Número 32 ISSN 0103-6785
EDITORIAL
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FERNANDO LEÇA
ANIVERSÁRIO
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ANA MARIA CICCACIO
ENSAIO
20 GOVERNADOR
JOSÉ SERRA
MÚSICA
VICE-GOVERNADOR
ALBERTO GOLDMAN
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SECRETÁRIO DE RELAÇÕES INSTITUCIONAIS
JOSÉ HENRIQUE REIS LOBO
FUNDAÇÃO MEMORIAL DA AMÉRICA LATINA CONSELHO CURADOR PRESIDENTE
JOSÉ HENRIQUE REIS LOBO SECRETÁRIO DE CULTURA
JOÃO SAYAD
SECRETÁRIO DE DESENVOLVIMENTO
GERALDO JOSÉ RODRIGUES ALCKMIN FILHO REITORA DA USP
SUELY VILELA SAMPAIO REITOR DA UNICAMP
JOSÉ TADEU JORGE REITOR DA UNESP
HERMAN JACOBUS CORNELIS VOORWALD PRESIDENTE DA FAPESP
REVISTA NOSSA AMÉRICA DIRETOR
FERNANDO LEÇA
FRANKLIN VALVERDE
OLHAR
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EDITORA EXECUTIVA / DIREÇÃO DE ARTE
LEONOR AMARANTE
COLABORADORA DE EDIÇÃO
ANA CANDIDA VESPUCCI PRODUÇÃO
HENRIQUE DE ARAUJO
PENSAMENTO
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FERNANDO LEÇA
DIAGRAMAÇÃO E ARTE - ESTAGIÁRIOS
FELIPE DE OLIVEIRA LUANA DE ALMEIDA
REFLEXÃO
COLABORARAM NESTE NÚMERO Ana Maria Cicaccio, Andrès Serbin, Fábio Pagan, Franklin Valverde, João das Neves, Sylvio Back, Ticio Escobar, Víctor Manuel Mendiola.
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CONSELHO EDITORIAL
ANÁLISE
TICIO ESCOBAR
CELSO LAFER
ALMINO MONTEIRO ÁLVARES AFFONSO JURANDIR FERNANDES DIRETORIA EXECUTIVA DIRETOR PRESIDENTE
FERNANDO LEÇA DIRETOR DO CENTRO BRASILEIRO DE ESTUDOS DA AMÉRICA LATINA
ADOLPHO JOSÉ MELFI
DIRETOR DE ATIVIDADES CULTURAIS
FERNANDO CALVOZO
DIRETOR ADMINISTRATIVO E FINANCEIRO
SÉRGIO JACOMINI CHEFE DE GABINETE
JOSÉ OSVALDO CIDIN VÁLIO
DIRETOR PRESIDENTE
Aníbal Quijano, Carlos Guilherme Mota, Celso Lafer, Davi Arrigucci Jr, Eduardo Galeano, Luis Alberto Romero, Luis Felipe Alencastro, Luis Fernando Ayerbe, Luiz Gonzaga Belluzzo, Oscar Niemeyer, Renée Zicman, Ricardo Medrano, Roberto Retamar, Roberto Romano, Rubens Barbosa, Ulpiano Bezerra de Menezes. NOSSA AMÉRICA é uma publicação trimestral da Fundação Memorial da América Latina. Redação: Avenida Auro Soares de Moura Andrade, 664 CEP: 01156-001. São Paulo, Brasil. Tel.: (11) 3823-4669. FAX: (11)3823-4604. Internet: http://www.memorial.sp.gov.br Email: publicacao@fmal.com.br Os textos são de inteira responsablidade dos autores, não refletindo o pensamento da revista. É expressamente proibida a reprodução, por qualquer meio, do conteúdo da revista.
46 POLÍTICA
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ANDRÈS SERBIN
LITERATURA
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HUBERT ALQUÉRES
POESIA
DIRETOR INDUSTRIAL
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TEIJI TOMIOKA
SYLVIO BACK
JOÃO DAS NEVES
VÍCTOR MANUEL MENDIOLA
DIRETOR FINANCEIRO
CLODOALDO PELISSIONI DIRETOR DE GESTÃO DE NEGÓCIOS
LUCIA MARIA DAL MEDICO
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EDITORIAL
Com a criação do Memorial da América Latina em 1989, a distância entre os países da região ficou menor. A iniciativa do Governo do Estado de São Paulo de promover a aproximação continental contou com o entusiasmo de intelectuais de norte a sul, como o escritor uruguaio Eduardo Galeano e o crítico literário cubano Roberto Retamar. Duas décadas depois, se não conseguimos dialogar com todos os países envolvidos, já colhemos muitos frutos, como mostra esta edição da revista Nossa América. Sem a pretensão de abarcar toda a programação, alguns dos bons momentos foram escolhidos pela jornalista Ana Maria Ciccacio, especialista na área cultural. Ela destaca os pontos altos que denotam a dinâmica da Fundação. Dos espetáculos musicais eruditos e populares, às exposições de artes visuais, cursos, seminários, palestras, festivais de cinema e de teatro, muitas personalidades da vida cultural do Continente passaram pelo Memorial. Também com o intuito de festejar os vinte anos, Nossa América apresenta um ensaio de fotos do Memorial.
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Do ponto de vista musical, duas décadas são suficientes para comprovar as conexões profundas entre as vertentes sonoras latino-americanas. Franklin Valverde, editor do site Onda Latina, nos lembra alguns dos expressivos intérpretes e compositores que dão ritmo ao Continente. Essas conversas musicais, no seu entender, misturam salsa, pop rock, reggae, e tudo o mais que dá sabor ao banquete discográfico. Qual é a sua América Latina? Da cantora colombiana Shakira ao ex-líder cubano, Fidel Castro, personalidades falam da região. Se alguns são mais otimistas e outros, nem tanto, a verdade é que ninguém fica indiferente diante do tema. Nossa América registra frases que compõem uma América Latina multifacetada, que abrange desde o lado altiplano, voltado ao sentimento político e ideológico da década de 60, que cunhou a frase- refrão Soy Loco por Ti América às declarações mais contemporâneas ligadas às agitações das metrópoles. Os debates provocados pela eleição de Barack Obama têm vieses,
FOTO: pedro ribeiro
mas é certo que sua vitória traz esperança de mudanças. Nossa América aborda as expectativas dos países latino-americanos. Nos últimos 20 anos o mundo se transformou e, como não poderia deixar de ser, o circuito de arte também mudou, tornou-se mais abrangente. O crítico paraguaio Ticio Escobar, atualmente ministro da Cultura de seu país, faz uma reflexão sobre os processos de inserção e a absorção de novas linguagens e artistas. Se Obama causou admiração ao ser eleito presidente dos Estados Unidos, imagine na década de 50, um poeta americano, supostamente homossexual, negro, comunista e com passagens pela então União Soviética, lançar-se no mundo literário e conviver com os Beatniks. O cineasta e poeta brasileiro Sylvio Back, um aficionado pela obra de Langston Hughes, em artigo para essa edição, retoma o tema pelo qual já se interessou. Ele é o tradutor da primeira publicação em português que reúne poemas de Hughes, sob o título Traduzir é poetar às avessas, lançado pelo Memorial em 2007, por meio da Coleção Memo.
Ainda nesta edição, o perfil político da América Latina, depois de tantas transformações. A tarefa coube ao cientista político argentino Andrès Serbin, que analisa a situação atual e seus futuros desdobramentos, isto é, como ficam os países latino-americanos num mundo que se tornou multipolar. Na área de literatura, Nossa América antecipa o centenário da morte de Euclides da Cunha, um dos ícones da língua portuguesa. Sua obra máxima, Os Sertões, ganha detalhado comentário de João das Neves, jornalista e estudioso do tema, que preferiu uma abordagem jornalística, tomando como ponto de partida os artigos do autor para o jornal O Estado de S. Paulo. A poesia, que tradicionalmente fecha a edição, desta vez traz a obra do mexicano Víctor Manuel Mendiola. Boa leitura! Fernando Leça Presidente da Fundação Memorial da América Latina.
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ANIVERSÁRIO
20 MEMORIAL
ANOS
OLHAR ATENTO ÀS mudanças ANA MARIA CICCACIO
V
inte anos. Não é muito; mas também não é pouco. Nesse período, desde que o Memorial da América Latina foi fundado, o mundo experimentou mudanças radicais. Em 1989, já se falava em globalização e se constatava a existência e a nocividade do efeito estufa, no entanto, não se mencionava com tanta insistência a gravidade de suas conseqüências como nos dias de hoje. Isso, sem mencionar a concretização de reposicionamentos políticos na ordem internacional , como, por exemplo, a formação da União Européia, a eleição de um negro e democrata para a presidência dos Estados Unidos durante muitos anos republicanos e a explosão econômica da China no mercado internacional. 6
FOTO: acervo memorial
Oscar Niemeyer, autor do projeto arquitetônico dos setes edifícios que compõem o complexo do Memorial da América Latina.
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ESPETÁCULOS
Balé Nacional de Cuba, que inaugurou o Auditório Simón Bolívar em 18 de Março de 1989.
Na América Latina, alguns países saíram da situação periférica no cenário mundial para se tornar protagonistas nas áreas das artes plásticas, do cinema, da literatura, da música e, sobretudo, da política. Concretizaram-se os anseios de vários movimentos sociais, que, por exemplo, colocaram na presidência um operário metalúrgico (Luiz Inácio Lula da Silva, Brasil), um líder indígena, (Evo Morales, Bolívia), um militante esquerdista (Hugo Chávez,
e à cultura, particularmente da América Latina, já que seu foco principal é a integração continental que busca promover como fórum de reflexões, centro de formação acadêmica e de manifestações artístico-culturais. É assim que o Memorial tem sido palco de eventos notáveis. Vale lembrar a inauguração. Foi com a apresentação do Balé Nacional de Cuba, um dos mais importantes corpos de dança do mundo, grupo que,
Venezuela). Por outro lado, a personalidade emblemática da revolução cubana (Fidel Castro) renunciou, e passou o poder para o irmão (Raúl Castro). O Memorial acompanhou de perto essas transformações, com o olhar atento à política, à economia,
aliás, voltou ao auditório Simón Bolívar em 2006, parte de uma turnê internacional. Desde o início um elenco de estrelas do porte de Mercedes Sosa, Libertad Lamarque, Yma Sumac, Sarita Montiel, Astor Piazzolla, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa e Da-
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FOTOS: REPRODUÇÃO
niela Mercury passou pelo Memorial, com o melhor de seus repertórios. Assim como na área de música erudita sobressaíram-se espetáculos do nível de uma Orquestra Sinfônica de Israel sob a regência do maestro Zubin Mehta, que lo-
tou a praça do Memorial. Sem falar nos programas permanentes, como a série Música ao Meio-Dia e Conexão Latina, o Projeto Adoniran e as apresentações da Jazz Sinfônica com convidados como Stanley Jordan John Pizzarelli.
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Stanley Jordan, Zubin Mehta, Caetano Veloso, Astor Piazzolla e Sarita Montiel, todos se apresentaram no Memorial.
LITERATURA
O escritor Ariano Suassuna comemorou seus 80 anos no Memorial com uma jornada de estudos sobre sua obra.
Do mesmo modo, a literatura: Augusto Roa Bastos foi um dos agraciados com o Prêmio Estado de São Paulo, criado pelo Memorial para incentivar as artes e as ciências. Quando não foi possível a presença dos escritores e, muitas vezes, foi, a exemplo do
argentino Bioy Casares, que veio para uma palestra, nenhum autor importante escapou das malhas da Revista Nossa América. O conjunto das 32 edições forma um caleidoscópio de idéias em que a nata da literatura contemporânea adensa o perfil intelectual do Memorial. Encontros com autores, debates, seminários sobre o assunto, todas as possibilidades de explorar o tema também foram devidamente inseridas no calendário ao longo dos anos. Nosso grande historiador Sérgio Buarque de Hollanda, por exemplo. Foi tema em 2002 de um seminário, do qual participou o professor Antonio Candido, grande estudioso do fazer literário. Gilberto Freyre igualmente: foi homenageado em seu centenário de nascimento em 2002 com uma abrangente e oportuna troca de idéias sobre
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sua obra. Alguns intelectuais contribuíram com textos especiais para a coleção Memo, dedicada a ensaios e ficções. De Antônio Callado o Memorial publicou Uma Revelação que a História Oficial não Registra. Do poeta Haroldo de Campos, um incentivador da Coleção Memo, publicouse Três (re) Inscrições para Severo Sarduy. Mais recentemente, em 2007, o Memorial contou com a presença de Ariano Suassuna, poeta, dramaturgo, escritor, e também artista plástico, para as comemorações de seus 80 anos. Muitos outros escritores também foram homenageados. É o caso de Eça de Queiróz, com um evento que compreendeu debates, exposições e livro, colocando em foco a obra de um dos mais expressivos de todos os tempos em língua portuguesa; assim também foi com Mário Pedrosa, quando em 2000 ele completou cem anos. Jorge Schwartz, um dos mais brilhantes intelectuais brasileiros, lançou com uma palestra Monos e Antropófagos, um dos livros de projeção do Memorial. Povo e Personagem, a Saga do Século XVI foi uma troca de experiências entre dois autores, o brasileiro Sinval Medina e o colombiano William Ospina, sobre as raízes histórico-culturais na construção de livros de ficção. No ano passado a fundação foi além, ao lançar Memórias do Subdesenvolvimento, do escritor cubano Edmundo Desnoes, romance publicado no mundo todo, mas só agora no Brasil, conhecido também pela adaptação para o cinema feita Gutiérrez Alea. A presença do autor rendeu debates interessantes em duas diferentes ocasiões: no lançamento propriamente dito, realizado na 20º Bienal Internacional do Livro de São Paulo, quando ele discorreu sobre suas técnicas de criação, e no Festival Latino-Americano de Cinema, do qual participou para relatar sua colaboração no roteiro cinematográfico que os anos 60 consagraram.
