

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como as de Eloy Martínez (e de outros, tais como Isabel Allende, Ángeles Mastretta ou Luis Sepúlveda), supostos responsáveis futuros pela propagação de narrativas voltadas ao consumo e ao entretenimento “ilustrado” – ou seja, para inglês ver. Descontado o radicalismo típico do pensamento do chileno (e que se mostra cada vez mais equivocado em seu extremismo purista: basta verificar sua própria influência crescente na produção literária atual de língua espanhola e não somente, galopando a cascos largos para a canonização), é fato que o exílio serviu a alguns autores como espécie de violento sucedâneo do boom latino-americano, que já permitira a alguns integrantes da geração anterior à de Eloy Martínez (a de Borges e de Rulfo) e a alguns de seus contemporâneos (fiquemos apenas em García Márquez e Vargas Llosa), o auge da profissionalização – por meio da sanção editorial europeia – e a popularização em escala global. Exilado na Venezuela e nos Estados Unidos após o golpe militar de 1976, Eloy Martínez prosseguiu com a carreira consolidada no jornalismo de seu país natal, onde colaborara inicialmente em La Nación e fundara, mais tarde, La Opinión, diário fundamental no registro do descalabro político em ascensão na Argentina de princípio da década de 70. Com o fechamento de La Opinión, perseguido pelos militares, Martínez abrigou-se na Venezuela, onde criou em 1979 El Diario de Caracas, periódico que se impôs como fala influente da crônica latino-americana daquela década de ocaso e violência. Logo após sua mudança para os EUA em 1984, Martínez publicou seu primeiro livro de sucesso mundial, O Romance de Perón (Companhia das Letras, 1998). Exímio praticante de

um jornalismo literário nos moldes de Truman Capote (com quem recebeu inevitáveis comparações), Martínez formulou seus romances num binômio baseado na linguagem clara e direta do jornalismo (certamente influenciada pelo suspense decalcado de livros policiais da escola noir de Dashiell Hammett e de Raymond Chandler), a serviço da investigação de eventos históricos de grande escala e de fundamental importância para a compreensão da história argentina. Sua predileção pela mitologia em torno de Juan Domingos Perón, levou-o à consagração com a publicação de Santa Evita (Companhia das Letras, 1995) e, por extensão, à fixação do espírito trágico argentino em O Cantor de Tango (Companhia das Letras, 2004) em sua manifestação mais recente, a da crise político-financeira de 2002. Protagonista de uma vida trágica em seus últimos anos, Tomás Eloy Martínez sobreviveu ao atropelamento que vitimou em 2001 sua terceira mulher, a jornalista venezuelana Susana Rotker. Tendo diagnosticado o câncer logo depois, porém, sobreviveu por dez anos à luta contra a doença que o consumiu, sempre com a mesma elegância de seus textos e com a lealdade devotada aos amigos que o tornaram conhecido. Joca Reiners Terron é escritor, artista gráfico e editor.

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HISTÓRIA

BICENTENÁRIOS vERÓNICA GOYZUETA ESTE ANO COMEMORAM-SE OS 200 ANOS DA INDEPENDêNCIA DE qUATRO PAÍSES hISPANO-AMERICANOS: ARGENTINA, MÉxICO, COLôMBIA E ChILE. AS LUTAS SE ARRASTARAM POR VÁRIOS ANOS E RESULTARAM NA EMANCIPAçÃO POLÍTICA DESSES PAÍSES, NO INÍCIO DO SÉCULO xIx.

Um importante processo político e militar instalou-se na América hispânica entre 1810 e 1830, e permanece vivo duzentos anos depois. Foi nesse período histórico que uma série de movimentos de insurgentes buscaram a independência da monarquia espanhola, do México à Terra do Fogo, para se tornarem as Repúblicas que são, em sua grande maioria, até

hoje. Esses vinte anos marcaram o continente para sempre, brindando-nos com o sonho da utopia bolivariana que segue na pauta dos governos sul-americanos. Passados dois séculos e entrando em um novo milênio, a integração continua parecendo necessária e segue sendo buscada em projetos econômicos, culturais e políticos, como o Mercosul, o mais ambicioso

