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título: O G P O C corpo editorial: V F tradução: G S B Dados Internacionais de Catalogação na Publicação () P, E A (—). O Gato Preto e Outros Contos. . Organização e tradução Braga, Guilherme da Silva. . Literatura inglesa. . Conto inglês.
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-. índice para catálogo sistemático: . Literatura inglesa .
(G S B)
B O A O O O O D M A U
reúne algumas das histórias mais signi cativas e emblemáticas de toda a produção do autor, publicadas entre e . Além de abordarem temas até hoje associados a seu nome, como a morte, o mistério, a crueldade, o horror e o fantástico, são também uma demonstração do apuro estilístico e do gênio deste que talvez seja o único escritor de histórias de terror a conquistar um lugar de nitivo no cânone da literatura universal.
E , C F Stephens omas imprimiu, em Boston, um modesto pan eto com páginas de poemas. O trabalho era assinado apenas por “um bostoniano” que sequer revelava seu nome. A tiragem era pequena, e não se sabe ao certo nem mesmo se o livro chegou a circular o cialmente. Um início pouco promissor que, como se poderia esperar, não instigou a crítica a escrever uma mísera resenha a seu respeito. O leitor já deve ter adivinhado que o tal bostoniano era o próprio E A P, que, aos anos, fazia sua inglória estreia no mundo das letras com o volume Tamerlane and Other Poems. Apesar da pouca idade, já havia passado por um bocado de incidentes para alguém tão jovem: um ano após o nascimento, seu pai abandonara a família e a mãe morrera de tuberculose; Edgar Poe cou aos cuidados do abastado comerciante escocês John Allan, que cedeu ao lho de criação o nome de sua família, ainda que Poe nunca tenha sido adotado formalmente. Aos anos, morando em Richmond, Poe entrou para a University of Virginia a m de estudar línguas, mas o jogo e as bebedeiras parecem ter exercido
sobre ele uma fascinação mais forte do que o estudo. Endividado, abandonou a universidade e voltou à sua Boston nativa, onde se alistou no exército sob um nome falso. Em meio a tudo isso, encontrou algum tempo para escrever versos, e eis que à publicação de Tamerlane… seguiram-se mais dois volumes: Al Aaraaf, Tamerlane and Minor Poems ( ) e Poems ( ) — este último nanciado pelos colegas da Academia Militar de West Point, em Nova York. O reconhecimento, contudo, só viria mais tarde. Enquanto o esperava, Poe dedicou-se a escrever contos breves. O primeiro a ser publicado foi Metzengerstein, em , quando o autor já estava decidido a encarar a literatura como pro ssão em tempo integral — o que era um feito bastante incomum à época. O primeiro resultado palpável veio no ano seguinte, quando o jornal Saturday Visitor, de Baltimore, agraciou o conto Manuscrito encontrado em uma garrafa com um prêmio. Cinco anos mais tarde chegava o momento da publicação de seu único romance, O relato de Arthur Gordon Pym. Um ano depois, a editora Lea & Blanchard publicou seu primeiro livro de contos, Tales of the Grotesque and Arabesque,
editado em dois volumes. Mas a coroação de nitiva veio, por m, no dia de janeiro de , nas páginas do Evening Mirror, quando um certo corvo crocitou pela um refrão que não foi esquecido nunca mais. Além de contista e poeta, Poe foi também crítico e resenhista literário. Em seu ensaio A loso a da composição e numa resenha escrita para os Twice-Told Tales de Hawthorne, expôs suas opiniões acerca da estrutura ideal do conto — e, de acordo com esses princípios, escreveu as peças que compõem este volume que o leitor agora tem em mãos. Tendo publicado apenas um romance — e sendo que seu conto mais longo, O mistério de Marie Rogêt, não chega bem a páginas em folhas cheias —, não surpreende que Poe tenha sido um amante dos contos curtos. Defendia que a narrativa breve em prosa devia exigir de “trinta minutos a uma ou duas horas de leitura”1 — a proverbial leitura em uma sentada. O limite mínimo justi ca-se, segundo o autor, porque “a brevidade extrema degenera em epigramatismo”2. Ainda que admitisse ser possível causar impressões vívidas com peças muito breves, Poe julgava que ,
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. A tradução de todas as
citações nessa introdução foi feita pela autor.
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essas logo seriam esquecidas. Para causar uma impressão duradoura, fazia-se necessário não ser demasiado sucinto. No outro pólo, temos o princípio que rege o tempo máximo de leitura, decorrente de um conceito pelo qual Poe é famoso: o da unidade de impressão. A ideia é a de que o leitor, por breves momentos, concentre todos os seus esforços na obra, sem nenhuma interferência do mundo exterior. “Durante a hora da leitura, a alma do leitor ca à mercê do autor”3 — uma situação desejável porque, desse modo, criam-se ao mesmo tempo as condições ideais para que o autor consiga sustentar a impressão que deseja causar com a sua obra e também para que o leitor a desfrute. Essa impressão, diz-nos Poe, é o coração do conto; é ela que norteia os passos do autor e os progressos da narrativa. Poe acreditava que o método ideal para se escrever um conto não era criar uma história para acomodar os incidentes imaginados, mas ter clara a impressão que se deseja causar e, a partir dela, inventar incidentes que, da primeira à última frase da narrativa, contribuíssem para suscitá-la. O menor desvio seria prejudicial à história. Nas palavras do próprio autor:
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E , , . E , , , . A - , .
