António Vilar - Um homem sem dono

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António Vilar

SOBRE O PPD/PSD “A social-democracia encontrava-se com o meu pensamento político e quando constatei que era Sá Carneiro que liderava o PPD aderi com todo o entusiasmo. Hoje estão a destruir o partido. O caciquismo e a inerente corrupção, bem como o desprezo dos valores de antes e a emergência, sufocante de interesses pessoais e de grupo, fazem do atual PPD/PSD uma triste sombra do que foi no passado. SOBRE CAVACO SILVA “Acreditei que fosse um genuíno social-democrata. Hoje, sinceramente, acho que ele é um prestidigitador na política. O que conta para ele foi apenas ele próprio. O seu ideário político é muito frágil, líquido. Democrático, com certeza, mas, ao serviço de um qualquer caminho. Sobra-lhe em arrogância o que lhe falta de ‘mundividencia’” SOBRE PEDRO PASSOS COELHO “É, na minha perspetiva, da extrema-direita inconsciente, na sua alegre inconsciência. Falta-lhe sabedoria, substância, lastro político. Tem um discurso redondo, à volta de algumas crenças. Não tem mundo. É daqueles que confundem o mapa com a estrada. Reconheço, porém, que é corajoso, combativo. Segue, enquanto Primeiro-Ministro, o mapa que lhe puseram na frente, o da “Troika”, decerto bem intencionado, mas sem horizontes, sem futuro para Portugal.” SOBRE MARCELO REBELO DE SOUSA “Acho que é um genial animador da vida política, um grande ‘disco-jockey’ no espetáculo que ela também é. Creio ser o melhor candidato de centro-direita às próximas eleições presidenciais. Nunca deixo de ouvir o que ele diz, mas nunca o oiço apenas a ele.”

ISBN 978-989-768-160-8

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UM HOMEM SEM DONO

UM HOMEM SEM DONO

António Vilar

UM HOMEM SEM DONO Por

José Alberto Magalhães


Apresentação...................................................................... 9 Porquê?............................................................................... 11 Os anos cinquenta.............................................................. 15 Um berço muito pobre...................................................... 17 A mesa de tábuas................................................................ 21 O patriarca Agostinho....................................................... 23 Os anos sessenta................................................................. 26 A primária.......................................................................... 29 Diáspora familiar................................................................ 39 As recordações da prima Leninha...................................... 44 O Alexandre Herculano..................................................... 47 As paixões da adolescência................................................. 53 Viagem a São Tomé............................................................ 58 Taizé e o valor da liberdade................................................ 60 A mãe Hermínia................................................................. 61 A Faculdade em Coimbra.................................................. 65 A década de setenta............................................................ 82 O 25 de Abril..................................................................... 84 Maria Dulce........................................................................ 91 O filho João....................................................................... 97 O despertar para a política................................................. 103 O início da advocacia......................................................... 107

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Índice

A filiação no PSD............................................................... 88

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Os primeiros casos............................................................. 114 Nem tudo foram rosas....................................................... 116 “Sãobentogate” .................................................................. 119 Os anos oitenta................................................................... 122 A liderança do PSD/Porto................................................. 127 O apoio a Cavaco Silva...................................................... 131 Recandidatura falhada ....................................................... 133 A passagem pelo Parlamento.............................................. 141 Amizades de uma vida na política ..................................... 151 Adriano Moreira, Lucas Pires e Freitas do Amaral............ 154 Ramalho Eanes e Álvaro Cunhal....................................... 156 Soares, Guterres e Sampaio................................................ 158 Cavaco, Capucho, Marcelo e Balsemão.............................. 160 Vieira de Carvalho, Eurico de Melo e Valentim Loureiro. 163 Carlos Brito, Paulo Valada e Alberto João Jardim............. 165 Sócrates, Paulo Portas e Dias Loureiro.............................. 168 Fraga Iribarne, Aznar e Alain Juppé.................................. 171 Alain Touraine, Danielle Mitterrand e Marie de Hennezel

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Simone Veil, Nicole Catala, e Natália Correia.................. 176 Carvalho Guerra e António Almeida Santos..................... 178 Forum Portucalense........................................................... 180 A regionalização................................................................. 198

Índice

Social-democracia, socialismo e marxismo......................... 207 O PSD e a social-democracia.............................................. 210