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dos intentos que se criaram desde a década de 60 – como o Pacto Andino, hoje Comunidade Andina de Nações (CAN) e o Parlamento Latino-Americano. Depois da Independência dos Estados Unidos (1783), que provou ter sido possível deixar de ser colônia, e da Revolução Francesa (1789), que estimulava a conquista de princípios como a liberdade, a igualdade e os direitos humanos, as elites intelectuais e mestiças da América hispânica correram atrás de sua independência, deixando como contribuição histórica ao mundo a ideia de que a liberdade está acima das questões raciais. Foi a primeira vez que mestiços, índios e negros lutaram em batalhões por um mesmo ideal, e que conceitos como Pátria e Nação se construíram sobre a base da convivência de diversas culturas e etnias, em outro processo que ainda marca o continente; basta pensar, por exemplo, na Bolívia de Evo Morales, que em julho celebrou seu bicentenário com toques indígenas. Outra das heranças desses tempos é o caudilhismo, o fenômeno social e político que continua pulsando na região. Seu melhor representante na atualidade é o venezuelano Hugo Chávez, por coincidência, um entusiasta do ideal bolivariano de seu compatriota Simón Bolívar. É por motivos como estes que, nos países hispano-americanos, as celebrações do bicentenário da indepêndencia não serão apenas espaços de festas, mas sim de reflexões sobre sua própria identidade, sua história e seu futuro, o momento perfeito para discutir a integração sobre novas bases: a das experiências aprendidas em intentos passados de união e a do desafio de buscar essa integração, agora com democracias em consolidação e economias que têm melhorado consideravelmente, com ambientes estáveis de crescimento e de inflação controlada, além de riquezas minerais e agrícolas que continuam servindo ao mundo.

As independências hispano-americanas surgiram de um momento de fragilidade da monarquia espanhola, que em 1808 lutava por sua própria independência, após sofrer a invasão de Napoleão Bonaparte. As juntas americanas, criadas para fomentar a luta contra os invasores franceses, acabaram por converter-se em um espaço de cultivo de discussões patrióticas e de autonomia, nos territórios que hoje correspondem a Venezuela, Colômbia, Equador, Peru, Bolívia, Chile e Argentina. Em 19 de abril de 1810, a Junta de Caracas rejeitou o governo designado pela Espanha. Os protestos, insurreições e batalhas não pararam mais por todo o Continente, em um processo de independências que se encerra em 1930, com a morte de Simón Bolívar, em Santa Marta, Colômbia. Entre um panteão de figuras, próceres e heróis – destaque para o indígena peruano Túpac Amaru II e o argentino José de San Martín – Simón Bolívar conduziu o processo de independência e buscou a união política e econômica em um continente que havia sido dividido por interesses coloniais. Bolívar morreu aos 47 anos, pobre, tuberculoso e destituído de qualquer poder. Aparentemente fracassado, Bolívar se converteu no símbolo de um projeto que até hoje tira o sono dos governos latino-americanos. O sonho da independência, alcançada uma a uma em todos os países ibero-americanos, é o sonho de progresso e de desenvolvimento para onde o continente ainda quer caminhar. Antes fora desse projeto bicentenário, o Brasil soube incluir-se e tem mostrado seu interesse em conduzí-lo. Entender os seus vizinhos é o primeiro desafio e, para tanto, o Memorial da América Latina é uma porta fundamental, todavia ainda muito pequena.

Fernando VII, da Espanha, reinou no período em que os insurgentes buscaram a independência. Retrato do pintor espanhol Francisco Goya.

Verónica Goyzueta é jornalista peruana, correspondente no Brasil do jornal espanhol ABC e colaboradora da revista AméricaEconomia.

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INTEGRAÇÃO

A VIABILIDADE DE UM PROJETO

POR UM bLOCO FORTALECIDO RICARDO SENNES

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viabilidade de um projeto regional na América do Sul e o papel do Brasil nesse processo têm ocupado parte importante das discussões dentro e fora do Itamaraty e da academia. A discussão está na mídia e tem permeado o debate eleitoral, o que é inusitado e muito proveitoso. Desde o final dos anos 70 e início dos 80, a política regional do Brasil vem se transformando. A principal característica dessa mudança é o caráter crescentemente positivo da agenda brasileira, em forte contraste com a percepção anterior de que os países vizinhos eram pouco importantes ou mesmo ameaças aos interesses

