Histórias de caça e pesca

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"(...) A caça é um grande tema de reflexão e uma grande escola de vida e de valores – de companheirismo, de fair play, de conhecimento e respeito pela natureza, de paciência, persistência, de reaprendizagem de coisas primordiais e evidentes por si mesmas. E, por isso, antes que a multidão politicamente correta da nova doutrina urbana e civilizacional queira julgar como selvagens a caça e os caçadores, ou mesmo bani-los face à lei, convinha que a sua arrogante ignorância ficasse a saber que falam do que não sabem e não percebem, e que, para infelicidade sua, jamais entenderão." Miguel Sousa Tavares, in Prefácio

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Histórias de Caça e Pesca …e outras verdades

e outras verdades

A. Cunha , A. Vasconcelos, J. L. de Carvalho, J. Pintalhão, M. Jorge Mesquita, M. Pintalhão, M. Pedro Ferreira

Histórias de Caça e…Pesca

Arlindo Cunha Ascendino Vasconcelos José Lemos de Carvalho José Pintalhão Manuel Jorge Mesquita Manuel Pintalhão Mário Pedro Ferreira

Histórias de Caça e… Pesca

e outras verdades Prefácio de Miguel Sousa Tavares Posfácio de Jacinto Amaro


Às nossas famílias, pela compreensão e partilha cúmplice e afetiva das nossas atividades de caça e pesca, mesmo quando lhes roubamos tempo de convívio. Aos amigos que fizemos ao longo das nossas vidas no exercício da caça e da pesca, que são muitos e generosos.


ÍNDICE Prefácio .......................................................................................................

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Nota de apresentação .................................................................................. 13 I - Histórias de outros tempos Memórias de caça e de caçadores .............................................................. 19 Caçar a pontapé ........................................................................................ 26 O galo da tia Albertina ............................................................................. 29 Corrida vertiginosa ................................................................................... 32 II – Histórias de caça Atribulações cinegéticas de dois bons amigos .......................................... 37 Fadista, o cão coragem.............................................................................. 44 Uma lebre no terreiro do paço ................................................................ 47 O javali que me caiu nos pés..................................................................... 51 Um lobo na espera ao javali...................................................................... 54 O grande caçador ..................................................................................... 60 Duas histórias de esperas ao javali ............................................................ 65 O tenente João.......................................................................................... 68 O verdadeiro caçador .............................................................................. 71 Soalheiras .................................................................................................. 78 A carabina que atirava ao lado .................................................................. 81 III – Histórias de pesca Pescador de gaivotas ................................................................................. 87 A odisseia atlântica – Açores .................................................................... 91 A primeira estadia em S. Jorge, viagem à Graciosa e pesca de corrico ..... 92


Histórias de caça e pesca e... outras verdades

O comprimido da comadre ...................................................................... 96 Uma paixão florentina.............................................................................. 99 A primeira pescaria com isco vivo............................................................ 103 Três vejas furadas num só lançamento ..................................................... 106 Tropelias e outras picardias com trutas do Alfusqueiro ........................... 109 Não se pode ser bom … .......................................................................... 114 Uma grande abertura em Paradela do Rio................................................ 119 Cadê a fiscalização? ................................................................................... 129 Pescar trutas no tanque............................................................................. 132 Pescarias no rio Tua ................................................................................. 135 Corrida à noite na linha do Tua ............................................................... 137 Uma pescaria na Brunheda ....................................................................... 141 Um mergulho ao anoitecer na ilha de Armona ........................................ 145 Pescaria humanitária................................................................................. 150 Um dentista ocasional .............................................................................. 153 Um polvo relojoeiro................................................................................. 156 Pescar barbos com amoras ....................................................................... 158 E meter-se com as vespas .......................................................................... 158 Um lançamento único… ........................................................................... 161 Um pescador religioso … .......................................................................... 165 O batismo de um pescador de trutas ........................................................ 168 A truta que ressuscitou ............................................................................. 173 Pescaria em águas da corrente fria de Benguela ........................................ 176 Notas biográficas dos Autores..................................................................... 183 Posfácio ....................................................................................................... 189

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PREFÁCIO

Amigos de caça Dantes, aos primeiros sinais de outono, eu entrava em depressão. Mais do que a chegada do outono, o que me deprimia era o fim do verão, pois que sempre fui devoto dessa verdade enunciada por Rilke: “só o verão vale a pena”. Imaginar um longo ano pela frente sem as praias e os banhos de mar, sem as noites quentes nos terraços e pátios, as noites em que o luar atravessa a sombra dos pinheiros e vem pousar no chão do quarto onde dormimos de janela aberta, a maresia trazida pelo vento de sueste nas manhãs marítimas, as frutas de verão nos mercados, o peixe fresco brilhando ainda com luminosidades de prata, as vozes que se transmitem ao longe, dobrando esquinas e ruelas do que resta dos nossos souks em aldeias ou até em Lisboa, tudo isso, imaginar um ano inteiro sem tudo isso, deixava-me irremediavelmente triste e desamparado, como se as marés de equinócio tivessem varrido todas as possibilidades de alegria, todos os dias felizes. Se o verão morria assim, eu morria também com ele, de cada vez. Mas, há uns anos, tudo mudou. Alguns amigos começaram a levar-me à caça e eu descobri que, além do mar, também havia a terra, e depois do verão havia o outono: foi uma descoberta tardia, mas decisiva, como se tivesse descoberto uma quinta estação do ano 7


