Marxismo, direito e sociedade - Olavo x Alaôr

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Marxismo, Direito e Sociedade Debate entre Olavo de Carvalho e Alaôr Caffé Alves

Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo - USP 19 de novembro de 2003


Transcrição: Alessandro Cota e Bruno Yoshio Mori

Diagramação e capa: Victor Fidel A. Gonçalves

www.olavodecarvalho.org ©2014


Alaôr Caffé Alves Dados biográficos

Possui graduação em Direito pela Universidade de São Paulo (1963), mestrado em Direito pela Universidade de São Paulo (1979) e doutorado em Direito pela Universidade de São Paulo (1986). Atualmente é Professor Associado da Universidade de São Paulo, Professor livre docente da Escola Superior do Ministério Público de São Paulo, Professor - Faculdades Integradas Módulo. Coordenador de curso - Faculdades de Campinas, atuando principalmente nos seguintes temas: Meio Ambiente, Saneamento Básico, Direito Ambiental, Teoria do Direito e Filosofia do Direito.


Olavo de Carvalho Dados biográficos

Olavo de Carvalho, nascido em Campinas, Estado de São Paulo, em 29 de abril de 1947, tem sido saudado pela crítica como um dos mais originais e audaciosos pensadores brasileiros. Homens de orientações intelectuais tão diferentes quanto Jorge Amado, Arnaldo Jabor, Ciro Gomes, Roberto Campos, J. O. de Meira Penna, Bruno Tolentino, Herberto Sales, Josué Montello e o expresidente da República José Sarney já expressaram sua admiração pela sua pessoa e pelo seu trabalho. A tônica de sua obra é a defesa da interioridade humana contra a tirania da autoridade coletiva, sobretudo quando escorada numa ideologia "científica". Para Olavo de Carvalho, existe um vínculo indissolúvel entre a objetividade do conhecimento e a autonomia da consciência individual, vínculo este que se perde de vista quando o critério de validade do saber é reduzido a um formulário impessoal e uniforme para uso da classe acadêmica. Acreditando que o mais sólido abrigo da consciência individual contra a alienação e a coisificação se encontra nas antigas tradições espirituais — taoísmo, judaísmo, cristianismo, islamismo —, Olavo de Carvalho procura dar uma nova interpretação aos símbolos e ritos dessas tradições, fazendo deles as matrizes de uma estratégia filosófica e científica para a resolução de problemas da cultura atual. Um exemplo dessa estratégia é seu breve ensaio Os Gêneros Literários: Seus Fundamentos Metafísicos, onde se utiliza do simbolismo dos tempos verbais nas línguas sacras (árabe, hebraico, sânscrito e grego) para refundamentar as distinções entre os gêneros literários. Outro exemplo é sua reinterpretação dos escritos lógicos de Aristóteles, onde descobre, entre a Poética, a Retórica, a Dialética e a Lógica, princípios comuns que subentendem uma ciência unificada do discurso na qual se encontram respostas a muitas questões atualíssimas de interdisciplinariedade (Uma Filosofia Aristotélica da Cultura — Introdução à


Teoria dos Quatro Discursos). Na mesma linha está o ensaio Símbolos e Mitos no Filme "O Silêncio dos Inocentes" ("análise fascinante e — ouso dizer — definitiva", segundo afirma no prefácio o prof. José Carlos Monteiro, da Escola de Cinema da Universidade Federal do Rio de Janeiro) que aplica a uma disciplina tão moderna como a crítica de cinema os critérios da antiga hermenêutica simbólica. Sua obra publicada até o momento culmina em O Jardim das Aflições(1995), onde alguns símbolos primordiais como o Leviatã e o Beemoth bíblicos, a cruz, o khien e o khouen da tradição chinesa, etc., servem de moldes estruturais para uma filosofia da História, que, partindo de um evento aparentemente menor e tomando-o como ocasião para mostrar os elos entre o pequeno e o grande, vai se alargando em giros concêntricos até abarcar o horizonte inteiro da cultura Ocidental. A sutileza da construção faz de O Jardim das Aflições também uma obra de arte. É grande a dificuldade de transpor para outra língua os textos de Olavo de Carvalho, onde a profundidade dos temas, a lógica implacável das demonstrações e a amplitude das referências culturais se aliam a um estilo dos mais singulares, que introduz na ensaística erudita o uso da linguagem popular — incluindo muitos jogos de palavras do dia-a-dia brasileiro, de grande comicidade, praticamente intraduzíveis, bem como súbitas mudanças de tom onde as expressões do termo vulgaris, entremeadas à linguagem filosófica mais técnica e rigorosa, adquirem conotações imprevistas e de uma profundidade surpreendente. A obra de Olavo de Carvalho tem ainda uma vertente polêmica, onde, com eloqüência contundente e temível senso de humor, ele põe a nu os falsos prestígios acadêmicos e as falácias do discurso intelectual vigente. Seu livro O Imbecil Coletivo: Atualidades Inculturais Brasileiras (1996) granjeou para ele bom número de desafetos nos meios letrados, mas também uma multidão de leitores devotos, que esgotaram em três semanas a primeira edição da obra, e em quatro dias a segunda. Contrastando com a imagem de rancoroso ferrabrás que seus adversários quiseram sobrepor à sua figura autêntica, Olavo de Carvalho é reconhecido, entre quem desfruta de seu convívio, como homem de temperamento


equilibrado e calmo mesmo nas situações mais difíceis, e como alma generosa capaz de levar às últimas conseqüências, mesmo em prejuízo próprio, o dom de amar, socorrer e perdoar. Roxane Andrade de Souza


Nota: Recebi várias transcrições deste debate, mas reproduzo aqui apenas uma delas, a de Alessandro Cota e Bruno Yoshio Mori, que me pareceu a mais completa. Agradeço a eles e também aos autores das demais, que me serviram para corrigir a presente versão em alguns pontos, ainda que sem fazer uma revisão em regra. Alguns pontos brevemente mencionados neste debate receberam depois uma explicação mais detalhada nos artigos “A natureza do marxismo”, ‘marxismo esotérico” e “Diferenças específicas”, publicados no Jornal da Tarde de São Paulo. – O. de C.



MEDIADOR: Estamos recebendo dois grandes nomes da intelectualidade brasileira. À minha esquerda, o prof. Alaôr Caffé Alves, muito conhecido por nós estudantes por nos levar à crítica do Direito e do Estado e a olhar para dentro as relações sociais e enxergar a sua autêntica expressão. À direita, apresento o polêmico filósofo Olavo de Carvalho; tido pela crítica como um dos luminares do pensamento brasileiro, é autor de O Jardim das Aflições, entre outros livros, e traz hoje, à Sala dos Estudantes, sua defesa da interioridade humana contra a tirania da autoridade coletiva, fazendo deste espaço público, mais uma vez, um centro privilegiado de discussão acadêmica. Um marxista contra um liberal. A iniciar pelo prof. Alaôr, teremos trinta minutos para cada debatedor mais quinze minutos para as réplicas; em seguida, abriremos às perguntas. Prof. Alaôr e Olavo de Carvalho, neste debate da realidade econômica, política e social de nosso tempo, tomando por base o marxismo, qual função cabe ao Direito na sociedade? E no seu entendimento, quais as conseqüências de se pensar o Direito desta forma? Com a palavra, o prof. Alaôr Caffé Alves.

ALAÔR CAFFÉ ALVES: Boa tarde a vocês todos, meus alunos, e ao prof. Olavo de Carvalho. Em meia hora evidentemente não dá para dizer quase nada a respeito do pensamento jurídico, e especialmente do pensamento jurídico calcado na perspectiva de uma metodologia singular, que é a metodologia marxista. Já digo inicialmente que não sou um marxista no sentido tradicional do termo, mas tenho meu namoro com relação a certas questões, e a certas questões metodológicas, que se exprimem ao longo da vida do pensamento teórico marxista, desde Marx até hoje. É claro que, com as idas e vindas históricas, problemas graves, inclusive de situações relacionadas com frustrações políticas extraordinariamente importantes, tudo isso nos dá um grau de perplexidade. Mas, por outro lado, nos permite ver algumas coisas importantes. Eu simplesmente tive de escolher – porque meia hora é tão pouco – alguma coisa estratégica relacionada com o Direito, a sociedade e a perspectiva marxista, que é uma perspectiva que no século XX teve um domínio muito grande, especialmente na ordem política, embora não daquela forma que desejávamos que fosse. O marxismo teve distorções profundas no esquema 11


político e social, enveredou nações inteiras por caminhos que não são efetivamente (ou não eram efetivamente) marxistas, ou pelo menos na conclusão do ideal desse pensador que conhecemos, que é Marx. De qualquer forma, influiu muito a vida do século XX, e a nós cabe apenas uma perspectiva um pouco mais elementar, porque vamos tratar apenas de uma parte da sociedade e sob uma certa ótica, que é a jurídica. Marx nunca tratou do Direito. Na verdade, Marx foi um economista dos clássicos. Atuou de uma forma muito singular no plano do pensamento teórico da economia, estabelecendo seus princípios, enfim, aquilo que ele julgava adequado para explicar a sociedade em que ele vivia. Muitas das explicações de Marx já não valem mais, em função da historicidade dessas mesmas explicações. Então, é claro, temos de dar o devido valor e entender que isso não significa absolutamente compreender Marx sob o ponto de vista dogmático, mas sim o que ele pode nos fornecer, nos dar, nos oferecer para entender um pouco, especificamente, o problema social; e aqui, no nosso caso, o problema jurídico. Para colocar a questão muito rapidamente, muito estrategicamente, no ponto de possível discussão, nós temos de levar em conta as características do Direito exatamente dentro da perspectiva e da posição que postulava Marx naquela época, o século XIX, já numa dimensão estrutural social; precisamos entender o que significa a chamada estrutura social, se ela comporta ou não previsibilidade, se admite ou não as possibilidades de um conhecimento razoável do ser humano, a ponto de prever as condições objetivas de sua vida social. Nós encontramos várias ciências sob o ângulo da previsão, como a sociologia, como a própria economia, mas a questão é saber se a história pode ser prevista. Essa é uma questão importante, porque o próprio homem é considerado como ser produto da história e de sua socialidade. Se o ser humano é um produto social, a par da situação individual em que ele se apresenta também como ser biológico – ele também tem a sua individualidade singular, biológica, psicológica –, aqui também se indaga sobre a forma social que toma essa expressão biológica e psicológica. Até que ponto a socialidade determina as dimensões de vontade, os valores humanos, as crenças? Em que sentido isso ocorre? O próprio Direito é uma expressão social, pois é um fenômeno social e, sendo um fenômeno social, tem de ser estudado desde de certos critérios que permitem caracterizar uma certa regularidade no 12


Direito. É por isso que temos de considerar que o Direito pode ser um saber científico. Muitos não o admitem como um saber científico, e sim como um saber apenas prático; alguns levam em conta se é possível um saber prático ou se há apenas um conjunto de propostas gerais que não têm uma fundamentação científica adequada para verificação de sua validade, de sua verdade. Tudo isso é um problema complicado, pois se trata da metodologia do saber jurídico, focada na perspectiva da metodologia de Marx. Existem teóricos juristas sobre esse assunto. Por exemplo, na própria União Soviética, nós temos um grande teórico jurista, que sofreu os impactos da ditadura de Stalin: Pashukanis, um grande pensador que, atendendo às premissas, enfim, às diretrizes postuladas pela metodologia marxista, pela visão marxista do mundo, acabou dando-nos uma visão interessante, que depois ele mesmo transforma; ele mesmo altera seu ponto de vista, dá uma virada, e acaba morto em 1937 na União Soviética. É claro que outros filósofos existem: mais atualmente, temos os filósofos juristas como Ceromi [?], grande pensador italiano, ligado também à perspectiva marxista, e também Atienza, um grande pensador ligado às questões da ordem do método marxista do Direito. Também temos o namoro feito por Norberto Bobbio relacionado com a questão do Direito; mas ele é um neoliberal, mas de uma forma um tanto diferente daquelas relativas aos neoliberais do século XIX e mesmo do século XX. Dadas essas condições gerais, o que quero mostrar a vocês é o seguinte: como é que vamos tratar o Direito dentro de uma perspectiva não positivista? Uma delas é a marxista. O conceito de direito no sentido positivista, como vocês sabem, decorre exatamente de uma posição e definição da lei como sendo aquela que deve definir as condições e as específicas diretrizes jurídicas de uma sociedade. A sociedade deve ser produzida do ponto de vista econômico, mas também do ponto de vista jurídico mediante as posturas legais ou legislativas. O grande problema é saber como esta referência positivada do Direito se deu. Há, claro, explicações, inclusive contrapondo o positivismo ao jusnaturalismo, que são muito interessantes – mas não vamos perder tempo agora em defini-los, porque é muito complicado e precisaríamos de mais tempo –, explicações estas que não têm normalmente, por definição, a produção do espírito humano senão 13


mediante a confissão de reflexões filosóficas ou reflexões dentro do âmbito ideal do Direito. Por exemplo, a perspectiva idealista ou a perspectiva nãomaterialista corresponde ao fato de que há um espírito, espírito este que não significa o de cada um de nós, mas o conjunto dos espíritos, que na verdade são as ações culturais dos homens, particularmente, que formam o espírito que em última instância exprime aquilo que a história deve nos dar, vale dizer, o espírito na busca da liberdade. Esta postura é justamente hegeliana: a busca da liberdade produz praticamente a vida social. O Estado mesmo é uma expressão desse mesmo espírito. Essa visão é extremamente criticada pelos marxistas, que acham que a espiritualidade tem por base uma estrutura social calcada na visão da produção da vida social, na produção da vida material. Se não houver a idéia da produção da vida material da sociedade, nós não temos a idéia mais clara do próprio

espírito;

a espiritualidade

está

dinamicamente

relacionada à

materialidade. Claro que não existe um espírito isolado, solitário, como não caberia existir a matéria solitária. A matéria, para Karl Marx, não é jamais a matéria bruta, nem aquela matéria opaca; não é materialidade dos físicos gregos clássicos, a busca de um “em si”, de uma substância material no mundo. Para Karl Marx, a matéria é postulada em função da produção da vida social humana. Materialidade, portanto, é algo que é prenhe de espiritualidade, de certo modo; há uma relação dialética entre o processo de pelo qual os homens agem no mundo e transformam o mundo; e nesse processo de transformação do mundo, os homens, progressivamente, vão transformando-se a si mesmos. É isso o que acontece. Portanto, esta visão inaugura a idéia de processualidade, exatamente o oposto da visão positivista do Direito. Vocês podem ver, por exemplo, o caso de Kelsen, que trabalha uma visão fundamentalmente estática, ou, vale dizer, muito abstrata. Para ele, o Direito é substancialmente norma e é uma estrutura de sentido. A norma como estrutura de sentido não será estudada do ponto de vista de sua gênese e nem de seus fins, porque gênese e fins da norma são questões de outras ciências e não do próprio Direito. O Direito, em sua essencialidade, se exprime pela norma abstrata, por um dever-ser postulado segundo uma estrutura de coação, que é definida pelo próprio Estado. Então, um dever-ser, 14


para Kelsen, é fundamental, e ele separa fundamentalmente o dever-ser do ser. Evidentemente, essa postura não é aceita pela perspectiva marxista, porque o ser e o dever-ser se compõem numa relação dialética. Não é fácil compreender isto. É difícil. Na visão kelseniana, portanto na linha neokantiana, se faz diferença profunda e séria entre ser e dever-ser: o ser determina o dever-ser, isto é, ele é condição para o dever-ser. Ou seja, Kelsen aceita que a sociedade deve existir necessariamente para que exista o Direito, para que exista o deverser, a norma; mas o dever-ser não tem por fundamento o ser, ou seja, a relação social, a sociedade, e sim tem por fundamento um outro dever-ser, e este outro tem por fundamento um outro mais, até um dever-ser fundamental, que ele chama de norma fundamental. Portanto, para ele, a relação do dever-ser com o ser é absolutamente separada, não existe uma comunhão entre uma e outra a não ser pela condição necessária – não a condição per quam, pela qual, mas a condição necessária pela qual se deve ter uma ordem. É claro que não há Direito sem sociedade, com isto ele concorda. Kelsen era um homem extremamente ladino, profundo, grande pensador do Direito; mas tem uma visão formalizada. O Direito como estrutura de sentido organiza a vontade; o Direito, embora tendo como causa a vontade humana, porque já não pode mais ter causa divina (desde que Deus está morto, segundo Nietzsche), então não há mais essa postura de direito teologal, como também não há a idéia do direito natural, um direito que estabelecesse uma relação direta entre o ser e o dever-ser, em que o próprio ser é dever-ser. Como já não se admite isso, a única forma de se admitir o Direito é aquele imposto pelos homens. A forma de impô-lo implica uma relativização do Direito, e esta relativização do Direito imposto pelo homem (porque o homem é um ser circunstanciado, histórico, condicionado por situações singulares) evidentemente tem de ter alguma segurança a respeito do que ele faz, especialmente, no plano do Direito moderno. Para isso, Kelsen não pode aceitar senão a linguagem do discurso jurídico. É por isso que a positivação do Direito moderno é fundamental, porque é uma das formas pela qual se dá a garantia de uma certa estabilidade da forma como se diz o Direito. Diz através da lei, a lei é a positivação do Direito mediante formas escritas; por isso a codificação do sistema, porque antes não havia esta codificação tão expressiva, mas a partir do século XVII, a codificação se torna cada vez mais 15


presente, e no século XIX é praticamente universalizada. O Direito é um direito escrito, e enquanto direito escrito, tem estrutura de sentido, é um direito que tem de ser interpretado. Vejam vocês, portanto, que a estrutura econômica se torna muito complexa, determina a necessidade de os homens registrarem o Direito necessariamente, sem o que o Direito não pode ser devidamente interpretado e aplicado adequadamente. Mas tudo isso define uma situação de positividade que de certo modo extrai as possibilidades

materiais

do

próprio

Direito.