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nacionais. No final dos anos 90, a agenda ganhou definição e contornos mais claros. É exatamente o conteúdo dessa agenda que está em debate e, para tanto, são inevitáveis as análises sobre as relações entre os países e seus movimentos políticos e econômicos. Trata-se de um tema bastante difícil e controverso, além de pouco familiar aos brasileiros. No entanto, um maior número de empresas, funcionários públicos, políticos e comerciantes do Brasil na região estão gerando uma massa crítica importante.

portação e de razoável nível de restrição ao comércio exterior – em alguns casos também ao investimento externo – foram fortemente redefinidos. Houve uma onda de medidas como a redução de barreiras tarifárias e não tarifárias, privatizações, liberação de fluxos de capital, de atração de investimentos estrangeiros e de mudança do papel do Estado para menos produtor e mais regulador. No campo político, o retorno das liberdades civis, de eleições livres e diretas e de ampla liberdade de organização sin-

Esse crescente envolvimento, engajando novos atores, está também alterando a correlação de interesses e formando novos agrupamentos políticos contrários ou favoráveis a tal projeto. De modo geral, duas questões se sobrepõem: se há um espaço sul-americano com alguma convergência de interesses estratégicos, e qual papel caberia ao Brasil. É certo que entre 1990 e o início dos anos 2000 a América do Sul tinha um perfil mais homogêneo que o atual. Os governos civis que assumiram o poder na década de 80, na redemocratização, tinham agendas com novas estratégias de desenvolvimento, em geral convergindo para reformas liberalizantes. Os modelos de substituição de im-

dical, partidária e social, foi visto como fator de reforço e legitimação das reformas econômicas. As estratégias foram semelhantes, mas a forma de implementá-las e os resultados variaram bastante. Enquanto alguns países combinaram estratégias de abertura econômica com políticas comerciais, industriais e tecnológicas, outros focaram nos temas redistributivos, sejam eles entre classes sociais ou regiões. Outros ainda não definiram políticas compensatórias nem em um sentido nem no outro. As medidas dos anos 90 também foram baseadas em diferentes bases políticas, sendo que em alguns, por exemplo, foram patrocinadas por partidos e lideranças tradicionais, e

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em outros por novas lideranças e novos agrupamentos. Dessa forma, ao final do ciclo de reformas foram observados diferentes resultados econômicos e sociais, com diferentes reflexos sobre os sistemas políticos. Em alguns casos, motivaram uma forte revisão dos objetivos da fase anterior. Isso gerou, em grande parte, a atual heterogeneidade dentre os sul-americanos no campo político e nas estratégias de desenvolvimento. Assim surgiu, por exemplo, um grupo de países com opções mais consolidadas em ambos os campos, como Brasil, Colômbia, Chile e Uruguai. Por vias distintas e com agendas de desenvolvimento desiguais, esse grupo indica razoável densidade em suas iniciativas econômicas e no jogo institucional. Outro grupo é o daqueles em que a redefinição do pacto político predomina, caso da Bolívia, Venezuela e Equador, seja por demandas de segmentos excluídos do processo econômico, seja pela combinação desses com demandas significativas de populações indígenas. Na Venezuela, em particular, também existe a tentativa de mudar o pacto político, mas as condições institucionais precárias desde meados dos anos 90, com tentativas de golpe de estado promovidas por Hugo Chávez e contra ele, indicam a natureza belicista da disputa política. E isso tem ocorrido no mesmo tom do questionamento do modelo de desenvolvimento. A última eleição presidencial do Paraguai, em que a oposição tomou o poder após décadas, emite sinais de novo pacto político sem grandes questionamentos do modelo econômico. Na Argentina, predomina a movimentação em torno da definição de um modelo de desenvolvimento que, desde a crise aguda dos anos 2001 e 2002, jogam crescente peso sobre o sistema político. Outro indicador de que dentro desses grupos há diferenças é o Índice de Estabilidade Política (IPE) da Amé-