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A televisão privada do Norte............................................. 214 A cooperação com a África Lusófona ............................... 223 Os anos noventa................................................................. 231


A UNITA e Savimbi.......................................................... 235 A visita de Savimbi ao Porto.............................................. 244 Regresso frustrado ao PPD/PSD....................................... 248 Centro Juvenil de Campanhã............................................. 255 Maria Amélia...................................................................... 268 Chevalier des Palmes Académiques.................................... 273 Cavaleiro da Ordem do Caminho de Santiago.................. 276 Instituto Euro-Atlântico.................................................... 278 Galiza-Norte de Portugal................................................... 281 O novo milénio.................................................................. 286 A Defesa Nacional............................................................. 291 A docência.......................................................................... 296 Um portista na justiça do futebol....................................... 299 ... e no Conselho Cultural do FC Porto............................ 300 As conferências internacionais........................................... 302 A candidatura à Ordem dos Advogados............................ 310 Advocacia de rosto humano............................................... 314 Amargos de boca................................................................ 331 A morte do pai................................................................... 333 A Associação Cívica e Cultural 31 de Janeiro.................... 339 Advogado em greve de fome.............................................. 348 Um grande desafio: Health & Leisure Portugal................. 351 O doutoramento................................................................ 353

Índice

Um homem sem dono....................................................... 357

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Apresentação Quem conhece António Vilar verificará facilmente que este livro não é uma surpresa no conteúdo, sendo que neste se inclui também a própria forma. Um cidadão para quem, como definiu Fernando Pessoa, ‘viver é criar’. É-nos tornada presente uma paisagem feita dos impulsos de um homem que poderia ser um quase-modelo de cidadão na expressão de inteligência, convicção, perseverança, generosidade, solidariedade e, pasme-se, de humildade expressa na verdade e autenticidade deste livro. Um livro que só poderia ser poliédrico, eclético, surpreendente e humano, iluminado e luminoso. Um livro de percurso de vida intensamente vivida, mas também vida em si mesma, porque, como para Gabriel Garcia Márquez, viver é também ‘recordar e a própria maneira como se recorda’. Reunir os amigos numa tertúlia de testemunhos, espécie de ‘ficheiro de trechos de vida’ ou álbum de imagens filtradas pelo olhar de cada um em caleidoscópio, ora com luz ora em contraluz, onde a amizade exacerba a polifonia/policromia das mensagens: o que se viveu e quer testemunhar; o que se consegue dizer; o que se entende e se quer fazer entender ou deixar entender… Dominique Pire, Prémio Nobel da Paz, 1958, valorizava muito o dicionário chinês ‘a quatro colunas’: o que nos diz o interlocutor; o que se entende/percebe do que nos diz; a nossa reação; e a forma como a nossa reação é entendida… No fundo, invocava uma pista para o que se empenhava em promover como caminho para a paz: o diálogo fraterno sem espelhos, mas, também, sem filtros nem quebra-luzes. Aqui temos o António Vilar, amigo, generoso, intrépido, empreendedor, a borbulhar de ideias, a explodir de iniciativas; homem inteligente, culto, leitor compulsivo, angustiado da completude, para não dizer da perfeição; profissional do Direito reconhecido; empreendedor incansável, indómito e indomável; aberto ao debate mas indisponível para o compromisso fácil e a sujeição aos poderes efémeros, aparelhísticos, corporativos, modísticos ou de sacristia.

