Histórias Positivas: Seis Faces do HIV

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Historias Positivas Seis Faces do HIV

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Historias Positivas Seis Faces do HIV

Gabriel Henrique Oliveira e Silva Vinícius De Vita Cavalheiro Orientação: Profa Dra Cilene Victor Faculdade Cásper Líbero

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SUMÁRIO Agradecimentos Introdução Capítulo 1: O ponto de partida da infecção 11 À procura de um responsável 11 O vírus e seu mecanismo de ação 13 Como o vírus surgiu 14 A Teoria da Vacina 16 A Teoria da Seringa Contaminada 18 A Teoria do Colonialismo 18 A Teoria da Conspiração 20 E quando a Teoria da Conspiração convence? 21 Transmissão: passe livre para o vírus 22 O estigma homossexual 23 A caça aos gays 24 A crise das saunas de São Francisco 25 HIX x homossexualidade 26

Capítulo 2: Fator biológico, fator social

29 O perfil de um invasor 29 Relações sexuais desprotegidas 29 De mãe para filho 29 Uso compartilhado de seringas contaminadas 33 Transfusão de sangue contaminado com HIV 33 Algo está errado 34 Fase 1: o prenúncio de uma infecção 35 Fase 2: à espreita para atacar 35 Fase 3: o corpo entra em pane 36 Fase 4: e a Aids se instala 36 Os mais vulneráveis 37 O HIV em mulheres 40 Muito além de mera questão de saúde 42 O HIV no sistema prisional 44 Pessoas em constante movimento 46 5


Capítulo 3: Aids e a legislação

47 Enfim, protegidos 47 As primeiras mudanças na legislação 48 No SUS, a esperança para os soropositivos 49 Em meio à dor, a luta 50 Batalhas diárias 53 Um inimigo ainda desconhecido 54 A chegada do antirretroviral, a democratização do preservativo e a adoção de uma nova perspectiva 54 Protesto na televisão e na rua 57 Novas perspectivas à vista 58

Capítulo 4: As armas do combate ao HIV

63 Oito jeitos de mudar o mundo 63 Em guerra contra o invasor 63 Na cola do vírus 66 Testagem cada vez mais rápida e moderna 69 Testes confirmatórios 70 Teste rápido 71 Fluido oral 71 Janela Imunológica 72 PEP Sexual - Profilaxia Pós-Exposição 73 PrEP - Profilaxia Pré-Exposição 75 Novas metas: 90-90-90 83 A realidade dos números 84

Capítulo 5: Ativismo e direitos humanos no âmbito do HIV/Aids

87 O direito à saúde 87 O SUS no âmbito do HIV/Aids 89 HIV e direitos humanos 90 Zero Discriminação 91 Ativismo 92

Perfil 1: Robson Perfil 2: Teresinha Perfil 3: Micael Perfil 4: Caique Perfil 5: João Pedro Perfil 6: Rosana

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AGRADECIMENTOS

A nossa orientadora, Prof Dra. Cilene Victor, pelos ensinamentos, experiência, paciência e puxões de orelha. A Matheus Duque, pelo apoio, diagramação, pela linda capa e pelas madrugadas acordado. A Thaís Cavalheiro, pela disponibilidade e revisão. Aos nossos pais, Edileuza e Evaldo, Thaís e Robson, pela oportunidade de estudo e por todo o apoio ao longo desses quatro anos. À equipe do GIV - Grupo de Incentivo à Vida, pela indicação de fontes e perfilados. Aos funcionários do Centro de Referência e Treinamentos em DST/Aids de São Paulo, pela disponibilidade, simpatia e imensa ajuda. Aos nossos amigos, por entenderem nossos sumiços e, às vezes, nosso mau humor. Aos nossos colegas de trabalho e chefes, pela flexibilidade de horários e por compreenderem nossas necessidades. A Helena Jacob e Michelle Prazeres, pela coordenação exemplar dos projetos de TCC e pelo apoio e ajuda durante este último ano. E, por fim, porém não menos importante, aos nossos seis perfilados. Sem vocês, este livro não valeria de nada. A todos, nosso muito obrigado. 7


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INTRODUÇÃO Em 5 de junho de 1981, o Centro de Controle e Prevenção de Doenças dos Estados Unidos publicou um relatório que descrevia a ocorrência de uma rara pneumonia em cinco homens residentes de Los Angeles, na Califórnia. Relatando um mal desconhecido que enfraquecia o sistema imunológico de pessoas aparentemente saudáveis, este é o primeiro registro médico da Aids no mundo. Trinta e cinco anos depois, milhões de pessoas já perderam suas vidas em decorrência de complicações da Síndrome da Imunodeficiência Adquirida. A doença, causada pela ação do vírus HIV, que destrói as células de defesa do organismo e deixa o corpo totalmente vulnerável a infecções, matou talentos como Cazuza, Freddie Mercury e Renato Russo. Mas, graças a novos tratamentos e remédios, muitos dos pacientes que foram infectados quando a medicina ainda nada sabia a respeito da doença estão vivos e saudáveis. Quem sobreviveu para contar presenciou desde a epidemia até o dia em que ser soropositivo deixou de ser considerado uma sentença de morte. Histórias Positivas - Seis Faces do HIV é um livro-reportagem que pretende esclarecer dúvidas sobre 9


HIV/Aids e ajudar a disseminar informações corretas a respeito do vírus e da doença. Para isso, ele é dividido em duas partes: a primeira, destinada à parte médica, que traz dados epidemiológicos e explicações científicas para a ação do vírus HIV no corpo, e a segunda, que traz seis histórias de pessoas muito diferentes entre si, com gostos e personalidades distintos, mas que se unem a partir de uma característica em comum: o sangue HIV positivo. Com este livro, pretendemos mostrar que é possível ser soropositivo e trabalhar, estudar e até mesmo se relacionar com outras pessoas. Com ele, queremos provar que é possível ser soropositivo e ter uma vida normal e saudável – desde que siga o tratamento corretamente. Com Histórias Positivas, procuramos ajudar no combate à discriminação que existe até hoje contra soropositivos. Esperamos que a leitura deste livro mexa com você da mesma forma que todo o processo de confecção também mexeu conosco. Alguns nomes foram mantidos em sigilo a pedido dos perfilados. Teresinha e Rosana, que já estão inseridas na mídia e no ativismo, optaram por manter seus nomes verdadeiros. Robson, Maicon, Caique e João Pedro, por medo de exposição e retaliação, preferiram se resguardar. Em respeito à privacidade dos nossos perfilados, todas as informações contidas nos perfis foram previamente aprovadas por eles.

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CAPÍTULO 1

O PONTO DE PARTIDA DA INFECÇÃO À procura de um responsável No outono de 1985, Bob Tivey teve uma ideia. Com a ajuda de diversos voluntários, o cofundador da AIDS Vancouver – a primeira organização canadense voltada especialmente para soropositivos – plantou três cerejeiras em uma localidade próxima ao Stanley Park, em Vancouver, em homenagem a três conterrâneos: Cedar Debley, Ray Scott e Gaëtan Dugas. Foram eles os primeiros a morrerem em decorrência da Aids no país. A cerimônia de homenagem às vítimas aconteceu dois anos antes de um dos rapazes, Gaëtan Dugas, protagonizar reportagem de fôlego publicada no periódico New York Post, a qual lhe conferiu um epíteto que o marcaria para sempre, e que se perpetuaria mesmo depois de morto: o “paciente zero” da Aids. Comissário de voo nascido em Quebec, sua história foi contada nos mínimos detalhes pelo jornalista e escritor norte-americano Randy Shilts, que publicou um livro, 11


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também em 1987, intitulado And the Band Played On. A obra aponta Dugas como o grande responsável pela epidemia da Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (Aids) – uma doença que, mais de trinta anos após seu surgimento, estima-se ter matado quase 40 milhões de pessoas em todo o mundo. Em seu livro, Shilts conta que, a cada cidade em que pousava a trabalho, Dugas aproveitava para transar com quantos homens pudesse – sem qualquer tipo de proteção. Em uma extensa pesquisa coordenada pelo Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC) dos Estados Unidos, publicada em 1984 pelo periódico American Journal of Medicine, o nome do comissário de voo foi relacionado ao surgimento da Aids em diversas cidades norte-americanas, como São Francisco, Nova Iorque e Los Angeles. O estudo ainda sugere que, graças ao “comportamento promíscuo”, facilitado também pela sua profissão, Dugas teve a oportunidade de percorrer o mundo em um curto espaço de tempo, podendo, assim, ter transportado o vírus desde o continente africano (onde, consta, teria surgido) até os Estados Unidos e a Europa. Em suma, teria sido o responsável pela epidemia que até hoje faz vítimas em todo o planeta. As evidências não deixam dúvidas de que Dugas de fato ajudou a disseminar o vírus, mas será que foi ele o grande culpado por transportar o HIV mundo afora? A comunidade científica se divide entre várias teorias. Até mesmo um programa de vacinação já foi apontado como o precursor da doença. Afinal, qual é a verdade? Qual a origem do vírus HIV?


O vírus e seu mecanismo de ação Antes de tudo, é preciso entender o que é o agente causador da Aids. A palavra HIV, comumente usada na língua portuguesa, é na verdade uma sigla para o nome do vírus em inglês: Human Immunodeficiency Virus (ou Vírus da Imunodeficiência Humana). O HIV é um lentivírus, ou seja, um tipo específico de vírus que ataca o sistema imunológico paulatinamente. Os lentivírus fazem parte de um grupo maior chamado de retrovírus, que age no interior das células. Quando o HIV entra no organismo, ele se hospeda nas células responsáveis pela defesa do nosso corpo – principalmente os linfócitos CD4+ – e substitui o material genético presente nelas pelo seu próprio. Isso faz com que a célula, que antes protegia o corpo, pare de funcionar corretamente e leve à produção de mais vírus, que se espalham pelo corpo por meio da corrente sanguínea. Existem dois tipos de HIV: o vírus HIV-1 e o HIV-2. Ambos são transmitidos na troca de fluidos corporais, como sêmen e sangue, principalmente, mas o primeiro é muito mais fácil de ser contraído do que o segundo. Da mesma forma, a duração da infecção inicial causada pelo tipo 2, bem como o tempo que demora até o corpo começar a demonstrar sinais de fraqueza imunológica, são maiores do que no tipo 1. O HIV-2 é muito mais comum em países da região ocidental da África, e é pouco provável que seja encontrado em outras partes do globo.

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Como o vírus surgiu Sabe-se que o HIV é originário de outro tipo muito semelhante de vírus, o SIV (Simian Immunodeficiency Virus, em inglês, ou Vírus da Imunideficiência Símia), que ataca especificamente algumas espécies de primatas. Não é de hoje, na verdade, que pesquisadores sabem que seres humanos podem contrair alguns tipos de vírus a partir de animais – um processo conhecido como zoonose. Segundo essa teoria, que é a mais aceita atualmente pela comunidade científica, em dado momento do século XX, que a Ciência ainda não consegue dizer qual é, o HIV se desenvolveu a partir do SIV, provavelmente após contato humano com o sangue de um macaco infectado em algum lugar na região oeste da África. Segundo a Teoria do Caçador, nome pelo qual essa tese ficou conhecida, um homem que vivia da caça matou e depois se alimentou da carne de um chimpanzé infectado pelo vírus da imunodeficiência em símios. Outra hipótese é a de que o tal caçador teve contato direto com o sangue infectado do animal, permitindo, assim, que o vírus adentrasse a sua corrente sanguínea – por meio de um corte, por exemplo. A partir daí, ainda de acordo com a teoria, o vírus teria se espalhado pela África e, depois, para outros continentes. Para a médica infectologista e gerente de Assistência Integral à Saúde do Centro de Referência e Treinamento DST/Aids de São Paulo, Denize Lotufo, depois do mapeamento genético do HIV ter sido completado, já não há mais dúvidas quanto à origem do vírus. Mas você pode se perguntar: por que o corpo do ca14


çador não combateu a infecção pelo SIV, evitando assim que o vírus sofresse mutação e se transformasse em HIV? Geralmente, é isso o que aconteceria, mas ocasionalmente o invasor pode se adaptar ao organismo do novo hospedeiro, levando à infecção. Um artigo publicado em 2004 no jornal médico The Lancet mostra que a transmissão de retrovírus de primatas para seres humanos continua acontecendo até os dias de hoje. Em um levantamento feito recentemente com 1099 indivíduos que vivem em Camarões, cerca de dez deles (o equivalente a 1%) está infectado pelo SFV (Simian Foamy Virus, ou Vírus Símio Espumante) – um vírus que, tal como o HIV, acreditava-se que só poderia acometer macacos e chimpanzés. E, assim como diz a Teoria do Caçador, a infecção com este vírus (que é muito comum em símios nascidos em cativeiro e, apesar de não causar sérios danos à saúde dos animais, pode deixá-los suscetíveis à infecção por outros tipos de vírus) por seres humanos provavelmente se deu após o consumo da carne de primatas infectados. A tese do caçador foi desenvolvida em 1999 por um grupo de pesquisadores da Universidade do Alabama, nos Estados Unidos. Em fevereiro daquele ano, eles anunciaram a descoberta de uma cepa do SIV com composição genética praticamente idêntica à do vírus HIV, identificada em uma amostra de DNA congelado de um chimpanzé da espécie P. t. troglodytes – bastante comum na região ocidental da África. As conclusões do estudo foram publicadas em 2001 na revista científica Nature após mais de dez anos de pesquisas. De acordo com os especialistas, os resultados alcançados 15


comprovam que os chimpanzés foram as vítimas do vírus precursor da Aids, tendo sido infectados simultaneamente por dois tipos diferentes de vírus causadores de imunodeficiências. Ocasionalmente, vírus diferentes podem se encontrar dentro da célula do hospedeiro, misturar seus materiais genéticos e, assim, dar origem a um novo tipo híbrido de vírus – num processo muito similar à reprodução sexual, que às vezes recebe o nome de “sexo viral”. Todas as teorias científicas acerca da origem da Aids sustentam pelo menos um aspecto em comum: a de que o HIV migrou de espécies e, com isso, acabou infectando também os seres humanos. Tendo em vista que até mesmo o SIV foi desenvolvido a partir do cruzamento de diferentes espécies animais até chegar aos chimpanzés, fica fácil entender por que é tão fácil para os vírus migrarem de um animal para outro. E os seres humanos, como animais que são, também são suscetíveis a essas mutações. Mas, apesar de a Teoria do Caçador ser a mais aceita atualmente, outras teses não podem ser totalmente descartadas. Mesmo as que já foram, ou as que não encontraram nenhum tipo de respaldo científico, por vezes resistem dentro do imaginário popular e nas páginas dos livros.

A Teoria da Vacina A Teoria da Vacina afirma que o HIV foi inicialmente transmitido durante um extenso programa de vacinação contra a poliomielite, uma doença viral infantil que antigamente matava inúmeras crianças em pouquíssimo tempo. 16


Pelo menos esta é a tese do jornalista Edward Hooper, que escreveu um livro chamado The River. Nele, o autor sugere que o HIV se espalhou a partir de um programa de vacinação no fim dos anos 50 que abrangeu países pobres da África, como o Congo Belga e Ruanda. Para ser produzida, a vacina contra pólio precisa ser mantida e cultivada no tecido de algum ser vivo. Segundo Hooper, esse cultivo aconteceu dentro do rim de um chimpanzé infectado pelo SIV, o que acabou contaminando a vacina – posteriormente aplicada em aproximadamente um milhão de crianças africanas. Ao longo dos anos, no entanto, a tese do jornalista foi perdendo força, principalmente porque as vacinas contra pólio eram aplicadas via oral, o que, para especialistas, seria insuficiente para que pudesse contaminar alguém com o vírus causador da Aids – ainda mais em proporções tão gigantescas. Hoje, sabe-se que o vírus precisa entrar diretamente na corrente sanguínea para que a infecção de fato ocorra, uma vez que o pH da saliva, ácido demais para o HIV, e os tecidos que revestem a boca e a garganta servem de barreira para o vírus. Em fevereiro de 2000, um ano depois do lançamento do livro, o Instituto Wistar da Filadélfia, uma das fábricas que ajudaram a produzir a vacina contra poliomielite na época, afirmou ter encontrado em seu depósito uma amostra da vacina usada no programa. Essa amostra foi testada e foi encontrado nenhum vestígio de HIV ou SIV em sua composição. Uma segunda análise confirmou que o tecido dos rins dos macacos utilizados para a produção da vacina não podia ser infectado por nenhum dos dois tipos de vírus. 17


A Teoria da Seringa Contaminada Esta é como uma extensão da teoria do caçador. Durante os anos de 1950, o uso de seringas descartáveis ficou conhecido por ser um meio barato e seguro de se administrar medicamentos por via intravenosa. No entanto, com a crescente necessidade de se tratar cada vez mais pacientes na África e com o número cada vez maior de programas médicos em todo o mundo, produzir um número suficientemente grande de seringas descartáveis (uma para cada aplicação) sairia extremamente caro. Por essa razão, as chances de uma mesma seringa ter sido reutilizada em diversos pacientes sem esterilização entre diferentes aplicações são muito altas. Bastava, portanto, que apenas uma seringa, que já tivesse sido aplicada em um paciente soropositivo, fosse reutilizada sem os cuidados necessários. Essa teoria, porém, não encontrou respaldo na comunidade científica internacional e tampouco houve estudos mais determinantes que comprovassem sua veracidade.

A Teoria do Colonialismo Esta teoria é uma das mais recentes a adentrar o debate a respeito da origem do vírus HIV e da Aids. Apesar de se basear na mesma premissa da teoria do caçador, a tese em questão explica com mais detalhes a forma com que a infecção pelo HIV se tornou epidêmica. Em 2000, o norte-americano Jim Moore, especialista em comportamentos de primatas, publicou um estudo no 18


qual relaciona a Aids ao colonialismo africano durante os séculos XIX e XX. Segundo ele, era comum que habitantes de diversos países colonizados por nações ricas europeias fossem obrigados a realizar trabalho forçado – muitas vezes sem condições básicas de higiene e com pouca comida para aguentar o dia. Somente esses fatores já seriam mais do que suficientes para causar sérios danos à saúde das pessoas, uma vez que condições precárias de subsistência enfraquecem o sistema imunológico, tornando o corpo suscetível a diversos tipos de infecções – as chamadas doenças oportunistas. Se algumas dessas pessoas por acaso acabaram se alimentando da carne de um macaco infectado com SIV – o que não seria incomum, de acordo com a cultura local –, o vírus poderia ser mais um agente externo a se aproveitar da baixa resistência dos moradores locais e, uma vez dentro do organismo, sofrer mutação para o HIV. Moore também revela em seu estudo que, para manter a mão de obra, o governo pode ter submetido muitos trabalhadores locais a tratamentos médicos com seringas não esterilizadas, o que também seria uma provável porta de entrada para o vírus causador da Aids. Outra característica levantada pela pesquisa é a de que era muito comum a presença de prostitutas nos campos de trabalho, como uma forma que as autoridades encontraram de fornecer prazer aos trabalhadores e evitar, assim, possíveis rebeliões. Todos esses fatores, somados, aumentariam exponencialmente as chances de uma pessoa contrair HIV, embora muitos deles tenham morrido antes mesmo de manifestar 19


quaisquer sintomas da Aids – em decorrência, principalmente, das péssimas condições de higiene e da presença de diversas outras doenças dentro dos campos de trabalho. Por causa disso, mesmo as pessoas que chegaram a desenvolver a doença não poderiam sequer ser identificadas como soropositivas, dado que todas as evidências de que aqueles “campos de concentração do colonialismo” existiram foram destruídas, incluindo registros e boletins médicos. Além disso, outro fator que fortalece a teoria de Jim Moore é de que os campos de trabalho da África colonial existiram durante o mesmo período em que pesquisadores acreditam que o vírus HIV tenha surgido em humanos, ou seja, no início do século XX.

A Teoria da Conspiração A teoria da conspiração acerca do surgimento do HIV também marca presença na gênese do vírus. Neste caso, apresenta-se em duas vertentes: a de que o vírus é uma conspiração por si só, e a de ele foi criado em laboratório para dizimar a população de negros e homossexuais em todo o mundo. Os defensores dessa teoria acreditam que o Special Cancer Virus Program (ou Programa Especial de Vírus Cancerígeno, em tradução livre), como foi batizado pelos autores da tese conspiratória, funcionaria como um programa biológico de extermínio, conduzido pelo governo federal dos Estados Unidos em parceria com a agência de segurança CIA em meados dos anos 70 e 80. Segundo essa corrente, o vírus HIV teria sido criado em laboratório para ser aplicado na corrente 20


sanguínea de milhares de pessoas ao redor do mundo durante o programa que pôs fim à infecção por varíola ou, ainda, em campanhas de vacinação contra hepatite B, destinadas, na época, exclusivamente a homens homossexuais. Como ocorre com toda teoria da conspiração, jamais foram apresentadas provas que sustentassem sua veracidade. Toda ela foi baseada somente em especulações e suposições. Da mesma forma, essa tese ignora evidências científicas que provaram a clara relação entre o SIV e o HIV, além do fato de que há registros médicos de pessoas infectadas com o vírus causador da Aids já nos anos 1950.

E quando a Teoria da Conspiração convence? “O HIV causa a Aids? O acrônimo Aids significa ‘Síndrome da Imunodeficiência Adquirida’. Agora, um vírus pode causar uma síndrome? Não. Um vírus pode causar uma doença”. Esse foi o discurso proferido pelo então presidente da África do Sul, Thabo Mbeki, no Congresso Nacional do país, em 2000, questionando os avanços científicos e a atuação das autoridades contra o avanço da epidemia da Aids em território africano. Mbeki é um dos seguidores da tese do bioquímico alemão Peter Duesberg, que sustenta até hoje que o HIV não causa a Aids e que a doença não é sequer contagiosa. Segundo o cientista, a verdadeira causa da síndrome seria o uso contínuo de medicamentos e a má nutrição das pessoas. Para ele, quando os médicos receitam um antirretroviral para combater o vírus da Aids no corpo de um paciente, na verdade eles 21


estão sentenciando aquela pessoa a desenvolver a doença. Essa “teoria da conspiração”, legitimada à época por um cientista de renome e pelo maior representante executivo do país africano, colocou fogo na discussão. Convencido pelas ideias dissonantes de Duesberg, Thabo Mbeki as implementou no programa de combate à Aids da África do Sul. O resultado foi catastrófico: um estudo promovido pela Universidade de Harvard, nos Estados Unidos, apontou que o retrocesso na política de combate à doença no país resultou em aproximadamente 330 mil mortes.

Transmissão: passe livre para o vírus Como a epidemia da Aids se tornou uma pandemia? Por definição, uma epidemia consiste na propagação de uma doença infecciosa e transmissível, desde seu local de origem até outras regiões ou comunidades, caracterizando, assim, o chamado surto epidêmico. Quando a disseminação da doença ocorre em larga escala, chegando a diferentes continentes e com potencial para atingir todo o planeta, ela passa a ser considerada uma pandemia. Foi o que aconteceu com a Aids no início dos anos 80. Com o tempo, cientistas procuraram identificar os principais motivos pelos quais o vírus se espalhou tão rapidamente pelo globo. Após anos de pesquisas, eles chegaram a três principais fatores: viagens internacionais, o aumento da frequência de transfusões de sangue no mundo e o uso de drogas injetáveis. Mas, apesar de já terem sido notificados casos de HIV antes do estopim, no início da década de 80, foi somente quando o vírus chegou aos Estados Unidos que o mundo finalmente conheceu o que de fato é a Aids e os efeitos que ela provocava. 22


O estigma homossexual No início, ninguém sabia do que se tratava. Pessoas adoeciam e morriam em um piscar de olhos. Floriculturas, salões de beleza, lojas fechavam e amigos desapareciam da noite para o dia e ninguém sabia dizer o que exatamente estava acontecendo. Em 1981, quando os primeiros casos da doença começaram a aparecer, a imprensa classificou-a como “peste gay” ou “câncer gay”, já que, até aquele momento, a Aids parecia só afetar homens homossexuais. O The New York Times, um dos maiores jornais diários em circulação nos Estados Unidos, publicou em 1981 uma notícia intitulada Rare câncer seen in 41 homosexuals ou “Câncer raro observado em 41 homossexuais”, em tradução livre. No ano seguinte, o mesmo jornal publicou outra notícia chocante: New homosexual disorder worries health officials ou “Nova doença homossexual preocupa agentes de saúde”, em que citava a Aids como GRID - Gay-Related Immunodeficiency Disease (Doença da Imunodeficiência Relacionada a Gays). Foi somente em janeiro de 1983, em Nova Iorque, que foram confirmados os primeiros casos de Aids em mulheres que aparentemente não haviam sido expostas a nenhum fator de risco. Esse foi o primeiro indício de que a doença não era exclusividade de homens homossexuais e/ou de quem tivesse tido contato com eles. No entanto, mesmo quando a doença migrou para outros grupos de pessoas, o estigma sobre a população de homens gays continuou a existir e eles não deixaram de ser encarados como o principal vetor da Aids, mesmo com todos os avanços nas pesquisas que desmentiam a relação direta entre homossexualidade e a doença. 23


Ainda em 1983, aqui no Brasil, o jornal Notícias Populares trouxe a chamada “Peste Gay já apavora São Paulo”, acompanhada pela linha fina: “É a pior e mais terrível doença do século - dois brasileiros mortos”. O paralelo entre a doença e os homens homossexuais continuava a ser absorvido pela população por meio da imprensa. A infectologista Denize Lotufo, que atende soropositivos desde os anos de 1980, afirma que “no início da epidemia, a primeira população verificada foram os homens que faziam sexo com homens, e houve todo um trabalho para desconstruir esse estigma”.

A caça aos gays

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Em 1984, um homem e uma mulher foram colocados em observação em um hospital de Sydney, na Austrália, com suspeita de Aids. Posteriormente, constatou-se que eles e outras quarenta e duas pessoas haviam contraído o vírus HIV por meio de transfusões de sangue. Foi apontado, também, que o Banco Nacional de Sangue, administrado pela Cruz Vermelha australiana, recebeu sangue de um doador soropositivo. O fato causou grande repercussão no país e foi tema de uma matéria investigativa pelo canal ABC TV News, rede de televisão local, em 30 de julho de 1984. A resposta da população foi imediata e brutal: “Povo de Sydney caça os gays por temor à Aids” foi o título de uma matéria na seção internacional do periódico carioca O Dia, de 20 de novembro de 1984. As autoridades australianas foram obrigadas a emitir um comunicado alertando que um número maior de agressões a homossexuais poderia ocorrer nos dias seguintes.