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e, mais do que isso, um novo pretexto para a felicidade. Eu, que, tal como alguns dos autores deste livro, fora sempre um apaixonado pelo mar, pela pesca e pela caça submarina (em que costumava dizer que por cada dia debaixo de água limpava um mês de Lisboa), descobri que, além do mar, havia também a terra. Além do mundo silencioso e líquido das águas, havia também o mundo sólido, primordial, da terra. Em vez do silêncio, todos os sons da natureza; em vez da transparência, a consistência. Rapidamente tomei a minha decisão e resolvi tornar-me caçador. Comecei pelo princípio, passo por passo, e são muitos: as aulas e o exame para obtenção da carta de caçador, aprendendo coisas para mim inteiramente desconhecidas, como o ciclo de vida e hábitos dos animais, modalidades de caça, princípios de balística, como criar e treinar cães de caça, etc.; depois, atravessei todo o imenso processo burocrático para a concessão de licença de porte de arma, escolhi as armas (que ainda hoje são as mesmas), experimentei vários tipos e marcas de cartuchos até perceber com os quais me dava melhor e fiz um mínimo de aulas de tiro; finalmente, experimentei dois cães – um tão bom – que mo roubaram, o outro tão mau que foi dispensado e hoje é um urbano-depressivo, cheio de doenças e tiques de personalidade. Muito embora o campo não me fosse propriamente estranho, eu não sabia como eram os campos de caça. Não fazia ideia do mundo novo, primordial e deslumbrante que iria encontrar. Não imaginava as manhãs de geada ou de orvalho suspenso nos arbustos e nos ramos das árvores, as manhãs de frio polar ou as de chuva e lama, onde nos enterramos até à alma e maldizemos a decisão de ter saído da cama – que logo depois bendizemos, assim que os primeiros raios de sol rompem as nuvens e o frio ou que a primeira peça de caça tomba no chão. Não imaginava as longas caminhadas por cabeços ou planícies, por leitos secos de rios ou através da água, o cheiro a esteva e a giesta, ou as longas emboscadas, atento a todos os ruídos, ao simples agitar de uma folha, adivinhando a presença próxima dos

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prefácio

animais antes de os ver. As esperas silenciosas à beira de um riacho, molhando a cara na água cristalina, aproveitando para colher poejos ou beldroegas tardias, aproveitando para pensar na vida, no essencial, no que verdadeiramente importa. A sós, com os três maiores luxos que um homem pode ter: espaço, tempo e silêncio. Porque aqui não há multidões nem urbanizações turísticas, não há pressa nem vozearia de conversas inúteis. E não sabia que os selvagens dos caçadores (que os há, como em tudo o resto), também conseguem, outras vezes, reunir um grupo de amigos que tudo pode separar à partida, mas que finalmente se encontram unidos por essa paixão primitiva e talvez inexplicável da caça. Gosto especialmente dos jantares que antecedem as manhãs de caça, das conversas soltas e sem pressa, das anedotas que dão a volta e regressam no final da época. Há quem imagine que as conversas dos caçadores são sobre futebol, mulheres e política. Pois lamento desiludi-los: são sobre armas, cartuchos, cães, viagens, o estado dos campos e das culturas e as memórias antigas de lances de caça, umas vezes inventadas, outras reais, que cada um guarda consigo e a que só a um outro caçador vale a pena contar. E gosto muito das pequenas pensões ou hoteizinhos manhosos de província, onde se joga cartas à lareira do salão (a inevitável sueca) e onde os quartos têm pesados armários antigos de madeira e uma casa de banho moderna enxertada no meio do quarto, com o polibã para poupar espaço. Gosto de passar em revista e preparar todo o material de véspera: verificar se as armas estão bem limpas, se os cartuchos escolhidos são os melhores para o que se vai caçar, se a roupa e tudo o resto estão preparados para não perder tempo de manhã, em que cada minuto conta. E depois é tentar adormecer cedo – o que nem sempre é fácil, porque a adrenalina e a excitação já começam a fazer-se sentir. E, se o sono vier cedo, hei de adormecer feliz, pensando que no dia seguinte vou à caça, enquanto tantos outros, lá na cidade, vão gastar a noite e a madrugada em bares, discotecas, festas e concertos

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onde se atropelam para atrair as atenções dos fotógrafos das revistas sociais. E, quando eles, se calhar, ainda nem vão no primeiro sono, já eu estou sentado à mesa (trôpego de sono, é verdade) para algum extraordinário pequeno-almoço, como, por exemplo, açorda alentejana com ovo e bacalhau. “Ah”, dirão vocês agora, “e o prazer sádico em matar animais – disso não fala?”. Falo sim, para dizer que não existe tal coisa como o prazer de matar. Existe, sim, o prazer de acertar, que é uma consequência lógica do prazer de atirar. Nenhum caçador gosta de errar o tiro ou, pior ainda, de errar parcialmente e deixar um animal ferido, em vez de morto redondo. É por isso que a ética exige que, no caso da caça grossa, que pode resistir muito tempo a um ferimento, o caçador vá atrás da peça ferida até lhe poder dar o chamado tiro de misericórdia. E é por isso, também, que nenhum caçador que se preze atira a uma ave que não esteja em voo ou a um coelho ou uma lebre que não esteja em corrida. Claro que há caçadores que o fazem, mas eu não caço com eles e os meus amigos também não. Também não caçamos o que não comemos e fazemos questão de saber cozinhar uma canja de pombo, uma perdiz de escabeche ou um arroz de tordos. E de nos sentarmos todos à mesa, terminada a jornada, e ficarmos à conversa pela noite adentro, moídos de cansaço e de felicidade tranquila, de bem com a consciência, de bem com a natureza e as suas leis, em paz contra as imperfeições do mundo, as suas falsidades e fúteis aparências. E se me deu para escrever este texto, foi por duas razões. Uma, porque abriu a época de caça. Outra, porque a caça é um grande tema de reflexão e uma grande escola de vida e de valores – de companheirismo, de fair play, de conhecimento e respeito pela natureza, de paciência, persistência, de reaprendizagem de coisas primordiais e evidentes por si mesmas. E, por isso, antes que a multidão politicamente correta da nova doutrina urbana e civilizacional queira julgar como selvagens a caça e os caçadores, ou mesmo bani-los face