A aplicação do método exige, entre outras coisas, que o autor escreva de trás para diante: primeiro deve pensar no encerramento do conto, para só então retroceder e criar a cadeia de acontecimentos que conduz ao desfecho — tomando cuidado para que todos os detalhes supram as necessidades especí cas da história e de seu efeito único. A originalidade seria mais um atributo desejável: segundo Poe, incorre em falsidade para consigo mesmo o autor que “ousa abrir mão de uma fonte de interesse tão óbvia e de obtenção tão simples”.5 Esse novo modo de escrever, baseado no princípio da unidade de impressão é enriquecido com elementos originais, levou
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H.P. L a declarar E A P o inventor do conto moderno.6 Poder-se-ia suspeitar de parcialidade, uma vez que Lovecraft também era dado a escrever histórias de horror e acabaria ele próprio tornando-se um dos maiores escritores de horror de todos os tempos; mas não se pode dizer o mesmo de um crítico como T.S. E, que, mesmo fazendo algumas ressalvas quanto ao autor, declara que sua obra é “um todo de forma única e envergadura impressionante”.7 Contudo, expor e praticar um novo método de escrever contos não basta para explicar a fascinação pelo horror. A imagem e o nome de E A P suscitam associações a paisagens desoladas, atmosferas lúgubres e acontecimentos macabros; evocam loucura, tristeza e um luto profundo. Sobre essa predileção, Poe também nos legou seu credo: julgava que o poema era território fértil para tratar do Belo, enquanto o conto prestava-se mais à exploração do horror, do terror e do arrebatamento — três sentimentos que norteiam muitos, senão a totalidade, dos contos ora apresentados. Em O barril de Amontillado, o leitor depara-se com diálogos fartos, um acon-
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tecimento incomum nos contos de Poe. A história introduz alguns temas importantes em sua obra: a vingança, a culpa e a loucura. Além disso, ao escrever O barril de Amontillado — este uma espécie de xerez originário da região de Montilla, no sul da Espanha — Poe, de certo modo, abordou um tema que conhecia de perto: a bebida. Em setembro de , Edgar Allan Poe casou-se, em segredo, com sua jovem prima V C, então uma garota de apenas anos. Apesar da diferença de idade (Poe tinha anos na época), consta que o autor teria sido um marido muito devotado. Assim, quando, em , a jovem esposa começou a apresentar os primeiros sintomas de tuberculose, Poe foi buscar consolo no álcool. Na história, publicada pela primeira vez em novembro de , o Amontillado, ainda que jamais apareça, desempenha um papel central; é graças à avidez com que Fortunato o busca que Montresor concretiza sua vingança. Tamanha avidez, aliás, parece contradizer as alegações feitas pelo narrador de que ele e o “amigo” seriam degustadores de vinhos nos, em vista das quantidades excessivas que ingerem e o total descaso
que dispensam as bebidas tão especiais — o que levanta uma outra questão pertinente a alguns dos narradores de Poe: será que podemos acreditar nas histórias que eles nos contam?8 Tendo sido também o escritor de famosas histórias de detetive (Os assassinatos da Rua Morgue, O mistério de Marie Rogêt), Poe não deixa de apresentar ao leitor de O barril de Amontillado um mistério, ainda que em uma inversão pouco ortodoxa para o gênero: ao nal, sabemos que um crime foi perpetrado, conhecemos seu autor e o método utilizado — mas qual foi o móvel desse crime?9 A resposta de nitiva ca a cargo do leitor. O demônio da obstinação (originalmente publicado em julho de ), começa não com uma narrativa, mas com uma prosa ensaística um tanto empolada. A história . escreveu um ensaio especi camente sobre os narradores de William Wilson, O barril de Amontillado, O gato preto e O coração delator. Contudo, não é difícil encontrar questionamentos críticos em relação à parcialidade ou mesmo à sanidade dos narradores de outros contos, como por exemplo o ensaio de .. sobre A queda da casa de Usher, no livro de Hoffman (. ) ou, em uma abordagem radicalmente diferente, o ensaio de David R. Dudley sobre o narrador de O baile da morte vermelha. Ideia presente no ensaio de citado na bibliogra a.
em si ocupada apenas a segunda metade do texto: o narrador de Poe usa todo o espaço inicial para apresentar sua tese sobre a obstinação — segundo o autor, um impulso irracional operante em todo o ser humano, que eternamente nos impele a fazer o que não devemos justamente porque não devemos. Por mais irracional que possa parecer, decerto o sentimento não será de todo estranho ao leitor, e Poe leva-o a grande efeito: queremos crer que o narrador da história não passa de um louco, em vista do crime que cometeu; no entanto, não conseguimos desvencilhar-nos de seus argumentos, que parecem fazer um sentido perverso. Mais uma vez, nada resta ao leitor senão uma certa perplexidade ambígua em relação ao verdadeiro móvel do crime.10 Logo deparamo-nos com O gato preto, provavelmente um dos contos mais célebres do autor, cuja primeira publicação remonta a agosto de . Nesta narrativa o problema da bebida é abordado de modo explícito: o álcool aparece como elemento desencadeador de uma série de crimes terríveis, não mais ligados apenas à violência e ao demônio da obstinação, mas também O crítico comenta que, ao ler Poe, muitas vezes sentimos um desejo premente de reprimir os desejos terríveis que o autor nos revela como sendo os nossos próprios (, . .). Creio ser este um bom exemplo.
ao sobrenatural. A história contada em O gato preto não pode ser reduzida a termos lógicos tal como O barril de Amontillado e O demônio da obstinação — narrativas que, a rigor, poderiam acontecer em um mundo tal como o conhecemos. Não; O gato preto nos perturba com imagens especulares e acontecimentos estranhos que deixariam até mesmo o cético mais empedernido em palpos de aranha para tratá-los como meras coincidências. O narrador desta história também conhece de perto o demônio da obstinação e fornece-nos mais alguns detalhes quanto ao seu modo de agir — detalhes que devem ser lidos com atenção, pois a in uência do demônio da obstinação é uma chave importante para compreender diversos contos da obra de Poe. O baile da morte vermelha, publicado originalmente em maio de , apresenta-nos pinceladas de um romantismo pungente. As cores, o fausto, o brilho das máscaras, um baile quimérico e um príncipe excêntrico — e, claro, a morte, terrível, onipresente e inescapável. Esta pequena peça bem pode ser lida como uma distorção perversa do ditado latino ars longa, vita brevis: não apenas a brevidade da vida pe-
rante a arte, mas também a da arte perante a morte desponta como um o condutor da narrativa.11 Um enredo que, de modo não muito direto, faz ressoarem certas notas presentes em A queda da casa de Usher. O tema da arte também é tratado em O retrato oval, um dos mais breves contos de Poe, publicado pela primeira vez sob o título Life in Death em abril de . Três anos mais tarde, em abril de , a história foi republicada como O retrato oval, uma versão revisada e mais enxuta de Life in Death, que, entre outras mudanças, omite o primeiro parágrafo do conto original, onde constavam mais detalhes a respeito do narrador. Originalmente, já no castelo, ardendo em febre e sem dormir há mais de uma semana depois de uma escaramuça com banditti italianos (esta era a origem do ferimento mencionado logo no início do conto, tal como publicado neste volume), o narrador decidia comer um pouco do ópio que trazia de Constantinopla para aplacar a febre e induzir o sono. A versão de nitiva da história afastou as possíveis conotações alucinógenas e, com a omissão de uma fraComo acontece a muitos contos de Poe, a interpretação de O baile da morte vermelha é assunto controverso. Roppolo faz um bem-humorado resumo das várias teorias — absolutamente contraditórias — sobre este conto logo na introdução de seu ensaio (, . ).
se, adotou um nal menos explicativo. Descida ao Maelström, publicado em maio de , é o único conto deste volume que não se constitui em uma história de horror. Há, decerto, o horror despertado pela opulência da natureza em sua forma mais terrível — uma força diante da qual o homem pouco ou nada pode —, mas o sobrenatural passa longe. O cenário em que a ação se desenrola é real: o “Moskoe-Ström” existe. Ainda que não seja tão terrível como Poe o descreve, os fatos conferem: o Moskstraumen — esse é um de seus nomes em norueguês — é uma das correntes mais fortes que se conhece e forma-se duas vezes por dia quando a maré muda na costa da Noruega, entre Mosken (no conto, “Moskoe”), uma ilha rochosa e desabitada próxima a Værøy (“Vurrgh”), e Lofotodden (“Lofoden”), uma localidade ao sudoeste da ilha de Moskenesøya.12 Todos esses lugares e ilhas fazem parte do arquipélago de Lofoten, onde o narrador encontra um pescador que, com uma retórica invejável, conta sua história de embate com a natureza, que, não fosse por suas propensões algo detetivescas, teria lhe custado a vida. A ideia de pesquisar sobre o assunto foi-me sugerida por uma breve nota que escreveu em sua tradução do conto para o dinamarquês.
