TFG - Crônicas de Casa: Uma visão fenomenológica do lar

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CRร NICAS DE CASA | Victรณria Novais





CENTRO UNIVERSITÁRIO BELAS ARTES DE SÃO PAULO Curso de Arquitetura e Urbanismo

Victória Novais

CRÔNICAS DE CASA: uma leitura fenomenológica do lar.

São Paulo 2019



VICTÓRIA NOVAIS

CRÔNICAS DE CASA: uma leitura fenomenológica do lar.

Trabalho Final de Graduação apresentado ao curso de Arquitetura e Urbanismo do Centro Universitário Belas Artes sob orientação da Professora Dra. Aline Nassaralla Regino.

São Paulo 2019



À América Latina que ainda luta


Gostaria de agradecer, primeiramente, a meus pais pela imensidão de amor em que me envolveram durante toda minha vida. Obrigada por me ensinarem tudo sobre humanidade, pelo apoio incondicional em todos meus projetos malucos, pelos conselhos, conversas, abraços e por acreditarem em mim acima de tudo. Agradeço também minha avó Sylvia, minha tia-madrinha Cris e tia-amiga Andréa; ao meu tio-padrinho Fábio e meu irmão e companheiro de alma Léo; a minhas amigas-irmãs e confidentes Laís e Letícia. Obrigada por estarem aqui cada minuto desses 22 anos. Sou imensamente grata a todas as pessoas de grande coração que cruzaram meu caminho durante esta jornada. Obrigada Leonardo Galhardo, Isabella Nakano e Fayra Miranda por estarem comigo durantes esses 5 anos, sem vocês eu não seria capaz de terminar essa faculdade. Igor Vice e Caetano Grippo pelas inúmeras conversas que acalmaram a alma, motivaram a inteligência e aqueceram o coração.


À Clara Lindorfer que, embora longe, continua sendo a tampa da minha panela; obrigada pela melhor amizade que eu poderia ter encontrado e que não há oceano Atlântico capaz de separar. Obrigada a todos os profissionais incríveis com os quais tive o prazer de estar. A minha querida orientadora Aline Regino pela paciência e parceria; à Denise Lindorfer pelos ensinamentos; e aos professores Ademir Santos Pereira, Adriane Baldin, Alzira Manfré, Ivanir Abreu, Joan Villa, Marcos Virgílio e Santiago Velez pelas excelentíssimas aulas. Obrigada por serem inspiração para a arquiteta que quero ser. Agradeço também a todos que colaboraram com a execussão deste trabalho. Amanda Negri, Beatriz Ruston, Daniel Cabrel, José Ataíde, Leopoldo Cavalcante, Nayani Real e Thiago Picolo por abrirem suas casas e memórias a esta pesquisa. Obrigada, também, a Hugo Pereira e Matheus Moreira pela imensa ajuda durante todo esse processo.



A natureza inerentemente acientífica da arquitetura advém do fato de que sua prática foca fatos e sonhos, conhecimentos e crenças, deduções racionais e emoções, tecnologia e arte, inteligência e intuição, bem como as dimensões temporais do passado, presente e futuro. (PALLASMAA, 2018)


.:RESUMEN:.

Esto trabajo trata, em forma de investigación monográfica, las relaciones empíricas y triviales del individuo con el espacio habitado. Con base en la casa, observamos elementos subjetivos que involucran nuestro afecto por un espacio construido dado y sus fundamentos adjuntos. Para esto, nos basamos em teorías fenomenológicas de análisis, cuyo objetivo es comprender cuestiones esencialmente no científicas de la naturaleza humana y asignar al estudio de la arquitectura una dimensión emocional y subconcinte academicamente válida.


.:RESUMO:.

Este trabalho trata, em forma de pesquisa monográfica, sobre as relações empíricas e triviais do indivíduo com o espaço habitado. Tendo como base a casa, observam-se elementos subjetivos que envolvem nossa afeição a um determinado espaço construído e seus fundamentos circundantes. Para isso, são utilizadas teorias de análise fenomenológicas, que visam compreender essencialmente questões acientíficas da natureza humana e atribuir ao estudo da arquitetura uma dimensão emocional e onírica academicamente válida.


INTRODUÇÃO..................................17 CRÔNICA 1: A CRÔNICA DO DESCONFORTO..........25

CAPÍTULO 1: A FENOMENOLOGIA..................31 O método................................34 Espaço, lugar e caráter..................38 O habitar...............................41 CRÔNICA 2: A SALA DA CASA DA BIA.............45

CAPÍTULO 2: A CASA..........................53 Casa e lar..............................56 Domesticidade e intimidade..............60 Domesticidade e memória.................64 CRÔNICA 3: NAYANI, A CASA AGORA É SUA..........73 CAPÍTULO 3: A CASA DOS OUTROS................81 As perguntas............................84 As respostas............................87 Síntese: Os cinco elementos.............92 CONSIDERAÇÕES FINAIS........................111 REFERÊNCIAS...............................118 APÊNDICE...................................125


.:SUMÁRIO:.



.:INTRODUÇÃO:.

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O presente trabalho final de graduação debruçase sobre o estudo da Casa em sua dimensão subjetiva - como lugar simbólico do habitar - pretendendo compreender, em formatação de pesquisa científica monográfica, as motivações pelas quais nos afeiçoamos a um determinado espaço. Dessa forma, busca-se estabelecer uma análise teórica sobre o habitar humano e suas diversas faces, a fim de alcançar a essência do conceito de lar, suas relações sociais e os diversos meios que refletem esses aspectos. As motivações para a elaboração deste trabalho, e escolha do tema, estão baseadas na compreensão das relações empíricas do indivíduo com o meio em que habita. Procurando assimilar as

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particularidades humanas que envolvem o ambiente residencial. Para isso, procurou-se, através dos princípios da filosofia fenomenológica, pontuar a complexidade da aplicação de tais princípios à arquitetura, expondo as dificuldades que envolvem a pesquisa científica a partir da perspectiva pessoal – aquela cujo dado é subjetivo a um indivíduo. A dedicação a este tema é, também, de certa forma, uma observação a forma vaga como este assunto é abordado durante o curso de Arquitetura e Urbanismo. Embora haja uma imensa preocupação e discussão sobre a crise habitacional que nos acompanha durante a última década, é mínimo o espaço para discutirmos – como estudantes, cidadãos e profissionais – as questões individuais que levaram nossa sociedade a este ponto. O principal objetivo desta pesquisa é salientar e descobrir formas mais humanas de praticar a arquitetura, de modo a alcançar a compreensão da dimensão subjetiva do mundo que nos cerca e, que para nós arquitetos, é a principal matériaprima da nossa profissão. Como ponto inicial do debate sobre o habitar e suas instâncias, foi dedicado o espaço do

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primeiro capítulo a recuperação teórica sobre os principais conceitos abordados durante esta pesquisa. Dessa forma, foi estabelecido como base o pensamento de Edmund Husserl, filósofo e matemático alemão, considerado o fundador do pensamento fenomenológico. Logo após, adentrase as discussões conceituais que rondam o debate do habitar. Primeiramente, procura-se compreender os conceitos de lugar e espaço segundo a visão de pensadores da fenomenologia aplicada à arquitetura. Em seguida, é feito o exercício de redução fenomenológica - analisado no primeiro item - de modo a refletir sobre a palavra “habitar”. No segundo capítulo damos continuidade à pesquisa conceitual dos termos que envolvem o tema. Focando na casa, é estabelecida as distinções entre as palavras casa e lar; além de uma breve análise etimológica que busca justificar o uso da palavra casa, no português coloquial, tanto para o conceito de espaço arquitetônico quanto para o sentimento a ele atribuído. Em seguida, busca-se compreender as ideias de memória, domesticidade e identidade, atribuindo a elas a estrutura principal da sensibilidade do espaço residencial. Como apoio teórico a estes pontos, são utilizadas as obras de Juhani Pallasmaa,

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Erica Negreiros de Camargo e Marilena Chauí, em suas respectivas áreas. Sobre o último capítulo foi concebido espaço para a análise dos dados coletados - em formato de entrevistas - e seus eventuais desdobramentos. De antemão, foi considerada a discussão, sob a perspectiva da teoria fenomenológica, reputadas as diversas informações obtidas durante as entrevistas feitas no decorrer do semestre. Para isso, foi estabelecida uma amostra de oito pessoas a fim de ilustrar os conceitos trabalhados nessa pesquisa, fornecendo histórias reais sobre suas experiências domésticas. ***

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.:CRÔNICA 1:. A Crônica do Desconforto

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.:CAPÍTULO 1:. A Fenomenología

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A fenomenologia foi, de fato, uma das teorias mais comuns em escritos de arquitetos assim que iniciada a busca por referências para esta pesquisa. Porém, por se tratar de um pensamento complexo, e principalmente por tanger assuntos abstratos, sentiu-se a necessidade de voltar os estudos às raízes desta metodologia. Buscando suprir este vácuo houve uma intensa dedicação em estudar e absorver algumas concepções já antes estabelecidas, principalmente, por pensadores do último século. Dessa forma, sendo este o método eleito para o auxílio da execução deste trabalho, no decorrer deste primeiro capítulo, foi dedicado vigoroso tempo na compreensão do raciocínio

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fenomenológico e sua eventual aplicabilidade ao estudo da arquitetura. Para isso, foram resgatados autores e autoras de outras áreas do conhecimento, que de certa forma também utilizaram destes estudos em suas trajetórias, para obter, da maneira mais clara possível, as definições do que é a fenomenologia.

O método Vertente de estudo inaugurada pelo filósofo e matemático Edmund Hurssel (1859 - 1938), foi um método oriundo da crítica em relação aos princípios de análise científica positivistas, que pautavam os estudos e resultados em observações relativistas acerca de determinado assunto. Para Hurssel (1913 apud Dchtchekenian, 2013) a análise científica, muito além da rasa observação de algo, deve trazer o objeto, independente de sua natureza, ao campo da reflexão profunda a fim de perceber o seu real sentido e sua relevância. Ainda de acordo com o pensamento de Hurssel (1913 apud Dchtchekenian, 2013), o verdadeiro conhecimento sobre algo estaria relacionado a prática - denominada por ele mesmo - como

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redução fenomenológica. Este exercício teria como principal objetivo iluminar aquilo que é implícito no senso comum, aquilo que é dado como óbvio e, por isso, é privado de uma análise reflexiva. Este método busca, portanto, alcançar a definição irredutível a qualquer outra definição de determinado objeto, almejando superar, inclusive, as barreiras ideológicas do tempo e dessa forma alcançar o verdadeiro significado de algo. A análise fenomenológica visa reduzir o objeto a um estado puro de ser, ou seja, a um ponto genuíno de sua existência, não se esquecendo, todavia, de suas inúmeras aplicações e significados variáveis. Para que o exercício de redução tenha um resultado verdadeiro, deve-se buscar o ponto em comum entre as diversas faces de um objeto em suas mais variadas aplicações a fim de extrair o elo que converge todas as circunstâncias àquela peça de estudo. Na arquitetura, a fenomenologia nos guia pela análise elementar de aspectos corriqueiros da vida, do estudo da presença de algo apenas por sua simples presença. Desse modo, os pensadores

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desta vertente na arquitetura se debruçam sobre os objetos criados por meio da relação sujeito e o meio que lhe é dado. O movimento de procura pela essência dos objetos criados, a partir da nossa permanência no mundo, são nada mais do que a manifestação da consciência do sujeito cognoscente - aquele que sabe ou busca conhecimento. A consciência, para os pensadores fenomenológicos, é a compreensão de um fenômeno, isto quer dizer que, a consciência é o sujeito que procura pelo significado de algo. Observando a relação estabelecida entre o sujeito pesquisador (sujetio consciente) e o objeto de pesquisa, o resultado é, então, indissociável das associações passadas por esta consciência. O processo de redução, desta forma, visa encontrar a essência do objeto de modo coletivo, as vezes não encontrando uma verdade universal, mas algo comum entre um grupo. O arquiteto e teórico Juhani Pallasmaa (2018), quando discute sobre a aplicação da fenomenologia na arquitetura em seu livro Essências, observa que os relatos sensíveis afloram a essência holística e poética da arquitetura mais do que os estudos que satisfazem os critérios da

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ciência. Para o autor, a arquitetura é apenas possível em uma relação única de significado e emoção. Isso significa, seguindo essa lógica, que a arquitetura é a mediação entre o indivíduo e seu mundo, uma espécie de concretização da batalha entre a consciência e o meio. [...] ela é simultaneamente o meio e o fim; um meio por causa de sua tarefa utilitária, e o um fim como uma manifestação artística que media valores experienciados, culturais, mentais e emocionais. (PALLASMAA, 2018, p. 101).

