A criança e suas necessidades básicas O respeito à vida de uma pessoa não significa apenas não matar esta pessoa com violência, mas também dar a ela a garantia de que todas as suas necessidades fundamentais serão atendidas. Dalmo Dallari* Os adultos em geral lembram-se pouco de como eram quando crianças. Mesmo quando se lembram, é de uma fase em que já tinham uma certa independência e algumas capacidades em franca utilização, como andar, comer sem ajuda, brincar... Bem diferente é a situação dos bebês recém-nascidos, totalmente dependentes dos adultos que estão por perto, seja para oferecer o leite quando sentem fome, seja para trocar suas fraldas, para agasalhá-los quando têm frio ou para dar medicação quando ficam doentes. Eles precisam de nós para tudo que diz respeito à sua sobrevivência neste mundo. Como eles vão se libertando de tanta dependência? Aprendendo a fazer as coisas por si mesmos. Como podem aprender tudo aquilo de que precisam? Tendo ao seu lado um adulto paciente que lhes mostre como é e os ajude a desenvolver suas habilidades. Os pais ou responsáveis precisam estar conscientes de que um bom tempo de suas vidas, nessa fase, será dedicado a ensinar-lhes coisas e a atender suas necessidades. Falando nisso, vejamos... Uma criança tem necessidades bem evidentes, como aquelas a que nos referimos acima: alimento, agasalho, proteção e cuidados. Necessidades que gritam através do seu choro. Mas existem algumas outras necessidades, tão básicas quanto essas, só que são invisíveis. Por isso, não são tão evidentes e facilmente nos esquecemos delas. A Margarida Friorenta**, uma conhecida história infantil, fala a respeito destas coisas tão essenciais quanto impalpáveis, como
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o carinho, a atenção e a companhia de um ser querido. Coisas que, quando faltam, deixam vazios imensos em nossa vida. Então, me permito dedicar um capítulo deste livro a elas, para que não sejam negligenciadas na convivência em família. Deus. A noção de um Pai de infinita bondade e amor é o conforto para todas as almas que caminham na Terra, convivendo com os elementos aleatórios da existência e com as incertezas humanas ao mesmo tempo em que nos sentimos amados e protegidos por suas leis. Sua justiça dá segurança de que todos recebemos da vida aquilo de que necessitamos para nosso progresso, na medida certa de nosso mérito espiritual. A noção de Deus é fonte da ideia de fraternidade, que nos ensina a ver em cada criatura um irmão, e também é base para as atitudes éticas perante nós mesmos e perante os outros. Amor e respeito. Uma criança necessita de pelo menos uma pessoa, em todo o mundo, que a ame incondicionalmente. Assim ela adquire uma autoimagem positiva e se sente alguém único e especial, absorvendo igualmente modelos de amor e afetividade que exercitará na vida. Calunga, nosso amigo espiritual, nos diz *** que cada um tem uma noção de amor, e que esta noção é baseada no amor recebido. Autoestima. Uma criança precisa aprender a gostar de si mesma e a escolher o que é melhor para si. Isto a livrará de cair em inúmeras armadilhas e a impedirá de assumir comportamentos autodestrutivos, levando-a a se afastar dos vícios e a buscar qualidade para sua vida. Atenção. As crianças não são autossuficientes e nem sempre aquilo de que necessitam está claro e visível. Por isso, precisam de alguém que preste atenção constante ao seu olhar, aos seus gestos e palavras, a fim de identificar o que lhes falta e providenciá-lo. Valores. Os valores são a fonte de nossas escolhas e atitudes. Valores verdadeiros, fundamentados nas leis morais e especialmente na Lei de Justiça, Amor e Caridade, nos ajudam a sofrer menos e a causar menos sofrimento àqueles que amamos. Famílias espiritualmente inteligentes
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Objetivos. Uma criança precisa de objetivos de vida para compreender a importância da determinação e da disciplina. Uma vida sem objetivos tende a se perder em detalhes e superficialidades, causando tédio e desgosto, impedindo uma plena autorrealização. A criança precisa descobrir objetivos dignos de serem atingidos (não aqueles impostos pelos adultos) e a alegria de se dedicar a eles. Conhecimentos. Conviver com a beleza e a cultura, bens invisíveis que nutrem e ajudam a elevar a alma, é uma necessidade de toda criatura. A feiúra deprime, a ignorância das coisas elevadas escraviza o Ser ao simples preenchimento de suas necessidades materiais. Querer conhecer as grandes obras da humanidade e apreciar a beleza da arte mais sublimada são objetivos que promovem a evolução intelecto-moral. Liberdade. Liberdade para brincar, para sonhar, para dizer o que pensa e sente, para exercitar seus valores e buscar seus objetivos; liberdade aliada ao amor é o sentimento que mais nos preenche da sensação de estar vivos, que transforma a vida num ramalhete de possibilidades de agir e trabalhar para ser feliz.