Por causa desse episódio, a Austrália foi um dos primeiros países no mundo a realizar, a partir de 1985, a testagem de anticorpos contra o vírus HIV. Graças às ações precoces de combate à Aids, hoje o país é exemplo internacional no enfrentamento da doença. De acordo com levantamento da Federação Australiana de Organizações da Aids (AFAO, na sigla em inglês), existem aproximadamente 27.150 pessoas vivendo com HIV no país – o equivalente a pouco mais de 0,1% da população, que é de 23,13 milhões de habitantes, segundo dados demográficos mais recentes. Em 2014, foram registrados apenas 1.081 novos casos de infecção no país e os números só tendem a cair.

A crise das saunas de São Francisco Também em 1984, do outro lado do Oceano Pacífico, os Estados Unidos passavam por um episódio semelhante de incertezas, medo e ódio aos homossexuais. Em 9 de outubro, o Diretor de Saúde Pública de São Francisco ordenou que todas as saunas gays da cidade fechassem suas portas imediatamente, sob o argumento de que os estabelecimentos estariam “fomentando doenças e morte” ao permitir atos sexuais indiscriminados que poderiam contribuir para o contágio do HIV. São Francisco, assim como diversas regiões do globo, enfrentava o aumento do número de infecções por HIV entre a população local, tendo ocorrido dezoito mortes apenas no mês anterior à ordem. Os donos dos estabelecimentos, porém, se recusaram a fechar as portas, e foi iniciado um embate judicial entre o 25


governo da cidade de São Francisco e os proprietários das saunas, apoiados pelo movimento LGBT. Estes últimos acusavam o governo de preconceito contra os homossexuais que frequentavam as saunas da cidade. Por fim, foi decidido que os locais não seriam fechados, mas que cada estabelecimento deveria ter um profissional cuja principal responsabilidade seria fiscalizar os frequentadores, a fim de evitar “comportamentos de alto risco”.

HIV x homossexualidade

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A relação do HIV com os homossexuais sempre foi nebulosa, e a escassez de informações e o preconceito ajudavam a agravar o cenário contra os gays. Em toda a história do HIV, no mundo inteiro, o número de infecções entre homens que fazem sexo com homens – não são necessariamente homossexuais – sempre foi maior ao de infecções entre heterossexuais. Segundo o relatório GAP Report, divulgado pela UNAIDS em 2014, homens que fazem sexo com homens (representados pela sigla HSH) têm 19 vezes mais chances de serem infectados com o HIV do que a população em geral. No Brasil, por exemplo, estima-se que cerca de 11% dos homossexuais sejam soropositivos. Há algumas considerações importantes sobre esse curioso fato: o risco de transmissão de HIV durante a prática do sexo anal é cerca de dezoito vezes maior do que durante a prática do sexo vaginal. Enquanto estudos sugerem que o sexo vaginal desprotegido tenha 0,08% de chance de infecção, no sexo anal esta porcentagem é de 1,4%. Em uma pesquisa feita em 2012 pela UNAIDS, apro-


ximadamente 60% dos homens brasileiros que fazem sexo com homens relataram ter usado camisinha durante sua última relação sexual. Essa porcentagem está na média do índice dos demais países da América Latina. A discriminação e a exclusão social dos homossexuais também impedem que essa parcela da população tenha acesso à prevenção do mesmo modo que os demais grupos sociais. Os jovens homossexuais têm ainda mais dificuldades que os mais velhos: segundo um estudo da Universidade de São Paulo (USP), homossexuais mais jovens sofrem mais com os efeitos da homofobia a medida que declaram publicamente sua orientação sexual, o que faz com que eles adotem comportamentos considerados de alto risco para o HIV (uso de drogas injetáveis, prostituição e exposição recorrente ao vírus por meio de sexo desprotegido, para citar alguns exemplos). Essa mesma pesquisa, conduzida pela Faculdade de Saúde Pública da USP, mostra que, no Brasil, aproximadamente 70% dos homens homossexuais assumidos já sofrem algum tipo de retaliação ou humilhação por causa de sua orientação sexual. Segundo a UNAIDS, enquanto a prevalência mundial do HIV em HSH é de 3,7%, a prevalência entre essa população mais jovem aumenta para 4,2%.

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CAPÍTULO 2

FATOR BIOLÓGICO, FATOR SOCIAL O perfil de um invasor O estigma que rapidamente caiu sobre os homossexuais, a exclusão dos soropositivos das relações sociais e o medo que pairou sobre a população mundial nos anos 1980 foram, em parte, causados pelas dúvidas sobre as formas de transmissão do HIV. Apenas gays poderiam transmitir a doença? Seria possível pegar Aids por um mísero beijo na bochecha ou um mergulho na piscina? Após mais de trinta anos de estudos acerca da dinâmica do vírus do HIV sobre o corpo humano, mitos foram desconstruídos e as verdadeiras formas de transmissão vieram à tona, pelo menos no meio acadêmico.

Relações sexuais desprotegidas Sejam elas de forma anal, vaginal ou oral, em que haja contato com sangue, sêmen ou outros fluidos onde o HIV está presente, as relações sexuais são a principal e mais comum forma de transmissão do vírus. No caso do homem soropositivo, o HIV está presente 29


no líquido seminal – que lubrifica o pênis durante o sexo – e no próprio sêmen. Na mulher, está presente nos fluidos vaginais. Em ambos os casos, aparece também no sangue proveniente das fissuras e pequenos machucados decorrentes da fricção sexual, que podem acontecer principalmente durante o sexo anal. Homens que têm o pênis não-circuncidado correm um risco cerca de 60% maior de adquirir HIV, já que as células dessa região da pele que envolve o órgão genital masculino são um canal de entrada para o invasor. A tabela abaixo mostra a escala de risco de acordo com o tipo de relação sexual. RISCO POR TIPO DE RELAÇÃO SEXUAL

ORAL

VAGINAL

ANAL

De mãe para filho A mãe soropositiva pode transmitir o HIV para o bebê durante a gestação, parto ou amamentação. A essa forma de transmissão dá-se o nome de transmissão vertical. Segundo o Boletim Epidemiológico HIV/Aids, divulgado pelo Ministério da Saúde em 2014, estima-se que ocorram cerca de 12 mil novos casos desse tipo por ano no Brasil. Mulheres soropositivas têm um risco maior de complicações na gestação, como parto prematuro, comprometi30


mento do crescimento fetal e aborto espontâneo. O risco de complicações é maior em mulheres que estão com o sistema imunológico comprometido, por isso, quando descobrem que estão grávidas, se ainda não estavam fazendo tratamento, as futuras mães são indicadas a fazer uso de antirretrovirais logo nas primeiras semanas de gestação. O uso da medicação não pode ser interrompido em hipótese alguma. É muito importante que a mulher esteja com a carga viral baixa e o índice de CD4 no sangue elevado para que não haja riscos maiores de transmissão para o bebê. Ao longo da gravidez, ela deve realizar exames periódicos para mensurar a quantidade de vírus na corrente sanguínea e avaliar se os antirretrovirais estão fazendo efeito. Próximo ao parto, o médico infectologista prescreverá o uso de AZT – a primeira droga a ser utilizada no combate ao HIV – para reduzir a probabilidade de transmissão vertical. Dependendo da carga viral presente no sangue da mãe, o médico avaliará qual tipo de parto é o mais indicado. Geralmente, opta-se pela cesariana, pois ela reduz o tempo de contato do bebê com secreções maternas. Além disso, o rompimento da bolsa e as contrações podem facilitar a troca de fluidos entre mãe e bebê, por isso os médicos preferem evitá-los sempre que possível. Logo depois do parto, o bebê também recebe a medicação por AZT para diminuir o risco de transmissão. O tratamento é iniciado nas primeiras duas horas após o nascimento e é mantida por pelo menos seis semanas, período em 31


que não se sabe se o bebê foi infectado ou não. Dúvidas sobre amamentação são frequentes. O Ministério da Saúde, porém, recomenda a suspensão total do aleitamento materno e até a inibição da produção de leite, utilizando faixas ou sutiãs mais apertados. Nesses casos, o bebê deverá se alimentar por meio da fórmula infantil, disponibilizada de graça para todas as mães que não podem amamentar. De 2009 a 2013, o número de novas infecções por HIV em crianças – cuja maioria se dá pela transmissão vertical – caiu drasticamente em todo o mundo, denotando uma diminuição de 43%. De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), aproximadamente 1,4 milhão de mulheres soropositivas dão à luz em todo o mundo. Sem tratamento, elas têm de 15 a 45% de chance de transmitir o vírus para a criança. No entanto, esse risco pode ser reduzido a apenas 1% se houver adesão ao tratamento com medicamentos antirretrovirais. Apesar disso, em muitos países, principalmente africanos, a oferta dessa medicação não é universal e integral, e em 2014 cerca de 240 mil crianças nasceram já infectadas pelo vírus causador da Aids. Por causa desses e outros fatores estruturais, somente na Nigéria houve aproximadamente 50 mil novas infecções em crianças apenas em 2013. Por outro lado, em junho de 2015, Cuba tornou-se o primeiro país do mundo a eliminar totalmente a infecção de HIV e sífilis de mãe para filho. O acesso universal e gratuito ao tratamento, o maior número de pré-natais antecipados, maior número de testagens realizadas entre a população, aumento no número de cesáreas necessárias e campanhas de substituição da amamentação visando mães soropositivas foram as principais razões para o sucesso das políticas públicas cubanas. 32


Uso compartilhado de seringas contaminadas Hoje, sabe-se que não se pode contrair HIV pelo ar ou pelo compartilhamento de copos ou toalhas, por exemplo, mas engana-se quem pensa que o HIV não consegue sobreviver fora do corpo humano. Ele consegue, mas por muito pouco tempo. De acordo com o Departamento de DST, Aids e Hepatites Virais, fatores como a temperatura externa e a umidade do ambiente influenciam no quanto o vírus permanecerá ativo fora do organismo do hospedeiro. Estima-se, porém, que esse tempo varie de 30 a 60 minutos. É por essa razão que usuários de drogas injetáveis se expõem à contaminação pelo HIV. O compartilhamento de seringas acontece num espaço de tempo muito curto, muitas vezes menor que um minuto, e, portanto, insuficiente para que o vírus não sobreviva fora do corpo. Outros instrumentos perfurantes ou cortantes que não foram devidamente esterilizados também são fontes de contágio. Segundo o Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime, aproximadamente 10% das novas infecções por HIV no mundo são ocasionadas durante a injeção de drogas por meio de seringas contaminadas. Ao eliminar a África Subsaariana dessa contagem, a porcentagem sobe para 30%.

Transfusão de sangue contaminado com o HIV Essa forma de contágio era mais comum no início da epidemia, quando os bancos de sangue ao redor do mundo não estavam preparados para realizar a testagem correta 33


contra o HIV. Esse quadro foi mudando pouco a pouco ao longo das décadas à medida em que o processo de testagem se tornou mais rígido e o sangue disponível nos bancos de sangue, mais seguro. Durante o período de incerteza da qualidade dos bancos de sangue, os hemofílicos – nome dado a pacientes diagnosticados com hemofilia, uma doença genética que impede a coagulação do sangue e favorece hemorragias – fizeram parte de um dos grupos da população fortemente expostos à doença. Isso porque na época do surgimento e alastramento do vírus causador da Aids, o principal tratamento da hemofilia eram as transfusões periódicas de sangue, que traziam o risco de contaminação para os pacientes. Entre 1988 e 1997, o Brasil perdeu três irmãos e referências nacionais para a Aids. O sociólogo Betinho, o cartunista Henfil e o músico Chico Mario, todos hemofílicos, contraíram a doença durante transfusões de sangue e faleceram, vítimas dos males que acometeram seus corpos fragilizados pela ação do HIV.

Algo está errado O HIV é um lentivírus, ou seja, um tipo de vírus que demora para se manifestar no organismo que infecta. Esse tempo pode demorar anos, dependendo da pessoa. Nesse período em que ainda não se manifestou, o vírus tanto pode estar incubado como pode multiplicar-se lentamente na corrente sanguínea, atacando as células de defesa e comprometendo o sistema imunológico. 34


Fase 1: o prenúncio de uma infecção Entre duas e quatro semanas após a infecção, as pessoas costumam desenvolver sintomas muito parecidos com os de uma gripe comum, como febre, dor de garganta e fadiga. Estes sinais nada mais são do que uma reação do corpo à presença de um agente invasor no organismo, como um vírus ou bactéria. Assim como vêm, os sintomas vão embora, e por isso são facilmente confundidos com um simples resfriado. Além disso, nessa primeira fase, é muito difícil constatar a presença do HIV no organismo, mesmo que a pessoa vá ao médico. Isto se dá porque o paciente pode estar no período de janela imunológica. Nessa etapa da infecção, o corpo ainda não fabricou anticorpos suficientes para combater o invasor e, como os exames de diagnóstico do HIV se respaldam fundamentalmente na quantidade de células de defesa produzidas contra a ação do vírus, não é possível identificar a sua presença no organismo durante esse período de tempo. Apesar disso, o indivíduo que carrega o HIV pode transmiti -lo em qualquer estágio da infecção, inclusive nesta fase inicial.

Fase 2: à espreita para atacar Depois dos primeiros efeitos da ação do vírus no organismo, que costumam ser genéricos e passageiros, o HIV permanece latente dentro do corpo. Isso significa que, apesar de estar presente, o vírus não se manifesta e a pessoa não demonstra qualquer tipo de sintoma. Este período costuma variar de paciente para paciente, mas geralmente dura de três 35


a dez anos. Nessa fase, as defesas do corpo tentam, silenciosa e inutilmente, combater a presença do HIV no organismo. Resistente, o vírus não cede à ação dos anticorpos e reage, atacando e comprometendo cada vez mais as células CD4, que, junto com outras, ajudam a manter o nosso corpo livre de infecções e outros problemas. Embora essa segunda fase seja assintomática, o paciente já não está mais dentro da janela imunológica, de modo que o corpo já conseguiu produzir quantidade suficiente de anticorpos para que o vírus possa ser denunciado em exames de sangue.

Fase 3: o corpo entra em pane Em determinado momento, após o vírus permanecer fisicamente imperceptível no corpo durante variado período de tempo, o sistema imunológico começa a dar os primeiros sinais de pane. De tanto apanhar, as defesas do corpo passam a não funcionar como deveriam, e o organismo do paciente começa a ficar mais suscetível a doenças que, em um corpo mais saudável, não teriam chances de penetração. É nessa fase que o HIV passa a se reproduzir mais rapidamente, podendo sofrer mutações que aumentam sua patogenia.

Fase 4: e a Aids se instala Com o sistema imunológico já severamente debilitado e a corrente sanguínea infestada pelo HIV, a fragilidade do paciente torna mortais as doenças que outrora seriam passa36


geiras e que causariam poucos danos. Uma simples gripe, que antes poderia ser tratada com medicamentos de venda livre e no máximo alguns dias de repouso, de repente pode virar uma pneumonia. Doenças que geralmente aparecem em pessoas mais velhas ou idosas, como glaucoma, catarata e herpes zóster, de repente são diagnosticadas em pacientes jovens. Essa fase, em que o organismo está completamente vulnerável a qualquer tipo de infecção, é conhecida como Aids. As complicações decorrentes de um sistema imunológico suprimido são conhecidas como doenças oportunistas. Elas recebem este nome porque se aproveitam da fragilidade das células de defesa para penetrar o organismo. As doenças que comumente acometem os soropositivos nesse estágio da infecção são: tuberculose, pneumonia, toxoplasmose, Sarcoma de Karposi (espécie de câncer que afeta os vasos sanguíneos e manifesta-se por meio de manchas na pele), neuropatias graves, meningite, linfomas, entre outras.

Os mais vulneráveis Priscilla aguarda pacientemente na calçada do cruzamento da Av. Santa Eulália com a Rua Voluntários da Pátria em Santana, bairro da zona norte de São Paulo. Está muito bem arrumada: usa um belo salto vermelho-escarlate, uma minissaia colada preta e um top que orna com o sapato. As roupas curtas exibem o corpo seminu, iluminado mais pelo reflexo vermelho do semáforo do que pelo fraco brilho da lua. São onze e meia da noite. Espera a oportunidade de ganhar o dinheiro que usará 37


nas compras de supermercado no dia seguinte e se lembra de uma situação humilhante que passou um mês antes, quando se candidatou para trabalhar como cabeleireira em um salão de beleza próximo à sua casa. Além de rejeitada pelo dono do estabelecimento, ouviu que não era “mulher de verdade” e que assustaria as clientes. Priscilla é uma mulher transexual. Sua memória se esvai abruptamente quando ela escuta a buzina do carro que acabara de parar à sua frente. Ela entra no veículo na companhia do homem, que nunca vira antes, e parte. Enquanto isso, do outro lado da cidade, no Jardim Ângela, Jorge está no casebre alugado onde mora com a esposa e os três filhos pequenos. Como a família inteira dorme no mesmo quarto, ele vai até o pequeno e apertado banheiro para usar a droga. Ao levantar a manga da camisa e espetar-se com a agulha da seringa, sente uma imediata sensação de alívio. Porém, ao olhar o espelho e ver no reflexo o novo furo em seu braço, que compõe o mosaico de feridas – algumas mais inflamadas do que outras –, Jorge lembra que está em casa e pode magoar a esposa com o que está fazendo. Talvez devesse ter feito isso na casa do melhor amigo, Jair, que também é viciado em heroína. “Poderia até descolar as seringas de graça”, pensa, lembrando que o parceiro trabalha numa farmácia do bairro e divide com ele as agulhas que furta do serviço. Num surto de exaltação causada pela droga, sente que está exatamente onde deveria estar, e que não precisa do amigo e nem da esposa, apenas da droga que agora corre por suas veias. Priscilla e Jorge, apesar de viverem vidas muito dife38


rentes, têm muito em comum. Ambos representam realidades comuns não só a moradores de São Paulo, como também as de pessoas que vivem em muitos outros lugares do Brasil e também do mundo. Quando o assunto é HIV, os dois também se unem: mulheres transexuais e usuários de drogas injetáveis, juntamente com profissionais do sexo, homens que fazem sexo com homens e presidiários, fazem parte das cinco principais populações-chave definidas pela Organização Mundial da Saúde (OMS) em julho de 2014, às vésperas da XX Conferência Internacional de Aids, que aconteceu em Melbourne, na Austrália. As populações-chave nada mais são do que grupos formados por pessoas com características, realidades e fatores socioculturais e econômicos semelhantes entre si e que as colocam em situação de maior vulnerabilidade ao HIV. Ao todo, porém, a UNAIDS – Programa das Nações Unidas para HIV e Aids – enumera doze populações distintas que, independentemente de sorologia, demandam atenção especial das autoridades mundiais de saúde pública em decorrência de diversos fatores. Elas são: pessoas que já vivem com o vírus HIV, mulheres jovens ou adolescentes, população prisional, migrantes, usuários de droga injetável, homens homossexuais jovens e outros homens que fazem sexo com homens, profissionais do sexo, população trans, crianças e gestantes vivendo com HIV, exilados e refugiados de guerras ou conflitos, pessoas com deficiência e população acima dos 50 anos. Atualmente, sabe-se que das 35 milhões de pessoas que vivem com HIV em todo o mundo, 19 milhões delas desconhecem seu status sorológico – o equivalente a cerca 39


de 54%. Não conhecer sua sorologia significa não ter acesso ao tratamento adequado e a condições ideais de prevenção e enfrentamento. Essa realidade, embora prejudique a todos, recai principalmente sobre os grupos de maior vulnerabilidade ao vírus causador da Aids.

O HIV em mulheres Todos os anos, são registrados aproximadamente 380 mil novos casos de HIV entre mulheres jovens. Cerca de 15% das que já estão infectadas com o vírus têm entre 15 e 24 anos de idade. Dessas, 80% vivem na África Subsaariana. Além disso, a prevalência de HIV entre profissionais do sexo – em sua maioria mulheres – é cerca de doze vezes maior do que a da população geral. Mas a vulnerabilidade feminina ao vírus da Aids não é exclusiva desses grupos. A desigualdade de gênero e a consequente violência contra as mulheres em todo o mundo são os principais fatores que explicam por que o HIV ainda é pauta dentro de movimentos feministas. Um estudo da OMS de 2005 revelou que cerca de 45% das primeiras relações sexuais de mulheres adolescentes, em algumas regiões do globo, são forçadas. Sem contar as diversas pesquisas elucidando que estupro é uma das principais causas da incidência de HIV e de gravidez indesejada entre mulheres africanas, como o relatório “Faces de uma Geração Livre da Aids na África Subsaariana”, publicado em 2015 pela UNAIDS. Além disso, o número de novos casos entre mulheres 40


heterossexuais em relacionamentos estáveis cresceu exponencialmente nos últimos anos. Do total de ocorrências de HIV notificadas entre mulheres no Brasil em 2012, segundo dados divulgados pelo Sistema de Informações de Agravos de Notificação (Sinan) no final de 2013, 87% decorreram de relações heterossexuais com pessoas infectadas com o HIV. Esse fato aponta para a negligência no uso do preservativo entre casais heterossexuais que estão em relações estáveis e monogâmicas, principalmente casamentos que já duram anos. Segundo a epidemiologista e presidente da Associação Para Saúde Socioeducativa, Irene Adams, que publicou o primeiro trabalho sobre a relação entre mulheres e Aids num congresso internacional em 1989, pedir para que os parceiros usem camisinha ainda é um problema para muitas mulheres, mesmo que desconfiem que eles estejam sendo infiéis. Por medo de serem agredidas ou acusadas elas mesmas de infidelidade, muitas mulheres se calam e consentem em fazer sexo desprotegido – isso quando a violência sexual não ocorre até mesmo dentro de casa, praticada pelos próprios parceiros. A desigualdade de salários é um outro fator a ser considerado, uma vez que muitas mulheres, por não terem um emprego formal ou por não ganharem remunerações na mesma faixa salarial dos homens, dependem de seus maridos para prover seu sustento. A crença antiga de que HIV só pode ser transmitido por meio do sexo entre homossexuais também contribui para o não uso de preservativos em relações heterossexuais e, consequentemente, para o aumento do número de casos entre mulheres. 41


Muito além de mera questão de saúde Apesar de o HIV e a própria Aids serem primariamente um problema de saúde, questões estruturais na sociedade facilitam a contaminação e expõem certas populações a um risco maior de contágio. Segundo a ANTRA (Articulação Nacional de Travestis e Transexuais), cerca de 90% das travestis e transexuais trabalham com prostituição no Brasil. Essa elevada porcentagem tem ligação direta com as restrições sociais sofridas por essa população, como a rejeição da própria família, a falta de acesso à educação e ao emprego formal, a transfobia (nome dado à discriminação praticada contra a população trans) e a violência a que essas pessoas são submetidas, entre outros motivos. Ao voltar-se para a prostituição, esses grupos se expõem a múltiplos parceiros sexuais e potencializam o risco de infecção por HIV e outras doenças venéreas. Para Denize Lotufo, infectologista e gerente de Assistência Integral à Saúde do Centro de Referência de Treinamento DST/ Aids de São Paulo, o profissional do sexo se expõe muito mais, seja porque o preservativo se rompeu, seja porque o cliente pagou mais para não usar a proteção. Não à toa, as cinco populações-chave foram definidas pela OMS como diretrizes de ação para todo o mundo – do outro lado do Atlântico, na África, berço da humanidade e provável berço da Aids, estão alguns dos países mais afetados pela epidemia da doença. Se traçarmos uma linha reta paralela ao Equador partindo do Brasil rumo ao continente africano, por exemplo, 42


poderíamos ligar Salvador – cidade que tinha, em 2012, 32 soropositivos a cada 100 mil habitantes – a Angola, país subsaariano também de língua portuguesa, mas que apresenta uma situação muito mais crítica, em que aproximadamente 1,9% da população vive com HIV. Angola figura ao lado de outros países, como Botsuana, Camarões, Etiópia e Gana, onde pelo menos 1% da população é soropositiva. Esses também são países em que a homossexualidade é considerada crime, o que pressiona essa população a viver na clandestinidade, dificultando, assim, o acesso ao tratamento adequado. Ao todo, 78 países em todo o mundo possuem leis que criminalizam a homossexualidade, sendo que sete deles aplicam a pena de morte para homens “acusados” de serem gays. Em 2013, Camarões foi palco do assassinato do jornalista e ativista dos direitos LGBT Eric Ohena Lembembe. Também diretor da Fundação da Aids Camaronense, ele foi torturado e encontrado morto em sua casa após amigos próximos tentarem contato com ele por dois dias sem sucesso. Segundo um relatório divulgado mundialmente graças aos seus esforços como líder e militante LGBT – coincidentemente no ano de sua morte –, 28 pessoas foram presas em Camarões por crimes relacionados à conduta homossexual entre 2010 e 2013. Além da criminalização da homossexualidade em diversos países, a discriminação, o estigma e a exclusão de homossexuais em todo o mundo também são fatores impeditivos para que ações de prevenção atinjam seus objetivos e levem informações importantes a esse grupo de tamanha vulnerabilidade. Em razão disso, a UNAIDS estima que ho43


mens gays têm 19 vezes mais chances de contrair HIV do que a população de modo geral. Soma-se a isso o fato de que o sexo anal, que é a prática sexual penetrativa mais comum entre homossexuais, seja a que mais apresenta riscos de infecção pelo vírus, cientificamente falando. Tomando como exemplo os homens que fazem sexo com homens, a UNAIDS também fez um levantamento das principais preocupações dessa população, nas quais fica clara a relação entre as limitações sociais e a dificuldade em se proteger do vírus. As frases a seguir são sintomáticas e recorrentes: “Se minha família souber que eu sou gay, serei expulso de casa”; “meu chefe e meus colegas fazem piadas de homossexuais”, e “não quero ser preso, por isso evito perguntar ao meu médico sobre minha saúde” (esta última, mais específica dos países que criminalizam a homossexualidade). É importante ressaltar que a prevalência de determinada população-chave varia de acordo com as realidades social, política e econômica de cada país, as quais se refletem diretamente em suas políticas públicas de saúde. Apesar dessas variações, as cinco principais populações definidas pela OMS devem ser sempre consideradas um ponto de atenção, independentemente do local e do contexto sociocultural ou econômico.