Os fenômenos são, por tanto, a tomada de consciência sobre algo, que por sua vez se manifesta a partir da relação entre a mente do sujeito e o mundo. A consciência por si só se caracteriza como um fenômeno, ou melhor, como um fenômeno relacional - como aponta Pallasmaa (2018, p. 116): “[...] a consciência é impossível de localizar, pois não é uma coisa, mas um fenômeno relacional que surge entre a mente humana e o mundo”. A fenomenologia é a vertente filosófica que busca estudar e entender os fenômenos da consciência a partir de uma análise em primeira pessoa das experiências. A estrutura fundamental da experiência é a intenção sobre alguma ação ou

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objeto em função de seu sentido. Em outras palavras, a experiência é o direcionamento da consciência sobre algo - o objeto - devido ao seu significado.

Espaço, Lugar e Caráter Dentro da imensa gama de possibilidades de abordagem da fenomenologia apresenta-se a discussão sobre a compreensão das ideias de espaço e lugar. A respeito disso, são colocadas, aqui, as observações feitas pelo teórico norueguês Christian Norberg-Schulz (2008) em seu texto O Fenômeno do Lugar. Seguindo seu pensamento, é possível interpretar o mundo - ou ambiente - como uma composição sobreposta de diversos fenômenos que compõem uma paisagem ou um contexto. De acordo com NorbergSchulz (2008, 444): “juntas, essas coisas [fenômenos] determinam uma qualidade ambiental que é a essência do lugar”. Ou seja, o lugar é a união de diversos fenômenos que nos orienta como seres por intermédio de características semelhantes em determinado ponto. De maneira geral, pode-se dizer que alguns

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fenômenos formam um “ambiente” para outros. Um termo concreto para falar em ambiente é lugar. Na linguagem comum dizse que atos e acontecimentos têm lugar. Na verdade, não faz o menor sentido imaginar um acontecimento sem referência a uma localização. É evidente que o lugar faz parte da existência. (NORBERG-SCHULZ, 2008, p. 444)

Dessa maneira é possível entender que um lugar carrega em si além de características qualitativas, uma série de símbolos associados que são fruto da relação entre o indivíduo e o meio. Enquanto o conceito de “espaço” é entendido apenas como uma organização física do mundo, o “lugar” acontece a partir da atribuição de significado ao espaço ou característica. Ainda de acordo com o pensamento de NorbergSchulz (2008, p. 444 - 459), os elementos de diferentes escalas criados pelo homem se transformam em “pontos focais onde a qualidade peculiar do ambiente se condensa e explica” (NORBERG-SCHULZ, 2008, p. 448). Dessa forma, a propriedade primária do lugar é a concentração daquilo que é conhecido em uma esfera interior “Os lugares são literalmente interiores, o que significa dizer que reúnem o que é conhecido” (NORBERG-SCHULZ, 2008, p. 448).

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Os antigos reconheciam esse caráter como o “espírito do lugar” ou genius loci que representava um “outro” cujo qual os seres humanos deveriam aceitar para serem capazes de habitar. É importante assinalar que geralmente todos os lugares possuem um caráter, e que essa qualidade peculiar é a maneira básica em que o mundo nos é dado. Até certo ponto, o caráter de um lugar é uma função do tempo; ele muda com as estações, com o correr do dia, e com as situações meteorológicas, fatores que, acima de tudo, determinam diferentes condições de luz. (SCHULZ, 2008, p. 450).

O caráter, portanto, é a soma da constituição formal e material do lugar com suas razões práticas de uso e símbolos, é uma totalidade sempre designados por adjetivos. É possível dizer que o caráter é a dimensão qualitativa do lugar, podendo ser definida por qualidades físicas - pequeno, grande, baixo ou alto - ou por qualidades subjetivas - bonito, feio, iluminado ou escuro. A oscilação do caráter do lugar pode ser identificada em diversas situações do cotidiano. Ao passarmos por uma rua majoritariamente comercial durante a tarde de um dia útil uma

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série de características são atribuídas ao uso daquele espaço: O movimento intenso de pessoas, a abertura dos edifícios para rua, os sons e cores se tornam integrantes do contexto ao qual aquele espaço é determinado. Porém, ao passarmos pela mesma rua durante a noite, provavelmente encontraremos outra série de características que formulam um lugar completamente diferente daquela descrita anteriormente, pois o comércio não é mais a atividade central.

O Habitar Observando o que foi apresentado anteriormente, conseguimos iniciar a discussão sobre este tópico afirmando que o habitar é uma condição inerente da nossa existência. Conforme define Heidegger (1951), está ligado a qualquer atividade que caracterize a ocupação de um espaço, ou a atribuição de significado a um determinado local. O habitar está diretamente associado ao produto da relação do sujeito com o mundo em que vive, sendo, em outras palavras, a manifestação do nosso viver. É possível, desta forma, pôr em prática os conceitos de análise fenomenológicos que

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discutimos no item anterior. Observando etimologicamente a palavra habitar, encontramos sob o prefixo latino hab- três grupos de significados distintos em que podemos traçar um caminho. Ao primeiro grupo pertencem as palavras “habilidade”, do latim habilitas, e “hábil”, do latim habilis. A ambas estão atribuídos os significados de possuir conhecimento sobre ou dominar a técnica referente a algo. Também relacionados a este grupo, encontramos as palavras latinas habena e habens - que significam, respectivamente, portador/possuidor e proprietário/rico - que em análise conjunta atribuem ao prefixo hab- o sentido de posse, capacidade ou potência. No segundo grupo está a palavra “habitar”, do verbo latino habito, que carrega o significado de morar, viver, estar, ficar e seus consequentes como “habitante”, “habitat” e “habitação”. Neste caso, percebemos um significado distinto ao prefixo hab- que, aqui, se manifesta como demorar-se e estabelecer-se. O terceiro grupo está representado pela palavra “hábito”, associada, em primeiro plano, ao

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sentido de costume, rotina, prática ou mania e, em segundo plano, ao sentido de predisposição, condição ou estado. Em ambas as situações, o prefixo hab- remete a algo que está em alguém, que é portador e molda sua forma de se comportar. Até aqui, observamos três diferentes campos semânticos atrelados ao prefixo hab-: o de posse, capacidade e potencialidade; o de permanência, demora e estabilidade; e o de predisposição, condição, costume ou rotina. Acompanhando o pensamento do filósofo Martin Heidegger (1951) em seu texto “Construir, habitar e pensar”, o autor estabelece conceito de construir como produto inerente do habitar. Para ele, a condição de habitar é quase sinônimo de ser, uma vez que é impossível existir sem estar sobre a terra. O habitar, portanto, é entendido como demorar-se sobre o mundo que nos capacita, à medida que nos relacionamos com ele, a lidar com as condições dadas ao mesmo tempo que nos condiciona. A habilidade de construir é, então, determinante dos hábitos que adquirimos em nossa relação com o habitat que nos é dado. ***

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.:CRÔNICA 2:. A Sala da Casa da Bia

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.:CAPÍTULO 2:. A Casa

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De antemão, cabem algumas considerações sobre as questões linguísticas e etimológicas que envolvem o uso da palavra “casa” presentes no desenvolvimento deste trabalho. Academicamente, os conceitos do invólucro arquitetônico ao qual é destinada a atividade de morar e o sentimento de pertencimento e afeto com tal ambiente são especificados e separados, respectivamente, pelas palavras casa e lar. Ao pesquisar sobre o tema do habitar doméstico esses termos se apresentam de forma distinta na maior parte da literatura consultada durante esta pesquisa, sendo ela em português (“casa” e “lar”) ou inglês (“house” e “home”). Mesmo

no

latim

clássico,

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a

palavra

“domus”


utilizada com o sentido de morada ou espaço onde se habita, foi mais tarde substituída pela palavra “casa” no latim vulgar, mas sempre sendo utilizada para se referir ao espaço físico do abrigo. A principal questão que diz respeito a este assunto - e de suma importância para compreensão deste trabalho - não se apresenta em uma distinção específica de conceitos, mas sim na síntese destas duas ideias dispostas unicamente, na língua portuguesa coloquial, à palavra “casa”. Por algum motivo conferimos a esta palavra tanto a dimensão física da habitação quanto sua dimensão subjetiva e, de fato, é comum ouvirmos expressões como “lá em casa”, “na minha casa”, “estar em casa” para referenciar o ambiente onde atribuímos a ideia de lar.

Casa e Lar Ainda sobre esse assunto, em sua pesquisa de doutorado pela Universidade de São Paulo, a arquiteta Érica Negreiros de Carvalho (2010) nos apresenta, academicamente, à dois termos além dos citados anteriormente. De acordo com a autora, em contato com o arquiteto e urbanista

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Professor Celso. M. Laparelli, os termos “casa” e “lar” ainda seriam insuficientes para expressar todos os fatores que envolvem a existência humana em determinada localidade, sendo ainda desdobrados na relação do espaço habitado e na relação entre o espaço interno e externo que suprem as necessidades vitais da existência. Dessa forma: [...] casa é o objeto material construído, com características físicas e localização próprias”; “moradia é a casa habitada, onde se exercem as potencialidades da casa e se recebem as contribuições dos moradores; é insuficiente com relação à infra-estrutura externa (água, eletricidade, etc.)”. Já na habitação, há “o extravasamento das interações da moradia”, envolvendo o contexto externo, como a vizinhança, escolas, clubes, mercados, etc.: é o “meio que ‘aceita’ a relação dos moradores e interage com eles. (LAMPARELLI, s.d. apud CARVALHO, 2010, p. 29).