Por m, o volume encerra com A queda da casa de Usher, considerado pela crítica um dos contos mais perfeitos que Poe escreveu. Paradoxalmente, alguns dos mesmos entusiastas dessa perfeição também tecem comentários acerca de seus “clichês góticos”13 e “cenários batidos”14. De fato, a história traz todos os elementos clássicos do romantismo exacerbado, gótico: uma velha mansão com masmorra; um artista misantropo à beira da loucura; uma jovem lânguida e enfermiça às portas da morte e um lago de águas escuras, entre outros. Como se não bastasse, o conto encerra uma sub-história medieval com direito a cavaleiro de armadura e dragão. Mesmo em setembro de , data da primeira publicação do conto, esses temas não traziam novidade alguma (O castelo de Otranto, de , considerado o romance fundador do gênero gótico, fora publicado já em ). O motivo que assegurou a A queda da casa de Usher um lugar de destaque na obra de Poe é a maestria com que o autor aplicou sua própria técnica da unidade de efeito e obteve o que, “segundo muitos críticos, é uma demonstração quase perfeita da teoria
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da totalidade de Poe”.15 Não há nenhuma descrição física gratuita em toda a história — só são mencionados os elementos que dela participam.16 Além de amarrar todas as pontas da história por meio de vários artifícios literários so sticados, como imagens que se repetem, acontecimentos que prenunciam eventos futuros, o duplo sentido da palavra “casa” e insinuações (como por exemplo a de que haveria um relacionamento incestuoso entre Roderick Usher e Lady Madeline), Poe — como já havia feito um ano antes com O verme vencedor, no conto Ligéia, e com To one in Paradise,17 no conto O visionário, de — fez A queda da casa de Usher acompanhar-se de um poema, O palácio assombrado. Ainda que este possa não ser uma das grandes realizações poéticas do autor, os versos integram-se de modo perfeito à ação do conA citação é de (. ), mas outros críticos compartilham da mesma opinião (ver, por exemplo, , . ).
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Ainda que To One in Paradise, também conhecido como To Iante in Heaven, conste na tradução do conto O visionário (e Visionary, também conhecido como e Assignation e como O encontro marcado, em português) feita por e , esta obra não consta, de forma independente, entre os poemas de Poe. Parece, assim, ter permanecido sem nome em português.
to e contribuem para realçar a unidade de efeito total.18 Por motivos vários, A queda da casa de Usher é um conto de interpretação difícil. O aspecto da loucura é recorrente na crítica do conto; outros temas algo frequentes são o sexo é, ocasionalmente, o vampirismo.19 Ainda assim, há quem julgue o conto tão variado a ponto de “despertar uma reação crítica diferente em cada leitor”.20 O fato de Poe ainda hoje despertar nosso interesse é um dos principais indicadores de sua importância e in uência literária. Oscar Mendes, tradutor de grande parte de suas obras em prosa para o português, cita, em um breve levantamento sobre a in uência do escritor, inúmeros autores dos quatro cantos do mundo que de uma forma ou de outra absorveram seus preceitos. 21 A maior parte destes é representada pela ala francófona: V, B, M, M, G, V, R, V, M, Sobre as de ciências de “O palácio assombrado” e o modo como contribuem positivamente para o conto, ver , . . Para as discussões acerca de sexo, ver os artigos de , , ... Todos esses autores à exceção de , abordam também a questão do vampirismo.
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J.-K H, G L, B ’A e V ’I-A. Ademais, também foram in uenciados G M, R S, W, S A C D — que levou o gênero detetivesco inaugurado por Poe com Os assassinatos na rua Morgue ao apogeu com o imortal Sherlock Holmes — e até, quem diria, nosso M L. Talvez um dos comentários mais acertados sobre essa in uência tenha sido feito por T.S. E, que a rma não ser possível medir o impacto que Poe teve nos escritores que o sucederam devido à sua in uência “enigmática”.22 Um autor de in uência tão profunda na literatura tampouco poderia passar despercebido pelas outras artes. Assim, Aubrey Beardsley, o ilustrador decadentista famoso por sua obra erótica, dedicou alguns de seus trabalhos aos contos de Poe; o mesmo fez Alfred Kubin, o ilustrador simbolista austríaco. Na música, Maurice Ravel declarou Poe seu mestre; em tempos mais recentes, o músico minimalista norte-americano Philip Glass compôs a trilha sonora para um espetáculo de dança baseado em Descida ao Maelström. No cinema, as lma-
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gens são inúmeras — só A queda da casa de Usher tem mais de dez adaptações para a telona, incluindo realizações um tanto improváveis, como por exemplo o curta Zánik domu Usherů, do cineasta surrealista tcheco J Š, que conta a história de Roderick Usher valendo-se apenas de objetos inanimados postos em movimento graças à técnica de stop motion. Essa contribuição tão rica, no entanto, não se traduziu em riqueza material nem felicidade para E A P. Mesmo tendo desfrutado de alguma fama após a publicação de O corvo, a batalha que o autor travava contra o álcool parecia cada vez mais estar perdida. Ademais, a pobreza material e as a ições da doença eram tão enormes que, não fossem pelos esforços empreendidos pela sra. M C, mãe de Virginia, Poe e a esposa sequer teriam o que comer. Depois de perder a esposa que tanto amava, em janeiro de , Poe envolveu-se em mais alguns casos amorosos infelizes. Em março de , publicou Eureka, que viria a ser sua última obra: trata-se de um trabalho pouco conhecido de não- cção — um logo poema em prosa — que aborda
temas referentes à natureza e a Deus. A morte de E A P sobreveio no ano seguinte; a exemplo dos contos que nos legou, permanece envolta em mistério. O pouco que se sabe é que, após passar alguns dias em paradeiro desconhecido na cidade de Baltimore, na Virgínia, Poe foi encontrado em estado deplorável no dia 3 de outubro por J W. W, na taverna conhecida como Ryan’s 4th Ward Polls. Este comunicou o ocorrido a um dos velhos amigos de Poe, dr. J E. S, nos seguintes termos: C , H , , R’ W P, E A. P, , , , . S , J. W. W.
Chegando ao local, o dr. Snodgrass, acompanhado de H H, tio de
Poe, encontrou o amigo no que julgou ser um avançado estado de embriaguez. Poe foi levado às pressas para o Washington College Hospital, onde alternou entre a lucidez e o delírio pelos dias que se seguiram, até que veio a falecer no dia , sem poder esclarecer os fatos que precederam seu ocaso. Logo a Southern Literary Messenger, revista da qual Poe tinha sido colaborador, publicou um epitá o, assinado pelo editor John Reuben ompson, em que este expressava o desejo de “compartilhar da apoteose generalizada que neste instante o consigna ao rol dos ‘heróis da história e deuses da canção’”23. Sem dúvida foi também um herói das histórias. O leitor verá.