O HIV no sistema prisional Estima-se que dentro de penitenciárias masculinas a incidência de HIV seja até 50% maior do que a da população geral. Para a UNAIDS, a principal forma de transmissão do vírus entre presidiários é por meio do compartilhamento de 44


seringas contaminadas. Além disso, ainda segundo a instituição, aproximadamente de 56% a 90% dos usuários de droga injetável poderão ser presos no futuro. A falta de investimentos no cuidado da saúde de presidiários é um problema global e o principal motivo pelo qual a população prisional foi incluída pela OMS como uma das cinco populações-chave para HIV. A superlotação dos presídios e a consequente violação dos direitos humanos das pessoas que estão encarceradas também são fatores a serem levados em consideração. Em pelo menos 16 países, segundo relatório oficial divulgado pelo órgão, a população dos presídios de um modo geral está 200% acima da capacidade de lotação. Apesar de muitos países da Europa, Ásia Central e Oceania, além do Canadá, Irã, Estados Unidos e África do Sul fornecerem preservativos para a população de presidiários, a ocorrência de abusos sexuais e relações desprotegidas entre os presos é grande e tem facilitado a transmissão do HIV dentro das unidades prisionais – cerca de 4% a 5% dos presidiários já foram vítimas de algum tipo de violência sexual, e de 1% a 2% já foram estuprados, de acordo com a UNAIDS. No entanto, acredita-se que a prática sexual entre homens presos seja muito maior do que é, de fato, reportada. O medo de retaliações, homofobia e até o receio de ter a pena acrescida – principalmente em países onde a homossexualidade é crime – são os principais motivos que levam presidiários a não falarem publica e abertamente sobre suas práticas sexuais dentro das prisões. 45


Pessoas em constante movimento Quando um número muito grande de pessoas se desloca, as doenças também vão sendo disseminadas. Pelo menos é o que aponta um levantamento feito pela Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids (ABIA). Segundo a entidade, aproximadamente 125 milhões de pessoas em todo o mundo são trabalhadores sazonais ou refugiados que vivem longe de sua terra natal. Outros milhões são migrantes que saem voluntariamente das áreas rurais de seus países rumo aos centros urbanos em busca de novas oportunidades de emprego, estudo ou segurança. Esse cenário de grande mobilidade é, para a ABIA, um fator que coloca milhões de pessoas em todo o mundo em situação de vulnerabilidade a diversas doenças e problemas de saúde, a exemplo do HIV, contribuindo, ainda, para disseminar a epidemia. Na África Ocidental, por exemplo, os níveis mais elevados de HIV estão nas áreas com altas taxas de migração. Já na Índia, o número de infecções pelo HIV entre trabalhadores da área de transportes é 20 vezes mais elevado do que entre a população geral. A falta de acesso à informação e a recursos para praticar sexo seguro são dois dos principais fatores que tornam essas populações vulneráveis à infecção pelo vírus causador da Aids. Além disso, o levantamento mostra que migrantes e refugiados têm mais probabilidade de fazer sexo desprotegido com maior número de pessoas por causa das condições em que vivem, muito longe de serem consideradas ideais – o que também contribui para o cenário epidêmico. 46


CAPÍTULO 3

AIDS E A LEGISLAÇÃO Enfim, protegidos Em 2 de junho de 2014, a presidente Dilma Rousseff sancionou a Lei nº 12.984, proposta originalmente pela senadora Serys Slhessarenko e válida para todo o território brasileiro., que define como crime a “discriminação dos portadores do vírus da imunodeficiência humana (HIV) e doentes da Aids.” A necessidade de criminalizar aqueles que se opõem, por exemplo, à contratação de profissionais ou à admissão de crianças em escolas só pelo fato de serem portadores do vírus denota a ignorância que ainda permeia a sociedade. Ignorância e, vale ressaltar, preconceito, que se traduzem em empregadores e educadores com ideias equivadas e/ou desconhecimento sobre o assunto. Para citar apenas dois exemplos: não raro, o mercado formal de trabalho barra a contratação do soropositivo por acreditar que seja menos produtivo do que os demais funcionários. Já na área de educação, instituições de ensino simplesmente não sabem lidar com o aluno que tem o vírus do HIV e dificultam seu ingresso na instituição. A espera de mais de trinta anos para que os soropositivos fossem enfim protegidos da discriminação social pela 47


Justiça é preocupante. Como parte da histeria generalizada que acometeu o mundo nos anos 1980, os governos concentraram seus esforços em medidas direcionadas à contenção do vírus e mantiveram em segundo plano as ações para assegurar os direitos daqueles que já haviam sido “vitimizados” pela epidemia incurável.

As primeiras mudanças na legislação Em 1988, o Ministério do Trabalho instituiu a CIPA Campanha Interna de Prevenção da Aids, com o objetivo de realizar palestras e discussões sobre a prevenção do HIV nas empresas públicas e privadas do Brasil. Dessa forma, o tema foi inserido na SIPAT – as Semana Interna de Prevenção de Acidentes de Trabalho, realizada anualmente nas companhias. Ainda assim, a resistência das empresas em contratar soropositivos, seja pela crença de que eles sejam menos produtivos, seja em razão da simples fobia do vírus - ambas infundadas - levou os Ministros de Estado da Saúde e do Trabalho e da Administração a instituírem, em 1992, a proibição da exigência do teste de sorologia do vírus da imunodeficiência adquirida nos exames profissionais pré-admissionais e periódicos. Esse foi o primeiro passo para proteger os direitos dos soropositivos no âmbito profissional. A portaria deixa claro que “a sorologia positiva para o vírus da imunodeficiência adquirida (HIV) em si não acarreta prejuízo da capacidade laborativa de seu portador” e que “os convívios social e profissional com portadores do vírus não configuram situações de risco”. 48


No SUS, a esperança para os soropositivos Em 1988, entra em vigor a nova Constituição Federal brasileira que, entre as mudanças em diversos âmbitos, trouxe a criação do Sistema Único de Saúde (SUS), descrito como “um sistema ímpar no mundo, que garante acesso integral, universal e igualitário à população brasileira, do simples atendimento ambulatorial aos transplantes de órgãos”. O SUS chegou, portanto, para democratizar o acesso ao atendimento médico em larga escala. Seguindo a premissa da universalidade do atendimento médico a todos os brasileiros, o Ministério da Saúde iniciou, ainda no ano de 1988, o atendimento às infecções oportunistas ligadas à Aids, incluindo, naturalmente, os pacientes que não tinham condições financeiras para arcar com os altos custos do tratamento. Por esse motivo, especialistas como Claudio Pereira consideram que, em 1988, houve uma virada de chave na luta contra a epidemia. Advogado e presidente do Grupo de Incentivo à Vida, ONG que presta apoio aos soropositivos, Pereira acredita que a urgência da epidemia do HIV pode ter sido, inclusive, um dos fatores decisivos para a estruturação do SUS no Brasil. Até então, os acometidos pelo vírus tinham como únicas opções os planos privados de saúde (que se negavam muitas vezes a cobrir despesas relacionadas a HIV/Aids) ou a importação dos medicamentos, caríssimos e, consequentemente, inacessíveis à maior parte da população. 49


Em meio à dor, a luta Se o próprio governo demorou mais de sete anos para adequar parcialmente o Sistema de Saúde às necessidades dos soropositivos – já que a distribuição de medicamentos ainda não havia sido normatizada –, o que dizer das operadoras de planos de saúde, que buscam primariamente o lucro e não estavam minimamente dispostas a lidar com os altos custos de internação decorrentes das doenças relacionadas à Aids? Em 1993, a jornalista Roseli Tardelli - que viria a fundar dez anos depois a Agência de Notícias da Aids, pioneira sobre o tema no mundo inteiro - acompanhava o irmão soropositivo Sérgio Tardelli quando este começou a apresentar os primeiros sintomas da Aids e precisou ser hospitalizado com pneumonia no Hospital 9 de Julho, em São Paulo. Enquanto o irmão estava internado, Roseli foi informada de que o convênio não cobria o tratamento à doença. Em meio ao sofrimento e ao desgaste emocional causados pela deterioração da saúde física do irmão, a jornalista juntou forças para articular manifestações contra a recusa dos planos de saúde em cobrir a internação das pessoas afetadas pela Aids. Incansável, a jornalista continuou a mobilizar ações que culminaram na Resolução nº 1.401, de 1993. A medida impõe que as empresas responsáveis pelos planos de saúde “estão obrigadas a garantir o atendimento a todas as enfermidades relacionadas ao Código Internacional de Doenças da Organização Mundial de Saúde” - na qual a Aids está incluída. Infelizmente, Sérgio Tardelli faleceu em 1993 por complicações decorrentes do estágio avançado da Aids, mas Roseli não desistiu de dedicar sua vida à luta contra a doença. 50


Já em 1996, com a epidemia em ascensão no Brasil apesar dos esforços dos Programas de Combate, José Sarney apresentou o Projeto de Lei que propunha a distribuição gratuita de medicamentos para os soropositivos, e que acabou convertido em lei e, finalmente, implementado no SUS. A nova lei, um bem-vindo complemento à obrigação do Estado em oferecer atendimento médico gratuito aos portadores do vírus, representou, também, um alívio para a população que anteriormente não tinha condições de custear os caros medicamentos para tratamento da doença. Entretanto, mesmo com a sanção de leis que imbuem o Estado da responsabilidade de atender os portadores de HIV, é preciso recorrer à Justiça para fazer valer os direitos legais. O presidente do Grupo de Incentivo à Vida relata que em 2011, por exemplo, o tratamento de milhares de pessoas foi dificultado ou completamente interrompido por causa do desabastecimento do medicamento antirretroviral atazanavir. O que o Ministério da Saúde chamou de uma “sucessão de problemas” levou os pacientes a buscarem medicamentos alternativos, que muitas vezes trazem consigo efeitos colaterais diversos. Desabastecimentos como esse são relatados periodicamente no SUS. Como a lei deixa claro que todos os cidadãos devem ser atendidos, indivíduos e instituições entraram na Justiça para garantir a plena execução do seu direito. O Grupo de Incentivo à Vida, por exemplo, que também presta assessoria jurídica aos membros que não têm condições de recorrer a um advogado particular, atende semanalmente soropositivos que recorrem a seus serviços para fazer valer seus direitos. Segundo Claudio Pereira, que atua na ONG desde 1996, um dos casos mais graves foi o de um paciente

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que teve seu processo previdenciário negado mesmo estando comprovadamente cego e com quadro de depressão profunda. Para o advogado, a divulgação das leis já existentes e a pressão para que elas sejam efetivamente cumpridas são a chave para garantir a cidadania dos soropositivos. Casos como o do paciente que teve o processo da Previdência não autorizado ocorrem, por mais paradoxal que pareça, justamente em razão do tratamento avançado da doença. Explica-se: aqueles que se medicam da forma correta se tornam assintomáticos e, consequentemente, não precisam requerer benefícios como auxílio-doença e aposentadoria por incapacidade. Ao serem avaliados pelos órgãos públicos, os casos de HIV eram lidos generalizadamente como crônicos, causando injustiças com os pacientes que apresentavam sintomas ligados à Aids e que dependiam desses benefícios. Por isso, em 2014, foi aprovada a súmula 78, segundo a qual, “comprovado que o requerente de benefício é portador do vírus HIV, cabe ao julgador verificar as condições pessoais, sociais, econômicas e culturais, de forma a analisar a incapacidade em sentido amplo, em face da elevada estigmatização social da doença”. Individualizar cada soropositivo requerente foi mais um passo significativo para lidar com uma doença que pode trazer impactos de diferentes níveis, de acordo com a situação em que se encontra o seu portador. Isso porque, enquanto o HIV é assintomático para alguns que se encontram com carga viral indetectável, ele pode trazer consequências graves para aqueles que não têm acesso ao tratamento ou simplesmente à informação adequada sobre a doença. 52


Batalhas diárias A menos de cinco minutos da estação de metrô Vila Mariana, no município de São Paulo, encontra-se um complexo ambulatorial e hospitalar que atrai grande número de visitas, sete dias por semana. O Centro de Referência e Treinamento (CRT) do Estado de São Paulo é um prédio simples e que não atrairia tanta atenção, não fossem as ambulâncias que transitam ocasionalmente no local. Poucos sabem, mas é ali, no CRT, que são coordenadas as estratégias de tratamento e prevenção do HIV em todo o território estadual. A equipe multidisciplinar reúne médicos infectologistas, sanitaristas, psicólogos, assistentes sociais e profissionais de outras especialidades com um objetivo comum: elaborar e executar ações de vigilância epidemiológica contra a Aids e outras DSTs. Isso inclui replicar estratégias bem-sucedidas em outros estados e países, bem como exportar planos que obtiveram bons resultados em São Paulo. Ainda assim, a necessidade de implementar estratégias alternativas às já aplicadas por meio do SUS é urgente. “Você sabia que ainda há oito óbitos por dia no estado de São Paulo em decorrência da Aids?”, indaga Maria Clara Gianna, diretora do Centro de Referência e Tratamento de DST/Aids de São Paulo. Para discutirmos os pontos de melhoria que existem nas estratégias contemporâneas de combate ao vírus HIV, devemos analisar as evoluções (e infelizmente os passos para trás) ao longo de quase quatro décadas de políticas públicas em resposta à Aids no Brasil.

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Um inimigo ainda desconhecido A diretora Maria Clara, que atua no tema há vinte e sete anos, relembra que, quando a Aids surgiu, ainda nos anos de 1980, o enfoque que se dava à prevenção era muito na linha do terror”. Como o Sistema Único de Saúde só viria a ser instituído em 1988, e apenas a partir daí os primeiros antirretrovirais seriam distribuídos gratuitamente para os soropositivos, num primeiro momento o tratamento era muito escasso e caro. Com isso, os infectados pelo vírus evoluíam rapidamente para um quadro de complicações ligadas à Aids e faleciam sem acesso a atendimento. Os anos de 1980 ficaram marcados pela imagem da degeneração associada à Aids e o medo desse inimigo ainda desconhecido foi refletido nas campanhas de prevenção. Entretanto, a urgência de conscientizar a população a se prevenir fez com que o Ministério de Saúde, já no fim da década de 1980, investisse em campanhas que dialogassem de forma mais próxima do público-alvo, mesmo que com tom alarmista. O protagonismo de famosos como Ayrton Senna, Zico e os cantores Netinho e Kelly Key nas campanhas trazia um apelo de que carecem as escassas campanhas atuais realizadas pelo Ministério da Saúde acerca do tema.

A chegada do antirretroviral, a democratização do preservativo e a adoção de uma nova perspectiva Apesar de o Sistema Único de Saúde ter sido fundado em 1988, em um primeiro momento o sistema ainda não 54


tinha infraestrutura suficiente para distribuir antirretrovirais para os soropositivos. Em 1991 a droga zidovudina começou a ser distribuída gratuitamente nos postos públicos de saúde e cinco anos depois, em 1996, a Lei nº 9.313 sancionada por Fernando Henrique Cardoso instituiu que os portadores do HIV (vírus da imunodeficiência humana) e doentes de AIDS (Síndrome da Imunodeficiência Adquirida) receberiam, gratuitamente, do Sistema Único de Saúde, toda a medicação necessária a seu tratamento. O Brasil foi um dos primeiros países em desenvolvimento a distribuir gratuitamente antirretrovirais aos soropositivos, um enorme avanço nos anos de 1990 contra a constante investida da epidemia. Mas os dois maiores avanços dessa década no Brasil foram centrados na prevenção e não no tratamento da doença, com a distribuição em massa de preservativos e a mudança de enfoque das campanhas visando evitar a contaminação. Hoje, caso você não tenha dinheiro suficiente para comprar camisinhas na farmácia, pode ir até um posto de saúde ou até o Centro de Testagem e Aconselhamento (CTA) mais próximo e retirar gratuitamente preservativos, sem ter que apresentar nenhum tipo de receita médica. Mas não foi sempre assim: até o início dos anos de 1990, o acesso a essa forma de prevenção ainda era restrito no Brasil. Apenas em 1994, quando teve início a política de prevenção de preservativos, as camisinhas foram democratizadas e a luta contra a Aids e outras DSTs ganhou um forte reforço. Para a Diretora do Centro de Referência e Treinamento do Estado de São 55


Paulo, se na linha das doenças imunopreveníveis a vacina é o insumo fundamental, no caso do HIV o insumo fundamental que precisa ser disponibilizado para toda a população de forma gratuita é a camisinha. Além disso, os anos de 1990 foram marcados pela adoção de uma nova perspectiva da estratégia de prevenção do HIV. Voltando no tempo, durante a década de 1980, houve a crença errônea de que os haitianos, hemofílicos, homossexuais, profissionais do sexo e usuários de drogas injetáveis eram “vetores” da doença. De forma alinhada a essa visão, as políticas públicas da época, em vez de auxiliarem essas populações mais vulneráveis, contribuíram para o aumento do preconceito ao associá-las diretamente ao HIV. Com a instituição do conceito de vulnerabilidade, a real relação entre aquelas e outras populações com o vírus vieram à tona. A partir do conceito de vulnerabilidade, foi percebido que as pessoas são tão vulneráveis por questões sociais, culturais, quanto pelo próprio risco da prática sexual. A mudança de perspectiva em relação às denominadas populações-chave não só atenuou o estigma sofrido por essas pessoas, mas também as colocou no papel de protagonistas quando o assunto é prevenção. O Programa Estadual de DST/Aids do Estado de São Paulo, por exemplo, passou a trabalhar em conjunto com pessoas pertencentes às populações às quais as suas campanhas são destinadas para elaborar essas mesmas campanhas. O resultado é uma linguagem muito mais próxima do público-alvo. Além, é claro da minimização da possibilidade de a campanha surtir efeitos não desejados. 56


Prevenção na tevê e na rua O governo se utiliza dos intervalos comerciais de programas de televisão para abordar os mais diversos assuntos de conscientização nas áreas de educação, esporte, trabalho e saúde. As campanhas deste último tema, bancadas quase sempre pelo Ministério da Saúde - e muito menos pelos órgãos estaduais e municipais relacionados à saúde, por questões óbvias de orçamento - abordam assuntos como prevenção de HPV, gripe, hanseníase, além de propagandas antitabagismo e contra o consumo excessivo de bebidas alcoólicas. Entre essas campanhas, inclui-se também a da prevenção ao HIV. Realizadas de forma pontual e, algumas vezes, com viés religioso, as propagandas do Ministério de Saúde sobre prevenção da Aids acontecem majoritariamente quando se aproximam três datas simbólicas: a Parada LGBT, o Carnaval e o Dia Mundial de Luta Contra a Aids, em 1º de dezembro. O impacto das campanhas televisivas é grande, assim como são altos os custos de se veicular vinhetas no horário nobre da televisão e os chamados “spots” transmitidos nas rádios. Por isso, há um acordo tácito entre o Programa Nacional de HIV/Aids e os programas regionais para que esse tipo de ação preventiva fique a cargo do governo federal. No âmbito municipal, em que o público é mais restrito e restrita é também a verba, são adotadas medidas estratégicas mais econômicas e “intimistas”, voltadas às populaçõeschave, o que as torna tão eficientes quanto as campanhas que custam milhões. Segundo Maria Clara Gianna, o Sistema Único de Saúde trabalha com prevenção o tempo todo, o 57


que é importante, mas não é o bastante. O SUS deve manter estratégias de prevenção que levem a informação para as populações mais vulneráveis. “Para mantermos essa proximidade, produzimos materiais especificamente para esses grupos”, explica a coordenadora do Programa Estadual de DST/Aids de São Paulo. Ações desse tipo é que conscientizam as populações mais suscetíveis à doença sobre a importância da prevenção dia após dia.

Novas perspectivas à vista A medicina é conhecida como a ciência das “verdades transitórias”. Isso quer dizer que os conhecimentos que temos hoje sobre determinada doença, por exemplo, podem não ser mais válidos amanhã. Com a Aids não poderia ser diferente. Presente na vida das pessoas desde os anos de 1980, a síndrome tem sido alvo de diversas pesquisas ao longo das últimas décadas. Cientistas, médicos e empresas farmacêuticas do mundo inteiro empreendem esforços diários para descobrir novos tratamentos, métodos preventivos, formas de testagem e diagnóstico e, claro, a tão sonhada cura para a Aids. Por essa razão, e mesmo porque muito pouco ainda se sabe sobre a doença, não é de surpreender que o HIV protagonize os títulos de diversas reportagens praticamente todos os meses. Da mesma forma, não são raros os casos em que as pesquisas realizadas não têm base metodológica suficiente para serem consideradas válidas pela comunidade científica internacional. Inúmeros pesquisadores ao redor do globo já afirmaram ter encontrado a cura da Aids, mas essas “desco58


bertas” jamais foram incorporadas à realidade dos soropositivos e tampouco comprovaram-se como verdadeiras. Outras linhas de pesquisa, no entanto, deram novo gás à busca por melhorias e inovações quando o assunto é HIV-Aids, e trouxeram novas perspectivas de um futuro menos difícil para quem já vive com o vírus ou para quem está em situação de maior vulnerabilidade. Em fevereiro de 2015, um grupo de pesquisadores norte-americanos descobriu uma vacina capaz de frear a propagação do vírus. Os resultados do estudo, publicados na revista científica Nature – uma das mais prestigiadas em todo o mundo – foram descritos como “promissores”, apesar de terem sido testados somente em macacos até então. Segundo a publicação, o método encontrado estimula os músculos do corpo a produzirem uma proteína específica, que funciona como um anticorpo e que é capaz de bloquear partes do vírus causador da Aids presentes nas células, impedindo, assim, que se alastre. Ainda não é possível afirmar com certeza se essa vacina poderá ser eficiente também em seres humanos ou, ainda, por quanto tempo ela funcionará até que o vírus se torne imune e sofra uma mutação. Mesmo assim, os resultados obtidos pelos cientistas são animadores e podem representar um grande avanço da Medicina rumo à cura da Aids. Ainda no campo das promessas de cura da Aids, um outro estudo, realizado por profissionais da Universidade da Califórnia, também nos Estados Unidos, mostrou que um novo medicamento contra o câncer pode ser capaz de tirar o HIV de seus “esconderijos” dentro do organismo humano. Quando uma pessoa é infectada pelo vírus, o tratamento 59


para evitar que o sistema imunológico seja danificado é feito por meio de antirretrovirais, que reduzem o vírus presente na corrente sanguínea, mas não conseguem extrair o vírus HIV definitivamente do corpo. Isso ocorre porque o agente causador da Aids, uma vez no organismo, se “esconde” em locais que os médicos até hoje não conseguiram descobrir quais são. Agora, no entanto, esse novo remédio contra o câncer parece ter, enfim, localizado esses “esconderijos”, o que possibilitará a realização de novos estudos que levem à tão aguardada cura. E quem poderia supor que o Brasil um dia se tornaria pioneiro em pesquisas envolvendo HIV? A Embrapa Recursos Genéticos e Biotecnologia, empresa de inovação tecnológica vinculada ao Ministério da Agricultura, está desenvolvendo uma variedade transgênica de soja que expressa uma enzima capaz de prevenir a infecção pelo vírus causador da Aids. A nova soja seria capaz de produzir a cianovirina-N, que comprovadamente já se mostrou eficaz na ação contra o HIV, inibindo a replicação do vírus no organismo. Ressalve-se, no entanto, que essa é uma história antiga. Pesquisadores do Instituto Nacional do Câncer e do Instituto Nacional de Saúde dos Estados Unidos já haviam constatado a eficácia dessa enzima no combate a doenças virais. A grande dificuldade era encontrar um método economicamente viável para produzi-la em larga escala. Foi quando souberam que um grupo de cientistas brasileiros havia desenvolvido uma técnica para inserção de genes na soja que surgiu a ideia de uma parceria entre os dois países. Aos norte-americanos coube a tarefa de fornecer a sequência genética codificadora do gene para que os brasilei60


ros fizessem a sua parte, qual seja a de inseri-la no genoma de uma variedade de soja da Embrapa. O resultado é que as sementes das plantas transgênicas estão produzindo a cianovirina-N. Agora, o desafio é melhorar ainda mais o processo de extração da proteína para, futuramente, utilizar a soja geneticamente modificada no combate à epidemia da Aids.

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CAPÍTULO 4

As armas do combate ao HIV Oito jeitos de mudar o mundo Em 8 de setembro de 2000, 191 países assinaram um acordo no qual se comprometeram a cumprir oito grandes metas para a humanidade num prazo de 15 anos. Essas metas, estabelecidas pela Organização das Nações Unidas (ONU), são os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio, ou ODMs. Eles são: erradicar a miséria e a fome, oferecer educação básica de qualidade para todos, prometer a igualdade entre os sexos e a autonomia das mulheres, reduzir a mortalidade infantil, melhorar a saúde das gestantes, combater a Aids, a malária e outras doenças, garantir a sustentabilidade ambiental e, por fim, estabelecer parcerias para o desenvolvimento. Ao final de 2015, o prazo para o cumprimento desses objetivos acaba, mas os resultados obtidos a partir dos esforços dos países membros das Nações Unidas já podem ser comemorados, em parte. Pelo menos no que diz respeito ao combate à Aids – o sexto ODM –, os avanços são notáveis.

Em guerra contra o invasor

No começo da epidemia, nos anos de 1980, as autoridades de saúde pública internacionais travavam uma verda63


deira batalha para descobrir a causa de estranhos sintomas que apareciam em homens homossexuais. Para os especialistas, aqueles indivíduos eram jovens demais para apresentar doenças como neuroplasias e outras infecções oportunistas. Estranhava-se, também, o fato de um mesmo tipo de câncer – o Sarcoma de Kaposi – aparecer em tantas pessoas com perfis semelhantes, e, ainda, o fato de doenças curáveis, como a pneumonia, fazerem vítimas jovens que, em tese, teriam perfeitas condições de recuperação. Uma vez identificado o vírus causador de todos esses males, bem como a maneira pela qual ele afeta o organismo e pode ser transmitido, as autoridades passaram a buscar formas de controlar o que já era uma epidemia de larga escala. Milhões de pessoas estavam morrendo e tudo o que se podia fazer era tratar os sintomas, sem garantia nenhuma de eficácia. Quem desenvolvia Aids principalmente entre 1982 e 1989 tinha, em média, cinco meses restantes de vida após o diagnóstico da primeira doença oportunista, ou seja, cerca de 50% dos pacientes morriam em menos de seis meses. Aqueles que sobreviveram puderam ver, em 1985, surgir o primeiro teste que identificava a presença do HIV no organismo antes que ele se manifestasse: o ELISA (sigla em inglês para Ensaio Imunoenzimático). Dois anos mais tarde, em 1987, chegava ao mercado o AZT, ou zinovudina, o primeiro medicamento antirretroviral comprovadamente eficaz contra a Aids e o primeiro sinal de luz no fim do túnel. Ele funcionava como um inibidor da transcriptase reversa, ou seja, impedindo o mecanismo que faz com que o RNA viral seja convertido em DNA humano, evitando, assim, que o 64


vírus se instale no código genético e prossiga com a infecção. Essas classes de medicamentos, usadas até hoje no tratamento de pessoas diagnosticadas com HIV, são consideradas um “achado” da medicina, pois permitem uso simplificado, barato e de alta potência e eficácia. Mas foi em 1995 que o Brasil tomou a dianteira nas políticas públicas de controle da Aids, quando garantiu o acesso universal aos medicamentos antirretrovirais. Em 1996, frente aos excelentes resultados obtidos a partir do uso do coquetel, foi promulgada a lei federal nº 9.313, que tornou obrigatória a distribuição gratuita dos remédios para todos os pacientes com HIV. Só que o preço dos medicamentos, produzidos fora do país, eram muito altos. Em 1996, no ano em que a distribuição do coquetel virou obrigação do Estado, os gastos com a compra de antirretrovirais superaram R$40 milhões. No ano seguinte, o orçamento saltou para R$250 milhões, conforme gráfico abaixo:

Gastos do Ministério da Saúde com medicamentos antirretrovirais, em milhões de reais 700 600 500 400 300 200 100 0 1996

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Fonte: Ministério da Saúde

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Tendo em vista os altos preços dos antirretrovirais e os gastos elevados do governo com a compra desses medicamentos, a partir de 2000 começaram discussões a respeito da quebra de patentes dos remédios utilizados no tratamento de soropositivos brasileiros. No ano seguinte, o então ministro da saúde José Serra determinou o “licenciamento compulsório” do Nelfinavir, antes adquirido a US$1,36 (ou R$3,42, na época). Foi, também, a primeira vez em que o governo quebrou a patente de alguma droga. O medicamento, então, passou a ser fabricado pelo laboratório Formanguinhos, da Fiocruz, com um custo 40% menor, podendo ser comprado a US$0,40. Com a medida, o Ministério da Saúde economizou cerca de 35 milhões de dólares – o que representava, em 2001, cerca de 28% do orçamento total disponível para o combate à Aids no Brasil. Segundo o Departamento de DST, Aids e Hepatites Virais, hoje o país comanda a produção de pelo menos dez antirretrovirais, dos 21 disponibilizados pelo Sistema Único de Saúde: zidovudina, didanosina, associação zidovudina e lamivudina, lamivudina, estavudina, indinavir, nevirapina, ritonavir, efavirenz e tenofovir.