Dessa maneira, além dos conceitos intuitivamente mais óbvios, os quais visualizamos com facilidade a separação conceitual entre a arquitetura destinada a moradia e o significado sentimental que atribuímos à esse espaço, ainda encontramos diferentes níveis de relações que precisam existir para que o sentimento associado ao lar se desenvolva.

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Como vimos na citação acima, a construção subjetiva da casa depende de duas relações primordiais além do nosso instinto de abrigo. Definida como “morada”, ou o ato de morar, a relação do indivíduo com o espaço interno, ou área delimitada como íntima, está diretamente ligada à construção dessa dimensão etérea do ambiente doméstico. Essa relação, por sua vez, exige algumas características que supram necessidades vitais e tragam a sensação de proteção e tranquilidade, é uma relação particular que se estabelece exclusivamente entre o indivíduo e o espaço. Atrelado a isso, se estabelecem relações com o ambiente externo que derivam de uma sensação de segurança estipulada pela troca com outros indivíduos e buscam, também, suprir necessidades que fogem do controle individual, mas que são de igual importância à sobrevivência. O habitar, segundo essa lógica, contemplaria esse conceito de troca entre o ser interno e externo a fim de garantir a completude das necessidades básicas de existência e está associada a construção de sociedade e comunidade, o que também reafirma os conceitos desenvolvidos por Heidegger (1951). Sobre

a

determinação

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desses

estados

de


convivência social, diversos sociólogos e pensadores se debruçaram sobre os motivos pelos quais nos agrupamos para viver. Em seu livro sobre a existência social do ser humano, a filósofa Marilena Chauí (2013) nos apresenta à conceitualização e distinção entre os termos “comunidade” e “sociedade” como um sendo a evolução darwinista do outro. Há um consenso entre os cientistas sociais que definem a comunidade como um grupo de pessoas que se relacionam direta e afetivamente; e sociedade como uma estruturação impessoal entre indivíduos por intermédio de leis, normas e regras que assegurem o estado de paz. Dessa forma, o sentido de comunidade, se aplicado às relações contemporâneas, estaria ligada à construção familiar e ao espaço doméstico sendo este último o espaço que também considera o entorno imediato da própria edificação residencial - determinando uma certa dependência emocional que conecta um determinado grupo de pessoas. A sociedade seria, então, o conjunto de associações entre diversas comunidades que estabelecem, perante suas diferenças, regras que garantam o convívio e respeito mútuo entre elas. A interação real de um indivíduo com outros seria apenas possível na esfera comunitária, na

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qual existem relações pessoais, e não políticas, que definem o “quintal de socialização” de cada pessoa, onde se desenvolve o ser público. À casa, portanto, fica atribuída a barreira física que delimita o público do privado, onde existe, de fato, não apenas uma sensação de proteção contra intempéries e ameaças diversas, mas, também a garantia de resguardo da intimidade e individualidade social de cada um. Todas as relações que giram em torno da construção desse ambiente amigo se entrelaçam a fim de criar as condições perfeitas para a ocupação humana em determinado espaço. Seguindo este raciocínio, Érica Negreiros de Carvalho (2010, p. 32) explica que: [...] a própria casa habitada, seria o refúgio do espaço exterior, seja dos rigores das intempéries, do assédio de quem não desejamos, da agressão física, ou de algo menos concreto, porém não menos invasivo a nossa vida interior.

Domesticidade e Intimidade Além dos vínculos determinados acima, o ato de morar - ou seja, a relação do indivíduo com o objeto arquitetônico - se desdobra,

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ainda, em mais algumas relações, sentimentos e particularidades que transferem ao objeto um caráter identitário. A simples ação de ocupar e se relacionar com o ambiente não é suficiente para criar as condições necessárias para a compreensão daquele espaço como algo a ser levado ao âmbito sentimental. Trata-se, assim, de como essa relação acontece e de que forma essa identificação é feita, por meio de quais pontos esse sentimento é construído com cada indivíduo. Essa conexão específica do indivíduo com o objeto apenas se faz possível a partir de certa identificação, que no âmbito do habitar doméstico, se caracteriza por um espaço de reunião e síntese de nosso habitar pleno, ou seja, um espaço extracorpóreo onde nos é garantida a segurança e privacidade necessárias para que nos organizemos enquanto indivíduos. Ao tratarmos a casa como o local físico que

elegemos para abrigar a forma mais íntima e individual do nosso habitar, vimos que é nesse espaço que procuramos nos transportar para uma condição mais acolhedora de nossas necessidades íntimas e privadas, do que aquela que encontramos habitando o mundo, como um espaço geral. (CARVALHO, 2010, p. 42)

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O habitar doméstico refere-se, deste modo, ao local onde sintetiza-se as múltiplas relações com o ambiente externo e concretiza-se de forma interpretativa lembranças e experiências com itens que remetam à essa vivência externa. Os objetos que ali se dispõem e os hábitos alimentados por eles são indícios semânticos da interiorização de diversas ações tomadas como parte do cotidiano e sorrateiramente transformadas em rotina. A identificação assimilada a partir dessa conexão corriqueira com o espaço transfere àquela arquitetura determinados valores e sensações íntimas que são apropriadas de forma a identificar aquele ambiente como uma extensão do eu. Ainda sobre esses desdobramentos, o arquiteto finlandês Juhani Pallasmaa, desenvolve um pensamento sobre o habitar em seu livro de mesmo nome. Em sua reflexão, o autor (2017, p. 21) explica que: o espaço pessoal expressa a personalidade para o mundo exterior, mas, de modo igualmente importante, reforça a imagem que o morador tem do mesmo e materializa sua ordem no mundo.

Considerando a interligação do habitar com o morar, podemos compreender que o nosso habitar

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doméstico está diretamente ligado ao que nos rodeia e, desta maneira, ao “mundo” no qual estamos inseridos. Esse contexto social que predetermina nossa experiência externa se concretiza de forma a criar indivíduos com traços similares de hábitos e costumes. “Habitar em uma casa é habitar o mundo, e a casa, como entidade física, é um meio de experimentarmos ser parte desse mundo.” (CARVALHO, 2010, p. 43) O reconhecimento identitário com o espaço habitado nos permite o sentimento de pertencimento que nos conecta empiricamente com o meio físico em que vivemos. Perceber essa expansão do eu subjetivo transfere à arquitetura uma função além do resguardo instintivo, na qual a edificação assume o papel de domesticar, ou seja, tornar familiar, o espaço vazio a fim de atribuirlhe significado. As arquiteturas, dessa forma, segundo Juhani Pallasmaa (2018, p. 14) em seu livro Essências “[...] projetam as narrativas épicas da cultura e da tradição”. A arquitetura é essencialmente uma forma artística de reconciliação e mediação, e, além de nos inserir no espaço e lugar, as paisagens e edificações articulam nossas experiências de duração do tempo entre as polaridades do passado e do futuro. (PALLASMAA, 2018, p. 14)

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Domesticar o espaço, portanto, é conferir a ele dimensões físicas compatíveis com a percepção humana e materializar o tempo de forma a tornálo palpável.

Domesticidade e Memória Atribuir o conceito de domesticidade à interferência no espaço, a fim de estabelecer relações simbólicas com o ambiente circundante, nos aproxima de mais um conceito que envolve o habitar doméstico e a construção do sentido de lar. A necessidade humana de conceder ordem ao tempo e estar entre o passado (lembrado) e o futuro (imaginado) implica ao presente a função de concentrar, por intermédio de diversos meios, mecanismos que mantenham as lembranças e a imaginação ativas. As imagens que se criam ao morar ao estabelecer uma relação íntima com determinado espaço, servem como estímulos da memória. Juhani Pallasmaa (2018), sobre esse ambiente subjetivo, nomeia essa relação como “espaço existencial” no qual estruturam-se os significados, valores e intenções de um indivíduo. Ainda de acordo com o autor, a dimensão subjetiva do espaço

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assemelha-se a um estado onírico de relações na qual o objeto se distancia dos valores físicos e racionais (PALLASMAA, 2018). Um cômodo também pode ser individualizado e apropriado quando o transformamos em um lugar de sonhos; os atos da memorização e do sonho estão interligados. Como coloca Bachelard: “A casa protege o devaneio, a casa protege o sonhador, a casa permite sonhar em paz” (PALLASMAA, 2018, p. 22).

Percebe-se, então, a existência de uma relação praticamente indissociável entre memória, identidade e domesticidade. A experiência do habitar permite o desenvolvimento da dimensão subjetiva da existência humana a partir do momento em que é estabelecida uma relação de pertencimento, sendo esta uma característica que atribui ao homem a capacidade de dar significado. “A Casa, ainda mais do que a paisagem, é um estado psíquico” (BACHELARD, s.d. apud PALLASMAA, 2018, p. 28). Podemos dizer que o Lar, como palavra representante da subjetividade da casa, está diretamente atrelado à construção familiar/ doméstica; àquela que além da percepção individual está relacionada à conexão entre outros indivíduos. A família, como instituição

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social, é entendida como algo que se constitui simbolicamente entre um grupo pré-selecionado de pessoas que estabelecem relações mitológicas a fim de atribuir camadas entre o indivíduo e o mundo exterior, ou seja, é a formulação de um campo “neutro” e experimental, na qual podem ser testadas as relações entre o eu e o outro. Retornando ao conceito de comunidade discutido anteriormente, é possível afirmar que a família é o núcleo primário da construção dessa comunidade, sendo de fato, nosso primeiro contato com o outro. A solidificação desse fragmento social primário é estabelecida a partir de diversos símbolos que são construídos através do tempo por meio de gestos, palavras e ações que nos acompanham desde o nascimento e constituem um conjunto de histórias enraizadas individualmente, em cada integrante daquele grupo. Ou seja, através deste grupo é construída a noção do ambiente doméstico, àquele cujo membros são essenciais para a preservação das memórias que constituem o eu. Pretende-se sugerir, assim, uma abordagem de família como algo que se define por uma história que se conta aos indivíduos desde que nascem, ao longo do tempo, por palavras, gestos, atitudes ou silêncios e que será, por eles, produzida e re-significada, à sua maneira, dados os distintos lugares e

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momentos dos indivíduos na família. (SARTI, 2004, p.13)

A formulação deste grupo social específico, como cita Myriam de Barros (1989) ao analisar a obra de Halbwachs, garante o exercício da memória em um meio extra individual. O repertório comum de significados que estabelecemos com os membros da família “definem o caráter social das memórias individuais” (BARROS, 1989, p. 30), fato este que, em outras palavras, valida nossa percepção individual a partir do reflexo no outro. Deste modo, a percepção do eu se apoia na percepção do outro sobre o eu, que nos serve como pontos de referência aos significados internos que atribuímos ao mundo. Compreender os aspectos simbólicos familiares é compreender, também, as motivações pelas quais nos organizamos em diversas esferas, cada uma com um grau de socialização diferente. Observando a família como o outro mais próximo do indivíduo, e considerando as observações de Myriam de Barros (1989) sobre os pensamentos de Halbawachs, podemos estabelecer, com clareza, a construção social familiar/doméstica como uma maneira de perpetuação da memória individual por meio do coletivo.