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E de Fortunato da melhor forma possível, mas quando ele se atreveu a me insultar jurei vingança. Contudo, o senhor, que tão bem conhece minha disposição anímica, não há de supor que eu tenha feito ameaças. A vingança viria no momento certo; quanto a isso eu estava decidido — mas a própria decisão excluía toda e qualquer possibilidade de risco. Eu não desejava apenas puni-lo, mas puni-lo com impunidade. Um mal não se repara quando a justiça volta-se contra o justiceiro. Tampouco se repara quando a pessoa a causar o primeiro mal não se sente justiçada por sua vítima. ue que bem claro: nem palavras nem atos traíam minhas intenções, e Fortunato seguia acreditando na minha boa-fé. Eu continuava, como era meu hábito, sorrindo ao vê-lo, mas ele ignorava que o que agora me fazia sorrir era a imagem de sua ruína. Fortunato, ainda que em outros aspectos
fosse um homem respeitável e até mesmo temível, tinha uma fraqueza. Sentia muito orgulho de seus talentos como connaisseur de vinhos. Poucos italianos são conhecedores das artes. Seu entusiasmo, em geral, conforma-se à ocasião e à oportunidade; e é assim que defraudam milionários britânicos e austríacos. Em relação à pintura e às pedras preciosas, Fortunato, como seus conterrâneos, não passava de um charlatão; mas seu conhecimento de vinhos era legítimo. Nesse aspecto estávamos em pé de igualdade; eu mesmo também entendia de vinhos italianos, e, sempre que a ocasião se apresentava, comprava à farta. Uma tarde, durante a louca época de carnaval, encontrei meu amigo. Ele se aproximou de mim tomado de exaltação, pois já bebera um bocado. Estava vestido de bufão. Usava uma fantasia justa e listrada; na cabeça, um chapéu de formato cônico, enfeitado com guizos. Fiquei tão contente ao vê-lo que me arrependi de ter-lhe torcido a mão. — Fortunato, que alegria encontrá-lo! O senhor está com um aspecto formidável. Escute: eu recebi um barril que me venderam por Amontillado, mas tenho lá minhas dúvidas.
— Como? — exclamou ele. — Um barril de Amontillado? Impossível! E na época de carnaval…! — Tenho lá minhas dúvidas — prossegui. — Mas fui tolo o bastante para pagar o preço de um barril de Amontillado legítimo antes de consultá-lo. Não encontrei o senhor em parte alguma, mas tampouco quis perder a barganha. — Amontillado! — Tenho lá minhas dúvidas. — Amontillado! — Preciso esclarecê-las. — Amontillado! — Como o senhor está ocupado, vou procurar Luchesi. Ele tem um tino admirável para essas coisas. Logo vai me dizer se… — Luchesi não sabe sequer a diferença entre Amontillado e Xerez. — E mesmo assim há quem diga que o paladar de Luchesi rivaliza com o seu. — Muito bem, vamos. — Para onde? — Para a sua adega. — Caro amigo, não; não quero abusar da sua boa vontade. Vejo que o senhor está ocupado. Luchesi… — Não estou ocupado. Vamos!
— Meu amigo, não. Não é pelo compromisso, mas por causa dessa gripe que o a ige. A adega é muito úmida. Está toda incrustada de salitre. — Vamos, mesmo assim. O frio não é nada. Amontillado! Foi da sua boa vontade que abusaram. uanto a Luchesi, ele é incapaz de distinguir Xerez de Amontillado. Ao terminar de falar, Fortunato tomou-me pelo braço; e, com uma máscara de seda negra e um manto ajustado a meu corpo, deixei que ele me conduzisse a meu próprio palazzo. Os criados não estavam em casa; haviam-se todos abalado para os festejos. Eu avisara que não estaria de volta antes do amanhecer e dera ordens expressas para que não deixassem a casa. Essas ordens, eu bem sabia, garantiriam o desaparecimento imediato de cada um deles assim que eu lhes virasse as costas. Peguei dois archotes e, entregando um para Fortunato, conduzi-o pelos caminhos meândricos de várias suítes, até nos depararmos com a arcada que dava acesso à adega. Desci por uma longa escada em espiral, pedindo-lhe que me seguisse com cautela. Por m, galgamos o último degrau, e che-
gamos juntos ao pé das catacumbas da família Montresor. Meu amigo dava passos hesitantes, e os guizos no chapéu tilintavam à medida que avançávamos. — O barril…? — perguntou-me. — Um pouco mais adiante — respondi. — Mas veja só as teias que brilham aqui nas paredes da cave! Fortunato virou-se em minha direção e tou-me com olhos baços, que secretavam o muco da embriaguez. — Salitre? — ele perguntou, por m. — é, salitre. Desde quando o senhor está com essa tosse? — Cof! Cof! Cof...Cof! Cof! Cof!...Cof! Cof! Cof...Cof! Cof! Cof...Cof! Cof… Meu pobre amigo levou alguns minutos até que pudesse responder. — Não é nada — disse, por m. — Muito bem — eu disse, decidido. — Vamos voltar; sua saúde é preciosa. O senhor é rico, respeitado, admirado e amado; é feliz, como eu também outrora fui. Um homem que vai deixar saudades. O que viemos fazer aqui não tem a menor importância. Vamos voltar; de outro modo o senhor vai adoecer, e eu não quero ser o responsá-
vel. Além disso, Luchesi pode… — Basta! A tosse não é nada; não vou morrer por causa disso. Não vou morrer de tosse. — É verdade, é verdade — ponderei. — De fato, eu não tinha a menor intenção de alarmar o senhor sem necessidade… mas tome cuidado. Um gole desse Medoc vai nos proteger da umidade. Então eu abri o vinho, que tirei de uma la de garrafas que estavam n o chão. — Beba! — eu disse, servindo Fortunato. Ele levou o vinho aos lábios, que formavam um ricto. Parou e meneou a cabeça, e os guizos no chapéu tilintaram. — Bebo pelos mortos que descansam ao nosso redor! — exclamou. — E eu bebo à sua longa vida. Mais uma vez Fortunato tomou-me o braço, e assim prosseguimos. — Essa cave é muito extensa — disse ele. — Os Montresor eram uma família grande e numerosa. — O brasão me escapa à memória. — É um enorme pé dourado em um campo cerúleo, pisando em uma serpente feroz, que está com as presas enterradas no calcanhar. — E o lema?
— Nemo me impune lacessit.1 — Ótimo! — ele disse. O vinho fazia seus olhos brilharem, e os guizos retiniam. O Medoc também acalentara meus devaneios. Atravessamos longos corredores cheios de esqueletos empilhados, que se misturavam aos barris e às pipas nas profundezas mais recônditas das catacumbas. Mais uma vez detive-me e, decidido, agarrei o braço de Fortunato logo acima do cotovelo. — O salitre! Veja, está aumentando. Brota da cave como musgo. Aqui, estamos debaixo do leito do rio. As gotículas de umidade escorrem pelos ossos e… Chega, vamos voltar antes que seja tarde. A sua tosse… — Não é nada — retrucou. — Vamos adiante. Mas antes, mais um gole de Medoc! Abri uma ânfora de De Grâve e ofereci-lhe. Meu amigo esvaziou-a de um só trago. Seus olhos brilhavam com um forte clarão. Fortunato deu uma risada e atirou o recipiente vazio para o alto, com um gesto que não compreendi. Olhei-o, surpreso. Ele repetiu o grotesco movimento. — O senhor não entende?