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prefácio

à lei, convinha que a sua arrogante ignorância ficasse a saber que falam do que não sabem e não percebem, e que, para infelicidade sua, jamais entenderão. Este livro – em cujos autores se incluem alguns companheiros de caça e a que assim me associo – é mais um testemunho, dos muitos que já foram feitos, de quem viveu e vive tudo isto e não resiste a dar disso testemunho, quanto mais não seja para memória futura de dias de felicidade. Sim, devemos gratidão e memória aos dias de felicidade. Pode ser que, um dia, por estupidez, por ignorância ou por simples inveja, tudo isto acabe. Será importante, então, que alguém o tenha testemunhado e contado, para que, ao menos, quem vier a seguir saiba que nós fomos felizes, em cada dia de caça passado entre amigos. Miguel Sousa Tavares

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NOTA DE APRESENTAÇÃO Além de tudo o mais que de bom nos proporcionam, as atividades da caça e da pesca são também um meio privilegiado para conhecer pessoas que comungam dos mesmos gostos e valores e, por isso mesmo, para fazer muitos e bons amigos. Por muitos desses acasos da vida – se é que alguma vez os acasos existem! – fomos formando uma rede bastante alargada, que resultou da junção de vários grupos de amigos que, ao longo do tempo, principalmente por motivo da caça ou da pesca, se foram relacionando entre eles. Um desses grupos tinha o seu epicentro em Viseu, outro em Porto-Maia-Douro e outro em Ciborro-Coruche-Mora-Ponte de Sor, por serem os locais de residência da maior parte dos seus integrantes. Em 2007, no seguimento dos almoços de Natal em casa do amigo José Lemos de Carvalho, entendemos que estava na hora de organizar uma estrutura mais formal e ainda mais alargada, para que este grupo de amigos se encontrasse regularmente e pudesse trazer os seus familiares e amigos que comungam dos mesmos valores, mesmo não caçando ou pescando. E assim nasceu a Academia Gastronómica e Cultural da Caça, hoje com mais de cem Confrades. Tal como um rio é formado por muitos afluentes que lhe vão dando grandeza e caráter, assim também a Academia resultou da integração de todos esses grupos de amigos, amigos de amigos e respetivas famílias, que partilham em comum o gosto pela caça e pela pesca ou, mais im-

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portante ainda, o gosto pelas tradições e valores culturais do mundo rural a que essas atividades estão teluricamente ligadas. Foram duas as principais razões que nos levaram a escrever este livro: a amizade que nos une e a paixão comum pela caça, pela pesca e pela fruição da mãe natureza. Quanto à primeira, o nosso livro pretende ser, apenas e tão-só, mais um ponto de encontro entre amigos: os que escrevem; os que são intervenientes reais nas histórias que narramos; e todos os que, de uma forma ou de outra, partilham connosco destes mesmos gostos e valores. É, assim, uma forma de celebrar a amizade. E é também um testemunho de como a paixão pela caça e pela pesca é, como poucas outras atividades, capaz de criar e cimentar amizades para a vida. A segunda razão que nos levou a escrever este livro foi deixar um testemunho público de que caça e a pesca são atividades tão normais e legítimas como quaisquer outras e, como tais, palco de múltiplas experiências e vivências. A grande diferença, porventura, em relação a outras atividades da nossa vida, terá a ver especialmente com a intensidade com que os pescadores e os caçadores vivem esses momentos lúdicos e, naturalmente, o entusiasmo com que narram tais vivências... Daí a origem do velho aforismo “caçadores, pescadores e outros mentirosos”... Naturalmente que, como também diz outro ditado popular, “quem conta um conto acrescenta-lhe um ponto”… O que significa que quem não sabe fazer esse sábio e ponderado acrescento não será, seguramente, um bom contador de histórias... E, claro, nenhuma razão haveria para que os caçadores e os pescadores fossem uma exceção à regra... Sucede, porém, que o aforismo que associa os praticantes destes desportos às piedosas e entusiásticas mentiras só pode ter tido origem em alguém que nunca praticou a sério estas atividades, pois