FOTOS: acervo memorial
Eduardo Galeano, Ant么nio Callado, Bioy Casares, Darcy Ribeiro, An铆bal Quijano e Antonio Candido, alguns dos mais brilhantes autores latino-americanos, todos adensaram o perfil intelectual do Memorial.
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CINEMA E TEATRO
Frida, Natureza Viva, de Paul Leduc, e Atas de Marusia, de Miguel Littin, cineastas que participaram de debates no Memorial; O Presidente Tem Aids?, de Arnold Antonin, exibido no 3 º Festival Latino-Americano.
O cinema latino-americano, aliás, tem sido alvo de um olhar particularmente especial, por parte do Memorial. A instituição identificou uma nova vitalidade brotando em toda a América Latina e idealizou o Festival LatinoAmericano de Cinema, sucesso logo na primeira edição, realizada em 2006. O programa é completo, contempla diferentes expectativas e exigências, abrangendo mostras retrospectivas, mostras de realizadores emergentes, homenagens a criadores consagrados, debates e oficinas. Com as três edições, já trouxe ao Brasil, dos lendários cineastas Paul
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Leduc, mexicano, Miguel Littín, chileno, e Fernando Solanas, argentino, ao brasileiro Eduardo Coutinho. Todos eles, absolutamente envolvidos com a troca de experiências proposta pelas mesas de discussões. As telas desceram não apenas para sucessos reconhecidos internacionalmente, como La Hora de los Hornos, de Solanas, como não ignoraram a produção de países ainda sem tradição na sétima arte, como Equador, Paraguai e Bolívia, uma vez que a idéia é justamente difundir conhecimento e estimular novos talentos latino-americanos.
FOTOS: divulgaÇÃO
Una Vita Per Federico, peça encenada no Festival Ibero-Americano de Teatro.
A cena teatral também ganhou em 2008 um evento que faltava ao cenário de uma cidade culturalmente tão ativa quanto São Paulo: o Festival Ibero-Americano de Teatro. Durante dez dias, o público pôde se atualizar quanto à produção de países como Espanha, México e Portugal, por meio de grupos que têm se destacado na àrea. Apresentaram-se, por exemplo, a Companhia de Teatro de Braga (Braga/Portugal), com o espetáculo Dorotéa, e a Cia Perez de la Fuente (Madri, Espanha), com Donde Estás Ulalume – Donde Estás?, e o Grupo La Cueva (Sucre/Bolívia), com Alasestatuas. Seu propósito foi mapear as artes cênicas nos países ibéricos e de origem ibérica e cotejar linguagem e conteúdo.
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EXPOSIÇÕES
Nesta página, pintura de Fernando Botero, cuja mostra A dor dos Colombianos bateu recordes de público em 2007. Para as artes plásticas vigora o mesmo princípio. A Galeria Marta Traba que se diferencia de outras do gênero por ser um dos raros espaços, no País, dedicados à arte latino-americana, mantém um calendário de exposições temporárias tanto com obras de jovens talentos como de artistas consagrados. A galeria Marta Traba abriu-se a expoentes do calibre de Rugendas, pintor alemão que viveu no século XIX e viajou pela América Latina, de quem foram apresentadas em 2002 as obras que ele fez em sua temporada no México, ao visceral e contudente colombiano
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Fernando Botero, cuja mostra A Dor dos Colombianos, realizou-se em 2007 com absoluto sucesso de público. Entre os consagrados destacaram-se ainda Wifredo Lam, mais importante pintor cubano, e J. Gurvich. A bienal Barro de América, da Venezuela realiza um resumo de suas edições no Memorial. Maria Bonomi é um nome recorrente em várias edições. Entre os mais jovens, Ernesto Neto mostrou um desdobramento de suas instalações com meias de seda.Da fotografia, recebemos nomes fundamentais como Flor Garduño e Juan Rulfo.
FOTOS: divulgaÇÃO
Obra de Ernesto Neto, que expôs em 1998 na terceira edição da Bienal Barro de América.
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ACERVO
O Memorial também mantém um acervo relevante de arte contemporânea. No ano de 2008 somou outra obra a sua coleção formada por nomes como Franz Weissmann, Cândido Portinari, Bruno Giorgi e Emanuel Araújo, entre outros. Trata-se do painel Etnias, da artista plástica Maria Bonomi, de argila, bronze e alumínio, uma homenagem à vida indígena de toda a América Latina e instalada na galeria subterrânea de acesso do portão 1 para que o grande público possa apreciá-la. Sem esquecer a arte popular, representada pelo Pavilhão da Criatividade que, além da exposição permanente de peças artesanais de toda a América Latina, recorre a mostras específicas, como Cenas Sacras, realizada no final de 2008, uma série de imagens ligadas à religiosidade.
Acervo de obras de arte do Memorial: acima painel de azulejos de Athos Bulcão e escultura de mármore de Bruno Giorgi. Ao lado, painel Etnias, da artista plástica Maria Bonomi.
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Acima, painel Tiradentes, de Portinari, trĂŞs telas justapostas, que medem quase 18 metros. Ao lado, Grande Flor Tropical, escultura de Franz Weissmann.
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Instalação da Cátedra Memorial da América Latina: o presidente do Memorial, Fernando Leça, o governador Cláudio Lembo, os secretários de Estado, João Batista de Andrade (Cultura), Maria Lúcia Vasconcelos (Educção); os reitores Suely Vilela Sampaio (USP), Marcos Macari (Unesp) e José Tadeu Jorge (Unicamp).
rica Latina, terceiro módulo do programa e que se encerrou em dezembro de 2008. Além disso, a fundação também realizou vários cursos de curta e longa duração, colóquios, encontros e palestras. Só nesse ano de 2008 não foram poucos: as comemorações dos 100 anos da imigração japonesa ao Brasil mereceram uma semana de debates; os 200 anos da chegada da família real também reuniram historiadores e demais especialistas para avaliar a questão sob diferentes pontos de vista; Vargas e Perón, dois estadistas polêmicos, ex-presidente do Brasil e ex-presidente da Argentina, respectivamente, renderam análises sobre as semelhanças e diferenças entre seus governos. O 400 anos de nascimento de Padre Vieira também foram lembrados com uma jornada de debates sobre sua vida e obra;
o conceituado físico José Goldemberg focalizou a preocupante questão do superaquecimento global, suas causas, implicações e os mecanismos de prevenção de um agravamento do quadro. Já Carlos Romero, cientista político e professor da Universidad Central da Venezuela, ministrou um curso sobre Comércio e Desenvolvimento - os Novos Desafios da Amé-
assim como Fernando Pessoa, consagrado poeta da língua portuguesa. Já uma tradição do Memorial, grande parte desses eventos gerou publicações, todas idealizadas com o intuito de perpetuar o resultado desses intercâmbios de idéias. Bons exemplos são Fazer América, fruto de um projeto de mesmo nome; e mais recentemen-
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FOTO: acervo memorial
CÁTEDRA E SEMINÁRIOS
Na área acadêmica, merece um destaque especial a retomada da cátedra, há dois anos, um programa que já fez parte da programação do Memorial, inaugurado pelo estudioso e professor peruano Aníbal Quijano há quase 20 anos e extinto logo em seguida. Seu propósito é a difusão cultural, abordar as questões da América Latina em todas as áreas do conhecimento, desenvolvido em parceria com as principais universidades públicas, a Universidade de São Paulo, a Universidade Estadual Paulista e a Universidade de Campinas. Cada módulo estende-se por seis meses, abordando temas atuais, como energia, meio-ambiente, política e economia, envolvendo catedráticos e alunos do Brasil e demais países latinoamericanos, com o intuito de promover a formação de especialistas. Por exemplo,
FOTOS: reproduÇÃO
te O Legado de Franco Montoro, gerado a partir da homenagem à trajetória política do governador (1983-1987) de São Paulo, projeto que durante um ano coletou mais de cem depoimentos de intelectuais e políticos sobre sua herança. Do mesmo modo, a iniciativa que reuniu vários presidentes da América Latina em um seminário e deu origem a dois livros. Outros dois bons exemplos são Integração Latino-Americana e Caribenha e 15 Anos do Mercosul. Para acompanhar tanta vitalidade, a revista Nossa América que havia perdido periodicidade no decorrer dos anos, tornou-se trimestral, publicada em dois volumes, no português e no espanhol. Além disso, saiu de uma circulação estrita, de comercialização exclusivamente dentro do Memorial, para ganhar as mais importantes bancas da cidade e as livrarias, uma iniciativa possível graças à parceria estabelecida com a Imprensa Oficial do Estado. Assim, alcança um número maior de leitores, importante, já que o público do Memorial, que havia se estabilizado nos últimos anos na marca das 250 mil pessoas/ano, chegou, recentemente, a mais de 700 mil. Conhecer a realidade latino-americana não é fácil, já que há toda uma gama de desdobramentos que permeia
a diversidade e a miscigenação cultural de seus territórios. No entanto, é fundamental para compreendê-la, sobretudo quando se objetiva sua integração. Daí os esforços do Memorial em estar permanentemente fomentando reflexões, bem como sua capacidade de atrair líderes de todas as ideologias. Fidel Castro compareceu à festa de primeiro aniversário da fundação, quando ressaltou sua importância no cenário de integração do continente. Bill Clinton veio em 1997, por ocasião do seminário U.S/Brazil Parceiros para o Século 21, promovido em conjunto com a Câmara de Comércio Brasil e Estados Unidos. Os presidentes Raúl Alfonsín, da Argentina, Julio María Sanguinetti, do Uruguai, Eduardo Frei, do Chile, e José Sarney, do Brasil, os gestores do Mercosul, vieram especialmente para prestar seus depoimentos sobre o processo de criação do organismo, testemunhos que se transformaram no livro Presidentes e o Mercosul. Outros seminários, colóquios, palestras, work-shops, reuniram expoentes em diversas áreas do pensamento.ma,
Ana Maria Ciccacio é jornalista da área cultural. Pesquisa: Ana Candida Vespucci.
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Bill Clinton, ex-presidente dos Estados Unidos, veio ao Memorial em 1997 participar de um seminário. Fidel Castro prestigiou a festa de primeiro aniversário da fundação.
ENSAIO
MEMORIAL
CASA DA AMÉRICA LATINA
Em NOME DA IDENTIDADE REGIONAL
P
rojetado por Oscar Niemeyer o conjunto arquitetônico formado por sete prédios é um dos prediletos de seu autor. “Neste projeto não há filigranas. Nada de detalhes menores. São vigas de 90 a 60 m a sustentarem as cascas de concreto. É a arquitetura reduzida a dois ou três elementos. Clara, simples e diferente. É a procura da beleza nas suas superfícies curvas e sensuais, nas espessuras de suas lajes e apoios. A solução surgiu de uma perspectiva que desenhei na suíte de um hotel, imaginando o conjunto do Memorial como se no papel, naquele momento, o estivesse construindo. Recordo esse meu desenho e ainda hoje me surpreendo ao ver como ele corresponde à realidade.”