* Em Viver em sociedade, Ed. Moderna. ** Livro de Fernanda Lopes de Almeida, publicado pela Ed. Ática. *** Em “Conhecer o amor”, do livro Felicidade é escolha, Ed. Gil.
Curtir, ficar, estar, ser
Os jovens algumas vezes têm entrado nessa vida dos relacionamentos a dois de qualquer jeito, sem muita perspectiva, sem orientação. Frequentemente, muito cedo, mas continuam se atrapalhando mesmo depois de alguns anos. E não creio ser possível que tenham suficiente clareza do que querem, nem de como conseguir o que querem. Também entendo que possa faltar alguma perspectiva diante de cada solicitação ligada à vivência do impulso sexual. Isso torna difícil praticar o sentido das palavras atribuídas a Bob Marley: “nunca troque o que mais quer na vida, pelo que mais quer no momento”. Porque o que “realmente se quer” ainda não está definido ou se mistura a um redemoinho de estímulos espalhados pela mídia, sociedade e cultura. Então, pode parecer que a quantidade vai levar à qualidade, o que é um ledo engano. Embora muitas vezes, as pessoas amiúde se entreguem a esses “jogos de paquera” e conquista na esperança chegar ao parceiro ou parceira ideal, com quem se quer realmente compartilhar pensamentos, vivências, histórias pela vida afora, isso só ocorre em poucos casos. A conexão profunda entre um casal é muito maior que gostar das mesmas baladas e se dar bem na cama. Ela inclui aquilo que com prazer fazem juntos durante boa parte do tempo, as conversas que geram satisfação e aprendizado, o nível de compreensão recíproca, o respeito e o afeto. Ela inclui compartilhar certos valores e objeFamílias espiritualmente inteligentes
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tivos, o que só se conhece com a convivência. Porque se abrimos mão daquilo que somos em função de “ficar com alguém”, ou haverá sofrimento íntimo na permanência, ou a relação estará destinada ao rompimento. O filme Paris à meia noite (2011), de Woody Allen, nos apresenta um casal que está planejando casar-se, mas sem demonstrar entre si um nível minimamente razoável de entendimento mútuo, conexão mental e emocional. Olhando “de fora”, parece não haver nada de errado: são belos, têm projetos, têm dinheiro. Estão em Paris! Mas observando melhor a convivência, percebe-se que não há praticamente nada em comum, seus ideais, objetivos e valores são distintos, ocasionando naturais desentendimentos e desencontros. Hoje em dia parece meio “careta” falar-se em ideais e valores. A experiência imediata prevalece, o impulso prevalece, no culto ao imediatismo que nossa civilização fabricou. Mas a conexão mais profunda, aquela que realmente perdura e se aprimora com o tempo, necessita desse tipo mais forte de afinidade, de encontro entre pensamentos, anseios, objetivos, valores e ideais. E é nessa dimensão que geralmente se situa o que se quer para a vida. Então, conhecer-se e estar em paz com as suas escolhas, antes de sair em busca desenfreada por companhia e relacionamento, tende a funcionar melhor para quem procura um nível de conexão mais forte, uma convivência mais prazerosa, em lugar de momentos fugazes. A vida certamente envolve ‘curtir’ a companhia de alguém e também ‘ficar’ com quem curtimos. Mas se não há sintonia em grau mais efetivo, será difícil manter viva a alegria de continuar juntos. Somos seres que mudam. Pode existir certa distância entre o jeito como se está no presente e aquilo que de fato se é ou quer ser. Então, antes de partir para uma intimidade física baseada em atração instantânea e posterior esvaziamento, é preferível colocar na balança seus objetivos, ideais e valores, que estão relacionados àquilo que você é e aspira ser, para não trocar o que é importante na vida pelo que apenas parece importante naquele momento.