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‘Homem algum é uma ilha’, escreveu Thomas Merton, mas tão-pouco pode almejar ser continente. É na visão arquipelágica do gregarismo da vida, da complementaridade, da referência pelos sentidos e pelo lastro partilhado da comum cultura e da história, feitas das geografias, das memórias, das crenças e das convicções que se revela o impulso da liderança nos efeitos das suas ideias, mas, também, nas ambições, métodos e instrumentos. O António Vilar toca-nos pela dimensão da sua visão e pela coragem da sua ambição porventura mais ricas e fecundas nas suas formulações em nacos de prosa e testemunhos documentais e pessoais que respiram a genuinidade e liberdade sem compromisso enquanto temem ou desencorajam a conversão no concreto confinado e, por isso mesmo, menos livre e menos aberto a que se possa fazer caminho. No seu perfil polifacetado, mais do que um amigo – e já é muito, para não dizer de modo egoísta, que já seria tudo –, eu vejo um homem que, na experiência de um percurso de vida por vezes agreste e difícil, experimentou de forma vencedora o efeito da riqueza da sua personalidade de lutador inteligente, numa vida que, como diz Francesco Alberoni, ‘é feita de vários renascimentos e de várias infâncias`. E, de facto, este livro fica como sinal de que o António Vilar, na certeza do seu rumo, na bagagem do seu conhecimento e no conforto das suas inteligência e prudência, não tem resistido ao longo da sua vida a inúmeras facetas de expressão social. No rasgo de uma opção, numa travagem como num arranque ou desvio, porém, o António Vilar nunca serviu nenhum senhor. É que o António não tem dono, mesmo! Eduardo de Oliveira Fernandes Professor Emérito da Universidade do Porto

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Porquê? Aceitei, interpelado pelo meu amigo de há mais de 30 anos, o José Alberto Magalhães, falar de pedaços de um tempo e do contexto, paupérrimo, de onde vim, de alguns sucessos e de muitos, muitos falhanços em que estive sucessivamente envolvido, e, também, do fim desta ilusão que é viver. Parafraseando um conhecido provérbio árabe: no fim, ou se diz tudo, ou não se diz nada. Aceitei dizer tudo. Antes de mais, pela irresistível necessidade de falar dos meus pais e de outros antepassados. Sem eles nada haveria, afinal, que dizer. Ainda que tenham sido escravos no seu tempo, foram sobretudo o estrume (a ideia é de Martinho Vaz Pires, Reitor da Alexandre Herculano e meu professor de alemão) que me fez crescer. Onde estiverem – porque chegaram primeiro – esperarão, enquanto isto escrevo e dito, outros possíveis. Aqui, cumpre-me honrá-los. Depois, porque não esqueço (ou, sem querer, esqueço...) as tantas pessoas que passaram por mim – colegas, alunos, clientes e, sobretudo amigos, tantos que não consegui enumerá-los minimamente nesta biografia. Mas que guardo em mim. Como disse Antoine Saint-Exupéry, “aqueles que passam por nós não mais vão sós: deixam um pouco de si, levam um pouco de nós”. Afinal, eles estarão todos aqui, nas linhas, no contexto ou no intertexto. Esclareço, desde já, que se trata de um trabalho profissional realizado por um amigo que prezo, sendo que nem um cêntimo receberei do que, porventura, resultar da sua venda. E às críticas, boas, más ou péssimas, que se irão seguir responderá apenas o meu silêncio. Quis que a (minha) verdade fosse do vosso conhecimento, inteira, mas, decerto, com lapsos e omissões, sobretudo de amigos que não consegui já referenciar. Muitos me acusarão, não tenho dúvidas, mas as suas acusações não valerão mais, para mim, do que eles valem. O que, salvo algumas raras excepções, é muito pouco ou nada. Certo, porém, de que a verdade é a soma de todas as verdades. Direi algo, desde logo,

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de um tempo inicial de pobreza, subsequente à II Grande Guerra, mas que foi, também, de recuperação económica, embora lenta, sob o comando férreo, mas inteligente e patriótico, de Oliveira Salazar, até à sua deriva totalitária. Depois, com o crescimento económico dos chamados “Trinta Anos Gloriosos” e a expansão do Estado-providência, a vida tornou-se menos difícil e, com a adesão de Portugal, em 1986 à, então, CEE, novas primaveras nasceram entre muitas ilusões e desilusões. Entretanto o 25 de Abril já abrira as portas da liberdade e mil esperanças haviam desabrochado de uma “vida boa”. Tempo de progresso económico e social de que muito beneficiei. O declínio do crescimento, pelos anos 1970, anunciava, porém, uma inversão do culto dos valores sociais e do Estado social, que se acentuaria, sobretudo, após a crise financeira global de 2008, mas já vinha dos anos oitenta. Seguiu-se o calvário do autoritarismo após 2011, com alegado fundamento na crise da dívida pública acelerada pela especulação financeira sem freio. A situação do estado português, já frágil, degradou-se e medidas de austeridade, por vezes radicais, pouco pensadas e muito obedientes a poderes estrangeiros e seus interesses, asfixiaram a sociedade portuguesa com consequências sociais gravíssimas. Atravessei – e nela estou – a crise que não é apenas financeira mas, também ideológica. Vi o medo instalar-se entre os portugueses enquanto do Estado social se passava para uma sociedade monetarista, uma sociedade de risco. Nada me foi ou é estranho, e não deixarei de lutar para que o futuro seja melhor – e não, apenas, para que não seja pior. O mundo em que, nasci, cresci e ainda me cumpre viver, arrasta-se convulso, numa profunda mudança. Tal mudança vem marcando indelével e dolorosamente as nossas vidas, não só no Ocidente – na tradicional, mas limitada, perspetiva eurocêntrica – mas estendendo já planetariamente os seus efeitos e consequências. Uma grande transformação vem ocorrendo, com efeito, na economia, na finança, na política, nas ciências e na tecnologia, na sociedade, nas empresas, no trabalho, no Direito... com múltiplas consequências, já presentes, nos

