Bea Feitler - por Vinícius Antunes

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FUNDAÇÃO ARMANDO ALVARES PENTEADO Pós-graduação em Fotografia Fotografia no Brasil Professor Rubens Fernandes Junior

bea feitler

visão

ousadia reflexão por Vinícius Antunes

Como artista gráfica Bea Feitler aplicou sua linguagem em diversas publicações e materiais impressos das mais diversas instituições. Dentre elas estão as revistas brasileiras Senhor e Setenta, as americanas Harper’s Bazaar e Rolling Stone, além do projeto gráfico de outras diferentes mídias impressas como cartazes, livros, livretos, folders, capas de discos. Bea Feitler era dotada de uma incrível habilidade e inquietude criativa que a levou a produzir um corpo de trabalho que se pode ter como único, visionário e celebrado nas artes gráficas. Aqui, focarei em sua contribuição para a revista americana Harper’s Bazaar. Segundo Bruno Feitler (2012), seu filho e organizador da obra O design de Bea Feitler, a publicação era inicialmente voltada ao público feminino de classes média e alta e aos poucos retratou a linguagem da moda e da mulher de forma mais abrangente, ao refletir, por exemplo, a explosão do feminismo nos anos 1960. Sua origem está atrelada a editores vitorianos do País de Gales e seus primórdios de realeza, elegância e reflexão da alta classe ainda se faziam presentes de certa forma na publicação quando Feitler assumiu sua direção de arte ao lado de Ruth Ansel. A contribuição de Bea Feitler deu continuidade não apenas às origens da publicação, mas também à linguagem gráfica construída por seus antecessores na posição de direção que lá ocupou.


Imagem 1: Bea Feitler Disponível em: http://oglobo.globo.com/cultura/confira-fotos-trabalhos-de-bea-feitler-5144505

Nascida no Rio de janeiro, Bea Feitler (Imagem 1) era filha de alemães de origem judia que fugiram das leis raciais nazistas da Europa. Seu pai, um empresário da publicidade e amante das artes, sempre incentivou a filha a desenvolver seu repertório artístico e cultural. Parte da dita juventude culta da Ipanema dos anos 1950, Feitler frequentava avidamente o Theatro Municipal do Rio de Janeiro junto com seus amigos, também filhos de imigrantes, que passavam horas discutindo os espetáculos que assistiam. Feitler apreciava todos os campos das artes e seu desejo inicial era tornar-se pintora. Com a ajuda e incentivo de seu pai, foi estudar em Nova Iorque na escola que hoje se chama Parsons The New School for Design, mas sua escolha foi pelo curso de desenho gráfico, pois ela não se considerava uma exímia desenhista e preferiu ficar no âmbito da criação com cores, formas, imagens e textos. Após os três anos de graduação em Nova Iorque, Bea Feitler retorna ao Rio de Janeiro. Foi lá que a

designer iniciou sua carreira, sob a tutela de Carlos Scliar. Sobre a influência de Scliar na carreira da designer Feitler (2012) afirma: “Bea diz ter sido ele seu ‘incentivador e guia’, e sua passagem pela Senhor, graças a Scliar, a ‘sua chance’ para deslanchar na carreira” (FEITLER, 2012, p.16). Em sua produção na Senhor, Bea Feitler utilizou técnicas de ilustração que mais tarde deixaria de usar, mas que proporcionaram destaque à publicação em sua época e que ajudaram a torná-la uma referência no mundo do design gráfico até os dias de hoje. Porém ali, Feitler (2012) afirma que a designer já explorava uma linguagem que continuou a permear seu trabalho como sua escolha de paletas cromáticas, o texto contido em blocos geométricos, a presença de fios tipográficos, e imagens que tendiam ao alto contraste, sangradas no campo visual. Na mesma época fez também trabalhos para a Editora do Autor, Maria Clara Machado, Galeria Bonino e no Studio G, no qual associou-se a dois colegas também designers da revista Senhor.