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Ao pretender expor o caráter social da reconstrução das lembranças, Halbwachs acaba realçando o aspecto individual da memória, que encerra um sentimento próprio e particular. Sua existência tem um caráter único, decorrente de sua posição espacial e temporal e que apenas um único e determinado indivíduo possui em sua biografia. Mas, em relação a esse ponto, Halbwachs vai além. As lembranças estariam alojadas no inconsciente, e embora precisemos dos outros para a reconstrução, as marcas do caminho já estão presentes nos indivíduos (BARROS, 1989, p. 31).

A ligação de um determinado grupo se dá em função da identificação de seus membros em relação a um conjunto de memórias e significados em comum, assim, o principal papel do grupo é desenvolver um conteúdo simbólico identitário. O núcleo familiar se apoia na construção desses traços fundamentais para manter os objetos desencadeadores de recordações de cada indivíduo vivos e em segurança. Em outras palavras, a família é a instituição protetora da memória individual e a responsável por manter o equilíbrio são entre o eu interno e o outro externo. É importante esclarecer que o caráter dessa análise familiar não está necessariamente apoiado em valores morais e biológicos. Os aspectos deste grupo fundamental, descritos

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aqui, são apenas características de identificação de um determinado conjunto de pessoas que se conectam de maneira específica, compartilhando experiências e lembranças fundamentais para a manutenção do eu. A relação entre a memória e a afirmação da experiência do eu é mais bem compreendida ao percebermos que lembrar é um ato social. O grupo está para a memória assim como um catalisador está para uma reação química, assegurando componentes que a evocam e potencializam, trazendo-a a consciência. Isto é, a configuração dos grupos sociais, bem como seu grau de proximidade, está diretamente ligada às memórias que emanam dessas relações, sendo distribuídas entre as mais essenciais - aos grupos mais próximos e aquelas menos essenciais - aos grupos menos próximos. As condições necessárias para que umas e outras reapareçam não diferem a não ser pelo grau de complexidade. As primeiras estão sempre ao nosso alcance, porque se conservam em grupos nos quais somos livres para penetrar quando quisermos, nos pensamentos coletivos com que permanecemos sempre em relações estreitas; tanto que todos os seus elementos, todas as ligações entre esses elementos e as passagens mais diretas de uns aos outros nos são familiares (HALBWACHS, 2006, p. 49).

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Pode-se dizer que a memória é a base da domesticidade. Identificar-se no outro, em uma relação espelho, é, então, uma forma de recordar a essência do eu, notar nossa influência sobre o outro e sermos influenciados garantindo a nós mesmos a percepção da nossa existência. ***

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.:CRÔNICA 3:. Nayani, a Casa Agora é Sua

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.:CAPĂ?TULO 3:. A Casa dos Outros

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À este último capítulo ficou reservado espaço para a análise dos dados coletados durante a pesquisa e seus eventuais desdobramentos. De antemão, foi considerada a discussão analítica, sob a perspectiva da teoria fenomenológica, levando em conta as informações obtidas durante uma série de entrevistas feitas no decorrer do processo de pesquisa. Para isto, foi estabelecida uma amostra de pessoas entre 20 e 30 anos de idade - independente de gênero, poder aquisitivo ou orientação sexual - que já houvessem saído da casa dos pais. A seleção dos entrevistados se conteve a este montante devido à relativa proximidade com as experiências domésticas da infância, a

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fim de ilustrar, os conceitos trabalhados nessa pesquisa, fornecendo histórias reais sobre suas experiências domésticas passadas e presentes. Desta forma, buscou-se coletar símbolos que organizassem um paralelo entre as ocupações contemporâneas estudadas, ou seja, a residência atual de cada entrevistado, e suas motivações afetivas ligadas, principalmente, a infância.

As Perguntas Mantendo como objetivo principal coletar símbolos do passado que constituíssem o imaginário afetivo da ideia de lar de cada entrevistado, foram pensadas nove perguntas que pudessem evocar tais memórias e sensações da infância. O roteiro desenvolvido para guiar as entrevistas foi pautado nos conceitos fenomenológicos de análise discutidos anteriormente, buscando tecer um ambiente, através de estímulos à memória afetiva, que evocassem sentimentos genuínos sobre o lar. Mantendo em vista estas premissas, separouse a entrevista em três partes sendo elas: Ambientação; Gatilho da memória; e a Casa

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Atual. Estas três repartições foram pensadas para imergir o entrevistado em suas lembranças gradualmente, de maneira e conduzi-lo ao resgate das memórias ligadas à família e à casa da infância. Na etapa inicial, denominada aqui como “Ambientação”, os entrevistados foram convidados a refletir sobre a sonoridade do seu ambiente doméstico. Foi solicitado, então, que cada participante pensasse por alguns instantes sobre algo para acompanhar-nos sonoramente durante a entrevista; a escolha desse som foi livre a qualquer tipo de ruído, desde música ao silêncio completo, podendo também ser apenas o som da televisão ligada, rádio, entre outros. Em seguida, com a escolha da ambiência sonora feita, foi entregue uma folha de papel Layout A3 e um conjunto de giz de cera com diversas cores. O objetivo desse material foi conceder ao entrevistado uma segunda forma de comunicação, além da fala, caso o mesmo sinta necessidade de explicar algo através do desenho. Dessa forma, também, foi possível recolher símbolos mais abstratos expressos em forma de desenho livre que pudessem contribuir com os estudos realizados posteriormente.

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À etapa denominada “Gatilho da Memória”, ficaram concentradas todas a perguntas efetivas, sendo oito perguntas formuladas com o objetivo de resgatar lembranças mais específicas sobre determinados episódios vivenciados pelo participante. Nesta etapa, as primeiras três perguntas são focadas nas lembranças da primeira infância, a fim de estimular o resgate de sentimentos e espacialidade deste primeiro ambiente. Vale ressaltar, também, que os entrevistados foram permitidos vagar por diversas casas onde se consideravam em casa e não apenas pela casa onde moraram efetivamente. Assim, as casas dos avós, tios, amigos, etc., também foram consideradas como parte da constituição do ideal de lar de cada um. A quarta pergunta, que marca o meio do processo de entrevista, é destacada aqui por ser pensada de maneira a ressaltar o imaginário onírico do ideal de lar. O objetivo de pô-la como antecedente as três perguntas finais foi ampliar a abrangência das respostas dadas, retirando a consciência do entrevistado da primeira infância e o convidando a adentrar um ambiente mais amplo de sua memória.

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Caminhando para o fim da entrevista, as quatro últimas perguntas, também direcionadas ao resgate de lembranças domésticas, foram formuladas a fim de compreender sentimentos ligados a privacidade e identificação. Sendo elas menos objetivas que as três primeiras, o foco foi compreender sentimentos - prazerosos ou não - em relação ao ambiente doméstico. Adentrando a última etapa, denominada “A casa atual”, foi solicitado aos participantes que selecionassem, dentro da casa em que moram hoje, cinco elementos que são essenciais para a construção individual do sentimento de Lar. Assim, a cada entrevistado foi fornecido um tempo para refletir sobre objetos que, de certa forma, carregam valores pessoais importantes para que aquele espaço tenha um significado espacial.

As Respostas Os dados coletados durante o processo de entrevista foram analisados e comparados de maneira a identificar elementos que conectam a memória doméstica do passado com a dinâmica doméstica atual de cada casa visitada. Os

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símbolos adquiridos aqui, foram ponderados de forma horizontal, ou seja, buscando similaridades entre as respostas de todos os entrevistados a uma pergunta específica. Para isso, foi formulada uma tabela contendo as perguntas e respostas de cada integrante, colocando lado a lado os objetos da memória de cada um. Assim, foram ressaltadas as similaridades subjetivas contidas em cada resposta, buscando compreender a essência comum entre elas. O som: Na etapa de ambientação sonora foram identificados, como símbolos comuns, três objetos sobre os quais a escolha sonora foi pautada. O primeiro ponto identificado foi a justificativa da escolha sob uma perspectiva nostálgica, de resgate de algo antigo ao qual se tem saudade. Em seguida, também ficou ressaltado um certo desejo por tranquilidade, atribuindo à sonoridade do ambiente um caráter íntimo e introspectivo. Por último, e sutilmente atrelado aos dois objetos mais evidentes citados acima, foi possível identificar uma busca pelo resgate da identidade pessoal, como uma maneira de remir as raízes do eu. A

primeira

lembrança:

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Em

relação

pergunta


que abre a etapa de “Gatilho da memória” foi observada, em quase todos os casos, a associação de lembranças de brincadeiras e momentos prazerosos da infância. Estas lembranças, normalmente, envolvem outra pessoa com a qual o entrevistado tem afeição; sendo também muito comum a associação do espaço à uma pessoa e (em todos os casos em que isso ocorreu) à uma mulher. Além disso, foi observado que o ambiente/ casa ilustrada nesta primeira pergunta, para a maior parte dos entrevistados, foi, também, o principal cenário das demais respostas. O lugar da lembrança: Ao serem questionados sobre as características físicas do espaço destas lembranças, foi possível identificar quatro principais aspectos que as compõem, sendo elas: elementos naturais, como a luz do sol e vegetação, sendo associadas à áreas externas e aberturas de janelas e portas; cores terrosas e a presença de madeira na decoração; objetos de enfeite, como livros, discos, fotografias; descrição do ambiente como algo pequeno e aconchegante, sendo este último também associado a tecidos e estofados macios. As coisas favoritas daquele lugar: As respostas sobre os elementos favoritos do lugar da

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lembrança seguiram praticamente a mesma lógica da pergunta anterior. Foram ressaltados, novamente, a presença da luz do sol e elementos naturais, ambientes mais frescos como o quintal e a cozinha e, acrescentado, o lugar de receber pessoas. Os elementos essenciais para uma casa: Proposta uma reflexão sobre uma casa ideal, fictícia, as respostas em torno dos elementos mais importantes para que uma casa seja um lar foram, primeiramente, móveis para descanso como sofá, cadeira e cama e, em seguida, iluminação natural associada a janelas e ambientes amplos. Ambientes aconchegantes para a recepção de pessoas também foram citados como uma prioridade, além de vegetação e luz artificial baixa e em tons quentes. O lugar de privacidade: Sobre este sentimento, a maioria dos entrevistados constatou ter sensação limitada ou inexistente de privacidade. Muitos relembraram conflitos com os pais, onde não se sentia que havia algum respeito ao seu espaço pessoal. Assim, dentre os ambientes considerados possíveis de não incômodo, o banheiro e o quarto foram os mais citados, porém com ressalvas quanto a legitimidade dessa privacidade.