Esquece-se

Kelsen

dos

fundamentos sociais, das estruturas sociais; daí o problema de que no positivismo se faz uma separação entre Direito como norma positivada e justiça, moralidade e ética jurídica. Estas questões são muitos distintas. O próprio Kelsen aceita perfeitamente essa postura e diz que o Direito é isto. É claro que esta visão é formalizada, portanto, uma visão estática do Direito, melhor ainda, uma visão universal do Direito. De certo modo se diz o seguinte: a norma jurídica, como jurídica que é, que dá a essencialidade à compreensão do Direito, é igual no sistema capitalista, socialista, comunista, feudal, clássico: a norma é sempre a norma, é sempre o deverser. É por isso que ele, então, essencializa o Direito na norma e, de certo modo, ele segue um pouco o caminho platônico: as próprias experiências, a singularidade, a história, a factualidade, as circunstâncias, isso passa a ser como que, digamos, alguma coisa esmaecida do mundo, como que sombras da caverna. O que importa fundamentalmente para essencializar o Direito é a norma; a norma é uma estrutura de sentido, e sentido da vontade, e não a vontade é a norma. Vejam a diferença entre a postura marxista e a postura kelseniana, que é a expressão máxima, mais avançada, mais ampliada do sistema do positivismo jurídico que é dominante em todo o sistema capitalista; fora, evidentemente, os sistemas jurídicos calcados na perspectiva teológica que como nós temos ainda em vários países do mundo que a adotam, mas os países mais avançados têm esta linha muito consagrada da positividade, portanto a linha da legalidade. Ora, isso tudo só pode ser explicado a partir da idéia da processualidade, que é uma idéia dialética. Por isso eu faço sempre uma diferenciação entre o processo 16


e o produto. A idéia é normalmente separar o resultado do processo, então fica complicado porque ficamos apenas com o resultado. Em termos operacionais e práticos dá para usar o resultado muito bem de forma instrumental, e como dizia Habermas, a instrumentalidade racional permite que se manipule o resultado, mas esse resultado não será legitimamente compreendido e entendido cientificamente se não se atender para o processo pelo qual o resultado é resultado. Então, há uma processualidade no mundo e buscar o processo pelo qual alguma coisa é feita é melhor do que buscar a coisa feita por si mesma; buscar o processo pelo qual o homem se desenvolve é melhor para entender o próprio homem, aqui e agora. Por isso, o homem tem de ter a expressão do passado. Ele tem a expressão do passado, mas tem sua negatividade; porque o homem não é o passado, ele supera esse passado. Uma visão um tanto quanto hegeliana, mas a possibilidade de que o homem supere o passado é a afirmação do passado e, ao mesmo tempo, sua negação. Ele se afirma, tanto quanto um adulto afirma a criança que foi, mas não é a criança que foi, portanto, a nega. Você vê que esta relação dialética é complexa, e isso existe no plano do Direito. Quando vamos examinar esta categoria da processualidade, nós temos então de projetar a sociedade nesse processo. Daí se vê o seguinte: a sociedade, como se dá? Em que termos a sociedade entra como processo? É um problema que eu sempre levo em conta: ela é uma produção puramente espiritual, é uma produção material, ou é material e espiritual ao mesmo tempo? Parece que é conjugada. Ela não é puramente espiritual, não é apenas a história do espírito humano que define o homem; também não é uma materialidade pura e simplesmente, naquela concepção mecanicista e substancialista da matéria; mas é uma relação, uma dinâmica entre espiritualidade e materialidade. Até que muitas vezes se pergunta: mas qual é o fundamental nisto? Os marxistas consideram que, em última instância, a dimensão material (naquele sentido dito por Marx, não no sentido da matéria bruta, mas no sentido da produção, ou seja, da matéria enquanto produção do homem, portanto) é claro que tem história. Se examinarmos antropologicamente, vê-se que os homens não 17


produziram sempre aquilo que produzem hoje; produziram de forma muito diferente, produziam outras coisas, em modos diferentes de produção. As formas sociais para produção são diferentes, as relações que os homens guardam entre si são diferentes nos diversos momentos históricos. Então, você vê que, efetivamente, existe um problema que deve ser visualizado pelo teórico do Direito para saber até que ponto o próprio Direito é uma resultante deste processo. O ponto de vista marxista tem algumas colocações interessantes. Eu vou dar um exemplo bem específico para vocês entenderem o que eu quero dizer. No sistema feudal, as relações produtivas eram muito singelas; era uma economia mais natural, mais de subsistência; o valor de uso predominava; não havia valor de troca expressivo; a moeda não corria muito; os feudos centralizavam o sistema econômico. Havia, portanto, uma atuação política, ou seja, o exercício da força, porque a politicidade também tem em seu centro a possibilidade do exercício da força; isso havia, inclusive misturado com a relação econômica. A relação econômica era a produção feita pelos homens e a relação social destes homens para a produção. Mas a relação social se compunha, ao mesmo tempo, de uma dimensão econômica, pela qual se exercia um poder para transformar o mundo; e isto implica, evidentemente, utilizar a força produtiva, a mão-de-obra e os mecanismos que existem para fazê-lo, mas existia também uma atuação política, uma força política para esse exercício. Então, sabe-se que numa época escravista, como a época feudal, as relações entre os homens para produzir não eram as mesmas das épocas modernas, da época que chamamos burguesa ou capitalista, da época mercantil. É uma época diferente porque o exercício da força sobre o trabalho é praticamente muito presente. Portanto, o econômico e o político se viam de tal maneira misturados, de tal maneira acoplados, de tal maneira feridos em sua integridade, que o agente econômico era o mesmo agente político. O senhor feudal era ao mesmo tempo agente econômico, agente cultural e agente político: ele exercia a força, ele inclusive trazia a mão-de-obra à força para o trabalho se fosse preciso. Existia também outro elemento que é a ideologia, que evitava a expressão clara desta forma de explorar os homens nesse processo. Quando isto ocorre, temos uma dimensão econômica muito própria que traduz uma forma política específica da época medieval. Quando 18


entretanto – e aqui vem a tese marxista – há uma evolução desse processo produtivo, vale dizer, a dimensão tecnológica, a condição material da produção, vale dizer, a tecnologia (isto também é uma visão tecnológica de certo modo, que foi muito discutida e é muito discutida ainda hoje), quando a tecnologia avança pelas invenções que o homem vai desenvolvendo através do seu trabalho, da sua atuação direta com o mundo, buscando novas formas de cultivar o mundo, inventando várias coisas como o moinho de vento, a roda dentada, enfim, sistemas novos de articulação do poder, é claro que isto vai implicar uma maior quantidade de produto. A produção começa a se expandir, a se desenvolver, e há um conflito entre o desenvolvimento produtivo (a produção) e os limites do sistema feudal. Vale dizer, tudo era feito para o senhor basicamente, e depois, na expansão, era muito complicado fazer com que a venda dessas mercadorias (elas passam a ser mercadorias) se estendesse para todo conjunto de feudos, quando os próprios feudos estavam impondo certas situações de restrição dessa produção. Dizem os marxistas que aí existe um conflito singular entre uma força produtiva típica singular feudal e a força nascente, que seria exatamente essa dimensão calcada na perspectiva de uma nova classe, que é a classe dos burgueses. Abre-se, portanto, um período de crise em que forma e matéria, forma e conteúdo, entram em crise e aí vem uma nova fase: o homem começa a precisar de uma nova forma de produção. Era preciso distribuir a mercadoria; para fazê-lo, é preciso que todos ganhem dinheiro, que ganhem recursos para que possam consumir a mercadoria do mercado. Mas como seria possível fazer isso se as relações eram tipicamente ou servis ou escravistas? Impossível, porque não se podia distribuir recursos; para isso, era preciso criar novas formas, como a forma da moeda (a monetarização da economia), o salário (o assalariato se inicia neste processo). É evidente que neste momento tudo passa a ser diferente: o sistema econômico não mais é garantido em função de uma relação de imposição sobre o trabalho, mas era preciso fazer com que o trabalho passasse a ter agora uma outra dimensão, a dimensão de liberdade. Era preciso ser livre das peias do feudalismo, livre das peias do exercício sobre instrumentos de produção elementares, fazer com que a força do trabalho pudesse ela mesma ser autônoma, e portanto vendável. Então, é o momento em que aparece a venda na força do trabalho, e venda forma o 19


mercado, o mercado de trabalho, onde as mercadorias passam a circular, entre as quais, a própria força do trabalho. É claro que, nesse caso, a relação entre o capital e a força do trabalho não é uma relação de imposição, como acontecia no sistema anterior. Não havia capital no sistema anterior, mas havia uma imposição sobre o trabalho, pela força do senhor feudal ou do escravizador. Agora não: ela se universaliza na sociedade de uma forma completamente diferente, é preciso que os homens estabeleçam relações entre si de forma mercantil, de troca, e a troca pressupõe, basicamente, proprietários. Todos têm que ser proprietários: os proprietários do capital (do salário) e os proprietários correspondentes. Então, esses proprietários do capital tinham o salário e, do outro lado a força de trabalho dava a capacidade de trabalho e recebia o salário; com esse salário formavam o mercado e com isso então expandia-se a produção. Claro, daí começam o quê? Figuras interessantes, como a figura do contrato, que se universaliza nesta época. Então, é somente com o aparecimento de uma nova forma de produção que se universaliza a figura do contrato juridicamente. A figura do contrato pressupõe pessoas contratantes, logo, pessoas jurídicas. Há que haver portanto, a universalização das pessoas jurídicas. Há necessidade de que as pessoas sejam proprietários, porque elas só podem trocar coisas de que tenham posse em disponibilidade. Aqui vocês vêem, portanto, a liberdade: como é possível contratar sem liberdade? O suposto é a liberdade; o suposto é a igualdade. Vocês vêem, portanto, que as figuras jurídicas formuladas no direito civil especialmente (isso depois transcende para o direito público) acabam resultando de um processo de movimento das forças produtivas, da capacidade material dos homens, que determina formas diferentes. Não vejam, portanto, o contrato simplesmente como a figuração de algo abstrato situado no cosmos. Não: primeiro existem as relações de troca, depois elas vão para o código para ser reguladas de forma detalhada, singular, e garantidas. Vejam vocês, nessas poucas palavras, simplesmente, o que aflora nesta estrutura de pensamento. É uma estrutura de pensamento que propõe uma dimensão muito singular, muito interessante, que deve ser objeto de exploração. Não quer dizer que ela seja a única – cuidado com isso! Ela deve ser objeto da expansão metodológica porque ela nos dá algumas bases interessantíssimas para explicar 20


um pouco melhor os próprios institutos jurídicos. Aqui vocês vêem apenas um momento estratégico e singelo: a possibilidade de utilizar uma metodologia nova, interessante; não é nova sob o ponto de vista jurídico, não é tão universal, mas pode nos dar um conhecimento um tanto quanto mais seguro, principalmente dos processos pelos quais os institutos chegam a ser institutos jurídicos. É isto basicamente.

MEDIADOR: Neste momento passo a palavra a Olavo de Carvalho. OLAVO DE CARVALHO: Muito bem. Agradecendo muito a Thiago Magalhães e a seus colegas pelo convite, constato, em primeiro lugar, que o meu interlocutor é bem menos marxista do que me disseram, o que de certo modo facilita o trabalho, porque a análise do marxismo é sempre um problema quase impossível de resolver, pela multilateralidade dos seus aspectos. Vocês vejam que o marxismo é uma filosofia, é uma teoria econômica, é uma ideologia, é uma estratégia revolucionária, é um regime político, é um sistema ético-moral, é uma crítica cultural, é uma organização política da militância: ele é tudo isso ao mesmo tempo. Ora, vocês não encontrarão em todo o mundo, em toda a história humana, nenhum fenômeno parecido: não existe nenhum outro fenômeno que abarque de maneira unificada tantos aspectos ao mesmo tempo. Isso quer dizer que o marxismo nos coloca desde logo o problema de que não sabemos a que gênero de fenômenos ele pertence. Se buscamos a definição do marxismo, segundo o velho critério aristotélico do gênero próximo e da diferença específica, nós já nos esborrachamos no primeiro degrau da escada por não haver um gênero próximo. Isso significa que toda a tentativa de discussão do marxismo imita aquele célebre caso dos cegos com o elefante, em que um pega a perna e diz que o elefante é um poste, outro pega a tromba é diz que é uma cobra, outra pega a orelha e diz que é uma folha de papel, e assim por diante. Aqueles que analisam o marxismo no terreno econômico – o pessoal liberal tem a mania de fazer isso, o que é até covardia, porque a crítica liberal da economia marxista é tão arrasadora que este é o campo mais fácil para discussão –, quando pensam que estão ganhando a 21


discussão, o marxista passa para outra clave (por exemplo, a da crítica moral do capitalismo) e pronto: aquele belíssimo trabalho que o liberal fez está perdido. Se nós atacamos o materialismo e o anticristianismo do marxismo, também quando estamos quase vencendo a discussão, o marxista tira do bolso do colete a teologia da libertação, dizendo que é mais cristão do que nós. Então, realmente estamos lidando com um ente proteiforme e indefinido. É evidente que a análise e a crítica racional esbarram em dificuldades tão imensas que, sinceramente, não vale a pena prosseguir nesta direção. A sucessão de críticas ao marxismo que se fizeram desde o século XIX até hoje, não digo que seja inútil, mas pega somente detalhes e partes às vezes insignificantes do problema. Nós não vamos sair disso se não conseguirmos subir um grau na escala de abrangência e de abstração, e conseguirmos dizer, afinal de contas, o que é o marxismo. Então, abreviando quinze ou mais anos de estudo que me levam a esta conclusão, vamos começar por definir o marxismo pelo seu gênero próximo. Eu tenho a pretensão de ter encontrado esse gênero próximo: o marxismo não é uma filosofia política, não é uma economia, não é um partido político, não é nenhuma dessas coisas isoladamente, mas é uma cultura, no sentido antropológico do termo. Uma cultura significa um universo inteiro, um complexo

inteiro

de

crenças,

símbolos,

discursos,

reações

humanas,

sentimentos, lendas, mitos, sentimentos de solidariedade, esquemas de ação e, sobretudo, dispositivos de autopreservação e de autodefesa. Para toda cultura existente, o desafio número um é a sua autopreservação. Isto quer dizer que o marxismo, ao longo de sua história, desenvolveu uma infinidade de meios de autopreservação cujo funcionamento, inclusive material, dificilmente é objeto de curiosidade das pessoas. Não deixa de ser estranho que o marxismo, que professa tudo analisar pela sua base econômica, jamais seja estudado pela base econômica da sua própria expansão. Portanto, nós temos a impressão de que as idéias marxistas, exatamente como as idéias do antigo idealismo, se propagam no ar sem nenhuma ajuda humana e sem nenhuma sustentação econômica. Quando tive a curiosidade de perguntar isso pela primeira vez eu era um jovem militante do Partido Comunista e, à medida que fui descobrindo os dados a respeito, eu vi que o próprio marxismo era um fenômeno econômico dos mais interessantes. 22


Quando digo que o marxismo é um fenômeno sui generis, que nunca houve um complexo cultural assim tão vasto, há um outro ponto no qual o marxismo também é recordista. Quando na União Soviética se fundou a entidade chamada NKVD, que depois veio a se chamar KGB – mudou de nome inúmeras vezes –, este era um serviço de uma abrangência que aqui nós dificilmente conseguimos imaginar. A KGB, já entre as décadas de 50 e 60, tinha quinhentos mil funcionários, sem contar toda a militância comunista espalhada pelo mundo (o que era um serviço auxiliar também obrigatório), com o que se pode somar mais dez ou vinte milhões; então, quinhentos mil funcionários mais vinte milhões de auxiliares. As verbas da KGB superavam em muito as de todos os serviços secretos ocidentais somados, sendo que, por exemplo, os Estados Unidos não tiveram um serviço secreto para atuar no exterior senão durante a Segunda Guerra – os Estados Unidos desconheciam isso. Isto quer dizer que a ação da KGB na intelectualidade européia começa já na década de 20, havendo ali um festival de compra de consciências como nunca houve na história humana. A respeito disso, recomendo um livro de Stephen Koch, Double lives (“Vidas Duplas”), que trata exatamente da apropriação da intelectualidade européia pela KGB, através não só de mecanismos normais de persuasão mas realmente da compra de consciências, de chantagens etc. Isso já na década de 30. A respeito também deste período há um outro livro que eu lhes recomendo: chama-se Hollywood Party, de Kenneth Billingsley, sobre o Partido Comunista no cinema americano. Vocês já ouviram falar da expressão “lista negra”? Ela se tornou famosa no mundo quando alguns comunistas foram convocados a depor pela Câmara dos Deputados (as pessoas pensam que foi Joe McCarthy, mas nenhum artista de Hollywood jamais compareceu perante a comissão McCarthy e sim perante uma outra comissão totalmente diferente na Câmara dos Deputados): havia uma lista negra no cinema americano desde quinze anos antes, que se compunha das pessoas que não colaboravam para o Partido. Tudo isso tem aparecido nos últimos anos dez ou doze anos graças à abertura dos arquivos de Moscou.

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Eu digo isso para vocês terem uma idéia do sustentáculo econômico e organizacional da difusão das idéias marxistas. Nenhuma outra no mundo jamais teve isto a seu serviço. Notem bem que a eficácia desse mecanismo ainda nos atinge no Brasil. Onde quer que haja cinco ou seis professores marxistas – não no sentido do prof. Alaôr Caffé, pelo amor de Deus, porque já vi que ele é um homem sensato –, mas no sentido de um militante efetivamente comprometido, há uma equipe de cães de guarda fielmente empenhada em proibir o acesso ao que quer que não interesse ao Partido (qualquer que seja o nome do partido, chame-se Partido Comunista, Worker's Party, como quiser). Eu vou lhes dar um exemplo de como se faz isso: este livro chamase Dicionário Crítico do Pensamento da Direita. É uma obra feita por 140 professores universitários brasileiros; portanto, é representativa de uma classe. Esses 140 professores trabalharam durante seis anos, com verbas do CNPq e mais dois patrocínios privados, para nos dizer o que é o pensamento de direita. Ora, depois de ter sido militante do Partido Comunista, eu me dediquei durante vinte ou trinta anos a estudar também o pensamento de direita e tenho a pretensão de conhecê-lo. Muito bem, nenhum dos filósofos direitistas que eu estudei está aqui: nem Russell Kirk, nem Leo Strauss, nem David Horowitz. Em suma, todos os pensadores que fizeram a cabeça do movimento conservador nos Estados Unidos e na Inglaterra estão totalmente ausentes. O que representa o pensamento de direita aqui? Por exemplo, Goebbels, Julius Streicher (este era um maluco pedófilo que nem o partido nazista suportou: ele foi expulso do Partido Nazista por pedofilia e consta como pensador de direita!). Então, você compra uma obra baseado na confiabilidade acadêmica de seus autores e tem ali um bloqueio total do que quer que lhe possa dar uma idéia do adversário que não combine com a idéia precisa que este grupo de militantes quer impor às pessoas. Esse procedimento não é exceção. Após a abertura dos arquivos de Moscou, nós temos uma documentação enorme sobre o uso desses métodos no mundo inteiro. Ora, isto nos cria mais uma dificuldade para estudar o marxismo, porque entre seus mecanismos de defesa existe também o mecanismo de escamotear sua própria história e a história do adversário. 24


Ressalto: nunca houve uma organização de tamanho comparável, dedicada a fazer isso no sentido extramarxista ou antimarxista. Todos os movimentos, até anticomunistas, que existiram no mundo são esporádicos, locais, de curta duração e, pior, absolutamente incompatíveis entre si. Para vocês terem uma idéia, o sujeito pode ser anticomunista porque é judeu ortodoxo e pode ser anticomunista porque é nazista: vocês não vão querer que o anticomunismo sionista e o anticomunismo nazista se dêem as mãos. Por causa disto, nós dizemos que a versão marxista das coisas se apresenta de maneira tão disseminada e tão impossível de se localizar que todo o debate neste sentido falha logo de início. Não pretendo, evidentemente, resolver este problema, que está infinitamente acima de minha capacidade, mas creio que um primeiro passo é fazer com que essa figura nebulosa e proteiforme do marxismo seja substituída por uma figura mais reconhecível. Daí a minha definição do marxismo como uma cultura. Sendo uma cultura, a sua própria preservação tem prioridade absoluta e, em nome dessa prioridade, literalmente, vale tudo. Por exemplo, vou ler aqui um trechinho de um livro de Antonio Negri (vocês devem saber quem ele é), em que ele relata um debate que teve com Norberto Bobbio, a respeito da teoria jurídica do marxismo. Bobbio dizia que, no fim das contas, o marxismo não tinha teoria jurídica alguma, e Negri dizia que tinha. Diz Antonio Negri: “O problema foi que o objeto da discussão não era o mesmo, nem para os dois participantes, nem para os espectadores, nem para os partidários dos dois lados. Para Norberto Bobbio, uma teoria marxista do Estado só poderia ser aquela que derivasse de uma cuidadosa leitura da obra do próprio Marx, e ele não tinha encontrado nada disso. Para o autor marxista radical (isto é, ele mesmo, Antonio Negri), no entanto, uma teoria marxista do Estado era a crítica prática das instituições jurídicas e estatais desde a perspectiva do movimento revolucionário – uma prática que tinha pouco a ver com filologia marxista, mas pertencia antes à hermenêutica marxista da construção de um sujeito revolucionário e à expressão do seu poder”. O que nos está dizendo Antonio Negri? Ele está querendo dizer que, embora não haja realmente uma teoria marxista do Estado nos escritos de Marx – existem 25


apenas observações mais ou menos esporádicas e deduções que os discípulos podem tirar delas –, existe uma crítica marxista que está de certo modo embutida na própria prática revolucionária e na afirmação do seu poder. Ou seja, se queremos saber qual é a teoria marxista do Estado não adianta ler Marx: é necessário observar a história do movimento comunista, ver como ele se desenvolveu e ler a crítica jurídica que está embutida ali. Está compreendido? Muito bem, só que em seguida ele diz: “Se havia algo em comum entre Bobbio e seu interlocutor era que ambos consideravam o socialismo real (Sabem o que é socialismo real? É o socialismo cuja existência foi documentada na União Soviética, na China, na Hungria etc., com oitenta anos de história.) como um desenvolvimento amplamente externo ao pensamento marxista. A redução do marxismo à história do socialismo real não faz nenhum sentido”. Ora, mas o que é o socialismo real? Ele não foi precisamente a cristalização histórica do resultado da tal “prática da criação do sujeito revolucionário e a afirmação do seu poder”? Se a teoria marxista do Estado não está nos escritos de Marx e também não está no resultado da prática revolucionária, onde diabos ela está? Resposta: ela está na prática que naquele mesmo momento Antonio Negri está promovendo. É esta prática que é a legítima, as anteriores não. Isto é uma constante na história do movimento socialista. Tão logo enunciados os princípios do marxismo no Manifesto Comunista de 1848, a primeira coisa que os comunistas fizeram foi colocá-los em revisão. O revisionismo é o segundo capítulo da história do marxismo após a sua fundação, de modo que, aos revisionistas (Bernstein, Kautsky e outros), a associação que o próprio Marx estabelecia entre marxismo e violência era ilegítima. Não nos façamos ilusões: Karl Marx sempre disse que a revolução somente se faria por meio da violência, ele rejeitava qualquer possibilidade de implantar o marxismo por meio da educação ou qualquer outro meio pacífico e inclusive dizia, lamentando-se, que “para implantar o socialismo no mundo nós temos de destruir no caminho uns quantos povos inferiores”, sic. Para os revisionistas, esse apelo de Marx à violência não fazia parte da essência do marxismo, mas era uma espécie de excrescência devida a alguma perturbação na cabeça do próprio Marx. No terceiro ato, volta-se à ortodoxia marxista através de Lenin, acreditando-se que 26