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FOTOS: ACERVO MEMORIAL
MÚSICA
NA PEGADA DO SOM LATINO
O RITMO DAS CONVERSAS MUSICAIS FRANKLIN VALVERDE
O
diálogo musical entre o Brasil e a América Latina, apesar de muitas vezes ignorado pela grande mídia, sempre existiu. Basta lembrar dos tangos de Gardel nas primeiras décadas no século passado, do bolero nos anos quarenta e cinqüenta, trazido pelos filmes da Pelmex, a empresa mexicana de cinema, e da música de protesto latino-americana nas décadas de sessenta e setenta, em plena ditadura militar. Dessa fase, podemos citar os argentinos Mercedes Sosa e Atahualpa Yupanqui e os chilenos Violeta Parra e Victor Jara. No final do século XX e início deste, um dos responsáveis pela intensificação desse diálogo
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FOTO: DIVULGAÇÃO
tem sido o Memorial da América Latina, que em breve completará seu vigésimo aniversário. Durante esse tempo, o palco do Auditório Simón Bolívar tem sido testemunha dos mais variados diálogos estéticos e musicais entre o Brasil e seus hermanos latino-americanos. Assistimos encontros como o de Martinho da Vila com a chilena Izabel Parra, Sérgio Reis com o argentino León Gieco e, mais recentemente, Arnaldo Antunes com o peruano Chocolate e Luiz Melodia com os uruguaios do Tungue-Lé. Um dos maiores incentivadores e artífices dessa conversa musical foi Herbert Vianna do grupo Paralamas do Sucesso. Vianna fez o papel de anfitrião para a musicalidade de Fito Páez, um dos grandes nomes do pop-rock argentino. Além de cantor e compositor, Páez tem se aventurado pelo cinema, tendo dirigido Vidas Privadas (2001), estrelado pela argentina Cecilia Roth e pelo mexi-
cano Gael García Bernal, além da comédia De quem é a Cinta-Liga (2007). O diálogo entre Páez e o Paralamas teve início no disco Grãos (1991), do grupo brasileiro, com a música Trac Trac, de autoria do argentino. Fito conta que quando Herbert disse que gravaria a música‚ ele foi logo avisando: “Você está maluco, ninguém ouve essa música, é a última de um disco que está por aí perdido na Argentina”. Assim mesmo, a gravadora mandou buscar o compositor em Buenos Aires, que tocou piano e fez algumas vozes. Ponto para o brasileiro, pois a faixa caiu no gosto de seus fãs, emplacou e foi um dos sucessos do disco. Antes disso, Fito Páez já havia feito sua estréia no mercado brasileiro, mas sem muito êxito. Em 1986, a gravadora EMI lançou aqui o vinil Fito Páez, que contava com a participação especial de Caetano Veloso em Rumba do Piano, numa versão de Kledir, da dupla Kleiton e Kledir,
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Mercedes Sosa e Violeta Parra, duas vozes de protesto.
Integrantes dos grupos Paralamas do Sucesso e Titãs.
que na época estava no auge. Caetano retribuiu a gentileza gravando Un Vestido y un Amor, composição de Fito Páez, em Fina Estampa (1994), um dos seus mais belos discos como intérprete. Esse diálogo teve mão dupla. O Paralamas é uma das bandas brasileiras que mais sucesso fazem na América Latina entre o público roqueiro, principalmente na Argentina. Em uma das viagens que o grupo fez, conheceu a banda Los Pericos que tinha lançado a música Párate y Mira, um reggae com forte sotaque portenho. Herbert Vianna ficou fascinado pela canção e resolveu fazer a sua versão brasileira. O resultado ficou conhecido por todos como Lourinha Bombril, um dos grandes sucessos do Paralamas, lançado em Nove Luas (1996). Em comum entre os dois grupos devemos registrar a influência que receberam do reggae de Bob Marley, o grande mestre do ritmo, e de Jimmy Cliff, com quem o Paralamas fez algumas apresentações pelo Brasil. O som desses jamaicanos marcou profundamente toda uma geração de músicos tanto do Brasil como de outros países da América Latina e os pulsantes compassos do reggae, que em muito
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parafraseia as batidas do coração, estão presentes em muitas de suas obras. Se falamos de rock não podemos esquecer o argentino Charly García, um dos mais importantes músicos do gênero na Argentina. Sua formação musical clássica deu-lhe desenvoltura suficiente para trafegar com competência tanto no rock, como no blues, em baladas e até mesmo no rap. Começou a compor quando ainda estudava em um colégio em Buenos Aires, época em que formou um grupo chamado To Walk Spanish. Nos anos setenta, junto com o roqueiro Nito Mestre, criou o Sui Generis, grupo de rock argentino que ganhou a geração jovem da época para o ritmo. A música do Sui Generis percorria o folk, o rockbalada, com leves toques sinfônicos, além de incorporar o blues. Em 1975, o grupo se despediu do público, o que abriu caminho para a carreira solo de Charly, considerado por muitos como “o John Lennon argentino”. Talvez haja nisso um pouco de exagero, mas sem dúvida Charly García é um dos mais competentes roqueiros latinos. No Brasil, os primeiros discos de Charly foram lançados pela antiga CBS (hoje pertencente à Sony): Parte de la Religión (1987) e Cómo Conseguir Chicas
FOTOs: DIVULGAÇÃO
Bob Marley: o grande intérprete do reggae que influenciou a música latina.
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Charly García, um dos mais importantes músicos do pop-rock.
(1989). O primeiro teve a participação de Paula Toller, do Kid Abelha, em Buscando un Símbolo de Paz, e do Paralamas do Sucesso em Rap de las Hormigas. Já o segundo contou com a participação de Herbert Vianna na faixa Zocacola. A retribuição
Os mineiros do Pato Fu e os colombianos do Aterciopelados também vêm mantendo um diálogo interessante, que poderia ser chamado de “platônico”, pois os grupos nunca se encontraram pessoalmente, mas já trocaram can-
veio no disco Bora Bora (1988) dos Paralamas, que teve a arte do argentino em uma música. Ainda na praia roqueira, temos o exemplo do Capital Inicial e do Titãs. O Capital gravou A Sua Maneira em Rosas e Vinho Tinto (2002), música original do Soda Stereo, outro grande representante do rock argentino. Essa canção já havia sido gravada pelo Paralamas com o nome de De Música Ligeira no CD Nove Luas (1996). No CD Titãs Acústico MTV (1997) temos na faixa Go back, com versão para o espanhol de Martin Cardoso, a participação especial de Fito Paez nos vocais. A interpretação foi enriquecida com versos do poema Farewell y Sollozos do poeta chileno Pablo Neruda.
ções, via internet, mantendo uma rica conversa virtual. A banda de Fernanda Takai gravou a música Tudo Vai Ficar Bem, no CD Daqui Pro Futuro (2007), com participação de Andrea Echeverri, a vocalista da banda colombiana. O Rio Grande do Sul, por sua história e sua proximidade fronteiriça com a Argentina e o Uruguai, é um dos estados brasileiros que mais propiciam essas conversas musicais com os nossos hermanos platinos. Eles têm até um ritmo em comum: o chamamé, que circula alegremente pelos Pampas daqui e de lá. Não é raro encontrarmos discos divididos entre gaúchos e os nossos vizinhos uruguaios
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FOTOs: DIVULGAÇÃO
e, principalmente, argentinos. Nessa área, devemos lembrar do disco Fronteiras Abertas (1991), que é quase um clássico, no qual está registrado o encontro entre Luiz Carlos Borges e Antonio Tarragó Ros, com direito à participação especial de León Gieco na faixa El Petizo Maceta. Ainda pelos lados de Porto Alegre, temos o grupo Nenhum de Nós que já há algum tempo tem os ouvidos abertos para a sonoridade da música latino-americana. O grupo comandado por Thedy Corrêa gravou Igual a Ti com a colombiana Ivonne Guzmán, que vive na Argentina e fez parte do grupo Bandana. Entre os planos do Nenhum de Nós está a gravação de um disco exclusivamente em espanhol. No panorama da música cantada em espanhol nos últimos anos, o uruguaio Jorge Drexler pode ser considerado uma das melhores surpresas. Dono de uma apurada verve poética, suas letras são de rara beleza, produzindo imagens pouco usuais. Além disso, sua criatividade é como uma parabólica que capta tudo que é produzido mundo afora, sintetizando isso em sua sonoridade, como poucos sabem fazê-lo. Seu trabalho despertou o interesse do cineasta Walter Salles, que incluiu na trilha sonora do filme Diários de Motocicleta (2004) sua música Al Otro Lado del Río, ganhadora do Oscar de Melhor Canção Original. O prêmio deu ao uruguaio projeção mundial. Sua obra está repleta de diálogos com brasileiros, com destaque para Paulinho Moska, que é seu amigo e com quem tem se apresentado em vários shows pelo mundo. Drexler também já foi gravado por Maria Rita, Simone, Ivan Lins, Luiza Possi e Zélia Duncan. Maria Rita, por sua vez, participou da música Soledad no disco 12 Segundos de Oscuridad (2006) do uruguaio. Nele também temos a participação de Arnaldo Antunes na faixa Disneylândia, música gravada pela banda Titãs. A cantora mexicana Julieta Venegas é, atualmente, um dos principais nomes do pop-rock cantado em espanhol. Seus suces-
Santana, referência na música latina.
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o tempo dos descartáveis acordes do Menudo, ciclicamente gorjeia por aqui. Sucessos instantâneos não faltaram como Maria e La Copa de La Vida, tema oficial da Copa do Mundo da França. Há também a petiza Shakira, colombiana que já chegou a lembrar Alanis Morissette, que fez sucesso com Pies Descalzos e Estoy aquí, músicas que fusionavam o pop com elementos musicais da Colômbia. Depois ela optou por uma linha mais pop-rock, cantando em inglês e sem diferenciar-se muito das várias cantoras de rostinho bonito e voz comum. Entre alguns grupos que mereceriam uma atenção maior do público brasileiro está o mexicano Maná. A banda ganhou espaço por aqui no acompanhamento de Carlos Santana com o seu Corazón Espinado, hit do premiado CD Supernatural (1999), ganhador de oito prêmios Grammy, entre eles o de “Álbum do Ano”. O grupo é formado pelo vocalista Fher Olvera, o guitarrista Sergio Vallín, o baixista Juan Calleros e o baterista Alex González. Há alguns meses, o Maná esteve por aqui para lançar Arde el Cielo (2008), seu novo CD, que traz como principal sucesso a música Si No Te Hubieras Ido. Entre os hits que tocam em todas as rádios da América Latina, onde é reverenciado pelo público jovem, destaca-se Eres Mi Religión, Mariposa Traicionera, El Muelle de San Blas e, claro, Corazón Espinado. Traçado este breve panorama dos diálogos musicais entre Brasil e a América Latina, fica aqui um convite para aqueles que ainda não tiveram a oportunidade de apreciar e curtir a sonoridade de nuestros hermanos latinos: faça uma rápida busca no youtube e comprove a qualidade desses encontros; com certeza irá se surpreender. Confira! Franklin Valverde, poeta, jornalista e professor, é doutor em Ciências da Comunicação pela Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo.
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Shakira, sucesso do pop colombiano.
sos freqüentam o hit-parade da Argentina, Colômbia, Chile, Espanha, Itália e Peru, além - é claro - de seu próprio país. Seus discos já atingiram a invejável marca de mais de quatro milhões de exemplares vendidos em todo o mundo. Ela também é uma colecionadora de prêmios, tendo sido contemplada com o Grammy Latino de “Melhor disco de rock vocal” (2004) e “Melhor disco de música alternativa” (2006). Além disso, a MTV Latina, em 2004, premiou Julieta como “Melhor artista mexicana”, “Artista do ano” e “Melhor artista solo”. A voz da señorita Venegas tornou-se conhecida entre nós por sua participação especial na faixa Miedo, do CD acústico do pernambucano Lenine. Por falar em acústico, no disco MTV Unplugged (2008) de Julieta encontramos a participação de Marisa Monte na faixa Ilusión. Para não dizer que não falamos de tango, lembramos que recentemente Paula Morelenbaum gravou O Samba e o Tango no disco Telecoteco (2008), música que havia sido lançada por Carmen Miranda no final dos anos trinta do século passado. Esse casamento sonoro entre Brasil e Argentina teve participação do Bajofondo, em remix, com arranjos de Juan Campodónico e Pablo Bonilla, integrantes desse novo grupo de tango, que reúne uruguaios e argentinos e adiciona ao ritmo que consagrou Gardel, pitadas de rock e candombe, um ritmo afro-uruguaio. Nas últimas décadas, muitos artistas latino-americanos têm circulado pelos nossos dials fazendo relativo sucesso, ainda que em alguns casos, momentâneo. Dentro desse grupo, quem não se lembra de Ricky Martin, espécie de cometa que, desde
OLHAR
QUAL É SUA AMÉRICA LATINA
REINO DA DIVERSIDADE
A
final qual é essa América Latina de que tanto se fala? Da cantora colombiana Shakira que incendeia os palcos com seus rebolados sensuais, aos maiores expoentes da literatura latino-americana como Eduardo Galeano, políticos como Fidel Castro, compositores e cineastas, cada um tem uma visão, de acordo com sua experiência. Nossa América reúne as frases que identificam desde as terras altiplanas à vida contemporânea das grandes metrópoles do Continente. Talvez tenha razão Octavio Paz, quando disse em O Labirinto da Solidão que os latinos sublinham sua vontade pessoal de continuar sendo distintos. 33
“A América Latina tem um futuro promissor como fonte de alimentos e biocombustíveis para o resto do mundo em função das mudanças climáticas e da desertificação em outras partes do globo.” Bill Clinton; Boletim do Banco Interamericano de Desenvolvimento, 2006.