Na cola do vírus Um estudo coordenado por pesquisadores do Hospital Geral de Massachusetts, nos Estados Unidos, mostrou que iniciar a medicação logo após o diagnóstico precoce de HIV pode aumentar significativamente as chances de sobrevivência, até mesmo em locais onde as políticas públicas 66


ainda não atingiram os resultados esperados. Até pouco tempo, pacientes soropositivos eram orientados a fazer uso dos medicamentos somente quando o corpo passasse a dar os primeiros sinais de enfraquecimento do sistema imunológico. Isso significa que a pessoa, mesmo diagnosticada com o vírus, permanecia sem tratamento até que o índice de CD4 no sangue estivesse abaixo de 400 – o que, para os médicos, já pode ser considerado um sinal de alerta. Como os efeitos colaterais dos antirretrovirais disponibilizados eram bastante incômodos e a rotina de tratamento também não ajudava, a recomendação era de que os pacientes aguardassem o vírus se manifestar para, só depois, começar a tomar os remédios. Hoje, por outro lado, sabe-se que quanto menor a carga viral e maior a quantidade de CD4 no sangue, melhor para o paciente – não só em termos de saúde como em qualidade de vida e bem-estar também. Diversos estudos recentes indicam que soropositivos com a carga viral suprimida, os chamados “indetectáveis”, têm muito menos chances de transmitir o HIV do que aqueles que ainda não aderiram ao tratamento. Somado aos métodos preventivos, como a camisinha, o risco de transmissão do vírus cai significativamente e os soropositivos conseguem viver bem, com saúde, e com cada vez menos impactos em sua rotina por decorrência do HIV. Mas, para que a adesão ao tratamento ocorra, é preciso, antes de mais nada, fazer com que as pessoas conheçam sua sorologia. De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), acredita-se que 19 dos 35 milhões de pessoas que vivem com HIV no mundo não sabem que são soropositivas. No Brasil, onde existem cerca de 730 mil soropositi67


vos, 20% deles não sabem que estão infectadas. E entre os que sabem, quase 200 mil não se tratam e 338 mil estão com a carga viral indetectável. O problema em não se tratar é, além de correr mais risco de desenvolver Aids, estar mais propenso também a transmitir o vírus para outras pessoas. Por isso, o Ministério da Saúde tem somado esforços para que cada vez mais pessoas sejam testadas. Para isso, campanhas de conscientização estão sendo lançadas em datas importantes, como o carnaval e o Dia Mundial da Luta contra a Aids (em 1º de dezembro), e mutirões de testagens são montados em locais públicos das cidades para chamar a atenção das pessoas. Em 2014, cerca de 200 mil testes rápidos foram feitos em São Paulo, capital, como parte da campanha Fique Sabendo do governo federal. Até agora, essas iniciativas têm colhido bons frutos. A quantidade de exames de sangue para HIV aumentou no Brasil, passando de 3,3 milhões em 2005 para 6,3 milhões em 2011. No entanto, ainda há um longo caminho a percorrer até que 100% da população tenha sido testada e diagnosticada. Em 2013, o Instituto de Infectologia Emilio Ribas, em São Paulo, procurou entender por que muitas pessoas ainda optam por não fazer o teste ou não aderir ao tratamento. De acordo com o levantamento, isso acontece porque, antes de mais nada, cerca de 20% das pessoas que se testam não voltam para buscar o exame. Para o instituto, o medo de receber um diagnóstico positivo é um dos principais fatores que levam as pessoas a abandonarem os resultados de seus testes e preferirem viver com a dúvida. Além disso, a falta de informação acerca da Aids, que é uma doença ainda muito estig68


matizada, faz com que muitos se testem somente quando já estão com a saúde prejudicada pela ação do HIV – homens e mulheres heterossexuais, principalmente os mais velhos.

Testagem cada vez mais rápida e moderna Desde 1985, quando surgiu o primeiro teste para identificação de HIV no sangue, as técnicas de testagem e diagnóstico evoluíram muito tanto no Brasil quanto no mundo. Até hoje, o diagnóstico do vírus causador da Aids é feito em laboratório e é oferecido gratuitamente pelo SUS a partir de duas modalidades distintas: o teste convencional, que passa por análise citológica e demora alguns dias para sair, e o teste rápido, cujo resultado sai em poucos minutos. O teste ELISA (Ensaio Imunoenzimático), o primeiro a ser desenvolvido, é o mais utilizado até hoje para diagnosticar a presença ou não do HIV no organismo. Ele busca por anticorpos contra o HIV presentes no sangue, e não o vírus em si. Portanto, se a amostra colhida não apresentar nenhuma célula de defesa específica para o HIV, o resultado é negativo. Porém, caso seja detectado algum anticorpo anti-HIV no sangue, é necessária a realização de outro teste adicional, o chamado teste confirmatório. São usados como testes confirmatórios os exames Western Blot, o Teste de Imunofluorescência indireta para o HIV-1 e o Imunoblot. Eles são requeridos porque, algumas vezes, os exames podem dar resultados falso-positivos em consequência de outras doenças que não o HIV, como artrite reumatoide, doenças autoimunes e alguns tipos de câncer não diagnosticados. 69


Nesse caso, faz-se uma confirmação com a mesma amostra já colhida e o resultado definitivo é fornecido ao paciente. Se o resultado for positivo, o que geralmente acontece em testes de confirmação, já que o ELISA tem confiabilidade de quase 100%, o paciente será informado e chamado para mais um teste com uma amostra diferente. Esse é apenas um procedimento padrão para que não haja dúvidas a respeito da sorologia. Independentemente do resultado do exame, positivo ou negativo, o paciente é encaminhado ao aconselhamento pós-teste, que é uma conversa com um profissional especializado do posto de saúde, na qual ele receberá orientações sobre prevenção, tratamento ou outros cuidados com a saúde.

Testes confirmatórios Em caso de resultado positivo para o HIV, uma nova análise da amostra de sangue colhida do paciente deverá ser feita a fim de confirmar ou não o resultado obtido no primeiro. Os testes confirmatórios disponíveis são: - Teste western blot, de custo elevado, no qual os profissionais de laboratório procuram por fragmentos do HIV no sangue do paciente. Teste de imunofluorescência indireta para o HIV-1, que detecta os anticorpos contra o vírus presentes na corrente sanguínea. - Imunoblot, que também procura por células de defesa contra o HIV. 70


Teste rápido Desde março de 2006, o Ministério da Saúde oferece aos postos de saúde uma modalidade de testagem que permite saber o resultado em um espaço de tempo muito menor. Os chamados testes rápidos, que são ensaios imunoenzimáticos simples e que podem ser realizados em até 30 minutos, possibilitam que pacientes recém-diagnosticados com HIV saibam de sua sorologia no mesmo dia e sejam prontamente encaminhados para assistência médica especializada. Eles também conferem agilidade e permitem um maior número de testes realizados por dia. Como se fosse pouco, os testes rápidos são de simples realização e dispensa a atuação de profissionais e de equipamentos laboratoriais para que os resultados sejam colhidos. E, apesar de serem feitos rapidamente, o nível de precisão dos resultados é tão alto quanto os exames de análise citológica. Com tantas vantagens, os testes rápidos passaram a ser um modelo adotado em diversos países do mundo.

Fluido oral Nova modalidade de testagem rápida, o teste por fluido oral ainda está em fase de aperfeiçoamento no Brasil, mas já permite que o diagnóstico seja feito sem a necessidade da coleta de sangue. Ele funciona como um autoexame e já está disponível em algumas farmácias. Basta colher uma amostra dos fluidos orais, retirados principalmente da região da gen71


giva e da mucosa da bochecha, e partir para a análise, conforme indicado na embalagem. O resultado sai em 30 minutos, como em todo teste rápido, mas ainda não oferece o diagnóstico definitivo, pois serve como uma espécie de triagem. Depois de feito o teste por fluido oral, o paciente deve realizar um novo exame, oferecido na rede pública, no qual um profissional de saúde devidamente capacitado fará um pequeno furo em um dos dedos da mão. O resultado deste segundo teste também sai rapidamente.

Janela imunológica Quem teve exposição ao HIV precisa aguardar, no mínimo, 30 dias para poder fazer o teste de diagnóstico. Isso acontece porque, na fase inicial da infecção, o sistema imunológico ainda não conseguiu produzir quantidade suficiente de anticorpos anti-HIV para que o vírus possa ser detectado em um exame laboratorial. Esses 30 dias são chamados de janela imunológica. Se o paciente que tiver tido exposição recente ao HIV fizer o exame sem que esse período tenha passado, pode acontecer o que os médicos chamam de resultado falso-positivo, ou seja, quando o teste para HIV dá negativo quando, na verdade, deveria dar positivo. Graças ao avanço das técnicas de testagem, erros desse tipo não costumam mais acontecer – desde que respeitado o tempo da janela imunológica. 72


PEP Sexual - Profilaxia pós-exposição As estratégias de prevenção ao HIV se estendem para além do uso do preservativo e da conscientização da população em manter relações sexuais seguras. Desde 2010, o Ministério da Saúde inclui a Profilaxia Pós-Exposição, chamada de PEP Sexual, como uma opção para aqueles que tiveram exposição recente ao vírus. O tratamento é feito com o mesmo coquetel de antirretrovirais ministrado a pessoas que já têm o HIV, usado para impedir a ação do vírus no corpo, e pode ser obtido até 72 horas após a exposição sexual. Os medicamentos devem ser tomados por 28 dias, sem parar, para impedir a infecção. De acordo com o infectologista Ricardo Vasconcelos, do Hospital das Clínicas de São Paulo, essa estratégia já se provou eficaz. Tanto que o índice de soroconversões mesmo após a PEP é desprezível comparado ao total de casos de sucesso. No entanto, há que se ficar atento a alguns detalhes. Para ele, o difícil acesso, restrito aos centros dispensadores de PEP, a falta de informação por parte da população geral e principalmente entre os que mais se beneficiariam, e os efeitos colaterais relacionados às medicações utilizadas são as principais desvantagens dessa estratégia. Somente um médico infectologista pode receitar a PEP. Para isso, ele avaliará o risco que o paciente teve com base em dois critérios principais: o tipo de relação sexual e com quem ela ocorreu. Os dois fatores consideráveis para a prescrição da PEP são estes: 73


1. O indivíduo ter tido relações sexuais de risco com um parceiro HIV positivo ou que desconhecesse sua sorologia. 2. A exposição ao vírus ter ocorrido com uma pessoa pertencente a alguma população-chave para HIV. É preciso ter em mente, no entanto, que essa é uma estratégia exclusiva para exposições ocasionais aos vírus. A PEP sexual não é indicada a todas as pessoas e nem deve ser usada a qualquer momento. Ela não substitui o uso da camisinha e não deve ser utilizada após exposições sucessivas aos vírus. O tradutor paulista Vitor Avanzi sentiu na pele os efeitos colaterais da PEP. Após sofrer uma tentativa de latrocínio na região central de São Paulo, em que fora ferido com uma faca que já estava suja de sangue, ele foi a um hospital, onde, além de tomar uma injeção de benzetacil e vacina antitetânica, também fez exames para detectar HIV e possíveis outras DSTs. Os resultados mostraram que, até então, Vitor não havia sido infectado com nenhuma doença sexualmente transmissível, mas, em virtude da exposição recente ao sangue desconhecido presente na faca, ele ainda assim foi encaminhado para uma consulta com uma médica infectologista. No consultório, ela explicou que, apesar de as chances de Vitor ter contraído HIV durante a tentativa de latrocínio serem muito baixas, porque não houve exposição sexual, ainda havia uma pequena possibilidade, que poderia ser 100% eliminada com o uso da profilaxia pós-exposição. Vitor, então, achou mais prudente prevenir do que remediar, e topou fazer uso dos medicamentos. Eram três medicamentos por dia, sendo que um deles ele deveria tomar duas vezes ao dia. Para a PEP funcionar corretamente, a pessoa deve to74


mar os antirretrovirais nos horários indicados pelo médico, todos os dias, e assim Vitor o fez. Mas logo nos primeiros dias já surgiram os efeitos colaterais. Sentia muito enjoo, mesmo sem ter comido nada, e vomitava cinco vezes ao dia. Ele conta que, até concluir o tratamento, emagreceu mais de quatro quilos. Tonturas, noites sem dormir, dores pelo corpo, queda de cabelo, problemas na coordenação motora e tremores nas pernas foram os principais tormentos. Vitor afirma que ficou proibido até mesmo de tomar sol forte. Em suas palavras: “parecia que estava fazendo quimioterapia”. O tradutor paulista também conta que, durante o período do tratamento, ele chegou a sofrer preconceito até mesmo dos próprios familiares. Pediam que ele comesse em pratos descartáveis, pois acreditavam que o fato de estar tomando antirretrovirais significava que tinha HIV. Chegavam ao ponto de imaginar que poderiam contrair o vírus compartilhando a louça com Vitor. “Sem brincadeira, não desejo o que eu passei nem para o meu pior inimigo”, desabafa.

PrEP - Profilaxia Pré-Exposição O Ministério da Saúde espera que um novo método de prevenção contra o HIV esteja disponível para a população a partir de 2016. Em agosto de 2015, o órgão anunciou que a profilaxia pré-exposição, conhecida como PrEP, deve começar a ser distribuída gratuitamente pelo Sistema Único de Saúde (SUS) a partir de janeiro. Segundo Fábio Mesquita, diretor do Departamento de DST, Aids e Hepatites Virais, diversos especialistas e autoridades do governo se reuniram 75


em outubro para discutir estratégias e caminhos para que esse novo modelo de prevenção esteja disponível o quanto antes. De acordo com o infectologista Ricardo Vasconcelos, coordenador do Programa PrEP Brasil, essa estratégia já se mostrou extremamente eficaz na redução do risco de transmissão do vírus, principalmente em populações mais vulneráveis. Segundo ele, a PrEP funciona da mesma forma que o preservativo: desde que usada de forma adequada, as chances de infecção são praticamente nulas. “A maior parte da população consegue fazer uso da camisinha de maneira consistente, mas para aqueles que não conseguem, independentemente do motivo para isso, a PrEP aparece como a peça que faltava no quebra-cabeça”, esclarece. Mas como a profilaxia pré-exposição funciona exatamente? O próprio slogan do programa já responde a essa pergunta: um comprimido por dia pode prevenir o HIV/ Aids. O programa consiste basicamente no uso do Truvada, e sua ação no organismo acontece da mesma forma que na terapia de emergência utilizada na profilaxia pós-exposição (PEP). Com o antirretroviral circulando na corrente sanguínea, o HIV não consegue se replicar e infectar os milhares de células necessárias para que ocorra a soroconversão, segundo explica o médico. Portanto, se por um lado a PEP atua como uma espécie de “pílula do dia seguinte” do HIV, a PrEP funciona mais como uma vacina, embora não seja tão segura quanto o método tradicional de imunização, que ainda não existe para a Aids. Para Ricardo, o uso regular dos medicamentos reduz ainda mais as chances de transmissão do vírus, mesmo em 76


casos de relações sexuais desprotegidas. Ele reitera, porém, que a PrEP não funciona como uma substituta do preservativo. Muito pelo contrário. “Ninguém deve parar de usar camisinha para usar a PrEP, essa estratégia deve ser indicada principalmente para quem já não usava preservativo”, explica. “Trata-se de uma política de redução de danos”. Sem o uso do preservativo, a pessoa está totalmente vulnerável à ação do vírus. Com a PrEP, mesmo sem camisinha, a relação sexual fica mais segura e as chances de infecção caem. A ideia, no entanto, é que a PrEP seja encarada como uma forma adicional de prevenção ao HIV. Tendo em vista que nenhuma forma de prevenção pode ser considerada 100% segura, somada ao uso do preservativo durante as relações sexuais, a PrEP praticamente zera a possibilidade de transmissão do vírus. É o que os médicos chamam de prevenção combinada, que, se adotada corretamente, pode reduzir consideravelmente o número de novos casos, principalmente entre as populações mais vulneráveis ao HIV. De acordo com o infectologista, cada indivíduo deve aprender a gerir o seu próprio risco de infecção e usar, dentre as possibilidades de prevenção disponíveis – todas gratuitas –, aquelas que melhor se encaixarem em sua vida e se adaptarem à sua rotina. Especialistas alertam, porém, que a pessoa que fizer uso da PrEP deve ser acompanhada de perto e realizar seus exames de sorologia com frequência para que continue aderindo ao programa. Por ora, ele ainda está em fase de testes no Brasil – 500 pessoas, entre elas mulheres transexuais e homens que fazem sexo com outros homens, foram selecionados para fazer uso dos medicamentos por um ano. Em 77


outubro, os voluntários que optarem pela PrEP poderão dar continuidade a esse método profilático por mais um ano, em uma segunda fase de testes. Isso graças aos primeiros resultados, que mostraram que não houve nenhum caso de soroconversão entre os que aderiram ao programa. O sucesso da experiência, já esperado pelos especialistas, intensificou a pressão para que a PrEP começasse a ser distribuída gratuitamente pelo SUS. Para Maria Clara Gianna, diretora do Centro de Referência e Treinamento de DST/Aids do estado de São Paulo, o maior do país, a profilaxia pré-exposição é encarada pelos órgãos competentes como o próximo passo do Brasil na campanha de prevenção contra o vírus HIV. Segundo ela, todas as pessoas que sentirem necessidade de fazer uso de mais este tipo de proteção deverão procurar os postos de saúde especializados para retirar a medicação. O infectologista Ricardo Vasconcelos reitera, afirmando que a PrEP deve ser indicada para todos aqueles que não conseguem se prevenir do HIV usando as estratégias tradicionais. Em contrapartida, em 2014, durante o lançamento das Novas Diretrizes para o tratamento e prevenção do vírus causador da Aids, a Organização Mundial da Saúde (OMS) reacendeu uma polêmica ao sugerir publicamente que homens homossexuais devessem fazer uso de antirretrovirais como uma forma adicional de prevenção ao HIV. De acordo com a entidade, homens que fazem sexo com outros homens (os chamados HSH, em sua maioria homossexuais e bissexuais) têm 19 vezes mais chances de contrair o vírus do que o restante da população. A recomendação, que, no entanto, não se estendeu a 78


outros grupos – embora outros quatro tenham sido incluídos entre os mais vulneráveis à transmissão do HIV (profissionais do sexo, transexuais, presidiários e usuários de drogas injetáveis) –, veio logo depois que os últimos boletins epidemiológicos do mundo inteiro mostraram que a incidência de HIV na população de HSH aumentou em diversas localidades do mundo, inclusive no Brasil. Para a organização, no entanto, “em um relacionamento estável em que ambos os homens sejam soronegativos e não há risco de infecção, não há razão para aderir a mais essa estratégia de prevenção”. Seja para todos ou somente para grupos de maior risco, o fato é que a PrEP pode parecer uma ideia extremamente promissora e animadora para a população sexualmente ativa de todo o planeta, mas nem todo mundo concorda. Segundo o cardiologista Paulo Lotufo, um dos maiores críticos da PrEP no Brasil, há pelo menos quatro principais desvantagens na adoção dessa estratégia por aqui: o alto custo dos medicamentos, que custariam em média 40 mil reais por pessoa ao ano; o uso irregular dos remédios, que colocaria o indivíduo em posição de ainda maior vulnerabilidade do que já estava; os efeitos colaterais que podem surgir (e serem suficientemente desagradáveis a ponto de desestimularem o uso correto dos medicamentos) e, por fim, um possível aumento da resistência do vírus aos antirretrovirais utilizados no programa, que são os mesmos usados por soropositivos para tratar a infecção e ter uma vida totalmente saudável. Segundo Lotufo, a PrEP pode não somente levar ao aumento do número de novos casos, como também pode prejudicar ainda mais quem está doente. 79


O infectologista Ricardo Vasconcelos, no entanto, rebate algumas críticas e pondera sobre outras. Ele concorda que o preço dos medicamentos seria um fator impeditivo para os que tivessem de desembolsar o dinheiro para a aquisição dos remédios mas assegura que por meio da negociação governamental, nos mesmos moldes da que houve com a medicação para hepatite C, que é caríssima, seria possível obter valores muito mais interessantes e viáveis. “A adesão ao programa é o principal ponto de atenção, pois sem ela todas as vantagens e benefícios da PrEP se esvaem. ” O especialista espera que, com a incorporação do programa pelo SUS, um plano de ação para monitorar a adesão dos pacientes da PrEP seja montado e priorizado pelo Ministério da Saúde. Vasconcelos argumenta, ainda, que nem os efeitos adversos do uso da PrEP, nem uma possível resistência do HIV aos medicamentos, devem ser motivos de preocupação, uma vez que todos os estudos feitos até aqui mostraram a mesma coisa: efeitos colaterais pouco significativos e nenhum indício de cepas do vírus mais resistentes entre usuários da PrEP. De acordo com o infectologista, as vantagens do programa se sobrepõem aos problemas. Para ele, a alta eficácia já comprovada por meio de testes é o principal trunfo do programa. Além disso, os efeitos secundários leves e de fácil controle, a decisão individual pelo uso (não havendo a necessidade de negociar ou consultar o parceiro, como ocorre com o preservativo) e o uso não relacionado ao momento da relação sexual também fazem parte do rol de benefícios da PrEP. “Por outro lado, a adesão continua sendo essencial para que essa estratégia de prevenção funcione, de modo que 80


ela precisa ser monitorada de perto o tempo todo”, ressalta. Para ele, o uso dos medicamentos pode dar a falsa impressão de segurança total, levando muitos a abrirem mão da camisinha por acharem que estão 100% protegidos do vírus. A esse mecanismo, que a Medicina dá o nome de compensação de risco, pode levar ao aumento dos índices das demais DSTs, as quais a PrEP não é capaz de prevenir. Ainda segundo o médico, não há contraindicações para o uso da PrEP, a não ser para pessoas que tenham hepatite B, pois o medicamento da profilaxia é o mesmo usado para tratar a doença, e soropositivos, por razões óbvias. Travestis, mulheres e homens transexuais que se submetem à terapia de hormonização podem fazer uso normal da medicação, pois a ação dos antirretrovirais não interfere nos hormônios. O Truvada atualmente está sob análise de aprovação na Agência Nacional de Vigilância Sanitária, a Anvisa, onde já foi registrado. O Ministério da Saúde espera que o medicamento seja distribuído gratuitamente à população a partir do início de 2016, mas já é possível obter os antirretrovirais por meio de empresas que importam medicamentos para o Brasil. A SAR Medicamentos, por exemplo, que traz remédios de fora do país via compra on-line, ainda não tem o Truvada em seu catálogo, mas vende o medicamento mediante apresentação de receita médica. Já a AidsDrugs, outra empresa on-line, mas especializada na venda de medicamentos específicos para HIV-Aids, trabalha com o Tenvir EM, o genérico do Truvada que tem exatamente o mesmo poder de ação. De acordo com a empresa, o remédio é enviado ao Brasil, sem qualquer problema na alfândega, e chega rapidamente às 81


mãos do paciente. Caso a medicação fique retida no aeroporto, o dinheiro é devolvido. “Ainda estou recebendo gratuitamente o Truvada por meio do programa da PrEP Brasil, mas quando o estudo acabar procurarei essas formas ou outras alternativas de conseguir o medicamento”, afirma o jornalista Artur Zalewska, que foi um dos 500 voluntários do projeto que testou a profilaxia pré-exposição entre os brasileiros. Atualmente, o Truvada só está disponível nos Estados Unidos, Reino Unido e Quênia, e nenhum deles disponibiliza o medicamento gratuitamente para a população. A partir do ano que vem, o Brasil se tornará o primeiro país do mundo a distruibuir de graça um remédio capaz de reduzir as chances de transmissão ao HIV, inaugurando uma nova etapa das campanhas de prevenção nacionais. Por não ser uma unanimidade entre especialistas da Medicina no Brasil, a PrEP poderia encontrar dificuldades para chegar ao mercado consumidor brasileiro, mas o fato é que a incorporação da profilaxia pré-exposição ao Sistema Único de Saúde é iminente. “Ela ainda não está disponível, mas seria bem importante termos à disposição todas as estratégias possíveis para que as pessoas não se infectem. A PrEP é, sem dúvida, o próximo passo da estratégia no Brasil”, declara Maria Clara Gianna, diretora do Centro de Referência e Treinamento de DST/Aids de São Paulo. Os principais defensores da PrEP alegam que, além de ser uma nova fase dos métodos de prevenção no Brasil, o programa também serve como uma política de redução de danos para uma população que eventualmente deixa de usar preservativos nas relações sexuais. Um levantamento divul82


gado pelo Ministério da Saúde em janeiro de 2015, às vésperas do feriado de carnaval, comprovam essa tese. Segundo os números, aproximadamente 45% da população sexualmente ativa brasileira não usou camisinha em relações sexuais casuais nos 12 meses que antecederam a pesquisa, embora 94% das pessoas ouvidas soubessem da importância do preservativo para a prevenção de doenças sexualmente transmissíveis. Dados do estudo mostram ainda que o número de pessoas que deixaram de usar camisinha aumentou em relação a anos anteriores. Na última amostragem verificada, em 2013, apenas 55% dos brasileiros fizeram uso do preservativo em sua última relação sexual. Como se pode ver, a adoção de um comportamento de risco, o principal para a transmissão de HIV, não é exclusivo das populações consideradas mais vulneráveis. O levantamento ainda mostrou que cresceu o número de parceiros sexuais do brasileiro ao longo da vida. Segundo a pesquisa, aproximadamente 44% das pessoas já tiveram mais de dez parceiros diferentes desde que passaram a ser sexualmente ativos, contra 26% em 2008 e 19% em 2004.