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O lugar da identificação: A identificação pessoal da maioria dos entrevistados com o espaço habitado foi destacada através, principalmente, do quarto. De acordo com os relatos, este era o ambiente onde lhes eram fornecida certa liberdade de intervenção. Porém, a sala e o computador, ou espaço virtual, também foram apontados como ambientes em que era possível a livre intervenção pessoal. Como se identificava: Já sobre os meios pelos quais cada participante construía essa identificação com o espaço, os objetos de enfeite como livros, discos, quadros, fotos foram os elementos mais citados em relação a isso. Com isso também, foram mencionadas algumas ações com as quais os entrevistados se identificavam ao executar, tendo o ato de fazer algo como uma forma de impressão do eu no espaço. Outro ponto interessante foi o apontamento do computador, ou do espaço virtual, como principal meio de identificação com o mundo. Momentos favoritos: Finalizando a etapa de perguntas, os entrevistados foram questionados sobre seus momentos favoritos dentro de casa. Dessa forma, as respostas mais comuns obtidas sobre esse assunto foram, em sua

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maioria, relacionadas ao momento de repouso e tranquilidade. Momentos de relacionamento familiar também foram citados, como o lugar a mesa para uma refeição, o momento de conversa e troca de ideias com os pais, e a recepção de visitas e amigos queridos.

Síntese: Os Cinco Elementos. Após formular um cenário geral sobre os resultados obtidos durante o processo de pesquisa, pode-se partir para uma análise um pouco mais aproximada das questões particulares de cada participante. Considerando o caráter pessoal dos objetos listados por cada entrevistado, optou-se pela elaboração de uma análise individual dessa seleção levando em conta outros aspectos pessoais exaltados durante as conversas. De antemão, é possível identificar quatro categorias as quais os objetos selecionados se encaixam. Os aqui denominados objetos da memória se assemelham a medida que foram selecionados por resguardar valores do passado individual dos entrevistados. São objetos que assumem a função de estímulo à memória familiar - aquela cuja função social é de assegurar as lembranças

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individuais através da afirmação coletiva principalmente relacionadas a infância. Em sua maioria, considerando o contingente analisado, são objetos relacionados ao eu, porém que tem seu valor verificado por pessoas íntimas como pais, avós e amigos próximos. Os objetos da identidade pessoal, diferentemente dos objetos da memória, se relacionam com o indivíduo de forma a sintezar um aspecto de sua personalidade. Estes objetos não são, necessariamente, associados a outras pessoas ou a uma lembrança, são objetos que não requerem aprovação para ser válidos ao indivíduo. Em alguns casos, representam um certo tom de rebeldia mediante regras da infância. Costumam ser associados ao amadurecimento da criança para o ser adulto. Ainda atrelado ao indivíduo, mas também relacionado ao resgate de memórias afetivas, são identificados os objetos de prazer. Estes são caracterizados como objetos essenciais para o conforto físico, psicológico ou intelectual, e podem ter conexão com costumes e hábitos adquiridos na convivência familiar. São objetos que selecionam e sintetizam uma série de relações do passado e desejos do futuro de uma

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idealização de ser do indivíduo. Por fim, os objetos do desejo se agrupam por meio de uma relação de ideal conquistado, normalmente, atrelados a conquista da independência. Costumam ser objetos desejados por um longo período que, agora, foi possível adquirir. Estão, também, relacionados a uma projeção ideal de ser, porém, não relacionados a algum passado e sim a construção de algo novo. *** A seguir, estão dispostos os perfis de cada entrevistado com a reprodução das respectivas seleções dos cinco elementos, bem como os relatos originais sobre a escolha. Dessa maneira, os referidos objetos foram categorizados segundo os critérios explicados anteriormente e realçados graficamente acompanhando a seguinte ordem: Objetos da memória; Objetos da identidade; Objetos de prazer; Objetos de desejo.

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Seguindo estes dados, está ainda disposto um retrato de cada personagem junto com as peças selecionadas. As fotografias foram tiradas logo após o processo de entrevista pela própria autora e cedidas, por cada entrevistado, para a reprodução nesta pesquisa. A análise de todas as respostas fornecidas durante as conversas também estão transcritas no apêndice deste caderno. Junto a isso, ainda está o roteiro de perguntas desenvolvido para guiar o processo com todos os detalhes para a condução das sete entrevistas. ***


.:BEATRIZ:. 22 anos | Artista e tatuadora Mora sozinha há 5 anos

Quadro, vaso de planta, abajur com luz azul, garrafa d’água e uma vela.

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“Tá, aquela planta aqui. Porque ela foi a primeira planta que eu comecei a cuidar e sobreviveu. Ela é ótima. Eu não sei se ela é resistente ou se eu que cuido bem mesmo. Esse quadro, que é um quadro que tava na casa da minha avó e desde que eu era pequena eu ficava maravilhada por ele e eu falei pra minha vó, ‘vó quando eu tiver a minha casa você me dá esse quadro?’ e ela falou que daria. [...] O abajur de cogumelo que tem a luz azul que tá naquele quartinho ali, no quartinho da criatividade. A luz azul é uma luz tranquila né, eu acho. [...] Uma garrafa de água. Você tem que ter a sua garrafa de água na sua casa que tá sempre cheia e por perto. [...] E aí uma coisa que eu não tenho praticado tanto mas devolve todo sentimento de casa, e de casa boa pra se estar é uma vela.”

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.:NAYANY:. 25 anos | Jornalista e ilustradora Mora sozinha há 3 anos

Desenho da amiga, biriri de lua, foto da avó, orquídea e livro do Harry Potter.

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“O livro do Harry Potter e as relíquias da morte, que é o livro que eu tenho a memória mais fresca de ler onde gostava de ler. Esse desenho que eu fiz meu e da ratinha da minha amiga, que é minha melhor amiga. [...] Esse biriri de lua que o Heitor me deu, ele que fez pra mim de aniversário. Tem essa orquídea, que foi a orquídea que eu dei pra minha avó de aniversário e depois do velório dela minha tia falou que eu podia ficar com ela se eu quisesse. E tem essa foto da minha avó, que o Arthur me deu, que é o jeito que ela ficava com a mão sempre que ela estava prestando atenção em alguma coisa. E acho que essas são as 5 coisas que me remetem mais ao meu que eu tenho aqui.”

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.:AMANDA:. 23 anos | Estudante de Ciências Sociais Mora sozinha há 3 meses

Caixinha de viagem, livro da Lina Bo, um chinelo, torradeira e a rede de balanço.

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“O livro é isso, acho que pra essa casa tem que ter um pouco do que eu faço também [...] Chinelo, porque eu acho que quando você tem um chinelo no lugar é porque você se sente a vontade [...] E aí tem essa caixinha que eu tenho que é só de coisas de viagem, então eu guardo tudo que é de viagem aqui... tem vários postais, ingresso de coisa, dinheiro, um isqueiro [...] Viagem é uma coisa que me caracteriza muito, uma coisa que eu vou fazer a vida inteira e eu gosto muito de fazer. [...] E a torradeira é uma coisa que eu faço muito questão de ter, eu sempre quis ter uma torradeira... tipo, não ligo pra cafeteira porque eu prefiro passar o café de outros jeitos, mas a torradeira foi uma coisa muito característica de quando eu me mudei [...] E a rede é uma coisa que ela nunca fez parte da minha vida mas eu sempre quis que ela fizesse e quando eu me mudei eu enchi o saco do meu pai pra ele furar a parede e por um gancho.”

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.:DANIEL:. 25 anos | Artista audiovisual Mora sozinho hรก 5 anos

Congรก, computador, plantas, abajur e estante de livros.

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“Os 5 elementos são: A estante de livros, a planta, o computador, o abajur e o congá que é esse altarzinho. [...] O computador porque é meu meio de trabalho, um dos meios de trabalho que eu tenho, e porque é um dos meios de contato com o mundo [...] e é o meio de criação principal meu. [...] As estantes tem muito a ver com aquela ideia da biblioteca, enfim, dos livros. A planta tem muito a ver com essa opção de vida [...] um ser mesmo que cria e tal, e com raiz [...] O abajur é o que cria o ambiente intimista pra mim.”

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.:THIAGO:. 29 anos | Psicรณlogo e jornalista Mora sozinho hรก 10 anos

Tapete, cinzeiro, vitrola, livros e o sofรก.

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“Eu peguei um cinzeiro, porque é uma coisa muito boa poder fumar dentro de casa, não preciso ficar saindo que nem quando eu vou na casa dos meus pais em Araraquara. Peguei um livro também [...] porque foi quando eu comecei a morar sozinho que eu comecei a ler mais dentro de casa e eu via que aquilo era uma coisa muito boa. [...] Outra coisa é o sofá, porque eu sempre quis ter um sofá desse que estica. [...] Outra coisa é o tapete. É o tapete, não tem como deixar de fora. [...] Eu gosto muito de sentir as coisas, sentar no chão, deitar... e o tapete, acho que a textura, me dá uma parada confortável. [...] E por último a vitrola, porque também eu sempre quis uma vitrola [...] e a vitrola porque é música.”

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.:LEOPOLDO:. 21 anos | Jornalista Mora sozinho há 4 anos

Quadros de gato, violão, café, computador, sofá.

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“Eu toco violão, bebo café... com o meu computador, eu gosto do meu sofá também... e desses quadros... eu gosto desses quadros de gato [...] esses quadros de gato tem uma relação muito particular porque eles são de um artista... eles são baseados na obra de um artista, Valdemir Martins, cearense... Valdemir ele tem esses... faz sempre gatos... e quando meu irmão nasceu meu pai arranjou um gato desses... tá lá em casa ainda.[...] Ai esses gatos lembram a minha casa... a minha vida do passado, minhas raízes familiares.”

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.:JOSÉ:. 26 anos | Arquiteto Mora sozinho hå 5 anos

Quadro, plantas, os dois gatos e a cadeira.

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“Esse quadro, eu pintei ele com um ano... e eu lembro dele, cara... E como eu não falava na época eles colocaram o nome ‘a explosão’... só que eu não falava na época... e eu lembro que eu queria representar uma árvore e uma flor [...] Esse quadro eu amo ele, ele tá comigo desde 93.”

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.:CONSIDERAÇÕES FINAIS:.

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Ao entrarmos em qualquer casa, o pensamento voa. A vida, as graças, desejos e lembranças de quem nos recebe é quase sempre um prato cheio de encantos. Aquele espaço, simples espaço, construído como se pode, enfeitado como se pode, também abriga um dos maiores mistérios de nossa profissão. Não há arquiteto que não se comova diante de uma casa. São incontáveis os mestres que já dissertaram sobre a questão do habitar doméstico. A casa, de certa forma, é o ponto inicial de qualquer arquitetura por ser, antes de qualquer coisa, o primeiro objeto que abriga, que estrutura e organiza o espaço onde viemos. Ela resguarda o nosso eu mais íntimo, protege quem amamos,

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nossas lembranças e nossa passado e nosso futuro.

imaginação,

nosso

O que a diferencia de qualquer outro edifício é, senão, a relação afetiva que criamos no ato de morar. Estar em contato intenso com aquele espaço atribui a ele um caráter indenitário que vai além da simples busca por abrigo e proteção física. Existe inerente à natureza humana, a necessidade de enraizamento e assimilação extracorpórea – relação com o mundo que nos cerca - que, têm como objeto central, as paredes da residência. Estrutura-se ali todo e qualquer preceito para a convivência externa – aquela que se estabelece a partir do contado com o outro e fundamenta os conceitos de comunidade e sociedade. O individuo se relaciona com esse espaço de modo a criar um ambiente de troca entre seu ser interno e o mundo que o cerca. Ao espaço da casa é atribuída a fronteira entre o público e o privado; o limite que garante o resguardo da intimidade e individualidade de cada um. E sobre o habitar? Como resumir tão singular atividade?