“Não. (A América Latina) não produziu quase nada. Poderia ser apagada da história e quase não se notaria. A América do Norte, sim. Produziu Poe, Whitman. Mas a América Latina…, quase ninguém.” Jorge Luis Borges; extraído do Jornal da Poesia, 1975.
“América Latina é um ótimo lugar para se investir. São transparentes, respeitam a lei”. George W.Bush; coletiva em São Paulo, em sua viagem ao Brasil, 2007.
“No momento em que for necessário, estarei disposto a entregar a minha vida pela liberdade de qualquer um dos países da América Latina, sem pedir nada a ninguém.” Che Guevara, revolucionário argentino, s/d.
“Vendo rolar o suor no rosto brasileiro Vou dizer do coração Sou da América Latina e não sou estrangeiro pra cantar essa canção.” Bell Marques, da banda Chiclete com Banana. Música Fé brasileira. “Minha missão é mostrar ao mundo as diferenças culturais da América Latina e acabar com aquela noção de que tudo se resume a salsa e samba.” Ricky Martin, cantor; site da Geocities, s/d. “Os latinos sublinham sua vontade pessoal de continuar sendo distintos.” Octavio Paz, em O Labirinto da Solidão. “Sempre acreditei no potencial da América Latina.” Fidel Castro, em discurso de 2001.
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“O grande problema não é o Chávez, não é a Michelle, não é o Lula, não é o Nicanor, não é o Evo Morales. O problema é que nós temos de recuperar décadas e décadas em que o povo pobre foi submetido à fome, à falta de educação, e agora temos um exército enorme de jovens para quem precisamos dar oportunidades.” Luiz Inácio Lula da Silva; cerimônia de posse da presidente do Chile Michele Bachelet, 2007. “Soy loco por ti América.” Gilberto Gil, Capinan e Torquato Neto; música, 1968.
“É curioso pensar de que maneira os dois grandes blocos lingüísticos da América Latina têm pensado um no outro e têm visto um ao outro. Encarada com objetividade a situação é de acentuada assimetria, porque o bloco luso, isto é, o Brasil, se preocupa mais com o bloco hispano do que o contrário.” Antonio Candido, em Os Brasileiros e a Nossa América, Coleção Memo, Memorial da América Latina, 2000. O importante é que em toda a América do Sul, ou em quase toda, há uma energia popular de mudança, que se expressa de diversas maneiras, porque afortunadamente a América Latina é um vasto reino da diversidade. Eduardo Galeano, para o site da 54° Feira do Livro de Porto Alegre, 2008. A esquerda fracassou na América Latina. Tudo o que buscava era o poder, tanto a esquerda, quanto a direita. Fernando Vallejo, escritor colombiano; Nossa América, 2008.
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Se você for à Guatemala, encontra um país indígena. Se for ao Caribe, encontra um país negro. Se for à Argentina, encontra um país europeu. Aqui (no Brasil) há tudo, todas as misturas. Paul Leduc, cineasta mexicano; entrevista ao Roda Viva,TV Cultura, 2008. A América Latina sempre me comoveu, sempre me interessou. Sempre me preocupei muito com essa nossa desunião, e com o fato de nós brasileiros vivermos praticamente de costas para nossos vizinhos. Oscar Niemeyer, arquiteto brasileiro; Nossa América, 1989.
A América Latina é a área mais homogênea da Terra. É o único bloco realmente homogêneo. Darcy Ribeiro, antropólogo brasileiro; Nossa América, 1989. Um Continente desarticulado ao longo de três séculos por um poder que negou ao homem o exercício da razão. O dever de nossa América é mostrar-se unida em alma e intenção, vencedora de um passado sufocante. José Martí, pensador cubano; extraído de texto que escreveu em 1891. “Quero manter meus dois pés plantados na América Latina. Essa é minha base, minha fonte de vida, é de onde eu sou, é a fonte de tudo o que faço e é muito importante para mim. Por que eu deveria ir para o exílio?” Gael Garcia Bernal, ator; site CinemaCafri, 2008. “O enfoque (na América Latina) não pode continuar mais como temos feito até agora, no qual o desenvolvimento é visto apenas como conseqüência do econômico. Ele deve ser visto também como fruto da moral. Os direitos humanos são um elemento fundamental para as sociedades que querem se inserir em um contexto global.” Fernando Henrique Cardoso, ex-presidente do Brasil; Agência EFE, 2008. “Fomos descobertos ou reiventados pelos colonizadores, que impuseram o sentido que mais lhes convinha à nossa história. “Insistem em medir-nos com o metro que se medem a si mesmos”, e assim se consideram “civilizados” e a nós, bárbaros.” Gabriel Garcia Márquez; discurso na cerimônia em que recebeu o Nobel de Literatura,1982.
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PENSAMENTO
UM DEMOCRATA NA CASA BRANCA
ESPERANÇA PARA O CONTINENTE FERNANDO LEÇA
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a edição de maio de 2008 a revista Nossa América lembrou o curioso livro de Monteiro Lobato, O Presidente Negro, uma ficção premonitória, escrita em 1926, no qual o escritor cria um personagem negro que disputa a Casa Branca com uma loira classe média, e a derrota. Neste número, publicamos Langston Hughes (1902-67), poeta norte-americano negro, supostamente homossexual, comunista que nos anos 50 foi perseguido pelo macartismo. Hughes, um dos expoentes do “Renascimento do Harlem”, movimento artístico que celebrava a cultura negra dos EUA nos anos 1920, tem sido citado como um visionário que anteviu Barack Obama há mais de 80 anos. 36
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O grande debate provocado pela eleição de Obama tem muitos vieses, mas o certo é que sua vitória traz esperança de mudanças positivas não só para os americanos como para todo o mundo. Ele assume o país em meio a uma crise econômica só comparável à de 1929, mas a seu favor conta com o apoio internacional e, especialmente, de grande parte dos dirigentes latino-americanos. Os brasileiros, em particular, estão confiantes e esperançosos de que a declaração de Obama sobre a intenção de fortalecer as relações econômicas entre os Estados Unidos e o Brasil não seja simples retórica. Obama substitui o republicano George W. Bush, cujo governo foi marcado por guerras, crises e desacertos que resultaram em grande impopularidade,
culminando numa das maiores crises financeiras já vividas pelos Estados Unidos. O 44° presidente dos Estados Unidos, filho de pai queniano e mãe branca nascida no estado de Kansas, ambos já falecidos, em seu discurso de posse evitou falar sobre a rejeição sofrida pelos negros. Mas a multidão que somou cerca de dois milhões de pessoas, vindas de todas as partes dos Estados Unidos e do mundo, e que tomou conta de toda a avenida Pensilvânia, em Washington, sob um frio de 4°C negativos, era formada por uma parcela expressiva de negros. Seus sorrisos e lágrimas resumiam o orgulho e o otimismo diante da perspectiva de uma vida melhor e mais digna. Nos telões colocados em várias cidades dos Estados Unidos, as mesmas cenas emocionadas
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Barack Obama, perspectiva de um mundo melhor.
Mais de dois milhões de pessoas compareceram à cerimônia de posse de Barack Obama em Washington.
se repetiam. Sabe-se que 12% dos 305 milhões de americanos são negros e o índice de pobreza dessa comunidade é três vezes mais alta do que a dos brancos, e o nível de desemprego é o dobro. O sopro de cidadania transcendeu fronteiras americanas e chegou à comunidade negra na América Latina. Há uma confiança de que esta eleição sirva de exemplo aos líderes da região e que eles ajudem a desenvolver um mundo mais equitativo. Os vários estudos publicados nos últimos anos revelam que os descendentes dos escravos africanos somam na América latina e no Caribe 150 milhões de pessoas, em sua maioria pobres e excluídas em razão da cor de sua pele. Segundo um estudo da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal), nesta região a população negra é de “alta densidade e de pouca ressonância”. A vitória de Obama projeta um sentimento que só um Martin Luther
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King conseguiu incutir, renovando em milhões a esperança no futuro. Seu currículo ajuda a adensar e dar sentido veraz ao seu discurso. Afinal, ele abdicou do caminho mais fácil seguido por milhares de jovens com a sua formação, que é o de trabalhar nos grandes escritórios de advocacia, para abraçar uma trajetória mais difícil, mais humanitária. Ao mesmo tempo em que ensinava Direito Constitucional, advogava para os pobres. Sua postura como cidadão reforça e confere autenticidade à sua pregação política, levando-o à vitória mas também demarcando períodos e dando consequência ao slogan de mudança da campanha. Depois de sua posse Obama falou com alguns presidentes latino-americanos. No entanto, como ainda não se sabe, de fato, como ele vai se relacionar com a região, a nomeação de Hillary Clinton, como secretária de Estado, tam-
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bém trouxe esperanças e somou pontos para ele entre os latino-americanos. Na verdade, ainda estão vivas as palavras de Hillary quando, em 2006, ela ressaltou que os Estados Unidos deveriam estar mais presentes no subcontinente, para o próprio bem de seu país. Quanto ao Brasil, há expectativas de parcerias institucionais, uma vez que Obama foi aluno de Roberto Mangabeira Unger na Universidade de Harvard, onde o ministro ensinou Direito e Filosofia e fez amizade com o democrata. Em entrevista à Empresa Brasil de Comunicação, Unger afirmou que Obama será o presidente americano com maior interesse intelectual e político na América Latina. Nós do Memorial, que trabalhamos diretamente com todos os países do Continente, também temos a expectativa de que Obama venha colocar foco na região, uma vez que a comunidade
latino-americana que vive nos Estados Unidos já suplantou a de negros e hoje é uma força motriz em vários segmentos. Sua eleição é um acontecimento importante não só para os americanos, mas para toda a humanidade, pelo formidável poder que ele encarna, tanto no plano real quanto simbólico. Na América Latina, em especial, espera-se que tão logo se delineiem caminhos e soluções para a grande crise econômica que o mundo vive atualmente, Barack Obama venha também a marcar uma diferença de atitude com os países e povos da América do Sul, da América Central e do Caribe, contribuindo, genuinamente, para a sua integração e desenvolvimento. Fernando Leça é presidente da Fundação Memorial da América Latina.
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REFLEXÃO
ARTE
FORA DE SI COLAPSO DAS UTOPIAS TICIO ESCOBAR
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atual confusão entre diversos âmbitos (mercantis, culturais, políticos, sociais, estatais), bem explorada pelo capitalismo em sua rentabilidade, assume modalidades históricas particulares. O cenário existente no Cone Sul americano, depois da derrocada das ditaduras militares (cenário formado basicamente por Argentina, Brasil, Chile, Paraguai e Uruguai) está marcado de forma específica pela racionalidade instrumental e acumulativa do mercado e, conseqüentemente, pela frivolidade dos novos imperativos publicitários. Por um lado, a rearticulação do poder exigiu diversas manobras ideológicas, tendentes a mascarar a continuidade de grandes interesses e valores surgidos durante as ditaduras. Por outro, a comercialização da imagem faz com que essas
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manobras sejam formuladas de acordo com o roteiro publicitário exigido pela “midiatização” da política. Apesar da crispação de uma história afetada por crises demasiadamente graves, a cumplicidade entre política e mercado suscita representações amorfas, carentes de tensão e risco, desvinculadas de uma memória alerta, sem inquietações e sonhos. A crítica chilena Nelly Richard afirma que o discurso da “transição”, destinado a reintegrar o diverso e o plural à serialidade niveladora do consenso e do mercado, transforma o espaço político em uma planície monótona, carente de relevo e contraste. As formas críticas da arte latinoamericana tentam perturbar essa paisagem conciliada por meio de recursos midiáticos. Não pretendem mais denunciar diretamente a repressão, evitar a censura ou desmentir as figuras retrógradas e os sentidos unívocos do discurso oficial: agora querem
evidenciar os clichês da “transição” e inquietar as certezas burocráticas de um pacto social uniformizado pelos desígnios da rentabilidade e pelos modelos da informação midiática. Por esse motivo, reivindicam a desordem do desejo e os enredos da palavra: os enredos do silêncio, porque por meio da falta a arte fala melhor. No atrito dessa consciência subterrânea com as contradições do mundo, segundo Candido, existe “um desejo intenso de testemunhar sobre o homem”. As figuras da transição des-dramatizam os fatos, registrando-os como roteiro midiático e segundo narrativas politicamente rentáveis. Não deixam de lado a injustiça social, a corrupção nem a violência; não negam a presença de formas sub-culturais (indígenas, rurais, contra-hegemônicas): apresentam os fatos, mas mediados pela publicidade, configurados para o melhor consumo.
