Regulaçao na Saúde (3ª edição)

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Rui Nunes

REGULAÇÃO DASA DE

3ªEDIÇÃO

Entre 2009 e 2013 foi Administrador da Fundação Ciência e Desenvolvimento. Entre 2010 e 2012 foi membro da direção da European Health Management Association. Em 2011 foi um dos fundadores do Centro de Inovação Social do Porto, e desde 2013 é Coordenador do Programa Porto Cidade de Ciência. Desde 2014 é Coordenador do Conselho Nacional para o Serviço Nacional de Saúde da Ordem dos Médicos. ISBN 978-989-768-068-7 www.vidaeconomica.pt ISBN: 978-989-768-068-7 Visite-nos em livraria.vidaeconomica.pt

9 789897 680687

REGULAÇÃODASAÚDE

Entre 2002 e 2003 exerceu as funções de Diretor da Escola Superior de Tecnologias da Saúde do Porto. Em 2002 foi eleito Presidente da Associação Portuguesa de Bioética, e em Março de 2004 foi nomeado pelo Conselho de Ministros primeiro Presidente da Entidade Reguladora da Saúde, funções que exerceu até Setembro de 2005. Foi membro do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida entre 2003 e 2009.

3ªEDIÇÃO

Rui Nunes licenciou-se em medicina, na Faculdade de Medicina da Universidade do Porto (FMUP) em 1985. Em 1996 obteve o Grau de Doutor em Medicina na área da Bioética, em 2002 obteve o Título de Agregado em Sociologia Médica e em 2009 o Título de Agregado em Bioética nesta faculdade. É Consultor da Carreira Médica Hospitalar desde 1999. É Professor Catedrático de Sociologia Médica e Diretor do Departamento de Ciências Sociais e Saúde da FMUP. É diretor do Curso de Doutoramento em Bioética, do Curso de Mestrado em Cuidados Paliativos, e do Curso de Pós-Graduação em Gestão e Administração Hospitalar. Publicou 20 livros sobre temas relacionados com a saúde, a bioética, a cultura e a sociedade em geral. De salientar a publicação das obras Prioridades na Saúde, Testamento Vital e GeneÉtica.

Rui Nunes

REGULAÇÃO DASA DE 3ªEDIÇÃO

PREFÁCIOS Gomes Canotilho e Guilherme d’Oliveira Martins


Índice geral 1º Prefácio...............................................................................7 2º Prefácio............................................................................. 19

I - Introdução......................................................................... 27 II - A proteção da saúde ......................................................... 35

1. O direito à proteção da saúde.......................................... 42

2. A priorização da saúde.................................................... 48

2.1 A plataforma ética.................................................... 48

2.2 Um Modelo de Priorização......................................... 63

3. A reforma estrutural........................................................ 75

3.1 Os cuidados de saúde primários................................. 77

3.2 Os cuidados comunitários, continuados e paliativos..... 88

3.3 Os cuidados hospitalares........................................... 98

3.4 A integração em saúde............................................ 110

III - A regulação da saúde..................................................... 117

1. Um novo ciclo de regulação na saúde............................. 121

2. A regulação económica da saúde................................... 140

2.1 O mercado da saúde: concorrência e intervenção..... 142

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Regulação da Saúde

2.2 As falhas de mercado e os instrumentos de regulação.162

3. A regulação social da saúde........................................... 188

3.1 A autorregulação profissional................................... 191

3.2 Os direitos dos utentes........................................... 200

3.2.1 Autonomia, informação, vontade previamente manifestada, liberdade de escolha.................... 202

3.2.2 Privacidade, acesso à informação, não-discriminação, acompanhamento, primado da pessoa.......................................... 209

3.2.3 Queixa e reclamação....................................... 219

3.2.4 Equidade no acesso, indução da procura, seleção adversa, tempos de espera.................. 227

4. A excelência na saúde................................................... 238

4.1 O desafio da qualidade e da segurança.................... 240

4.2 A clinical governance.............................................. 252 IV - A regulação Independente da saúde................................ 263