“Ninguém me fere impunemente.” [N. da E.]
— Não — respondi. — Então o senhor não pertence à irmandade. — Do que está falando? — O senhor não é maçom. — Sou, sou sim — respondi. — O senhor? Não acredito! O senhor, maçom? — Sim, maçom! — Um sinal — pediu Fortunato —, um sinal. — Aqui está — respondi, tirando uma colher de pedreiro de entre as dobras do meu manto. — Pare de fazer gracejos — exclamou meu amigo, afastando-se alguns passos. — Vamos até o Amontillado. — Vamos — respondi enquanto guardava a ferramenta sob o manto e mais uma vez oferecia-lhe o braço. Fortunato se apoiou em mim, largando o peso. Seguimos nosso caminho até o Amontillado. Passamos por uma leira de arcos baixos, descemos, seguimos e, descendo mais um pouco, chegamos a uma cripta profunda, onde o ar fétido fazia com que nossos archotes apenas cintilassem em vez de queimar.
Na extremidade mais distante dessa cripta havia uma outra, menos espaçosa. Suas paredes revestiam-se de ossadas humanas empilhadas até a abóbada, no mesmo estilo das grandes catacumbas de Paris. Três lados dessa cripta interior ainda estavam ornados assim. Os ossos que recobriam o quarto lado, no entanto, haviam sido arrancados e jaziam sobre a terra, formando uma pilha considerável. No interior da parede que a remoção das ossadas pusera-nos à vista, descobrimos uma terceira cripta, um recesso ainda mais afastado, com aproximadamente um metro de largura e de profundidade e dois metros de altura. A construção do recesso não parecia servir a propósito algum; dava a impressão de ser apenas o intervalo entre duas das colossais pilastras que sustentavam o teto das catacumbas, fechado em um dos lados por uma das sólidas paredes de granito. Em vão Fortunato ergueu sua tocha embotada, tentando enxergar as profundezas daquele recesso. A luz, enfraquecida, não nos permitia ver-lhe o m. — Siga adiante — eu disse. — O Amontillado está aí dentro. uanto a Luchesi… — É um ignaro! — interrompeu meu
amigo, ao mesmo tempo em que dava um passo cambaleante para frente e eu seguia em seu encalço. Logo ele chegou à outra extremidade do nicho e, vendo que a rocha barrava-lhe o progresso, deteve-se, confuso e desnorteado. No instante seguinte eu o havia acorrentado ao granito. Na superfície da parede havia duas argolas dispostas na horizontal, distantes entre si aproximadamente sessenta centímetros. De uma pendia uma corrente curta, e, da outra, um cadeado. Passar os elos pela cintura de Fortunato e depois prendê-los ao cadeado foi uma questão de segundos. Meu amigo estava demasiado surpreso para resistir. Retirando a chave, saí do recesso. — Passe a mão na parede — eu disse; — Não há como o senhor não sentir o salitre. De fato, este é um lugar muito úmido. Mais uma vez eu rogo que retornemos. Não? Então não me resta outra alternativa senão deixá-lo. Mas, antes disso, devo dispensar-lhe todas as atenções possíveis. — O Amontillado! — exclamou Fortunato, ainda estupefato. — Eu já ia esquecendo; o Amontillado! Ao proferir essas palavras eu me ocupava com a pilha de ossos que tive ocasião de
mencionar. Espalhando-os, logo apoderei-me das pedras e de uma certa quantidade de cimento que ali se ocultavam. Com esse material e minha colher de pedreiro, pus-me com a nco a erguer uma parede logo à entrada do nicho. Eu mal havia terminado de assentar a primeira linha de tijolos quando descobri que a embriaguez de Fortunato havia-se, em boa parte, dissipado. A primeira indicação disso veio na forma de um grito grave e lamentoso que se fez ouvir no interior do recesso. Não era o grito de um bêbado. Seguiu-se um silêncio longo e obstinado. Assentei a segunda linha, a terceira e logo a quarta, então ouvi as vibrações furiosas da corrente. O barulho durou vários minutos, durante os quais interrompi meu trabalho e sentei-me sobre as ossadas para ouvir com mais satisfação. uando por m o clamor cessou, voltei à colher de pedreiro e, sem parar, assentei a quinta, a sexta e a sétima linha. A essa altura a parede já me dava no peito. Fiz outra pausa e, segurando o archote por cima da parede, projetei alguns raios enfraquecidos sobre a gura lá dentro. A sucessão de gritos altos e estridentes que irrompeu da garganta daquela gura
acorrentada parecia-me empurrar para trás com toda a força. Por um instante hesitei, tremi. Desembainhei meu orete e comecei a desferir estocadas no interior do recesso; mas um instante de re exão bastou para acalmar-me. Passei a mão pelo sólido material das catacumbas e me dei por satisfeito. Reaproximei-me da parede; respondi aos clamores. Eu os ecoava, os auxiliava, ultrapassava-os em volume e intensidade. O clamante silenciou. Era meia-noite, e minha tarefa chegava ao m. Eu completara a oitava, a nona e a décima linha. Já terminara uma parte da décima primeira e última; faltava apenas encaixar e cimentar a derradeira pedra. Com grande esforço, ergui-a; ajustei-a quase na posição desejada. Mas nesse instante emergiu do nicho uma gargalhada grave que me pôs os cabelos de pé. Foi seguida por uma voz triste, que a custo reconheci como sendo a de Fortunato. A voz disse: — Haha! Haha...Hehe! Hehe… uma ótima piada, mesmo… uma excelente brincadeira. Ainda vamos rir muito disso no palazzo… Hehe! Hehe… enquanto tomamos vinho… Hehe! — O Amontillado! — eu disse.
— Hehe… Hehe! Sim, o Amontillado! Mas não está cando tarde? Não estarão nos esperando no palazzo, Lady Fortunato e os outros? É hora de partir! — Sim — respondi —, é hora de partir. — Montresor, pelo amor de Deus! — Sim — eu disse —, pelo amor de Deus. Após essas palavras, esperei — em vão — uma resposta. Fiquei impaciente. Chamei, aos gritos: — Fortunato! Nada. Chamei de novo: — Fortunato! Outra vez, nada. En ei a tocha pela última abertura na parede e deixei-a cair lá dentro. Como resposta, ouvi apenas o tilintar dos guizos. Meu coração confrangeu-se — era a umidade das catacumbas. Apressei-me a terminar meu trabalho. Pus a última pedra em posição e cimentei-a. Por m, recobri a parede com as velhas ossadas. Passado meio século, nenhum mortal as perturbou. In pace requiescat!
