Silva 1996 samba espaço urbano estado novo

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Universidade Federal Fluminense lnstituto de Ciencias Humanas e Filosojia

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Cadernos do ICHF Serie Estudos e Pesquisas -

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Cidade, Poder e Controle Social

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Gizlene Neder* (organizadora)

N° 72 -Ju/ho - 1996 •, . -r; ~- :" ---:-

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;§<\-~ * Professora do Departamento de Hist6ria

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0 LUGAR DO SAMBA As relm;:Oes entre o samba e o espa~o urbano no Estado Novo Alberto Ribeiro da Silv:a

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1. 0 Estado Novo e a vida cultural brasileira

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Oestado no bojo de uma serie de transformac;oes inauguradas com a revoluc;ao de 1930, o chamado Estado Nov_p_leva ao poder a ideia do Estado como condutor de uma proposta de mudanc;a social baseada no pressuposto de que "a autorldade _e ~ e1<pr~ssao ~dinamica da vontade coletlva compelindo as forc;as da iniciativa Individual a manterem-se dentro de limites compativeis com a seguranc;a estrutural do slstema" 1• Neste sentido, a soluc;ao estadonovista e "a democracia autoritarla ( ... ) interpretac;ao realistica do 2 verdadeiro sentido da democracia" . Embora o Estado Novo tenha sido fruto de ideias formuladas muito antes de 1937, ea partir dai que tais ideias receberam uma roupagem oflcial e foram utilizadas como instrumento de poder ate I 945. A governabilidade do Estado Novo, assim, se_ fez atraves da "restric;ao da liberdade de <2_Piniao, com censura total da imprensa, punic;oes para as discordancias publicas, r~ressao conti:_a os opositores ativos, demissoes e aposentadorias dos inconformados, tribunals de excec;ao, tortura (incipiente), confisco de livros, hipertrofia do conceito de segurans:a, transformada em palavra chave e onimoda. Como nao havia Senado, nem Camara, nem Assembleias, dissolvidas pelo golpe de 10 de novembro, o 3 arrocho era completo" . "A vida possivel era subterranea, ea unica opc;ao que restava era a adesao - muitas vezes duvidosa -a verborragia oficial',4. Alem da_censyra propriamente dita, havia sanc;oes e penas previstas - a maioria em lei - para os infratores: sim-p les advertencfas, multas e SUSpensao para OS -a-rtistas e empresarios; suspensao de funcionamento de empresas teatrais e de diversoes publicas, apreensao de f11mes, cassac;ao de licenc;:as para funcionamento, censura previa durante determinado tempo, apreensao, suspensao ou interdic;ao de peri6dicos, destituic;ao de cargos, suspensao do exercicio profissional, suspensad de favores e isenc;:oes, prisao 5 . 0 :-egime, no entanto, tev_e uma preocupac;ao sistematica c~ m j!-lsU~r~se~ n~o s6 pelo Direito mas Qrlnclp9 1rnente levando as massas, P. .mtie.ularm_ente atrayes do radio, uma gutra "interpretac;:ao" do Estado de excec;ao, como se pode observar num dos inumeraveis discursos de Getulio Vargas nac;ao: -

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Azevedo Amaral. 0 estado autoritario e arealidade nacional. Rio de Janeiro. Jose Olyrnpio, I 938, p. 308. 2

Idem, p. 309-310,

3 Antonio Candido. Os e~critores ea ditadura. Oplnlao, 26/09/1975. 4

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Carlos Gullherme Mota .

Cultura e Politica no Est ado Novo (1937-1945) .

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Encontros com a Civilizafd.o Brasileira. (7):88. 1979.

Jan.