1. Modelos de regulação.................................................... 268

2. Formato institucional..................................................... 279

3. Independência e autoridade.......................................... 292

V - Conclusão........................................................................ 317 Referências........................................................................... 329

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PREFテ,IO

por Gomes Canotilho


Gomes Canotilho

Entre os humores de Hipócrates e a Governance da saúde

Prefácio de apresentação da primeira edição do livro

Regulação da Saúde


1. Razões de um convite (presumidas) e razões de uma aceitação (expressas) Não deixará de parecer estranho que um professor de direito, oriundo da tribo dos constitucionalistas, tenha sido convidado a fazer a apresentação de um livro de um professor de medicina. Dir-se-ia que o gesto tem alguma lógica material. De uma forma ou de outra, uma obra com o título Regulação da Saúde dificilmente poderá esgotar-se em problemas técnicos de saúde. A regulação da saúde é, hoje, sem qualquer dúvida, um problema central da política de saúde, suscitando complexos problemas jurídico-constitucionais e jurídico-políticos. Estamos em crer que esta terá sido uma das razões que levaram o Professor Rui Nunes a lembrar-se de nós: não é desconhecido que o direito constitucional se dedica ex professo ao estudo dos direitos fundamentais, aqui se incluindo, entre outros, o direito à proteção da saúde. Também não serão desconhecidas importantes decisões do Tribunal Constitucional sobre a extinção do Serviço Nacional de Saúde, sobre a comparticipação dos utentes e sobre as taxas moderadoras do acesso ao serviço de saúde. Se estas presumíveis razões de um convite que muito nos honra poderão parecer suficientes, estamos em crer que as razões profundas da nossa presença aqui poderão buscar-se mais no campo intersubjetivo. Com efeito, há cerca de um ano (2004), no âmbito dos seminários de doutoramento da Faculdade de Direito de Coimbra incidentes sobre o tema Direito e Ciência – o caso especial da Medicina, pudemos ter o prazer pessoal de conhecer o Professor Rui Nunes e de ouvir com espanto e regozijo académico e científico a sua magnífica intervenção sobre Biomedicina. Recordo-me de lhe

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Regulação da Saúde

ter dito que a sua “aula” parecia uma “lição magistral” dos meus Mestres de Direito. Magistral pela sustentabilidade do discurso e da argumentação. Magistral pelo encantamento da retórica assente na individualização e densificação de princípios que, desde há muito, servem de padrões éticos e jurídicos no exercício da medicina (princípio da autonomia, princípio da beneficência, princípio da não maleficência). A substantividade principial serviu assim de aproximação intersubjetiva em torno dos problemas da ciência, da medicina e do direito. Diremos mesmo mais: nos interstícios argumentativos poderia talvez entrever-se alguma discordância quanto a determinados pressupostos ou pontos de partida, designadamente quanto à visão sacralizada ou não sacralizada da vida. De qualquer forma, estávamos próximos quanto ao postulado não utilitarista (ou estritamente utilitarista) do direito e da medicina. Vamos ver se a apresentação deste livro serve de pretexto para a continuação do nosso diálogo.

2. Regulação da saúde e teorias de regulação da saúde O que se pretende com este livro? O primeiro objetivo será a problematização da autoridade independente criada no âmbito da regulação da saúde – Entidade Reguladora da Saúde – e destinada a evitar disfunções do sistema de saúde e corrigir os desvios de atuação dos diversos operadores (cfr. p. 252). Mas o Professor Rui Nunes vai muito mais longe do que a epígrafe do livro deixa adivinhar. Afivela a responsabilidade de cientista e académico para nos propiciar uma verdadeira monografia sobre a proteção da saúde e o novo serviço nacional de saúde, a regulação da saúde e a Entidade Reguladora da Saúde. Logo nas páginas de Introdução ele põe em relevo a proposta teórica da obra:

“Mas a regulação da saúde” – escreve na página 13 –, “sendo um instrumento fundamental da política da saúde nos países ocidentais, deve ser também perspetivada como uma nova área científica e académica. A teoria da regulação, emergente dos vários domínios da atividade económica, desempenha um papel

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PREFÁCIO

por Guilherme d’Oliveira Martins


Guilherme d’Oliveira Martins

Prefácio de apresentação da segunda edição do livro

Regulação da Saúde


O sucesso da obra que hoje apresentamos é claramente demonstrativo da força, da especificidade e da importância que a atividade de regulação da saúde assume no âmbito do modelo atual de regulação jurídica da atividade económica. Em termos gerais, se é legítima a afirmação de que o modelo de regulação da economia tem origem na chamada crise do Estado produtor, a que se seguiram os movimentos globais muito complexos de privatização, especialmente de empresas públicas, e de liberalização, que se traduziu na eliminação de direitos especiais ou exclusivos em setores económicos essenciais. A verdade é que isso não é inteiramente correto quando nos referimos às razões que subjazem à regulação do setor da saúde. De facto, como bem observa o Prof. Rui Nunes, o setor da saúde assume-se claramente como um domínio que apresenta especificidades que o diferenciam da lógica de regulação dos mercados em geral, pelo facto de aí se cruzar um conjunto de direitos sociais constitucionalmente consagrados (que o autor denomina de “plataforma ética”) que determinam uma particular regulação do comportamento dos agentes e a sua fiscalização por uma entidade reguladora. Assim, a regulação como fator de equilíbrio e de justiça, a partir de uma posição de independência e de isenção, tem especiais responsabilidades nos setores sociais e, em especial, na saúde. Referimo-nos, não apenas ao direito à proteção da saúde, mas também a outros princípios e direitos que devem ser referenciados, como são os casos do princípio da dignidade da pessoa humana (artigo 1 º), do direito à vida (artigo 24°) ou do direito à integridade pessoal (artigo 25°).

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Regulação da Saúde

Mas é o direito à saúde que primordialmente envolve o mercado da saúde e que, de forma condicionada e condicionante, o faz funcionar como uma restrição à liberdade de iniciativa económica privada. Parafraseando o autor, é a específica natureza dos “cuidados de saúde”que determina a existência de um mercado imperfeito onde são evidentes as falhas de mercado que requerem a intervenção do Estado, por forma a assegurar os direitos de todos os cidadãos no acesso a cuidados de saúde de qualidade. O mercado da saúde é rico em especialidades, sendo bem conhecidos, nomeadamente, os problemas relacionados com o seu financiamento e os princípios em que assenta - universalidade, acessibilidade, equidade e gratuitidade tendencial - dos quais decorre a circunstância de o preço do serviço de saúde não poder corresponder ao custo de produção, ao mesmo tempo que se tem de evitar, ou pelo menos atenuar, o risco moral existente no consumo deste serviço. Mas, a par destas preocupações de natureza ética, não se pode negar que o setor da saúde é também dominado por preocupações económicas, o que tem condicionado, em muito, as opções em matéria de política legislativa. Efetivamente, a opção de substituição do paradigma de gestão de hospitais públicos, passando de um modelo de estabelecimento público para um modelo empresarial, em nome da racionalidade económica, da eficiência, da eficácia e de uma gestão mais responsável, conduzindo a uma aproximação do setor público ao setor privado, é expressão de uma preocupação de optimização da utilização dos recursos públicos disponíveis, que, como se sabe, constituem um bem cada vez mais escasso. A par do movimento de empresarialização, inspirado no novo modelo de gestão pública (new public management), assistimos também ao lançamento de Parcerias Público-Privadas assentes no contrato de concessão que envolve a conceção, financiamento, construção, manutenção e exploração destinados à satisfação da necessidade pública de saúde aqui em causa.