, tempo, prosaica história que estou prestes a narrar, não espero e nem peço que me acreditem. Eu seria um louco consumado se o esperasse em um caso como o presente, em que meus próprios sentidos rejeitam as evidências que se lhes apresentam. No entanto, não sou louco — e nem tampouco sonho. Mas amanhã eu morro, e hoje me apraz aliviar a alma. Meu desígnio imediato é apresentar ao mundo de forma simples, sucinta e desprovida de comentários uma série de meros acontecimentos domésticos. Com suas consequências, tais eventos me aterrorizaram — me torturaram — me destruíram. Contudo, esforçar-me-ei por não os explicar. Para mim, os eventos mencionados pouco representam além do Horror — a muitos parecerão menos terríveis do que barrocos. Chegará o dia, talvez, em que algum intelecto reduzirá minha quimera ao prosaico — um intelecto mais ponderado,
mais lógico e bem menos excitável que o meu, incapaz de ver, nas circunstâncias que detalharei estupefato, mais do que uma trivial série de causas e consequências perfeitamente explicáveis. A docilidade e a humanidade de meu caráter zeram-se notar desde a mais tenra idade. A bondade em meu coração era tão aparente que me levou a ser motivo de chacota entre os amigos. Eu tinha uma afeição especial pelos animais, e meus pais presentearam-me com uma variedade deles. Era com esses animais que eu passava a maior parte de meu tempo e, para mim, não havia alegria maior do que alimentá-los e acariciá-los. Esta tendência peculiar cresceu comigo e, na idade adulta, tornou-se a principal fonte de meus prazeres. Aos que nutriram afeto por um cão astuto e el, sequer preciso elucubrar sobre a natureza ou a intensidade da satisfação que se obtém desse convívio. Há um certo desinteresse, uma certa abnegação no amor de um animal, que fala direto ao coração dos que tiveram oportunidade de testar a amizade mesquinha e a delidade diáfana do reles Homem. Casei-me cedo e tive a bem-aventurança de encontrar na minha esposa uma disposi-
ção semelhante à minha. Ao reparar no afeto que eu nutria por animais de estimação, ela não tardou a providenciar-nos agradáveis companhias. Tínhamos pássaros, peixinhos dourados, um belo cão, coelhos, um macaquinho e um gato. Este último era um animal de grande porte, muito bonito, com a pelagem toda negra e de uma sagacidade impressionante. Ao falar de sua inteligência, minha esposa, que no coração não trazia a mais remota mácula de superstição, amiúde mencionava a antiga crença popular segundo a qual todos os gatos pretos seriam bruxas disfarçadas. Não que ela jamais levasse a sério essa crença — menciono a peculiaridade sem nenhum motivo especial, simplesmente porque agora me ocorreu. Plutão — esse era o nome do gato — era meu animal e meu companheiro favorito. Apenas eu o alimentava, ele me seguia por todos os cômodos da casa. Era somente a muito custo que eu conseguia impedi-lo de me seguir também pelas ruas. Nossa amizade perdurou, dessa maneira, por vários anos, durante os quais meu temperamento e minhas inclinações — por in uência da Intemperança Demoníaca
— haviam (enrubesço ao confessar) sofrido uma guinada para pior. A cada dia eu me tornava mais ranzinza, mais irritadiço, mais indiferente aos sentimentos alheios. Cheguei a lançar invectivas contra minha própria esposa. Por m, hostilizei-a com violência doméstica. Meus animais de estimação, é claro, também deram pela mudança em meu comportamento. Eu não apenas os negligenciava, mas os maltratava também. Por Plutão, no entanto, eu ainda nutria afeto su ciente para livrá-los dos maus-tratos, o que não acontecia nem aos coelhos, ao macaco e nem mesmo ao cachorro se, porventura, atravessassem-me o caminho. E a doença se apoderou de mim — pois a doença é como o Álcool! — e por m até mesmo Plutão, que estava velho e, portanto, algo enfezado — até mesmo Plutão começou a sofrer com os efeitos deste mau humor. Uma noite, ao voltar para casa muito embriagado de uma visita à cidade, tive a impressão de que o gato evitava minha companhia. Tratei de agarrá-lo; foi quando, assustado com minha violência, o animal ncou os dentes na minha mão. Incontinente, fui tomado pela fúria de um demô-
nio. Eu estava fora de mim. Minha alma original parecia, de um só golpe, abandonar-me o corpo; e a malevolência demoníaca, exacerbada pelo gim, punha a vibrar cada bra em minha gura. Do bolso do colete, saquei meu canivete, estendi a lâmina e segurando o pobre animal pelo pescoço, extraí da órbita um de seus olhos! Enrubesço, queimo, tremo ao registrar tamanha atrocidade. uando a manhã seguinte restituiu-me a razão — quando os vapores da pândega noturna já se haviam dissipado — fui tomado por um sentimento que mesclava horror ao arrependimento pelo crime perpetrado; mas era, no máximo, um sentimento débil e incerto, e minha alma seguia imaculada. Mais uma vez entreguei-me a excessos e logo afoguei no vinho qualquer lembrança de meu ato. Enquanto isso, o gato aos poucos convalescia. A imagem da órbita vazia era, de fato, perturbadora, mas ele já não parecia sentir qualquer dor. O gato passeava pela casa como lhe era costumeiro, mas, como seria de se esperar, fugia aterrorizado na minha presença. Ainda me restava uma porção tão generosa do antigo coração que fui,
eu mesmo, o primeiro a contristar-se com a repulsa manifesta de uma criatura que tanto me amara em outros tempos. Mas esse sentimento em breve deu lugar à irritação. E então sobreveio, como se para minha derrocada nal e inelutável, o espírito da . Este é um espírito de que a losoa não se ocupa. Contudo, a certeza de que a alma vive não é menor do que a certeza de que a obstinação é um dos impulsos primitivos inerentes ao coração humano — uma das faculdades, ou propensões, primárias e indivisíveis, que norteiam o caráter do Homem. uem já não se agrou, dezenas de vezes, a perpetrar um ato vil ou tolo sem motivação alguma — apenas porque não deveria? Não temos, pois, uma inclinação perpétua, em que pese ao nosso melhor juízo, a infringir o que é Lei apenas por entendê-la como tal? O espírito da obstinação, dizia eu, sobreveio para minha derrocada nal. Foi esse insondável anseio da alma por a igir-se — por violentar sua própria natureza — por praticar o mal pelo mal — que me instigou a dar prosseguimento e, por m, a levar às últimas consequências minhas agressões contra o animal inocente. Houve uma manhã em que, a sangue
frio, passei uma corda por seu pescoço e enforquei-o no galho de uma árvore; enforquei-o com os olhos marejados e o coração amargurado pelo remorso; enforquei-o porque eu sabia que me amara e nunca me havia causado mágoas; enforquei-o porque sabia que, ao fazê-lo, incorria em pecado — em um pecado mortal tão grave a ponto de — fosse tal coisa possível — colocar minha alma imortal para além do alcance até mesmo da misericórdia in nita do Mais Misericordioso e do Mais Temível Deus. Na noite posterior ao dia em que esse ato cruel foi perpetrado, despertei de meu sono aos gritos de “fogo!”. O dossel da minha cama estava em chamas. A casa inteira ardia. Foi a muito custo que eu, minha esposa e uma criada escapamos da con agração. A destruição fora completa. Tudo o que eu tinha consumira-se nas chamas, e nada restou senão resignar-me ao desespero. Creio estar acima da fraqueza que tenta estabelecer uma relação de causa e efeito entre a minha atrocidade e o desastre. Nada mais faço além de detalhar uma corrente de acontecimentos — e não desejo que lhe falte nenhum elo. No dia seguinte ao incêndio, fui visitar as ruínas. As paredes todas, à
exceção de uma, haviam desabado. Era uma parede interna, não muito espessa, próxima ao meio da casa e contra a qual a cabeceira de minha cama cava encostada. Lá, o estuque havia, em grande parte, resistido à ação do fogo — o que atribuí ao fato de que fora aplicado havia pouco tempo. Ao redor dessa parede havia uma aglomeração de pessoas, e muitas pareciam examinar-lhe uma certa parte com grande interesse e atenção. As palavras “estranho!”, “esquisito!” e outras exclamações similares despertaram-me a curiosidade. Ao aproximar-me, vi, como que gravada em baixo-relevo sobre a superfície branca, a silhueta de um enorme gato. A representação era de uma acuidade realmente impressionante. Ao redor do pescoço do animal, via-se uma forca. uando vislumbrei esse fantasma — pois eu não o via como outra coisa —, fui tomado de espanto e terror extremos. Mas, aos poucos, o juízo veio em meu auxílio. Lembrei-me de que eu enforcara o gato em um jardim adjacente à casa. Com o clamor provocado pelo incêndio, a multidão logo enchera o jardim — e uma dessas pessoas devia haver cortado a corda e atirado o gato para dentro do meu quarto, aprovei-