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“mundos da vida”, que não, porém, no que respeita à natureza do ser humano. Dizem, alguns, que o tempo é de apocalipse, enquanto outros afirmam que é hoje que começa o futuro e que há outros possíveis. Certas transformações ainda viverão, certamente no ovo da serpente; outras têm sido mal interpretadas, desconsideradas ou, até, têm passado despercebidas, mas é seguro que todas apontam, de algum modo, para algo que, parece, nunca mais será como antes. Estaremos, com efeito, perante mudanças civilizacionais numa global village que se crê assentar, crescentemente, no progresso técnico sem limites, nos confins, quid sapit, do pós humanismo. Uma observação, por mais singela que seja, dos recentes acontecimentos económicos, evidencia o quanto a “enorme e complexa colmeia de atividades”, a que se referia Samuelson para explicar a vida económica, se tornou, porventura, num vespeiro, sobretudo no contexto da crise financeira e da recessão iniciadas em 2008. Agradeço ao José Alberto Magalhães o facto de me ter lançado nesta aventura biográfica e ao meu editor, Miguel Peixoto de Sousa, o de ter aceitado. Também – ele sabe porquê – ao João Luís. E agradeço profundamente aos que aqui deixaram os seus testemunhos. Fica consignado, porém, que o passado é, para mim, um lugar de referência e não um lugar de residência. Importa ainda dizer que este livro não é a antecâmara de um qualquer projecto político. Apenas desejo acabar de pé, deixando do trânsito que fiz pela vida, um grão de areia. Entre a dor e a esperança, nem tudo foi mau. António Vilar

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Os anos cinquenta Portugal saiu da II Grande Guerra económica e socialmente debilitado. O país, no final da década de quarenta, estava a braços com uma espiral inflacionária e com uma enorme carência de géneros essenciais. No entanto, financeiramente, a situação apresentava-se mais consolidada, principalmente devido ao aumento do comércio externo, após o final da guerra, e à ajuda recebida dos EUA, através do Plano Marshall, ainda que tenha sido o país menos apoiado, por não ter entrado diretamente na guerra. A década seguinte caracterizou-se, em Portugal, por um elevado nível de mortalidade infantil, devido às deficiências alimentares e às péssimas condições de vida, sobretudo na região Norte e no Alentejo. Os portugueses comiam, em média, 2400 calorias diárias, menos 100 do que o mínimo considerado indispensável para a sobrevivência. A emigração, estimulada pela prosperidade do mundo industrial do pós-gerra, viria a ser o paliativo para a miséria portuguesa, embora não deixasse de aumentar até ao final da década de cinquenta e, mais ainda, na de sessenta. Com uma aposta forte na agricultura e receoso da industrialização, Salazar condenou o país à miséria e à fome, não obstante dizer-se interessado no crescimento de uma forte classe média. Admitido na ONU em 1954, Portugal praticava um anticomunismo primário. Não obstante a vontade do regime em manter o povo agarrado à terra, e superdependente da agricultura, assistiu-se, entre 1953 e 1958, a um primeiro plano de fomento e a uma pequena transição da sociedade rural para alguma industrialização. A população ativa rural desceu de 48% para 42%, em 1960, e a industrial passou de 25 para 29%. As pessoas começavam a abandonar os campos, deslocando-se para as cinturas industriais das grandes cidades do litoral.

