Série Enfrentamentos
Silvana Leal
2021 Vinicius Sena
Enfrentar
verbo
1.
transitivo direto e intransitivo e pronominal
estar ou colocar(-se) defronte a; defrontar.
2.
transitivo direto, transitivo indireto e pronominal
encarar frente a frente.
derivação do voc comparativo do lat in-+frente+ar1, como espanhol enfrentar.
CORPO , LENTE E IMPROVISO
i. O ano era 2020, e imaginar o que poderíamos enfrentar estava longe de ser o que vivemos hoje. Nos defrontamos com a tragédia, com as ausências e principalmente com o luto - este que nos incita, intransitivamente , a defrontar com aquilo que diretamente nos afeta.
E assim, transformamos e reinventamos a nossa experiência sensível e afetiva para uma condição da realidade humana em que hoje exprimimos, de nós mesmos, o avesso. (E que vale ressaltar, que muitas vezes degradante). Falo isso, tendo perdido meu pai durante uma pandemia, porém não sendo causado pelo vírus COVID-19, contudo a ausência e a perda de um ente querido, assim nos faz redimensionar nossa experiência no mundo - e nesse caso, procurando revisitar imagens antigas da família, entre lágrimas de alegrias e sorrisos tristes - encontro uma série que participo com a artista Silvana Leal meses antes do anúncio da pandemia, e que estabelece uma nova conexão simbólica na construção da minha imagem enquanto artista e humano, afoito num emaranhado de sentimentos, sensações e emoções, somada à experiência continuada com o mundo.
Procuramos em nossos primeiros encontros da residência artística explorar maneiras locutivas que de alguma forma apresentassem nossos universos simbólicos, destacando pontos importantes entre temáticas, saberes, relações de suporte e transposições de ideias.
Levantamos da mesa. (pensamento em pé). Saímos do lugar comum do sentado. Testamos nossas perspectivas. Falamos de corpo, nos alongamos, testamos o espaço e enfim pegamos a câmera. O resultado saiu como um improviso de nos interver, e dessa vez, era eu quem estava sob as lentes da câmera e do improviso.
Nos primeiros minutos e durante os primeiros clicks, sem perceber, me levantava da postura/do cenário e me dirigia até a Silvana para ver o retrato, o resultado da luz e a pose. Era um jogo de monta e desmonta. A minha insegurança não permitia que meu corpo ali ficasse e por assim confiar no resultado depois de terminado. Depois de terminada a nossa sessão de fotos, eu teria conseguido atingir um desfecho imaginado?
Pouco mais de um ano depois dessa série de fotos tiradas por Silvana Leal durante os primeiros meses da 8 residência artística no Ateliê Casa das Ideias - revisito as fotografias com um outro olhar, dessa vez me percebendo alter. De certa maneira, não reconheço o que vejo e contágio-me na surpresa dos afetos aos reencontrar as imagens.
Foi um momento de distanciamento - que eventualmente proporcionou um deslocamento da atenção. Hoje os cuidados são outros - e por isso o olhar para o mundo passa por ser mais compreensivo e zeloso, e que foi fruto, de enfrentar a construção de uma imagem criada para a imagem efetiva, o resultado que temos, é o que hoje aprendo como a qualidade do zelo e carinho.
Enfrentar é, de alguma maneira, usar da estratégia para defrontar aquilo que não queremos - - e acima de tudo- manter estrategicamente cuidado aquilo que queremos que ainda permaneça conosco. O que então acolher de aprendizado numa série de enfrentamentos?
Enfrentar a realidade de que, não prazeirar-se é perder-se na possibilidade infinita do prazer.
(Quando tornamos o verbo, ou o próprio prazer, infinito)
Enfrentar aquilo que estabelecemos como “o caminho” possível, enfrentar aquilo que violenta nossas opiniões, gestos e atitudes mais sinceras. É sobretudo, enfrentar o medo de não cristalizar. Esse caminho do mundo das ideias e experimentações para o campo da criação e realização, na verdade carecem de determinação de enfrentar aquilo que muitas vezes nos paralisa. E nesse caso, a certeza é uma forma de paralisia.
Uma visão obliterada, engana as belezas e não reconhece as qualidades daquilo que se é produto - Eu não via minhas belezas, e nem reconhecia com qualidade aquilo que produzia e isso afetava tanto a minha estima pelo trabalho - quanto minha autoestima. Quando falamos numa perspectiva de realização, pensamos em transposições do mundo das ideias de cada um para o espaço da representação, realização e produção - ou seja, o fazer artístico carece dessa necessidade de enfrentar a sobreposição do mundo das ideias para a realização, para que a criação seja de fato humana. E nesse sentido, a série Enfrentamentos, humanizou a minha experiência quando um ano após, tenho a oportunidade de ressignificar as diferenças e ainda gostar do que vejo - diferente da impressão que tive num primeiro momento. E isso talvez tenha se dado pelo fato de olhar para a fotografia longe das expectativas que estabeleci quando iniciamos o exercício entre corpo, lente e improviso, fazendo com que essa “certeza” da imagem que eu gostaria de alcançar não exista, dilui-se no tempo.