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Prefácio

Este novo modelo de Parcerias Público-Privadas na área da saúde consubstancia uma abordagem avançada e complexa de gestão e financiamento do setor, sem paralelo no contexto internacional, com o duplo objetivo de garantir ganhos de saúde para os utentes e ganhos de valor para o erário público. De qualquer modo, torna-se fundamental salientar que tais experiências obrigam a uma real partilha de encargos e riscos entre os setores público e privado. No contexto da reforma do sistema de saúde, vivemos mais uma nova etapa que exige da parte dos poderes públicos a implantação de um modelo de regulação que não perca de vista aqueles que são considerados os objetivos comuns, essenciais, à política de saúde, como sejam: - O acesso a cuidados de saúde suficientes e equitativos (no sentido em que todos os cidadãos devem beneficiar de um mínimo de cuidados médicos, devendo à mesma necessidade corresponder o mesmo tratamento); - A proteção do rendimento, que exige o equilíbrio/proporcionalidade entre a capacidade de pagamento dos utentes e o preço dos cuidados de saúde, - A eficiência macroeconómica, na medida em que as despesas de saúde devem representar uma fração adequada do PIB; - A eficiência microeconómica, que apela à optimização dos recursos disponíveis e à melhor satisfação possível das necessidades dos utentes; - A liberdade de escolha do consumidor (entre o setor público e o setor privado); - E, por fim, a autonomia dos prestadores de saúde (compatível com a realização de todos os objetivos assinalados). Numa palavra, como bem sustenta o Prof. Rui Nunes, a regulação da saúde visa um “controlo dirigido e sustentado, exercido por uma agência pública, sobre as atividades no domínio da saúde”. Pretende-

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Regulação da Saúde

-se, assim, a convergência entre a equidade e a eficiência - bem como a garantia da qualidade assistencial. Do mesmo modo se compreende que a concorrência não possa ser um fim em si, mas um instrumento de obtenção de ganhos de eficiência e como um meio efetivo para a proteção da saúde dos cidadãos. Eis porque a “governação ética” tem de ser invocada - em nome da Justiça como equidade de John Rawls, mas também da Justiça complexa de Michael Walzer, e de uma liberdade igual. E é assim que a responsabilidade, a accountability e o value for money têm de ser vistos como exigências cívicas e democráticas. Daí que a Entidade Reguladora da Saúde (ERS) deva ser encarada não tanto como regulador das relações entre agentes económicos, mas como garante dos direitos fundamentais dos cidadãos e dos valores de uma democracia liberal e como sustentáculo de Serviço Nacional de Saúde moderno e aberto aos desafios contemporâneos. Numa palavra, a obra do Professor Rui Nunes é um instrumento fundamental para quem queria compreender melhor o fenómeno da regulação da saúde, mas, mais do que isso, para quem pretenda contribuir positivamente para o aperfeiçoamento do Serviço Nacional de Saúde e do Estado Social Moderno.

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CAPÍTULO I INTRODUÇÃO


Introdução O direito à proteção da saúde é considerado como uma conquista civilizacional, o que implica que a salvaguarda deste direito é sobretudo uma responsabilidade da sociedade e das suas instituições democráticas. Tal como noutros países ocidentais, a existência em Portugal de um sistema público de proteção da saúde enquadra-se nesta dinâmica, sendo um fator decisivo para a melhoria sustentada dos indicadores de saúde da nossa população. A política de saúde deve, então, tentar conciliar os princípios da equidade e da solidariedade com a vontade social, democraticamente determinada, atribuindo um caráter operacional a critérios de justiça social, fundamentais para uma política de proteção da saúde atenta às necessidades básicas dos cidadãos. Mais do que um direito constitucional, a proteção da saúde deve ser considerada como um dos grandes pilares de uma sociedade democrática e plural. Porém, e não obstante o contributo fundamental do Serviço Nacional de Saúde (SNS) para a proteção da saúde dos portugueses, a gestão dos serviços públicos tem-se revelado pouco eficiente. Ao longo dos últimos anos, e independentemente da complexa geometria político-partidária, os governantes tentam dirimir este conflito – entre a necessidade de providenciar um bem social, como a saúde, e melhorar a eficiência económica – através da intervenção do mercado. Na saúde, no entanto, o mercado é sempre imperfeito, pelo que é determinante a adoção de critérios de transparência bem como a função reguladora do Estado. De facto, o livre funcionamento do mercado só providencia os cuidados de saúde aos cidadãos com capacidade para pagar