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Também se intensificou a emigração para as então províncias ultramarinas, principalmente das populações oriundas do interior rural, e ainda para os EUA e Canadá (dos Açores) e para a África do Sul e Venezuela (da Madeira). Os anos cinquenta herdam os extremos da miséria da década anterior, muito marcada pela Grande Guerra, mas deixam para a seguinte, apesar da lentidão do desenvolvimento, um maior desafogo, principalmente fruto da emigração. Portugal permanece um país muito atrasado, com a franja da população mais vulnerável a vasculhar, por vezes, em caixotes do lixo para se alimentar. O que, diga-se, não era apanágio apenas de Portugal. Londres, cidade opulenta, também tinha, no pós-guerra, muitos sem-abrigo, como sombras silenciosas, a esmiuçarem os restos do lixo nas traseiras de hotéis e restaurantes. Embora muita gente não a sentisse, a fome estava escancarada por todas as zonas pobres, principalmente das cidades. Fome e miséria quase insuportáveis. Por vezes, pessoas desmaiavam nas ruas, de fome. Infelizmente, era tragédia frequente... Fado, futebol e Fátima era o “alimento” predilecto de Salazar para o seu povo mais humilde. A população tinha ainda o “Folhetim Tide”, ao final da tarde, para se entreter e os “Companheiros da Alegria”, onde pontificava Igrejas Caeiro. Para além das festas dos santos populares, as grandes noites do fado e, no Porto, o concurso do vestido de chita. Era o que o povo queria... e que podia ter! Politicamente, o país estagnara. Instalando-se o servilismo e a subserviência e instituindo-se a delação que milhares de portugueses praticaram como informadores da PIDE ou da Legião Portuguesa. Toda a gente tinha medo... Havia ainda uma eficaz censura das ideias através de uma “polícia” que alargava a sua ação à imprensa, rádio, cinema, palcos, música, literatura, publicações juvenis, escolas e, claro, a esse maravilhoso produto tecnológico, a televisão, a grande novidade, a partir de 1958, em Portugal.

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Um berço muito pobre É neste clima deprimido, miserável e opressivo que, filho de gente muito pobre e modesta, nasce no dia 19 de Janeiro de 1952, pelas doze horas e quarente minutos, no Hospital de Santo António, no Porto, António Vilar Ribeiro, filho de António Ribeiro e Hermínia Ferreira Vilar. “Segundo a minha mãe me contou, foi um parto muito difícil, pois estivemos os dois quase a ir para o “outro lado”... Por essa razão, ela não pôde ter mais filhos. E é por isso que eu tenho hoje muito respeito pelos serviços públicos. Porque se não houvesse um hospital público, provavelmente eu nem sequer teria nascido, já que, em casa, sem os cuidados necessários, inevitavelmente teria morrido. Por isso devo a minha vida à circunstância de haver, já naquela altura, serviços públicos de saúde no nosso país.” António Vilar – quis ser assim conhecido por causa de, naquela época, haver um homónimo, ator de teatro e cinema muito célebre – revela também que todo o seu percurso de estudante foi feito de bolsas de estudo. “Se o Estado não tivesse também serviços na área do ensino, eu não teria saído da cepa torta. Andei numa escola primária gratuita, na paróquia de Nossa Senhora da Conceição, no Porto. Se não houvesse liceu público, no Porto, e universidade pública, em Coimbra, nunca teria estudado, porque éramos muito pobres, os meus pais não tinham, então, dinheiro para isso.”