rica Latina, feito pelo Observatório Político Sul-Americano (OPSA). O IPE indica aumento da violência política a partir de 2003 até o primeiro semestre de 2009. No entanto, na comparação entre 1990 e 2009, percebe-se que ao final desse período a violência, em maior ou menor grau, estava concentrada nos andinos, incluindo a Colômbia. Brasil e Chile não apareciam no mapa em nenhum dos dois anos, enquanto Paraguai e Uruguai saíram dele. Toda essa heterogeneidade diminui o espaço de convergência para um projeto regional, mas não elimina sua viabilidade. Isso porque há uma série de questões que demandam, no mínimo, respostas regionalmente coordenadas. Esses temas incluem, por exemplo, acesso preferencial a mercados, proteção aos investimentos diretos, preservação dos ecossistemas comuns, combate ao tráfico de drogas e de armas e ao contrabando. Soluções individuais e bilaterais ou não resolverão esses problemas ou serão uma resposta parcial e, portanto, de eficiência reduzida. O fato de as tentativas de aprofundamento da integração regional nesta década terem ficado aquém do esperado não são indicações claras da impossibilidade de um projeto regional. Em vários casos aprofundar a integração não é necessariamente a melhor estratégia para lidar com o problema. O fluxo de investimentos diretos entre países da região e o aumento do comércio demonstram isso. Ou seja, a despeito do aumento da heterogeneidade, existe um claro aumento das relações econômicas entre os países da região, tendo o Brasil como polo desse processo. Nesse cenário, é recorrente a pergunta se e como o Brasil deve participar de um esforço de projeto regional. Para um país que faz fronteira com 10 outros na região, a resposta à primeira pergunta é quase imediatamente positiva.

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Problemas nos países vizinhos tendem a transbordar, de uma forma ou de outra, para dentro do Brasil, até mesmo se não houver uma fronteira seca, caso do Equador e Chile. Afinal, um acordo de livre comércio do Chile com a China nos impacta, assim como o episódio recente de disputa entre o governo equatoriano e uma empresa brasileira pode gerar efeitos negativos sobre a presença de empresas nacionais em outros países da região. Nos anos 90, ao definir de maneira clara que a América do Sul é o seu espaço prioritário de atuação, o Brasil deu sentido geopolítico ao discurso. Embora com contornos geográficos e natureza política distintas, a criação do Mercosul e a primeira reunião de presidentes da América do Sul em 2000, na qual se instalou a Iniciativa para a

Integração da Infra-estrutura Regional Sul-Americana (IRSA), são os únicos projetos regionais afirmativos liderados pelo país e podem ser vistos como momentos fundadores da sua nova presença regional. O Tratado de Cooperação Amazônico teve um potencial político importante, mas acabou tendo poucos desdobramentos. Mais recentemente, foram complementados pela iniciativa de criação da União de Nações Sul-Americanas (Unasur). Nesses acordos uma ampla gama de temas foi incorporada, desde acordos comerciais, energéticos e de infraestrutura, até um incipiente mecanismo de consulta na área de defesa. Porém, novamente sua eficácia tem sido mínima. É interessante verificar que uma grande maioria da elite política brasilei-

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ra concorda que a região é e será cada vez mais importante para o país. Mas essa elite está divida sobre o que fazer. De maneira simplificada, pode-se dizer que existem dois modelos para arquitetar a presença regional do Brasil, diferenciados pelo nível de institucionalização. Ambos têm consequências sobre os recursos necessários, métodos, riscos e benefícios e implicam em diferentes cenários sobre como o país irá enfrentar no futuro os principais temas regionais. Hoje, predomina o modelo de baixa institucionalidade. Antes de tudo é uma opção política meditada e consolidada em instituições como o Itamaraty e as Forças Armadas e nas demais agências federais e na elite. O alto número de cúpulas presidenciais na região ocorre em grande medida pela ausência de instâncias capazes de captar, formular, propor e negociar. Não por outra razão, pequenos incidentes entre os países logo viram contenciosos diplomáticos, pois na ausência de instâncias regionais de mediação acabam atingindo diretamente os chefes de estado e o primeiro escalão dos governos, inclusive no caso do Mercosul. O problema é que essa opção tem custo: o de liderar sem instituições, baseado em bilaterismo (modelo mais próximo aos dos EUA) e que exige um alto grau de mobilização para atuar direta ou indiretamente em cada um dos problemas, além de um elevado custo de exposição política. O reforço de uma liderança baseada em instituições, cujo desenho pode variar consideravelmente, gera custo, mas pode reduzir os riscos de o país se ver isolado frente aos problemas ou mesmo na defesa de alguns interesses específicos. O modelo europeu vem sempre à mente quando o assunto é integração regional institucionalizada, mas muito possivelmente não é aplicável à América do Sul. Primeiro pelo tipo de lide-