Mas fato é, hoje me sinto atravessado e cativado pela experiência com a Silvana Leal. E falando enquanto gay e negro, foi um processo de amadurecimento e subjetivação de qualidades que antes eu não conseguia exergar - e por isso, a série Enfrentamentos me ensinou sobre a evidência e necessidade de madurar, assimilar, discorrer, inclusive de compreender uma ideia, uma imagem. À vista disso, acredito que o deslocamento da fotografia no tempo, tem uma dimensão do carinho - de uma memória afetiva, e talvez, hoje, eu goste desse material exatamente pelo fato daquilo que eu gostaria de ser, buscava realizar, concluir - apesar de todas as inseguranças presentes no momento da série.
O que temos é uma série de fotos - intitulada ``Enfrentamentos'', organizada pela artista Silvana Leal e eu como intérprete criador. Enfrentar pelo simples fato de encarar meus desconfortos e minhas inseguranças para ali estar.
(trabalhamos com situações postas pelo acaso.)
O que tenho em memória, é em definitivo, que não havia gostado. A confusão entre expectativa imaginada sobre a realidade e o que se retratou na imagem, não figurou algo fantasioso o suficiente para que se deixasse de lado a crítica a postura, a cena ou cenário, do ângulo ou quadro - para de fato impressionar-me. Então, poderia eu estar mais comprometido com o estado crítico, do que de fato, o da experimentação? Estar a frente de uma câmera e ser o objeto a ser retratado, não é uma tarefa fácil. Digo sendo a primeira vez que tive um momento de intimidade com uma câmera sob a égide de uma mestra, ali buscando outros ângulos do olhar, do corpo - uma comunicação por vezes esquecida. Ainda assim, o incômodo de não ter o controle do retrato, o incômodo de não ter o controle da imagem. Pela proposta, o incômodo localizava-se em estar vulnerável. Mas o simples estar incomodado, não resulta numa ação transformadora de colocar-se/ enfrenta-se frente a uma divergência. Foi preciso uma direção para o incômodo.
Testamos figurinos, peças, testamos acessórios. Unimos algumas coisas pessoais com outras peças do próprio acervo do Ateliê Casa das Ideias e essa imagem estava distante daquilo que eu via de mim fora e dentro de casa. Não é exatamente que não gostasse do que via, mas por nunca estar nesse lugar e tempo de artista ou profissional, vestir determinadas peças exatamente para representar uma imagem daquilo, não era só distante para mim, como até, irreal.
A série Enfrementamos assim se apresenta numa realidade de perceber o meu corpo e minha experiencia - enquanto um individuo racializado - e que enfrentar esse trabalho - foi também elaborar e compreender os estigmas e estimas que me foram incucados e retirados, respectivamente, nos processos de escolarizaçao e socialização - e que faz com que nós negros tenhamos certa dificuldade de quantificar e mapear essas potências, qualidades e identidades, enquantos agentes sociais.
E por isso falar sobre enfrentamentos, pra mim, é falar sobre uma estima que foi estilhaçada pela racialidade brasileira ao qual, acaba munindo os espaços de construção de indentidade e subjetivdades do corpo negro - em 2018 eu construo junto com minha colega Lara Albrecht - uma série de fotografias entitulada “Solitude” - onde procuro formalizar em imagem uma pesquisa que estava em andanmento sobre a “solidão do homem negro”, fazendo uma conexão entre os dois trabalho e um caminho comunicativo ao debate da produção de subjetividades e indentidades numa esfera da estima racializada. A série atual parte de um exercício em construir uma imagem de um artista-curador, para pensar sobre a experiência imaginada desse trabalho, com a própria realidade vivida. Estaria, meu corpo negro, em solitude num constante enfrentamento?
E nesse momento uma pergunta surge e nasce com a mesma intensidade de ser respondida “em que medida a arte transforma a vida?”. E de onde parte o enfrentamento de cada indivíduo para uma ação transformadora? Para criar um enfrentamento é necessário sujeitos e uma ação, que gere um contexto. A insegurança gerada por alguém, a insegurança gerada pelo apego às ideias, a insegurança gerada pelo extremo controle dos pensamentos - falseiam os sentimentos entre uma realidade de estar vulnerável versus manter o controle, e assim cada sujeito parte de uma realidade distinta. Agora, no que diz respeito ao trabalho prático e artístico, a ação é descontrolada. Inesperada força do acaso.
Para essa ação criativa foi necessário o tempo para a tomada de consciência da imagem do medo, e não só da imagem resultado. Talvez, o tempo e a tomada de consciência da imagem, seja o puro acontecimento do resultado esperado com a série. Com isso, o enfrentamento sobressaltou numa matéria de aprendizado, que corrobora com a prática artística, e matura, com o tempo, outras sensibilidades afetivas capazes de engendrar a criação numa potência contagiante e singular à cada experiência de enfrentar.