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Lares inteligentes
Aprender é um processo que os cientistas ainda estudam e continuam tentando compreender. Esse processo mistura todo um conjunto de fatores, como desenvolvimento espiritual, organismo, genética e ambiente. Do ponto de vista nada desprezível da influência ambiental, um dos autores bastante interessados nesse processo é Joe Tsien, professor da Boston University, cujos experimentos mostraram que ratos domésticos eram mais inteligentes que ratos de laboratório e, também, observou que um meio interessante e desafiador podia ajudar a desenvolver a inteligência dos ratos de laboratório*. Rubem Alves menciona essa pesquisa no texto “Casas que emburrecem”, do livro Por uma educação romântica (Ed. Papirus). Outro texto que traz essa observação, num enfoque literário, é A assinatura de todas as coisas, o romance recém-lançado de Elizabeth Gilbert (Ed. Objetiva), no qual uma criança, filha de um biólogo, torna-se uma grande pesquisadora dos musgos, estudando a vida que cresce no seu próprio quintal. Todas essas referências apontam para a necessidade de criar ambientes estimulantes como forma de promover o desenvolvimento infantil. Contudo, há estímulos e estímulos. O excesso de estímulos eletrônicos presentes em nossas vidas, por exemplo, nem sempre é saudável e pode provocar distúrbios. TV, MP3, internet, celular, tudo isso ao mesmo tempo, às vezes, confunde os próprios adultos, Famílias espiritualmente inteligentes
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comprometendo a sua capacidade de concentração e tornando-os agitados. A internet e os smartphones atualmente incentivam a isso, pela rapidez de acesso a um oceano de conteúdos e informações. Várias janelas abertas na tela dividem nossa atenção. Além disso, eles também diminuem o tempo dedicado à paz, à Natureza, ao silêncio, à reflexão e à imaginação. Mas como não vamos excluir esses dispositivos de nossa vida, é importante ao menos filtrá-los, reduzir o seu uso, sobretudo quando se trata de nossas crianças. Desligar tudo durante um período do dia é altamente benéfico. Um lar inteligente, por outro lado, é aquele que oferece aos pequenos, amplas possibilidades à imaginação, à descoberta. Ao surgimento e busca da satisfação da curiosidade. Um lar inteligente precisa conter objetos interessantes de ver, mas que a criança possa manusear, o que não acontece em ambientes ricamente decorados, por exemplo, onde em tudo é proibido mexer. E não se trata unicamente de disponibilizar brinquedos e jogos de montar, mas livros adequados à sua idade, livros sobre arte e imagens da Natureza, livros sobre animais, objetos que provoquem a imaginação, como caleidoscópios e prismas, roupas e tecidos que possam se transformar em fantasias. Se possível, um canto com areia, algum material de desenho e pintura, vasilhas com que se brinque de casinha ou se tornem instrumentos sonoros. Tantas possibilidades!... Segundo Maria Angela Barbato Carneiro, coordenadora do Núcleo de Cultura e Pesquisas do Brincar da Faculdade de Educação da PUC-SP**, “a capacidade de simbolizar é uma das funções mentais superiores – os outros animais não representam, não simbolizam. Atribuir a uma coisa um significado que não lhe é próprio é o mecanismo de desenvolvimento do pensamento e da linguagem. É no mundo de faz de conta que a criança aprende sintaxe, semântica e pragmática, ou seja, as regras, os significados e o uso correto.” Como os jogos simbólicos são espontâneos, surgindo em razão de disposições íntimas influenciadas pelo meio e pela companhia, criar um lugar onde a criança não seja tolhida em suas brincadeiras e desejo de usar a imaginação, consiste na melhor forma de propiciar condições para que tais momentos aconteçam. Observemos, contudo, que isso não significa que os filhos se tornem “os reis da casa”, como algumas vezes acontece, onde os 8 Rita Foelker