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nota de apresentação

não é capaz de compreender que o que por vezes parece ficção pode mesmo acontecer num contexto bem real de exercício cinegético ou piscatório. Este livro testemunha cenas de caça e pesca que foram reais. Que ocorreram em tempos e lugares precisos. Que têm protagonistas e idóneas testemunhas! Não são textos de ficção para vender papel. Por isso decidimos citar os nomes dos intervenientes e dar este título ao conjunto dessas histórias que ora publicamos. Porque, na realidade, o que aqui fazemos são narrativas verdadeiras de histórias de caça e de pesca que vivemos com o verdadeiro entusiasmo e paixão dos praticantes destas modalidades. E se pecamos nalguma coisa, é, seguramente, por defeito, pois, como citamos os seus protagonistas, cenas há que seria politicamente incorreto descrever na íntegra… Esperamos poder proporcionar momentos de boa disposição aos nossos amigos, às nossas famílias e aos nossos leitores, tal como aconteceu connosco – que nos divertimos fartamente ao relembrar e escrever estas histórias. O livro está organizado em três partes: uma, que designámos de Histórias de Outros Tempos, com relatos de histórias vividas há muitos anos, na nossa infância e juventude; e as outras duas agrupando, respetivamente, as Histórias de Caça e as Histórias de Pesca, vividas ao longo das nossas vidas de cidadãos comuns que praticam estes fantásticos desportos. Uma última nota para sublinhar que este livro é um testemunho coletivo, não só dos autores dos textos, mas também de todo o grupo de amigos que coparticiparam nas vivências aqui contadas, como ainda de todos os outros com quem caçamos ou pescamos habitualmente. 15


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A todos, o nosso sentido obrigado pelos tão bons momentos que nos ajudaram a levar desta vida! Um especial obrigado aos diletos amigos e companheiros de caça Jacinto Amaro e Miguel Sousa Tavares, pela amabilidade que tiveram ao escreverem o Posfácio e o Prefácio, respetivamente, que muito enriqueceram este nosso testemunho de vida de caçadores e pescadores. E, finalmente, um sentido agradecimento à Editora Vida Económica, por ter abraçado entusiasticamente este nosso projeto. Porto, outubro de 2014

O grupo de amigos autores destas histórias, na Quinta da Ladeira da Santa: Mário Pedro Ferreira, Arlindo Cunha, Manuel Jorge Mesquita, José Lemos de Carvalho, Manuel Pintalhão, Ascendino Vasconcelos e José Pintalhão

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I - HISTÓRIAS DE OUTROS TEMPOS


MEMÓRIAS DE CAÇA E DE CAÇADORES Na sequência desta iniciativa deste grupo de amigos para escrever um livro com histórias reais de caça e pesca, embora com algum constrangimento, pela minha fraca experiência de escritor e contador de histórias, proponho-me dar o meu modesto contributo, contando alguns pequenos episódios que se passaram comigo e com alguns inesquecíveis companheiros de caça com quem tive o enorme prazer de conviver ao longo desta já longa jornada cinegética da vida... Antes, porém, gostaria de deixar aqui uma sentida homenagem de agradecimento a todos os grandes caçadores, sem esquecer o meu pai, que muito contribuíram para que hoje me considere não um bom matador mas um caçador que respeita o meio ambiente, nas suas componentes de fauna e flora. Uma das primeiras histórias de caça que recordo passou-se há cerca de quarenta anos. A convite do senhor Ramada, lá partimos, no seu Fiat 124 branco, num solarengo domingo de manhã, muito cedo, rumo ao Montemuro. Da equipa faziam parte, além de mim, o anfitrião, o seu companheiro inseparável Raul Pinto e um mochileiro. Já próximo da capela do Rossão, onde iríamos degustar o sempre lauto e delicioso almoço, que, entre outras coisas, não poderia dispensar umas fatias de cabeça de porco e orelheira, a meio da encosta entre mim e o senhor Ramada, levanta um robusto perdigão cujo arrotar me fez estremecer da cabeça aos pés.

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Após alguns milésimos de segundo, lá me recompus, levei a Centauro à cara (também conhecida jocosamente pelos meus amigos por enxofradeira) e lá desferi um tiro mortífero fazendo com que a pobre ave caísse cerca de 30 metros à frente. De imediato ouvi o elogio vindo do amigo Raul: – Ó miserável, se não te estragares, vais dar um grande caçador. Se calhar, estraguei-me mesmo!... Ao ouvir tal encómio dirigido a mim, o senhor Ramada perguntou-me: – Também atiraste?... Respondi-lhe que sim. – Então atirámos os dois ao mesmo tempo! afirmou o ilustre caçador e amigo. De imediato se apoderou de mim um sentimento de incerteza, pois, se ele atirou, ele que quase nunca falhava, teria sido ele a derrubar a presa. De repente, ouve-se da parte de cima da encosta a voz de trovão do amigo Raul: – Ó Senhor Ramada, tire o cavalinho da chuva, que quem matou a perdiz foi aí o campeão! Então, para meu espanto, vejo o senhor Ramada com a perdiz na mão que lhe tinha sido entregue pelo seu Tejo, pointer de uns cinco ou seis anos que não me recordo de ter deixado uma peça de caça no monte. Depois de olhar para o belo troféu, dirigiu-se a mim e, entregando-me a perdiz, disse: – Quem a matou foste tu. Bem senti quando atirei que falhei o tiro! Quis retorquir, dizendo que, para mim, tinha sido ele quem a tinha matado, mas, perante tal gesto de eloquência e honradez, fiquei-me pelo silêncio.