rança brasileira e de opções da elite do país em relação à criação e ao envolvimento com instituições internacionais. Segundo porque o contexto político da América do Sul tem pouco em comum com o europeu, seja nos anos 50, seja nos dias de hoje. A baixa eficácia relativa da enorme gama de arranjos regionais amplos e frágeis não parece ser um rumo acertado para esses objetivos. A América do Sul tem características próprias e é sobre elas que o Brasil deve refletir para traçar suas estratégias: entre suas características está a da instabilidade econômica, social e política, com poucas exceções. Não obstante, o adensamento das relações econômicas e sociais segue aumentando, como indicam os fluxos de capitais, de investimentos, de mercadorias, de serviços, de comunicações, turismo, transporte e migratórios formais e informais. Em apenas algumas dessas dimensões esse adensamento é fruto de políticas de integração, como é o caso dos setores automobilístico e químico. Parte importante é efeito de outras medidas governamentais não voltadas para a região, como abertura econômica ou crédito à exportação, por exemplo, ou mesmo da dinâmica microeconômica, ambiental e de redes sociais. Isso significa que a agenda regional é farta e diversificada e, em consequência, recheada de riscos e crises em potencial. Portanto, desenhar uma estratégia consistente para a América do Sul não é uma opção, mas um imperativo. Uma agenda puramente reativa não parece ser a melhor resposta, assim como uma agenda estritamente diplomática. A natureza desse desafio sugere que a promoção de uma costura política mais ampla e mais institucionalizada pode gerar, a médio e longo prazos, menos custos políticos e oportunidades econômicas mais estáveis. Para tanto, serão insuficientes relações baseadas em cúpulas presidenciais e de

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Ministros de Relações Exteriores, padrão que hoje predomina. Será necessário envolver outras pastas das áreas de economia, comércio, agricultura, defesa, além do setor privado, da academia e do legislativo. Um período de relativa instabilidade política e econômica é ainda esperado na América do Sul. O conteúdo dessa instabilidade está relacionado à reacomodação política e econômica derivada de dinâmicas democráticas em ambientes de forte desigualdade social e regional – e isso não pressupõe projetos conspiratórios contra o Brasil ou outro país da região. Em alguns casos, o componente étnico reforça essas tendências. Existe a chance de que novos eventos venham a impactar a estabilidade política no Peru e mesmo na Argentina. Na Bolívia e no Equador existem sinais de certa acomodação. Na Venezuela ain-

da é incerto como será operado o aumento da presença da oposição frente ao governo de Hugo Chávez. Esse contexto altera a percepção estratégica dos países da região em relação à possibilidade de definir projetos integracionistas mais ousados, incluindo a do Brasil. Definir um projeto comum em ambiente de grande diversidade e mesmo exercer uma liderança construtiva num ambiente com essa natureza redobra o desafio do Brasil. Trata-se de fazer uma agenda estratégica regional mais construtiva possível, sem comprometer a segurança e as prioridades da agenda política e de desenvolvimento do país. Ricardo Sennes é professor de Relações Internacionais da PUC-SP e diretor-geral da Prospectiva Consultoria em Negócios Internacionais e Políticas Públicas.

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URbANISMO

TROCA DE

IDEIAS

NOvAS PROPOSTAS MARCO AURÉLIO GOMES

O

período que vai dos anos 20 aos anos 60 do século passado teve fundamental importância na constituição do urbanismo na América do Sul, conhecendo tanto intervenções ainda de forte viés acadêmico, quanto o advento e a consolidação concomitantes do Movimento Moderno, de inspiração francesa, e de ideias e práticas norte-americanas de planejamento e gestão urbana. Rápido desenvolvimento da urbanização; movimentos favoráveis da economia; expansão da industrialização; presença marcante do Estado por meio de grandes investimentos públicos de caráter social, além da institucionalização das práticas de planejamento enquanto atribuição da administração 60