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Obra do artista brasileiro Nelson Leirner.
Assim, o conflito se torna evento, matéria simplificada de noticiário, crônica ou reportagem. A mola das pesquisas políticas. Diante dessa situação, não é suficiente que os artistas representem o drama (que fora negado pela ditadura): em matéria de representações, a cultura midiática tem todas as chances de ganhar. Por isso, as ações transgressoras consistem em desorientar o significado estabelecido, alterar a ordem dos limites que aquietam (e fecham) o contorno social. Neste caso, a retórica desempenha uma função política fundamental: por meio de movimentos de tropos (de diversas estratégias poéticas), os artistas, posicionados em diferentes locais do cenário social, podem discutir a folclorização da diferença e a simplificação
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OBRA DE PEDRO REYES
Triângulo das Bermudas, escultura flutuante de madeira do artista Pedro Reyes. da memória, e podem também delatar o fingido sossego da história, frisando a contingência de seu curso arrevesado. Menciono um caso estratégico. Quando as ditaduras do Cone Sul latino-americano caíram, uma das tarefas fundamentais encaradas pelos artistas críticos foi a de contrapor um modelo ativo de memória às operações que encobriam a história oficial: a possibilidade de processar o luto e de re-significar socialmente o drama constituía a tarefa mais radical em termos de proposta artística e mais útil no registro político. No entanto, na virada do novo séculomilênio, percebeu-se que a construção da história a partir do âmbito cultural requeria não só trabalhar a memória, mas fazê-lo em função do futuro, talvez a fim de recordar o futuro. Para uma região atolada, desesperançada, torna-se difícil imaginar o amanhã com entusiasmo. E a arte tem nesse caso uma possibilidade interessante, apresentada pela sua tendência utópica e seu dom profético. A partir
deles pode aportar sua vasta experiência em pressagiar e antecipar, em se adiantar a fabular outro tempo a partir da escura intensidade do desejo ou do medo, a partir das figuras da memória ou das razões do delírio ou do sonho. É claro que essa aposta “adivinhatória” não significa uma promessa: pré-dizer mediante a linguagem poética não garante um lugar ideal: só garante a força do olhar lançado para a frente. A ação das estratégias que acabamos de mencionar pressupõe pluralidade de forças. Apesar das coincidências invocadas pela hegemonia, a sociedade não pode se auto-representar de forma completa e única, pois existem diversas identidades que a imaginam a partir de memórias e projetos desiguais, que por vezes entram em confronto. Essa multiplicidade é responsável por acasos e flutuações: incita disputas em torno do sentido e desemboca em contínuas lutas que complicam e enriquecem a leitura dos fatos e impedem a clausura de qualquer interpretação total. Portanto,
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a pluralidade pressupõe a ausência de fundamentos universais. A impugnação dos fundamentos universais estimulou a abertura de um cenário propício à diversidade e à emergência de novos sujeitos sociais e identidades culturais. No entanto, também incentivou o surgimento de tendências que substancializam o momento do particular e travam os mecanismos de coesão social. Fiel à sua breve tradição, o roteiro contemporâneo vacila. Por um lado, é verdade que os programas de emancipação particular dinamizaram a sociedade civil com suas demandas setoriais. Mas também é certo, por outro, que o fato de essencializar a diversidade pode neutralizá-la e também pode constituir uma oportunidade de criar novos sectarismos e vários autoritarismos Nos âmbitos da arte, a modernidade adquire sua formulação definitiva com o abandono de uma estética referencialista da representação e a conquista de sua autonomia formal: autosuficiente, coroada de aura, a forma se dobra sobre si mesma e se torna princípio regulador de uma esfera própria. No entanto, o formalismo ilumina apenas uma face da modernidade; a outra, a oposta, está iluminada pela utopia. Se a arte se afasta da realidade, faz isso para tomar impulso e regressar fortalecida com as razões da linguagem. Ambos os momentos, o da auto-suficiência e o da utopia, são fustigados pela crítica da modernidade. Mas embora seja a contragosto, essa mesma crítica os convoca, tentando neutralizar previamente seus passados essencialistas e seus compromissos transcendentais. O artista atual já não se interessa tanto pelos dispositivos da ficção quanto pelo chamado contrário do real; antes de rever constantemente o funcionamento da linguagem, agora tenta perfurar a rede de imagens que envolve a paisagem externa ou sua
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lembrança. E por momentos surge uma arte visceral e direta, obscena às vezes, aparentemente literal em suas referências cruas demais. A chamada des-diferenciação contemporânea apresenta conseqüências importantes que tornam a desembocar na questão das possibilidades críticas da arte. Por um lado, provoca a perda da autonomia do artístico: expulsa de um espaço próprio que a separava do social e situava sobre a cultura de massas, fora de si, a arte perdeu soberania e arriscou privilégios. No entanto, essa mesma des-diferenciação implica o colapso das grandes utopias: questionada a onipotência do símbolo, declinam de suas faculdades emancipadoras. O que sucede é que tanto nos terrenos da teoria quanto nos da produção da arte, o desaparecimento das fronteiras desorienta um curso traçado em termos cartográficos. Às vezes mimetizadas em pleno campo adversário, as forças hegemônicas trocam de posição com as dissidentes de acordo com as regras de uma convenção pouco clara. A massificação de formas de arte tradicionalmente reservadas a elites ilustradas e o predomínio generalizado do momento da divulgação sobre o da produção, bem como a utilização de recursos contestadores pela cultura hegemônica, fazem com que seja difícil detectar os profetas pós-modernos.
Ticio Escobar, crítico de arte, professor e curador, é atualmente ministro da cultura do Paraguai.
Obra do artista Joan Brossa.
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ANÁLISE
LANGSTON HUGHES
A DOR MORAL DE UM POETA NEGRO
UM AUTOR AINDA CONTEMPORÂNEO SYLVIO BACK
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oeta negro, americano, comunista, e supostamente homossexual, Langston Hugues (1902-1967) viveu tempos difíceis com tal perfil. Sua obra, rigorosamente obrigatória em qualquer estante nos Estados Unidos, continua praticamente inédita no Brasil. De cunho político-social, foi perseguida pelo macartismo e ainda hoje é contemporânea. No Brasil, pode-se comparar a João da Cruz e Souza (1861-1898), o maior poeta negro da língua portuguesa, tão umbilicalmente atado a suas raízes que é possível ouvir em suas estrofes os ecos de seus antepassados. Ambos aspiram à mesma transcendência na dor existencial do que é ser negro.
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No início dos anos setenta ouvi (não li) pela primeira vez, e somente a estrofe de abertura do poema, Democracy, de (James Mercer) Langston Hughes (1902-1967):
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Democracy will not come Today, this year Nor ever Through compromise and fear. A força clarividente dos versos soava como uma espécie de epitáfio: os tempos eram feios e parecia que os ditadores militares iriam se etemizar. A contundência do poema jamais me abandonou. Nem o autor - menestrel da negritude radical, uma insólita cunha étnica dentro da poesia, erudita e branca, norte-americana do século XX. E, estranhamente, sua obra lírica continua quase inédita entre nós - país de corte e sorte africanos onde a tragédia da cor é tão exasperante quanto a dos negros americanos de há meio século e tanto. Antes de desfrutar-lhe os livros anos depois, curti três poemas traduzidos por Manuel Bandeira (dois deles, inclusive, March Moon e My People, sem me dar conta de já os ter lido, ousei uma retradução). Igualmente, cruzei com outros poucos vertidos por Orígenes Lessa, Guilherme de Almeida, Domingos Carvalho da Silva, Oswaldino Marques, e ainda um por Jorge Wanderley em 92. Recentemente, poetas como Reynaldo Damazio (na revista Cacto), Marco Aurélio Cremasco (em BabeI) e Hélio Oswaldo Alves, em saite próprio, publicaram suas versões de Hughes. Ao longo dos últimos dez anos, esparsamente, fui soltando algumas das traduções ora em apresentação, primeiro, no jornal Nicolau, de Curitiba (PR), depois, no Suplemento Literário de Minas Gerais e, nesta década, no caderno Mais!, da Folha de S. Paulo.
Rigorosamente obrigatório em qualquer estante de poesia nos Estados Unidos, no entanto, Langston Hughes é lido e conhecido entre poucos leitores e poetas brasileiros como se fora, digamos assim, um “poeta acidental”. Uma raridade bibliográfica. Excetuando antologias, nenhum dos seus dezesseis livros foi até hoje traduzido com seu poemário parcial ou completo. Também contista, dramaturgo (escreveu uma trintena de peças), romancista, em 1944, não por acaso, veio a lume, pela Editorial Vitória (RJ), pertencente ao PCB, a tradução de sua autobiografia intitulada, O Imenso Mar (The big sea), na qual extravasa a sua vivência e credo marxistas. Só me animei a traduzi-lo (ou traí-lo - qual a diferença!?) quando em 1989 topei em Washington (D.C.), onde
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Langston Hughes, um rebelde ativista dos direitos humanos, consagrado na década de 50.
me encontrava pesquisando imagens de arquivo sobre a FEB na Itália para o meu doc, “Rádio Auriverde”, com a preciosa coleção de poemas organizada por ele antes de morrer (Select Poems, Vintage Books, NY, 1974). Devorei o livro lá mesmo: impaciente, até ensaiei uma tradução virtual sob cada verso que me dizia como beleza, inventiva e indignação moral e política. Nem imaginava que, doravante, me tomaria um leitor-súdito deste que era chamado de “Shakespeare do Harlem”, à conta de livro de poemas que publicara em 1942 com título homônimo.