tando-se de uma janela aberta. O motivo provável seria tentar acordar-me. O desabamento das outras paredes comprimira a vítima de minha crueldade contra o estuque recém-aplicado; e então a cal, com fogo e a amônia resultante da carcaça, executara o retrato tal como eu o via. Conquanto eu pudesse, assim, esclarecer a meu juízo, se não de todo à minha consciência, o estranho fato detalhado, este não deixou de causar uma impressão profunda em minha imaginação. Por meses o fantasma do gato me assombrou; e, durante esse período, insinuou-se em meu espírito um sentimento difuso que parecia, mas não era, remorso. Cheguei ao ponto de lamentar a perda do animal e pus-me a procurar, nos estabelecimentos infames que eu então frequentava, um outro da mesma espécie e de aparência semelhante, para que assumisse o seu lugar. Uma noite, sentado em um antro da mais abjeta infâmia, minha atenção dirigiu-se a uma silhueta escura, que repousava sobre a tampa de um dos enormes barris de gim, ou de rum, que constituíam a maior parte da mobília no local. Por alguns minutos eu olhara ininterruptamente para a tampa deste barril, e surpreendi-me por
não ter percebido a silhueta antes. Aproximei-me e toquei-a com a mão. Era um gato preto — um enorme gato preto — grande como Plutão e muito semelhante a ele em todos os aspectos, à exceção de um. Plutão não tinha sequer um pelo branco em toda a extensão do corpo; mas esse gato tinha uma grande, ainda que inde nida, mecha de pelos brancos que lhe recobria quase todo o peito. Ao roçar de meus dedos, o gato levantou-se, ronronou, esfregou a cabeça na minha mão e pareceu maravilhado com a atenção recebida. Por m eu encontrara o objeto da minha busca. De imediato, propus-me a comprá-lo do proprietário; mas o homem não reclamou nenhum direito sobre o gato — nada sabia quanto a ele — jamais o vira até então. Continuei com meus afagos e, ao insinuar minha partida, o animal manifestou o desejo de seguir-me. Deixei que me seguisse; no caminho até em casa, por vezes eu me curvava e afagava-lhe a cabeça. Depois de conhecer a casa, o gato aclimatou-se com notável rapidez e tornou-se o grande favorito de minha esposa. uanto a mim, logo senti a escalada de
uma aversão ao animal. Era precisamente o oposto do que eu esperara; mas — não sei como nem por quê — a afeição do gato por mim causava-me asco e irritação. Aos poucos, estes sentimentos culminaram em ódio. Eu evitava a criatura; ao mesmo tempo, um sentimento de vergonha e a lembrança de meu ato cruel impediam-me de lhe impor qualquer abuso físico. Passaram semanas sem que eu lhe oferecesse violência ou maus-tratos; mas aos poucos — muito aos poucos — passei a sentir uma ojeriza indescritível pelo felino e a evitar, em silêncio, sua odiosa presença, como quem evita o hálito da peste. O que, sem dúvida, agravou o ódio que eu nutria pelo animal foi a descoberta, na manhã seguinte à sua adoção de que, como Plutão, esse gato também perdera um de seus olhos. A circunstância, contudo, não fez mais do que torná-lo ainda mais caro à minha esposa, que, como já mencionei, era imbuída, em alto grau, da humanidade que fora outrora minha característica distintiva e fonte dos meus mais simples e mais puros prazeres. Minha aversão pelo gato, no entanto, parecia fomentar sua afeição por mim. A
criatura seguia meus passos com uma tenacidade que o leitor di cilmente poderia conceber. Bastava que eu me sentasse, e o gato aninhava-se sob a cadeira ou saltava-me ao colo, dedicando-me seus repulsivos carinhos. Se eu me pusesse de pé, para andar, o animal en ava-se entre as minhas pernas e por pouco não me derrubava; ou, a ando as garras longas e a adas em minhas vestes, escalava, desse modo, até a altura do meu peito. Em momentos como esses, ainda que eu tivesse o impulso de matá-lo com um golpe, eu me continha, em parte pela lembrança do crime anterior, mas em particular — não há por que não confessar de uma vez por todas — pelo terror que o animal me incutia. O terror não estava relacionado a um dano físico — mas eu não saberia como de ni-lo de outra forma. uase sinto vergonha ao confessar — sim, mesmo condenado nesta cela, quase sinto vergonha ao confessar — que o terror e o horror que o animal me inspirava foram agravados pela mais reles quimera imaginável. Mais uma vez, minha esposa havia-me chamado a atenção para o tufo de pelos brancos, já mencionado, que constituía a única dis-
tinção visível entre a estranha criatura e a outra que eu havia aniquilado. O leitor decerto lembra que esse tufo, ainda que fosse grande, não tinha, a princípio, nenhuma forma de nida; mas, aos poucos — de um modo quase imperceptível, que por muito tempo o juízo me zera ignorar como sendo um devaneio —, adquiriu contornos de singular nitidez. A silhueta representava o objeto que agora estremeço ao nomear — e por isso, mais do que tudo, eu sentia pavor daquele monstro e tê-lo-ia matado se não me faltasse a coragem — representava, juro, a imagem de algo hediondo — de uma coisa horripilante — do ! — ah, lamentoso e fero instrumento do Horror e do Crime — da Agonia e da Morte! Eu me sentia um desgraçado, muito além das desgraças da reles Humanidade. E que um animal atroz cujo semelhante eu aniquilara, cheio de desprezo — que um animal atroz me causasse — a mim, um homem feito à imagem do Grande Deus — um sofrimento tão cruel! Ai de mim! Nem os dias nem as noites concediam-me o alento do Repouso. Ao longo do dia, a criatura não me deixava em paz por um instante sequer; e, durante a noite, eu acordava de
hora em hora, atormentado por sonhos de um pavor indescritível, apenas para deparar-me com o hálito quente daquela coisa em meu rosto e com o enorme peso — um Pesadelo encarnado que eu não tinha forças para afastar — eternamente prostrado sobre o meu peito! Oprimido por esses tormentos, o pouco de bondade que ainda restava em mim terminou por sucumbir. Pensamentos maldosos tornaram-se meus únicos con dentes — os mais negros e depravados pensamentos. O mau humor típico do meu temperamento transformou-se em ódio a tudo e a todos; ao passo que a vítima mais comum e mais paciente dos arroubos súbitos, frequentes e incontroláveis de fúria a que eu, cego, sucumbia era — ai de mim! — minha própria esposa. Um dia, em razão de alguma tarefa doméstica, ela me acompanhava ao porão da velha morada que a pobreza nos constrangia habitar. O gato seguiu-me pelas escadas e, ao quase me derrubar de cabeça, impeliu-me à loucura. Brandindo um machado e esquecendo, em minha fúria, o terror pueril que até o momento detivera-me a mão, desferi um golpe contra o animal que,
sem dúvida, seria fatal se eu lograsse acertá-lo. Mas a mão de minha esposa aparou o golpe. Exasperado com a interferência, tomado de um furor mais que demoníaco, desvencilhei-me e enterrei o machado em seu crânio. Ela caiu morta no mesmo instante, sem um suspiro sequer. Depois de cometer o hediondo crime, dediquei-me de imediato, e a sangue frio, à tarefa de ocultar o corpo. Fosse dia ou noite, eu não poderia retirá-lo da casa sem o risco de ser avistado pelos vizinhos. Concebi projetos vários. Em dado momento, pensei em esquartejar o corpo em pedaços minúsculos e em depois destruí-lo com o fogo. Em seguida, resolvi cavar uma sepultura no chão do porão. Mais tarde, considerei a possibilidade de precipitar o cadáver no poço do jardim — de pô-lo em uma caixa, como se fosse alguma mercadoria, conforme os procedimentos normais, e então contratar um carregador para tirá-lo de casa. Por m, decidi valer-me de um expediente que julguei muito mais apropriado que qualquer um desses. Resolvi emparedar o corpo no porão — como os monges da Idade Média emparedavam suas vítimas, segundo atestam documentos.