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histórias de outros tempos

Ainda hoje estou convencido que quem matou a perdiz foi esse brilhante caçador e amigo. Outra história que recordo, e cujos protagonistas, felizmente, ainda a podem confirmar, passou-se na descida da Meda para Longroiva. Caçava então nessa altura com o meu inseparável amigo Serafim, com o Acácio Rocha e com o Manel Teixeira. Depois de uns quilómetros nas pernas sem uma peça de caça, passa uma perdiz pelo Manel, vinda de cima. Como já algumas vezes o tinha visto fazer, a desdita nem soube do que morreu e foi mergulhar a uns trinta ou quarenta metros num silvado inacessível no meio de uma ribeira. – Ora bolas, esta bem lá vai ficar – diz o resignado caçador. Perante tal manifestação de desalento, virei-me para ele e disse-lhe: – Deixa que o meu Rolf vai lá buscá-la. Resposta do meu amigo: – Ainda se fosse um bife!… Já nem sabes onde ele anda!... Certamente já foi para casa… Realmente, após o tiro, mais ninguém viu o Rolf. – Ó Serafim, o cão não anda por aí? – Não, certamente foi buscar a perdiz! – responde o amigo Serafim. Como as bocas eram o pão nosso de cada dia, todos deram uma grande risada. – Até lhe dava um bife se ele a trouxesse! – diz o Manel. – Pois então vai lá comprá-lo, que ele vem com a perdiz na boca! – diz o amigo Serafim. Bem, impõe-se dizer que o desgraçado do cão morreu sem ter tido acesso ao prometido bife. 21


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Certamente para se vingar, uns anos mais tarde, quando já caçávamos em Lagoaça, após uma sessão de ordem unida matinal no campo de futebol da urbe, ritual que não dispensávamos, indo os quatro em bicha de pirilau1 em direção às arribas, aparece, não se sabe de onde, o famigerado Rolf, como sempre, em grande velocidade, dá um encontrão ao Manel, que de imediato cai, enrola em frente, tipo comando, levanta-se e afirma: – Isto não é um cão, é um dinossauro!... Refira-se, a propósito, que o Rolf era um braco alemão com LOP2, que deveria ter sido mais acompanhado e acarinhado pelo dono… Ou seja, como diria o Pe. Domingos Barroso, merecia melhor dono. Mea culpa! A próxima história passou-se na Herdade dos Arramadões, na zona de Beja. Uma semana antes da prevista jornada, soubemos que o Senhor Coronel Castro tinha comprado na Casa Forte umas galochas pinta amarela especiais para galgar os terrenos que se apresentavam bastante pantanosos após uns dias de chuva. O amigo Serafim, quando teve acesso à famigerada compra, logo comentou: – Ó Senhor Coronel, vai caçar de salto alto?!... Efetivamente, tratava-se de um modelo cujo salto era mais fino e mais alto que o modelo anterior, mas, pelo amor de Deus, dizer que o senhor Coronel ia caçar de salto alto, convenhamos que só se podia tratar de má língua, ou sabe-se lá de inveja do amigo Serafim… disse alguém do grupo.

1. A expressão bicha de pirilau é utilizada nos meios militares para designar uma formação em fila, em que cada elemento vai atrás do outro, como forma de proteção do grupo em caso de flagelação pelo inimigo. 2. Para os menos familiarizados com estas tecnicidades da canicultura, convirá esclarecer que as iniciais LOP correspondem a Livro de Origem Portuguesa, existente no Clube Português de Canicultura onde se registam os cachorros de raça pura nascidos em Portugal.

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mais propriamente num sítio chamado Minas da Fonte Santa, na companhia de dois excelentes cães, o Rex, do sr. Coronel, e o meu Rolf, protagonista numa das histórias atrás relatadas. A certa altura, ainda antes do almoço, passámos numa zona onde havia uma nascente de água, que corria monte abaixo, onde, dias antes da nossa caçada, o Sr. Coronel tinha colocado uma cana de canavial aberta ao meio, a servir de bica, para facilitar a serventia. Nesse belo dia, ao passar junto ao regato que alimentava a dita bica, o Rex não se conteve e afogou a beiça na corrente, acima da obra de engenharia do amigo Coronel Castro, o que implicou que tivéssemos que aguardar algum tempo para que a água voltasse a correr sem os fluidos do Rex, para a podermos beber. Após termos bebido os três, o Sr. Coronel falou para o Rex num tom mais ríspido que o normal: – Estás a ouvir, Rex? Primeiro bebe o dono e, depois, bebes tu…. A caçada continuou, até chegar a hora de ir ao carro tasquinhar, frase que o amigo Coronel sempre dizia. Lá tasquinhámos o que levávamos e recomeçámos a caçada. A meio da tarde, voltámos a passar no mesmo local da nascente de água. O Sr. Coronel bebeu, bebi eu e, por último, o amigo Serafim. Começámos a subir a encosta, por um trilho, em fila indiana. O Serafim, que seguia em último, reparou que o Rex estava estacado, apoiado apenas nas patas da frente, a olhar para nós com um ar muito sereno, junto ao referido regato, e, virando-se para o Coronel Castro, disse: – Ó Sr. Coronel, chame o cão porque ele está parado ali no regato da água e não vem.

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histórias de outros tempos

Resposta pronta do Sr. Coronel. – Ele não vem porque está à espera que lhe dê ordem para beber! E, de seguida, virou-se para o educado animal e disse: – Rex, vai beber…. O Rex cumpriu a ordem do seu dono, ou não se tratasse de um garboso militar de carreira! Saciou a sede e começou a caminhar ao nosso encontro, com ar de quem tinha feito um tirocínio irrepreensível durante a recruta… AV

No primeiro plano: Ascendino Vasconcelos e Bordalo Velho (recentemente falecido); atrás: Serafim Silva, Armando Rocha e Coronel Santos Castro

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II – HISTÓRIAS DE CAÇA

Na cerimónia da primeira entronização da Academia, na Igreja da Misericórdia, em Viseu