5 Decreto n° 5.077 /39, 9 Art. 7 , letra "c" e 8°, tetras "c" e "f". Lex, 1939. p. 673.

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regime e au nao democrat/co. As oligarquias antigas e modernas, os regimes de privilegio, muitas vezes se apelidaram democrat/cos. E o eram, na verdade, para uma parte da popularao que /hes usufrufa as vantagens. /'lao devemos, par conseguinte, preocupar-nos com os varios sentidos emprestados palavra democracia. Para os espfritos retardados ela e o velho Jago polfticoeleitoral, com restriroes maiores ou menores: a oposirao cr6nica entre governantes ou governados, o Jiberalismo degenerado em licensiosidade. Quanta a nos (.. .), torna-se facil verificar que a democracia e a form a de governar em beneficio do povo coma um todo, em funp'io dos interesses supremos da Patria, acima das 6 imposir;oes de grupos, de cla ou de religiao.

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Edgard Carone considera que, nessa epoca, o _gQder de falar sozinho, de ser o _im.Lc.o_p...Qrta-voz livre, qa inteira liber,: <!ade de a<;:ao ao govern__g, o que o torna Rratica_!!l_en~e ~nico a · se express_ar___p.ub.li.<;;ame-nte dur:ante -o- Estado_ NQYQ__ . Carone acred ita que, sem oposi<;:ao, sem ninguem para contestar-lhe a propaganda e a verdade, o governo usou de todos os meios 8 para se expressar e para impor sua imagem . Discordo _do · atLlQLp [__e_d s.ante.nle_p_ur acr~ditar q·ue e justamente essa pro~anda - ajlada,_e_cJ.am a represstio - qu~ Faz com que o Estado-Novo ROSSa se.r_o U!!_icO _:_dono da_voz". E mais: que ela ~ era necessaria exatamente para que o Estado Novo Fosse capaz de manter-se enquanto interlocutor aceitavel. Afinal, se, como lembra o pr6prio Carone, a ce___nsura aos jornais era total, nao se visl umbrando o minimo sinal de noticias contrarias ao governo; se o radio era um lnstrumento que era frequentemente utilizado para levar noticias e informa<;:oes oficiais; se, enfim, tt.ido estava sob controle, qual era a necessidade de o governo, atraves do DIP, promover, por exemplo, a distribui<;:ao gratuita de livros e folhetos, patrocinar a edi<;:ao de revistas, manter sob controle absoluto dois jornais e a maior esta<;:ao de radio do pals senao porque tinha um projeto de propaganda politica no qual via a possibilidade de convencer a sociedade de seu projeto politico? Na verdade, o Estado No_vo_tinha um_p_r.oj_eto bastal")te c laro de obten ao da hegemonia que contava, como arma prioritaria, a divul _a<;:ao de_suas J deias_panL o maior num_er_Q__ _de pessoas possiveLe ~ do malor numero de suportes a S!J_a disposi<;:_ao,~o que e diferente de utiliza-los apenas porque detinha o poder da falar sozinho. Aderriais, ha via toda uma intelectualidade absolutamente•. s=~mprometida com o r~gime. Essa intelectualidadejamais fugiu _ a_qu~lquer oportunidade de fazer pub Ii ca e_ ampl~me!:!t~a_ 6 Apud Raul Guastlni. defesa do regime. Vejamos a descri<;:ao recente que Otto Lara Ideario politico de Getulio Varyas. Sao Paulo, s. ed., Resende nos faz ..desse periodo:

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1943. P• 199-200. 7

er. Edgard Carone. 0

Estado Novo (1937-1945}.

Sao Paulo/Rio de Janeiro , DIFEL, 1976, p. 169 . 8

Idem, p. 170.

Era no ter1po do ministro Gustavo Capanema, que tinha coma chefe de gabinete o seu colega de cq/egio, um rapaz chamado Carlos Drummond de Andrade. ffomem publico que, cu/to, lia quatro horas por dia, chovesse au fizesse sol, Capanema cercou-se de uma