anos e quase o mesmo número de poemas (publicáveis), eis a suma e o sumo deste impremeditado repoetar (desconfio de tradutor que não poeta). Como o criador é sempre inferior à criatura, Langston Hughes não fugiu à regra. Enquanto desferia golpes poéticos mortais contra uma América racista que o desqualifica, e castiga e humilha os seus, “A América nunca foi América para mim ...”, ele sucumbia ao auto-engano e à cegueira visionária da esquerda dos anos trinta: “Dê lugar a um novo sujeito sem religião/Um sujeito verdadeiro chamado/Marx, comunista
Ouvinte bissexto de jazz, assim mesmo - “tomado” por Hughes - investi no risco de manter-me, o quanto possível, “fiel-infiel” à atmosfera beat de sua poesia. Ainda que neopoeta (até então publicara, O caderno erótico de Sylvio Back/1986 e Moedas de Luz/88, ou seja, poetava há apenas cinco anos), submergi no sentido oculto daquelas palavras-larvas, explosivas e cheias de spleen - com tudo. Sem ser, nem me intitular, um tradutor lato senso (igualmente, bissexto), a partir daí foram dezesseis
Lênin, camponês Stalin, EU operário!” - versejou ingênua e impunemente. Tão vítima quanto os milhões de americanos engolfados pela Depressão, mais trágico ainda para os negros, cuja miséria os lançava a uma espécie de reescravidão pela orfandade de quaisquer direitos civis, o poeta tomava o rumo de boa parte do vedetariado americano, alinhando-se à utópica propaganda de igualitarismo e liberdade do regime soviético. Nos anos 50, por conta dessa militância no Partido Comunista
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Americano, Hughes que, em 1932 fora à URSS e lá pemanecera por um ano, acabou nas malhas do paranóico senador McCarthy, que considerava intelectuais, artistas e a própria Hollywood, um “ninho de comunistas”(sic). Interrogado pelo Comitê de Atividades Antiamericanas, declarou que nunca fora comunista, nem pertencera ou incensara os mentores históricos do partido. Poetas são sempre profetas a contrapelo. Apesar do melancólico desfecho de sua equívoca opção ideológica, a vasta obra de Hughes, quase toda de cunho político-social, como este poema magistral, Let America be America again (Nunca houve liberdade para mim! Nem liberdade nesta “pátria de homens livres”), permanece incólume e de uma contemporaneidade à toda prova, a qualquer tempo. Seja nos Estados Unidos segregacionista de ontem e de hoje, seja no Brasil da perversa “democracia racial”, onde sua poética é e seria tão pertinente e atual quanto a do genial poeta, Cruz e Sousa, morto em vida pela discriminação e a inveja do estamento cultural da época. Nem por isso Cruz e Sousa deixou de tecer loas à uma soi disant superioridade racial, em carta dirigida ao escritor, Virgílio Várzea: “ ... para mim, pobre artista ariano, ariano, sim, porque adquiri, por adoção sistemática, as qualidades altas dessa grande raça ...”. Assim, coincidência cármica ou não, entre os primeiros Hughes que devorei vertiginosamente naquela Washington afro-descendente nas ruas e repartições e esta edição-introito ao seu poemário, inédito no Brasil, fui novamente colhido po rum feliz e premonitório acaso. Em meados dos anos ‘90 descobri que em 1998 se comemoraria o centenário de morte de João da Cruz e Sousa (1861-1898) - o maior poeta negro da língua portuguesa,
ícone máximo da raça, mas ainda hoje um estigma literalmente escuso tanto na literatura brasileira quanto para a própria comunidade negra do país. Debrucei-me sobre a vidaobra-tragédia-e-morte deste belo vate catarinense no longa-metragem, Cruz e Sousa - O Poeta do Desterro (1999), na verdade, o “nosso” Langston Hughes, um Langston Hughes brasileiro avant la lettre - como se fosse a minha própria biografia transformada em epigramas e fotogramas. Alma tingida pela África, tal qual o poeta americano, Cruz e Sousa é tão umbilicalmente atado às suas raízes que até é possível ouvir nas estonteantes aliterações das estrofes de “Violões que choram ...”, o eco do tantã dos seus antepassados (“Vozes veladas, veludosas vozes/Volúpia dos violões, vozes veladas,! Vagam nos velhos vórtices velozes/ ... ). Se por sua vez, Hughes é melancólico, irônico e ferino - num diapasão do falar cotidiano, e Sousa, seu igual-desigual dos trópicos quase sempre oscilando entre Eros e Tanatos - num registro sofisticado, ambos, no entanto, aspiram à mesma transcendência e ao sublime através de uma frondosa e musical verbalização do invisível/ indizível sobre a dor moral e existencial do que é ser preto. Ainda assim, Langston Hughes e Cruz e Sousa jamais descolam o verso e a prosa do seu entorno social, das lutas de
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CORA
CRUZA
Esta manhã quebrei meu coração, Coração não tenho mais. Na próxima que um cara chegar perto Fecho e tranco minha porta Porque eles me maltratam Aqueles que eu amo. Eles sempre me maltratam.
Meu pai é um velho branquela Minha mãe é uma preta velhinha. Se alguma vez xinguei meu velho O xingamento sobrou pra mim. Se alguma vez xinguei mamãe Desejando que fosse pro inferno, Me desculpo pela vontade malsã E agora o meu desejo é terno. O velho morreu numa casa bacana. Minha mãe morreu num barraco. Onde será que eu vou morrer, Não sendo nem branco nem preto?
EU TAMBÉM
Amanhã Sentarei à mesa Quando chegar alguém Então ninguém se atreverá A me dizer: “Coma na cozinha”. Aí eles vão ver como sou bonito E ficarão envergonhados. Eu também sou a América.
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Eu, também, canto a América Sou o irmão escurinho Quando chega alguém, Eles me mandam comer na cozinha Mas eu rio, Como bem, E fico forte.
libertação e de seu extrato étnico. Deste bastaria atentar para o soberbo poema, Litania dos Pobres (“Os miseráveis, os rotos/São flores dos esgotos.”), e o antológico “Escravocratas” (“... escravocratas eu quero castrar-vos como um touro xouvindo-vos urrar!”) - talvez o mais contundente poema abolicionista jamais escrito no Brasil. De Hughes, este poema que é um hino à resistência moral: “Eu, também, canto a América/ Sou o irmão escurinho/Quando chega alguém,/Eles me mandam comer na cozinha/Mas eu rio,/Como bem,/E fico forte.” Na assertiva do próprio Langston Hughes, seus poemas são para serem “falados em voz alta”, “gritados”, “cantados” - daí uma atmosfera gospel encontrável em inúmeras estrofes. Uma poética também em close up, eu acrescentaria, tamanho o torque dramático e o realismo detonados pelo dialeto do dia-a-dia da comunidade black que os informa e transfigura criticamente a própria história soterrada dos Estados Unidos. Elaborados com textura fomal e jogos verbo-musicais de esplêndido eco, a intuição dos versos - capturada na sonoridade dos blues e spirituals do Harlem, pátria de suas angústias, amores e amizades (solteiro a vida toda, uma suposta homossexualidade jamais ficou comprovada) - é profusa e inapagável. Inclusive, é nesse bairro negro de Nova lorque que Hughes, nos anos 20 e 30 (até a Depressão), passa a integrar a chamada Harlem Renaissance, movimento artístico de grande repercussão, tido como o primeiro gesto de afirmação e protesto do negro americano exigindo inserção e respeito. O que era? Uma instintiva reação espiritual à violenta repressão que se seguiu à I Guerra Mundial quando soldados negros, de volta da Europa, onde haviam arriscado a vida pela
democracia, reencontram o país no mesmo estágio de ódio e discriminação contra os seus. Congregando poetas, escritores, músicos, dramaturgos, artistas plásticos, vindos das camadas mais pobres, a Harlem Renaisssance entre saraus e festas lítero-jazzísticas, álcool, drogas, jogatina, prostituição e que tais, freqüentados por muitos brancos e endinheirados - representou o florescimento de toda uma geração que mudou o olhar da América Wasp (anglosaxônica e protestante) em relação aos negros. E a telúrica e, muitas vezes, bélica poesia de Langston Hughes, talvez seja a principal voz desse histórico canto coletivo da negritude americana. Nem por isso essa militância transformou os poemas em florido gueto. Ao contrário, os universalizou para sempre. Trata-se, sim, de uma lírica do excluído étnico, do desterrado social, do escorraçado moral, mas plena de graça, coragem e farpas auto-referentes. A infinda miséria, o preconceito atroz, a solidão e a morte - incontornáveis, Hughes sublima as vicissitudes da raça com o orgulho e a fé, o amor, Eros e humor. Um mestre do poema engajado nas refregas, sonhos, desejos e derrotas do homem comum, tanto quanto no repertório afetivo sobrevivente dos seus maiores (e da humanidade, que teria nascido em África). A quase quatro décadas de seu desaparecimento, publicado em sessenta países, com este pequeno florilégio garimpado aleatoriamente de seus livros eis um pálido tributo a Langston Hughes, cuja poética se renova a cada leitura pelo viço de sua linguagem coloquial de alta criatividade, pela pertinência moral e atávica, enfim, pela sua incontida emoção. Sylvio Back é cineasta e poeta, autor do livro de bolso Traduzir é Poetar às Avessas, que integra a Coleção Memo, editada pelo Memorial da América Latina.
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Militante do movimento “Renascimento do Harlem”, de Nova York, Hughes estreou na Broadway como dramaturgo,em 1935.
POLÍTICA
UM MUNDO
MULTIPOLAR AS NOVAS LIDERANÇAS ANDRÈS SERBIN
E
m seu recente livro, The PostAmerican World, Fareed Zakaria retoma a análise das forças globalizadoras e das reações nacionalistas antes da eclosão da crise financeira global, e apresenta dois argumentos particularmente importantes. Por um lado, refere-se à emergência de novos centros de poder em um mundo multipolar, sem que isso signifique, no curto prazo, o declínio dos Estados Unidos como potência estratégica e econômica. Por outro, destaca o ressurgimento (“the rise of the rest”, em um jogo de palavras que questiona a hegemonia mundial do Ocidente), de um multilateralismo complexo, com a irrupção não só de novos atores estatais relevantes
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e do crescente papel desempenhado pelos organismos intergovernamentais, mas também de atores não-estatais, tanto como representantes da sociedade global emergente orientada a promover e defender bens públicos globais (do meio ambiente aos direitos humanos), como de uma sociedade “incivil” que se desenvolve com a criminalidade transnacional e os fluxos ilegais. Para além de uma análise do impacto da globalização sobre as mudanças no sistema internacional e sobre a emergência de um novo mapa geopolítico, Zakaria também menciona os problemas mundiais que a nova administração dos Estados Unidos, surgida das eleições de novembro de 2008, terá de enfrentar. Uma grande parte das tendências esboçadas por Zakaria com relação ao futuro provocará (e provavelmente já provoca) efeitos indeléveis na América Latina e Caribe. No entanto, de acordo com seu enfoque, a pergunta chave é quem está em ascensão (“on the rise”) na região, para além do atual impacto da crise financeira e no âmbito do surgimento de vínculos econômicos, financeiros e comerciais de duvidosa reversibilidade, apesar da crueza da atual crise financeira global. É evidente que o novo mapa geo-político regional, particularmente na América do Sul, estará relacionado à emergência e consolidação de novas lideranças e novos esquemas de articulação e integração regional. A focalização dos interesses geopolíticos dos Estados Unidos no Médio Oriente e em outras regiões do mundo a partir de 11 de setembro de 2001 possibilitou o aumento da autonomia regional e o surgimento de governos progressistas e de esquerda. Enquanto o projeto da ALCA tende a se dividir em diversos acordos de livre comércio bilaterais e sub-regionais, o TLCAN começa a sofrer as investidas de uma onda previsível, evidenciada através da possibilidade de revisão de alguns
dos seus acordos básicos. Na verdade, o acordo trilateral está suspenso, apesar de que o atual governo conservador do Canadá tenha excelentes relações com a administração Bush, e de que o México, da administração do presidente Fox à de Calderón, tentou renegociar aspectos específicos da relação bilateral com os Estados Unidos, especialmente no tocante às questões de migração e de segurança fronteiriça, sem mencionar a crescente importância da questão energética e da exploração petrolífera no Golfo do México para estas relações e para o futuro das relações com Cuba. Nesse ínterim, uma nova dinâmica e um novo mapa político começaram a emergir na América do Sul. Duas dessas visões, com suas respectivas narrativas, se destacam em particular. Por um lado, uma visão geo-estratégica e militar, repleta de elementos ideológicos, da dinâmica de um mundo multipolar ilustrada pela política externa de Chávez que, através de uma diplomacia pró-ativa que utiliza de forma abundante os recursos petroleiros no âmbito de iniciativas como a Petrocaribe,
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tenta por um lado aumentar sua liderança na América do Sul, Central e no Caribe, e por outro assumir um papel global mais relevante através de suas parcerias com o Irã, a Rússia e a China, e da utilização da OPEP como um foro de incidência mundial. A crise financeira global e seu impacto na baixa dos preços do petróleo, por um lado, e a crescente fragilidade dos acordos internos relativos à capacidade doméstica de Chávez de governar e de realizar políticas sociais conseqüentes, ameaçam no curto prazo esta visão e esta
andamento, testarão esta aspiração que se destina, em última instância, a transformar o Brasil em um ator global em um mundo multipolar. Isto se evidencia tanto em sua aspiração a promover uma reforma da ONU, que lhe assegure um posto permanente no Conselho de Segurança, como em uma política ativa de articulação de interesses do emergente bloco dos BRIC (Brasil, Rússia, Índia, China), e uma presença pró-ativa na África através de diversos mecanismos de cooperação e de uma crescente ligação com a África do Sul.
estratégia, apesar de que o referencial mais importante continue sendo a promoção de um mundo multipolar com relação ao unilateralismo e à hegemonia dos Estados Unidos, dentro de uma retórica fortemente anti-imperialista. Por outro lado, uma visão e uma estratégia multidimensional baseadas no desenvolvimento produtivo, industrial e comercial, promovidas pelo Brasil com a aspiração de se transformar em ator e referencial global a partir da consolidação de sua liderança regional na América do Sul, articulando de uma maneira gradual e sustentada os objetivos de estado com os objetivos do governo. A capacidade efetiva de assimilação da crise financeira global e a persistência, nesse âmbito, da consolidação institucional e das políticas sociais em
Ambas as visões e narrativas marcam atitudes diferenciadas diante dos Estados Unidos. Enquanto Chávez aumenta o confronto a fim de configurar uma trama anti-hegemônica na região, sob sua liderança e em sintonia com uma diversificação de relações com outros poderes emergentes em nível mundial, apesar da sua alta dependência do mercado norte-americano para a colocação da produção petroleira venezuelana, o Brasil tenta desenvolver uma convivência pacífica e um reconhecimento de sua capacidade de interlocução com os Estados Unidos no âmbito de uma relação que não ameace suas aspirações regionais e globais. As propostas de Lula da Silva na reunião do G-20 sobre a necessidade de re-estruturar a arquitetura
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financeira global com um maior poder de incidência dos países emergentes e o telefonema pessoal do recentemente eleito Barack Obama ao presidente brasileiro, são alguns dos marcos desta estratégia. Ambos os discursos e ambas as narrativas, apesar de suas diferenças marcantes, que se refletem em estratégias distintivas, respondem sem dúvida a uma visão multipolar do mundo. No entanto, a fim de articular essas duas lideranças emergentes na América do Sul (e para além da abundante discus-
enfoque eminentemente presidencialista, sem conseguir articular uma arquitetura institucional clara, sobre a base da aspiração à complementariedade econômica e à solidariedade entre seus membros. Adicionalmente, apesar da aspiração de transformar a ALBA no “núcleo duro” da integração latino-americana no marco da visão bolivariana do presidente venezuelano, o esquema se baseia principalmente na participação de países centroamericanos e caribenhos, com a inclusão adicional da Bolívia.