Novas metas: 90-90-90 O Brasil tem até 2020 para atingir a meta 90-90-90 estabelecida pelo país, perante a ONU, e que foi assumida também pelos BRICS – sigla em inglês para o bloco de nações emergentes formado por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul – e por outros países. A meta consiste em ter 90% das pessoas com HIV diagnosticadas. Deste grupo, 90% devem estar seguindo o tratamento e, dentre as pessoas 83


tratadas, 90% devem estar com a carga viral indetectável. A meta mundial, um pouco mais abrangente, prevê novas infecções limitadas a 500 mil ao ano, além da zero discriminação contra soropositivos.

A realidade dos números Tanto a expansão do acesso à profilaxia pós-exposição para toda a rede do Sistema Único de Saúde quanto o programa que pretende implementar a PrEP no ano que vem, também no SUS, fazem parte de um conjunto de ações que, nos últimos anos, visaram o cumprimento do sexto Objetivo de Desenvolvimento do Milênio, estabelecido pela ONU em 2000, e o cumprimento da meta 90-90-90. Além destes, a chamada Prevenção Combina, que inclui o incentivo ao uso do preservativo em todas as relações sexuais, o exame de HIV no pré-natal, medidas de redução de danos entre usuários de drogas e pessoas que usam álcool, e mais o tratamento gratuito para outras doenças sexualmente transmissíveis, também ajudaram o Brasil a alcançar resultados invejáveis no controle da Aids. Tanto fôlego, porém, não foi suficiente para erradicar a epidemia definitivamente. No entanto, o diretor do Departamento de DST, Aids e Hepatites Virais, Fábio Mesquita, acredita que esse não é um objetivo impossível de ser alcançado. De acordo com ele, 2014 foi um ano extremamente importante para o combate ao HIV: 49 mil pessoas passaram a aderir ao tratamento e outras 45 mil agora também têm suas cargas virais suprimidas. Esses números são resultado de um intenso trabalho de décadas, que incluiu 84


o acesso universal e integral ao tratamento para todos os pacientes soropositivos brasileiros, somado ao esforço empreendido pelas autoridades para testar um número cada vez maior de pessoas e, assim, identificar os novos casos de infecção pelo vírus que ainda não estavam sob a tutela do Estado. Os resultados de todas essas ações refletiram no último boletim epidemiológico divulgado pela UNAIDS, em julho de 2014. Segundo o texto, o Brasil foi um dos poucos países do mundo a registrar um aumento de novos casos de HIV. De acordo com a organização, entre 2005 e 2013, esse número cresceu 11%, enquanto que o restante dos países apresentou uma queda de 27,6%, em média, nesse mesmo período. À primeira vista, esses dados denunciariam uma provável negligência do Estado nas políticas públicas que até hoje são consideradas modelos para todo o mundo. Para o infectologista Ricardo Vasconcelos, aconteceu o contrário. O fato de o número de novos casos ter crescido 11% só indica o sucesso das campanhas de testagem brasileiras, que levaram mais gente aos postos de saúde e, portanto, conseguiram identificar mais pessoas que carregam o vírus, mas que antes não sabiam. Como já mencionado, conhecer sua sorologia é imprescindível para a adesão ao tratamento e, consequentemente, para o controle da epidemia em território nacional. Outro dado da UNAIDS que chamou a atenção foi o de que, nesse mesmo período, o número de mortes em decorrência da Aids cresceu 7% no Brasil. Já números apresentados pelo Ministério da Saúde, que lança boletins epidemiológicos de HIV/Aids todos os anos, apontam para uma diminuição de 14% no número de óbitos por Aids na últi85


ma década. Para Fábio Mesquita, a diferença entre os dois relatórios pode ser explicada pela metodologia utilizada ao levantar os dados: a UNAIDS leva em conta números absolutos, já o governo federal coloca outros fatores na balança, como o tamanho e o crescimento da população. Há, porém, pontos de melhoria no sistema brasileiro que devem ser considerados. A sazonalidade das campanhas de prevenção e a dificuldade de rastrear e de criar políticas públicas específicas para grupos onde o vírus circula em maior proporção são dois deles. Além disso, o Brasil não apresentou avanços significativos nos últimos anos no combate à discriminação por gênero e orientação sexual. O ambiente nocivo e a barreira social existente entre essas populações e o restante do país são fatores que impedem a circulação de informações e, portanto, a eficácia das campanhas de prevenção, tratamento, testagem e acompanhamento. Além disso, a desigualdade social e o abismo de oportunidades existente entre classes sociais também dificultam a contenção da epidemia entre os grupos mais vulneráveis. Mas, para Fábio Mesquita, os brasileiros podem se sentir otimistas. Com o prazo para cumprimento dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio chegando ao fim, e com as novas metas já estabelecidas, chegou a hora de somar esforços para discutir quais serão os próximos passos a serem tomados quando o assunto é o combate ao HIV/Aids.

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CAPÍTULO 5

Ativismo e direitos humanos no âmbito do HIV/Aids O direito à saúde “A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para a promoção, proteção e recuperação”. Artigo 196 - Constituição Federal de 1988. O direito à saúde é um direito fundamental e garantido pela Constituição Federal. Mas nem sempre foi assim. Até a Constituinte de 1988, quando o Regime Militar finalmente tinha chegado ao fim, o Estado oferecia atendimento à saúde somente a trabalhadores com carteira assinada e suas famílias. As outras pessoas até tinham acesso a esses serviços, mas como um favor e não como um direito em si. A partir de 1988, no entanto, as responsabilidades do Estado foram repensadas e promover a saúde de todos os brasileiros passou a ser um de seus deveres. A lógica é muito simples: a população paga impostos e o Estado devolve o investimento em forma de postos de saúde, hospitais, medicamentos, programas de vacinação, entre outros serviços gratuitos, universais e integrais. 87


A criação do Sistema Único de Saúde (SUS), em 1988, está diretamente relacionada a essa tomada de responsabilidade do Estado sobre a saúde pública do país. Hoje, quase trinta anos depois, o SUS é considerado um dos maiores sistemas públicos de saúde do mundo e é utilizado primordialmente por cerca de 150 milhões de brasileiros, que dependem unica e exclusivamente dele para ter acesso aos serviços de saúde. De acordo com o Ministério da Saúde, o número de beneficiados pelo SUS é de 201 milhões de brasileiros (equivalente à população total do país), o que significa que todos os habitantes que sentirem a necessidade de procurar o serviço poderão fazer uso dele de alguma forma. Para garantir o funcionamento do programa, a Constituição estabeleceu cinco princípios básicos que orientam o sistema jurídico em relação ao SUS. São eles: a universalidade, que coloca o direito à saúde como um “direito de todos e dever do Estado”; a integralidade, que confere ao Estado o dever do “atendimento integral com prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais” em relação ao acesso que todo e qualquer cidadão tem direito; a equidade, que visa preservar o postulado da isonomia, de que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza” e, portanto, todos devem ter seus direitos à saúde garantidos pelo Estado, também sem nenhum tipo de distinção; a descentralização, que leva o Sistema Único de Saúde para todos os níveis federativos - União, Estados, Municípios e o Distrito Federal - a fim de buscar sempre o diálogo com a sociedade civil local; e, por fim, o princípio da participação social, que prevê a participação da comunidade na formulação e controle de ações e serviços públicos de saúde locais. 88


O SUS no âmbito do HIV/Aids Desde a criação do Sistema Único de Saúde, os estados brasileiros se comprometeram a garantir de maneira universal e integral o acesso à prevenção, ao tratamento, aos cuidados e ao apoio de pessoas que vivem com HIV. O SUS foi criado quando a epidemia de Aids estava em um de seus piores momentos. Em 1988, no Brasil, foi aprovada a Lei Federal nº 7649/88, que tornou obrigatória a testagem para HIV nos bancos de sangue públicos do Brasil, a fim de evitar que pacientes necessitados de transfusões de sangue recebessem sangue contaminado por meio de doações. Também neste ano, com o apoio da ONU, o dia 1º de dezembro foi instituído como o Dia Mundial de Luta Contra a Aids. E, com a criação do SUS, foi também em 1988 que o Ministério da Saúde divulgou pela primeira vez o fornecimento de medicamentos para o tratamento de infecções causadas pela Aids para toda a população. Graças ao serviço, hoje os 734 mil brasileiros que vivem com o vírus HIV - segundo dados do último Boletim Epidemiológico do Ministério da Saúde, de 2014 - têm acesso gratuito ao tratamento. Para os especialistas, a adesão regular ao tratamento, que é feito basicamente com medicamentos antirretrovirais (TARV), é essencial para o controle da doença. Isso porque as chances de uma pessoa soropositiva transmitir o vírus durante um ato sexual cai significamente se ela estiver fazendo tratamento. Essa política, chamada de “tratamento como prevenção”, foi incorporada ao SUS somente em 1996, com a aprovação da Lei Nº 9.313, que estabelece, 89


em seu Artigo 1º: “os portadores do HIV e doentes de Aids receberão, gratuitamente, do Sistema Único de Saúde, toda a medicação necessária a seu tratamento”. A partir daí, os números de novos casos de infecção pelo vírus começaram a cair, sendo que, em 1999, a queda já somava ao menos 50%. Hoje, os medicamentos antirretrovirais podem ser retirados em qualquer posto de saúde licenciado e também em hospitais, e a oferta não apresenta falhas mensuráveis em todo o território nacional. Não é à toa que, com aproximadamente 0,4% da população brasileira vivendo com HIV e com a epidemia estabilizada, as políticas públicas tenham desviado um pouco o foco do tratamento para dar atenção maior a campanhas de prevenção. Este tem sido o maior desafio do SUS dos últimos anos e, consequentemente, dos ativistas dos direitos humanos também.

HIV e direitos humanos Não é possível falar de enfrentamento ao HIV/Aids, hepatites virais e outras DSTs sem falar de direitos humanos. O processo de reconhecimento do direito universal e integral ao tratamento, prevenção e diagnóstico foi e ainda é uma das maiores bandeiras levantadas por ativistas de todo o Brasil. Preservar e garantir a dignidade de pessoas soropositivas em todos os âmbitos sociais é outro desafio constante e requer diálogo entre a comunidade e os governos municipal, estadual e federal. Movimentos sociais, como o LGBTT (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais) e feminista, também es90


tão intimamente ligados não somente à luta por direitos de pacientes vivendo com HIV/Aids, e que fazem parte das populações que protagonizam esses movimentos, como também aos esforços para que os grupos mais vulneráveis tenham toda a atenção que necessitam das autoridades de saúde pública. Segundo relatório divulgado pela UNAIDS, a violência e a discriminação estão entre os principais motivos para que o índice de HIV entre homens homossexuais, outros homens que fazem sexo com homens, mulheres, travestis e pessoas transexuais esteja tão mais elevado em comparação com a população de modo geral.

Zero discriminação Mas, para além da discriminação que as pessoas sofrem em decorrência de seu gênero, orientação sexual, raça, etnia, religião ou classe social, há também quem sofra represálias pelo simples fato de serem soropositivas. Neste caso, a sorologia positiva para HIV é a principal característica que levam esses indivíduos a serem vítimas de preconceito -- independentemente de qualquer outra questão social. Obstáculos para conseguir empregos formais, dificuldades para entrar em relacionamentos, atendimento médico precário, constrangimentos e humilhações públicas, falta de acesso à informação e até mesmo a entrada proibida em alguns países estão entre os diversos tipos de discriminação que soropositivos sofrem diariamente. Tendo isso em vista, campanhas pelo fim do preconceito contra quem vive com HIV nascem principalmente do trabalho de voluntários e ativistas da Aids. 91


A ação “Zero Discriminação” foi lançada em 2013 pela UNAIDS e surgiu não somente para combater a opressão sofrida por soropositivos como também para lutar contra todo e qualquer tipo de preconceito. A borboleta da campanha – símbolo de um processo de transformação – representa o compromisso em assumir um comportamento aberto com a diversidade e a tolerância. A iniciativa também consagrou o dia 1º de março como o Dia da Zero Discriminação e pretende aliciar jovens, organizações religiosas e ativistas para tornar o mundo um lugar melhor para se viver.

Ativismo O papel que um ativista de HIV/Aids desempenha é similar ao de qualquer outro ativista pertencente a qualquer outro movimento social: levar informações para outras pessoas e, ao mesmo tempo, unir toda uma comunidade em torno de um objetivo comum. O tocantinense Henrique Ávila, de 25 anos, é militante LGBT e de HIV/Aids. Ele é o coordenador nacional da Rede Nacional de Adolescentes e Jovens Vivendo com HIV/Aids, o maior grupo de jovens soropositivos do Brasil. “Quando eu me descobri soropositivo, eu nunca poderia imaginar que existia uma rede tão grande, formada por tantas pessoas dispostas a ajudar o outro, compartilhar experiências e elaborar ações e estratégias para combater não só a doença como também o preconceito”, diz. “O ativismo é importante justamente porque ele ajuda outras pessoas a passarem pela fase da negação, da auto-discriminação com muito mais tranquilidade e rapidez”. 92


Já o paraibano Adriano Passarella, que também atua na Rede de Jovens, como coordenador de comunicação, conta que contraiu o vírus a partir de uma ex-namorada, que faleceu poucos meses depois de ele ter recebido o diagnóstico positivo para HIV, em 2012. “Ela infelizmente era uma pessoa que não se cuidava”, conta. “Hoje existe tratamento e é perfeitamente possível ter uma vida normal e saudável, mas é preciso ter em mente que não é fácil ter que tomar remédio todos os dias e muito menos conviver com os efeitos colaterais”. Para Adriano, o ativismo é uma das maneiras mais eficientes de levar informação até as pessoas. Por isso, em agosto de 2015, foi chamado para participar do programa Altas Horas, da Rede Globo, onde pôde contar um pouco de sua experiência enquanto soropositivo e responder às perguntas dos artistas convidados e da plateia. Segundo ele, a comunicação simples e a representatividade entre os jovens é um dos principais desafios para o Brasil superar a epidemia e a discriminação contra quem vive com HIV. Para Cleiton Euzébio, assessor para Mobilização Social e Trabalho em Rede da UNAIDS Brasil, o papel dos jovens dentro do ativismo é mais que essencial para o cumprimento das metas de controle da epidemia. “Em 2030, a Aids pode finalmente ser vencida, mas para isso é preciso que o jovem de hoje se engaje no movimento social para que o Estado continue garantindo o acesso ao tratamento e a métodos preventivos para todos”, diz.

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Robson Primeira Face

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“Quando o pai do meu genro veio à minha casa pela primeira vez, eu estava subindo as escadas e escutei muito bem sua pergunta ao filho: ‘E então? É veado mesmo?’, ao que meu genro respondeu, apontando para uma porta localizada ao fim do corredor: ‘Está vendo ali? É o quarto dele. O que ele faz ali não é da minha conta’”. As palavras que Robson ouviu enquanto permanecia parado, quieto, nos degraus mais altos da escada de sua casa ficariam guardados para sempre em sua memória. A reação do marido da filha, apesar de inesperada, foi uma grata surpresa, afinal ele, Robson, era assumidamente gay – para “toda a população”, como costuma dizer – já há muitos anos. A filha, que acertou na escolha do genro, o presenteou também com três lindas netas – embora cedo demais, na sua opinião. “Engravidou. Enchi a bunda dela de tapa até ficar vermelhinha. Casou, e três meses depois ficou grávida de novo. E a faculdade?”, desabafa. A segunda netinha veio alguns anos depois e trouxe com ela uma surpresa: a tal da trissomia 21, mais conhecida como síndrome de Down. “Isso me fez aprender muito. A gente só aprende sobre as coisas quando entra em contato com elas”, diz. Mas, às vésperas do aniversário de sete anos da neta mais velha, quando Robson achava que a filha fosse finalmente concluir os estudos na universidade, veio uma nova surpresa: a terceira neta – mais uma vez, na hora errada. Ficou indignado, deu bronca na filha, que, a essa altura já estava com trinta e um anos. Mas não pôde deixar de se lembrar de quando era mais jovem: teimoso como ela. Será que esse jeito desobediente de ser da filha não teria sido herdado dele próprio – um homem de 51 anos, 97


homossexual com filha e netas biológicas, duas faculdades e uma pós-graduação, vencedor de cinco rounds contra o câncer, dono de um sorriso provocador e uma risada irônica? Na década de 1980, então com dezoito anos, Robson, o filho do meio de dois irmãos, vivia em conflito com os pais. Cansado do conservadorismo da família, resolveu fugir de casa. Um adolescente comum iria para a casa de um colega, talvez para uma cidade vizinha ou, sendo mais audacioso, a outro estado. Mas Robson não. Ele saiu de São Paulo e foi morar em Chicago, nos Estados Unidos. Para ganhar a vida, passou a trabalhar com serviços de limpeza. Quando voltou ao Brasil, três anos mais tarde, deu de cara com mais uma situação absolutamente inesperada: ele era pai. A mãe da filha, que já tinha três anos de idade, era ninguém menos que a ex-namorada de seu irmão mais velho. Ficou estupefato. Sim, ele tinha mantido algumas poucas relações com ela. Mas nada sério. A intenção da moça era apenas causar ciúme no namorado. Porém, ao descobrir-se pai, o jovem Robson assumiu a filha, que continuou morando com a mãe. Ele, por sua vez, saiu de seu reduto no Capão Redondo, onde morava, e aventurou-se nas famosas noitadas de São Paulo. Ah, quantas experiências ele viveu. Viveu, curtiu e percebeu, por mim: os homens o atraíam muito mais que mulheres. Aos 21 anos, ia sempre ao Parque do Ibirapuera se divertir. “Lá, o famoso Autorama era o lugar mais maravilhoso da face da Terra”, conta. O local, que durante o dia funcionava como um estacionamento, à noite se transformava em um movimentado point gay. As baladas voltadas para esse público, que hoje fazem muito sucesso, eram pou98


cas na época e não atraíam muita gente. As poucas casas faziam propaganda de suas festas enviando drag queens em limusines, que distribuiam panfletos em diferentes pontos da cidade. Robson se refere ao Autorama como um local tranquilo, sem conflitos, mesmo em uma época quando o preconceito contra a população LGBT era ainda maior do que é hoje. “Por isso, fazia tanto sucesso”, explica. Naquele tempo, divertia-se muito e procurava sempre ir a novos lugares. Em uma festa, conheceu a transexual Léo Áquilla, “antes das madeixas loiras”. Sentiu-se muito atraído por ela. Além disso, também teve a oportunidade de conversar com a famosa drag queen Silvetty Montilla quando foi assistir a uma comédia baseada na história da princesa Cinderela. “Ela tem fama de arrogante, mas a pessoa que conheci é bem diferente, é uma figura fabulosa”, diz. Mas nem só de diversão viveu o jovem Robson. Ele ingressou no curso de pedagogia e, depois de dois anos, decidiu iniciar os estudos também na graduação de psicologia. Foi uma fase complicada em que ia para uma faculdade no período da manhã e saía para outra à tarde. “Levava um sanduíche para comer no ônibus e esse era meu almoço”, conta. Nessa época, tinha algum conhecimento sobre HIV e assistia às campanhas de prevenção na televisão. Entretanto, não conhecia ninguém infectado pelo vírus. Certo dia, resolveu fazer o teste por conta própria. Isso foi em 1987. Dirigiu-se à avenida Prestes Maia, no centro de São Paulo, e lá coletou sangue para análise. Retornou após quinze dias para pegar o resultado e presenciou uma situação inusitada. Ao se identificar no balcão, foi recebido por um enfermei99


ro que parecia meio confuso e não sabia exatamente para onde encaminhá-lo. Em seguida, uma outra enfermeira lhe ofereceu um copo d’água. O despreparo dos profissionais já havia dado o diagnóstico ao paciente antes mesmo que ele chegasse à sala do médico, que estava acompanhado de um ajudante. Mais tarde, Robson descobriu que o procedimento faz parte do protocolo em momentos como aquele. Quando, enfim, entrou no consultório, o médico tentou descontrair. Robson foi direto: “Vim aqui para saber de alguma coisa”. Desconsertado, o médico lhe deu a notícia: Robson era soropositivo. O primeiro pensamento que veio à sua mente, e que foi verbalizado logo em seguida, foi: “E agora?” Seguindo o protocolo, o profissional tentou encaminhá-lo para os primeiros cuidados pós-diagnóstico. Robson concordou, mas não seguiu as orientações. Queria ir para casa , a fim de digerir melhor a informação que acabara de receber. Ao chegar, foi direto pesquisar sobre a doença – à época, fim dos anos de 1980, os sintomas decorrentes da Aids eram divulgados incessantemente. Para ele, foi um choque conhecer os possíveis efeitos do vírus. Tanto que, nostrês anos seguintes, preferiu não consultar mais nenhum especialista. Dedicou-se à faculdade e procurou viver como se o HIV não existisse em seu corpo. Chegou até mesmo a iniciar um relacionamento sério - o primeiro dos quatro que viria a ter - com outro homem, este soronegativo. Em 1990, realizou exames periódicos e o despreparo médico mais uma vez se fez presente: “Você pode fazer os exames periódicos e nós vamos monitorar você”, ouviu de um especialista. Assim, sem nenhuma ênfase na 100


importância do acompanhamento médico, sem nenhum alerta sobre os riscos de negligenciar os cuidados. O resultado dos exames, por outro lado, foi bom, mas, se antes o paciente desobedeceu à orientação médica, desta vez a recomendação branda não incentivou Robson a incluir os exames periódicos em sua rotina. Nessa época, o medicamento antirretroviral AZT ainda não estava disponível para uso dos pacientes no Brasil. Por isso, em 1993, três anos mais tarde, é que ele iniciaria o tratamento – depois de uma forte gripe. Ele decidiu que não compartilharia sua sorologia nem com a família, nem com ninguém, exceto alguns poucos amigos. De resto, só o namorado sabia. Em contrapartida, não conseguia se adaptar aos horários prescritos pelo médico para tomar os medicamentos antirretrovirais. Por isso, teve níveis altos de carga viral e precisou substituir os remédios utilizados por terapias que chegaram a totalizar 22 comprimidos por dia. Chegou a ouvir do médico que tinham se esgotado as alternativas de drogas, uma vez que ele já havia passado por diversos tipos de tratamento. Sugeriu, então, que ele parasse de tentar utilizar as substâncias já existentes, mas que participasse como voluntário de testes de elaboração de novos medicamentos antirretrovirais. Assim, Robson foi encaminhado a um laboratório para experimentar novos medicamentos. Nesse meio tempo, cogitou contar para a família sobre sua sorologia – ideia que foi logo descartada. Pensou na pessoa que ele mais amava: não a mãe, nem o pai, mas o padrasto. Após a separação dos pais, foi no padrasto que Robson encontrou o apoio que nunca havia tido antes. E já 101


antevia a amargura com que ele receberia a notícia. No íntimo, porém, sabia que ele aceitaria sua condição e que não o rejeitaria por ser HIV-positivo. Assim mesmo, preferiu o silêncio a ver a preocupação estampada no rosto do padrasto após a revelação. Pensou também na filha. Quando completou oito anos, ela foi morar na casa do pai, onde permaneceu até os dezesseis. “Eu peguei a pior parte, coisa chata que é adolescente. Mas isso fortaleceu muito a ligação que eu tinha com ela”. Pela primeira vez na vida, percebeu que não era mais apenas ele e que toda e qualquer decisão em sua vida não traria consequências apenas para si próprio. Essa clareza, pensou consigo mesmo, só um filho poderia proporcionar. Em 1997, mais acostumado à terapia à base de antirretrovirais e mais conformado com o fato de ser portador do HIV, Robson foi sobressaltado com uma nova surpresa. Notou a presença de uma afta na boca, que cresceu a ponto de o incômodo impedir que ele conseguisse engolir. Adorava comer e não queria que aquele desconforto continuasse, principalmente porque o Natal estava próximo e já sonhava com a ceia. Então, consultou um médico, que recomendou a biópsia do ferimento. Pronto. Ficou claro que não se tratava de uma simples afta. O nome esquisito pronunciado pelo médico, “carcinoma espinocelular”, foi explicado mais tarde como sendo um câncer de cabeça. A imagem da avó, que morrera de câncer anos antes, foi seu primeiro pensamento. Não hesitou em enfrentar a químio e a radioterapia e, graças a isso, conseguiu se livrar do câncer, pelo menos por enquanto. Persistente, a doença voltaria periodicamente durante os próximos dezessete anos. 102