“Visitar museus, manter contato constante com o mundo à minha volta, ler tudo que me caía nas mãos são fatores importantes no meu trabalho.”

bea feitler (FEITLER, Bruno 2012, p.10)


Imagem 2: Harper’s Bazzar, janeiro de 1969, capa. Fonte: O design de Bea Feitler. São Paulo: Casac Naify, 2012.

Sua curta estada na revista Senhor e o fracasso do Studio G levaram Bea Feitler novamente a Nova Iorque. Lá, a designer começou seu trabalho como freelancer, mas logo foi admitida pela revista Harper’s Bazaar, graças à Marvin Israel, seu antigo professor da graduação e junto com Ruth Ansel tornou-se codiretora de arte da publicação. Sucessora de Alexey Brodovich, Henry Wolf e do próprio Marvin Israel, Feitler deu continuidade a um trabalho de construção de linguagem desenvolvido pelos designers que já haviam ocupado seu posto e que elevou a Harper’s Bazaar a uma publicação inovadora de enorme respeito no mercado. Feitler (2012) designa este trabalho como um misto

de compromisso e independência. Foi lá também, que ela desenvolveu uma forte ligação e relacionamento com fotógrafos como Hiro e Richard Avedon, que se destacavam na cena artística da época e permanecem como ícones até hoje. Bea Feitler havia se tornado não só uma exímia designer gráfica como também uma astuta diretora de arte, orquestrando equipes com diversos profissionais na produção de um conteúdo de extrema potência criativa. Sua convivência com figuras como Diana Vreeland, editora de moda da Harper’s Bazaar, também contribuíram para que Feitler desenvolvesse a construção de seu repertório visual, algo que ajudou a mantê-la na posição de codiretora de arte,


Imagem 3: Editorial The Reflecting Eye Fonte: O design de Bea Feitler. São Paulo: Casac Naify, 2012.

Imagem 4: Editorial J is for June, Harper’s Bazaar. Fonte: O design de Bea Feitler. São Paulo: Casac Naify, 2012.

junto com Ruth Ansel, após a demissão de Marvin Israel, do qual as duas eram assistentes anteriormente. Em seu trabalho na Harper’s Bazaar é evidente a importância do texto na composição das páginas. Ele não só dá suporte, como abraça, envolve e compõe a imagem como na capa de janeiro de 1969 da Harper’s Bazaar (Imagem 2). Isso vai desde as chamadas contornando o corpo da modelo, até seus olhos perfeitamente posicionados entre o espaçamento das letras do logotipo da revista. A importância do texto é evidente nas páginas da publicação e no design de Bea Feitler. Ela dedicava páginas apenas à tipografia dotada de uma ousadia que não abandonava a linguagem

clássica e elegante da revista. A proporção do tamanho dos textos em relação às imagens e aos espaços vazios compunham páginas leves e equilibradas que davam suporte e respiro às imagens (Imagem 3). “Bea Feitler tratava a tipografia como arquitetura e como imagem (FEITLER 2012, p.32). Pode-se notar como exemplo disso as páginas do editorial J is for June, no qual a designer estruturou o título com simetria, ritmo e equilíbrio, transformando-o em uma torre tipográfica ilustrativa (Imagem 4).


Imagem 5: Editorial, Harper’s Bazaar, maio 1968. Fonte: O design de Bea Feitler. São Paulo: Casac Naify, 2012.

Na composição das páginas da revista, Feitler herdou de Brodovich, um de seus antecessores na posição de direção que ocupava, a linguagem revolucionária inspirada nas vanguardas europeias que diferenciava a Harper’s Bazaar das demais publicações de moda americanas. Feitler (2012) afirma que um dos aspectos fundamentais dessa herança no arranjo de páginas desenhado pela designer era o uso da publicação como arte sequencial, que garantia aos editoriais e à leitura da revista como um todo características cinematográficas. Para isso ela utilizava de ferramentas de composição visual como: “continuidade, enfeixamento de fotogramas, multiplicação, acúmulo e vibração de imagens, estroboscopia e contrastes de escala” (FEITLER 2012, p.45). A arte sequencial de Bea Feitler fica nítida no editorial fotografado por Bill Silano para a edição de maio de 1968 da revista (Imagem 5). A repetição da imagem no mesmo cenário, com momentos e movimentos diferentes da modelo e seu contraste de