O porão prestava-se bem a esse m. As paredes não eram muito sólidas e recentemente haviam sido recobertas com um reboco grosseiro, que a umidade das paredes não deixara secar. Ademais, em uma das paredes via-se uma projeção, motivada por uma falsa chaminé, ou lareira, que fora fechada de modo a confundir-se com o restante da estrutura. Não tive dúvidas de que poderia deslocar os tijolos da projeção, depositar o corpo lá dentro e cimentar tudo outra vez, de modo que ninguém detectasse nenhum elemento suspeito. E nesse cálculo eu não me enganara. Valendo-me de um pé-de-cabra, desloquei os tijolos e, tendo depositado o cadáver contra a parede interna, deixei-o escorado lá dentro enquanto, sem grandes di culdades, reconstruía a estrutura tal como ela se apresentara. Com argamassa, areia e bra — com todo o cuidado possível — preparei uma mistura idêntica ao reboco original e, com ela em mãos, pus-me a cimentar os tijolos. Ao terminar, senti-me satisfeito ao ver que tudo estava em ordem. A parede não dava a menor mostra de interferência. A sujeira no piso foi limpa com um rigor minucioso. Olhei triunfante ao redor e dis-
se a mim mesmo: “Aqui, nalmente, meu trabalho não foi em vão”. O passo seguinte foi procurar o animal que causara tamanha desgraça; por m eu me decidira a matá-lo. Caso eu o tivesse visto naquele instante, seu destino estaria selado; mas pareceu-me que a astuta criatura assustara-se com minha explosão de raiva e abstinha-se do confronto. Não há como descrever ou imaginar o sentimento profundo e jubiloso de alívio que o sumiço da criatura odiada propiciou-me ao coração. O gato não reapareceu sequer durante a noite — e assim, pela primeira vez desde que adentrara a casa, pude dormir tranquilo e sossegado; sim, dormi, mesmo com um assassinato a oprimir-me a alma! O segundo e o terceiro dia passaram sem que meu algoz voltasse. Mais uma vez eu respirava a liberdade. O monstro, aterrorizado, fugira para sempre! Nunca mais eu o veria! Minha alegria era completa! A culpa infundida pelo meu negro ato pouco me incomodava. Algumas investigações foram feitas, mas respondi prontamente a todas as perguntas. Chegaram mesmo a fazer uma busca — infrutífera, decerto. Eu dava minha bem-aventurança por certa no futuro.
uatro dias após o assassinato, um destacamento de polícia chegou, sem aviso, à minha casa, e mais uma vez começaram investigações minuciosas nas dependências. Eu, no entanto, certo quanto à inescrutabilidade de meu esconderijo, não sofri constrangimento algum. Os o ciais solicitaram que eu os acompanhasse nas buscas. Nenhum canto, nenhum recôndito escapou aos olhares minuciosos. Por m, desceram ao porão pela terceira ou quarta vez. Meus nervos permaneciam calmos. Meu coração batia tranquilo, como o de um inocente que dorme. Atravessei o porão de uma ponta à outra. Cruzei os braços sobre o peito e comecei a perambular de um lado para o outro. Os policiais deram a busca por encerrada e preparavam-se para ir embora. A satisfação em meu peito era tão intensa que eu mal conseguia conter-me. O desejo de pronunciar uma palavra de triunfo me consumia — o que também serviria para rea rmar minha inocência. — Senhores — eu disse, por m, enquanto os policiais subiam as escadas —, alegro-me por ter aplacado suas suspeitas. Desejo-lhes saúde, e que sejam um pouco mais corteses. A propósito, senhores, esta
casa… esta casa é muito bem-construída. (Tomado pelo desejo louco de fazer um comentário leve, eu mal sabia o que dizia.) Eu diria mesmo que se trata de uma construção excelente. Estas aqui… aonde estão indo, meus senhores? … estas aqui são paredes sólidas. E, nesse momento, o frenesi da bravata levou-me a desferir um poderoso golpe de bengala na parede, justamente sobre os tijolos que ocultavam o cadáver da esposa do meu coração. ue Deus me livre e guarda das garras do Demônio! As reverberações do golpe mal haviam sucumbido outra vez ao silêncio quando uma voz respondeu-lhes, vinda do túmulo! — um som, a princípio indistinto e quebrado, como o choro de uma criança, que logo transformou-se em um grito longo, alto e contínuo, sobrenatural e inumano — um uivo — um lamento estridente, que misturava notas de horror e triunfo, tal como se poderia ouvir apenas no inferno, da garganta dos condenados agonizantes e dos demônios que exultam com o sofrimento. Seria tolice falar sobre os meus pensamentos. uase desfalecido, cambaleei até a
parede oposta. Por um instante, os policiais no alto da escada permaneceram imóveis por conta da perplexidade e do terror. No momento seguinte, doze braços robustos punham os tijolos abaixo. A parede desabou. O cadáver, já em avançado estado de decomposição e coberto de sangue coagulado, assomava, em pé, diante dos espectadores. Sobre a cabeça, com a boca vermelha em um ricto e seu único olho de fogo, repousava a besta hedionda que me levara a cometer o assassinato e cuja voz me consignara ao patíbulo. Eu emparedara o monstro no túmulo!