pais precisam pedir permissão para arrumar a sala ou escolher o canal de TV. Tirania infantil não ajuda a desenvolver nada de saudável, do ponto de vista psicológico e comportamental. Há algumas ideias simples no texto “Brincar é coisa séria”***. Mas você pode ter outras. Considerado o aspecto da segurança, que é fundamental, procure criar para seus filhos um lar acolhedor, alegre, saudável, mas, também, um lar inteligente.
* Em seu artigo “The memory code” (“O código da memória”), para a revista Scientific American, disponível (em inglês) em http://migre.me/h3Vrn ** Citada no artigo “No mundo do faz de conta”, de Luciana Alvarez, publicado na revista Educação Infantil, nº7, de 07/10/2013. Disponível em http://migre.me/h3YYL *** Ver página 101. Famílias espiritualmente inteligentes
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Todos os textos do livro
Apresentação Educar e amar Passado e presente Pais nota 10 Melhorando a comunicação A escolha do colégio A dádiva do respeito Livros e lápis-de-cor O ambiente do lar Sem cobranças Educação à moda antiga? Os pais e a construção dos valores Separação em família Casamento: entre o ideal e a realidade Perante a sexualidade da criança, do adolescente e de cada um Responsáveis desde pequenos Pessoas difíceis Racionalizações Crianças geniais Os pais e a construção da autoestima Disciplina e liberdade Vida em comum e vida própria A criança e suas necessidades básicas Mães que trabalham fora Lidando com problemas em busca de soluções
União conjugal e renúncia De bem consigo mesmo, de bem com o outro O ator em seus papéis Evitando imposições Mudanças superficiais e mudanças profundas Saber é diferente de fazer Os filhos crescem: a hora da verdade A indisciplina e o fator “pais” Brincar é coisa séria Autoanálise Calibrando medidores internos A química dos relacionamentos Tempo de falar Uniões homoafetivas Crianças e tecnologia TDAH Curtir, ficar, estar, ser Pulando fora da gangorra emocional Gente tem defeitos? Lares inteligentes Sexo e lei espiritual O amor é livre A paz Amar e educar
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Pensamentos que Resolvem Mestre de Mim Mesmo Por Calunga / Rita Foelker “Pra efeitos práticos, só existem dois tipos de pensamentos: pensamentos que resolvem e pensamentos que não resolvem.” É desse jeito simples e direto que Calunga nos ajuda a perceber como podemos fazer nossa vida funcionar muito melhor. Da série Calunga 2 em 1, esse volume traz dois livros de Calunga e ainda um bônus ,contendo Frases Inéditas. 12 Rita Foelker
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Comece bem o seu dia! Rita Foelker PRECES, DESEJOS, FRASES & REFLEXÕES
Em cada página, você encontra uma proposta de paz, alegria e renovação. O livro propõe um olhar positivo e generoso para as oportunidades diárias, pensando que as tarefas cotidianas são também exercícios para a evolução espiritual. Acredite, a vida é um presente valioso que se renova todas as manhãs!
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