ATRIBULAÇÕES CINEGÉTICAS DE DOIS BONS AMIGOS Guardo do meu pai aquela imagem que gostaria que todos os filhos guardassem dos seus: um amigo e companheiro de todas as ocasiões, sempre disposto a ouvir, compreender e dar conselho. Era um homem simples, que começou a aprender a arte de pedreiro com o seu pai e meu avô Zé Pedreiro, indo depois aprender a de barbeiro e, ainda antes de ir para o serviço militar, a de padeiro, que acabou por ser a sua principal profissão. Emigrou para Angola em 1958, em busca de uma vida melhor, e, quatro anos mais tarde, logo que conseguiu pagar as dívidas que o tinham levado a emigrar, mandou ir a família. E lá fomos, a minha mãe, a minha irmã e eu, em fevereiro de 1964, ter com ele ao Alto Catumbela6, uma localidade junto ao rio do mesmo nome, no interior do distrito de Benguela, quase na fronteira com o do Huambo, cuja capital ao tempo dava pelo nome de Nova Lisboa. Foi com o meu pai que dei o primeiro tiro com a sua Krupp calibre 12, de canos justapostos. Sei que foi num passaroco qualquer, que a pobre ave teve morte imediata e que… andei duas semanas com uma enorme dor no ombro!

6. Esta localidade, localizada nas margens do Rio Catumbela, tinha-se desenvolvido em virtude da instalação da CCUP – Companhia de Celulose do Ultramar Português, que chegou a ser uma das maiores empresas de pasta de papel de África.

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Quando a família regressou à Metrópole em 1970, o meu pai, que tinha uma grande capacidade de relacionamento e um invejável sentido de humor, rapidamente se transformou numa figura popular na nossa freguesia de S. João da Boavista e no concelho de Tábua, tendo sido durante vários anos membro da Junta de Freguesia e seu presidente durante dois mandatos. Uma das grandes amizades que criou foi com o Sr. António Augusto Duarte. Sendo uns 12 anos mais novo, já se conheciam do tempo em que o meu pai tinha uma padaria na localidade da Torre (a tal que não correu bem financeiramente e que o levou a emigrar para Angola) e sua mãe tinha uma venda de pão, que comprava naquela padaria para depois distribuir por determinados lugares do concelho. O mestre António, como lhe chamam carinhosamente os amigos, era – e continua a ser – uma figura bastante popular no concelho, muito conhecido pelos mais velhos dos tempos em que foi um dos mais talentosos jogadores de futebol do Grupo Desportivo Tabuense e de outros clubes da região. Inteligente, arguto, com o verbo sempre disponível para entrar em ação, verrinoso com os seus inimigos de estimação, leal sem limites para com os seus amigos, o mestre António tem também um finíssimo sentido de humor. Tal como o meu pai, tem a quarta classe da instrução primária, pois nos tempos em que eram jovens não havia outras oportunidades de estudo naquelas terras do interior, ao tempo tão isoladas, sobretudo para as famílias mais modestas. Mas a inteligência e o caráter, esses, não há nenhuma universidade que os confira por diploma! Essa profunda amizade entre o meu pai e o mestre António fazia com que andassem juntos sempre que podiam. E, claro, a caça, que ambos praticavam entusiasticamente, era um dos seus grandes elos de ligação. Quando estava no Governo, sempre que podia, convidava-os

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histórias de caça

para irem caçar comigo. Quem anda uma época inteira nas Beiras para matar um ou dois coelhos, compreende-se o êxtase que sente quando vai ao Alentejo ou ao Ribatejo e numa jornada de caça abate 15, 20 ou mais coelhos! Por isso, estavam sempre à espera que lhes telefonasse para os convidar para mais uma caçada… E eu adorava tê-los comigo, pois os meus amigos com quem caçava e que também os convidavam apreciavam igualmente a sua boa disposição. Lembro-me que, nos pequenos-almoços, quando questionava o meu pai pelo seu apetite voraz logo ao romper da alba, me dizia sempre com a maior naturalidade: – Meu filho, o bom beirão, logo de manhã, bebe vinho e come pão! É no contexto desta amizade e cumplicidade entre os dois que relato aqui quatro histórias relacionadas com caça que tive a felicidade de poder testemunhar. A primeira e segunda histórias passam-se na Serra da Coroa, entre Bragança e Vinhais. O nosso amigo Álvaro Barreira convidava-nos com bastante frequência para as esperas ao javali na Turicorço. Vindo do Porto, passava habitualmente por Tábua e levava-os comigo. Dormíamos na Casa da Guarda e regressávamos no dia seguinte. Numa dessas esperas, no ano de 1997 ou 1998, o mestre António ficou na espera da Charca7. Apesar de as esperas distarem bastante umas das outras, conseguiam-se ouvir os tiros, se os houvessem, na maior parte dos casos. Ouvimos que nessa noite deu fogo. Quando o Álvaro e eu o fomos buscar, já depois da meia-noite, para irmos para a Casa da Guarda, ele estava ainda no palanque, de onde nunca descera. Quando lhe perguntámos que tiro tinha sido aquele, disse-nos que tinha entrado um javali muito grande e três mais pequenos. Atirou ao vulto maior, mas disse-nos com naturalidade que não viu