escala garantem a estas páginas sequência, ritmo e equilíbrio na elaboração de uma narrativa imagética. Na colaboração na criação dos editoriais com os fotógrafos da revista, Bea Feitler bebia em fontes que variavam do surrealismo à arte pop e que criavam imagens peculiares, bem humoradas, sexies e extravagantes, que não só a consolidaram como mente criativa cobiçada no mercado da época, mas ajudaram na transformação da imagem feminina publicada na mídia. Parte disso é ilustrado, por exemplo, no editorial The Foot and the Ferrari em que Feitler e o fotógrafo Bill Silano brincam com as proporções dos objetos fotografados no enquadramento, corte e disposição das imagens ao desenvolver analogias simbólicas e estéticas entre os sapatos, as vestimentas, os carros, o piloto e o ambiente de corrida automobilística. A figura da mulher por completo é destemidamente eliminada em algumas das fotos e o foco nos objetos tema do editorial refletem o fetichismo


Imagem 6: Editorial The Foot and the Ferrari, Harper’s Bazaar. Disponível em: https://www.aiga.org/medalist-beafeitler

das relações entre homens e carros e mulheres e sapatos, tudo isso aliviado por uma composição visual que não abandona princípios clássicos de equilíbrio e coesão imagética e uma vibrante e espirituosa paleta cromática. As referências artísticas utilizadas no seu desenho gráfico fazem-se evidentes também na capa da publicação de janeiro de 1970, fotografada por Alberto Rizzo (Imagem 7), que carrega uma forte influência do movimento da arte pop. A manipulação da superfície da imagem, seu esquema cromático, a pose da modelo e seu caráter sexy, porém pitoresco, refletem não só um momento vivido na sociedade e na arte da época, mas uma mudança muito forte na representação da imagem da mulher, que dava nova vida aos clichés e pressuposições do comportamento feminino.

Imagem 7: Harper’s Bazaar, janeiro de 1970, capa. Fonte: O design de Bea Feitler. São Paulo: Casac Naify, 2012.


Sua contribuição para a Harper’s Bazaar foi muito rica, não só na base de produção artística, mas também na reflexão de um momento vivido pelo mundo e todas as mudanças intrínsecas ao mesmo. Não é justo que eu compare a produção artística de Bea Feitler na Harper’s Bazaar com aquela produzida atualmente, porém é difícil não estabelecer qualquer tipo de relação comparativa. Reconheço que os recursos de produção e tecnologia mudaram absurdamente. Vivemos agora um momento totalmente diferente enquanto sociedade produtora e consumidora de moda e informação. Porém é nítida, para mim, a falta dessa busca de referência artística e cultural emanada por Bea Feitler. Vejo as publicações de moda atuais retornando cada vez mais ao cliché da representação da figura feminina ao vender moda apenas como vestimenta. As vejo hesitantes em produzir imagens com frescor e ousadia, atidas em parte às facilidades dos apetrechos tecnológicos de produção e representação de imagem de moda. Se naquela época, com os recursos limitados de produção disponíveis, a designer produziu um conjunto de obra tão rico, visionário e embebido de informação de arte, moda, design e cultura, após esta imersão neste recorte do mundo criativo de Bea Feitler, uma indagação ainda me resta: será que hoje, encaretamos?

Referências Bibliográficas BEA FEITLER. Disponível em <https://www.aiga.org/medalist-beafeitler> Acesso em 10 de setembro de 2016. BEA FEITLER. Disponível em: <http://enciclopedia.itaucultural.org.br/ pessoa442213/bea-feitler>. Acesso em 12 de setembro de 2016. FEITLER, Bruno (org.). O design de Bea Feitler. São Paulo: Cosac Naify, 2012. FERNANDES JUNIOR, Rubens. Bea Feitler, revolucionária – direção de arte e fotografia. Disponível em: <http://www.iconica.com.br/site/beafeitler-revolucionaria-direcao-de-arte-e-fotografia>. Acesso em 10 de setembro de 2016.


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