é absolutamente necessário fazer a revolução através do uso da violência; e, através do uso da violência, constitui-se a duras penas, com sacrifício de milhões de militantes, sobretudo milhões de inimigos e dissidentes, o Estado Soviético. Uma vez pronto isto, o que diz a geração seguinte? “Isto não é representativo, isto não é o verdadeiro marxismo”. Então, de geração em geração, nós vamos nos perguntando: afinal, quando aparecerá o verdadeiro marxismo? A resposta pode ser dada já: nunca. Porque o verdadeiro marxismo não existe como nenhuma formulação explícita, que possa ser discutida racionalmente. O marxismo só existe como uma cultura, na qual a formulação doutrinal é apenas um elemento provisório e tático, que pode ser trocado quantas vezes se queira, de modo que o militante possa não somente mudar a história anterior, fazendo com que tudo aquilo que foi feito em nome do marxismo já não seja marxismo – e apareça um novo marxismo que ele tem na cabeça –, mas consiga também fazer até o milagre oposto: ele consegue não apenas limpar a memória de seus próprios crimes, mas consegue trazer para si os méritos do adversário. Vou lhes dar um exemplo de como se faz isso, exemplo que tirei do próprio Antonio Negri: ao falar da famosa prática da criação do sujeito revolucionário e da afirmação do seu poder, ele diz que “isso faz parte da história de um conjunto de lutas pela libertação que os proletários desenvolveram contra o trabalho capitalista, suas leis e seu Estado, desde o Levante de Paris de 1789 até a Queda do Muro de Berlim”. A Queda do Muro de Berlim integra-se na sucessão das lutas para a criação do sujeito revolucionário e para a afirmação do seu poder. Só falta então dizer que o único marxista autêntico daquela época era Ronald Reagan. O representante de qualquer religião, ideologia, partido político ou clube esportivo que se permita uma tamanha elasticidade será evidentemente condenado como charlatão ou internado como louco. Mas dentro do marxismo isto vale. Mais ainda, digo para vocês: não é desonestidade, pelo menos não desonestidade consciente. Isto é possível dentro do marxismo porque ele não é uma doutrina, não é uma teoria que se tenha de defender mediante uma discussão racional. Marxismo é uma cultura e, na defesa da unidade e preservação de uma cultura, todos os meios são legítimos. Mesmo considerações de veracidade e moralidade 27


não devem entrar na linha de conta, porque veracidade, ciência, cientificidade, moralidade e racionalidade são apenas expressões parciais da cultura, de maneira que fazer cobranças à cultura em nome delas parece uma insuportável revolta das partes contra o todo, uma quebra da hierarquia ontológica. Então, a cultura está sempre acima dos padrões de racionalidade que ela mesma cria. Sendo o marxismo uma cultura, todas as mentiras que ele venha a dizer não podem ser impugnadas no campo doutrinal, evidentemente. Porque, ou nós as impugnaremos no campo moral e, a cultura estando acima da moral, rejeitará nossa argumentação como irrelevante, ou nós argumentaremos em nome da ciência, da racionalidade etc., e a cultura como um todo jamais poderá se colocar sob a fiscalização da moral e dos bons costumes. É tão absurdo você discutir com um marxista sobre a sua cultura quanto seria você chegar numa tribo de índios do Alto Xingu e dizer a eles que algum de seus costumes é imoral. Ele não entenderá o que você diz, porque a moral para ele são exatamente os costumes da tribo, não existe uma moral supracultural a que ele possa apelar. Nós temos idéia de uma moral supracultural porque vivemos em enormes blocos civilizacionais multiculturais, recebemos o impacto de muitas culturas e podemos compará-las entre si. Isto, por um lado, nos induz ao relativismo e, por outro lado, nos induz à busca de um padrão de abstração e abrangência maiores, mais científicos. Mas, dentro da cultura marxista só vigora o que ela própria criou, e qualquer produto externo só será admitido lá dentro uma vez trabalhado e modificado no seu sentido, de modo que se torne inofensivo. Por exemplo, o pensamento conservador todo será substituído por pensadores de direita de baixíssimo nível – de preferência psicopatas nazistas que se denunciem a si mesmos na primeira palavra, porque daí fica fácil lidar com eles. Ou então, às vezes, procede-se de maneira menos grosseira, escolhendo certos adversários que até são de alto nível, mas trabalham dentro de uma faixa teórica tão limitada que fica fácil vencê-los saindo de seu quadro categorial, puxando a discussão para um outro quadro. Por exemplo, a famosa discussão com Kelsen: Kelsen está apenas tentando definir o que é o Direito considerado em si mesmo. Se existe, dentro de 28


uma sociedade, um complexo de fatores (direito, economia, moral, religião etc.), nada disso está separado, evidentemente. Porém, no que consiste cada um desses elementos? Se dissermos que cada um dos elementos não é nada, que só existe a mistura, será então a mistura de vários nadas que miraculosamente dá em alguma coisa. Na época de Kelsen, houve vários esforços em várias ciências totalmente distintas para conseguir definir seu campo de maneira, como eles diziam, “pura”. Houve o esforço de uma biologia pura com (?) e outros, houve o esforço de uma lógica pura com Edmund Husserl, e evidentemente ninguém entenderá uma palavra do que disse Kelsen se não o entender dentro deste movimento. Como o universo categorial conceitual de Kelsen é bastante limitado (e eu, particularmente, também acho que Kelsen está errado ao definir o Direito exclusivamente pela norma), é muito fácil, numa discussão com ele, apelar para conceitos sociológicos e históricos que estão infinitamente fora do quadro de referência dele e fazer de conta que o derrubou, quando simplesmente não se entrou no assunto. E assim se procede com praticamente todo mundo. Muito bem, é claro que até o momento eu não disse nada internamente sobre o marxismo, muito menos sobre as teorias jurídicas do marxismo, que eu acredito piamente que não existem. Mas vamos examinar muito rapidamente alguns conceitos marxistas. Primeiro, Karl Marx havia dito na Crítica da Filosofia do Direito de Hegel que a realidade social dos homens condiciona a sua consciência; nas Teses sobre Feuerbach, ele vai um pouco mais além e diz “determina”. Isto quer dizer que você tem uma posição na sociedade que é definida pelo seu papel no sistema de produção e você tem um conjunto de idéias que é determinado por esta posição. Quanto é determinado? Isso ele nunca diz; o máximo que ele diz é que, em última instância, é determinado. Então, qual é exatamente a relação entre posição social e ideologia? Ou existe uma relação efetiva, como diz Marx, ou posição social é uma coisa e ideologia é outra completamente diferente. Se houvesse uma conexão efetiva, então o burguês tem de pensar como burguês, o proletário como proletário, podendo haver, é claro, exceções. Mas qual seria a 29


possibilidade de que justamente o primeiro teórico da ideologia proletária não fosse um proletário? E o segundo também não? E o terceiro também não? E o quarto também não? E de que praticamente toda a liderança do movimento comunista, ao longo dos tempos e incluindo Antonio Negri, nunca fosse de proletários? Eles podem dizer que são burgueses esclarecidos e que aderiram. Mas se você tem a liberdade de aderir, outros também têm. Portanto, a conexão entre a sua condição social e a sua ideologia é de sua livre escolha, e a famosa conexão não existe. Outro item (eu poderia dar uns cinqüenta, mas vou usar um que foi lembrado aqui pelo prof. Alaôr) é o de que cada etapa histórica é marcada por um sistema de propriedade, e que dentro deste sistema existem forças de produção que crescem até um certo ponto e derrubam este sistema de propriedade – o prof. Alaôr deu como exemplo o feudalismo. Então, o feudalismo tem lá um sistema de propriedade; quando a produção cresce, ela cria uma incompatibilidade e o feudalismo cai. Perguntemme quando isso aconteceu. Respondo: nunca. O feudalismo caiu muito antes de que houvesse qualquer choque sério entre o sistema de propriedade e os meios de produção. O choque do feudalismo foi com a instituição real ou monárquica. O feudalismo foi derrubado quando o rei, que era um primus inter-pares, decide derrubar os seus pares e tornar-se o primus “sem pares”. Para isso, no caso da França, constitui-se, pela primeira vez, uma imensa burocracia estatal, com a qual nem os senhores feudais nem muito menos os burgueses puderam competir de maneira alguma. Vejam até que ponto isto é absurdo: diz-se que na Revolução Francesa a burguesia tomou o poder. A burguesia são os capitalistas, não? Façam a lista dos líderes da Revolução Francesa e vejam quantos capitalistas havia ali. Resposta: um. Os outros eram todos padres, aristocratas frustrados, jornalistas etc. Se eles não eram burgueses ou capitalistas pessoalmente, eles podiam ter algum contato com entidades de capitalistas que lhes diziam quais eram seus interesses, interesses que queriam defendidos. Mas nunca houve este contato. Isso quer dizer que, se a ideologia da Revolução Francesa era a ideologia dos capitalistas ou da burguesia, curiosamente os burgueses se esquivaram de defendê-la: ela foi defendida por pessoas que não tiveram nenhum contato com burgueses e não houve nenhum burguês vindolhes pedir que fizessem algo. 30


Isso é para lhes dar uma idéia de até que ponto a teoria marxista da história é pura mitologia e charlatanismo em cada um dos seus itens. É claro que, se em meia hora o prof. Alaôr não pode expor a parte dele (a qual vocês já estão acostumados a ouvir), muito menos posso eu provar toda essa novidade. Dêem-me alguns anos e eu provo isto com todos os detalhes. MEDIADOR: Agora a réplica de trinta minutos do prof. Alaôr Caffé Alves.

ALAÔR CAFFÉ ALVES: Bem, isso se trata de um debate, e se é um debate pressupõe um embate de algumas idéias que são postuladas. Obviamente eu não penso como o prof. Olavo no sentido tão global de cultura marxista; não considero que isto exista no sentido que foi colocado. Há uma ideologia, obviamente, e toda ideologia pressupõe sempre a restrição, em princípio, de seus membros ideologicamente preparados e geralmente tenta excluir as outras ideologias, tanto quanto a ideologia neoliberal tenta excluir a ideologia marxista – é óbvio, é a mesma falta. O importante é estudar a ideologia. É claro que, como foi colocado aqui, a ideologia de Marx nunca foi assim colocada. Marx tem até um trabalho muito conhecido, A ideologia alemã, onde ele desenvolve três conceitos de ideologia; e além disso, depois, no curso dos seus trabalhos, desenvolve outros conceitos. Aliás, a ideologia é plurívoca, tem várias idéias, vários conceitos para definição e caracterização das ideologias, mas não é tão singelo assim como se fez parecer. Obviamente, foi colocada aqui uma série de questões relativas à história do socialismo real, mas nós aqui dissemos aos senhores que isso não significa que reflita de forma nenhuma as bases autênticas do pensamento marxista. Muitos pensadores, inclusive da estirpe marxista, são de variadas concepções, de variadas formas de ver o mundo. Não existe “um” marxismo mesmo. Existe o próprio Marx: quem quiser estudar, estude Marx. Não se postula apenas inicialmente

como

uma

cultura,

porque

Marx

iniciou

seu

trabalho

cientificamente. Pode ter muita coisa errada, disso não há dúvida nenhuma.

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Mas que ele iniciou seu trabalho com uma análise científica da economia burguesa de sua época, ele fez isso. Ele não teve intenção de estabelecer uma sociedade socialista, comunista; ele nem tratou disso, na verdade. Ele sempre propugnava alguns programas em bloco, propugnava uma sociedade mais justa. Aliás, é exatamente esse o problema: como dizer que o marxismo é um conjunto de besteiras, de bobagens, se ele parte exatamente de uma realidade que até hoje é presente? Expliquem para mim a racionalidade de que o bolo social é um só e, no entanto, um grupo pequeno de pessoas amealhe esse bolo, patrimonialize esse bolo, capitalize parte desse bolo, e uma grande quantidade de pessoas não tem absolutamente nada, nem sequer o que comer. Eu já não estou partindo da literatura, nem do pensamento, nem das coisas abstratas. Estou pensando na realidade atual: milhões de brasileiros não têm o que comer, não têm recurso, e eles participaram na elaboração do bolo. Ou não? Pensar que aqueles que têm um patrimônio imenso, recursos acumulados imensos. Esses recursos vêm de fora da sociedade? De Deus? Deus seria malvado, não é? Ele dá recursos só para um grupo e não dá para os outros. Eles vêm da sociedade conjunta, de todos, e no entanto temos uma diferença tão profunda que não há sequer neoliberalismo – que hoje é dominante – que resolva esta questão, e não vai resolver. Assim como se diz que o marxismo não vai resolver, o neoliberalismo também não vai. OLAVO DE CARVALHO: Tem toda razão. ALAÔR CAFFÉ ALVES: Há anos estão aí, com mais amplitude, globalizados, e tudo o mais; e no entanto nós temos seis bilhões de seres humanos, dos quais três bilhões estão numa situação de penúria ainda, se contarmos a África, a Ásia, [palavras inaudíveis]. A pergunta é a seguinte: onde está a razão de que um grupo social mantém uma estrutura, e que o Direito está aí presente, ele é um instrumento para esse mesmo efeito? Não é que o Direito seja culpado, de forma nenhuma. Os culpados são os homens, não o Direito. Ele não tem pernas próprias. São os homens que fazem isso, somos nós. Como justificar as discrepâncias, as diferenças terríveis que existem nesse país? Dizem que é a

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nona economia do mundo, mas é a 54 a em distribuição de renda. [Palavras inaudíveis.] Perguntou-se a respeito da Revolução Francesa, e se disse que realmente não havia nenhum capitalista na Revolução Francesa. E hoje nós temos o sistema mais bem definido, mais bem claro, mais bem caracterizado que é o sistema capitalista no Brasil e em outros países e eu pergunto: vocês encontram políticos burgueses? São os capitalistas que estão lá fazendo leis? São os capitalistas que estão organizando e que estão governando o país? Não é só no Brasil, não. E aí pensar: “Aí está o PT agora. O PT é comunista, é socialista.” Claro. Não estão conseguindo fazer o que queriam fazer? Erguer até operário? Porque o sistema é tão forte, a dimensão objetiva estrutural do sistema é tão forte, que podem ter lá idéias comunistas e socialistas que não vão conseguir nada. Porque a estrutura determina isso. A questão científica está em saber quais são os elos que vão nos explicar por que é que lá, no Congresso Nacional, não temos burgueses, mas as leis são burguesas: interessante essa mecânica. Eu gostaria que se utilizassem instrumentos sociológicos, e a sociologia política inclusive, ou a sociologia eleitoral para mostrar como é que se dá isso. Quantos operários nós temos no Congresso? Nenhum, ou poucos, contam-se com as mãos. No meio rural? Pouquíssimos. E mesmo os restantes não são burgueses capitalistas. Não são os pró-capitalistas. Eles nunca quiseram… Aliás, o empenho deles não é participar no sentido do proscênio político. Já tem toda uma dimensão estruturadora do sistema que se chama “forma de produção ideológica”. É para isso mesmo. Vamos criticar, por exemplo, as novelas, a mídia, os jornais, os jornalistas. [Palavras inaudíveis.] Criticar todos, porque todos participam desse processo de fazimento, realização e estruturação das idéias dominantes. Idéias estas que definem exatamente essa profunda injustiça que existe. Então nós temos de nos revoltar contra isto. Sei lá que idéias vocês vão usar, se idéias marxistas, idéias neoliberais, idéias liberais, idéias social-democratas. Não importa. O fato importante, fundamental é este, gente: nós temos de vencer as discrepâncias, as diferenças sociais profundas que existem nesse país. Isto é muito grave, sério. Pouco importa, inclusive, o esquema de idéias que vamos

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utilizar. É natural que diante de uma situação dessas, os homens tendem sempre a tentar equacionar o problema mediante seus conceitos, mediante sua compreensão, como fazer isso tudo, como resolver essa questão da distribuição da renda. Não é fácil. Dentro do regime de mercado, que é tão defendido pelos neoliberais, nós não encontramos nenhuma solução. Até agora nunca houve isso. Pelo contrário, no sistema de mercado temos uma diferença tão profunda entre os homens: entre muitos que não têm absolutamente nada, que não vão ter mais nada do que têm, isto é, nada, e aqueles que têm muito, que vão ter a chance de ter, fora isso, mais e mais. É a lei da acumulação. Ela existe ou não existe? É a lei do mercado: quem tem recursos, tem como produzir a liberdade, ou não tem? Quem tem recursos vai à Europa, vai à Ásia, vai conhecer o fruto de culturas diferenciadas, vai expandir sua personalidade, vai ter educação, vai ter a medicina, vai ter a saúde, vai ter a sua cultura acrescentada, porque tem recursos. E quem não tem? E quantos não têm? Não têm nem recursos para ter saneamento básico, nem água destinada à sua higiene. Minha gente, isso é uma realidade, eu não estou falando aqui como se fosse uma construção silogística ou teórica. Isso é real, e o mercado está ali, defendido, pois é ele exatamente por enquanto assim jogado às suas próprias forças, autonomicamente desta forma como ele é, que ele é sempre um indutor da miséria e das diferenças profundas sociais. Isso não é só o Brasil, não. É em todo o mundo, inclusive nos Estados Unidos. Lá até é um pouco melhor em relação, porque o país é riquíssimo. Falou-se da KGB. Falou-se da KGB. Claro, quem é que vai aceitar uma coisa como esta? A KGB. Quem é que vai aceitar um negócio desses? Ninguém vai aceitar. Ninguém, na boa consciência dos homens. Está correto o professor, o doutor Olavo. Mas é preciso também dizer o seguinte: hoje, os Estados Unidos põem 450 bilhões de dólares anualmente no seu orçamento militar. Não estou falando em KGB, não. Não estou falando de espionagem. Estou dizendo de máquinas mortíferas: sabe aquelas que caem bombas, sabe aquelas que apertam botões e vai matando gente? 450 bilhões de dólares. Já imaginaram o que é 450 bilhões de dólares em um ano? 450 bilhões de dólares! Se isto fosse distribuído para toda a África em três tempos nós teríamos o desenvolvimento de toda a África. É claro que não vão fazer isso, pois eles vão cuidar eles próprios dos seus