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Também assunto de diversos mestres e pensadores, vista como quase sinônimo de existir, posso dizer que é o verbo mais interessante ao qual tive contato durante minha formação. Isto pelo fato de tanto falarmos sobre esta palavra, a consideramos umas das principais matérias primas de nossa profissão, mas, ao mesmo tempo, a banalizamos e a estudarmos de forma tão rasa. Voltar meus olhos para este assunto foi uma decisão do coração. Pela sorte de ter nascido em um lar recheado de amor, pude, ao fim desta graduação, entender a importância desse simples espaço e, acima de tudo, minha responsabilidade quanto arquiteta em relação a ele. Refletir sobre a casa é também refletir sobre a função do arquiteto e da arquitetura. É, então, compreender que nossa profissão não se trata apenas de métodos construtivos, a eterna discussão em torno do desenho digital ou manual, formas extravagantes de grandes projetos. A arquitetura é antes de mais nada uma ciência humana. Trata-se de uma ciência para pessoas e sobre pessoas. É o desamarrar os sapatos ao chegar em casa, é a leitura de um livro sentado no sofá, é o almoço em família aos finais de

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semana, ĂŠ a visita de amigos queridos em um dia comum. Esta ĂŠ a arquitetura que me comove, aquela que se atenta aos detalhes, aos sentimentos, aos sorrisos e ao brilhar dos olhos. Com este trabalho me desafiei a investigar um pouco desses sentimentos. Primeiramente em mim mesma e, depois, em quem concordou em se abrir para minha pesquisa. A certeza de que estou no caminho certo provavelmente nunca terei, mas de alguma forma ĂŠ desta maneira que acredito que a arquitetura deveria funcionar. ***

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.:REFERÊNCIAS:.

BARROS, Myriam Moraes Lins de. Memória e família. Revista Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 2, n. 3, p. 29-42, jun. 1989. ISSN 2178-1494. Disponível em: http://bibliotecadigital.fgv. br/ojs/index.php/reh/article/view/2277. Acesso em: 20 set. 2019. BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: lembranças de velhos. 19. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2016. BRYSON, Bill. Em casa: uma breve história da vida doméstica. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. CAMARGO, Érica Negreiros de. Casa, doce lar: o habitar doméstico percebido e vivenciado. São Paulo: Annablume, 2010.

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CHAUI, Marilena. O ser humano é um ser social. São Paulo: Martins Fontes, 2013. CUNHA, Antônio Geraldo da. Dicionário etimológico da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Lexikon, 2010. DA MATTA, Roberto. A casa e a rua: espaço, cidadania, mulher, e morte no Brasil. 4. ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1991. DICHTCHEKENIAN, Nichan. A Fenomenologia em Martin Heidegger: A Existência: Parte 1/3. 2013. (14m36s). Disponível em: <https://www.youtube. com/watch?v=C0w1icRoXmw&t=21s>. Acesso em: 18 set. 2019. ______. A Fenomenologia em Martin Heidegger: A Existência: Parte 2/3. 2013. (13m57s). Disponível em: <https://www.youtube.com/ watch?v=UBL_HpNvJf8&t=11s>. Acesso em: 18 set. 2019. _______. A Fenomenologia em Martin Heidegger: A Existência: Parte 3/3. 2013. (14m42s). Disponível em: < https://www.youtube.com/ watch?v=GG3PpceWRrM>. Acesso em: 18 set. 2019.

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_______. Curso de Introdução à Fenomenologia: Parte 1. 2013. (14m40s). Disponível em: <https:// www.youtube.com/watch?v=u_A0-xxbogE&t=8s>. Acesso em: 18 set. 2019. Curso de Introdução à Fenomenologia: Parte 2. 2013. (14m58s). Disponível em: <https://www. youtube.com/watch?v=fm6e1UWtJms>. Acesso em: 18 set. 2019. BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. Tradução de Antonio de Pádua Danesi. São Paulo: Martins Fontes, 2000. EDIFÍCIO Master. Direção: Eduardo Coutinho. [S.I.] VideoFilmes e Rio Filme, 2002. 1 DVD (1h50 min.) FUÃO, Fernando Freitas. A casa da flor (1). Arquitextos, São Paulo, ano 01, n. 012.01, Vitruvius, maio 2001. Disponível em: https://www.vitruvius.com.br/revistas/read/ arquitextos/01.012/888. Acesso em: 20 set. 2019. GALVES, Júlia. Casa. 2016. 184 p. Trabalho Final de Graduação – Universidade de São Paulo, Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, São Paulo, 2016.

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HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais LTDA., 1990. HEIDDEGER, Martin. Bauen, Wohnen, Denken. Vortäge und Aufsätze, Pfullingen, 1954. KUSSABA, Karin. A Vida das Casas. 2017. 150 p. Trabalho Final de Graduação – Universidade de São Paulo, Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, São Paulo, 2017. MIGUEL, Jorge Marão Carnielo. A casa. Londrina: Eduel, 2003. NESBITT, Kate (org.). Uma nova agenda para a arquitetura: antologia teórica (1965-1995). São Paulo: Cosac Naify, 2006. PALLASMAA, Juhani. Habitar. São Paulo: Editora Gustavo Gili, 2017. ______. Essências. São Paulo: Editora Gustavo Gili, 2018. RYBCZNSKI, Witold. Casa: pequena história de uma idéia. Rio de Janeiro: Record, 1999.

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SEVCENKO, Nicolau (Org.). História da vida privada no Brasil: contrastes da intimidade contemporânea. São Paulo: Cia. das Letras, 1998. THE PRUITT-IGOE myth. Direção: Chad Freidrichs. [S.I.]: Oxford Film Festival, 2011. 1 DVD (83 min). TUAN, Yi-Fu. Espaço e lugar: a perspectiva da experiência. Tradução de Lívia de Oliveira. São Paulo: Difel, 1983. VISAGES, Villages. Direção: Agnès Varda e JR. [S.I.] Cohen Media Group, 2017. 1 Blue-Ray (1h34 min.) VINCENT, Gérard; PROST, Antonie (Org.). História da vida privada: da primeira guerra a nossos dias. São Paulo: Cia. das Letras, 1992. ***

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.:APÊNDICE:.

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ROTEIRO DAS ENTREVISTAS 1º PARTE: AMBIENTAÇÃO. Pedir ao entrevistado que escolha uma música/ som para compor o ambiente da entrevista. Pode ser qualquer coisa, desde silêncio até apenas o som da TV ligada. Algo que componha sonoramente o ambiente da casa. Entregar ao entrevistado uma folha de papel layout A3 e um conjunto de 12 cores de giz de cera. Posicioná-lo no local onde costuma ficar ao receber pessoas em casa. [providenciar suporte/prancheta para caso esse local não tenha um suporte fácil] Registrar a entrevista apenas em forma de áudio, de forma discreta para que não seja potencializada a sensação de vigilância. Pedir para o entrevistado se concentrar nas

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casas por onde passou. Lugares que considerou estar em casa, não importando se morava de fato lá. Vale a casa da vó, tios, amigos, ou outros ambientes não residenciais. 2º PARTE: GATILHO DA MEMÓRIA. PERGUNTA 1: Qual a sua primeira lembrança dentro de casa? PERGUNTA 2: Você consegue descrever um pouco esses ambientes onde você se sentia em casa? Como eles eram? [lembrar o uso do papel] PERGUNTA 3: O que você mais gostava nesses lugares? [vale qualquer lembrança também, atividades, pessoas específicas, objetos, ambiência] PERGUNTA EXTRA - CASO O ENTREVISTADO SEJA ARQUITETO/CORRELATO: Você considera que o seu interesse pela arquitetura sempre esteve ligado a casa E ao ambiente residencial? No sentido de gostar de refletir sobre esse ambiente. PERGUNTA 4: Quais elementos você considera essenciais dentro de casa? (vale qualquer

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coisa também, desde objetos, comida, coisas imateriais)

sentimentos,

PERGUNTA 5: Qual o ambiente dentro da casa, considerando todas as casas onde você tinha certa identificação, que você sentia que tinha privacidade? PERGUNTA 6: Qual o ambiente que você mais se identificava dentro de casa? PERGUNTA 7: Através de que elementos você se identificava com esse ambiente? como você construía identificação? PERGUNTA 8: Dentro da sua casa quais eram os momentos / atividades que você mais gostava? 3º PARTE: A CASA ATUAL. Para finalizar, pedir para indicar dentro da casa atual ele considera essenciais para lar. 5 elementos que para ele dentro de uma casa. ***

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o entrevistado 5 elementos que o sentimento de não pode faltar


.:ANÁLISE DAS RESPOSTAS:.

BEATRIZ

“Jornal Hoje era uma coisa que eu ouvia todo dia na minha casa enquanto eu almoçava. E isso me lembra muito da minha infância... da minha vó...”

AMANDA

“Casa pra mim é coisa antiga. Mas eu acho que casa é muito associado a mim e eu como pessoa estou sempre mudando. Essa música é uma música que eu escuto há pouco tempo atrás, porque eu não tinha tanta a brisa do instrumental, mas eu comecei a perceber que ficar escutando musica com letra em casa começava a me atordoar um pouco. Aí eu comecei a escutar músicas que tinham ou uma letra às vezes, ou uma coisa bem tranquila. Então, eu gosto de manter o clima da casa tranquilo assim, sabe?”

NAYANY

1: PORQUE VOCÊ ESCOLHEU ESSE SOM?

Silêncio

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DANIEL THIAGO

“A minha ligação com música sempre foi muito desde sempre [...] Eu sempre fui muito quieto, muito na minha, então eu sempre busquei coisas que me fizessem refletir e ir muito mais pra dentro do que pra fora. Então quando eu estou com esse tempo sozinho, eu to praticamente 100% dele com música tocando. Então independente do que eu colocar, só de ter música já me traz pra uma parada muito mais intimista, uma parada muito mais do jeito que eu gosto. [...] Se ta tocando música, eu já me sinto em casa.”

JOSÉ

LEOPOLDO

“É uma música que quase não é conhecida dele, [...] e a ideia dela é como se fosse um passeio de trem pelo país, desde as cidades do nordeste, Rio de Janeiro, nas matas. E ele vai tentando compor essa melodia e sonoridade ao longo do país [...] Então essa música, é uma música que eu uso muito pra me inspirar, apesar de ter mil e uma críticas ao Villa Lobos e ao projeto modernista, mas ela é uma música que me inspira muito justamente porque eu acesso esse lugar da nossa identidade.”

Silêncio

“Eu gosto muito da voz dela [Jorja Smith], me traz uma coisa boa [...] Me lembra uma época muito boa, quando eu conheci ela e eu ouvia... lembra uma época [...] Não sei... apesar de eu não conhecer há tanto tempo assim [...] é nostálgico pra mim. Uma sensação de nostalgia, mesmo não sendo nostálgico porque eu conheço há pouquíssimo tempo...”