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António Vilar não renega as suas origens [nas duas fotos anteriores pode ver-se a família do lado materno e do lado paterno], porque defende que algum sucesso que alcançou na vida também radica na força de vontade, de vencer e ultrapassar, desde os primeiros anos, as condições que se lhe depararam. O que quer que seja testemunho de vida para os mais desafortunados e que, em quase tudo, deve a seus pais. “Se à nascença as dificuldade eram muitas, é óbvio que só aos meus pais se deve o terem-nas superado, pois o destino, como é geralmente reconhecido mesmo em aprofundados estudos académicos, parecia determinado, em grande medida, pela minha posição social e, obviamente, dos meus antepassados, e quer por questões genéticas, quer por outras, sociais e culturais, ambientais, direi. Não pretendo defender que a educação que me veio do ensino público foi pouco importante na construção da pessoa em que vim a tornar-me. Ao contrário, terá sido determinante, mas foi, creio, antes de ter chegado à escola que recebi dos meus pais instrumentos e habilidades que eram os da família, ou deles, da sua circunstância e de algo mais que não sei dizer, mas que esteve lá. Nasci e vivi com os meus pais num sítio que era como uma enxovia, um local com duas divisões, num subsolo, atrás da Igreja da Nossa Senhora da Conceição, a capela primitiva, na rua da Constituição. Não era propriamente uma ilha, mas quase. O espaço era subarrendado, humilde, com muita humidade, o que me causou problemas de saúde com muita gravidade, nomeadamente a bronquite asmática de que sofri durante toda a infância, até aos onze anos, e que de repente passou. Lembro-me de ser assistido por um médico, o dr. Ernesto Vidal, uma pessoa idosa que tinha consultório na rua de Sá da Bandeira. O senhor era muito generoso, creio que os meus pais não pagavam mesmo nada pelas consultas. Ia lá muitas vezes e recordo-me que to-

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mava uma vacina, mensalmente, que consistia em sete injeções, umas atrás das outras, num só braço. Além do acompanhamento médico, algumas vezes, tinha crises que me obrigavam a ir ao hospital para receber oxigénio. Aliás, por causa disso, entrei mais tarde para a escola primária, já com oito anos. A minha mãe trabalhava como doméstica numa casa de um casal, ele, director financeiro do Hospital de Santo António e a senhora, da alta sociedade, que não trabalhava. Lembro-me de gatinhar nessa casa, uma de várias onde minha mãe era criada. Foi aí que “a mamã” [foto ao lado], como eu lhe chamava, me matou, muitas vezes, alguma fome, com pão torrado no forno – com muita manteiga – e, mais tarde, também com pães recheados com chouriço, um pitéu! Recordo-me também de ver minha mãe a trabalhar numa cozinha – acho que numa casa na rua da Alegria – onde estava a preparar uma refeição para muita gente e, de repente, vi uns bichos parecidos com cobras a saltar e a perseguir-me. Gatinhei a fugir deles e só mais tarde vim a saber que se tratava de lampreias, animal que fiquei a detestar, até hoje, tal o susto que apanhei. Tal casa da Rua da Alegria era um palacete, tinha as traseiras para a rua de Santa Catarina e recordo-me que, ainda pequeno, fui pelo quintal fora e dependurei-me num muro que ficava a uns 30 ou 40 metros da rua e quase caí, quando apareceu aos gritos minha mãe. Parece que, nesse dia, tive ali um anjo da guarda que me protegeu. E sei que ainda protege. Estas e outras recordações levam-me a pensar que a minha mãe me levava com ela quando ia fazer serviços para essas casas. Fui sempre criado por ela e pelo meu pai e brincava sozinho. Estava sempre em casa e, como não tinha brinquedos, fazia com-

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boios com rolhas, carros com latas velhas, corridas com as sameiras. Inventava brinquedos para me entreter. Era, então, o mundo que conhecia e bastava-me. Mais tarde, já com oito ou nove anos, percebi que os miúdos da minha idade tinham brinquedos vários, revistas de “cowboys” e de banda desenhada. O Natal era, como o S. João, um tempo mágico, pois dava-me o ensejo de construir presépios e cascatas com pedras e muito musgo que ia arrancar às paredes do quintalzeco e que armava, depois, com figuras de barro típicas de cada momento, que me enviava a Tia Lena, ou me dava a “mamã”. O tempo da Quaresma, esse, era assustador – fazia grandes covas na terra para me esconder de medos que não conhecia ou da maldade humana que ainda não experienciara, mas de que meus pais, muito católicos, falavam assustadoramente. O medo, como a brincadeira, coabitava no meu subconsciente nestas primeiras aproximações à coisa religiosa e ocupavam-me a solidão. Como era muito doente e enfezado, toda a gente dizia que eu ia morrer e até a minha mãe, como mais tarde me confessou, achava que eu não ia sobreviver à doença. Sei, de saber certo, que passou fome para que eu tivesse bifes à mesa sempre que podia e para eu não morrer.” Vilar recorda-se de, pelos seus onze anos, andar ao papel, na casa dos vizinhos, que depois vendia para arranjar os tostões com que comprava revistas aos quadradinhos da época, principalmente as do Bufalo Bill e do David Crocket e, também, cromos de jogadores de futebol, que juntava e, por vezes trocava com um vizinho da sua idade, o Fernandinho.