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pleiade de valores. A/em do Mario de Andrade, a quem coube escrever o anteprojeto do Servi<;o do Patrim6nio lfist6rico e Artist/co /Yacional, Capanema tinha, frente desse instituto, a figura aposto!ar' de Rodrigo M. f'. de Andrade. (... } La estavam outros de igual valor. Abgar Henault, por exemplo, que reune sua obra de professor e pedagogo uma dimensao de grande poeta (. .. }. Oscar l'liemeyer, que, coma Portinari, enriqueceu a equipe de Capanema, tem razao no julgamento que faz daquele perfodo de nossa vida cultural. Diz e/e que Capanema foi uma figura da Henascent;a. Como os grandes renascentistas, tinha uma visao universal e humanist/ca da cu/tura em todas as suas manifesta<;oes. Sua recem-criada pasta era de Educa<;ao e Saude e nao trazia, ostensivo, o compromisso com a Cultura. EloqrJente prova de que nao e o r6tulo que faz o mange. (. .. } Ein plena epoca de ascensao do fascismo no mundo, com uma ditadura instalada aqui a partir de IO de dezembro de 1937, deu-se um fen6meno quase paradoxal de florescimento cultural. E nao apenas isto. A frente desses 6rgaos recem-criados, encontravam-se intelectuais de primeirfssima ordem. Todos, ou quase todos, eram poetas - e poetas cultos, a exemplo de Manuel Bandeira, que co/aborou com Capanema e em particular no !!'IL.

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Os anos renascentistas de Capanema sao um exemplo e um estfmulo para o Brasil estavel e democratico de hoje, ta/ coma o desejamos. 0 mutirao que mobilizou a Nintelligentsia daquele momenta nao deixou ninguem de fora, do universal Villa-Lobos ao humanista Lucio Costa. Baslaria dizer que Oraciliano Ramos saiu da cadeia para ser distinguido e homenageado pelo mesmo Capanema ... 9 H

A longa citai;ao acima, embora obviarnente cornprornetida_com o projeto estadonovista, decorridos 55 anos do golpe de 1937, demonstra claramente qual a linha politica pretendida pela ditadura varguista. Nao e por ingenuidade que Resende considera aqueles anos coma "renascentistas". Outro depoimento importante da atitude dos intelectuais para com o regime e uma carta, datada de 2 de setembro de 1942, em que Genolino Amado, um dos homens de radio mais respeitados a epoca, se oferece, graciosamente, para implantar no pais urn sistema de propaganda radiof6nica para o qual tin ha como carta de apresentai;ao sua reconhecida experiencia. Sigamos alguns de seus argumentos: (. . .} Concentrado em sessenta e poucas estapies, o radio conquistou um publico talvez maior do que o da imprensa, devendo-se notar que ainda em I 938 o numero de aparelhos receptoresja ia a/em de um milhao. Sendo talvez maior, 6/Jte pi1blico certamente mais

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Otto Lara Resende. Um surto renascentista no Brasil dos anos 30. Folha de Sao Paulo - nustrada. 22/11/1992, p. 6-3.

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influenciado, nao s6 pe/o encantamento especial da palavra falada, pelo seu facil dom de convencer e emocionar, coma tambem e principalmente porque, nao obstante suas deficiencias culturais, o radfo nao passou pelo longo processo de descredito que sofreu a imprensa a serviro das exploraroes politiqueiras da velha Republica. o leitor doJoma/ e quasi sempre um cetico a respeito cfa opiniao dos articulistas, enquanto o ouvinte de radio e quasi sempre um crente na opiniao transmitida pelos locutores (... ). (.

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Entregues explorar;ao industrial do microfone e sujeitas somente ao contr6/e do DIP no que se refere a assuntos politicos ou de moralidade publica, as emissoras particulares cuidam quasi exclusivamente de fornecer programas que atendam ao interesse dos anunciantes e estes, par sua vez, preferem o que /hes parece de mais facil aceitap:io - isto e, a musica mais elementar, a sentimenta/idade mais entorpecida da energla popular, o humorismo mais barato, geralmente em linguagem de glria, ao som das batucadas de mon-o, para a exaltarao da malandraaem, que se utiliza o grande instrumento educacional. To

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Tree ho de extensa car ta {11 paglnas) de Genollno Amado ao presldente Vargas, de 02/09/1942. Pro tocolo da Secretarla da Ptesldencla da Repttblica n 25.228 - anexo. CPDOC. Arquivo Gustavo Capanerna - Serie Mlnlsterlo da Educai;:ao e Sau.de, Pasta GC 34.09.22-A. 11'