132


BEATRIZ

“Tenho! A minha primeira memória (rindo) de dentro de casa é uma memória ótima, é uma memória com os meus irmãos. Eu tenho uma irmã mais velha, que é a Letícia, e o irmão do meio, que é o Lucas, e eu sou a mais nova. Eu e minha irmã a gente dividia um quarto, que tinha uma decoração toda tipo laranja, verde e branco... E tinha um banheiro que tinha duas pias... e eu não lembro do pra lá do banheiro, eu só lembro desse corredor com duas pias. Aí eu e minha irmã achava mó graça sentar na pia e fazer xixi na pia, ai ficava cada uma sentada em uma pia se olhando.”

NAYANY

“Eu acho que uma das minhas primeiras lembranças foi eu brincando de teatrinho sozinha na sala da casa da minha tia, que era onde eu morava com a minha avó e minha tia quando minha mãe morava em Campinas. [...] eu lembro de ficar brincando assim na sala e ficar reproduzindo umas coisas tipo novela mexicana, sabe? [...] Apaixonada por mim mesma”

AMANDA

2: PRIMEIRA LEMBRANÇA DENTRO DE CASA?

“Eu nunca gostei de ficar na escola, então a minha mãe me levava pra casa da minha avó porque ela tinha que trabalhar. Eu ficava na casa da minha vó o dia inteiro [...] e era uma casona grande... é uma casona grande, porque ela ainda está lá [...] e a lembrança que eu tenho é de ficar com a cachorra na sala. Ninguém da casa queria que a cachorra ficasse dentro de casa mas eu deixava ela dentro de casa. Inclusive esse sofá é de lá.”

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DANIEL

“Minha primeira lembrança dentro de casa, que é minha primeira lembrança mais antiga que eu tenho. Eu tinha entre dois anos e meio a três anos e eu estava com fralda. Eu lembro de eu chegando pra minha mãe, e ela tava sentada no sofá dessa primeira casa... e aí eu falava pra minha mãe que eu tentei trocar minha fralda sozinho mas que eu não consegui. [...] E aí eu lembro de eu chegar nessa sala, e essa sala tinha uma estante grande e eu tava meio encostado nessa estante, olhando pro sofá e pra minha mãe, falando que eu tinha tentado trocar a fralda sozinho mas que eu não tinha conseguido.”

THIAGO

“O que me remete ao mais antigo disso é justamente a salinha da minha casa onde eu morei até os 19 anos [...]”

LEOPOLDO

“Com cinco ou seis anos [...] Foi uma vez que meus pais chegaram de viagem aí eles trouxeram um gameboy color com o pokemon, e eu fiquei com ele a tarde toda no sofá da casa. [...] acho que é a primeira lembrança que eu tenho nítida.”

JOSÉ

“A lembrança mais antiga que eu tenho é na casa da minha avó deitado na cama. Eu no sofá também. Na varanda da casa da minha vó. Acho que na casa da minha avó são as lembranças mais antigas que eu tenho assim... Eu lembro de uma cena muito específica de eu deitado na cama brincando com a minha avó [...]”

134


BEATRIZ

“Da casa do xixi era diversão total, só lembro de diversão. [...] Aí teve o cafofo que era tipo coraçãozão. Foi um momento muito próximo da família. Eu me sentia muito bem naquela casa. [...] Aí depois do cafofo, a gente se mudou [...] para uma casa, que ficou construindo, e era uma casa grande com um pé direito super alto, um piso gelado e ai meus pais se separaram nesta casa. [...] E aí meu pai morava num outro apartamento, que era às vezes a casa de final de semana. Nunca foi casa na verdade, era o apartamento do meu pai, né.”

NAYANY

“Era uma sala com uma janela de madeira [...] com um sofá marrom, tinha umas prateleiras azuis com um monte de CD, um monte de coisa [...] livros. Tinha um rack, que tá na casa da minha mãe até hoje, que era um rack de madeira e embaixo tinha duas caixas de som que ainda existem. Vários discos de vinil, um toca discos e um televisor em cima. E aí tinha um tapete muito feio verde, um verde musgo claro esquisito. E esse rack ficava de frente pra janela, que era a frente da casa.”

AMANDA

3: COMO ERA ESSE AMBIENTE DA LEMBRANÇA?

“O chão era... é aquela coisa bem fria que tem uns desenhos. [...] Era bem frio o chão, e tinha uma escada... e a casa da minha vó sempre foi muito bagunçada, muito acumuladora. [...] Tinha aqueles pontos que eram muito bagunçados e ninguém tinha coragem de mexer, mas eu mexia... roubava coisa, levava pra casa. Então tinha uma escada, e embaixo da escada tinha uma bagunça de coisa, aí tinha um rack e uma tv... essa tv muda também com o tempo. Essa mesa ficava no centro da sala.”

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DANIEL

“Essa casa era uma casa muito... talvez carinhosa fosse o nome. Ela era bastante solar, tinha bastante sol [...] ela era virada pro oeste, batia sol da tarde. [...] Ela era muito aconchegante pra mim, ela era uma casa pequena, não era grande. Eu dividia quarto com a minha irmã [...] e era uma casa muito popular. [...] Esses apartamentozinhos de fato eles eram muito pequenos, são apartamentos de dois quartos e tudo mais [...] mas tudo muito aconchegante, tudo muito cada coisinha no lugar. [...] minha mãe e meu pai sempre arranjaram um jeito de deixar tudo bonitinho, tudo muito arrumadinho, muito bonitinho. Eles tinham esse tato. [...] Ali era um lugar que batia muito vento, sempre estava muito fresco, e batia muito sol também.”

THIAGO

“Era uma salinha quadradinha assim, que a minha mãe fazia ficar uma parada muito aconchegantes, porque tinha cortina na parede inteira [...] Uma cortinas de renda [...]”

LEOPOLDO

“Então eu lembro de um sofá marrom e esse sofá era no meio da sala, então tinha um espaço antes e depois. Então quando eu peguei o video game eu corri pra trás do sofá pra ficar mexendo nele [...] Tinha um tapete vermelho embaixo do sofá [...] Em casa tinha uma iluminação bem peculiar. [...] Uma luz um pouco mais fria, sabe? [...] O ar estava ligado, então tava uma coisa mais tranquila, gelado... Fortaleza é muito quente, não sei se você sabe.”

JOSÉ

“[...] era um piso de taco com móveis de madeira, inclusive o sofá era de madeira e era aqueles sofás de madeira com o estofado de couro caramelo. [...] Uns móveis de madeira[...] Eu lembro do quintal, era um quintal grande... tinha um pomar. [...] Eu lembro do quarto também, que era uma cama de cerejeira assim, sabe? [...] Era tudo muito confortável, bem casa de vó mesmo [...] A sensação que eu tenho é que não existia mentira e coisas ruins naquela casa”

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BEATRIZ

“[...] era aquela brisa de ter a luz do sol entrando e as coisas eram todas beginha, madeira, branco. [...] E isso é o que eu mais lembro assim. E da árvore da felicidade, que é uma planta que minha mãe tem há muito muito tempo.”

NAYANY

“O que eu mais gostava era o quintal. Tinha um quintal muito grande, que depois que eu cresci eu percebi que não era tão grande assim, mas ele tinha muitas árvores e [...] uma horta que minha avó cuidava todo dia [...] e eu gostava muito de brincar debaixo do pé de jabuticaba. [...] não lembro do que eu brincava, eu falava muito sozinha, e brincava muito sozinha, comigo mesma, eu era vários personagens. E eu gostava muito dessas árvores em especial; tinha essa e tinha uma goiabeira do lado. [...] Eu gostava muito desses dois pontos específicos que eram as árvores.”

AMANDA

4: O QUE VOCÊ MAIS GOSTAVA NESSES LUGARES?

Aqui, Amanda começa a descrever a personalidade da avó. Relembra algumas histórias e lembranças de sua mãe e tios sobre ela e apenas fala sobre a figura da avó.

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DANIEL

“Eu acho que era a luz do sol que batia na sala... isso eu tenho uma impressão muito forte. E acho que junto com isso também, uma coisa muito simples que tinha e que eu também tinha lembrança forte... eu gostava muito de dinossauros e eu lembro muito fortemente de eu sentado no tapete da sala brincando com os dinossauros.”

THIAGO

“A poltrona do lado da porta de entrada da sala[...] Quando tinha alguma coisa de família ninguém sentava lá, só eu. Era ali que eu gostava de sentar. [...] Era a porta de entrada da casa e era o melhor lugar pra ver tv, sabe?”

LEOPOLDO

“Eu gostava do meu quarto mesmo... passei muito tempo no meu quarto. [...] Em geral eu passei muito tempo da minha vida num computador, então eu tinha um quarto que era uma cama pequena [...] uma escrivaninha, um computador meia boca, uma porta pro banheiro e era isso [...] Meu quarto era gelado e com um computador, então eu passei muito tempo no computador.”

JOSÉ

“O lugar pra receber pessoas. Minha família é grande e muito unida, sempre todo mundo se reuniu... sempre tinha alguém em casa. Então a cozinha sempre foi uma coisa bem legal, minha mãe e minhas tias sempre ficavam na cozinha e eu ficava com elas. [...] Eu sempre fiquei, né, criança bicha, sempre ficava com as tias. Então eu sempre tava ali com as mulheres. Então eu sempre estava ali na cozinha... eu gosto bastante do ambiente da cozinha. [...] Lugares que reúnem pessoas... Eu sei que quintal também reúne, mas eu não gosto tanto do quintal como lugar de reunião, porque acho que ele me remete mais aos homens, porque na minha família os homens ficavam lá fora, e eu tinha pavor...”

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BEATRIZ

“Um sofá. Uma luz gostosa. Tipo luz vermelha, luz azul ou luz verde, porque fica tudo mais incrível. E eu acho que coisas que te tragam o sentimento de casa [...] Quando você colocar os móveis com uma certa personalidade que você quer na sua casa. Mas eu acho que o que vai fazendo o sentimento de casa são os enfeites, os quadros, as plantas. [...] Se só tivesse tipo esse sofá, os móveis, sem os livros, sem nada dali ia parecer que não tem nada. Acho que são os enfeites.”

NAYANY

“Eu gosto de casas pequenas porque eu sinto que elas são mais aconchegantes. Então pra mim é importante que a casa não seja muito grande. Para mim também é importante que a casa seja bem iluminada e tenha a possibilidade de sempre ter as janelas abertas. O que aqui em São Paulo não acontece muito. [...] Acho que uma cadeira de balanço, [...] porque era onde eu passava a maior parte dos meus dias. Eu chegava da escola e pegava um livro [...] e aí eu sentava, ou na cadeira de balanço ou na rede, essas duas coisas são bem importantes, e eu lia a tarde inteira.”

AMANDA

5: O QUE VOCÊ CONSIDERA ESSÊNCIAL EM UMA CASA?

“Essenciais assim? acho que cama e sofá. Lugares para sentar... acho que eu não tenho tanto esse contato com o chão... eu gosto e etc, mas eu acho que ter só o chão é uma coisa que me limita muito, me incomoda um pouco.”