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próprios problemas. Fazer isso significa criar opressividade para eles. Imagine o que seria 450 bilhões de dólares aqui no Brasil, de vez; basicamente o país inteiro há muito está precisando. Isso em um ano! Mas eles jogam isso em um ano na máquina, na máquina de guerra! Então, isto está muito claro. Se nós estivéssemos importando recursos deste tipo, não há dúvida que teríamos chances enorme de ter um desenvolvimento enorme imediatamente. Eu diria que, em dez, quinze ou vinte anos, ou trinta anos no máximo, teríamos desenvolvido o globo inteiro; mas esse desenvolvimento não é comportado pelas relações produtivas do sistema capitalista. Este sistema, como vocês vão vendo, não só os 450 bilhões, são bilhões e bilhões derramados não só no exército, mas na estrutura social americana, na NASA. A pergunta é a seguinte: vocês já viram aquelas coisas maravilhosas que tem lá? Aquilo custa dinheiro, aquilo custa recursos. Vocês acham que aquilo tudo vem dos Estados Unidos? Vem do povinho que vai lá, que trabalha e que portanto faz seus programas espaciais, o seu programa de atuação militar, a sua dimensão de políticas sociais? Nada! É do mundo inteiro que eles tiram! ALGUÉM DA PLATÉIA: A China também, né, professor? ALAÔR CAFFÉ ALVES: Mesma coisa. Que seja. A mesma coisa. Aí vocês vêem portanto o que eu quero dizer. Eu não estou falando do povo dos Estados Unidos singularmente; eu estou dizendo, gente, que o sistema não funciona de outra forma. Vocês, jovens, estão vivendo na carne hoje o problema do desemprego. O desemprego não é uma questão simplesmente conjuntural, é uma questão estrutural hoje. Não é no Brasil, é no mundo inteiro. O fenômeno da globalização: esse desemprego é decorrente do quê? Da introjeção de tecnologia e ciência no processo produtivo. É muito óbvio. É muito fácil isso. É necessário. Mas na medida em que se vão introjetando sistemas cada vez mais sofisticados de produção, vai se expulsando cada vez mais mãode-obra do processo produtivo. E não é só expulsão no primeiro ou no segundo setor da economia, na indústria ou no setor rural; também no terciário: cada vez mais vocês têm dificuldades em ter engajamento. E o sistema não tem como fazer, porque ele está entrando em contradições profundas. Ele é contraditório 35


na sua própria realidade estrutural, na sua dinâmica. Ele é contraditório mesmo. Ele não vai criando só mercado; ele produz cada vez mais e mais, com máquinas, com automatização, com informática, com a robótica, com tudo. Mas os homens vão e se apresentam às fábricas. Mas como pagá-los, a esses homens, para que eles possam formar o mercado, a fim de consumir essas coisas todas produzidas pelas máquinas sofisticadas? Como? A resposta é: não tem como. E então não podemos avançar mais com a economia, não podemos avançar mais com a tecnologia, com a ciência. Nós precisamos distribuir renda. Isto decorre exatamente da perspectiva, da visão deformativa do que nós chamamos de materialismo histórico: o desenvolvimento das forças produtivas está definindo uma nova relação entre os homens. Como sair dessa? É claro que pode levar dez dias, levar dez anos, ou mesmo uma centena de anos; isso aí nunca se sabe, isso é um produto histórico. Mas que as contradições internas o estão corroendo, estão. Não porque os homens assim queiram; é porque a estrutura social e econômica está definindo esta forma: as relações entre os homens mediante os processos produtivos e os instrumentos de produção. Talvez não comporte mais esse tipo de relação; uma outra relação onde haja uma [palavra inaudível] cada vez maior, uma produtividade cada vez mais sofisticada, mas uma distribuição que ainda não se enfrentou. Não se distribui mais pelo salário, então vai se distribuir de que jeito? Como? Por quê? Conte para mim. Conte. De que jeito vai distribuir? Isso é decorrente, inclusive, da econômica; não é teoria, nem teorético, de jeito nenhum. Com isto todos estão preocupados, inclusive os teóricos burgueses neoliberais; eles sabem disto, estão percebendo isso, certamente, claro. Ainda se fala no caso do Estado, como se só o Estado aparecesse; como se não houvesse nenhuma alteração do sistema feudal que passou para o sistema capitalista, burguês, sem uma modificação específica. O Estado, inclusive, foi tomado primeiramente pelos nobres que atuavam de forma absoluta, mas não se percebeu aqui que o Estado apareceu justamente neste momento como Estado absoluto. Por que é que o Estado apareceu? Apareceu justamente na continuidade do que eu havia dito antes, e é preciso analisar, é preciso trabalhar

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bem a análise analiticamente. O que eu disse? Eu disse que o processo de desenvolvimento das forças produtivas determinou que os homens ampliassem o mercado, portanto aparecem neste momento as forças mercantis progressistas que avançaram. Não vão pensar que o capitalismo apareceu como uma mazela. Foi muito bom, sem o capitalismo teríamos avançado para fora do planeta; tivemos enormes progressos; o individualismo se criou no sistema, quando nobre, adequado, compreendido e evidentemente praticado dentro das condições éticas, tudo bem. Infelizmente o próprio sistema exacerbou esse processo pela busca do mundo, pela busca exacerbada da acumulação desenfreada. Porque o Estado não podia aparecer neste momento para coibir o processo produtivo. Vejam uma coisa importante, para que tenhamos uma idéia clara. Quando o trabalho não é mais posto forçadamente… Porque no sistema feudal, o que aconteceu, isso precisa ser explicado concretamente: o sistema feudal, o sistema de trabalho, da produção da vida material dos homens era feito em função de uma imposição por parte de uma força política, que também era econômica. Como eu disse, os nobres eram detentores não só do esquema econômico, eram patrimonialistas em função do sistema feudal, como também esses nobres eram os políticos do sistema, ou seja, aqueles que podiam manipular a força para impor o trabalho ao produtor direto. Quando, então, há o desenvolvimento progressivo da economia, e era preciso fazer a distribuição de renda a fim de criar mercado, em função do desenvolvimento das próprias forças produtivas, era preciso tirar, extrair, afastar a questão política da questão econômica. Não era possível manter o econômico e o político conjugados à força daquele que produzia, não só por razões de interesse econômico, mas também por questões de ordem política, atuava para que o trabalho fosse força. Na hora em que o trabalho começa a ser assalariado (o que precisava sê-lo, para que o sistema funcionasse), aí ninguém admite a liberdade e a igualdade necessárias, porque senão não há contrato. É por isso que neste período começa a pensar-se ideologicamente no chamado contratualismo: ele se expande entre os teóricos do contratualismo porque o contrato passa a ser uma figura, um instrumental fundamental para aproximar capital e trabalho. Não havia isso antes. Por isso é

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que é preciso estabelecer que todos sejam sujeitos de direito, direitos e obrigações. O capitalista vem e diz: “Você me traz sua força de trabalho e eu lhe pago o seu direito de salário.” O trabalhador diz: “Está certo. Eu entro com meu trabalho, eu sou obrigado a empregar a força de trabalho, tenho obrigações, mas eu tenho de receber o meu salário. Eu tenho o quê? É evidente. Direitos e obrigações.”. E isso se universaliza por toda a sociedade, justamente nos séculos XV, XVI e XVII. E nesse período, o que acontece com o político? Ele vai se destacando e se concentrando não mais na sociedade descentralizada, como havia antes; ele se concentra no poder absoluto dos reis, e aí é que aparece o Estado pela primeira vez. Um Estado ainda não adequado à burguesia totalmente, mas como efeito de um processo que correspondia exatamente a esse movimento do capital. Era a necessidade de que o trabalho, o contratado, deveria ser contratado e não forçado, conseqüentemente não podia haver a política no processo, mas a política deveria estar presente a todo instante em que o contrato fosse rompido. Aí era preciso evocar e convocar o político, ou seja, a força, para que o sistema continuasse a funcionar. Como isso é apenas formalizado em nível de mercado e não em nível da produção, porque a produção ainda continuava a envolver uma inequação profunda (porque é lá no processo produtivo que havia o processo expropriatório de acumulação), era preciso manter uma estrutura de força para qualquer tipo de emergência que houvesse; caso grande parte dessa população que tinha de entregar a sua parte de trabalho para acumular a outra parte, era preciso que houvesse a emergência possível de uma força, caso falhasse o esquema ideológico. O esquema ideológico começou a desenvolver-se amplamente para que todos aceitassem a situação como natural. Mas a miséria, às vezes, alcança níveis tão altos que o sistema burguês hegemônico tem de ter meios para poder resolver e neutralizar qualquer tipo de crise. E como vai fazer isso senão através do Estado, através da força centralizada do Estado que só aparece no sistema burguês. O Estado é um fenômeno tipicamente moderno. Não havia Estado na época feudal; havia organização política, isso havia, mas não Estado. Não havia Estado na época clássica, não existe Estado romano. Tinha Império romano, com uma dimensão descentralizada enorme, por causa dos senhores de escravos, que atuavam diretamente de suas fazendas; eram as famílias que tinham atuação de poder 38


político. Isso não acontece mais no sistema burguês, não acontece mais no sistema moderno, onde o sistema então acrescenta o ponto de vista mercantil, e vai se desenvolvendo até chegar à Revolução Industrial; e isto se concentra enormemente num processo imenso em que o Estado faz presente o gendarme, o Estado-polícia, para evitar qualquer tipo de proposta que viesse a conflitar com os interesses da política dominante, o que aconteceu mesmo já o século XIX. O próprio Marx, que postulava idéias estranhas a esse sistema, foi perseguido, e teve de, inclusive, tomar posições complicadas nesse processo, e outros movimentos, é claro, movimentos operários nessa época do século XIX. Aí vocês vêem que não há nada de culturalidade abstrata. É preciso agora (eu disse isso, é claro, de forma muito genérica) mas eu preciso basear agora os erros concretos de cada coisa. Eu explicaria para vocês o contrato, explicaria a hipoteca, explicaria o aluguel, explicaria tudo a partir dessas estruturas! Não posso fazê-lo porque tenho apenas meia hora. Portanto, não é uma questão abstrata, ampla, múltipla simplesmente, é uma questão que envolve métodos especiais singulares. Outra questão que se colocou a respeito de Kelsen, que se colocou muito bem aqui, porque Kelsen – eu mesmo disse a vocês que ele era muito inteligente –, ele era um leitor fruto das condições do chamado positivismo, do primeiro quartel do século XX. Ele postulava a idéia de ciência pura, a partir de uma idéia do positivismo como ciência do objetivo. A ciência tem de ser objetiva, de tal maneira a dizer o que a coisa é, não o que ela deve ser. Ele dizia que se há ciência do direito, essa ciência deve dizer o que é o direito. O direito dele lá, como objeto, é dever-ser, é norma, não há dúvida – pelo menos isso, pelo menos isso. Mas o direito como ciência tem que dizer o que ele é, e como é, significa dizer o que é o dever-ser, como é a norma. E ele, muito bem aparelhado com a perspectiva e a visão dos positivistas, não só dos positivistas jurídicos, mas dos positivistas filosóficos, os filósofos positivistas, que tentavam buscar a extração do sujeito em relação ao objeto, evitar a mistura de sujeito e objeto, pelo contrário, neutralizar o mais possível o sujeito para que o objeto se sobressaísse

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claramente como algo objetivo. Então, tem de se buscar o direito objetivo. Claro está que esta dimensão foi fracassada, mas não por ele, Kelsen, não por ele, mas pela crítica da própria sociedade. Já mesmo nas épocas do começo do século XX, nós encontramos por exemplo um [?], um François [?], esses pensadores, esses sociólogos, que tentaram quebrar a condição formal de Kelsen. E Kelsen ainda diz assim: “Não, mas a questão sociológica não é uma questão jurídica na sua essência.” Nós sabemos muito bem disso. Muito bem! Essa história é muito bem contada! Efetivamente, é claro que Kelsen queria só uma pequena questão, que é a questão do que é, na sua essência, o jurídico. O problema é que ele não foi aceito, não por ele mesmo, mas por vários pensadores que chegaram à conclusão de que o Direito não pode ser puro quanto à sua tese, quanto à sua teoria. O Direito em si mesmo, o Direito como objeto, é claro que ele nunca foi puro, e o próprio Kelsen sabia muito bem disso. O Direito é impuro por natureza; pura é a teoria sobre ele, isto é que é puro. Mas é válida do ponto de vista – agora veja o que eu digo – epistemológico. Como uma crítica epistemológica, é válido consignar essa forma de

compreender

o

mundo?

Talvez

fosse

válida

naquele

momento.

Compreensível! Mas depois da Segunda Guerra Mundial, com a conturbação imensa do humano, do homem, já não se pensava mais em buscar ciências puras, isoladas, solitárias, cada uma de per si. Percebeu-se que os homens tiveram mazelas profundas exatamente por não se comunicarem não só eles, como com as próprias ciências. Daí vem toda a questão da interdisciplinaridade que vocês conhecem hoje, que é um problema muito complexo, muito difícil, que não se soluciona facilmente. Buscar o Direito na sua expressão a partir da forma interdisciplinar, em que envolvemos não só a juridicidade como norma, mas também o que é a dimensão social, econômica, e assim por diante. Como compreender uma realidade plenamente senão descendo às suas próprias raízes? Isso é como imaginar que somente o estudo do caule lhe dê a realidade da planta. Não é isso. E o caule sozinho existe? Não. Ele só existe em ligação com a planta, e este só existe em ligação com as suas raízes. Vejam, então, os senhores que, efetivamente, é claro que há muitas outras questões a serem colocadas, como afinal eu queria colocar que é a da violência, da revolução.

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Marx nunca pensou só na revolução no sentido da violência. Pelo amor de Deus! Foi colocada aqui a questão das teses sobre Feuerbach. Nas Teses sobre Feuerbach, Marx coloca muito claramente o que ele entende por revolução. Ele não fala especificamente de revolução: ele fala em transformação pelas raízes. A revolução não tem de ser necessariamente violenta, de jeito nenhum. Pode ser outra. Por exemplo, essa questão que eu coloquei agora há pouco, que é a da limitação do próprio sistema econômico capitalista que não pode superar-se a si próprio, vai implicar uma revolução, uma transformação profunda. Isso não precisa ser pelo caminho das armas. É até bom evitar isso, evitar a morte das pessoas. Quanto mais as pessoas forem conscientes, mais educadas, mais claras em ver o mundo, tanto mais facilmente poderemos fazer a transmutação. Por isso é que nós preferimos então a democracia, não uma democracia simplesmente representativa, mas uma democracia participativa que permite a todos nós trabalharmos o mercado. Nós vamos contrapor a democracia participativa não à ditadura, não aos meios autocráticos apenas, mas também, gente, opô-la ao mercado, esse mercado terrível que não tem força nenhuma que o coíba. É preciso coibi-lo através do quê? Da conjunção, do consenso da comunidade, para buscar melhor a expressão do valor do uso social! Evitar que esse valor de troca toque todo mundo. [Palavras inaudíveis.] Esse mercado tem de sofrer impactos restritivos em prol da comunidade, em prol da dignidade humana, em prol da distribuição para os homens, em prol da paz entre os homens. Isto é fundamental. É disso que se trata. MEDIADOR: Passo a palavra para Olavo de Carvalho. OLAVO DE CARVALHO: Então está muito bom. Já que passamos a discussão para o terreno dos fatos, e partimos de uma situação que Marx teria encontrado e que ainda se encontra mais ou menos igual no mundo, então vamos ver um pouco a relação entre os fatores considerados: mercado e miséria. Segundo o prof. Alaôr, o grande culpado da miséria e da desigualdade é o mercado descontrolado. Ele usou a palavra “controlar” e a palavra “coibir”. Portanto, é necessário controlar e coibir o mercado. ALAÔR CAFFÉ ALVES: Não foi isso. 41


OLAVO DE CARVALHO: Aí eu não sei… ALAÔR CAFFÉ ALVES: [Interrupção inaudível.] OLAVO DE CARVALHO: Quando chegar a sua vez o senhor fala. Eu não lhe dei aparte. O senhor usou as expressões “controlar” e “coibir”. ALAÔR CAFFÉ ALVES: [Interrupção inaudível.] OLAVO DE CARVALHO: Eu não lhe dei aparte! O senhor espere. Eu esperei aqui. Muito bem. “Controlar” e “coibir”. Quanto eu não sei. A coibição total seria a estatização total dos meios de produção. Não me parece que o prof. Alaôr seja um defensor disto, e não creio que exista mais, nem mesmo entre os teóricos marxistas, alguém que defenda exatamente isto. Mas, se o grande culpado da miséria e da desigualdade é o mercado descontrolado, então para melhorar a condição dos pobres temos de controlá-lo. O controle se faz basicamente de duas maneiras: a mais direta, que é a participação do Estado na economia como proprietário e investidor, e a segunda através de legislações controladoras e restritivas, seja sob o aspecto fiscal seja sob outros aspectos. Muito bem. Nós temos aqui um índice de liberdade econômica. Liberdade econômica seria a ausência de controle. Ausência total não existe, assim como controle total não existe. Mas dentro dessa escala que vai de 1 a mais ou menos 150, nós temos entre os países de economia mais livre do mundo Hong Kong, Nova Zelândia, Irlanda, Luxemburgo, Holanda, Estados Unidos, Austrália, Chile, Reino Unido etc. E assim, à medida que aumenta o número de controles, supostamente para proteger os pobres, nós vamos descendo na escala de liberdade econômica. Passou a primeira página, passou a segunda, aí mais ou menos no meio da terceira, encontramos o Brasil em 79 o lugar. Quem tem mais controle do que o Brasil e, portanto, está abaixo nesta lista? Eu vou dar alguns: Paraguai, Nicarágua, Quênia, Zâmbia, Guiné, Ruanda, Tanzânia, e assim por diante. Se vocês pegarem este mesmo quadro transformado para uma projeção visual, nós temos aqui em verde e azul as regiões de mais liberdade econômica e, portanto, de menos controle, e em amarelo e vermelho aquelas que têm mais

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controle. É só você olhar estes dados, que são coletados anualmente com muito critério por um grupo de economistas, e você verá que a idéia mesma de melhorar a condição dos pobres através de controle é um absurdo sem mais tamanho. Se disserem que o neoliberalismo não vai resolver, é claro que não. Em primeiro lugar, porque neoliberalismo não é liberalismo. Neoliberalismo é um liberalismo meia-bomba que também se mistura com um socialismo meiabomba, e o neoliberalismo é simplesmente um pretexto para fazer o que o nosso governo tem feito, que é controlar mais e mais e mais. Hoje em dia, só de dispositivos que regulam o orçamento federal, vocês sabem quantos há? Cinco mil e quinhentos. Isto quer dizer que para um sujeito votar o orçamento com consciência de causa, ele precisa conhecer cinco mil e quinhentas leis. Isto é humanamente impossível. Isto é o controle estatal. Ora, o prof. Alaôr reconhece que aqueles que estão no Congresso e que fazem as leis não são capitalistas e, ao mesmo tempo, ele diz que eles legislam em favor dos capitalistas. Aí eu me permito concluir que se fossem proletários não legislariam necessariamente em favor dos proletários. Porque acabamos de ver que a ideologia e os ideais do indivíduo não são de maneira alguma condicionados nem determinados pela sua condição social. Porque se fosse esse o caso, eu, que sou filho de operário de indústria e neto de lavadeira, deveria ser o mais marxista de todos, ao passo que pessoas como o sr. Eduardo Suplicy e toda essa gente seriam pró-capitalistas. Mas, se os legisladores, tanto no Brasil como em outros lugares, não são nem capitalistas nem proletários, o que é que eles são? Ora, eu estava lhes contando a história do fim do feudalismo. Desde o reinado de Luís XIV se começa a formar, para fins militares, um princípio de organização burocrática estatal. Aos poucos essa organização burocrática vai tirando da aristocracia feudal as funções locais que elas exerciam (por exemplo, tribunais, juiz de paz, coleta de impostos etc.) e passando para a burocracia. É evidente que os aristocratas perdiam a sua função sem perder a sua quota dos impostos, criando então uma classe ociosa imensa, contra a qual se volta, com toda justiça, a Revolução Francesa dois séculos depois. Mas ao mesmo tempo