Apesar de ter sido frequentador assíduo do Autódromo quando tinha seus vinte-e-poucos anos, nunca se interessou verdadeiramente por baladas. O ambiente barulhento e fechado o impedia de praticar a eloquência do discurso que lhe era tão característica. Em 2002, porém, o comentário de um amigo sobre uma balada gay o atraiu muito. Ele descrevia uma tal de Blue Space, uma casa noturna próxima ao Memorial da América Latina, como um espaço muito divertido, com frequentes performances de drag queens, sem falar nas muitas festas temáticas que o local hospedava todos os meses. Para além disso, a balada tinha um diferencial que chamou bastante a atenção de Robson: um dark room, que era um espaço totalmente escuro onde rapazes entram para buscar prazer, seja em busca de uma simples “ficada” ou de relações sexuais mais ousadas. Assim que terminou de ouvir a descrição da festa, avisou ao amigo: “Você vai comigo a essa Blue Space!”. O fim de semana chegou e, com ele, a tão esperada festa na boate gay. Chegou muito cedo na casa, que segundo ele, ainda cheirava a desinfetante e estava muito vazia. Então, decidiu esperar o movimento aumentar em uma área próxima, onde havia sofás. Estava ansioso por finalmente conhecer o famoso dark room. Ele só não esperava que, durante a espera, fosse se deparar com um garoto muito interessante, que estava sentado próximo a ele. Não deu outra: passou o resto da madrugada conversando e flertando. Quando se deu conta, era hora de ir embora. Contrariado, prometeu a si mesmo que voltaria na semana seguinte para conhecer o dark. Ao todo, voltou mais duas vezes, e em todas não conseguiu colocar o pé dentro do dark room. Na primeira, ficou 103


encarregado de fazer companhia à amiga de um amigo que estava sozinha na festa – “ela era muito divertida, juro que não vi a hora passar!”,lembra. Já na outra visita foi justamente no dia do aniversário da casa. Todos os presentes estavam entretidos com um colorido e animado show da Silvetty Montilla. A noite acabou com uma chuva de balões e lantejoulas, mas nada de dark room. Resignado, aceitou que nunca pisaria em um lugar desses. Algo do destino, pensou. “Não sei até hoje como é um dark room, não quis mais falar sobre isso. Foi traumático!”, resume. Nos anos seguintes, ingressou em seu terceiro relacionamento sério após ter descoberto a sorologia – foi também seu terceiro relacionamento sorodiscordante. Outra vez, teve nenhum problema por causa da condição de um ou de outro. Robson, que sempre se cuidou nos relacionamentos anteriores, estranhou quando o parceiro pediu que fizesse sexo oral sem camisinha. Mesmo hesitante, concordou. Entretanto, não se conteve e acabou narrando o fato na visita ao infectologista. “Como você fez isso com seu próprio namorado? Isso é jogar a responsabilidade para outra pessoa!”, disse ele. Envergonhado, passou a tomar ainda mais cuidado com a saúde nos anos seguintes. Conheceu a mãe do parceiro – “minha eterna sogra” – que cuidou dele na fase em que estava debilitado pelos efeitos das quimioterapias e radioterapias para extinguir o câncer. O relacionamento teve um fim, infelizmente, depois de cinco anos, quando o parceiro decidiu morar em Buenos Aires. “Um relacionamento a longa distância não daria muito certo”, explicou. Após o término, Robson iniciou um período de expe104


rimentação sexual. Começou a entrar em salas de bate-papo on-line, sempre com apelidos relacionados ao HIV. Nessas conversas com desconhecidos, não faltavam sugestões de encontros interessantes com outros soropositivos ou soronegativos – nestes casos, sempre com a promessa do sexo seguro no ar. Até que começaram a surgir propostas incomuns. Em um desses bate-papos virtuais, um garoto demonstrou interesse em sexo casual. Ao saber que Robson era portador do vírus, propôs sexo sem proteção. “Mas por quê?” indagou, incrédulo, já que não conseguia imaginar qualquer razão para alguém querer se infectar propositalmente com HIV. “Quero acabar logo com o estresse, prefiro me infectar logo”, foi a resposta que recebeu. Esse rapaz foi apenas o primeiro de muitos que entraram em contato com Robson por meio da internet sugerindo a prática de sexo desprotegido. Ele chegou, inclusive, a ser convidado várias vezes para participar da chamada “roleta-russa” – uma orgia entre vários homens, sem camisinha, que conta com a participação de um ou mais homens soropositivos, sem que ninguém soubesse a sorologia de ninguém. Robson recusou de imediato. Tinha vários fetiches, mas transmitir HIV inadvertidamente para outra pessoa definitivamente não era um deles. Em nova noitada, saiu com mais um parceiro, que também já soube de antemão de sua sorologia. Preferiu contar para que não houvesse nenhum inconveniente na hora H. O sexo começou bem, rolou clima e os dois estavam, pelo menos aparentemente, à vontade. No entanto, quando Robson se preparava para consumar o ato, pronto para colocar o preservativo, o parceiro se afastou e perguntou, apreensivo: 105


“Não vai colocar a camisinha?”. Irritado com tamanha ignorância, disparou: “Eu não vou colocar, não. Mas você vai colocar a sua camisetinha, seu sapatinho e dar o fora da minha casa”. Às vezes, simplesmente gostaria de poder fazer sexo sem preocupações com alguém que entendesse as reais possibilidades de transmissão, sem precisar ser didático e sem ter que passar por esse tipo de constrangimento. Hoje, aos 51 anos, Robson está no primeiro relacionamento sério – ou num grande rolo, como diz – com outro soropositivo. Como qualquer casal que mantém um relacionamento à distância, já que o parceiro viaja frequentemente para outros estados a trabalho, enfrentam algumas dificuldades. “Da última vez que conversamos, disse que ia conhecer outras pessoas por aqui mesmo”, desabafa, com um ar contrariado, denotando a falta que o companheiro lhe faz.

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Teresinha Segunda Face

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Às onze da manhã, a mesa do café ainda está posta. No balcão da cozinha, estrategicamente posicionadas, estão as caixas de três medicamentos que seriam facilmente confundidas com qualquer medicamento para gripe. Um olhar mais atento notaria uma sutil e engraçada semelhança entre os três: todos têm o mesmo sufixo, um tal de norvir, outro chamado darunavir e mais um, com a caixa virada, em que se lê apenas a parte final do nome, curiosamente também com o final -vir. Ela abre a porta do quarto, já com as roupas e a bolsa para mais um dia de trabalho. Sua linha de visão cruza com as três caixas; vai até elas e as coloca na mochila. Imediatamente, tira o celular do bolso e se certifica que o despertador está programado para as 11 da manhã. “Hoje pode ser que eu fique um pouco mais”, pensa. Com tudo em mãos, sai de casa. Ao passar rapidamente pelo corredor de seu condomínio, que conta com sete prédios além do que acabara de sair, dá um rápido “bom dia” a uma vizinha no caminho. Olha rapidamente para a janela do apartamento do filho. Fechada, mostra que as pessoas ali ainda não acordaram. Ele, que já deve estar acordado há horas, está em dia de plantão como enfermeiro no Aricanduva. Sai de Itaquera rumo à Vila Mariana, onde pretende passar as próximas dez horas ou mais. Lá, vira à esquerda na saída do metrô e novamente à esquerda em uma rua tranquila, de casas e empresas disfarçadas de residências. Uma delas é singular: localizada exatamente onde a rua faz uma leve curva para a direita, tem uma das únicas árvores visíveis da calçada, além de um recipiente de preservativos que fica sempre do lado de fora, público e disponível para qualquer 109


um que queira retirar camisinhas. Esta curiosa característica chama a atenção de algumas pessoas que passam por ali e que, com um olhar mais atento, veem uma placa com as letras “G I V” na entrada. É lá que entra. Toca a campainha e dá bom dia a todos. No interior da casa, um visitante teria uma visão confusa: enquanto metade do lugar realmente parece uma residência (com direito a uma cozinha completa e mesa de jantar), o cômodo que seria uma sala de estar mais parece uma grande sala de visitas, com muitos pôsteres nas paredes. Alguns, com ilustrações de células e órgãos do corpo humano; outros, com excertos da Constituição; outros, ainda, contam com fotos de antigas manifestações. Ao chegar no hall, dirige-se ao banheiro. Nesse momento, Teresinha Martins, a Terê, se olha no espelho e arruma rapidamente o cabelo curto, no estilo “joãozinho”. Seu reflexo demonstra o brilho nos olhos que ela traz em mais um dia de trabalho no GIV - Grupo de Incentivo à Vida, ONG dedicada aos soropositivos. Ali, Teresinha se dedica a pessoas como ela: pessoas que convivem com o HIV, mas que lutam diariamente para ter seus direitos garantidos e sua dignidade respeitada na sociedade. No entanto, foi um longo caminho até Teresinha se empoderar e ocupar uma posição de agente de mudança. “É uma doença que não tem tratamento, não há o que fazer. Sua expectativa de vida é de seis meses a dois anos”. Ao ouvir as palavras proferidas pelo médico que analisara seus exames, Teresinha pensava no pequeno Mauro, filho de dois anos, fruto amado de um relacionamento que já não existia mais. O episódio aconteceu em 1987, quando o SUS 110


ainda não havia sido criado, e o primeiro antirretroviral, o popular AZT, tinha acabado de ser concebido e ainda não era distribuído no Brasil. Com apenas vinte e um anos, Teresinha não tinha muito conhecimento sobre o vírus - assim como grande parte da população mundial. Acompanhava pela televisão o avanço de uma misteriosa epidemia que parecia acometer principalmente os homossexuais, profissionais do sexo, hemofílicos e usuários de drogas injetáveis. Ela se preocupava com a doença, mas não imaginava que pudesse chegar até ela. Certo dia, porém, foi “convidada”, pelo mesmo médico que atendia o namorado nas suas idas ao laboratório para a rotineira doação de sangue, a realizar o exame. A finalidade era detectar sua sorologia. Foi então que teve um pressentimento, mais tarde, confirmado pelo seu próprio sangue. Seu companheiro da época era usuário de drogas injetáveis, e o casal não utilizava preservativos nas relações sexuais. Apenas pílula do dia seguinte, para evitar uma gravidez indesejada. Era isso. A má notícia veio em dobro: os dois haviam contraído o vírus. “Você não tem nenhuma infecção oportunista e o que podemos fazer é acompanhá-la em consultas periódicas”, informou o médico. Surpreendentemente, ao se ver frente a frente com o problema, Teresinha não se desesperou. “Quando sentir alguma coisa, procuro um médico”, foi o primeiro pensamento que veio à sua cabeça. Em uma época em que não havia muita opção para os recém-infectados, não tinha como fazer diferente. Ao sair de lá e se relembrar de que sua expectativa de vida era de no máximo dois anos, decidiu que queria viver o máximo que pudesse, principal111


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mente ao lado do filho. E foi exatamente o que fez: nos anos seguintes, Teresinha se manteve o mais próxima possível do pequeno Mauro, ao mesmo tempo que mantinha distância dos médicos. Foram dez longos anos até que os primeiros sintomas decorrentes do vírus começassem a aparecer. Até 1997, o uso do AZT foi sendo democratizado, a estrutura do SUS no atendimento aos soropositivos se aprimorou, a oferta de antirretrovirais se diversificou e o controle do vírus, bem como a prevenção dos sintomas, deu um salto de qualidade. Teresinha preferiu não recorrer a nenhum hospital. Havia excedido as expectativas do médico responsável pelo seu diagnóstico, não havia? Ela chegou inclusive a acreditar que tudo aquilo era uma farsa, porque os anos passavam sem que nenhum sintoma surgisse. Na televisão, sucessivos casos de famosos sucumbiam perante os sintomas decorrentes da doença. Cazuza, Betinho, Henfil… mas tudo parecia tão longe. Teresinha sentia-se como uma espectadora de histórias que deveriam ser parecidas com a sua, mas felizmente - e estranhamente - não eram. Também não conhecia pessoas que tivessem HIV além do companheiro. Então, preferiu guardar a sorologia, suas dúvidas e angústias para si. Até que seu parceiro, que também tinha decidido não iniciar o tratamento, começou a adoecer. Teve os sintomas iniciais, como pneumonia e fraqueza extrema. Não era necessário mais um diagnóstico para que ambos soubessem a origem de tudo aquilo. Ele havia contraído a chamada pneumocistose, causada por um fungo e característica de pacientes soropositivos. Com o susto causado pelo súbito adoecimento, ele iniciou o tratamento. Já Teresinha preferiu esperar.


Teresinha trabalhava na área contábil de uma empresa, mas preferiu não comentar com ninguém a respeito da doença. Pouco antes de adoecer, no entanto, sentiu a necessidade de contar para a mãe sobre seu estado de saúde. Já não estava mais com o namorado - ficou sabendo, anos depois, que ele havia falecido - e precisava de alguém para desabafar. Algumas amigas de sua mãe tinham filhos soropositivos, com quem ela tinha tido contato. Presumiu que ela entenderia e que tudo ficaria bem. Foi um momento difícil, mas o apoio da mãe fez a diferença lá na frente, quando ainda muita coisa estava por vir. Pouco tempo depois, em 1997, Teresinha começou a sentir os efeitos da doença que permanecera oculta por tanto tempo e que agora atacava implacavelmente seu sistema imunológico. “Citomegalovírus” era o agente denominado pelos médicos e que havia se aproveitado da sua baixa imunidade. “No geral, esse vírus atinge mais a visão. Tive sorte e atingiu meu estômago, na forma de uma úlcera”, relembra. Teresinha, que sempre fora muito esguia - seu peso nunca superou a surpreendente marca dos 50 kg - ficou ainda mais magra, uma vez que o ferimento na mucosa estomacal impedia a ingestão dos alimentos. Não tinha mais como evitar o tratamento: sua vida estava claramente em jogo. Ao iniciar o tratamento, foi recomendado que começasse a fazer ioga, e ela entrou para uma turma em que conheceu um rapaz soropositivo. Conversa vai, conversa vem, e ele tocou no assunto que mudaria a trajetória de Teresinha. Pouco antes, ele havia entrado em contato com um grupo de soropositivos e a convidou para conhecer o local onde isso tinha acontecido. Ela aceitou. Ao pisar no velho assoalho da 113


sede do Grupo de Incentivo à Vida e conhecer tantas pessoas que discutiam abertamente o tema que ela escondia há tanto tempo, a mãe solitária finalmente se encontrou. Passou a ser visitante frequente da ONG e vivenciar todas as experiências, novos contatos e conhecimentos que o GIV lhe trouxe. Depois de pouco tempo (“acho que três ou quatro meses”), já estava atuando dentro da ONG como multiplicadora. Aos poucos, Teresinha deixava de ser uma figurante, mera espectadora da luta dos soropositivos, para assumir a posição de protagonista no movimento que buscava mais do que apenas ter direito ao tratamento - buscava o direito de exercer a cidadania. A infecção estomacal persistia, e as sucessivas internações e o estado físico de Teresinha preocupavam os mais próximos. A mãe, que sabia o motivo, acompanhava a filha nas idas ao médico e prestava o apoio necessário. Já seu filho Mauro, que crescia e se tornava um pré-adolescente cada vez mais curioso, fez com que Teresinha refletisse sobre a necessidade de preparar o filho para a sua condição. O GIV, mais uma vez, atuou como um facilitador. A ONG mantém grupos de discussão e atividades focados em diferentes perfis de pessoas: homossexuais soropositivos, mulheres soropositivas e, por fim, crianças soropositivas, além dos filhos dos membros da casa. Mauro passou, então, a frequentar as reuniões com as crianças e a conviver diariamente com o tema. Ia para a escola pela manhã e ficava no GIV durante toda a tarde, voltando para casa com a mãe quando ela finalizava suas atividades administrativas na ONG. E foi assim até o início da adolescência do menino, que já tinha entre quin114


ze e dezesseis anos. A cada viagem de volta para casa, mais perguntas surgiam: “Mãe, Fulano tem HIV? E Beltrano?” ele indagava. Teresinha, por sua vez, confirmava ou negava, pacientemente. Até que a pergunta inevitável surgiu: “E você?” Imaginando que Mauro estivesse preparado para a verdade, ela assentiu afirmativamente. O medo de perder a mãe falou mais alto que toda a informação a que teve acesso no Grupo de Incentivo à Vida, e o jovem sofreu muito até iniciar o processo de aceitação. Hoje, aos 30 anos, Mauro expressa o sentimento que teve na época: “Saber do vizinho, do amigo, do parente é uma coisa. Agora, saber da mãe é… complicado.” Pai de dois filhos, sustenta a família como enfermeiro. Ao ser perguntado sobre a escolha da profissão, fica claro que a condição da mãe foi um fator decisivo para a escolha da carreira na área médica. Em 1999, aos 15 anos, Mauro foi personagem de uma matéria do jornal Folha de São Paulo, cujo tema eram os filhos de portadores de HIV e jovens soropositivos. Apesar de a matéria pecar em alguns aspectos (frases como “Como uma criança pega Aids?”, por exemplo), expôs a situação dessas crianças e adolescentes de forma positiva. Alguns dias depois, porém, Mauro foi chamado à diretoria da escola. Como fazia parte da “turma do fundão”, imaginou que o motivo fosse alguma bagunça que tivesse feito, mas ficou apreensivo quando a diretora retirou um exemplar da Folha de São Paulo da gaveta do gabinete. Era a primeira vez que uma pessoa de fora do GIV se dirigia a ele sabendo da sorologia da mãe. Relembrando-se do episódio, Mauro não tem certeza se a “curiosidade” da diretora foi 115


movida por preconceito, intimidação ou por tentar criar um diálogo com o aluno. Na época, ficou com a segunda opção. A personalidade herdada da mãe, entretanto, impediu que o menino se deixasse intimidar e a história não foi adiante. Com o filho e a mãe cientes de sua condição e com a saúde cada vez melhor pelo uso correto dos medicamentos, Teresinha se livrou da úlcera no estômago e reduziu a carga viral em seu sangue até o nível indetectável. No GIV, continuou contribuindo com suas habilidades na área contábil, onde trabalha até hoje. Em maio de 2015, teve a oportunidade de atuar mais uma vez a favor das pessoas que compartilham de sua condição: recebeu o convite para uma reunião no GIV de uma empresa gigante no setor de comunicação: a Ogilvy Brasil. Os representantes da companhia disseram aos mentores da ONG que gostariam de firmar uma parceria para criar uma campanha de conscientização sobre os soropositivos. A ideia era espalhar cartazes por São Paulo, que conteriam uma gota de sangue doada por um portador do HIV e que traria informações sobre a doença, com o intuito de desmistificar o preconceito que perdura na sociedade. Trabalharam em parceria na elaboração do conteúdo do cartaz e, quando o conteúdo estava aprovado, Teresinha ficou sabendo que a agência tinha também interesse de criar um vídeo cujos protagonistas fossem as pessoas que doaram o sangue para “pintar” os cartazes. O vídeo, de pouco mais de três minutos, acompanha a confecção dos cartazes, sua distribuição e a reação das pessoas ao encontrá-los em diferentes pontos da cidade, com depoimentos dos participantes. Teresinha coprotagonizou o vídeo, que viralizou na internet 116


e teve quase trezentos mil acessos no Youtube. Como os compartilhamentos nas redes sociais não contabilizam nas visualizações, o vídeo provavelmente atingiu um número muito maior de espectadores. Excerto do texto contido nos cartazes da campanha:

“É isso mesmo que você leu. Sou portador do vírus. Carrego em mim uma gota de sangue HIV positivo. De verdade. Neste momento, você pode estar dando um passo para trás se perguntando se eu ofereço algum perigo. Minha resposta é: nem de longe. O HIV não sobrevive fora do corpo humano por mais de uma hora. Por isso, o sangue neste cartaz não traz nenhum perigo. Assim como conviver com um soropositivo.”

“O Cartaz HIV Positivo” quebrou paradigmas por ser uma das únicas campanhas a sair do foco da prevenção e posicionar os holofotes nos soropositivos, trazendo nove personagens de perfis diferentes (além de Terê, participaram também homens cissexuais homossexuais e heterossexuais, outras mulheres cissexuais e uma mulher transexual). A parceria entre a agência de publicidade e a ONG trouxe muita visibilidade ao GIV, contando com vasta projeção nacional e inclusive internacional: o vídeo foi traduzido para inglês, espanhol, francês e até mandarim! Assim, Terê viu a si mesma replicando seu exemplo em diferentes linguagens, para pessoas que nunca imaginaria que chegariam a ouvi-la. Hoje, a Terê que já teve que ouvir que viveria por no máximo dois anos é mãe, nora e avó de dois netinhos en117


cantadores. O diagnóstico veio há quase trinta anos. De lá para cá, foram muitos momentos tristes e felizes, e de muito aprendizado também. Ela viajou para o outro lado do mundo em nome do Grupo de Incentivo à Vida, no Japão, para palestrar para soropositivos e usar a própria experiência na conscientização de centenas de pessoas. Antes, via-se apenas como espectadora das mudanças que ocorriam na Medicina e na sociedade em benefício dos soropositivos. Hoje, orgulhase de ser porta-voz dessas mesmas mudanças. A coadjuvante, hoje, é protagonista – e desse papel não abre mais mão.

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Micael Terceira Face

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“Na ONG que frequento, conheci duas meninas que são portadoras do vírus HIV por transmissão vertical, assim como eu. Descobriram quando eram bebês e passaram por todo aquele procedimento usual nesses casos – tomaram medicação, vitaminas na veia. Mas meu caso foi diferente. Fiquei nove anos sem diagnóstico e sem medicação, e não tive nenhum problema no meu desenvolvimento. Hoje sou magrelo desse jeito, mas na época eu era imenso!”, conta Micael, sentado na mesa do café, ao lado do namorado. Aos vinte e quatro anos, maxilar marcado e sobrancelhas grossas em contraste com a pele muito branca, cabelo curto com um pequeno topete, ele começou a contar a história de sua sorologia, a qual envolve também o pai e a mãe. Em 1991, quando Freddie Mercury morria em decorrência da Aids, Micael nascia. Um bebê gorducho e saudável. Não apresentou nenhum problema de saúde e logo foi para casa, com a mãe solteira. O pai, casado com outra mulher, era um homem galanteador, mas não imaginava que tivesse outro filho além de Micael e os dois irmãos. Como supervisor de obras, um dia estava na Bahia, em outro no Espírito Santo e passava dias, às vezes semanas, sem ver a família. “Meu pai teve várias mulheres”, conta. Cerca de um ano e meio depois que nasceu, sua mãe decidiu fazer uma cirurgia estética. Para isso, o médico pediu uma bateria de exames que incluíam o teste de sangue. Ao ver o resultado positivo para HIV, recusou-se a acreditar. O médico, claro, pediu que refizesse o exame. Ela desistiu do teste e da cirurgia, enterrou o resultado e não contou nada para ninguém. 121


Enquanto isso, o filho crescia no bairro onde moravam, no Capão Redondo, em São Paulo. Eram os anos de 1990, quando o boom da epidemia já havia passado. No entanto, novos casos continuavam a surgir, dia após dia. Hoje, Micael fala com naturalidade e desprendimento sobre a história do HIV e da Aids. Sabe muito sobre a epidemia, que começou exatamente dez anos antes de ele nascer, pois se interessou e leu muito sobre o vírus na adolescência. Ele se recorda de quando a ficha finalmente caiu para a mãe: em 1999, quando completou oito anos de idade, a mãe adoeceu gravemente. Internada, os médicos constataram que ela apresentava quadro de tuberculose e outras doenças oportunistas. Na época, o menino não entendia muita coisa e ficou em casa com a avó enquanto a mãe permanecia no hospital. Surpreendentemente, só depois de quinze dias de internação, em que a paciente chegou a entrar em coma, a equipe médica se deu conta de que era um caso da Síndrome da Imunodeficiência Adquirida. Quando finalmente conseguiram conversar com a mãe de Micael, descobriram que ela não se expunha ao risco e que só tinha tido um único parceiro sexual em toda a vida. Pediram, então, que o pai também fizesse o exame, assim como a atual esposa, os três filhos que teve com ela e o próprio Micael. Além das chances de transmissão sexual, os médicos preocupavam-se com possíveis transmissões verticais das duas mães para os respectivos filhos. Quando os resultados saíram, descobriu-se que tanto o pai quanto a madrasta eram soropositivos. Felizmente, os dois primeiros filhos que o pai e mãe tiveram juntos não contraíram o vírus. Mas como Micael era o caçula, ficou claro 122


que o pai havia contraído o vírus e passado para a esposa e para a amante logo antes de seu nascimento. Não deu outra: o exame também constatou a presença do vírus no sangue de Micael. “Eu me lembro perfeitamente da cena. O médico só disse: ‘É positivo’, pronto, acabou”. O momento foi difícil para todos, seja pela traição ou pelo diagnóstico quádruplo do HIV, mas os três adultos iniciaram o tratamento com os antirretrovirais disponíveis na época. Como Micael estava saudável e com índices surpreendentemente reduzidos do vírus no sangue, ao contrário do que normalmente aconteceria, a decisão foi de não iniciar o tratamento imediatamente. Em vez disso, o curioso caso do menino que nasceu com o vírus e passou oito anos perfeitamente bem foi levado a pesquisadores para entender como seu organismo lidava com o HIV. Micael morava com a mãe, que havia melhorado bastante com o tratamento embora não tomasse os medicamentos com a frequência que deveria, e os avós. Analfabeta, a avó era mais sábia do que muitos diplomados, segundo ele. Em uma época em que cartazes nos hospitais ainda tentavam conscientizar as pessoas de que talheres e copos compartilhados não eram vetores do vírus, a matriarca da casa sempre foi categórica: nada na casa seria separado. Ela também não admitia que algum familiar tratasse alguém de forma diferente por causa da sorologia. Durante o período de recuperação da mãe, Micael não via muito o pai. Foi após a internação dela que veio à tona a relação extraconjugal que o pai mantinha com a atual esposa. A história entre eles começou anos antes do nascimento do filho, quando ela trabalhava como secretária na mesma 123


empresa em que ele era observador de obras, e perdurou ao longo dos anos. “Quando eu tinha uns seis anos, lembro da esposa do meu pai vir em casa bater boca com a minha mãe. Foi a primeira vez que a vi na vida”, conta. Os dois continuaram se vendo e o homem vivia uma vida dupla entre as duas famílias que constituíra. Não era ausente financeiramente, mas limitava-se a ver a amante e o filho durante a semana, em certas horas do dia. Se a situação não era clara nem para os dois adultos, era uma verdadeira confusão na cabeça do pequeno Micael, que não entendia bem por que o pai só podia vê-lo de vez em quando. Mesmo criança, ele intuía que algo não ia bem com sua saúde. Isso apesar de não sentir nada e não tomar nenhuma medicação. Até o dia em que, curioso, pegou a caixa de um dos remédios que a mãe tomava, em que era possível ler “o uso incorreto ou interrupção do tratamento causa resistência ao vírus da Aids”. Nesse momento, teve um estalo duplo: sabia que a mãe tinha uma doença grave e que, portanto, ele tinha também. O pequeno Micael era acompanhado por uma médica pediatra, que observava de perto a saúde do menino. Certo dia, em uma consulta em que estava apenas o garoto, a médica perguntou a ele se os pais já haviam feito algum comentário sobre a doença. Também quis saber se ele tinha curiosidade de falar sobre isso. Foi a oportunidade que Micael encontrou para finalmente saber mais sobre o assunto que não era falado em casa e poder tirar as tantas dúvidas que tinha em mente. Para organizar todas as perguntas, escreveu uma listinha em 124


um pedaço de papel e entregou para a médica, que esclareceu todas as dúvidas, uma por uma: “O que é Aids? Como se pega? Vou poder me casar? Vou poder ter filhos?” A pediatra respondeu a todas elas e Micael saiu dali bem mais aliviado. Além da preciosa orientação, encontrou na especialista uma confidente para falar sobre o assunto que, até aquele momento, tinha sido tabu. Micael também ia a sessões com um psicólogo que o ajudava a lidar com as terapias que iria fazer e com as consultas ao médico. Aos doze anos, começou a tomar os remédios duas vezes por dia, ao acordar e antes de dormir. Apesar de não gostar muito de tomar aquilo - “eu tinha que quebrar e diluir na água, o gosto era horrível” - o horário não batia com o do colégio. Assim, nunca teve que dar nenhuma explicação aos coleguinhas sobre os tais comprimidos. As consultas médicas foram de grande valia porque, além de orientação segura para o tratamento, podia desabafar sobre as questões que o incomodavam, como o relacionamento dos pais e a saúde da mãe, por exemplo. “Hoje me arrependo de ter interrompido a terapia com o psicólogo quando entrei na adolescência”, admite. Foi também nessa época que Micael começou a ter contato com os meios-irmãos e também com a esposa do pai. Apesar dos conflitos, depois de doze anos a mãe, enfim, assimilou o ocorrido, deixando claro, para si mesma e para o menino, que os problemas entre os adultos poderiam ser superados. Sendo assim, Micael passou a frequentar também a casa do pai. “A esposa dele sempre me tratou muito bem, até melhor do que muitos familiares meus. Mostrou-se acolhedora e muito cuidadosa”, conta. 125