139


DANIEL

“Sol e planta [...] Tem uma imagem que eu tenho também, e essa imagem é construída porque eu acho que eu vi nunca ela na infância [...] essa imagem visual que eu tenho é tipo uma parede, aí parece que é uma Costela de Adão com umas Samambaias, alguma coisa assim. Pra mim uma casa tem que ter isso.”

THIAGO

“Eu gosto muito do lance da cozinha americana, sabe? [...] Nessa época que eu morava nessa casa, que nao tinha nada a ver com nada do que eu acho o ideal, eu via na tv e achava muito bonito. Achava aconchegante real você poder estar sentado no sofá da sala de estar conversando com quem tá fazendo comida. [...] Acho que dá abertura para que dentro da casa as pessoas possam se conversar mais. [...] Mas pra mim, uma coisa extremamente importante é um tapete. [...] Por causa daquele tapete da sala da primeira casa da minha vida que era gigantesco [...] então eu gostava de ficar sentado no tapete, deitado no tapete, eu achava gostoso. Tapete e cortina [...] porque eu me sinto realmente excluído, no bom sentido, tinha minha privacidade.”

LEOPOLDO

“Um sofá... alguma coisa... não um sofá, mas alguma coisa pra descansar, então pode ser uma cadeira, um sofá, um veludo um pouco mais confortável. [...] Que também poderia servir de cama [...] Eu imagino sempre tendo pelo menos algum livro, nem que seja de faculdade. [...] porque livros me dão um conforto.”

JOSÉ

“Acho que iluminação, luz é muito importante. Um espaço grande de recepcionar pessoas, eu gosto... amplo. [...] Um janela grande traz essa sensação... Ventilação e essas coisas assim acho que são bem importantes [...] Um quarto, acho privacidade uma coisa muito importante”

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BEATRIZ

“Eu sentia que eu tinha privacidade na casa grande, porque todo mundo ficava afastado. E não parecia que eu estava sendo olhada. Primeiro que cada um tinha o seu lugar na casa e segundo que era distante. Mas eu não gosto disso…. essa era uma privacidade ruim…”

NAYANY

“Acho que nessas casas eu não tinha muita privacidade. Eu tinha um quarto que eu não dormia muito nele porque eu tinha muito medo. Então, os lugares que eu ficava mais sozinha eram ou nesse quarto, mas era raro, ou na frente de casa na rede, ou na cadeira de balanço. [...] Era muito meu canto, eu ficava lá por horas.”

AMANDA

6: QUAL O AMBIENTE QUE VOCÊ SENTIA PRIVACIDADE?

“Difícil... acho que isso foi um dos motivos pelos quais eu mudei. Eu sempre morei num apartamento pequeno, era de um quarto só, então era tudo muito improvisado pra ter dois quartos [...] Então meio que nunca tive privacidade.. só quando eu estava sozinha mesmo, que eu sentia que tinha privacidade. [...] Então acho que privacidade era mais estar sozinha do que um lugar.”

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DANIEL

“Nessa primeira casa da infância só o banheiro. Quando eu mudo pra casa verde com meus pais, ali eu tenho o meu próprio quarto. Mas ao mesmo tempo tem uma briga enorme com meus pais porque meus pais não querem me dar a chave do meu próprio quarto, até os meus 16 anos não queriam de dar a chave do meu quarto. Então eu não me sentia num lugar de privacidade ali.”

THIAGO

“Na casa da minha avó, quando eu tava com o meu avô... era o lugar que eu mais me sentia abraçado. Aqui eu posso fazer qualquer coisa que ninguém vai saber nada. E, na verdade, acho que meu quarto de infância, era um lugar que era mais suave [...] Acho que era dentro do meu quarto e na casa do meu avô”

LEOPOLDO

“A falta de incomodo total seria no banheiro, sempre é no banheiro... [...] Banheiro é onde homens podem ser homens, a gente pode virar bicho” Livros com certeza. [...] eu tenho essa coisa de construir uma biblioteca, acho que tem um projeto de vida ai de construir uma biblioteca grande. [...] Acho que era uma relação bem simples, era uma relação física de fechar a porta. Então, se você tiver uma porta fechada imagino que já tem uma privacidade, mesmo que falsa, mas pra mim era suficiente”

JOSÉ

“É o meu quarto[...] lá eu tô invisível, sabe?”

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BEATRIZ

“Eu acho que eu me identificava com aquele espaço com cores. [...] Porque eu acho que minha mãe sempre fez isso, ela fazia a temática dos quartos. [...] e dai o do meu irmão era verde, e o meu quarto era roxo, e o quarto da minha irmã era mais pro branquinho. Aí a sala era toda colorida.”

NAYANY

“Identificação... acho que sempre foi a sala [...] Era onde eu passava mais tempo com a minha avó, e sempre que eu penso naquela sala, no rack, na disposição específica do sofá, eu lembro desses momentos [...] Eu tava sempre com ela, sempre com ela fazendo alguma coisa na sala.”

AMANDA

7: QUAL O AMBIENTE QUE VOCÊ SE IDENTIFICAVA?

“Eu acho que a sala... Não necessariamente sobre mim, mas tinha uma mistura boa dos três [pai, mãe e Amanda]. Eu sempre tive muita coisa, então não cabia no meu quarto [...] eu sempre pus coisas na sala... Meus livros ficavam lá... Então tinha muito de mim... Apesar do meu quarto ser muito eu [...] eu sinto que a sala era um lugar mais interessante, sempre foi.”

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DANIEL

“Eu sempre tive algum espaço ou alguma coisa pra colocar minhas coisas [...] Eu tenho uma tendência e colocar o que é meu no meu quarto, de decoração e coisas assim [...] Uma coisa meio territorialista.”

THIAGO

“Na casa da minha avó, quando eu tava com o meu avô... era o lugar que eu mais me sentia abraçado. Aqui eu posso fazer qualquer coisa que ninguém vai saber nada. E, na verdade, acho que meu quarto de infância, era um lugar que era mais suave [...] Acho que era dentro do meu quarto e na casa do meu avô”

LEOPOLDO

“Por um bom tempo na minha vida eu fiquei jogando essas coisas de computador, e em algum momento eu fui hackeado, e eu perdi tudo... e foi quase como se tivesse queimado a minha casa de verdade. [...] A minha relação com quem eu era era tudo que eu criava lá dentro, tudo que estivesse vinculado ao meu email.”

JOSÉ

“É o meu quarto, sempre... é tipo o safe point. [...] Posso tá na merda na fossa, mas lá eu tô invisível. [...]”

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BEATRIZ

“Eu habitava aquele espaço… acho que o que eu fazia era de novo nos enfeites, eu posicionava eles do jeito que eu queria. E o habitar era tornar aquilo meu, já. [...] eu acho que o habitar sempre foi o fazer daquele espaço meu. Tipo estar no sofá. Aquele espaço do sofá era meu. Por que assim, apesar da casa ser da minha mãe, o sofá era meu.”

NAYANY

“Acho que era o sofá e umas almofadas específicas que sempre teve em qualquer casa que eu fui, e esse rack de madeira.[...] Tinham coisas que eu fazia, mas era mais de fazer mesmo. [...] Eu pegava a cadeira de balanço e colocava ela numa posição que dava pra ver os sítios perto da minha casa. [...] Era mais esse movimento de pegar a cadeira e por numa posição que eu pudesse ver isso”

AMANDA

8: COMO VOCÊ CONSTRUÍA ESSA IDENTIFICAÇÃO?

“Os quadros, que eram meus... as fotos [...] fotos minhas criança e tal. Tinha discos, que são meus e da minha mãe... que eu não trouxe pra cá, porque eu não tenho uma vitrola. [...] Antes dessa reforma tinha desenhos meus na parede, de criança, rabiscos mais abstratos.”

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DANIEL

“Livros com certeza. [...] eu tenho essa coisa de construir uma biblioteca, acho que tem um projeto de vida ai de construir uma biblioteca grande.”

THIAGO

“Desde molequinho eu queria ter um aparelho de som dentro do quarto, porque na época não era normal [...] Um dia eu fui com a minha mãe num Extra, que tem aquela parte de eletrodomésticos, e eu vi uma caixinha de som e pensei ‘deve ser muito louco ter uma caixinha de som no quarto’[...] E também, não tinha no armário um lugar que eu pudesse pendurar cabide, e eu achava muito legal quando eu ia na casa dos amigos e eles não guardavam as camisas na gaveta, deixava tudo pendurado. [...] Aí um dia eu fiz uma revolução em casa [...] Eu comprei 60 cabides e botei tudo em cabide, calça camiseta, tudo.”

LEOPOLDO

“A minha vida era dentro de um computador... talvez meu msn fosse quem eu realmente era.”

JOSÉ

“Eu morei no interior, então eu meio que me descobri gay dentro do meu quarto... com a internet, orkut [...] dentro da minha intimidade eu me entendi e pesquisei e vi as coisas, sabe? [...] Porque eu era uma pessoa no computador e outra pessoa na vida real.”

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BEATRIZ

“As memórias de dentro de casa, na real, sempre eram essas de quando eu era menor, de estar brincando com meus irmãos. Mas depois de um tempo foi muito tipo ficar de boa, sabe? Deitada no sofá.”

NAYANY

“Acho que era ler ou desenhar... eu sempre estava com um livro ou com um caderno [...] Mas acho que principalmente os livros. Eu criei esse hábito de leitura muito nova, com a minha avó...”

AMANDA

9: QUAIS OS MOMENTOS QUE VOCÊ MAIS GOSTAVA?

“Eu gostava de ficar no sofá, assistindo uma série ou um filme. Ou no balcão, comendo e conversando, porque também era um lugar que parecia uma janela mesmo... tipo, a pessoa tá falando comigo e fazendo alguma coisa, e aí você ficava lá sentado conversando. [...] Lá era muito barulhento. Eu morava do lado do largo da batata, então o barulho meio que fazia parte da casa. E até quando eu mudei pra cá, uma coisa que foi pra melhor mas foi uma mudança muito drástica, que é não ter barulho nenhum.”

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DANIEL

“Eu gostava de jantar com a minha família, eu gostava muito disso [...] Meu pai trabalhava muito a noite, tinha muito uma coisa de ficar eu minha mãe e minha irmã. E minha mãe cozinhava muito bem, eu lembro disso. [...] E aí quando eu mudo pra Casa Verde [...] tem uma progressiva desagregação do núcleo familiar, então essas atividades a gente não realiza mais. [...] esse lugar à mesa era um lugar importante que foi se desagregando.”

THIAGO

“Acho que era esse momento de ficar sentado no pc no domingo a tarde ouvindo música. Deixava um som rolando na caixa, a janela do quarto aberta pro quintal. Dia ensolarado. E eu ficava sentado no pc conversando no ICQ com as pessoas.”

LEOPOLDO

“Tinham domingos em que meu pai ligava o som e ficava escutando musicas que eu achava bem bonito, eu gostava desse momento. Em geral, com a minha mãe, eram sempre conversas que a gente tinha de noite ou o caminho dos lugares... [...] E sozinho era eu mesmo e o computador e o Youtube.”

JOSÉ

“Eu sempre gostei de aprontar... sabe? Pegar umas coisas da minha mãe e destruir [...] Pegar um porta retrato e querer pintar”

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