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que se forma a burocracia estatal, para preenchê-la é necessário ter funcionários preparados. Para ter funcionários preparados, é preciso haver uma expansão do ensino. Então cria-se, para uma multidão de pessoas de todas as origens sociais mais pobres, desde a pequena burguesia até os camponeses, uma promessa de subir na vida através do funcionalismo público. Este é um fenômeno inédito na História. E acontece que o funcionalismo público cresce, a burocracia cresce, e junto com ela cresce o ensino. Mas, naturalmente, o número de candidatos cresce formidavelmente mais. E com isso se cria uma legião de pessoas que têm alguma instrução e que aspiram ao cargo público e não o têm. É a esta classe que eu chamo a burocracia virtual. Se você estudar a história de todas as revoluções (Revolução Francesa, Revolução Russa, Revolução Chinesa etc.) não através de impressões gerais e nomes de classes – gêneros universais como burguesia e proletariado – mas se você for vendo uma a uma a origem social dos líderes, era a esta classe que pertenciam. Esta é a classe revolucionária. Mais ainda: todas as revoluções que ela fez foram sempre em proveito próprio. Quem sai ganhando com as revoluções não é o proletariado e também não é a classe capitalista. É a burocracia virtual, que sempre legisla em causa própria, segundo a norma que foi assim enunciada pelo próprio Trotsky: “O encarregado da distribuição jamais se esquecerá de distribuir a si próprio em primeiro lugar.” Isto é norma, e é por isso que esses países onde o Estado não deixa a economia à sua própria mercê, onde a economia é controlada, são os mais pobres e os que têm os mais altos índices de corrupção. Isto é necessariamente assim, e não há solução enquanto o poder da burocracia, sobretudo da burocracia virtual, não for quebrado. Mas é preciso muita cara-de-pau para lhes dizer isto justamente aqui. Porque esta escola existe para isto. Numa pesquisa feita entre universitários brasileiros dois anos atrás, verificou-se que menos de 2% deles queriam ser empresários depois de formar-se. Todos queriam um emprego. De cara eu fico espantado, porque eu sempre ouvi dizer que a Universidade faz parte do aparelho ideológico da burguesia para formar a classe dominante, e de repente nós

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descobrimos que todos eles querem ser empregados. Que tipo de empregado? Não é necessário dizer. Então, isto quer dizer que vocês são burocratas virtuais, esperando para transformar-se em burocratas reais. Portanto, são por excelência a população da qual o movimento político revolucionário colhe os agentes de transformação social. Porque, evidentemente, não há lugar para os burocratas virtuais em nenhuma sociedade; só haverá lugar quando eles estiverem no poder. Ora, tomam o poder acreditando que vão pôr fim às injustiças. Uns acreditam, outros são mais cínicos e sabem que não. Vamos fazer aqui uma comparação: aqui nós temos um sujeito maior e mais poderoso que está oprimindo este aqui, que é menor e menos poderoso. Então eu entro e digo: vou parar com essa injustiça, eu vou intervir. Ora, para intervir numa briga entre o mais forte que oprime o menos forte, eu tenho de ser necessariamente mais forte que os dois. Isto quer dizer que qualquer intervenção política que vise a diminuir a desigualdade econômica tem de fazêlo necessariamente aumentando a desigualdade política, portanto concentrando o poder político. Isto é uma regra jamais desmentida em qualquer processo revolucionário violento ou pacífico do mundo. Então, eu vou ter de concentrar o poder; concentra o poder, concentra o quê? O controle. Por outro lado, se eu concentro o poder político, do que é que vive o poder político? O poder político não custa dinheiro? O próprio prof. Alaôr estava falando do orçamento militar americano. Isso quer dizer que se há uma concentração do poder político, há necessariamente uma concentração ainda maior do poder econômico. E é isto que permitiu ao socialismo realizar um feito jamais igualado na história humana: matar de fome, em cinco anos, trinta milhões de pessoas, no Grande Salto para a Frente, que foi o quê? A centralização da agricultura chinesa. Isto é uma verdadeira maravilha! Ninguém conseguiu isto. Ora, se vocês quiserem tentar novamente… Bom, agora querem. O MST, no fundo, quer isto: “Nós vamos fazer uma agricultura centralizada, estatizada, diretamente sob controle do ministério”. Vocês sabem perfeitamente que o MST não produz nada e que vive de cestas básicas. Saiu recentemente um livro de um jornalista chamando Nelson Barreto, que visitou mais de trinta

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acampamentos rurais e disse: “São favelas rurais”. É claro, não poderiam ser outra coisa. A socialização da agricultura sempre dá nisto. Se você pegar todos os países africanos que estão numa condição de miséria atroz, todos eles foram vítimas de políticas estatistas, centralizadoras e socialistas. Hoje em dia, na Etiópia, por exemplo, se você toma uma cerveja, você paga 82% de imposto; se você tem um firma que ganha mais quinhentos dólares por ano, você paga 52% de imposto, e para cada tostão que ultrapassa os quinhentos, você paga mais trinta, e assim por diante. Saiu um livro recentemente descrevendo a economia da Etiópia – é uma maravilha, é o controle. Se o mercado é o monstro que está deixando as pessoas miseráveis, lá eles não correm esse perigo, porque o mercado está amarradinho. Ele está amarradinho na Etiópia, na Zâmbia, no Gabão. Por que é que não imitamos esses lugares? Parece que a presente geração está seriamente inclinada a fazer isso. Por que é que está inclinada? Porque o raciocínio que preside essa decisão, essa escolha, não é um raciocínio baseado na economia, na realidade econômica, na racionalidade econômica. É um raciocínio de ordem cultural. Existe uma cultura marxista que está associada a símbolos de valor ético, de bondade e de solidariedade intergrupal. Ora, você se desvencilhar de uma ideologia ou de uma idéia é relativamente fácil, porque você simplesmente muda de idéia. Mas, como é que você faz para se desgarrar do meio marxista, da atmosfera marxista? Primeiro, tem de abandonar seus amigos: eles não gostam mais de você. Isto, todos meus alunos depõem, nesse sentido, e eu recebo centenas de cartas: “Eu sou discriminado porque não sou marxista…” São centenas, e chegam todo mês. Não estou acusando os marxistas de serem maus, não é isso o que eu estou dizendo. Se eu fosse fazer um diagnóstico desse tipo, eu nem precisava vir aqui: eu estou tentando ser o mais científico que eu posso. Científico não quer dizer neutro, quer dizer apenas honesto. Por exemplo, o professor se refere às novelas, ao poder ideológico que elas têm sobre o público. Vocês já ouviram falar de uma novela chamada Kubanacan? Vocês sabem o que quer dizer “Kubanacan”? Sabem o que quer dizer essa palavra? É o nome da agência oficial de turismo de Cuba. Se você pegar todas as

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novelas da Globo, de vinte anos para cá, a seleção ideológica é estrita. No tempo do falecido Dias Gomes havia uma central de seleção de novela. A novela passava por três peneiras de seleção: primeiro, ideológica; segundo, artística; terceiro, comercial. Qual era a primeira instância? Ideológica. Ou seja, se não atende ao requisito ideológico, nem passa à segunda instância. Nós estamos impregnados de cultura marxista 24 horas por dia; é difícil sair de dentro dela. Mesmo no tempo em que as coisas não eram assim, quem quer que participasse desse meio tinha certa dificuldade de sair. Vou lhes contar por que. Quando eu comecei a trabalhar na imprensa, a primeira coisa que eu fiz foi entrar no Partidão. O sujeito que me cooptou para o Partidão era um jornalista pernambucano chamado Pedro. Eu vou lá, participo de várias reuniões da “base” (na época chamava-se base à unidade mínima). A base era na Folha de São Paulo, que se chamava Empresa Folha da Manhã na época. Passa um mês, chega um sujeito muito sinistro do Comitê Estadual e nos reúne na ausência do tal do Pedro, que era o chefe da base, e diz: “Companheiros, estamos com um problema. Nós estamos desconfiados de que o companheiro Pedro arrumou uma amante, e temos razões para crer que ela é agente do Dops. Não temos certeza, e por isto nós precisamos isolar esse camarada enquanto tiramos o assunto a limpo. Para isso precisamos que vocês arrumem um local para depositá-lo (um cárcere privado, evidentemente) enquanto averiguamos”. Delegou quatro voluntários, entre os quais este que vos fala, para fazer esta porcaria. Eu arrumei um barraco numa favela onde eu nunca mais conseguiria chegar – é impossível, é depois de Deus-me-livre. E deixamos o camarada lá. Passou uma semana, duas, três, e nós íamos levar comida e cigarros para o sujeito. Daí a equipe de apoio logístico foi trocada e eu passei meses sem ouvir falar do camarada. Um dia eu escuto na redação a seguinte conversa (isto, uns nove ou dez meses depois): “Sabe quem estava aí na portaria? Aquele f.d.p. do Pedro. Nós não deixamos nem entrar.” “Ótimo, estamos livres do problema.” Passam mais alguns meses, eu estou no bar na frente da Folha tomando um cafezinho e chega o tal do Pedro, magro, chupado, barbudo, verdadeiro mendigo. E veio falar comigo, e eu, como bom militante, virei-lhe as costas. Este era um processo normal dentro do Partido: excluir as pessoas que lhe eram

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desagradáveis. Isso não aconteceu com um, aconteceu com centenas. Isso é muito comum, porque é considerado uma justa medida de segurança. Por aí vocês vêem como é difícil sair desse meio. Eu levei vinte anos para sair. Você tem de cortar os contatos um por um, você tem de fazer novas amizades, você tem de mudar de lugar, porque se você está ali você não vai agüentar a pressão. Isto não é a força de uma ideologia, uma ideologia não pode ser tão forte assim. Uma ideologia não penetra até às mais íntimas reações emocionais da pessoa. Isto é uma cultura no sentido antropológico do termo, da qual evidentemente fazem parte as formulações doutrinais do marxismo; mas não essenciais, tanto não são, que podem ser trocadas. Eu acabei de lhes citar o caso de que Marx acreditava que era imprescindível o uso da violência (e nisto ele é textual, não há menor possibilidade de dúvida), que a geração seguinte já acredita que se pode implantar o socialismo pelo voto e que, em seguida, se volta à teoria da violência, e assim por diante, numa sucessão absolutamente alucinante de transformações. Então, o marxismo hoje diz isso e amanhã pode dizer uma outra coisa completamente diferente, sem perder o senso de unidade – isto é que é miraculoso. Há pessoas que dizem que o marxismo é uma religião; eu digo: de maneira alguma. Ele pode ser uma religião no sentido primitivo, em que cultura, religião e sociedade formam um amálgama indiscernível. Mas no sentido das religiões universais – Judaísmo, Cristianismo e Islam – elas têm de ter um dogma perfeitamente identificável, com o qual você possa discutir, e aceitar ou impugnar. Mas o marxismo não tem. O marxismo pode se livrar de qualquer das suas doutrinas, se livrar de qualquer dos seus feitos, e absorver os feitos do adversário. Eu já lhes provei como é assim. Um exemplo característico é o das relações entre marxismo e fascismo. O fascismo existiu no mundo e chegou a ter força graças à União Soviética. Por quê? Stalin, analisando marxisticamente o fenômeno, acreditava que aquilo era uma rebelião meio anárquica de classe média que conseguiria destruir as instituições das velhas democracias capitalistas, mas que não conseguiria manter-se no poder. Então, ele dizia que os fascistas eram “o navio quebra-gelo da revolução”. Dito de outro modo, eles ganham e nós levamos. Então, decidiu

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ajudá-los o mais que pudesse, sobretudo do ponto de vista militar. Vou lhes mostrar aqui mais um livro: The Red Army and the Wehrmacht. É a história de como a União Soviética construiu militarmente a Alemanha nazista. Isto foi escondido durante muito tempo e apareceu agora com a abertura dos arquivos de Moscou. Muito bem. Acontece que esta teoria que Stalin tinha a respeito do nazifascismo não era a que Hitler tinha. Hitler tinha outra teoria. Em função disso, ele de repente dá para trás e invade a União Soviética. Aquilo era tão absurdo do ponto de vista da interpretação marxista de Stalin que ele levou dois dias para acreditar que aquilo estivesse acontecendo. Ele achou que era uma operação de contra-informação feita pelos malignos ingleses. Bom, durante toda a década de 30 houve estreita colaboração com o nazismo, antes da eleição de Hitler. Hoje todo o mundo sabe do pacto Ribentropp-Molotov de 1939. O pacto foi apenas a exteriorização de uma colaboração muito profunda que pelo menos desde 1933 construiu o poder militar da Alemanha. Ao mesmo tempo, como operação

diversionista,

Stalin

lançava

em

alguns

países

ocidentais,

especialmente na França, uma imensa campanha de antifascismo literário, na qual toda a intelectualidade francesa colaborou, sendo muitíssimo bem paga. Até hoje, a noção de fascismo que nós temos é esta. Em 1933 houve o famoso atentado ao Parlamento alemão; daí lançaram a culpa num comunista e prenderam um agente do Komintern, George Dimitrov – vocês já devem ter ouvido falar disto. George Dimitrov chega ao tribunal e diz: “Eu estou aqui preso por causa da tirania fascista dos capitalistas, a ditadura dos Krupp e dos Thyssen.” Até hoje as pessoas acreditam que nazifascismo é isto. Não sabem, por exemplo, que o velho Thyssen, quando veio o nazismo, fugiu para a França, de onde foi seqüestrado e obrigado a voltar para colaborar com os seus inimigos. Mas como é que George Dimitrov foi parar na cadeia? É muito simples. Ele era a figura mais importante do Komintern, e estava ali na Alemanha; foi almoçar no restaurante que era o ponto de encontro de toda a oficialidade nazista; vocês imaginem um militante clandestino fazer isso, almoçando com dois de seus assessores ao lado. Foi preso ali, evidentemente, sem nenhuma violência, foi levado até o tribunal, onde pôde fazer o seu show e em seguida foi inocentado e devolvido em paz à União Soviética. Seus dois assessores que sabiam da história foram mortos. Isto quer dizer que toda a 49


nossa concepção corrente de fascismo é um mito publicitário, criado para encobrir a colaboração profunda da União Soviética com o fascismo. Olhem, eu lhes asseguro com a experiência de quem estuda esse negócio há trinta anos: eu não sou um teórico neoliberal, não pertenço a movimento nenhum, tenho horror dessa direita brasileira, cuspo na cara de todos eles, estou pouco me lixando para o que pensam, não estou falando em nome de ninguém, e não tenho nenhuma solução para os problemas do mundo. Eu falo somente daquilo que eu estudei. Esse negócio de marxismo e de história do comunismo eu estudei. Eu lhes garanto: eu nunca encontrei uma afirmação central, fosse do próprio marxismo fosse da cultura comunista em geral que, examinada, não se mostrasse exatamente o contrário da verdade. É uma por uma, a lista não acaba mais. Eu mesmo, chegou uma hora em que comecei a ficar alucinado: não é possível, tudo o que eles dizem que é invenção da tal da direita é verdade. É experiência de vida que eu tenho para lhes dizer. Para mim foi chocante, porque eu saí do Partido não por discordância ideológica; saí simplesmente porque fiquei moralmente confuso com episódios como esse que eu lhes contei, e durante 25 anos não dei palpite em nenhum assunto político, fiquei quietinho no meu canto, estudando e tentando chegar a conclusões. O material que eu tenho sobre isso é imenso, e me leva a poder dizer: Marx era um charlatão, Marx era um vigarista. Por exemplo, para provar que a evolução do mercado tornaria os ricos mais ricos e os pobres mais pobres, ele se socorreu do quê? Do exemplo que ele tinha à mão, a Inglaterra, que era o único país da Europa com boas estatísticas na época, e o melhor material eram os Blue Books, relatórios anuais do Parlamento. Quando Marx foi ver os relatórios, descobriu que, ao contrário do que ele estava dizendo, a condição da classe operária tinha melhorado. O que é que ele fez? Ele tinha todos os relatórios e consultou um por um. Os registros estão na biblioteca do Museu Britânico até hoje. Ele conhecia todos os registros, mas como os registros não comprovavam o que ele queria, ele preferiu usar os registros de trinta anos antes. Se isso não é vigarice, eu não sei o que seja. Mais ainda: na hora em que o sujeito editou o seu próprio sistema de “materialismo dialético”, vocês já pararam para pensar nessa expressão? Uma dialética é um

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fluxo, um processo inteligível de idéias. Em que sentido isto pode acontecer na matéria? Engels diz que a matéria tinha estrutura dialética. Por exemplo, hoje nós diríamos assim: o elétron é a tese, o próton é a antítese e o átomo é a síntese. Não é preciso dizer que todas essas idéias foram absolutamente desmoralizadas. Depois de desmoralizadas, apareceu esta versão que o prof. Alaôr defende agora: “Não, Marx não quis dizer isto, mas usou o materialismo apenas no sentido da convivência do homem com a matéria, no sentido da ação histórica sobre a matéria.” Se o materialismo de Marx diz respeito apenas à nossa ação sobre a matéria, então a matéria é o fator passivo e alheio ao materialismo dialético. Só existe materialismo dialético, portanto, na ação humana. Mas que raio de materialismo sem matéria é esse aí? Isto não é um materialismo. O que é a matéria para Marx? Marx não diz absolutamente nada sobre isso, e ele acredita que o processo central é a “ação transformadora do homem no cosmos”. Ora, quanto do cosmos o homem pode transformar? Um pedacinho insignificante da crosta de um planetinha, e todo o restante do cosmos permanece perfeitamente indiferente a isto aí. Como é que este processo pode ser o centro da realidade material? Se você disser que espiritualmente ele é o centro, isto é possível, aí faz sentido; embora pequeno fisicamente, ele é significativo. Colocá-lo materialmente no centro é nonsense e é de um primarismo filosófico digno de analfabeto. Mas Marx não era um analfabeto, Marx era simplesmente mentiroso. As provas disso são abundantes: a sua falsificação de fontes, as interpretações absolutamente forçadas. Por exemplo, quando ele diz que inverte Hegel e o põe de ponta-cabeça: ele não faz absolutamente nada disso. O que ele faz com a dialética não tem nada a ver com Hegel, ele passa longe. E no entanto todo mundo acredita que é a estrutura da dialética de Hegel que está lá dentro, e assim por diante. A quantidade de charlatanismo é muito grande para eu poder lhes expor em meia hora, ou até em um mês. Eu tenho dado aulas e mais aulas sobre isto, e o negócio não acaba. Então, eu vou terminar esta exposição com um apelo. Não se sai de uma cultura mudando de idéia. A cultura abarca a personalidade das pessoas. Para você abandonar essa cultura, você vai ter insegurança, problemas psicológicos e dificuldades existenciais terríveis. Isto quer dizer que dentro da

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redoma dessa cultura não é a mente ou a opinião das pessoas que está presa: é a alma e a existência delas. E se é para falar em liberdade, então, antes de querer a liberdade para os outros, experimente o que é a liberdade. Experimente examinar a cultura marxista não desde dentro, como ela sempre faz, mas experimente olhar de fora, e vocês terão uma visão bem diferente da que talvez tenham. Muito obrigado. MEDIADOR: O prof. Olavo de Carvalho não concorda com passar dez minutos ao prof. Alaôr Caffé Alves para tecer comentários. OLAVO DE CARVALHO: Só se eu também tiver dez minutos também. Ou é igual ou nada. Ou é tudo ou nada. Ou é honesto ou é sacanagem. [Há uma discussão sobre a continuação do debate e fica decidido que cada um dos debatedores terá a palavra por dez minutos.] ALAÔR CAFFÉ ALVES: Bem, eu acho que as coisas estavam indo muito bem. Mas esta última, inclusive o aplauso que se deferiu para um tipo de política que me é extremamente estranha e séria, mostrou inclusive que não se sabe o que é o nazismo. Porque os outros, isso que vocês conhecem, vocês sabem o que é… Porque existe uma outra idéia do nazismo que talvez fosse aceitável, como o Olavo falou. Profundamente triste isso. De qualquer forma, a questão de dizer que Marx é um charlatão é muito complicado, é muito difícil formular dessa forma porque é atacar uma pessoa que não está presente, que não tem nem a condição de se defender. Mas isso é muito complicado porque não existe só a literatura marxista, existem marxistas, os que são simpatizantes de Marx, os que aproveitam parte da concepção marxista, e que admitem perfeitamente a possibilidade de desenvolver teses interessantes e importantes, de cunho científico. Marx viveu praticamente a vida inteira naquela biblioteca de Londres dando toda a sua vida para isso, e estudou profundamente a sociedade da sua época. Como eu disse, ele pode ter errado em muitas coisas. Até a gente aceita isso, que Marx errou nisto ou naquilo. Mas atacar uma dimensão moral, contra um intelectual que é um dos primeiros no mundo, é um dos maiores intelectuais, indiscutível isso… Alguém vai discutir uma coisa dessa?