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A mesa de tábuas “Um facto curioso, que me marcou muito – não na altura, porque não me apercebi do sentido que as coisas tinham, mas mais tarde, pois ficou bem cá dentro – foi o facto de meu pai ir, regularmente, ao mercado do Bolhão, não para fazer compras, mas para esgaravatar num sítio onde, ao fim do dia, os comerciantes deitavam fora os restos e outras coisas. O meu pai, algumas vezes comigo a assistir, ia lá buscar laranjas, maçãs, e couves... enfim, tudo que tivesse algum aproveitamento em nossa casa. As melhores eram para comermos e o que não prestava ia para as galinhas e os coelhos, que o meu pai criava junto a uma pequena horta, que cultivava. Os meus pais, muitas vezes, não comiam à minha frente para esconder o pouco que tinham, poupavam-me a isso, tenho essa consciência... Fui a esse sítio do Bolhão poucas vezes, mas o meu pai levava-me talvez para eu não ficar sozinho em casa. Fazia o possível para esconder-me essas coisas.” Prova das muitas dificuldades sentidas, António Vilar recorda uma história que, com o tempo, lhe fez perceber as dificuldades então vividas por seus pais. “Andava na escola primária e, como não tinha uma mesa para estudar em casa, usava como mesa de estudo o tampo de uma máquina de costura. Lembro-me ainda que na cozinha havia uma mesita que nem dava para comermos

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os três ao mesmo tempo, e recordo-me que o meu pai, um dia, resolveu fazer uma mesa a preceito. Foi àquele tal sítio, no Bolhão, buscar tábuas de madeira dos caixotes de fruta, levou-as para casa e fez uma mesa grande onde passámos a comer todos. Foi a primeira mesa que existiu lá em casa...” Vilar recorda também que seu pai, que era guarda-frio do STCP, tinha imenso jeito para desenrascar as coisas e que, por isso, os sapatos que usava era ele que os consertava. “Andei também com sapatos de madeira, uns tamancos, mas isso era mais em casa, para a escola levava uns sapatos vulgares, ia sempre arranjadinho... Os sapatos davam para muito tempo, porque o meu pai ia lá ao mesmo sítio no Bolhão e trazia pneus velhos para recauchutar as solas com borracha.”

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SOBRE O PPD/PSD “A social-democracia encontrava-se com o meu pensamento político e quando constatei que era Sá Carneiro que liderava o PPD aderi com todo o entusiasmo. Hoje estão a destruir o partido. O caciquismo e a inerente corrupção, bem como o desprezo dos valores de antes e a emergência, sufocante de interesses pessoais e de grupo, fazem do atual PPD/PSD uma triste sombra do que foi no passado. SOBRE CAVACO SILVA “Acreditei que fosse um genuíno social-democrata. Hoje, sinceramente, acho que ele é um prestidigitador na política. O que conta para ele foi apenas ele próprio. O seu ideário político é muito frágil, líquido. Democrático, com certeza, mas, ao serviço de um qualquer caminho. Sobra-lhe em arrogância o que lhe falta de ‘mundividencia’” SOBRE PEDRO PASSOS COELHO “É, na minha perspetiva, da extrema-direita inconsciente, na sua alegre inconsciência. Falta-lhe sabedoria, substância, lastro político. Tem um discurso redondo, à volta de algumas crenças. Não tem mundo. É daqueles que confundem o mapa com a estrada. Reconheço, porém, que é corajoso, combativo. Segue, enquanto Primeiro-Ministro, o mapa que lhe puseram na frente, o da “Troika”, decerto bem intencionado, mas sem horizontes, sem futuro para Portugal.” SOBRE MARCELO REBELO DE SOUSA “Acho que é um genial animador da vida política, um grande ‘disco-jockey’ no espetáculo que ela também é. Creio ser o melhor candidato de centro-direita às próximas eleições presidenciais. Nunca deixo de ouvir o que ele diz, mas nunca o oiço apenas a ele.”

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