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pública contribuíram para a emergência de novas experiências na arquitetura e no urbanismo sul-americano. O urbanismo “de melhoramentos e embelezamento”, herdado do século XIX, chega ao final, na América do Sul, por volta dos anos 1930, amalgamando, em graus variados, referências à tradição Beaux-Arts francesa, aos ensinamentos sittianos e aos movimentos Cidade Jardim e City Beautiful. Exemplo revelador desse momento de inflexão é a presença simultânea, no Rio de Janeiro do final dos anos 20, de personagens com visões urbanísticas tão opostas, como Alfred Agache, membro ativo da Société Française des architectes-urbanistes, e Le Corbusier, defensor dos ideais modernos: o primeiro contratado para elaborar um plano de “remodelação, extensão e embelezamento” para o Rio de Janeiro; e o segundo empenhado em encontrar a oportunidade que lhe faltava na Europa para a concretização de suas ideias. Essa viagem de Le Corbusier à América do Sul (Argentina, Uruguai

e Brasil, com rápida incursão ao Paraguai), em 1929, é importante para entender como redes de relações profissionais começam então a ser articuladas e como, na sequência, elas vão encarregar-se de disseminar princípios do Movimento Moderno no Continente. Porém, nem tudo começa aí, pois as ideias de renovação na arquitetura e no urbanismo já eram conhecidas de setores da intelectualidade e do meio profissional sul-americano desde o início dos anos 20, por meio da revista L´Esprit Nouveau, dos livros Vers une architecture ou Urbanisme, ou da presença de arquitetos emigrados, como Wladimiro Acosta, na Argentina, ou Gregori Warchavchik, no Brasil, que já traziam o conhecimento de experiências vanguardistas europeias. Para o arquiteto argentino Ferrari Hardoy, a influência que Le Corbusier exerceu no meio profissional sul-americano foi “selectiva pero transcendental”, somando-se às viagens que ele realizou ao continente (três ao Brasil, cinco à Colômbia, uma à Argentina), as suas

O urbanismo de melhoramentos e embelezamento chega ao fim nos anos 30, quando a América Latina começa a privilegiar projetos funcionalistas.

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Acima, Conjunto Pedregulho, em São Cristóvão, Rio de Janeiro, obra de Afonso Reidy; esboço de um projeto de Corbusier para Buenos Aires.

conferências, a difusão de suas obras e o recebimento de jovens arquitetos em seu escritório parisiense, como o próprio Ferrari Hardoy e Juan Kurchan, também argentino, e os colombianos Germán Samper e Rogelio Salmona. A partir dos anos 40, uma nova geração de arquitetos encarrega-se da difusão da arquitetura e do urbanismo funcionalistas por meio de uma série de projetos referenciais em seus países: Carlos Raul Villanueva, na Venezuela; Carlos Martinez, na Colômbia; Emilio Duhart e Sergio Larrain, no Chile; Amâncio Williams e Ferrari Hardoy, na Argentina. Porém, ainda segundo Hardoy, o real impacto das ideias de Le Corbusier aconteceu por intermédio da formação profissional, à medida que seus antigos discípulos passam a ocupar cargos docentes nas universidades de seus países. A força de criações latino-americanas no campo da arquitetura e do urbanismo modernos, principalmente no Brasil – onde se destacam o Ministério da Educação e Saúde (1937-43), de Lúcio Costa e equipe, ou o conjunto da Pampulha, de Oscar Niemeyer (194243) – mas também na Venezuela e no México (mas não só), que souberam valer-se de conjunturas especiais para sua emergência, logo recebeu ampla difusão internacional. Entre os anos 40 e 50 elas ganharam o mundo por meio de poderosos instrumentos: exposições em instituições prestigiosas (como o MoMA, de Nova York), livros e incontáveis artigos nas maiores revistas da Europa e dos Estados Unidos. Contrariamente à interpretação de que os países latino-americanos, em termos culturais, sempre receberam mais do que “ofertaram” aos países centrais (e ao mundo, de uma maneira geral) lembremos que eles representaram um importante território de experimentação para novas ideias e propostas no campo do urbanismo. Em 1929, o