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OLAVO DE CARVALHO: Eu vou discutir. ALAÔR CAFFÉ ALVES: É, sempre tem alguém. Eu acho tudo muito gratuito isto, colocar essas questões que foram colocadas aqui, muito gratuito. Não, não é assim que vamos discutir. Eu, por exemplo, fiz toda uma série de colocações singulares a respeito de como se estrutura o sistema, pelo menos aí rapidamente, pelo menos no sentido de verticalização, mas eu fiz umas coisas concretas, de mencionar portanto discussões conceituais. Quando se penetrou no terreno conceitual, se diz que Marx não sabe nem do quê está falando sobre a matéria, mas Marx nunca se preocupou especificamente com a matéria no sentido físico. E quando ele [Marx] fala em matéria, a matéria corresponde a um esforço da transformação do homem como um fato importantíssimo, que não foi nem colocado aqui. E ele [Olavo] diz que estudou, temos que fazer uma análise disso. Que é “o” debate. Debate da forma pela qual os homens agem sobre o mundo, transformando o mundo. Dizer que Marx queria transformar o universo não tem sentido. Não é disso que ele estava falando. Ele nem pensava nisso… OLAVO DE CARVALHO: Nem eu disse isso. ALAÔR CAFFÉ ALVES: …ele nem disse isso. Nem foi dito isso, nunca. “A transformação do universo, do cosmos.” A transformação que o Marx propunha era a transformação do homem, do homem na sua pequena Terra mesmo, no seu planetinha, direitinho. Mas é o homem, ele estava estudando o homem! Ele não estava estudando um marciano nem nada disso. É o homem e, portanto, os homens, claro, têm uma dimensão concreta que é a ação humana, que ele imagina não poder explicar as questões especulativamente. Era isto o que ele queria dizer só. Que a especulação filosófica, puramente teórica, não é suficiente para caracterizar o que o homem é. Marx postulava algo um pouco na contraposição, na contramão dos racionalistas, especialmente um Descartes, que dizia que o homem é um ser pensante. A postulação do homem, inclusive, como ser pensante, o distinguia dos outros animais, é assim que se pensava em forma clássica. E Marx não acreditou simplesmente nessa posição, ele avançou. Ele não está excluindo a vida teórica, ele foi um teórico. Ele se trancou. Ele quis 53


incluir a vida emocional dele, a vida da praxis, da ação, da decisão, dos valores. Isso aí ele quis incluir. E é claro que o movimento dapraxis envolve exatamente o movimento do homem como um todo, não apenas como inteligência, como um ser especulativo, como lógica. Ele via o homem como um movimento do seu corpo, dos seus pés, das suas mãos. E uma relação social, nunca se viu o homem tornar-se solitário. Ele não pensava na matéria no sentido, por exemplo, dos gregos, buscar a arkhe, o fundamento de todas as coisas, como se fazia desde Tales de Mileto, Anaximandro, Anaxímenes, Anaxágoras, e esses pensadores todos que passaram, os pré-socráticos. Na verdade, ele trabalhou muito com esses filósofos interessantes, que aliás foram trabalhados também por Engels, que é Parmênides e Heráclito, com as suas posições. Pena que não dá tempo de desenvolver toda a temática desses pensadores muito maravilhosos, que foram trazidos para nós, que foram recuperados. Quando Marx faz essa postura, de não ser um homem teórico, é porque está vivendo justamente num período que se chama “Revolução Industrial”. O homem pobre não pode ser simplesmente teórico, ele tem que entrar em contato com o mundo, transformar o mundo, ele tem de mudar a matériaprima, ele tem de buscar matérias-primas, ele tem de transformar o mundo com as suas mãos, com a sua indústria. Daí porque ele teve de começar a pensar especificamente, não de forma puramente teórica, ou de forma especulativa. Esta dialética é diferente. Quando ele busca a materialidade, não é essa materialidade portanto abstrata. É muito concreto, porque ela é calcada no trabalho humano. Para ele, o trabalho é fundamentalmente aquele núcleo que perpassa o próprio homem. O homem é produto do seu trabalho na história e socialmente. Não há homem sem trabalho, sem ação com o mundo. Trabalho é a administração do homem sobre o mundo, transformando esse mundo, porque nisso ele transforma-se a si mesmo. É isso que ele quis dizer: matéria transformada permanentemente pela sua própria ação. Não é matéria bruta, como eu contava para ele [Olavo]. Ele nem tinha essa idéia da física nem da química. Não contava para Marx isso. O importante para ele era a dimensão fundamentalmente social, isso é que era importante para ele.

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Essa questão da burocracia, é claro, todo sistema social hoje, tem de ter uma burocracia. Por isso mesmo que se propugna por uma dimensão outra, que é aquela que o Olavo disse a respeito do poder maior do que aqueles poderes. Um poder que oprime o outro, que pressupõe o outro, que é bem maior. Sabe qual é o poder maior? É a comunidade! É a sociedade democraticamente organizada, articulada de forma tal que se permita coibir (agora sim, a palavra mais correta) a ação sozinha e solitária do mercado. Não pensem os senhores que vamos aqui imaginar que o mercado que age diariamente, com bilhões e bilhões de dólares se movimentando pelo alto, pelo labor da globalização, nós vamos conseguir neutralizar isso. Simplesmente com o quê? Com a vontade singular de cada um? Ou com recursos que nós não temos? A única forma de coibir é exatamente através de uma democracia participativa! Não é através da democracia representativa, que de quatro em quatro anos vocês vão correndinho num domingo determinado de manhã cedo e depositam um voto ali, para eleger os políticos que, em última instância, vão ser cooptados pelo sistema. Não é isso. É a democracia participativa formada por divisão de comissões, de conselhos, de articulação de comunidades. Não é fácil de fazer isso! É lógico que é uma coisa difícil. É ela que vai, de certo modo, se opor às dimensões do mercado, que está sob a decisão de quantos? Eu pergunto aos senhores: quantos? Poucos! Os donos do mundo! Eles decidem o que querem! Onde pôr o capital, investir, tirar, pôr… Eles fazem. Esses movimentos de capitais procuram as comunidades onde a mão-de-obra é mais barata. Dizer… Essas postulações de que se o Estado interfere o sistema fica pior, ele está propugnando fundamentalmente que largue tudo ao mercado, que façam tudo de acordo com as forças do mercado, que tudo vai bem. Como, se cada pessoa tem o seu poder no mercado em função do quê? Em função da sua entrada, da sua renda. E quantos têm renda? Eu não estou colocando a questão daqueles que não têm trabalho, porque esses não têm mesmo nada. São aqueles que ainda têm trabalho e que ganham metade de um salário mínimo, milhões de pessoas aqui. Como é que essas pessoas vão definir situações, vão decidir sobre questões do mercado? E essas pessoas vão fazer o quê? Vão ganhar mais? Então vocês estão percebendo que eu acho que essas questões de colocar Marx como espertalhão, como… não é bom. Não fica bem. Não fica bem. Vamos trabalhar mais com os outros filósofos, com outros 55


pensadores que seguiram, inclusive que houve outras mudanças, outras formas inclusive de considerar Marx, a questão até dessa violência, nunca Marx falou de materialismo histórico, nunca! Me conta onde Marx diz materialismo histórico! O primeiro a aplicar isso foi Paul Lafargue. Foi outra pessoa! Marx nunca falou em materialismo histórico. OLAVO DE CARVALHO: Falou em “materialismo dialético”. ALAÔR CAFFÉ ALVES: E mesmo sendo “dialético”, Marx nunca estabeleceu essas formas, esses jargões (que eu concordo, são jargões), que no fim acabam distorcendo até o pensamento, embora dê a entender Marx nos seus conceitos. Ler O Capital, ler… Tem várias obras dele maravilhosas e interessantes, já que ele [Olavo] está fazendo tanto denegrir, tanto. Eu diria para vocês que há obras notáveis. Obras notáveis que exprimem conceitos riquíssimos. Podem não ser todos suficientes para explicar tudo no mundo, é claro que não é isto. Mas que nos ajuda a compreender o homem, como outros mais, não só Marx. Pensem num Weber, por exemplo, um Durkheim. Tem de estudar esses pensadores para mostrar plenamente que tudo se compõe, esse sim, o espírito humano, mas como a base fundamental da estrutura de ação humana constante e permanente, que é o trabalho, que nós devemos cultivar permanentemente. Estou contra essa idéia de “Marx charlatão”. Acho muito baixo para isso. E o prof. Olavo não precisa se socorrer desse tipo de coisa. Não precisa. Ele é suficientemente filósofo, eu sei, eu conheço o trabalho dele. Dá para dizer uma coisa mais profunda, mais tranqüila, mais científica. É isso.

OLAVO DE CARVALHO: Em primeiríssimo lugar, é preciso lembrar aos senhores que o conceito de fraude intelectual não é um insulto, é um conceito, inclusive jurídico, perfeitamente delimitado, e que eu tenho todas as provas de que Marx se enquadra nisto, pela falsificação de fontes, pela má interpretação proposital de autores que ele conhecia perfeitamente bem, e assim por diante. Em segundo lugar, eu não vejo por que eu deveria me abster de usar a palavra correta para designar o procedimento dele, quando na verdade eu li Marx

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durante muito tempo e conheço bem o estilo de Marx. Marx se referia a pessoas contra as quais ele não tinha tantas acusações assim chamando-as de cães sarnentos, vendedores de drogas, proxenetas, canalhas. Assim, este é o estilo de Karl Marx. Eu não estou usando nada disso, eu estou usando um conceito perfeitamente delimitado de ordem jurídica, dizendo que isto é fraude intelectual. Outra coisa: eu não posso confundir a tranqüilidade com a cientificidade. Estar nervoso ou estar calmo não tem nada a ver com esta história. Não vamos confundir calma e tranqüilidade com honestidade. Só interessa uma coisa aqui: tem de ser honesto. Ou seja, não fingir que sabe o que não sabe nem que não sabe o que sabe: isto é a definição de honestidade intelectual. Os indícios, as provas da fraude intelectual de Marx são vastíssimas, e é uma literatura enorme. Infelizmente essa literatura, no Brasil, é desconhecida, porque o ensino universitário aqui é nesta base: existe a redoma. Prova de que existe a redoma é que o prof. Alaôr ficou escandalizado quando eu sugeri que havia um outro conceito de nazismo que não fosse aquele expresso por Dimitrov, o que significa que ele não conhece, ele nem imagina que existe: ele também está dentro da redoma. As principais obras sobre o nazismo rebatem essa concepção marxista no todo: as obras de Norman Cohn, Eric Voegelin, Leo Strauss, há uma bibliografia imensa sobre o nazismo. Se existe uma coisa que é bem conhecida hoje, é o nazismo. Sabemos que ele não foi de maneira alguma a ditadura do grande capital, sob aspecto nenhum, e muito menos ainda foi um regime capitalista: foi um dos regimes mais socialistas e mais intervencionistas que houve na história do mundo. E quando eles se chamaram de partido nacional-socialista, não foi à toa, não foi só para parecer. A semelhança estrutural entre nazismo e comunismo permite dizer que, de fato, a única diferença é entre socialismo internacional e socialismo nacional. É somente isso, e é por isso mesmo que não pode haver uma “Internacional Nazista”, porque só quem se identifica com a cultura nacional é que pode participar daquela porcaria. Então, existe outro conceito sobre o nazismo sim. Não é para ficar escandalizado, mas o próprio escândalo do prof. Alaôr mostra como essas idéias e essas informações estão distantes do meio universitário hoje. Porque o prof.

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Alaôr não é um homem inculto; ao contrário, é um homem bem informado. Só que é o seguinte: alimenta-se dessa cultura, e tudo o que recebe de fora já come no formato apropriado a esta cultura. Pode-se passar uma vida assim, e eu digo: eu levei vinte anos para sair disto. Uma outra coisa que foi dita na outra intervenção é a respeito dos 400 bilhões de dólares do orçamento militar americano: “Se dessem 400 bilhões de dólares para o Brasil ou para a África, nós sairíamos do buraco.” Eu lembraria a vocês um outro dado: só no ano de 2000 (é a informação mais recente que eu tenho, não tenho outra mais atualizada), os cidadãos americanos – cidadãos e empresas, sem contar o governo – fizeram um total de 200 bilhões de dólares de contribuições para entidades de caridade, principalmente do Terceiro Mundo. Some com o governo, e veja quanto saiu. Ora, o que acontece com esse dinheiro? É dado diretamente aos necessitados? Não, é dado a uma estrutura burocrática da democracia participativa: é a comissão, é o conselho, é não-sei-o-quê etc. E tudo isso tem despesa: tem de pagar telefone, tem de pagar aluguel, tem de pagar empregados etc. Vocês sabem como os americanos definem FMI? FMI é uma entidade que se dedica a tirar dinheiro das pessoas pobres nos países ricos para dar às pessoas ricas nos países pobres. Essa definição é muito precisa. De vez em quando nós vemos a nossa esquerda irritada com o FMI (“Ah, porque o FMI…” etc.) como se o FMI fosse um propugnador da economia liberal e não um dos maiores controladores da economia que existe no mundo: é o órgão controlador por excelência fundado por Lord Keynes, que além de ser um estatista feroz era um colaborador da espionagem soviética. Ora, isto quer dizer que ficam brabos de vez em quando com o FMI, usando-o como símbolo do capitalismo. Mas, quando o FMI estrangulou economicamente o governo Somoza para dar o poder aos sandinistas, ninguém ficou brabo. Ou seja, o FMI não tem essa identidade ideológica que lhe estão dando, ele tem uma outra. Quer saber qual é a outra? Eu lhe digo: se o senhor fala das grandes fortunas, veja as duas grandes fortunas, Rockefeller e Ford. Vocês sabem que se não fossem Rockefeller e Ford não existiria a esquerda nacional. Elas subsidiam partidos, ONGs, o Fórum Social Mundial etc, e

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ninguém pára para pensar que talvez a equação socioeconômica do mundo seja um pouco mais complicada, um pouco mais sutil do que o esqueminha marxista admite que você veja. Na verdade, se você pensar: mas por que é que esses grandes capitalistas contribuem para o movimento revolucionário? É por um motivo muito simples. O sujeito enriquece dentro da economia liberal e acumula tanto dinheiro, mas tanto dinheiro, que dali a pouco ele entra na seguinte consideração: “Não podemos permitir que essa fortuna, que custou tanto esforço, esteja à mercê das forças irracionais do mercado. É preciso preservá-la.” Então, ele deixa de raciocinar capitalisticamente e passa a entrar em considerações dinásticas. Ele tem de assegurar a continuidade daquela fortuna: o mercado não pode fazer isso, somente o Estado pode. Por isso é que se você pegar as duzentas maiores fortunas de Wall Street, elas jamais apoiaram uma política liberal. Entre dois candidatos nos EUA, eles apóiam sempre o mais intervencionista e estatista. Isto é regular. Por que é que eles podem fazer isso? Porque eles sabem, pelo menos desde a década de 20, que o estatismo total jamais acontecerá. Então, eles estão seguros: por mais estatismo que venha, haverá uma margem de liberdade econômica para quem tenha o poder de assegurá-la. Eles sabem que o estatismo total não funciona, porque isto lhes foi demonstrado. Eles aprenderam – e nós, parece que até hoje não – com o economista Ludwig von Mises na década de 20. Ludwig von Mises disse o seguinte: se você implanta o socialismo, você elimina o mercado; se elimina o mercado, as coisas não têm preço; se não têm preço, não dá para fazer cálculo de preço; se não dá para fazer cálculo de preço, não dá para fazer economia planejada; portanto, não existe socialismo. Por isto mesmo, tanto os metacapitalistas quanto os dirigentes socialistas se prepararam para isto. Na União Soviética, por exemplo, sempre se reservou uma quota de 30 a 40% para a economia capitalista clandestina. E é por isso que se explica o surgimento dos grandes milionários russos. Que, se era tudo do Estado, de onde apareceu tanto milionário do dia para a noite? Já eram milionários. Sempre existiu capitalismo na Rússia, como sempre existiu na China. Ou seja, a estatização total nunca acontecerá. Os líderes comunistas sabem disso, e os grandes banqueiros sabem disso. Por isto, os grandes banqueiros, as grandes fortunas, só têm um inimigo: chama-se economia liberal. Porque ela dissolve as grandes fortunas na 59


concorrência do mercado e eles precisam do Estado para garantir o seu poder monopolístico; por isto fomentam movimentos socialistas e estatistas em todo o Terceiro Mundo. E nós, idiotas, caímos nessa acreditando que estamos lutando contra o poder do capitalismo quando o estamos servindo. Muito obrigado. MEDIADOR: Passamos agora às perguntas. P: Eu vou fazer duas perguntas ao prof. Olavo. A primeira, talvez eu tenha compreendido mal – na verdade são três perguntas –, o senhor chegou a dizer que os censores das novelas da Globo tinham uma ideologia marxista… OLAVO DE CARVALHO: Certamente. P: Eu só queria confirmar isso. Isso não me parece evidente, então eu gostaria de um pouco mais de explicação. Com relação à sua concepção do marxismo como cultura, no sentido antropológico de termo, eu também não consigo enxergar claramente todas as dimensões disso, porque a cultura no sentido antropológico implica instituições, e aí eu gostaria de enxergar mais claramente quais são as instituições marxistas que nós temos no Brasil, no Paraguai, em qualquer outro desses países. E a última pergunta é que o senhor faz uma aproximação, inclusive mostrando gráficos, entre o Estado intervencionista e centralizado e o marxismo… [troca de fita] OLAVO DE CARVALHO: Bom, são três perguntas. Em primeiro lugar, estude simplesmente as biografias de Dias Gomes e de Janete Clair, que sempre foram militantes do Partido Comunista; em seguida, você vai precisar de informações de um pouco mais de dentro e conhecer os scripts de novela que são propostos, que você vai averiguar gradativamente a introdução de elementos

de

propaganda

claramente

esquerdista,

se

bem

que light,

evidentemente. Porque você vai usar o meio de propaganda conforme a natureza e o público que você vai atingir. Em segundo lugar, quanto à questão da cultura marxista, a resposta é simples: leia Gramsci. E não é verdade que cultura implique instituições. Cultura, no sentido antropológico, é um termo que abrange desde culturas indígenas primitivas até às [culturas] modernas. Eu