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Regulação da Saúde

e não a todos os que deles necessitam. Daí que a intervenção do Estado seja fundamental para harmonizar uma oferta e uma procura tão particulares, não estando em causa o cumprimento das mesmas regras da economia em geral, pois, aos olhos do cidadão, a saúde é um bem com caraterísticas muito peculiares. Estamos perante uma nova cultura na saúde fundada na convergência de dois fatores aparentemente irreconciliáveis: a qualidade na prestação de cuidados de saúde e a otimização da utilização dos recursos disponíveis. Assim, com base no vetor chave – aumento da produtividade –, surge o ideal de que melhorar a eficiência na utilização dos recursos pode originar um sistema de saúde mais justo e de melhor qualidade. E, também, concorre para o reconhecimento do papel do cidadão que, através dos seus impostos, contribui decisivamente para o financiamento do sistema. Esta nova cultura parte, então, da perceção de que a saúde e a sua proteção são um bem económico altamente dispendioso e não “gratuito”, embora, frequentemente, o seja no momento da utilização dos serviços. Está igualmente em causa a necessidade de se promover a eficiência do ponto de vista económico através da adequada gestão dos recursos financeiros e dos meios humanos e materiais. Este requisito é determinante para a estabilidade social, dada a atual falta de sustentabilidade económica e financeira do sistema de saúde. Esta reflexão preliminar remete para a questão nuclear de que, numa sociedade justa e democrática, os cidadãos, contribuintes e potenciais utilizadores dos serviços de saúde, exigem que cada euro-saúde seja utilizado com a maior eficiência possível. O problema da saúde em Portugal não reside apenas no subfinanciamento, mas no modo como os recursos são geridos e utilizados. São desejáveis novas soluções no combate firme e determinado ao desperdício, passando, naturalmente, pela plena responsabilização dos gestores, a todos os níveis hierárquicos das organizações. No quadro de uma importante reforma estrutural, como a que está em curso em Portugal, deve ter-se em linha de conta que o pilar

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Introdução

essencial do Sistema de Saúde é o Serviço Nacional de Saúde, que tem que ser cuidadosamente reapreciado à luz de novas correntes de opinião, consagrando, porém, os seus valores estruturais. Estes valores, constitucionalmente protegidos, em particular a equidade no acesso e a universalidade na cobertura, não devem impedir um debate sério de ideias sobre o modo como se estabelecem as prioridades na saúde e sobre quais os cuidados de saúde que o sistema pode efetivamente oferecer aos cidadãos (pacote básico). Com a criação de um mercado administrativo na saúde, no qual participam distintos operadores – públicos, sociais e privados – e onde a procura de eficiência económica implica a adoção de novos modelos de gestão de hospitais e de centros de saúde – de que a empresarialização e as parcerias público/privadas são exemplos elucidativos – a regulação independente da saúde tem como objetivo nuclear a proteção dos direitos fundamentais dos cidadãos. Direitos, como a equidade no acesso ao sistema público, a obtenção de informação, a implementação de mecanismos eficazes de reclamação, ou mesmo a proteção da privacidade individual. Recorde-se que, tradicionalmente, a salvaguarda dos direitos fundamentais dos cidadãos repousava sobre a ética profissional, que sobreviveu ao longo de dois mil anos, tendo-se sucessivamente consagrado em diversos códigos de ética profissional e nos juramentos que os pretendem honrar. Todos estes documentos têm em comum a atribuição de um papel central aos profissionais de saúde, exortando determinados princípios éticos que, independentemente da cultura de onde emanavam, visavam a promoção das virtudes profissionais. De facto, qualquer profissão impõe determinados deveres àqueles que a exercem. Quanto mais uma profissão se organiza, mais tende a dotar-se de um estatuto codificado onde estão bem definidos os deveres e as obrigações emanados dos seus órgãos oficiais. A deontologia profissional trata, assim, de garantir o bom exercício da profissão, alicerçando-se, por um lado, na pureza dos preceitos éticos e, por outro, na sua regulamentação. A autorregulação pro-