7. Assim chamada por estar junto a uma poça de água.

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Histórias de caça e pesca e... outras verdades

se acertou ou não… Quando nos acercámos do cevadouro, vimos que estava lá, morto, um javali pequeno, no máximo de uns 20 quilos. Perguntou então o amigo Álvaro Barreira: – Ó! Sr. António, não nos disse que apontou ao javali grande? Ao que nos respondeu com uma lógica desconcertante: - Ó! Sr. Engenheiro, eu apontei à mãe, mas, pelos vistos, matei foi o filho! Uma outra vez, estava ele na mesma espera, quando entraram dois javalis que teriam uns 60 a 80 quilos cada, a avaliar pela descrição que na altura nos fez, a mim e ao Álvaro Barreira, quando pela meia-noite o fomos buscar. Apontou e… errou, segundo nos contou. Nada mais natural neste desporto da caça. E ainda bem, pois, se ninguém errasse, seria bem problemática a sobrevivência das espécies! Por isso se costuma dizer que há uns dias da caça e outros do caçador… Os primeiros, está visto, são um simpático eufemismo para designar os casos em que o caçador falha... Mas o mais interessante foi quando eu o ouvi contar essa história ao Sr. Manuel Andrade, eletricista em Tábua, também apaixonado caçador e comum amigo. Estavam na minha adega e, como havia mais pessoas, eu fingi que não ouvia... – Mas, então, atirou a um e errou? – disse Manuel Andrade, entusiasmado com o arrebatador relato de mestre Duarte. – Você disse que eram dois. Que aconteceu ao outro? Resposta imediata de António Duarte: – O outro ficou. – Ficou, morto, quer dizer? – diz Manuel Andrade. – Não, não – retorquiu mestre António. – Ficou a comer! 40


histórias de caça

Na verdade, por razões que a ciência cinegética não consegue explicar, o segundo javali continuou a comer, apesar do tiro que foi disparado ao primeiro. Tendo permanecido por instantes no cevadouro, o mestre António não se fez rogado: novamente fogo! E, tal como o primeiro, o javali lá marchou de invejável saúde… E ainda dizem que os caçadores não são amigos da caça! As duas histórias que se seguem também têm a ver com a caça, mas apenas indiretamente. O mestre António, que sempre teve (e continua a ter) um bom canil de coelheiros, andava já há uns tempos a pedir-me que lhe arranjasse um casal de podengos, pois queria melhorar a genética da sua matilha. Através do meu amigo Eduardo Bandeira, à época funcionário da Cooperativa Agrícola de Penafiel, fomos buscar um casal de podengos (cujos nomes eram Porto e Coimbra) a casa de um caçador que havia desistido de caçar nesse ano, a uma aldeia do concelho, já perto de Entre-os-Rios. Foram ter comigo à Maia, seguindo depois atrás de mim, pela A4, a caminho de Penafiel, para almoçarmos num restaurante que tinha uns belos rojões à moda do Minho e um magnífico verde tinto, e de lá seguirmos para o local onde os cães e o respetivo dono nos esperavam. A dada altura, deixo de os ver no retrovisor do meu carro. Começo a andar mais devagar, na esperança de me apanharem, pois vinham supostamente mais devagar… Como teimavam em não aparecer, decidi encostar à berma da autoestrada com os piscas ligados, na esperança de que aparecessem. De contrário, teria que ir aos serviços da Brisa para pedir que fosse iniciado um processo de busca. Passados uns bons dez minutos, vi que, finalmente, lá vinha o carro do mestre António e do meu pai e fiz-lhes sinal para me seguirem. Saídos da A4 em Penafiel Sul e chegados ao restaurante, perguntei-lhes o que havia acontecido. Relataram então o sucedido. A dada

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III – HISTÓRIAS DE PESCA


PESCADOR DE GAIVOTAS Temos um apartamento da família na Praia de Quiaios, Figueira da Foz, já há umas boas décadas, onde passamos umas duas ou três semanas durante as férias do verão. Onde passamos não. Onde passam a minha mulher e filhos, pois eu, como rural inveterado, fico ali apenas uma escassa meia dúzia de dias, apelando depois à benevolência familiar para me deixar rumar aos calores da Beira Alta, para tratar dos meus afazeres agrícolas, na nossa quinta da Ladeira da Santa, em Tábua. Não é que haja muito para fazer nessa altura numa exploração vitivinícola. Mas vai-se preparando a adega para as vindimas, está-se mais atento aos fogos que não poucas vezes devastam as propriedades da família e da região e, depois de almoço, dormem-se umas magníficas sestas na cave fresca da adega. Como não sou capaz de estar um minuto de barriga para o ar a apanhar sol à beira-mar, costumava aproveitar esses poucos dias de Quiaios para corricar aos robalos a partir da praia – uma pesca que na zona também é conhecida por borrachar. É uma pesca bonita que, como todas as pescas, tem muito que saber para se poder ter um bom desempenho. Importa, especialmente, saber escolher o tipo de borracha a meter no anzol, a respetiva cor, se deve ser ao fundo, a meia água ou à superfície com boldo, etc.. Além disso ,esta pesca tem a grande vantagem de também nos ajudar a pôr em ordem a forma física, pois obriga-nos a exercitar os músculos dos braços e