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usei “cultura” e não “sociedade” exatamente por este motivo. As instituições dos países socialistas se incluem nisto; fora dos países socialistas você pode ter um domínio sobre uma parte das instituições, mas isto não é absolutamente essencial para o processo que eu estou descrevendo. E, quanto à terceira pergunta, é verdade que naquele momento Marx advogava o livre câmbio porque as políticas protecionistas eram políticas herdadas de um concepção mercantilista antiga, e naquele momento Marx achava que era mais importante liberar a força do capital, para que crescesse e para que, no entender dele, chegasse a criar a contradição que resultaria no socialismo. Porém, a verdade é que, no século XX, sempre os partidos comunistas e de esquerda favoreceram as políticas protecionistas, como no Brasil. Aliás, uma das vantagens da esquerda é ser internacional. Por quê? Porque ela explora as contradições entre países. Então, por exemplo, nos EUA, a esquerda sempre apóia políticas protecionistas; e no Terceiro Mundo reclama contra as políticas protecionistas americanas que ela mesma criou. P: É o seguinte: eu estava ouvindo aí esses temas – a revolução, os políticos, o jurídico, qualidade de vida dos brasileiros, milhões de miseráveis, como resolver isso, distribuir renda – e isso me fez lembrar que três anos atrás aproximadamente eu lia o Joelmir Beting, que escreveu um artigo em que ele defendia, em vez da apropriação dos meios de produção, a tributação da produção e da renda. Deu como exemplo países como Suécia, Noruega, Dinamarca e Finlândia. Talvez eu não esteja sendo preciso por uma questão de memória fraca, mas eram basicamente esses países da Escandinávia. Eu pesquisei e descobri que exatamente esses países citados pelo Joelmir Beting são países com cargas tributárias extremamente elevadas (30%, 40%, 45%, 50% e mais). E, por coincidência, esses países também são os países com melhor índice de desenvolvimento humano, ou seja, melhor qualidade de vida. Então, será que nos regimes capitalistas vigoraria o que Joelmir Beting chamou de “socialismo fiscal”? OLAVO DE CARVALHO: De maneira alguma. Na escala de liberdade econômica a Dinamarca está em 12 o lugar. Imposto elevado não basta para

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caracterizar um controle estatista. É necessário haver legislações restritivas etc. No conjunto, a economia dinamarquesa é extremamente livre, está bem mais próxima do liberalismo do que qualquer outra coisa, e assim também os outros países. Se me escreverem para o meu e-mail, eu passo essa escala para quem quiser. ALAÔR CAFFÉ ALVES: Bem, a tributação vem do corte financeiro em cima da sociedade civil. A sociedade civil tem a produção. O Estado precisa viver de um recurso, quer dizer, o recurso é extraído da produção. E conseqüentemente a produção, como não é neutra, ela envolve capital, o capital muitas vezes resiste à tributação. Vocês vêem que ele resiste à tributação tendo em vista o fato de que isso atrapalha a acumulação dele. Então, ele não quer evitar, ele não quer ter limitações de sua acumulação. A tendência, portanto, é haver uma crise interna, pelo processo capitalista, quando há essa quantidade muito grande, muito acentuada dos tributos. Portanto, mais uma vez existe o problema dos conflitos e das contradições internas da sociedade em torno disso. Quando não acontece isso, o sistema cria o “caixa 2”. Vocês já ouviram falar no “caixa 2”: não paga exatamente para ficar com uma parte e conseguir fazer, com isto, a acumulação. Há portanto uma dinâmica econômica no processo, muito importante: não é simplesmente tirar da sociedade. P: Eu gostaria de saber dos dois professores como é que eles definem o atual momento político e ideológico do país, e se os dois têm esperança no Brasil, e no quê eles teriam esperança? ALAÔR CAFFÉ ALVES: Bem, o atual sistema, o atual momento político é um momento à esquerda. Sabemos que é isso. Pelo menos como ideário, o sistema que prevalece hoje é o Partido, é o PT. Só que é evidente que o PT não pode tomar posições senão pragmáticas, em função da situação. Porque aquilo até que se esperava – que o PT tomasse uma posição mais radical em termos econômicos –, não o fez, aceitando de certo modo as diretrizes de definição econômica e social, tendo em vista os problemas que eles estão enfrentando. Vocês vêem até que eles estão conservadores no processo, inclusive de abertura econômica. Isso significa, é claro, que não é a perda do ideal mais socializante, 62


ou então mais equalizador, do sistema social. Isso é importante. Não é esta perda. São as impossibilidades que o próprio sistema impõe. E essa impossibilidade não é fácil. Por ter uma atuação pragmática que tem de fazer, porque tem de governar o país, e não perdê-lo mas governá-lo, então ele tem de tomar certas posições pragmáticas nesse sentido. É claro que isso implica uma série de questões e problemas que nós temos de enfrentar como um todo, o país como um todo. E o próprio governo neste caso tem problemas muito graves e gargalos seríssimos. Não porque ele não tenha essa dimensão social, mas porque ele enfrenta dificuldades e medidas que eles não têm suficiente controle e condições de fazer. OLAVO DE CARVALHO: Muito bem. O presente governo tem duas prioridades e nenhuma delas tem nada a ver com o chamado “social”. A primeira é manter o equilíbrio orçamentário, controlar a inflação e, em suma, atender às exigências do FMI de, como eles chamam, sanidade financeira. Notem bem que essas exigências não têm o teor ideológico que as pessoas lhes atribuem. Esse mesmo conjunto de exigências pode ser usado para esmagar governos de direita ou de esquerda – acabei de lhes dar o exemplo de Somoza. Então, dependendo de quem controla o instrumento, ele aperta aqui ou aperta acolá. Esta é a primeira prioridade. Para quê? Para o governo ter tempo de desenvolver a segunda parte, que é a integração dos movimentos políticos latino-americanos – movimentos revolucionários – e a identificação de Partido com o Estado. São essas duas coisas. Essas duas coisas dão um trabalho miserável. Eu acho que o governo está fazendo isso da melhor maneira possível. Eu acho tudo isso de uma extrema habilidade. Mais ainda: esta é a política que Lenin seguiria. Três meses antes de o Lula ser eleito, eu escrevi um artigo chamado “O que Lenin faria”, se ele tivesse o poder na mão. Faria exatamente isto: acalmar o investidor estrangeiro (através do equilíbrio fiscal etc.) e montar um sistema de controle político (através da expansão indefinida do Partido, da identificação entre Partido e Estado etc.).

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Ter esperança ou não ter esperança é uma coisa que, com relação à política, eu sou incapaz de ter. Eu nunca coloquei nenhuma esperança em política alguma; nem chego a entender o que as pessoas querem dizer com isso. Eu estou me limitando a estudar a situação e tentar entendê-la da melhor maneira que eu possa. Não tenho nenhuma fórmula para salvar o Brasil, mas se fosse para fazer uma coisa boa, eu faria algo que o governo Lula anunciou no começo que ia fazer. O governo viu que o grande número de propriedades imobiliárias irregulares no país (quase 80%) impede a formação de capital para os pobres. Ou seja, os pobres têm o capital na mão, mas é capital morto, não tem liquidez. E ele fez o plano de distribuir títulos de propriedade imediatamente. Mas falou isso durante uma semana e depois broxou completamente. Isto era a coisa boa para se fazer: não tem nada a ver nem com agradar o FMI nem com fazer a revolução latino-americana. Isto eu teria feito se estivesse no lugar deles. P: Eu gostaria de fazer uma pergunta para o prof. Alaôr, e se o sr. Olavo quiser comentar também… Bom, o professor falou que acredita numa democracia participativa, e entende isso como a participação de cada indivíduo de uma sociedade brasileira diretamente nas decisões governamentais. Eu pergunto: como isso é possível hoje no Brasil, sem que haja uma dominação dos meios públicos? Por exemplo, aqui na faculdade tem o orçamento participativo: os alunos vão, orçamento participativo, pá-pá-pá, chega aqui, assembleísmo, pá, a maioria dos alunos acaba não decidindo porque “não tem tempo, não pôde ver, não pôde ir para a aula”. Enfim, como é que isso vai acontecer com o resto do povo brasileiro, com o pescador, um sujeito que não entende muito bem de política (com todo o direito), como é que… Enfim, não sei se o senhor entendeu a minha pergunta. Eu não acredito no orçamento participativo. Como é que o senhor acredita? ALAÔR CAFFÉ ALVES: Não. Acontece o seguinte: a democracia participativa impõe todo um processo muito amplo de mobilização social e de organização social. Se não houver a mobilização e a organização social não haverá nunca a democracia participativa. Ela é agora uma coisa nova. Na verdade, ela é uma proposta de quê? De dez anos, no máximo. Não tem ainda a organicidade que

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deve ter, e, muitas vezes, a participativa é cooptada. Esse é que é o problema complicado. O próprio sistema não quer saber da democracia participativa efetivamente, mas existem indicações. Por exemplo, eu vou dar uma idéia para vocês entenderem isso. O sistema de conselhos no Brasil é difícil, não é? Ele fica praticamente neutralizado e acaba não surtindo os efeitos que deve surtir. O sistema de conselhos seria interessante, não o conselho de rua (geralmente há o conselho de rua). A chamada democracia representativa é a democracia da rua: todas as pessoas vão à rua, os políticos vão à rua, propõem as suas colocações, fazem as suas exposições, e tentam amealhar, tentam cooptar as pessoas, ou seja, persuadir as pessoas. Eu acho que essa democracia não é suficiente. Por exemplo, a democracia que envolve a possibilidade de participação de todas as comunidades, inclusive as comunidades escolares, fabris, os clubes, as igrejas, as vizinhanças, mas isso ainda tem muito a caminhar. Nós precisamos trabalhar muito e estudar muito esse aspecto e tentar estabelecer relações internas dessas unidades todas e externas, ou seja, inter-relacionais. Não é fácil. Não é fácil. Nós temos a democracia representativa, que domina completamente. E muitas vezes eu tenho perguntado aos vereadores, aos deputados etc., se querem a participação. Eles não querem, eles acham que isso diminui, elimina os seus poderes respectivos. Portanto, eles fazem uma proposta sempre constante de democracia representativa, evitando o mais possível o domínio da democracia participativa. É complicado, demanda consciência, demanda, digamos, uma dimensão muito mais criativa e consciente, politicamente, por parte das organizações. Aqui por exemplo, na faculdade tem muito pouco disso. Precisaria ter muito mais disso, de um movimento político nesse sentido. OLAVO DE CARVALHO: É preciso ver se nós estamos discutindo as palavras pelo seu valor de dicionário e pela sua associação emocional ou pela substancialidade das situações de fato que elas representam. Com relação ao conceito genérico de participação, ninguém pode ser contra. Santo Tomás de Aquino já dizia que qualquer sociedade política só pode estar segura da sua sobrevivência se todos os seus membros participarem da política. Quer dizer, isto é uma espécie de consenso universal. Ninguém discute isso há sete séculos. O problema é o como. Ora, a estrutura partidária da representação que nós

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temos já é suficientemente complexa para que nenhum cidadão possa dizer que a conhece. Agora, multiplique isso por uma infinidade de conselhos, comissões, assembléias etc., e ademais pergunte: todas as pessoas que vão dirigir todas essas coisas são militantes trabalhando gratuitamente? Ou seja, a concepção atual da participação é tão complexa e tão custosa que eu a afastaria de cara como simples psicose. A proposta de democracia participativa pode servir como um instrumento propagandístico para desmoralizar o sistema representativo, que já não está muito bem das pernas. Mas que vá substituí-lo é absolutamente impossível. ALAÔR CAFFÉ ALVES: Bom, é óbvio que o “como” é complicado mesmo. Mas ele demanda mesmo uma complicação em função de uma sociedade altamente complexa. Não há dúvida. Não há dúvida. O que ocorre é que a democracia representativa não assumiu, e não assume de forma nenhuma, as dimensões necessárias para compor políticas públicas de forma a efetivamente trazer à comunidade a satisficação necessária, tendo em vista exatamente esses problemas que nós elencamos, como, por exemplo, o caso das diferenças profundas entre as pessoas. Essa democracia que nós temos, a representativa, ela tem um problema de representação das camadas sociais e das classes sociais muito distorcido. Não há possibilidade de um aproveitamento claro nesse sistema. Por outro lado, a questão de comissões etc. depende dos “bolsões”. Não é comissão para toda coisa geral. Tem a comissão do meio ambiente, a comissão da educação, disto ou daquilo, as comissões singulares, que vão atuando em sistemas capilares. É claro que isso é complexo mesmo. É um assunto altamente complexo, numa sociedade complexa como a nossa. O que nós não podemos é ter uma posição, digamos, pessimista quanto a isso, porque depois não há sistema nenhum, nenhuma engenharia social ou institucional que nos permita realmente tomar conta da sociedade. Para largar a sociedade justamente para quem? Para aqueles que são os donos do sistema, os hegemônicos do sistema, os donos do capital. OLAVO DE CARVALHO: Quando você fala dos “donos de capital”, eu queria lembrar uma coisa a você. A chamada corrente liberal só tem uma instituição

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que a defende: chama-se Instituto Liberal. O Instituto Liberal de São Paulo fechou por falta de verbas. Jamais faltam verbas para o Fórum Social Mundial, para o PT, para o MST etc. Portanto, a distribuição do poder e do dinheiro não é exatamente esta que geralmente se pensa: “Aqui estão os burgueses defendendo os seus interesses e ali estão os partidos de esquerda heroicamente lutando em favor dos pobrezinhos.” Simplesmente não é assim. Eu não vim aqui para defender proposta nenhuma, o meu ponto de vista é a realidade, e a realidade no momento é esta. Por exemplo, essa capilaridade se faz em grande parte através de ONGs. Vocês sabem que nenhuma das ONGs que nascem no Brasil é produto local? Vocês sabem que a ONU tem um curso de formação de movimentos sociais no Terceiro Mundo que anualmente espalha vinte mil profissionais disso para tudo quanto é lugar, subsidiados por outras ONGs enormes financiadas por Rockefeller, George Soros, Morgan etc.? Vocês têm idéia de que essa tal da democracia participativa é ela mesma uma obra de engenharia social que está sendo implantada em toda a parte, e não está surgindo de baixo? Estudem esse assunto. Estudem a estrutura atual da ONU. Existe um livro do Pe. Michel Schooyans, que foi professor de filosofia no Brasil, chamado La face cachée de l'ONU (“A Face Oculta da ONU”), que trata dessas coisas. Então, notem bem que a estrutura do poder global é bem diferente do que uma análise marxista permitiria imaginar. A estrutura do poder não corresponde a isto. Muita coisa que parece movimento social vem diretamente do grande capital. P: Eu acho as posições dos dois muito radicais, né. Então, eu queria saber a opinião de “um”, que coloca que aparentemente não há solução, e a do professor, que o sistema capitalista não seria a solução. Eu queria saber se dentro do próprio sistema capitalista vocês não acham completamente inviável uma coisa que o pessoal abomina: o hobbesianismo, o princípio do interesse próprio. Na verdade o interesse próprio de cada indivíduo capitalista, digamos, não pode encaminhar em direção ao interesse social, sem pensar num idealismo romântico, sem apelar para o bom senso ou para a caridade, mas que o próprio capital para se manter ele vai criar, e cria – como tem criado – a função social das empresas, a ação voluntária das pessoas, para desenvolver os próprios

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mercados que ele quer explorar e não, ao contrário, destruir mercados dos quais ele precisa. ALAÔR CAFFÉ ALVES: Não, não se trata disso, do fato de que o capital não faça o possível para ficar com uma fachada boa e muito interessante. E não se trata do fato de que o capital não faça também alguma coisa de cunho social. Eu não coloquei essa questão, eu coloquei uma questão de estrutura interna. De qualquer forma, todas as empresas vão buscar o quê? Elas querem mercado, querem tentar colocar os seus produtos. O que eu disse aos senhores é que com a inclusão da sofistificação grande da técnica e da ciência, o sistema se coloca a si mesmo em xeque. Há uma contradição interna no sistema (que não foi comentada aqui), e eu falei com toda a clareza: o sistema, por receber toda a dimensão muito sofisticada da produção… Não porque o capitalista queira, ele não quer isso mesmo. Qual é o dono do capital que vai querer isto? Vai querer nada. Mas ele é obrigado a fazer em termos da sua competição mundial, ele precisa fazer isso. Mas ao fazer isso, ele libera necessariamente a mão-de-obra porque faz parte dos custos. Ele tem de tirar isso da frente. Os custos mais facilmente tiráveis, ou seja, que são possíveis de ser eliminados, são os custos relacionados com a mão-de-obra. A matéria-prima ele tem de aplicar, as máquinas ele tem de fabricar e tem que utilizá-las, não tem jeito. E as máquinas e a matéria-prima vão todas para o produto. A única coisa que ele pode eliminar é a mão-de-obra. Mas na hora em que ele elimina a mão-de-obra (não é porque ele queira, ele vai ter de fazer isso), mesmo fazendo ajustes sociais, fazendo tudo o que você imaginou, a beleza da coisa, se ele está metido em algum processo de acumulação, ele vai precisar necessariamente continuar o processo de expansão da economia, porque a lei do capital é esta mesma: é de permanente ampliação e acumulação. Ele entra num processo de crise e de conflito, que tem um limite, é claro. O capital tem limite, gente. Ele é um processo social, histórico. E como ele tem um começo, um dia vai ter um fim. Um dia vai ter, mas eu não sei nem quando. Qual é a idéia que se vai ter disso? Ele é um processo social. Ou o capitalismo é eterno? De repente apareceu o final da História: é o “Fim da História”? Quebrou aqui e aqui, e não tem mais? Não é isso. Nós estamos

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mostrando as contradições que levam o sistema a outra situação, mesmo um sistema que seja em geral “bonzinho”. OLAVO DE CARVALHO: Bem, evidentemente o capitalismo pode acabar. Se o socialismo acabou, por que é que o capitalismo não pode acabar? Ademais, o capitalismo não tem de ser defendido como ideal para resolver o que quer que seja, porque, em primeiro lugar, o capitalismo já existe. E quando eu o defendo – e mesmo assim com limitações, que eu não sou nenhum entusiasta do capitalismo – é apenas como algo que está funcionando, que funciona bem onde lhe permitem funcionar. Destruí-lo em função de hipóteses como “democracia participativa” é suicídio. Até o momento se falou em contradições: é claro que tem contradições, toda sociedade tem contradições. Mas nunca o capitalismo chegou às tais contradições que Marx denominava “contradições antagônicas”, que o destruiriam desde dentro. A isso não chegou até hoje; e o socialismo chegou. O socialismo mostrou que é incapaz de passar de um certo ponto. Em matéria de contradições antagônicas, o socialismo está ganhando. ALAÔR CAFFÉ ALVES: Parece que não se percebeu claramente a lei do materialismo histórico. É que a indução do socialismo no século passado foi artificial. Não é que socialismo acabou, como você está dizendo. Ele nem começou. OLAVO DE CARVALHO: Ah! ALAÔR CAFFÉ ALVES: Nem começou. OLAVO DE CARVALHO: Então me enganaram o tempo todo! ALAÔR CAFFÉ ALVES: Enganaram todo o tempo. Quer dizer, isso de ver fantasmas socialistas de anos atrás por toda a parte [palavras inaudíveis], isso realmente obscurece a pessoa. OLAVO DE CARVALHO: [Risos.]