Corbusier que retorna à Europa, após o seu séjour sul-americano, não é exatamente o mesmo que aqui chegara poucos meses antes. Anos depois, a experiência latino-americana do escritório Town Planning Associates, sediado em Nova York e liderado por José Luis Sert e Paul Lester Wiener, representará a oportunidade de transformar a noção de “cidade funcional”, ao testar novos conceitos (como o de centro cívico e o de “tapete urbano”) e ao buscar alternativas tipológicas e construtivas para a solução do problema habitacional. No entanto, nas trocas profissionais que ajudaram a moldar a experiência urbanística no Continente, nem tudo se reduz aos contatos com a Europa e com os Estados Unidos. Como lembrou Arturo Almandoz, dentre os elementos que contribuíram para a formação do meio profissional latino-americano, destacam-se o surgimento de revistas especializadas – numa relativa sincronia entre diversos países – e a realização de eventos que congregavam especialistas locais em torno de pautas de interesse comum. O acelerado crescimento urbano pelo qual passavam as cidades sulamericanas e o consequente boom da construção civil e das obras públicas explicam (pelo menos em seu início) o florescimento dessas iniciativas, que, de uma maneira geral, acontecem em todo o continente desde os anos 1920. Nos anos 40 ganham destaque em suas páginas as questões ligadas à cidade, ao urbanismo e à gestão urbana. De uma maneira geral, em todas as revistas da época ganham espaço as experiências urbanísticas no próprio Continente, capitaneadas por arquitetos e urbanistas locais, como as cidades universitárias de Bogotá, Rio, Caracas, Panamá, Tucumán e México; planos de expansão urbana, como o da Pampulha, em Belo Horizonte; ou conjuntos habi-

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tacionais em vários países do Continente. Na virada dos anos 50, o projeto e a construção de Brasília tornam-se matéria presente em todas as revistas. Interessante notar que existia um efetivo intercâmbio entre as próprias revistas do Continente, sendo prática corrente a publicação de artigos umas das outras. Artigos publicados em Nuestra Arquitectura eram publicados em El Arquitecto Peruano ou em Proa e vice-versa. Os mais antigos, com mais longa duração e provavelmente maior audiência eram os Congressos Pan-Americanos de Arquitetos, criados em 1920 pela Sociedad de Arquitectos del Uruguay com a finalidade de contribuir para a regulamentação da profissão naquele país, embora já nascessem com a ideia de agregar profissionais de outros países. Na sequência dos eventos com interesses mais amplos, como os PanAmericanos de Arquitetos, eles passam, nos anos 30, a conhecer maior ênfase na questão urbana, como os Congressos de Urbanismo, propostos desde a década anterior, os Congressos PanAmericanos de Moradia Popular e os Congressos Interamericanos de Municipalidades, ampliando as possibilidades de interlocução profissional. Os Congressos Pan-Americanos de la Vivienda Popular voltavam-se para a problemática da moradia popular – como formas de acesso, financiamento, legislação, custos, técnicas construtivas etc. –, a partir da realidade de cada país. Os Congressos Pan-Americanos de Municípios originaram-se na VI Conferencia Internacional Americana (Havana, 1928), embora sua primeira edição só tenha ocorrido dez anos depois. Seguindo a ideologia de “fortalecer e estimular a mais estreita relação amistosa entre as comunidades americanas”, eles tinham como temas centrais a administração municipal e a gestão dos serviços públicos, com a peculiaridade

de constituírem-se em um fórum multidisciplinar, congregando especialistas de diferentes áreas: arquitetos, juristas, economistas, engenheiros, médicos etc. Devido à amplitude de suas preocupações, os congressos pan-americanos foram fóruns de debate abertos a variados enfoques, contribuindo para o intercâmbio de ideias e troca de experiências entre os profissionais dos países participantes. Como lembra Fernando Atique, se de um lado, o pan-americanismo foi um dos caminhos do processo de “americanização” na América Latina, servindo para aproximá-la da “Terra do Tio Sam”, por outro, esses eventos permitiram que as demais repúblicas americanas se aproximassem umas das outras. Contrariamente a imagem muito difundida de profissionais voltados exclusivamente para a Europa e os Estados Unidos, o conteúdo das publicações desse período e as discussões travadas nesses congressos revelam-nos a existência de um intenso processo de trocas profissionais e acadêmicas dentro do mundo latino-americano. Seguir a trilha dessas interlocuções representa não só a possibilidade de conhecer mais as experiências urbanísticas desenvolvidas em nível continental nessas décadas cruciais que redefinem os rumos da “cidade moderna”, mas também a possibilidade de problematizar o lugar das trocas internacionais na história do urbanismo.

Praça do Congresso em Buenos Aires.

Marco Aurélio Gomes é arquiteto e professor titular da Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal da Bahia.

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LIvRO

ARTE E VESTUÁRIO

RELAçÃO ÍNTIMA DA CRIAçÃO

CONTRIbUIÇÃO vALIOSA LEONOR AMARANTE

O Manto da Apresentação do brasileiro Bispo do Rosário.