Cf. Pernando Limongeli Gurguelra. O radio no pedodo do Estado Novo. Comunic~ao asessao de Comunicafdo Coordenlma

Cultura e Propaganda Politica na. Reptiblica. AN PUH ·XVI S1mp6slo Nae lo· nal de Hlst6rla. Rio de Janeiro, UERJ. Jul. 1991.

ressaltar que durante tgdo o periodo do Estado Novo existlu u m a disputa 12.ela_.begemonia _do-l'.a<Jig , s.urgi<la o aRareci men t o mesmo desse veic o de comuni QKaQ_[IQ Brasil, em 1922, e ntr£....o.s.-d.e.[ensores do s~u p el limitado a esferL edu_c.aLiJLa, m entida pelo Estado, por um lado, e os ue defendiam o radio a Rartir do seu carater comercial, mantido pel a.Jniciativa prfoada, Genoiino Amado se -filiaria a primeira Corrente, a mesma a que estava Jigado Roquete Pinto, o mais importante dos pioneiros da radiodifusao no pals. Ambos os projetos, no entanto, nunca f con tr.ad.Q.s. aq ~seu papel de difusor d ~ uma ideologia au_toritari ~, dentro do modelo ideol6gico vigente. 0 dllema colocado ao Estado Novo se resobled a_cmn_o_e ta elecin enl.o_de uma form a mista, on~iL!]J_a.1rnLen_~a u._e.!:..Q.D Qmica das emiss_p ras e seu desenvolvimento tecnico ficariam a U!I.go_ d..as......e strul uras co~ centradas na publicidade, ~om o Est~d? mantendo 0 co11 trole sabre a explora~ao, a regulamenta~ao e a f~ c;liza<;ao de suas atividades,. 11 -- - ,-0 importante com rela~ao a carta de Genolino Amado e que, pelo seu tear, a oferta, em que pese o seu carater de disputa pela hegemonia dentro do aparelho de Estado, gratuita, para "servir ao Brasil e ao Estado Novo", coma era jargao da epoca_ Fazendo a critica do liberalisn.io_p_..g@_j ustificar a doutrina do_EstaQQJ:!Qv-9, OS J2ro~agadores do regime ~vap l_ertJbrar qu eno liberalismo era aceitavei ql,!e o intelectual fosse irii.migo_dQ Estado, p~rque este nao representava p ve_rd.adekoJk_asil, ap -passo que no_Estad_o _Novo tal fato nao ocorreria mais, ja q ue o Esta o se transformava no tutor, no pai da intelectualidade, ao se identifi.c ar com aE. for~as sociais, Assim, a partir do momenta em que o Estado marca sua presen~a em todos os