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ALAÔR CAFFÉ ALVES: É preciso ter clareza disso aí. O socialismo como tal, como o próprio Marx disse, teria de fazer com que as forças produtivas avançarem de tal maneira a chegar no limite das relações sociais de produção. O fato é que até agora não se chegou aos limites do sistema. Está se percebendo agora que está começando a entrar nesse processo. OLAVO DE CARVALHO: Puxa, que maravilha… ALAÔR CAFFÉ ALVES: A crise está começando a entrar agora. Agora é que estão começando a se desenvolver os problemas de desemprego, do social etc., né? A crise mundial, onde as coisas são irracionais. Um sistema como esse americano, que faz a coisa mais absurda e irracional, como atacar um país inteiro sem motivo praticamente, a não ser um motivo pessoal, um motivo articulado do próprio país, que é a busca de energia que ele precisa tanto para desenvolver o seu sistema. Porque se ele não tem energia, minha gente, ele cai, ele cai completamente. Ele precisa segurar a energia. É por isso que eles fizeram isso. Não é o Bush que é mau, não. O Bush não é malvado (pode até ser, mas a gente nunca sabe). Ele tem de fazer isso em razão da própria impulsão do sistema. Pode estar certo, Olavo: o socialismo não começou, não. Ainda temos muita coisa para ver. Muita água ainda vai correr embaixo da ponte. Infelizmente, eu gostaria que as coisas fossem mais rápidas, mas não são. O que aconteceu foi o desenvolvimento de um tipo de revolução artificial, que não chegou justamente aos limites que o sistema vai ter. Porque os limites o sistema vai ter. E está tendo já, está começando agora. Não sei quanto tempo, pode durar duzentos anos, sei lá. No entanto, é isso mesmo. Estamos agora já com a indicação histórica que alguma coisa agora está condenada pelo sistema capitalista. É isso aí que eu estou dizendo. Agora, se vai ser socialismo… que tipo de socialismo, que forma de socialismo. Isso nós não sabemos. É claro, isso não sabemos. OLAVO DE CARVALHO: Bom, vocês sabem quantos livros foram publicados com o título de “A Crise Geral do Capitalismo”? ALAÔR CAFFÉ ALVES: Ih, muitos…

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OLAVO DE CARVALHO: Milhões e milhões. Todos faziam esse diagnóstico: “Agora sacamos a crise, agora cai, e agora virá o socialismo.” E quando se diz que muita água vai correr, não: muito sangue ainda vai correr. Matar cem milhões não foi o bastante. Notem bem, uma ideologia que, com esses mesmíssimos argumentos da estrutura de classe, da ideologia, do mercado etc., tomou o poder em um terço do globo terrestre, matando cem milhões de pessoas e só conseguindo gerar miséria em proporções jamais vistas, como se gerou na China – depois de tudo isso, é preciso ter muita cara-de-pau para dizer: “Não, mas aquilo não era o verdadeiro socialismo. Nós vamos tentar outra vez. Vocês me dêem mais um creditozinho de confiança, e desta vez nós vamos acertar.” Ora, por que vamos dar esse crédito de confiança? Baseado em quê? Na autoridade dos cem milhões que vocês mataram? Chega disto! O capitalismo não é grande coisa, o capitalismo chega a ter aspectos até demoníacos. Porém, esse tipo de malefício ele jamais fez: nunca chegou tão profundamente. Portanto, não vamos destruir uma coisa razoável que temos, que pode ser mudada e aperfeiçoada muito, para tentar apostar novamente no socialismo. Mais ainda: porque não é possível uma teoria dizer ao mesmo tempo que as idéias não existem separadamente da história, que as idéias só existem pela sua encarnação material na história, e em seguida dizer que toda a história deles durante um século não o compromete de maneira alguma, e que ele como ideal permanece puro e intocável no céu das idéias platônicas. Isso é charlatanismo. ALAÔR CAFFÉ ALVES: [Palavras inaudíveis.] É evidente que isto não é uma resposta. Em primeiro lugar, ninguém está aqui defendendo a União Soviética, nem está pretendendo que era isto que eu estaria fazendo. Ele [Olavo] está com fantasma na cabeça. Também isso nem precisa mais pensar, que isso já foi mesmo, é coisa da História. Então é um fantasma pensar que o que se propugna é aquilo que estava lá. Não é nada disso. Soube-se que houve erros profundos, sérios, seríssimos. Exatamente porque se propôs impor um sistema fora da hora, fora da História, da dimensão histórica. Porque não se viu realmente a dimensão histórica. Então, é isso que se está colocando aqui. Não é a defesa de coisa nenhuma, de três milhões, de cinco milhões, de trinta milhões que foram

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perdidos em relação a isto; mesmo porque outros sistemas [palavras inaudíveis], ele [Olavo] não provou que o capitalismo não fez tantas mortes. OLAVO DE CARVALHO: Não fez! ALAÔR CAFFÉ ALVES: Não? OLAVO DE CARVALHO: Não fez! Não fez! De jeito nenhum! ALAÔR CAFFÉ ALVES: Tantas mortes e muitos problemas gravíssimos de muitas guerras, desde que existem claramente, basicamente as guerras deste mundo inteiro? Quem fez isto, senão todo o sistema burguês capitalista que fez isto? É evidente que houve também essa ampliação burocrata em termos objetivos por parte do socialismo. Então, neste caso, o certo é o seguinte, só para terminar: não adianta entrar nesta questão. Eu quero que ele me explique como é que ele vai resolver o problema das contradições dele (mas claro, tem de ser relido com conceitos) decorrentes deste processo que está ocorrendo com o desenvolvimento tecnológico das forças produtivas, expulsando a mão-de-obra, expulsando a capacidade de poder consumir aquilo que o próprio capital produziu. Eu quero que ele me explique, me explique! OLAVO DE CARVALHO: Essas contradições são exatamente as mesmas que Lenin diagnosticava em 1915, e em nome das quais se fez a revolução. Agora, quanto ao morticínio, está aqui: O Livro Negro do Capitalismo. Quando saiu O Livro Negro do Comunismo, feito por pessoas de esquerda, que provava documentadamente que os comunistas haviam matado cem milhões de pessoas, encomendou-se a um monte de intelectuais que produzissem, de qualquer maneira, cem milhões de vítimas do capitalismo. Então, eles produziram este livro: são trinta autores de alto prestígio no meio esquerdista. Então, para chegar aos cem milhões, foi preciso atribuir ao capitalismo todas as vítimas da Segunda Guerra Mundial (cinqüenta milhões, todas as vítimas de todos os lados), todas as vítimas da Revolução Espanhola (de todos os lados), todas as vítimas da Primeira Guerra Mundial… Isso é charlatanismo. Todo marxista é um charlatão.

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P: Eu gostaria que os dois debatores comentassem algumas considerações minhas e vou fazer uma pergunta específica para o prof. Olavo. Pelo tema do debate, eu esperava que houvesse uma discussão a respeito das principais teses desenvolvidas pelo Marx, mas infelizmente as discussões tomaram outro rumo, e eu percebo que as teses propriamente de Marx foram tangenciadas. Como por exemplo a crítica feita ao materialismo, se ele não é o poder de a matéria gerar frutos, o que me parece uma concepção inclusive meio bíblica – o homem feito do barro etc. Quando na realidade o fundamento do marxismo reside justamente na interação do homem com a natureza, que é, segundo o próprio Marx, o corpo inorgânico do homem, e a produção da ideologia se dá a partir dos pressupostos da atividade espiritual humana. Então, nós estamos aqui fazendo o quê? Nós estamos aqui debatendo, mas nós estamos aqui vestindo roupas, nós estamos calçados, os debatedores estão tomando água, fumando cigarro. E de onde vêm essas coisas? Tudo isso foi produzido, tudo isso foi criado de alguma forma através de alguma espécie de intervenção humana. Isso é a produção da ideologia, e não dizer que o trabalhador tem de pensar como proletário e o capitalista tem de pensar como um crápula. E isso é ridículo. E a maior prova ao contrário dessa fórmula é o Presidente Lula, que é um trabalhador e que diz: “Eu nunca fui de esquerda.” Então, a questão é mais por aí. Eu gostaria que os debatedores comentassem essa minha consideração. Outra delas é que me pareceu ali muito claro o tempo todo que o socialismo foi discutido em termos de planificação estatal, quando na realidade a teoria de Marx é muito diferente disso. Não se trata de perfectibilizar o Estado ou de aprimorar as camadas políticas, tampouco de controlar o mercado. A perspectiva de Marx é radical. A perspectiva de Marx é a destruição do mercado, a destruição do Estado, mas a destruição do mercado não para substitui-lo pela planificação, mas para substitui-lo pela apropriação social. Esse é segundo ponto que eu gostaria que fosse comentado. E aí, por fim, a pergunta para o prof. Olavo. Eu fiquei muito feliz com a vinda do senhor aqui, pela oportunidade de pedir um comentário sobre um artigo que eu li há cerca de um ano ou um ano e meio no jornal O Globo, se não falha a memória, em que você afirma que o então presidente Fernando Henrique Cardoso estaria mancomunado com o

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MST e preparando a transição do Brasil ao socialismo. Eu gostaria que o senhor comentasse esse seu ponto de vista. OLAVO DE CARVALHO: Vocês façam a conta de quanto saiu do governo FHC para o MST. Sem isso, o MST simplesmente não existiria. É só isto: ele fez o MST, ele é o criador do MST. Quais foram as intenções ideológicas, eu não sei, evidentemente. Porém, houve uma série de artigos publicados por Alain Touraine na Folha de São Paulo (Alain Touraine é uma pessoa que tem influência grande sobre a cabeça de FHC), nos quais ele traçava o plano de uma virada do Brasil à esquerda. Eu não sei se foi isto que FHC quis ou não – nem me cabe conjeturar –, mas eu estou apenas cotejando dois fatos e vendo que é possível haver uma ligação. Quanto saberemos se houve isso ou não? Daqui a muito tempo, certamente. Mas que o governo FHC construiu o MST com verbas do Estado, isso é um fato inegável. ALAÔR CAFFÉ ALVES: Eu não tenho muito que comentar à formulação dessas questões. Elas estão muito corretas para mim, né? Ou seja, o fato de que a materialidade depende das relações de produção dos homens. Por exemplo, o caso que foi colocado aqui: nós estamos aqui nessa mesa, tudo está sendo visto, todos estamos vestidos, temos nossa alimentação já preparada, temos nossas roupas; amanhã ainda teremos porque outras pessoas estão trabalhando para nós também. Nós estamos trabalhando para eles, e eles para nós. Há uma relação social envolvida necessariamente. Isto é uma dimensão social grave e séria. Eu não posso estabilizar que os homens, apenas pelas suas idéias, é que transformam as coisas ou fazem as coisas; fazem através do movimento prático da praxis deles, dentro da estrutura social e econômica onde há a troca entre os homens, fundamentalmente. Portanto, eu não muito o que dizer sobre esse aspecto da matéria. Não é a matéria no sentido, como eu disse a vocês, abstrata, mas é a matéria do ponto de vista das relações humanas concretas, o homem agindo sobre o meio e transformando o meio. E quanto à apropriação social, que foi uma das propostas, mostra claramente que a apropriação social é feita de uma forma totalmente desequilibrada. Por isso, se houver essa questão que foi colocada aqui pelo Olavo, pelo jornalista Olavo, foi colocada a respeito da

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necessidade de estabelecer uma esquerda, de uma posição à esquerda. Se for para a distribuição melhor da sociedade, uma distribuição das riquezas, que vamos para a esquerda. Ué, se há uma miséria imensa, e nós vemos que as estruturas tradicionais não resolvem a questão, não tem importância: vamos à esquerda. Pois se ela tentar resolver e se resolve, melhor. E Agora, nós não temos a certeza de tudo isso, é verdade. Mas dizer que o sistema é bom, é quase que dizer… Primeiro ele diz: “Olha, eu não sou um arauto do sistema, de forma nenhuma, mas vamos então admiti-lo como bom, que ele é a única coisa boa que tem.” Mas nós temos também expectativas, utopias, nós temos também meios de ver o mundo, nós temos também aspirações, nós temos nossa imaginação, e nós precisamos realmente imaginar um mundo melhor e utópico. Isso é otimismo. Não é um pessimismo que diz que tudo o que está à frente, se for à esquerda, não presta. Quer dizer, aqui se defende exatamente posições de direita dizendo não está se fazendo isso: “Não estou fazendo isso.” Está aqui atacando a esquerda e dizendo: “Não é uma diferença de idéias.” É um ataque com toda força à esquerda, às visões marxistas etc., que são razoáveis em muitas questões. Como eu já disse, não é perfeito. Não é que seja a panacéia, e não será mesmo. Nós temos de criar a nossa própria panacéia. Nós temos de criar o nosso mundo, a nossa utopia. Não é Marx no século XIX. O importante é que temos de utilizar isso. É pena que tudo isso que nós conversamos e desenvolvemos nós pensamos em falar em “Marxismo, Direito e Sociedade”, especialmente a questão do Direito. E eu vi que isto fugiu completamente. Talvez eu tenha sido vítima da direita. A esquerda também é vítima, embora ele diga que não, porque tudo aqui é da esquerda, todos são, até as novelas são de esquerda, a Globo é de esquerda. É ver as coisas que não tem, que não existem mais. Até esse fantasma do chamado comunismo, isso acabou. Nós temos de agora buscar uma outra vida, uma outra forma, uma outra sociedade. É isso que tem de fazer, e não ficar remoendo problemas do passado. Existe aqui até um movimento muito sério, muito grave em São Paulo, chamado TFP (Tradição, Família e Propriedade), que faz esse tipo de coisa, ficam agindo nas ruas como se houvesse ainda esse fantasma, como se essa esquerda fosse o quê? Ela simplesmente vai tentar desenvolver um sistema onde haja mais distribuição social. Mas é só isso que se pretende fazer. O que se pretende fazer? Uma 75


igualação, uma igualdade melhor entre os homens. É isso que se pretende fazer. O que é que se pretende fazer? O que é que se pretende fazer senão melhor igualdade, maior igualdade, para condicionar uma vida de paz social, e que as pessoas tenham oportunidade de aprimorar sua personalidade, a sua vida… Enfim, é isso que nós queremos. Não queremos mais nada do que isso. E não ficamos aqui apresentando esses exemplos; esses exemplos históricos que são mais do que conhecidos, sabemos que tem isso. Até ele [Olavo] chega a dizer que esses exemplos são todos eles terríveis; do outro lado, o nazismo não teve nenhum problema… OLAVO DE CARVALHO: [Olavo protesta.] ALAÔR CAFFÉ ALVES: “Nós não sabemos, não conhecemos nada.” E o capitalismo é um sistema absolutamente muito bom. O que é que é isto? Todos estão de acordo com esse tema que ele está, com essa distribuição terrível que ele está, com essa miséria do Brasil? Daqui a pouco vai se falar que a miséria é determinada pelos esquerdistas, pela esquerda… OLAVO DE CARVALHO: E é, e é. ALAÔR CAFFÉ ALVES: …como está se fazendo colocando a questão de que o FMI é de esquerda, os EUA é de esquerda, Rockefeller é de esquerda etc. Isso é uma coisa maluca. É uma questão emocional muito grave… OLAVO DE CARVALHO: Ora, o prof. Alaôr tem a pretensão de diagnosticar os meus problemas emocionais. Dele, eu só diagnostico uma coisa: ignorância. Primeiro, ignorância dos escritos de Marx. Ele diz que a matéria é função da produção; Marx diz exatamente o contrário: Marx subscreve inteiramente as concepções atomísticas de Demócrito e aceita a ciência newtoniana como a tradução perfeita da realidade. Ademais, a idéia de uma dialética interna da matéria está exposta nos escritos do próprio Engels e faz parte da tradição do movimento comunista. Abolir tudo isso, dizendo que Marx só falou da produção é absolutamente ridículo, é coisa de ignorante, para não dizer mentiroso. Não o acuso de mentiroso mas o acuso de ignorante. Em segundo lugar, com um

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homem que chega para mim e diz por um lado que “ah, esse momento é da esquerda, a esquerda está com tudo” e, por outro lado, diz que não existe esquerda nenhuma, em algum ponto a coisa está falhando. Em terceiro lugar, o conselho de “esqueçamos a História, nada disto aconteceu, vamos tentar de novo, vamos confiar”, isso é uma palhaçada, isso é pueril. Não se pode aceitar uma discussão nessa base. ALAÔR CAFFÉ ALVES: Bem, eu evidentemente não estava esperando essa agressividade. Essa foi demais. OLAVO DE CARVALHO: Agressividade é a sua, que começa a falar em problemas emocionais. ALAÔR CAFFÉ ALVES: Veja bem, tem de respeitar. Chamar a gente de ignorante, e pressupor que eu não conheça Marx… OLAVO DE CARVALHO: Pressupor não: afirmo! ALAÔR CAFFÉ ALVES: ...e ele diz também que quatro décadas foi do Partido Comunista. Maluco isso! Nunca foi coisa nenhuma! Foi nada! OLAVO DE CARVALHO: O quê? Está me acusando de mentiroso? ALAÔR CAFFÉ ALVES: O senhor me acusou de mentiroso aqui. OLAVO DE CARVALHO: Não, eu te acusei de ignorante. ALAÔR CAFFÉ ALVES: [Palavras inaudíveis.] [Tumulto.] OLAVO DE CARVALHO: Você é que está mentindo. ALAÔR CAFFÉ ALVES: Você é que me xingou! OLAVO DE CARVALHO: Você é mentiroso! Safado!

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ALAÔR CAFFÉ ALVES: Ele vem aí com coisa [palavras inaudíveis] antisocialista ou anti-marxista e vem dizer que já foi, sabe, e conhece tão profundamente. Imagine que ele agora não é, porque ele analisou tão profundamente isso e está dizendo… OLAVO DE CARVALHO: Pois foi exatamente isso que você nunca fez. ALAÔR CAFFÉ ALVES: Ora, pelo amor de Deus! OLAVO DE CARVALHO: Você é um idiota. ALAÔR CAFFÉ ALVES: Olha aí! Quer dizer, eu estou falando ao mesmo tempo; agora, se você disser que eu sou idiota. Olhem, vocês me perdoem. Eu sou da Faculdade. Eu não vou permitir uma coisa dessa! Isso é uma agressão pessoal. Eu esperava… OLAVO DE CARVALHO: Você me agrediu primeiro, falando de problemas emocionais. ALAÔR CAFFÉ ALVES: Eu comecei muito bem, dei para vocês o mais possível a minha idéia a respeito de um conceito sobre Direito, sobre a questão que o Marx colocou; e a coisa foi num crescendo que eu não vou me admitir, vocês me perdoem. ALGUÉM DA PLATÉIA: Está fugindo? ALAÔR CAFFÉ ALVES: Estou fugindo. Vou fugir. Estou fugindo para respirar. Eu sei que vocês, grande parte de vocês, foram mobilizados. Houve uma mobilização aqui, séria, grave, séria, e eu não vou me permitir, como professor da casa, ser agredido dentro da minha casa, por uma pessoa como esta. Vocês me perdoem. ***

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Nota de O. de C.: Ao final dos debates, há um tumulto geral, aplausos e vaias misturam-se de maneira indiscernível. A maior parte das vaias condena a atitude de desistência do prof. Alves, mas num canto da sala ouve-se distintamente o refrão gritado por um grupo organizado de jovens de idade manifestamente inferior à da média da platéia: “Alerta! Alerta! Alerta aos fascistas! A América Latina será toda socialista.”. – O. de C.

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