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Histórias de caça e pesca e... outras verdades

do tronco, com sucessivos lançamentos (também designados localmente por disparos), e os das pernas, ao palmilhar quilómetros ao longo da praia. Num fim de tarde de um dia quente de agosto de 1991, pus-me a bater a costa de Quiaios rumo ao Norte, na direção da Praia da Tocha, que dista da de Quiaios uns bons 15 km. Escolhi uma borracha cinzenta que imitava uma petinga de cerca de 10 cm. Fui fazendo lançamento atrás de lançamento, e nada! Nem qualquer toque, nem sinal de peixe! Quando já tinha percorrido uns bons 2 km a partir da Praia de Quiaios, ao fazer mais um disparo, vejo uma gaivota em voo picado na direção da amostra de borracha. Pensei imediatamente que a astuta ave estaria a dirigir-se para algum cardume de petingas ou carapaus. Ora, pela lógica da cadeia alimentar, se havia cardumes de pequenos pelágicos, havia necessariamente robalos e outras espécies carnívoras. Consequentemente, disparou-se-me logo a adrenalina com a ideia de que estava no sítio certo e que, mais lançamento menos lançamento, era grande a probabilidade de apanhar um robalo! Para dizer a verdade e não ocultar nenhum dos meus pensamentos, devo dizer que já o estava mesmo a ver no prato, bem escalado e grelhadinho! Estava eu nestas cogitações quando reparei que a gaivota, quando já estava muito perto da água, fez um autêntico looping; ou seja, inverteu a trajetória do voo picado descendente e tentou virar no sentido ascendente, para o céu de onde tinha vindo. Era óbvio que o animal se dera, de repente, conta do logro em que tinha caído e tentou fugir ao perigo. Só que era tarde de mais! Ficou preso no anzol por uma das patas, precisamente quando tentava inverter a direção do voo. Como tinha no carreto um fio de apenas 0,40, comecei a puxar devagarinho com muito cuidado, para evitar que o mesmo partisse e deixasse o animal ferido, com um empecilho amarrado à perna e sujeito a infetar e morrer. 88


histórias de pesca

Ao fim de uns minutos, lá consegui trazer a gaivota para a praia. Mas então aí é que começaram verdadeiramente os meus problemas. Não podia largar a cana de pesca ao chão para tentar agarrá-la com as duas mãos, porque o carreto se encheria de areia e a própria gaivota o arrastaria praia fora. Tinha, portanto, que manter uma mão ocupada a segurar o carreto. Mas quando tentava aproximar-me para, com a outra mão, tentar tirar o anzol da pata, o bicho dava-me umas ferradelas bem pouco meigas. Habituadas a vê-las no ar a alguma distância, poucas pessoas imaginarão o enorme tamanho e espessura do bico duma gaivota e a enorme força com que ataca a presa! Ao fim de algumas tentativas, vi que não tinha hipóteses de salvar sozinho a gaivota do sarilho em que se tinha metido, sob pena de ficar eu próprio ainda mais maltratado. Como estava num enorme espaço deserto, sem vislumbrar vivalma na linha do horizonte, decidi voltar para trás, arrastando a gaivota atrás da linha, na tentativa de encontrar alguém que me pudesse ajudar. Seguramente que, na pior das hipóteses, encontraria alguém, nem que fosse já perto do núcleo urbano da Praia de Quiaios. Depois de ter percorrido umas boas centenas de metros, vejo que vem um pescador de cana às costas na minha direção. Quando chegámos perto um do outro, o homem, apesar de pescador, não queria acreditar no que estava a ver! Perguntou-me como é que fiz aquilo, se apanhei a gaivota em voo, quando fiz o lançamento, etc. Lá lhe expliquei o que aconteceu e o colega de faina ficou mais tranquilo acerca da probidade do meu caráter. Foi então com a sua ajuda que, após um difícil trabalho de neutralização do bico e das garras da gaivota, lá conseguimos retirar o anzol e libertar a criatura! Esta é uma histórica verídica, que se passou comigo. Não foi, aliás, a única, pois aconteceu o mesmo uns anos depois ao largo do mar de S. Jorge, nos Açores, mais precisamente na Ponta dos Rosais, quando estava a pescar ao corrico de barco com isco vivo E desta vez tive como testemunhas todos os colegas que comigo partilhavam a faina.

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Histórias de caça e pesca e... outras verdades

Quando, em diversas circunstâncias e públicos, conto esta história das gaivotas que pesquei, deparo invariavelmente com aquele sorriso de troça e a expressão “pois, pois”, que, nos que têm mais confiança comigo ou são meus amigos, se transforma no clássico comentário das mentiras associadas aos pescadores e caçadores. Como convencer estas empedernidas mentes de que os cidadãos que praticam estes dois tão saudáveis desportos são tão ou mais sérios do que os outros?! AC

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"(...) A caça é um grande tema de reflexão e uma grande escola de vida e de valores – de companheirismo, de fair play, de conhecimento e respeito pela natureza, de paciência, persistência, de reaprendizagem de coisas primordiais e evidentes por si mesmas. E, por isso, antes que a multidão politicamente correta da nova doutrina urbana e civilizacional queira julgar como selvagens a caça e os caçadores, ou mesmo bani-los face à lei, convinha que a sua arrogante ignorância ficasse a saber que falam do que não sabem e não percebem, e que, para infelicidade sua, jamais entenderão." Miguel Sousa Tavares, in Prefácio

ISBN 978-972-788-923-5

www.vidaeconomica.pt ISBN: 978-972-788-923-5 Visite-nos em livraria.vidaeconomica.pt

9 789727 889235

Histórias de Caça e Pesca …e outras verdades

e outras verdades

A. Cunha , A. Vasconcelos, J. L. de Carvalho, J. Pintalhão, M. Jorge Mesquita, M. Pintalhão, M. Pedro Ferreira

Histórias de Caça e…Pesca

Arlindo Cunha Ascendino Vasconcelos José Lemos de Carvalho José Pintalhão Manuel Jorge Mesquita Manuel Pintalhão Mário Pedro Ferreira

Histórias de Caça e… Pesca

e outras verdades Prefácio de Miguel Sousa Tavares Posfácio de Jacinto Amaro


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