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dominios da vida social, nao ha porque o intelectual manter a sua antiga posi<;ao de oposicionista ou insistir na marginalidade; sua atitude, agora, devera ser a de . co Ia b orador, este e, seu d ever para com a pa't. na 12 . ~ Q e n a s a int kc.tl.!i!lid~Roi~va e colaborava com_9..I.egirne. Tantg_ artistas populares q!@!lto 0 publico em-ger.a-1-fa.ziam com_ a~ stiretrizes estado.n._ovistas, demonstrando ue havia nao 2 ~ nas um trabalho de propaganda eficiente mas tambem, pelas dimensoes e a¡mplitude desse apoio, um caldo de cultura propicio. 0 cantor e compositor Francisco Alves, o "Rei da Vaz", par exemplo, em seu precoce livro de mem6rias, escrito ainda em 1937, mostrava sua lndignm;ao por ter sido acusado lnjustamente de manchar a imagem do pais quando de uma tournee pela Argentina, em julho de 1936. Segundo Francisco Alves, nao fazia o minima sentido acusarem-no de "referencias desairosas" ao pais, a seus principais artistas e ao broadcasting nacional pois sempre fora sua "constante preocupa<;ao fazer propaganda do Brasil, de sua musica e dos seus compositores". E perguntava: "Ora, se a mim desagrada profundamente afastar-me alguns mezes do meu paiz, coma justificaria que eu Fosse la fora fazer propaganda 13 contra a min ha terra e a min ha gente?" Come<;ava ja 9 tempo de "quern trabalha ';e que tern razao", do "Brasil lindo e trigueiro". O samba civilizara-se. A Secretaria da Presideru::la_cia.11!;:Qublica, desde antes do golpe que instaurou o Estado Novo, mas particularmente nesse periodo, chegavam diariamente...c..enl.e as de cartas de essoas comuns__gue, ao lado de um pedido de emprego ou qualquer outro auxilio econ6mico, demonstravam sua conf1an<;a e seu entusiasmo 1::1arg com o regime_. Em carta de 9 de novembro de 1937 - um dia antes do golpe, portanto, o que pode demonstrar, par um lado, a perspicacia das camadas populares e, par outro, sua aquiescencia para com o projeto varguista -, o lider do conjunto regional carioca Irmaos Chalub, Affonso Chalub, ao mesmo tempo em que pedia auxilio para moradia, em Braz de Pina, "onde existem residencias baratas", e se desculpava pelo inc6modo, sugeria uma recompensa pela eventual benignidade do presidente: " ... estamos certos, que tambem contribuimos para o complemento de vossa obra sagrada, porque enquanto o publico nos ouvir jamais P.ensarao em ideias 14 que andem a margem da Constitui<;ao" . Em agosto de 1938, uma carta do cidadao Benedito Moreira da Silva, de Barra de ltabapoana, rendia ao presidente as "justas llomenagens" que merecia. A carta acompanhava uma cai::i<;ao (dobrado) dedicada a Vargas:

Receba Seu Presidente com toda democracia de sua alma, pois que estas notas que /he oferto, e um preito de sincera ademirapio e respeito, sim, coma operario que sou, nao posso, nem devo deixar de ademirar os-tfrandes beneficios que as classes , traba/hadoras do Brasil tern recebido de Sua Excia . . Sou pobre, muito pobre mesmo, porem, Deus ainda

. f'i ,i.,. 12 CL Monica 'Pimenta Velloso. Os intelectuais ea politico cultural do Estado Novo. Rio de Janeiro. FGV/CPDOS. 1987, p. 14. 13 Francisco Alves. Minha vi¡ ch. 2 . ed. Rio de Janeiro, Brasil Contemporaneo, 1937, p. 86. 14

Arquivo Naclonal. Serie 17 .3 - Secretarla da Presldencla da Republ!ca, Lata l 06.

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me concerva as faculdades mentaes em condi,;6es para, 15 coma agora, r;ender /he esta homenagem.

E importante

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Arquivo Naclonal. Serie

17.3. Lala 108 . 16 Sobre a correspondencla entre representantes das classes populares e o governo durante o Estado Novo, ver Jorge Luiz Ferreira. Os trabalhadores do Brasil - a cultura popular no primeiro govemo Vargas (1930-1945). Disserta,;ao de Mestrado. Nlter61, UFF /ICHF, 1989, partlcularmente o capitulo V, Es-

tado e cultura popular: os limites do controle. 17

Op . cit., p. 1 73.

18

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19

Cf. op . cit.. p . 173-17 4 .

Dados baseados em Nelson Jahr Garcia. Estado Novo - Ideologia e pro-

pagruula politico. A legitima<=ao do Estado autoritfirio perante as classes subaltemas. Sao Paulo. Loyola, 1982.