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CAPÍTULO II A PROTEÇÃO DA SAÚDE E O NOVO SNS


A proteção da saúde e o novo SNS Sendo uma das funções essenciais do Estado regular a intervenção dos diferentes operadores existentes no universo da saúde, garantindo assim os valores nucleares da nossa sociedade, sugiro algumas pistas de reflexão que possam promover um novo SNS, um SNS que seja mais justo e eficiente. Assim, deve-se ter em atenção que a solidariedade no financiamento e a equidade no acesso são pressupostos inalienáveis do nosso sistema público de saúde, sendo, então, fundamental clarificar os conceitos e especificar em que medida é que podem ser aplicados. Enquanto princípios consagrados no texto constitucional, encontram a sua raiz na visão da justiça social preponderante no nosso país, assim como em todo o espaço europeu. Ao apresentarem uma faceta eminentemente política, pelas escolhas explícitas da sociedade, e dada a impossibilidade de se corresponder a todas as suas solicitações, está em causa o “politicamente possível” de acordo com restrições de natureza económica e financeira. Existe algum consenso, entre as formações políticas com assento parlamentar, sobre os valores que enformam o nosso sistema de saúde. Porém, e ainda que o texto constitucional sirva de matriz ideológica global, a sua aplicação concreta tem sido alvo de flutuações importantes ao longo das duas últimas décadas. Por exemplo, aceitando o princípio da universalidade no acesso a cuidados de saúde, não foi ainda estabelecido um programa eficaz de distribuição dos profissionais de saúde pelo território nacional. Esta situação origina, por parte da sociedade, interpretações enviesadas, confundindo-se uma deficiente distribuição geográfica com falta de recursos humanos.

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Regulação da Saúde

Consequentemente, clama-se por mais profissionais – médicos em concreto – e não por uma política de saúde atenta às reais necessidades dos cidadãos. Mais ainda, e como é consistentemente referido, o atual modelo de financiamento do Serviço Nacional de Saúde é um sistema aberto no qual, por não ser possível conhecer e controlar a procura, não é, igualmente, possível conhecer e controlar os custos. Esta situação leva alguns autores a definirem o estado atual da saúde como “doente” (Antunes, 2000). Na realidade, têm sido propostas diversas alternativas para estabelecer um controlo dos custos em cuidados de saúde, com a finalidade de garantir a viabilidade do sistema. Porém, o cerne da questão no estabelecimento de prioridades na saúde reside na existência de necessidades ilimitadas e de recursos limitados, bem como na dificuldade de definir quem deve decidir como aplicar estes recursos (Mullen, 2000). Não restam dúvidas, no entanto, que em Portugal não se gasta pouco na saúde, gasta-se é mal. De facto, existe a perceção generalizada de que os recursos económicos consumidos na saúde estão hoje na média dos países da OCDE – 9,5% do Produto Interno Bruto (PIB) português em 2012 (OECD, 2014). E, mais ainda, que a repartição pelos setores público, privado e social (3,5% do PIB em 2012 de gastos do setor privado e social) denota um esforço substancial dos portugueses apesar da carga fiscal ser já muito considerável. A pergunta que se coloca é, então, a de saber como resolver o problema da falta de rigor na utilização dos recursos.