Quando Micael foi a uma ONG para soropositivos pela primeira vez, acompanhado da mãe, não gostou muito da experiência. Na reunião de apresentação, o clima foi muito pesado, com relatos regados a lágrimas, feitos por pessoas que tinham recebido o diagnóstico poucas semanas antes e que estavam buscando ali um apoio para poder iniciar o tratamento. Para ele, o HIV não era um problema. Micael tampouco se enxergava nas situações que eram expostas pelos presentes na reunião. Como não havia praticamente ninguém fora da família que soubesse de sua sorologia, esperava encontrar ali amigos para conversar e trocar experiências, tendo o HIV como uma característica comum, com a qual todos pudessem se identificar. No entanto, percebeu que estava em um momento de vida diferente daquelas pessoas e resolveu ir embora. Ele voltaria ao Grupo de Incentivo à Vida, o GIV, somente algum tempo depois, desta vez, para ficar. Quando fez 16 anos, a família passou por um difícil momento: a morte da avó. Como ela era responsável pelo equilíbrio da casa (que, além do avô, da mãe e do próprio Micael, agora contava também com a presença dos tios que passaram a morar com eles), as relações familiares foram se desestabilizando e os desentendimentos tornaram-se diários: entre ele e a mãe, entre ele e a tia, mas principalmente entre ele e o tio. Revoltado com a situação da família, Micael decidiu largar o colégio quando cursava o primeiro ano. Por rebeldia, também deixou de tomar regularmente os antirretrovirais - não a ponto de mudar significativamente os exames e preocupar os médicos, mas dava algumas derrapadas propositais quando estava a fim. 126


Surpreendentemente, até os dezesseis anos, Micael não pensava muito em meninas. Chegou a beijar algumas, mas aos poucos começou a perceber que sentia atração mesmo por garotos. Com essa descoberta sobre si próprio, vieram sentimentos como medo e negação, causados principalmente pela dúvida sobre a reação que os pais teriam quando descobrissem sua orientação sexual. “Meu pai tem quatro filhos homens. Para ele, tatuagens e piercings são ‘coisa de veadinho”, comenta. Nesse período, fez um curso técnico em informática mesmo contra a vontade do pai, que exigia que o filho entrasse em uma faculdade de engenharia quando terminasse o ensino médio. Foi o que fez, mais para agradar o pai do que por vocação, e por isso abandonou os estudos um ano mais tarde. Em 2012, prestou vestibular para um curso técnico em Segurança do Trabalho e Saúde Ocupacional, também por incentivo do pai. Foi um novo período difícil para a família, em que o avô e a mãe ficaram internados e os conflitos em casa vieram novamente à tona. “Meu tio disse coisas horríveis para mim. Me xingou de coisas que não consigo esquecer. Me afastei dos meus amigos, passei por um período bem obscuro”, relembra. Depois de um mês sem sair de casa e com depressão por causa do ambiente, juntou forças para buscar um psiquiatra e retomar a vida. Parte de suas preocupações era com a felicidade da mãe, que continuava a sair com o pai, como amante. “Eu nunca vou aceitar, mas comecei a pensar que ela é adulta e que é escolha dela”, diz. Quando era menor, tinha certeza de que o pai se separaria da esposa para se casar com a mãe, mas esse era um pensamento que se esvaía pouco a pouco.

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Terminou o técnico e, aos poucos, voltava à vida normal. Ficou sabendo de um aplicativo para encontros entre homens e baixou para ver no que dava. Foi assim que conheceu o atual namorado. João era seu oposto em muitas coisas: mais liberal, enquanto Micael se achava mais conservador; mais extrovertido, enquanto ele era mais reservado. As opiniões também divergiam bastante, mas Micael se apaixonou. Depois de um mês juntos, em uma noite em que eles estavam assistindo a filmes em casa quando a família foi viajar, ele decidiu contar sobre HIV. “Você se aceitar é o mais difícil. Depois que você se aceita, é mais fácil explicar para as pessoas”. E ele achou que valia a pena. Ao contar, a reação foi mais natural do que poderia esperar: “Era só isso que você queria dizer?”, perguntou João, sem esboçar surpresa. Quando a esposa do pai de Micael ficou doente, em 2014, foi uma surpresa para a família inteira. Ela sempre foi a mais caxias ao cuidar da própria saúde, não bebia e nem fumava. Quando estava em uma viagem com o marido, teve um mal súbito e foi levada ao hospital, onde foi diagnosticada uma metástase. Após três cirurgias, Micael recebeu a notícia de que ela havia falecido. O maior choque, porém, foi com seu pai, que abandonou o emprego e passou os cinco últimos meses só cuidando da esposa. Ela dificilmente teria sofrido com os males da Aids, porque não falhava com a medicação e tinha boa saúde, com ótimos índices de carga viral. O câncer, ao contrário, é uma doença que chega sem aviso e, se descoberto quando já foi formada a metástase, não há muito que fazer. Também em 2014, resolveu dar uma segunda chance ao Grupo de Incentivo à Vida. Voltou a frequentar a ONG,


desta vez usando a experiência como exemplo para as pessoas que acabavam de ter sido diagnosticadas com o HIV. Queria contar que tudo fica bem e que poderiam continuar levando uma vida normal se aderissem corretamente ao tratamento. Não se arrependeu de ter voltado: fez grandes amizades dentro da instituição e pôde orientar muitas pessoas a respeito do HIV. Chegou a participar de um acantonamento em um Workshop sobre HIV em São Paulo, no qual dividiu o quarto com outros soropositivos. “Mas o João não deixou!” conta, rindo. “Ele ia me buscar todos os dias para eu dormir na casa dele, porque tinha ciúmes”. O HIV não é um assunto entre os dois, que são sorodiscordantes e tomam todos os cuidados preventivos. Vão juntos à balada - “adoro a The Week!” - e assistem a peças de teatro frequentemente, incentivados por João, que é apaixonado pela área e fez cinco anos de artes cênicas. Muitas das idas ao teatro são por conta do GIV, que tem parceria com diversas instituições e oferece os ingressos gratuitamente aos afiliados. “Acho que em um ano de GIV, eu já assisti a umas trinta peças!”, diz. Aos poucos, as coisas se encaminham. Com o apoio de João e dos pais, Micael agora está em busca de um emprego na área em que foi formado. Ainda não encontrou o momento certo para falar sobre a própria sexualidade à família, mas quanto a isso está tranquilo. Continua frequentando o GIV para participar das reuniões e dar seu apoio voluntário aos que precisam dele. Com carga indetectável e terapia em dia, o HIV não é um assunto recorrente em sua vida, assim como não deveria mesmo ser. 129


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Caique Quarta Face

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Era 1991, entre a Barra da Tijuca e a Praça da Bandeira, no Rio de Janeiro. Uma mãe atravessa a passos rápidos os velhos portões do Hospital Universitário Gaffré e Guinle, de mãos dadas com o filho. Tentava não deixar o nervosismo e o desespero transparecerem, mas o desconhecimento fazia tudo ficar tão difícil! “Como ele contraiu?” “O que eu vou falar para as pessoas?” “Ele vai morrer?” “Meu Deus, ele tem apenas três anos”. Inúmeras perguntas apareciam e se perdiam em sua mente, misturadas às imagens trágicas que tinha visto na televisão e também aos relatos de amigos e vizinhos sobre a misteriosa doença. Das palavras do médico, só conseguia lembrar destas: “deu positivo”, ditas em tom grave e quase cruel. As perguntas que ecoavam agora em sua mente deveriam ter sido respondidas por ele, mas o doutor não parecia tão acessível - e ela estava tão frágil! Quando o médico a encaminhou para o Gaffré, teve esperança de que as coisas ali fossem diferentes, de alguma forma. Ao entrar na sala de espera para a consulta com o médico infectologista, a surpresa: outras mães, exatamente como ela. E outros meninos e meninas, exatamente como o filho. Quando os olhos delas vieram ao encontro do seu, percebeu que não conseguia esconder o medo de perder o filho - percebeu que elas sabiam o que sentia no íntimo, e percebeu também que elas entendiam. Sentou-se em uma cadeira e caiu em prantos. Sentia-se envergonhada, mas não aguentava mais. Sem uma palavra, as duas moças que estavam sentadas ao seu lado puseram as mãos nas suas costas e afirmaram com segurança: “vai ficar tudo bem.” Não estava sozinha.

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A moça sentada à esquerda, chamada Maria do Carmo, começou a explicar. Disse que o HIV não era uma sentença de morte. Apontou para o pequeno Caíque, seu filho, que desenhava tranquilamente com outras crianças na mesinha da sala de espera. Disse que ele tinha seis anos de idade, e há cinco convivia com o vírus. E que estava tudo bem. Que o acompanhamento médico era fundamental, e que quando chegasse a hora de o filho dela começar a tomar os remédios, ela deveria ficar no pé dele para que não esquecesse de tomar os comprimidos na hora certa. Seus olhos marejados agora se tranquilizavam, graças à compaixão que só uma mãe pode transmitir para outra. Não fora a primeira mulher ajudada por Maria do Carmo naquela sala - muitas mães da Barra da Tijuca e dos bairros ao redor vinham ao hospital com as mesmas angústias e eram recebidas pelas mães que levavam os filhos soropositivos para serem tratados ali. A equipe do hospital oferecia o apoio médico, informações e acompanhamento da saúde das crianças. O fator humano, no entanto, foi construído pelos laços criados entre aquelas mulheres que tinham diferentes condições financeiras, diferentes situações de vida, mas que eram ligadas pelo amor aos filhos e pela condição deles. Maria sempre foi uma mulher forte - trabalhava como advogada quando ficou grávida do primeiro filho, e precisou dar à luz prematuramente aos seis meses de gestação, em maio de 1985. Acompanhou Caíque de perto quando ele ainda estava na encubadora, extremamente frágil. Temendo pela vida do recém-nascido, o médico decidiu por uma transfusão de sangue para assegurar que ele conseguisse se desenvolver. 134


Com o tratamento adequado, finalmente ele saiu da área de risco e pôde voltar para casa nos braços de Maria e do pai, Jefferson. Em casa, cresceu como qualquer menino da Tijuca: até os cinco anos, começou a frequentar a escola e a fazer os primeiros amiguinhos, sempre muito interessado nas aulas e comunicativo com todos. Mas preocupava os pais pelas frequentes dores de ouvido, febres e uma forte caxumba. Maria tratava as infecções do filho à medida que apareciam. Mas, preocupada com sua suscetibilidade a doenças, levou-o a um clínico geral que, diante da baixa imunidade do garoto, indicou um infectologista. Foi quando Maria entrou no Gaffré pela primeira vez, onde realizou o exame de sorologia no filho e recebeu a ,notícia de que ele tinha HIV. Ela e o marido também fizeram o teste, cujo resultado negativo descartou a hipótese de transmissão vertical. Tudo apontava para o fato de que o sangue que Caíque recebeu quando ainda era um recém-nascido trouxe o vírus para o seu corpo. Com a médica infectologista do hospital, aprendeu o que seria fundamental para os cuidados com o filho e que também transmitiria para as mães que orientaria meses depois. O vírus tinha, sim, o potencial de matar, mas percebeu que ela (e mais tarde o filho também) poderiam manter os efeitos do HIV fora de vista. O filho iniciou o tratamento um ano depois, com a zidovudina - o popular e pioneiro antirretroviral AZT - e com imunoglobulina para fortalecer a defesa do organismo. Assim, Caíque continuou a rotina da sua vida de criança, que incluía os estudos - “eu era bem estudioso, só comecei a ficar mais preguiçoso depois dos doze”, contaria anos 135


mais tarde - e também muita brincadeira de criança: pique -esconde, pique-parede, totozinho, pingue-pongue e os videogames estilo arcade, pelos quais era aficionado. Só incluiu os comprimidos diários, que eram tomados logo ao acordar e à noite, antes de dormir. Nas “panelinhas” do colégio, gostava de criar amizade com várias pessoas em uma época em que era comum ridicularizar os amiguinhos no que hoje seria enquadrado como bullying. Enquantos alguns sofriam por terem trejeitos mais femininos e outros por terem cor de pele mais escura, ele às vezes se sentia um pouco mal por ser magro, mas ter uma leve barriguinha - sintoma típico da lipodistrofia, um dos possíveis efeitos colaterais do uso dos antirretrovirais. Na infância, também foi acometido pela catarata em ambos os olhos – problema resolvido com cirurgia. Tinha, ainda, outras doenças oportunistas que o atacavam quando precisava interromper o tratamento. Infelizmente, o Gaffré enfrentava recorrentes desabastecimentos dos coquetéis de combate ao HIV. Assim, os soropositivos que buscavam o medicamento ali muitas vezes voltavam para casa apenas com o suficiente para suprir quinze dias de tratamento por mês, ou menos. Nos momentos de crise, todas as alternativas eram válidas: Jefferson e Maria do Carmo buscavam fontes adicionais de renda para conseguir comprar as drogas por fora. Solidárias, as mães do Gaffré faziam “vaquinhas” para o tratamento dos filhos de todas. Caíque cresceu com os amigos do colégio e com os amigos do Gaffré - que não sabiam nada uns sobre uns os outros e nem a sorologia de si próprios. Para eles, os encon136


tros frequentes na sala de espera eram agradáveis reuniões de amigos. Infelizmente, durante os períodos mais críticos de desabastecimento, principalmente, Caíque notava que alguns amigos simplesmente não apareciam mais. Ao perguntar para a mãe sobre a ausência deles, tinha uma resposta reticente e preocupada. A Aids matava, assim como mata hoje. E seus principais vetores eram - e continuam sendo - a falta de informação, a falta de acesso à prevenção, o preconceito e também a falta de acesso ao tratamento. Certo dia (“uma sexta-feira, nunca vou esquecer”), Caíque foi ao hospital para fazer o check-up de rotina. Enquanto a mãe conversava com a enfermeira, ele desenhava tranquilamente na mesinha adaptada para crianças na antessala do médico. Costumava ficar bastante entretido com as cores que ia usar, se iria desenhar uma árvore ou uma casa, mas, naquele dia preferiu prestar atenção ao que a mãe falava. Não entendia muito bem as palavras - algo como carga viral, números e letras… mas o menino de sete anos gravou uma palavra-chave: HIV. Logo que a enfermeira saiu da sala, não se conteve de curiosidade e disparou: “Mãe, o que é HIV?”. Foi o estopim para que Maria pudesse finalmente explicar ao filho, com palavras fáceis, sua situação, por que visitava o hospital com tanta frequência, ficava doente às vezes e tomava remédios todos os dias. O menino não conseguiu entender completamente e pareceu deprimido. Maria, então, ligou para o marido e pediu que saísse do trabalho mais cedo para conversar com o filho. Chamou também o padrinho e a madrinha, psicóloga, para ajudar na conversa. O baque foi grande, mas o apoio da família revelou-se crucial para 137


que Caíque compreendesse sua condição. Curiosamente, seu maior medo não era morrer. Tampouco temia os efeitos da doença. Seu maior receio era não poder ter filhos. Ao ouvir da mãe que essa era uma possibilidade, o menino, que já acalentava o sonho de constituir família, estremeceu. Aos dez anos, cursando o ensino fundamental, a irmã nasceu. Foi quando soube que a família estava de mudança. Caíque teve que se despedir dos amigos do colégio e do Gaffré. O novo destino era São Paulo, no bairro da Aclimação. O menino retomou o tratamento no hospital de referência Emílio Ribas, cuja qualidade no atendimento era nitidamente superior ao do Rio. Lá, também conheceu amigos que levaria para toda a vida. O médico responsável pelo tratamento de Caíque foi categórico: ele deveria conhecer o nome de todos os medicamentos que tomava. E explicou: se o paciente desconhece o que toma, automaticamente assume que não está aderindo ao tratamento. Caíque cresceu na Aclimação. Na adolescência, tornou-se bem popular entre os amigos do colégio. Ao seu visual de pele morena, acrescentou um belo topete. Curtia sair com os amigos, mas também era viciado em horas de videogame no seu Playstation 2. Quando teve as primeiras paqueras com as meninas do colégio, não se preocupou em falar sobre sua sorologia porque conhecia muito bem os métodos de transmissão. Enquanto não chegasse à fase de ter algum tipo de contato sexual, as precauções básicas eram suficientes para cuidar das parceiras. Assim que saiu do colégio, em 2003, o rapaz de dezoito anos entrou na faculdade de Tecnologia e Desenvol138


vimento de Software, impulsionado pela paixão que sempre teve pelos jogos eletrônicos. No entanto, a grande quantidade de matemática envolvida e a complexidade dos sistemas o desanimaram. Depois de dois anos, saiu do curso. Ficou algum tempo apenas trabalhando como assistente em uma empresa que fazia vitrinismo (decoração das vitrines de lojas). Ali, teve o primeiro contato com máquinas fotográficas, que viraram sua nova paixão. Teve algumas namoradas e, a cada relacionamento, havia o momento, às vezes difícil, em outras mais tranquilo, de revelar à parceira sua sorologia. Ingressou novamente na faculdade, desta vez no curso de Administração. Nessa época, levou um grande susto: uma biópsia, realizada por causa de um inchaço nos gânglios do pescoço, revelou tecido cancerígeno. Anos depois, o sonho de ter uma filhinha foi ameaçado novamente, agora pela possibilidade de se tornar estéril depois do tratamento. Não demorou para iniciar os procedimentos de quimioterapia e radioterapia, que foram bem eficientes: as primeiras sessões já deram conta de mandar embora o inchaço no pescoço, mas também levaram os cabelos. O pai, Jefferson, que sempre foi parceiro do filho em todos os momentos, não teve dúvida: raspou o cabelo para acompanhar o guerreiro da família. Seis meses e trinta sessões de radioterapia depois, o câncer foi eliminado. Ficaram alguns resquícios, como o alto colesterol, mas que não se comparavam ao risco de vida que correu. Além disso, exames mostraram que continuava fértil e a possibilidade de ter filhos o animou. Quando finalmente conseguiu retomar a rotina após o tratamento do câncer, Caíque refletiu e decidiu mudar de curso pela segunda vez: 139


tinha sido dominado pelo prazer de fotografar e decidiu ingressar na faculdade de Produção Audiovisual. Começou a fotografar eventos, como casamentos e aniversários, e ficava cada vez mais maravilhado com as possibilidades e ângulos possíveis para se eternizar um momento na vida de alguém. Em 2010, Caíque atingiu um importante marco: tornou-se indetectável, isto é, com carga viral baixíssima no sangue. Finalizou a faculdade e se especializou cada vez mais no ramo da imagem, com cursos de fotografia e de edição no currículo. No trabalho, seu chefe se impressionava cada vez mais com o talento do moço e com sua habilidade ao tocar na câmera e disparar os flashes. Quatro anos depois, em 2014, a admiração do chefe culminou em um convite para se tornar sócio do estúdio de fotografia. Caíque aceitou de cara o novo desafio profissional e viu portas se abrirem. Os anos de 2014 e 2015 representaram uma virada na vida de Caíque: além da nova oportunidade de crescimento na carreira, conheceu Daniela. Apesar de pouco chegado em tecnologia — e, também por isso, ser aquele tipo de pessoa que prefere ligar para dar felicitações de aniversário em vez de enviar mensagens nas redes sociais —, Caíque acabou aderindo aos sites de relacionamento on-line. Lá, começou a teclar com uma moça muito interessante e atraente, e logo pediu para que se conhecessem pessoalmente. A identificação foi imediata. Quando Caíque percebeu que uma relação sexual era iminente, decidiu conversar com Daniela sobre sua sorologia. Ela chorou, teve muitas dúvidas, mas sabia que o amor era maior do que tudo isso. Caíque esclareceu tudo o que pôde, explicou que cuidados simples seriam capazes de 140


impedir a contaminação e se dispôs a levá-la a uma consulta com seu médico. Ela decidiu ir, munida com uma listinha de perguntas que foram respondidas uma a uma. A informação sobre o HIV extinguiu o medo causado exclusivamente pela ignorância sobre o assunto. Caíque se sentiu realizado, pois nunca tivera uma companheira que o entendesse como ela: quando precisa tirar fotos de um casamento, ela é a primeira a surgir com sugestões de possíveis imagens e referências encontradas na internet, assim como é a primeira a pedir o book de fotos quando pronto para apreciar o talento do namorado. Independente, a moça trabalha na área de finanças e pensa em constituir família. “Estou cogitando ter filhos sim!” exclama Caíque, visivelmente feliz. O sonho de infância está próximo de se tornar realidade. Os devidos cuidados tomados pelo casal, somados à carga indetectável, tornam possível a concepção de um filho biológico e afastam a ameaça de que a parceira e o rebento sejam soroconvertidos. Atualmente, Caíque tenta conciliar a agitada rotina de trabalho com viagens ao Rio para matar a saudade da família e passeios até a Praia Grande para relaxar com o pai, a mãe e a irmã. Sobre o HIV, não pairam mistérios que possam perturbar a felicidade de Caíque: “Para viver bem com a doença, só preciso manter meu tratamento em dia, sem esquecer de tomar os remédios religiosamente e sem deixar de fazer sexo protegido, porque preciso cuidar também minha companheira.

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Joao Pedro Quarta Face

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Era dezembro de 2009. A música que tocava no rádio do carro parecia não combinar com o momento. “A Mi Manera”, da banda espanhola Gipsy Kings, embalava o caminho de Itatiba a Campinas com o ritmo agitado, alegre e dançante da rumba flamenca, um estilo musical variante do flamenco tradicional da Espanha. O momento, porém, não era para danças ou sorrisos. Os nervos estavam à flor da pele, o medo tomava conta e a angústia e a preocupação com o que estava por vir pareciam alongar o curto percurso entre as duas cidades vizinhas, separadas por menos de uma hora de estrada. Uma carta do hemocentro da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), recebida no dia anterior, informou que um exame de sangue, feito há cerca de três meses, identificou algumas alterações significativas e que precisaria ser refeito. “Isso nunca aconteceu antes”, pensou, afinal não era a primeira vez que doava sangue. Como estava há quase dois anos sem doar, porém, não estranhou a convocação. Aliás, não apenas não estranhou, como já sabia de imediato do que se tratava. Não queria acreditar. Não podia ser verdade. Mas, ao abrir a carta e ler seu conteúdo, só uma coisa passou pela sua cabeça. Com a certeza de que sairia do hemocentro com a notícia que mais temia receber, chamou uma amiga próxima para lhe fazer companhia: Alessandra, 23 anos, que conheceu na Escola Superior de Educação Física (ESEF), em Jundiaí, onde fizeram faculdade. Com ela, conseguiria receber a difícil notícia de forma mais tranquila. Tinha medo e não poderia passar por aquele momento sem alguém para conversar e, se necessário, desabafar. Ao chegar ao hemocentro, naquele sábado de calor, 145


descobriu que passaria primeiramente com uma psicóloga. Seu coração começou a bater mais forte, então pediu que Alessandra fosse junto. Chegando à sala, Regina estava sentada em sua mesa, aguardando. Ela os cumprimentou e pediu para que sentassem. Com as mãos entrelaçadas, gesto que costuma fazer em momentos de tensão, sentou-se em uma cadeira ao lado da amiga e esperou a psicóloga começar a falar. A imagem do consultório, as paredes muito brancas, a expressão séria no rosto de Regina e o cheiro característico de hospital até hoje não saem de sua mente. Havia chegado a hora de descobrir, afinal, quais eram as alterações encontradas em seu exame de sangue. Mas ele já sabia, e o que antes já era uma certeza pessoal tornou-se, enfim, um fato: João Pedro tinha HIV. Ao receber a noticia, a primeira coisa que passou pela sua cabeça foi a imagem de Cazuza. O cantor morreu em casa, magro, debilitado e com a família ao redor da cama. João Pedro, com 23 anos à época, imediatamente se viu deitado em sua cama, à beira da morte, e imaginou a mãe sentada ao seu lado, segurando em sua mão e chorando pelo falecimento iminente do filho mais novo. Tinha acabado de se formar na faculdade de Educação Física e sonhava em ser professor. Era saudável, praticava exercícios, comia bem. Era bonito, alto, de porte atlético, a pele branca, mas morena do sol, que contrastava com os olhos muito azuis e o cabelo encaracolado, como de um anjo. “Pena que é gay”, as meninas comentavam. Naquele momento, não pôde conter as lágrimas. Havia recebido uma sentença de morte e sabia que, depois dali, nada mais seria como antes. Deitou a cabeça no 146


ombro esquerdo de Alessandra e, apesar de tudo, sentiu-se feliz que a amiga estava lá para lhe fazer companhia e consolá-lo naquele momento. A psicóloga, então, pediu para que eles saíssem e procurassem a assistência social, onde João receberia o acolhimento necessário. Chegando lá, Dida, uma mulher negra de estatura baixa e de meia idade, os recebeu e os convidou a se sentarem. Chorando, João achou a cadeira mais próxima, sentou-se e cobriu o rosto com as mãos, apoiando os cotovelos nos joelhos. A certeza de que morreria em breve se misturava ao medo e à vergonha, e a imagem de Cazuza não saía de sua mente. Tinha vontade de fugir, de correr daquele lugar e desaparecer. Dida, a assistente social, sentou-se em sua frente e deixou que João desabafasse. Ele contou que estava se imaginando à beira da morte, como Cazuza, e falou do medo, da decepção e tristeza que sua família sentiria quando contasse. Afinal, não teria como esconder por muito tempo. A doença daria as caras, mais cedo ou mais tarde. “Eu achava que sabia o que era HIV, mas não sabia nada”, conta. “A imagem que tinha em minha cabeça era da Aids de anos atrás, de uma realidade que não existia mais”. Acostumada a conversar com pacientes recém-diagnosticados com o vírus, Dida pacientemente explicou que existiam novos medicamentos que permitiam ao soropositivo ter uma qualidade de vida tão boa quanto a de uma pessoa que não tinha HIV. Com a adesão correta ao tratamento, João não desenvolveria Aids e poderia viver normalmente, por muitos e muitos anos, sem que o vírus se manifestasse em seu organismo. A assistente social também contou que jovens de 23 anos com HIV, como ele, 147


tinham expectativa de vida maior que a de muitos da mesma idade que foram recém-diagnosticados com diabetes ou hipertensão, e que soropositivos não precisariam experimentar privações comuns a outras doenças crônicas, já que não havia contraindicações para o uso dos medicamentos. Poderia beber, comer o que quisesse, viajar, trabalhar, estudar, transar. O HIV, segundo ela, é só um detalhe, uma nova realidade à qual João deveria se adaptar, mas que não provocaria mudanças profundas em sua rotina ou em seus hábitos. Enquanto conversavam, João notou a ternura no olhar de Dida, bem como a preocupação dela com seu bem-estar. Hoje, quase seis anos depois, ele ainda lembra com carinho da bondade daquela mulher que nem o conhecia, mas cujo acolhimento foi fundamental num momento em que ele tinha a certeza de que havia recebido uma sentença de morte. “Eu posso dizer que morri e nasci de novo”. Apesar do conforto que sentia nas palavras da assistente social, nada parecia amenizar o que João sentia naquele momento. Ele até poderia viver mais e melhor do que um jovem com diabetes ou hipertensão, mas um homem de 23 pode falar abertamente que é diabético ou hipertenso que não vai sofrer nenhum tipo de discriminação. “Diabetes e hipertensão não rotulam o paciente, o HIV que rotula”, diz. “Junto com o rótulo de soropositivo, você também recebe rótulos de gay, de pervertido, de promíscuo, irresponsável”. Mas e agora? Como seria? Como contaria para sua família e amigos? Decidiu que não o faria. Não agora. Não sabia como os pais reagiriam e não queria causar sofrimento a ninguém. Talvez contasse para a irmã mais velha e alguns amigos mais 148


próximos quando chegasse a hora certa, mas não queria pensar nisso naquele momento. Estava triste, assustado e desapontado consigo mesmo. Não sabia bem o que fazer, mas a conversa com Dida o ajudou a acalmar os ânimos. De lá, foi para a consulta com um infectologista. O médico repetiu exatamente o que a assistente social havia dito, “mas ele não conseguiu me consolar da mesma forma que ela”, conta João. Para sua surpresa, não começaria a tomar nenhum remédio, não por enquanto. O exame de sangue mostrou que a carga viral estava controlada e o índice de CD4, células de defesa do organismo usadas para mensurar a saúde do paciente soropositivo, estava bom – indícios de que a infecção era recente, embora seja impossível saber exatamente em que data ela ocorreu. “Também não queria ficar apontando um culpado, saber quem passou para mim”, diz. “Isso só pioraria as coisas e causaria ainda mais dor”. Saiu, então, do consultório com o compromisso de que voltaria dali a três meses para fazer novos exames. E assim o João o fez. De três em três meses, ele aparecia no hemocentro da Unicamp para passar pelo infectologista e receber a prescrição dos exames que deveria fazer. Com a saúde em ótimas condições e com o nível de CD4 sem demonstrar qualquer sinal de queda, no ano seguinte o médico aumentou a periodicidade de suas consultas para a cada quatro meses. João, que já cuidava da saúde e do corpo, estava saudável e sem indicação para dar início ao tratamento. E foi assim por dois anos: soropositivo, mas sem qualquer sinal daqueles sintomas assustadores que estampavam capas de jornais e revistas alguns anos antes. 149