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O mercado editorial de arte recebe um curioso e bem elaborado livro: Roupa de Artista – O Vestuário nas Obras de Arte, resultado do trabalho da historiadora Cacilda Teixeira da Costa. Do final do gótico ao início do Renascimento até os dias de hoje, a publicação resgata obras pontuais que exemplificam o desafio dos artistas de equilibrar as roupas no universo retratado. A diversidade de informações nos leva a experimentações, como a de Edgar Degas, que ao colocar um saiote de tule em sua escultura Bailarina de Quatorze Anos (1879/188) se tornou o primeiro artista a introduzir tecido numa obra em bronze. Com a evolução do Homem a roupa deixou de ser um elemento de proteção do corpo para tornar-se uma medida dentro da escala social. Um dos méritos da publicação é focalizar o papel do vestuário na expressão artística, registrando interpretações que cruzam experimentos dos dias de hoje. Caso da proposta da argentina Nicola Constantino que trabalha o tecido de borracha como se fosse a pele humana. Do brasileiro Bispo do Rosário o Manto da Apresentação nos coloca diante de um exemplo de um mergulho profundo trabalhado na superfície do tecido no qual o artista imprime sua identidade, sexualidade e metáforas contidas em seu universo atormentado, vivido num hospital psiquiátrico. Um dos artistas brasileiros mais críticos e politizados da década de 60, Rubens Gerchman cria seu vestuário-casa colocando a população como homem caramujo. Seus curiosos objetos ambulantes formam sua instalação Caixas para Morar

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e nos remete à situação de grande parcela dos brasileiros, chamados “sem tetos”. A arte contemporânea brasileira traz exemplos de artistas que colocam o vestuário como meio para discutir seu mundo particular em contraponto à sociedade. Nazareth Pacheco trabalha elementos leves e poéticos como cristais e os mistura à lâminas de barbear criando vestidos aparentemente leves e soltos quando vistos de longe, mas ao aproximarmos, a peça causa uma aflição. Encarando a moda como uma representação da arte o paulistano Nelson Leirner desvenda e brinca com a burguesia em sua série Bridesmaid and Bridegroom . Desde os primórdios as roupas são protagonistas da história da arte, com seus drapeados, bordados, rendas, cetins, veludos, que ajudaram a dar volumetria, brilho, riqueza, tanto à costura quanto à arte. Desse universo, o livro traz alguns clássicos como O Balanço (1767), de JeanHonoré Fragonard em que o pintor se esmera nas pinceladas para registrar a profusão de babados de tafetás, e contrapõe-se com a limpeza formal e a simplicidade do tecido e do modelo do vestido de Madame Récamier, um clássico de Jean Louis David. Com certeza, o luxo do figurino da corte sempre atormentou o sono da burguesia endinheirada. Em uma passagem, o livro registra que no século XIV os plebeus rompem as barreiras sociais, pelo menos na moda, e passam a copiar, sem cerimônias, as roupas de seus nobres. A Corte da Borgonha, por exemplo, furiosa ao ver seus súditos desfilando com cópias de seus modelos, passou a destruí-los, cada vez que eram adotados pelos plebeus. O universo lúdico e mágico que o livro: Roupa de Artista – O Vestuário nas Obras de Arte, uma parceria da Edusp com a Imesp, é uma contribuição valiosa para nosso limitado campo editorial de livro de arte.

No alto à esquerda, Noivos, Série Roupas, de Nelson Leirner. À direita, Vestido de Mamilos com Gola de Cabelo Natural da argentina Nicola Constantino. Abaixo, detalhe de Duas Damas da Corte, de JeanBaptiste Debret.

Leonor Amarante é jornalista, editora e crítica de arte.

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POESIA

EL GRAN DESPEChO

ROQUE DALTON MEDAL

El gran despecho País mío no existes sólo eres una mala silueta mía una palabra que le creí al enemigo antes creía que solamente eras muy chico que no alcanzabas a tener de una vez Norte y Sur pero ahora sé que no existes y que además parece que nadie te necesita no se oye hablar a ninguna madre de tí Ello me alegra porque prueba que me inventé un país aunque me deba entonces a los manicomios soy pues un diocesillo a tu costa (Quiero decir: por expatriado yo tú eres ex patria)

Roque Dalton Medal foi jornalista, e renomado poeta salvadorenho que, por motivos políticos, teve de exilar-se vivendo em vários países como Cuba, Vietnã do norte, Guatemala.

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