são sobre os modelos de esquerda que elas possam representar para a América Latina a partir de uma crescente cisão no seio da mesma), cada uma delas remete à implementação de esquemas de integração regional diferenciados. Chávez lança, a partir de um acordo inicial de complementação econômica com Cuba, a Alternativa Bolivariana das Américas (ALBA), baseada na assistência petroleira e em diversas formas de troca, que progressivamente se amplia com a inclusão da Bolívia, Nicarágua, Dominica e, fora do espectro ideológico de esquerda desses países, recentemente incorporou Honduras. O esquema carece de estruturas sólidas e se baseia fundamentalmente nos encontros e reuniões de cúpula dos presidentes e chefes de governo, em um
Por outro lado, o MERCOSUL, baseado em um enfoque comercial e produtivo, não consegue desenvolver uma estrutura institucional mais avançada para lidar tanto com as tensões e conflitos entre seus sócios originais (Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai), quanto com as de seus membros associados (Chile, Bolívia, Colômbia e Equador) e dos aspirantes a se tornarem membros plenos (Venezuela). Não obstante, aspira a se transformar no “núcleo duro” da governança regional, da estabilidade política democrática e da paz no espaço sulamericano, assentado na relação especial entre a Argentina e o Brasil. Em essência, responde à estratégia do Brasil de transformá-lo, a partir da convergência com os países da Comunidade Andina de Na-
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ções (CAN), no eixo da integração sulamericana, expressada originalmente na Comunidade Sul-americana de Nações (CSN) e atualmente na recém-fundada União Sul-americana de Nações (UNASUL), com a adição de dois países tradicionalmente orientados para o Caribe, como Guiana e Suriname. A concorrência entre as duas visões e os dois modelos de integração que elas propõem deu lugar a uma queda de braço entre duas lideranças emergentes, ambas com aspirações regionais e globais. Entretanto, a diplomacia mais cautelosa e contínua do Brasil parece prevalecer. Vejamos alguns exemplos. A ambiciosa proposta de um Gasoduto do Sul que comunique a Venezuela com a Argentina através do Brasil foi se desvanecendo progressivamente, para ser substituída por uma visão mais pragmática de desenvolvimento de uma infraestructura portuária que permita o transporte marítimo do gás aos pontos chave da geografia sul-americana, visão na qual os interesses brasileiros de desenvolver uma indústria de navios e aproveitar sua infraestructura portuária parece se impor. A influência bolivariana, através da diplomacia petroleira de Chávez na América Central e Caribe, sofre uma erosão permanente da projeção brasileira, que além de desenvolver acordos e vínculos, particularmente no âmbito da exploração de petróleo, com Cuba (que recentemente se tornou membro pleno do Grupo do Rio e começou a ter uma presença significativa nos encontros e reuniões de cúpula latino-americanas), também tem assinado acordos com os membros do Sistema de Integração Cen-
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tro-americano (SICA) e promovido a incorporação de Guiana e Suriname, ambos membros da CARICOM, à integração do espaço sul-americano. Finalmente, e sem a exclusão de outros casos e exemplos, a proposta de Chávez de criar uma força armada sul-americana foi habilmente substituída, no âmbito da UNASUL, pela iniciativa brasileira de criar
um Conselho Sul-americano de Defesa em nível regional que, no fundo, estimula o controle civil das forças armadas e desloca a iniciativa para o âmbito da coordenação entre os respectivos ministérios de defesa. Embora esta proposta ainda esteja em processo de formulação, de fato dilui qualquer aspiração militarista e se destina tanto à prevenção e resolução de conflitos na região, como a uma aliança, em função da criação de um foro para promover o diálogo entre os ministérios
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de defesa da região, reduzir os conflitos e as desconfianças entre seus estados membros, e assentar as bases para uma política comum de defesa, com a exclusão dos Estados Unidos. Contudo, está previsto que o Conselho seria um organismo da UNASUL, semelhante ao já instituído Conselho de Energia Sul-americano. O mais recente episódio da estratégia diplo-
mática brasileira em detrimento de qualquer turbulência que ameace a estabilidade regional ocorreu no âmbito do acirramento da crise boliviana, com uma primeira intervenção bem-sucedida da UNASUL nos assuntos domésticos de um de seus estados-membros (intervenção que implicitamente assume alguns elementos da “Responsabilidade de proteger” promovida pela ONU, firmada por algumas nações sul-americanas), a partir das condições impostas pelo Brasil: a)
que a intervenção fosse convocada a pedido do governo democraticamente eleito da Bolívia; b) que seu objetivo fosse consolidar a institucionalidade democrática vigente e promover um diálogo entre as partes em conflito, e c) que evitasse qualquer questionamento ao papel dos Estados Unidos, posição contrária à promovida por Chávez ao antecipar a convocação da UNASUL e ao tentar promover, infrutiferamente, uma condenação dos Estados Unidos, depois da retirada dos embaixadores da Bolívia e da Venezuela de Washington e a expulsão dos embaixadores estadunidenses de La Paz e Caracas, justificada pelo aparente envolvimento do primeiro em prol dos prefeitos da Meia Lua boliviana opostos ao governo do presidente Evo Morales. Este episódio, além de demonstrar uma crescente autonomia dos países da América do Sul na resolução de suas crises e conflitos (iniciada recentemente com o papel desempenhado pelo Grupo do Rio em distender a tensão entre a Colômbia e o Equador), marca uma crescente capacidade da região de abordar seus conflitos internos através de suas próprias iniciativas e sem a intervenção de terceiros, confirmada pela reunião de cúpula dos países latino-americanos e caribenhos na Costa do Sauípe em dezembro de 2008. Neste sentido, durante a reunião de cúpula da UNASUL em Santiago em setembro de 2008, também se tornou evidente o progressivo deslindamento na região com relação ao tradicional papel da OEA de contribuir à solução pacífica de disputas entre países membros e de mediar, através
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de mecanismos ad hoc, as crises regionais. A convocação para a reunião de cúpula de Santiago foi realizada pela Presidente Bachelet em seu caráter de presidente pro tempore da UNASUL, que por isso pode convidar para essa reunião o Secretário-Geral da OEA, o chileno José Miguel Insulza. Embora esse convite corresponda à dinâmica política interna do país anfitrião (que deverá enfrentar uma eleição presidencial, em que a Concertação, à qual pertencem tanto a presidente Bachelet quanto o Secretário-Geral da OEA, que aspirava a ser seu próximo candidato presidencial, enfrenta uma complexa situação eleitoral), na prática tentou fazer com que a intervenção na Bolívia se enquadrasse dentro de uma ação conjunta entre a OEA e a UNASUL. Entretanto, a reunião de cúpula optou pelo envio de uma missão exclusiva da UNASUL para a Bolívia, independentemente de haver uma coordenação com a missão separada enviada pela OEA, mostrando claramente desse modo a muito limitada disposição dos países sul-americanos de envolver na crise um organismo do qual os Estados Unidos participam, muitas vezes com um papel preponderante. Há uma clara diferenciação no tocante à preferência sul-americana de impulsionar mecanismos de prevenção e resolução de crise de caráter regional, no âmbito da UNASUL, em detrimento do papel tradicional da OEA com a participação dos Estados Unidos e outros atores extra-regionais. No entanto, apesar de que este episódio tenha permitido a realização de uma primeira intervenção bem-sucedida da UNASUL na resolução de uma crise política em um país sul-americano, suscita uma série de perguntas sobre sua efetiva capacidade de lhe dar sustentabilidade no médio e longo prazos. Neste sentido, é importante frisar que ao contrário da OEA, que abre espaço para um papel e uma influência
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predominantes dos Estados Unidos e constitui um foro político proeminente para a discussão dos assuntos hemisféricos com a presença desse país, além de ser um mecanismo estabelecido e decantado que tem desempenhado um papel fundamental na consolidação democrática da região e na resolução pacífica de controvérsias entre estados, a UNASUL é um mecanismo novo, em processo de construção e que ainda precisa de aprovação parlamentar na maioria dos países membros para poder iniciar funções vinculantes. Embora a UNASUL, como frisou a presidente Bachelet, constitua “um poderoso instrumento de integração” que responde a uma visão do multilateralismo de acordo com a ONU e se destina a criar um novo instrumento de coordenação política entre os países da América do Sul, incluídos aí a Guiana e o Suriname, em torno de questões de infraestrutura, finanças, políticas sociais, energia e defesa (sendo que estes dois últimos temas são considerados prioritários), mesmo assim padece com a falta de uma estrutura funcional instalada e confronta e reflete numerosas tensões entre seus países membros. Neste sentido, na constituição oficial da UNASUL em Brasília em maio de 2008, foram apresentados alguns elementos de sua estrutura institucional – estabelecimento de uma Secretaria-Geral em Quito e do Parlamento Sul-americano em Cochabamba; o desenvolvimento de planos para criar um Banco Central regional e uma moeda única; a criação de um passaporte regional e a proposição de um Conselho Sul-americano de Defesa. Entretanto, também se evidenciaram as reticências e dificuldades políticas que enfrenta, sendo o caso mais paradigmático o da designação da pessoa que ocupará o cargo de Secretário-Geral. Originariamente, o ex–presidente equatoriano
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Rodrigo Borja tinha sido designado para este posto, porém na reunião de maio da UNASUL ele renunciou, alegando ausência de vontade política dos países membros de conceder à Secretaria-Geral um papel primordial na criação e consolidação da estrutura do organismo. A proposta do Equador (apoiada por Venezuela, Bolívia e Argentina) de substituí-lo pelo ex–presidente Néstor Kirchner, da Argentina, enfrentou a rejeição formal do Uruguai, alegando que o papel desempenhado por Kirchner durante sua pre-
sidência no conflito argentino-uruguaio em torno das fábricas de papel impede que ele exerça as funções de SecretárioGeral de um organismo que, entre outras funções, precisamente deveria lidar com a prevenção e a resolução de conflitos entre seus membros. De fato, esta situação revela claramente que o peso das agendas nacionais continua se impondo a uma agenda regional. A concorrência entre a liderança brasileira e a venezuelana, neste contexto, também se manifesta através da ausência de
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Chávez na reunião de cúpula da UNASUL, em Nova York, realizada depois da de Santiago, durante a Assembleia Geral da ONU, seguida de um significativo silêncio do habitualmente prolífico presidente bolivariano em torno da situação regional, motivado tanto por suas preocupações com relação às eleições estaduais e municipais na Venezuela em 23 de novembro, depois de sua derrota no referendo para uma reforma da constituição em dezembro de 2007, como pela crescente deterioração dos preços internacionais do petróleo, que afetam tanto sua política doméstica quanto sua projeção regional, através do apoio de governos e movimentos políticos e sociais afins. No entanto, além desses elementos políticos, que podem afetar o futuro da UNASUL, um dos principais desafios é estruturar um organismo eficiente e profissional para enfrentar uma complexa agenda regional em uma conjuntura internacional impactada pela crise financeira e pelas incertezas econômicas dos próximos anos, particularmente para um conjunto de países cujo crescimento econômico recente foi marcado pelos altos preços internacionais das commodities.. Cabe acrescentar a esse desafio a tendência presidencialista própria das culturas políticas da região, que tendem a enfrentar e resolver as crises através do encontro em reuniões de cúpulas, reagindo basicamente a situações de crise que ameaçam a região em vez de desenvolver políticas sustentadas e consistentes que, no âmbito dos processos de consolidação democrática, requerem um ativo envolvimento e a participação de outros atores, incluindo uma cidadania organizada e emergente e atores políticos que, como os partidos políticos e os parlamentares, precisam de uma maior legitimação democrática na maioria dos países. Sem esses elementos, para além do desenvolvimento de estratégias de mudança estrutural coordenadas em nível regional, a efetiva capacidade pre-
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ventiva e não meramente reativa de um organismo emergente como a UNASUL contrasta com a experiência decantada (embora freqüentemente questionada pela incidência hegemônica dos Estados Unidos) de um organismo como a OEA para enfrentar situações de crise ou conflito potenciais na região. Nesse sentido, não basta contar com uma liderança contínua dos novos referenciais globais nem com vontade política, freqüentemente atenuada e pouco convincente, quando não contraditória, dos estados membros, mas também deve haver uma estrutura eficiente e profissional para enfrentar os desafios da região, mesmo sem a participação do ator hegemônico, atualmente distraído por outros focos de conflito no âmbito global. Nesse contexto, a consolidação da UNASUL e da liderança regional brasileira como parte do processo de emergência da América do Sul como um pólo relevante de um sistema mundial multipolar, enfrenta uma série de desafios tanto políticos como institucionais, que se tornam ainda mais complexos devido ao impacto da atual crise financeira global na região. Embora a UNASUL evidencie, como frisou um chanceler sul-americano, uma vontade política que tem faltado na OEA, esta vontade política, ainda que necessária, pode ser insuficiente - se nos guiarmos pela experiência do MERCOSUL -, para consolidar o desenvolvimento sustentado de um mecanismo regional complexo e de uma estrutura institucional efetiva para avançar rumo à integração e estabilidade regional, e para transformar a região em um referencial global no contexto de um sistema multipolar.