A fortiori, quando é sabido que os indicadores de saúde de uma população (esperança de vida média, mortalidade infantil e neonatal, etc.) dependem em grande medida de fatores sociais, económicos e culturais, o sistema de saúde exerce um impacto significativo, sobretudo, na qualidade de vida apercebida pelos cidadãos. De facto, na ótica da saúde pública, são os fatores sociais que criam e modelam os padrões de saúde, de doença e de morte de uma determinada sociedade (Wilkinson, 1998). Também não restam dúvidas de que estes padrões são ainda fortemente influenciados pelo desnivela-

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A protecção da saúde e o novo SNS

mento existente entre os estratos mais e menos favorecidos de uma sociedade e não apenas pelo seu grau de riqueza absoluto. A título de exemplo, Portugal, ainda que tenha um Produto Interno Bruto per capita cerca de três vezes inferior ao dos EUA, está melhor posicionado em muitos indicadores de saúde. Isto é, os ganhos de saúde verificados ao longo das últimas décadas em Portugal associam-se claramente a uma melhoria gradual da envolvente económica e cultural. A este propósito refere-se a importância do estatuto socioeconómico (ESE). O ESE não se relaciona apenas com o nível de rendimento ou com a riqueza detida pelos cidadãos, mas sobretudo com o seu enquadramento sociocultural e familiar. Gortmaker (1997) refere-se ao conceito de “primeira injustiça” para chamar a atenção – tal como, aliás, Rawls sugere no plano filosófico – de que a família é instrumental para uma efetiva igualdade de oportunidades. Pelo que, nesta linha de pensamento, a falta deste elemento crucial na aculturação do indivíduo é não apenas uma grave injustiça mas um fator que poderá condicionar toda a sua vida em sociedade. Pode então questionar-se de que forma é que este estatuto, assim como o gradiente respetivo, influenciam a saúde individual. Desde logo, a resposta prende-se com a educação – básica, secundária, superior – e em especial a educação para a saúde. Os estratos mais desenvolvidos da sociedade adotam estilos de vida mais saudáveis tanto a nível alimentar (álcool e obesidade) como a nível das dependências (tabagismo e drogas ilícitas). Também, um melhor acesso a cuidados de saúde de qualidade e a novas formas de diagnóstico e tratamento são instrumentais neste domínio. Assim, para implementar “uma nova ética para a saúde pública”, como referem Beauchamp e Steinbock (1999), torna-se fundamental promover uma verdadeira política intersetorial na saúde. Designadamente, e em minha opinião, através da criação de um gabinete interministerial, que coordene as políticas a nível dos diversos ministérios envolvidos. As pastas da saúde, da educação e do ensino superior (através da implementação de uma verdadeira política de educação para a saú-

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Rui Nunes

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Rui Nunes licenciou-se em medicina, na Faculdade de Medicina da Universidade do Porto (FMUP) em 1985. Em 1996 obteve o Grau de Doutor em Medicina na área da Bioética, em 2002 obteve o Título de Agregado em Sociologia Médica e em 2009 o Título de Agregado em Bioética nesta faculdade. É Consultor da Carreira Médica Hospitalar desde 1999. É Professor Catedrático de Sociologia Médica e Diretor do Departamento de Ciências Sociais e Saúde da FMUP. É diretor do Curso de Doutoramento em Bioética, do Curso de Mestrado em Cuidados Paliativos, e do Curso de Pós-Graduação em Gestão e Administração Hospitalar. Publicou 20 livros sobre temas relacionados com a saúde, a bioética, a cultura e a sociedade em geral. De salientar a publicação das obras Prioridades na Saúde, Testamento Vital e GeneÉtica.

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