Até que, em 2011, surgiu um nódulo em seu pescoço. A princípio, não parecia nada grave, mas foi aumentando de tamanho com o tempo e João achou melhor consultar o médico. Suspeitava que poderia ser, enfim, os primeiros sintomas do HIV se manifestando em seu corpo. O problema é que, como a família não sabia de sua sorologia e tinha convênio, ele não poderia simplesmente ir a Campinas consultar um médico pela rede pública sendo que poderia resolver o problema em Itatiba e por um especialista conveniado. Na consulta, porém, João não contou que era soropositivo. A fim de investigar o que estaria causando aquele linfonodo, o médico pediu que João fizesse uma série de exames, que nada revelaram. Foi encaminhado, então, para um cirurgião de cabeça e pescoço, que optou por realizar uma biópsia – exame invasivo que consiste na retirada de uma pequena amostra do nódulo para enviar à análise laboratorial. Mas os resultados da biópsia também não indicaram nenhuma anormalidade. Afinal, o que poderia ser? Cansado de investigar e não descobrir, João Pedro resolveu fazer sua própria busca na internet. “Mas o maldito Dr. Google mais atrapalhou do que ajudou”, conta. Calhou do nódulo surgir no pescoço de João na mesma época em que o ator Reynaldo Gianecchini havia sido diagnosticado com linfoma não-Hodgkin, um tipo de câncer comum que afeta o sistema imunológico e que, curiosamente, causa inchaço nos gânglios linfáticos e afeta quase sempre homens de pele branca, como ele. “Pronto, estou com câncer”, pensou. “Era só o que faltava”. Quando voltou ao médico, alguns dias depois, ele pediu que João fizesse uma nova biópsia, agora mais profunda, para saber definitivamen150


te a causa do nódulo. O exame era, na verdade, uma pequena intervenção cirúrgica, e o resultado demoraria cerca de 40 dias para sair. Para quem já havia se autodiagnosticado com o mesmo câncer do Gianecchini, 40 dias é tempo demais. E para piorar, neste período, João começou a ter sudorese noturna – mais um sintoma característico do linfoma, que ele havia conhecido na internet. “O suor era tanto que eu acordava no meio da noite para trocar a roupa de cama”, conta. Apavorado com a ideia de estar com câncer, ele só conseguia pensar que seria muito mais difícil tratar um tumor sendo soropositivo, e a imagem da mãe chorando ao lado da cama do filho voltou a ocupar sua mente. Quando o resultado finalmente saiu, João foi buscá-lo no hospital, mas não o abriu. Decidiu que abriria em casa, sozinho. E assim o fez. Enquanto abria o envelope, as lágrimas escorriam pelo rosto. Tinha certeza de que estava diagnosticado com câncer, tinha certeza de que, dentro daquele envelope, havia uma nova sentença de morte. Abriu, e para sua surpresa os exames deram negativo para linfoma. Extremamente aliviado, porém confuso, João pensou: “é hora de procurar o infectologista”. Quando voltou ao hemocentro da Unicamp, tomou bronca do médico. Afinal, se ninguém conseguia descobrir o que era, só poderia ser o HIV se manifestando. Para garantir, pediu que João fizesse uma nova bateria de exames. Nada novamente. “Se a gente não consegue descobrir o que é, então só pode ser o vírus”, disse o médico. O curioso é que tanto a carga viral quanto o índice de CD4 de João estavam bons, e, em tese, ele ainda não havia indicação de tratamento. Mesmo assim, o infectologista 151


achou melhor prescrever os medicamentos. Aderir ao tratamento foi outro problema para João. Uma vez iniciado, ele não poderia parar. Se parasse, poderia ter complicações de saúde no futuro, então a única saída seria permanecer dependente de um ou mais remédios para o resto de sua vida. “O problema é que, quando você recebe o diagnóstico de HIV, você pensa no vírus 24 horas por dia. Depois de um tempo, você começa a se acostumar e passa a lembrar só na hora que acorda e na hora em que vai dormir. Depois, você nem lembra mais que é soropositivo”, conta. “Só que o medicamento funciona como um lembrete de que tenho HIV, um lembrete em formato de comprimidos que eu tomava antes de dormir”. E como faria para esconder os remédios dentro de casa? João decidiu que guardaria os frascos em seu quarto, em um lugar onde ninguém iria encontrar, mas que, por precaução, retiraria os rótulos. Ao todo, João tomava três remédios diferentes: efavirenz, lamivudina e tenofovir, e até hoje faz uso dessa mesma medicação, com a diferença que, há um ano, o laboratório resolveu unir os três princípios ativos desses em um só, formando o que ficaria conhecido popularmente depois como o “3 em 1”. João era muito baladeiro, mas decidiu que tomaria os remédios direitinho quando chegasse em casa, mesmo que passasse um pouco do horário. “Recomendação do médico!”, diz ele. “Não posso ficar um dia sem tomar, porque se fizer um intervalo no uso do remédio que o corpo não está acostumado, o vírus volta imediatamente a trabalhar e o medicamento perde o efeito”. Mas mesmo João sendo um rapaz já muito mais bem informado a respeito do HIV do que 152


era quando descobriu sua sorologia, o medo e a insegurança frequentemente ainda batem à sua porta. Certa vez, quando foi buscar sua medicação logo nos primeiros dias de tratamento, ele viu um homem chegar com uma mala e, dentro dela, colocar dúzias de frascos de remédios que a funcionária do posto de saúde lhe entregava. Na hora, João pensou: “Meu Deus, um dia vou ficar igual a ele!”. Não sabia ainda que, se tomasse os comprimidos regularmente, ele não precisaria trocar a medicação ou passar a tomar remédios novos. Orgulhoso, ele afirma que nunca esqueceu de tomar a medicação e, por isso, permanece desde o início do tratamento tomando os mesmos medicamentos. Hoje, com 29 anos, ele se considera bastante conhecedor quando o assunto é HIV/Aids. Sabe tudo sobre o vírus, sobre formas de transmissão, sobre os remédios que toma, as novas formas de tratamento, conhece seus direitos e têm opinião forte a respeito de tudo isso. Mas ele sabe que nem sempre foi assim. “Quando descobri minha sorologia, eu sabia nada sobre HIV, achava que fosse morrer, que ficaria magro, cheio de manchas na pele e definhando na cama”, avalia. “O que eu conhecia é o que saía na mídia, o que as pessoas falavam por aí. A sociedade é muito ignorante quando o assunto é Aids”. E ele tem razão. Uma pesquisa feita pelo Departamento de DST, Aids e Hepatites Virais em 2013, com 12 mil entrevistados, mostrou que 40% das pessoas demonstraram algum tipo de resistência ao serem perguntadas se comprariam frutas ou verduras de um vendedor soropositivo. A pesquisa mostrou, também, que apesar de a maioria das pessoas saber as reais formas de transmissão do 153


vírus, muita gente ainda acredita que compartilhar itens de uso pessoal com soropositivos, como toalhas e escovas de dente, pode ser perigoso. “Até entre pessoas de classes mais altas, que tiveram mais acesso à educação, ainda há quem pense que quem tem HIV está fadado à morte”, comenta João. Para ele, só quem vive com o vírus sabe o que é ser soropositivo e de que forma o vírus impacta a vida das pessoas. “A discriminação contra soropositivos ainda é muito forte porque é tudo uma questão de rótulo”, afirma. Para João, o maior inimigo de quem vive com HIV, hoje, não é o vírus em si ou a Aids, e sim a falta de informação e o preconceito. “O HIV que matou Cazuza e Freddie Mercury não existe mais”, diz. Não à toa, soropositivos têm muitas dificuldades de encontrar um parceiro – principalmente se o soropositivo em questão for homossexual, como é o o caso de João. “A gente costuma achar que nunca vamos conseguir encontrar alguém que nos queira”, desabafa. “Mas eu tive provas de que isso não é necessariamente uma regra”. Ao longo da vida, João teve três relacionamentos amorosos. Todos depois que descobriu sua sorologia. Aos 25, conheceu o primeiro namorado. Como não sabia lidar direito com a situação, esperou alguns meses até contar que era soropositivo. Até lá, só faziam sexo com camisinha, como manda o figurino. “Mas quando eu contei, ele ficou péssimo. Quase entrou em uma depressão profunda”, conta. “No fim, nós superamos isso juntos, mas acabamos por terminar em decorrência de outros fatores”. No ano seguinte, quando já estava com 26, João conheceu seu segundo namorado. Contou para ele antes que rolasse qualquer coisa. “Eu enxergava nele 154


uma pessoa com quem eu poderia ter um relacionamento longo, então achei melhor”, conta. “Ele reagiu numa boa, mas na primeira noite ele quase ‘brochou’. Depois deu tudo certo e ficamos juntos por dois anos”. Hoje, João namora Vitor, publicitário de 25 anos. Juntos há um ano e meio, eles pretendem morar juntos, em Itatiba, mas quando começaram a namorar, Vitor ainda não sabia da sorologia de João. “Contei a ele enquanto tomávamos uma cerveja no bar”, diz. “A reação dele não poderia ter sido mais natural”. Para Vitor, o fato de João ser soropositivo é só uma características dentre várias, e não interfere em absolutamente no relacionamento dos dois. “Ele está com a carga viral indetectável e está mais saudável do que eu jamais estive, então por que eu me preocuparia com alguma coisa?”, questiona Vitor. Desde que se descobriu soropositivo, João passou a se cuidar melhor. Passou a ler blogs, sites, participar de comunidades, e com isso conheceu um novo mundo, cheio de pessoas como ele, com gostos e personalidades distintas, mas que se uniam em torno de uma característica comum: a sorologia HIV positiva. Passou a dar mais valor à vida, “pois só quem recebe uma sentença de morte, mesmo que não seja de fato uma sentença, sabe o que é ter medo de morrer”, disse ele, mostrando os pelos do braço e da nuca arrepiados. João conta que, apesar dos avanços, ainda não se sente totalmente confortável para falar sobre sua sorologia. “Eu não tenho a liberdade social para falar abertamente que vivo com HIV. Poucas pessoas do meu círculo social sabem disso e, sinceramente, eu ainda tenho medo que outros descubram e me rotulem”, desabafa. Ele tampouco acredita que seja neces155


sário falar sobre sua sorologia para alguém. “Há cinco anos, eu fui ao médico e lá eu recebi uma sentença de morte. Hoje eu entendo que, na verdade, eu descobri uma nova chance de viver”, diz. “Eu me considero curado. A única coisa que me diferencia de um soronegativo é o comprimido que tomo antes de ir dormir”, declara, confiante, e finaliza: “Ser soropositivo me ajudou a entender coisas que pessoas que não vivem com o vírus não entendem. Apesar de tudo, eu posso dizer que o HIV me tornou uma pessoa melhor”.

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Rosana Sexta Face

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Os que transitam todos os dias pela região dos Jardins, em São Paulo, podem não saber, mas na esquina da rua Augusta com a alameda Itu funciona um estúdio de tatuagens pioneiro no serviço social. Faz apenas alguns meses que o Studio Urubu, da Tattu Company SP, deu início ao projeto “Tatuando amor”, voltado para mulheres que carregam na pele marcas de violência doméstica ou cicatrizes decorrentes do câncer. A tatuadora Priscila, uma das responsáveis pela iniciativa, explica que a intenção é “transformar trauma em arte”, cobrindo a região marcada com uma tatuagem da escolha da cliente – e sem custos. Foi lá que conhecemos Rosana, uma mulher de 29 anos que carrega nos braços marcas de uma queimadura provocada pelo ex-namorado, com quem permaneceu por um ano e oito meses. Sorridente, Rosana pretende tatuar uma âncora, um coração e uma cruz, tudo num desenho só. Sugestão do marido, Luciano. “A âncora representa a esperança, o coração representa o amor e a cruz, a fé em Deus”, explica. “Uma coisa não pode existir sem a outra, e eu quero levar esse ensinamento comigo para sempre”. Rosana é somente uma entre milhares de mulheres brasileiras que são ou foram vítimas de violência doméstica. Mas ela também faz parte de uma outra população: a de pessoas vivendo com HIV. Soropositiva desde que nasceu, em junho de 1986, Rosana foi abandonada na maternidade e adotada poucos dias depois por Teresa, viúva e mãe de outros cinco filhos, moradora de São Bernardo do Campo, cidade do ABC paulista. Até hoje, Rosana não tem informações sobre a mãe biológica. “Se tinha Aids e teve que me deixar por não ter condições de criar, provavelmente está morta”, diz. 159


Sempre com o smartphone em mãos, Rosana adora conversar com os amigos e registrar os momentos felizes em sua rede social. Seja no bar com a turma, cozinhando com o marido ou reencontrando uma velha amiga, em todas as fotos ela aparece com um sorriso estampado no rosto. Rosana é assim: uma pessoa positiva “em todos os sentidos”, como ela mesma gosta de se definir. Aposentada desde 2011 em decorrência de uma sequela deixada pelo HIV, ela atualmente é voluntária do Grupo de Incentivo à Vida (GIV), uma ONG voltada para o acolhimento de soropositivos. Lá, ela ajuda no Dia da Beleza, ajudando a fazer maquiagem e o cabelo das mulheres. Rosana é um caso raro de transmissão vertical. Geralmente, crianças que nasciam com HIV nos anos de 1980 não conseguiam sobreviver aos primeiros meses de vida. Rosana não somente sobreviveu a este período como demorou sete anos para finalmente ser diagnosticada com o vírus. O caminho até lá, no entanto, não foi fácil. “Se eu disser o tanto de doença oportunista que eu já tive, você vai fazer uma lista”, comenta ela, em tom descontraído. Criança, ela teve anemia, pneumonias recorrentes e até tuberculose. “Eu estava desenganada. Os médicos não sabiam mais o que fazer e ninguém conseguia descobrir o que eu tinha”, conta. Foi somente em 1993, quando Teresa levou a filha para o Serviço de Assistência Especializada Herbert de Souza, popularmente conhecido como SAE-Betinho, localizado em Sapopemba, bairro da zona leste de São Paulo, que os médicos finalmente descobriram do que se tratava. “E nem precisou de muita coisa, só um exame de sangue”, ressalta 160


Rosana, entre risadas. O teste revelou que o número de CD4 – as células de defesa que medem a resistência do corpo ao HIV – estava zerado e a carga viral em um milhão de cópias por mililitro de sangue. Como Rosana estava viva, nem os médicos sabiam explicar. Mas agora, com o diagnóstico definido, ela só precisaria esperar que os primeiros antirretrovirais, medicamentos usados para tratar a Aids, estivessem disponíveis no Brasil. A zidovudina, ou AZT, como ficou mais conhecida, chegou ao país somente alguns meses depois. O problema é que Rosana era alérgica ao AZT, mas dado o seu estado de saúde, ela não tinha outra opção se não fazer uso do remédio mesmo assim. Uma vez iniciado o tratamento, ao qual depois foram incluídos novos medicamentos, os resultados logo começaram a aparecer: o nível de células CD4 saiu do zero e a carga viral passou a diminuir. Ela não se lembra da consulta em que foi revelado o diagnóstico positivo para HIV, mas tem guardada na memória a lembrança de estar sentada em frente à televisão, em sua casa, quando viu uma notícia no telejornal falando sobre os novos medicamentos para Aids no Brasil – os mesmos remédios que tomava. Rosana tinha nove anos. “Perguntava para a minha mãe se eu tinha aquela doença que apareceu no jornal, mas ela negava”, conta. “Se eu não tinha nada, então por que estava tomando remédio? Resolvi que ia parar”. Preocupada com a saúde da filha, Teresa marcou uma consulta com a mesma pediatra que deu o diagnóstico da menina, dois anos antes. Juntas, elas decidiram que o melhor a fazer era contar à Rosana sobre o HIV. Mas, para isso, também teriam que falar sobre a adoção. “Doeu mais saber que eu era 161


adotada do que sobre a doença em si”, lembra. Em seus anos de escola, Rosana sofreu discriminação tanto por parte dos colegas de classe quanto dos próprios professores. “Pouco depois de ser diagnosticada, eu ainda estava com a lesão no rosto e sem cabelo, mas mesmo assim não faltava à escola. Colocava uma touca de lã na cabeça e ia”, diz. “Mas as crianças eram maldosas. Elas diziam que eu tinha malária, e eu nem sabia o que era malária! O que tinha a ver uma coisa com a outra? Elas pegavam minha touca e saiam correndo, era um tormento”, conta. Quando estava na segunda série, Rosana conta que as crianças lhe atiravam pedras e gizes e a chamavam de “aidética”. Já na adolescência, Rosana caiu na balada e se envolveu com drogas, principalmente álcool, lança-perfume, ecstazy e cocaína. Os remédios não tinham mais espaço em sua vida. Começou a usar cabelo moicano, fez várias tatuagens e colocou piercings pelo corpo. “As pessoas tinham medo de mim, eu tinha cara de brava”, diz ela, que pondera: “eu era loucona, mas era boa aluna”. Nesse período, porém, sua saúde voltou a piorar. Teve diversos problemas causados por causa de sua baixa imunidade e precisou ficar internada por três meses após uma infecção por citomegalovírus alojada no olho, que se desenvolveu para um quadro de retinite. A doença comprometeu totalmente a visão do olho direito e 60% a do olho esquerdo, deixando-a com o conhecido “olho de coruja”. Aos 16 anos, quando estava no terceiro colegial, Rosana só andava com meninos, mas ninguém sabia de sua sorologia – com exceção da direção da escola e da professora de matemática, de quem ficou amiga. “Eu frequentava a casa 162


dela, almoçava com ela e o filho, que na época estava com câncer de pulmão”, conta. Um dia, em uma festa, Rosana bebeu demais e acabou beijando o menino mais bonito da sala. “Meus colegas de classe começaram a espalhar o boato de que eu havia transado com ele, mas eu era virgem”, diz. Na semana seguinte à festa, a professora de matemática pediu para que todas as meninas se retirassem da sala, pois ela queria conversar sobre um assunto muito importante somente com os rapazes. Para eles, a professora disse que deveriam tomar cuidado com Rosana, porque ela tinha “Aids” e transava sem camisinha para infectar as pessoas de propósito. “Ela me expôs, disse mentiras e me chamou de manipuladora, de safada”, conta. Sentindo-se humilhada, Rosana contou o ocorrido para a psicóloga que a atendia. Poucos dias depois, a representação jurídica do SAE-Betinho entrou com um processo na Secretaria de Educação contra a escola e a professora, que foi afastada e precisou responder publicamente pela exposição e humilhação da aluna. Mesmo com a saúde debilitada por causa da má adesão ao tratamento, Rosana continuou a fazer uso de drogas. Foi quando conheceu a religião. “Um amigo da escola me falou da Bola de Neve e eu fui com ele conhecer”, conta. A Bola de Neve é um tipo diferente de igreja evangélica, com um ambiente muito mais descontraído e totalmente voltado para o público jovem. O altar, onde o pastor que celebra o culto apoia sua Bíblia, por exemplo, é uma prancha de surfe. A visita surtiu efeito sobre Rosana. “No dia seguinte, eu fui para a balada, mas não usei droga. Estava quieta no meu canto quando ouvi uma vez dentro da minha cabeça dizendo que 163


eu não pertencia mais aquele mundo”. A partir daí, Rosana resolveu que ia parar definitivamente com as drogas e passou a frequentar a igreja. Apesar disso, não se considera evangélica, e sim cristã. “Não gosto dessas taxações”, afirma. “Esses pastores que se dizem cristãos não me representam e não servem ao mesmo Deus que eu. Eu não sou preconceituosa igual a eles e não tenho a mesma mentalidade”, desabafa.

Discriminação dentro da igreja Os episódios de preconceito, porém, não se restringiram à escola. Até mesmo dentro da casa de Deus, havia aqueles que a discriminavam por ser soropositiva. O primeiro caso aconteceu quando Rosana tinha 18 anos. Na época, ela conheceu o primeiro namorado, que frequentava a mesma igreja que ela. Por medo de rejeição, preferiu não contar imediatamente que tinha HIV. “Mas sempre usávamos camisinha”, ressalta. Na verdade, quem fez a “gentileza” de contar a ele foi o pastor da igreja. A reação, apesar de não ter sido das piores, foi de encontro ao comportamento dos meses seguintes. “Não gosto muito de falar sobre isso, se não se importam”, disse, abaixando os olhos. Neste momento, percebemos que as marcas de queimadura no braço não eram as únicas cicatrizes que Rosana trazia consigo. Algumas marcas são invisíveis aos olhos e somente quem as carrega sabe o quão profunda elas são. Já em 2009, aos 22, passados quase dois anos após o término do namoro, Rosana conheceu outro rapaz, também da mesma igreja que frequentava, e pelo qual imediatamente 164


se interessou. O pastor, que agora era outro mas que também sabia da sorologia de Rosana, no entanto, achou que seria prudente avisar ao menino que ele estava “flertando com o inimigo”. Disse que ele não sabia onde estava se metendo e que, se optasse por ficar com Rosana, ele se arrependeria para sempre de sua escolha. “O rapaz desistiu de ficar comigo por causa do vírus. O pastor fez a cabeça dele”, conta. Nessa época, apesar de estar com a imunidade boa, Rosana foi internada com pneumonia na unidade de Santa Cruz do Centro de Referência e Treinamento em DST/Aids (CRT). Lá, ela logo ficou amiga das enfermeiras, que comentaram de um homem que também estava internado por causa de complicações do HIV. O rapaz era Luciano, dois anos mais novo que Rosana e que também estava com pneumonia. “A gente começou a conversar e eu descobri que ele também tinha contraído o vírus por transmissão vertical”, conta. “Eu falava para ele sobre a palavra de Deus, ele ouvia e assim nós fomos nos aproximando, nos conhecendo melhor”. A amizade logo se transformou em namoro. Quatro anos mais tarde eles se casaram tanto no religioso quanto no civil. “Quem celebrou a nossa união foi o capelão do CRT, um amigo muito querido”, diz. Hoje, com três anos de casados, Rosana e Luciano vivem em uma casa confortável em São Bernardo do Campo na companhia de seus dois gatos: Nicodemos e Tulipa. “Tem quintal, portão, tudo bonitinho e ajeitadinho”, descreve, com carinho. Ela, aposentada, ajuda a pagar as contas fazendo bicos como cabeleireira, cozinheira, balconista ou até como operadora de telemarketing. Já Luciano é gerente adjunto de 165


uma rede de drogarias em São Paulo. Feliz, saudável e com a carga viral indetectável após anos de luta e compromisso com o tratamento, Rosana hoje acredita que não seria a mesma pessoa se não fosse o HIV. “Eu não teria conhecido meu marido, por exemplo”, comenta. “Cada internação, cada adversidade, tudo serviu para que eu pudesse ajudar alguém ou aprender algo novo”. Ao perguntarmos se ela é sempre assim, positiva e alegre, Rosana responde: “Quando recebem o diagnóstico de HIV, as pessoas tendem a achar que a vida delas acabou, que tudo vai mudar. É verdade, tudo vai mudar, mas é porque uma nova vida está começando. Aí depende de cada um decidir se vai levar essa nova vida para o lado positivo ou negativo. Já que o teste deu positivo, por que não ser uma pessoa positiva também?”

Historias Positivas Seis Faces do HIV

Gabriel Henrique Oliveira e Silva Vinícius De Vita Cavalheiro Orientação: Profa Dra Cilene Victor Faculdade Cásper Líbero

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