Andrès Serbin é antropólogo e doutor em Ciências Políticas; professor titular da Universidade Central da Venezuela e, atualmente, presidente executivo da Coordinadora Regional de Investigaciones Económicas y Sociales.
LITERATURA
PROPOSTA PARA UMA
NOVA LEITURA
OS SERTÕES DE EUCLIDES DA CUNHA JOÃO ALVES DAS NEVES
C
om aproximação do centenário da morte de Euclides da Cunha (19 de Agosto de 1909) impõese nova leitura da reportagem de Canudos e do livro Os Sertões. Recorda-se que a viagem foi realizada por sugestão de Júlio Mesquita, diretor de O Estado de S. Paulo, após a publicação neste jornal dos 2 artigos de Euclides sobre A nossa Vendéia (em 14 de Março e 17 de Julho de 1897), estabelecendo paralelos entre a insurreição dos “vendéanos” (1793 a 1796), que combateram os excessos da Revolução Francesa, reprimindo as atividades religiosas. No caso do Brasil, era o combate republicano aos monarquistas. 61
Neto do comerciante português Manuel da Cunha e filho do também comerciante Manuel Rodrigues Pimenta da Cunha e de D. Eudóxia Moreira, o futuro militar, engenheiro e escritor nasceu em 20 de Janeiro de 1866 numa fazenda de Cantagalo (Rio de Janeiro) e morreu em Piedade (RJ) no dia 15 de Agosto de 1909, mas foi com os artigos comparando os acontecimentos da Vendéia e de Canudos (no Vale do Iripiranga ou Vaza-Barris) que começou verdadeiramente a sua carreira literária. Euclides salientava que Canudos albergava “a horda dos fanatizados sequazes de Antonio Conselheiro, o mais sério inimigo das forças republicanas” e citava a Vendéia, acrescentando: “A mesma coragem bárbara e singular e o mesmo terreno impraticável aliaramse, completaram-se. O chouan fervorosamente crente (dos vendeanos) ou o tabaréu fanático, precipitando-se impávido à boca dos canhões que tomam a pulso, patenteiam o mesmo heroismo mórbido numa agitação desordenada e impulsiva de hipnotizados”. No 2º artigo, Euclides comenta a “notícia do lamentável desastre” sofrido pelos militares que haviam enfrentado “a horda dos fanatizados sequazes de Antonio Conselheiro” e compara o “desastre” aos suportados pela Inglaterra, França e Itália ou pela Espanha no combate aos insurretos de suas colônias, no início do século XIX e aguardava a vitória das tropas da República, “quando forem desbaratadas as hordas fanáticas do Conselheiro. Não foi tanto assim... mas as informações de Euclides levaram Júlio Mesquita a convencê-lo a fazer a reportagem sobre o fenômeno de Canudos e
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no dia 7 de Agosto de 1897 ele escrevia a primeira crônica, ainda a bordo do vapor Espírito Santo, pelo qual chegara a Salvador (O Estado, 18-8-1897). E mais uma trintena de crônicas seriam divulgadas, a última das quais sob o título de O Batalhão de São Paulo (26-10-1897). Em 10 de Agosto, o repórter escrevia de Salvador: “A opinião geral, entre os combatentes que voltam, é que estamos no epílogo da luta.” E em 12 de Agosto falava do regresso dos feridos, dando outros pormenores dos combate e em 13, 15, 16, 18, 19, 20 e 21. Somente em 1º. de Setembro seguiu para a “frente” do conflito, informando de Queimadas: “o dia esgota-se em preparativos de viagem”, mas voltou a escrever da mesma povoação no dia 4 e, no mesmo dia, enviou carta já de Tanquinhos. A 5 deu notícias de Cansação e, nesse dia, escreve de Quirinquinquá e, em 6, 7, 8, 9, 10 e 11 de Monte Santo, dizendo que no dia 10 já avistara “o imenso arraial de Canudos”, sublinhando: “Dois meses de bombardeio permanente não lhe destruiram a metade sequer das casas (...) E olha-se para a aldeia enorme e não se lobriga um único habitante.” A narrativa prosseguiu em 24, 26 e 27 e adiantou que nesta última madrugada a fuzilaria tinha durado duas horas e meia, adiantando que desde as 9 da noite houvera mais tiroteio até às 9 da manhã seguinte. No dia 29 de Setembro, mais tiros. E em 1º. de Outubro ‘”foi ordenado o assalto” às posições do Conselheiro, esclarecendo: “A noite desceu serenamente sobre a região perturbada do combate e rasgando o seio da noite, caindo, insistentes, sobre todos os pontos da linha do cerco, sibilando em todos os tons, sobre o acampamento, inúmeras, constantes, da zona reduzida em que se encontravam os jagunços, irrompiam as balas”. E com estas palavras Euclides da Cunha fecha a reportagem. Os paralelos que possam
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estabelecer-se entre a série de textos jornalísticos e Os Sertões são evidentes, apesar de haver pormenores do repórter que não foram repetidos na obra literária – um dos mais importantes clássicos das Letras Brasileiras. A reportagem não entra, porém, na análise da influência que Antonio Conselheiro recebeu, inequivocamente, do Sebastianismo, que pairou igualmente sobre outros místicos brasileiros (um estudo que ainda não se fez, apesar de numerosas aproximações, tanto no Brasil como em Portugal). No entanto, o escritor de Os Sertões fala claramente desse misticismo que tão profundamente é guardado pelo espírito lusíada. Euclides da Cunha comenta essa ligação dos dois povos atlânticos e documenta-a expressicamente no seu livro principal: “E no meio desse extravagante adoidado, rompendo dentre o messianismo religioso, o messianismo da raça levando-o à insurreição contra a forma republicana: “ Em verdade vos digo, quando as nações brigam com as nações, o Brazil com o Brazil, a Inglaterra com a Inglaterra, a Prússia com a Prússia, das ondas do mar D. Sebastião sahirá com todo o seu exército e o restituio em guerra. “Desde o princípio do mundo que encantou com todo seu exército e o restituio em guerra. “ E quando encantou-se afincou a espada na pedra, ella foo até aos copos e elle disse: Adeus mundo! “Até mil e tantos e dois mil não chegarás! “Neste dia quando sahir o seu exército tira a todos no fio da espada deste papel da República. O fim desta guerra se acabará na Santa Casa de Roma e o sangue hade ir até á junta grossa...” Intervém Euclides da Cunha para completar : “O profetismo tinha, como se vê, na sua boca, o mês,o tom com que desper-
tou em Frigia, avançando para o Ocidente. Anunciava, idêntico, o juízo de Deus, a desgraça dos poderosos, o esmagamento do mundo profano, o reino de mil anos e suas delícias”. E Euclides vai mais longe ao indagar: “Não haverá, com efeito, nisto, um traço superior de judaísmo?” É com base nas trovas Sebastianistas da época que Euclides reproduz algumas delas: “Sahiu D. Pedro segundo Para o reyno de Lisboa Acabou-se a monarquia O Brazil ficou atoa! E atacava os incréus: “Garantidos pela lei Aquelles malvados estão, Nós temos a lei de Deus Elles tem a lei de cão!” “Bem desgaçados são elles Pra fazerem a eleição Abatendo a lei de Deus Suspendendo a lei do cão!” “Casamento vão fazendo São para o povo illudir Vão casar o povo todo No casamento civil. E logo cantam os trovadores a pregação de Antonio Conselheiro:” “Dom Sebastião já chegou E traz muito regimento Acabando com o civil E fazendo o casamento!” “O Anti-Christo nasceu Para o Brazil governar Mas ahi está o Conselheiro P’ra delle nos livrar!” “Visita vos vem fazer Nosso El-Rei D. Sebastião Coitado daquelle pobre Que estiver na lei do cão!”
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Porém, o mais ilustre defensor do Sebastianismo foi o Padre António Vieira (a seu modo, é claro), conforme referenciamos no livros Temas Luso-Brasileiros (1963) e Pe. António Vieira, Profeta do Novo Mundo, bem como em Congressos e artigos. E oportuno será apontar a breve mas significativa menção de Fernando Pessoa: “À memória de Antonio Conselheiro, bandido, louco e santo, que, no sertão do Brasil, morreu, como um exemplo, com seus companheiros, sem
suna, que ficcionou a existência de cinco “Impérios Sebastiânicos” no Brasil, com vários reis, um dos quais foi degolado pelos vassalos que descobriram a farsa, mas nas lutas entre eles morreram cerca de 140 pessoas (em Portugal, também apareceram diversos “Reis D. Sebastião” e alguns acabaram na cadeia ou foram condenados à morte). Escritores portugueses de mérito estudaram seriamente o problema do Sebastianismo, lembrando-se os nomes do historiador João Lúcio de Azevedo, de Antonio Machado e de António Quadros, devendo figurar também nesta lista o folclorista brasileiro Luís da Câmara Cascudo e a pesquisadora Maria Isaura Pereira de Queiroz, que se pronunciou deste modo: “Anteriormente ao aparecimento de movimentos messiânicos propriamente ditos, existiu no Brasil uma crença proveniente de Portugal, o Sebastianismo, que mais tarde chegou a servir de base para pelo menos dois movimentos (...) – o da Cidade do Paraíso Terrestre e o da Pedra Bonita”.
se render, batendo-se todos, últimos Portugueses, pela esperança do Quinto Império e da vinda quando Deus quizesse, de El-Rei D. Sebastião, nosso Senhor, Imperador do Mundo.” (in Pessoa Inédito, pref. e org, de Teresa Rita Lopes). Merece esta citação vir antes do remate final de Euclides da Cunha, n’Os Sertões: “Canudos não se rendeu. Exemplo único em toda a História resistiu até o esgotamento. Expugnado palmo a palmo, na precisão integral do termo, caiu no dia 5, ao entardecer. Quando caíram os seus últimos defensores, que todos morreram; Eram 4 apenas: um velho, dois homens feitos e uma criança, na frente dos quais rugiam raivosamente cinco mil soldados.”
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João Alves das Neves é escritor, foi redatoreditorialista de O Estado de S. Paulo e professor/pesquisador da Faculdade de Comunicação Social Cásper Líbero. Tem mais de 25 livros publicados.
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A par da sua permanente pregação, eram distribuídos em toda a parte os tradicionais folhetos de cordel, que ainda hoje circulam pelo Brasil, em especial no Nordeste, versos em que os militantes de Antonio Conselheiro difundiam os seus propósitos. Aliás, outros autores têm estudado o Sebastianismo no Brasil, relevando-se dois romances, a título ilustrativo: Pedra Bonita, romance de José Lins do Rego, e A Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta, de Ariano Suas-
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POESIA
ECLIPSE VÍCTOR MANUEL MENDIOLA
Te crece la cara, cuando te aproximas a su cuerpo te crece la cara. Arrodillado entre las blancas esferas de sus pechos; bebida e zafio en la rosada duna aridente de su pubis te crece la cara. Se te ensancha en una extensión sobre su piel. Primeiro, medio día, después, todo su mundo hasta que tu rosto en un sol aproximado y lleno en la atmósfera iluminada de sus labios en el planeta encendido de su cuerpo
Víctor Manuel Mendiola é poeta e crítico literário mexicano, co- editor da Ediciones El Tucán, de Virgínia, Estados Unidos.
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