frisar que nenhuma carta ficava sem ~ osta. 0 secretario da Presidencia, Luis Vergara, era re~p__ons~vel _pot.._encaminha_:1~ t od_qs ao_ Q.residente au ao . ministrp Gustavo Capanema , ~ 12rovidenciav?, de pr6prio punho, OU atraves do pr6prio Vergara, _a resposta mais c;!_deguada. 16 Segundo Jorge Luiz Ferreira, "a Secretaria foi mais um 6rgao red imensionado ap6s 1930 com a fun<;:ao especifica de dlssemittar uma ideologia consensual na class~ 17 trabalhadora, induzindo-a a consentir e a confiar" , perfeitamente afinada com o projeto de propaganda do Estado Novo. Ferreira lembra ainda que a _Secretaria da Presidencia implement_ava um amplo e eficiente canal de comunicac;:ao _ ~ntre o Estado e a socieda~, numa via predominantemente persuasiva, q uan do ·o oficial de Gabinete respondia as cartas afirmando que fora incumbido pelo pr6prio presidente da Rep(1blica de faze-lo; ou quando apoiava-se na "lei" para fundamentar o deferimento ou a negac;:ao a pedidos dos missivistas; ou ainda quando se utilizava do jargao tecnico 18 para veicular praticas politicas Entretanto,~ inda gue sob l orte controle, a· vlda ~ult!-1 @1 brasileira era intensa . .9 teatro _ era uma forma de comunicac;ao bastante concorrida, com as revistas e suas vedetes. 0 cinema celebrizava no Brasil gs_ g.@ndes mitos de~ ood coma Greta Garbo, Tyrone Power, Clarke Gable e Marlene Dietrich. Mas e para o radio, veiculo de comunicac;:ao por excelencia nos a nos 30, _ ue se vol ta a maior pa rte das aten bes das camadas 120 ular e media urbanas. Das 63 estac;:oes de radio existentes em I 93 7, o pais alcanc;:a I 06 em I 944 e I I I em 1945. Em 1939 ha via 35 7 . 921 aparelhos de radio, numero que praticamente do bra, eni 1942, para 659. 762. Somente nesse ano I 08 program as radiof6nicos foram proibidos no Rio de Janeiro, assim coma 373 letras de musicas forarn 19 vetadas . 0 radio era, en tao , praticgJmen.le unic_o_m ei.o__cle difusao musical. A esar disso, o 12ublico "radiouvinte" e cada vez maier. Da 12rograma ao diversificada e ara todos os gostos,. n_ a que s~ destacar a im ortancia dos ro ramas de _al!dit6rio, dos musicais e das novelas - entao chamadas de radio-teatrc, -, 12ara os quais estava voltada a maier arte da p_opulac;:aQ das cidades. A intensidade da vida cultural e a repressao as artes e aos meios de comunicac;:ao sao elernentos que, num primeiro momenta, Jarecern contradit6rios. Paralelamente a re ressao, porem, 9 EstadQ,_ill) esmo temi:.;,o em q u e des.en volve e_ ~perfei!,;;oa um fo te es.q.lLema_d.e ~voP-ta<;iill da intelectualidade, investe ainda com maior i 'dade num minucioso trabalho ide 6.gi.c!'.Ll'. .oltado..para.as_massas. Em artigo de 1942 Cultura Politica, revista do regime que, segundo Monica Velloso, estava voltada para a produc;:ao do discurso ideo16gico do Estado Novo, dava o torn da ideologia estadonovista: "O overno ede aRenas a colabora ao de to os o~ hom_s12.s de bo~ ~ontade para a cons_~cuc;:~o_ da_enorm.e _t<':lrefa c,!:_le a si 11}_esmo se impoe. ~em n~~ q~ iser ajuda-lo,

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~lo menos nao o imQeca". APa amea a velada, o ~ propunha o artj_g9 era a 12artici~~o. 0 sentido da amear;,a e tao ideol6gico quanto o convite: q ~ ga_a__co]aborar ~a o interesse eta r6 ria n :au e e com ela ue tera ~ se haver. Oentro desse quadro, tanto intelectuais qua.nto artistas nao se furtariam a atender ao chamado de Cultura Politica. Entre Qs artistas 12rovindos das carnadas mais populares e ainda sem acesso ao radio e aQ__disco sempre foram tambem _ GOnstantes as manifestar;,oes de apoio e as homenagens ao Rresidente e ao Estado Novo. Como a carta de Affonsd Chalub citada anteriormente, varias outras correspondencias encaminhavam ao presidente canr;,oes em sua homenagem, c6pias de registros de agremiar;,oes recreativas, musicais e artisticas em geral que levavam seu name. Em IO de dezembro de 1937, por exemplo, Laurentino Ildefonso da Silva Nery, de Jacobina, enviou carta ao presidente em que oferecia a ele uma marcha de sua autoria como prova de alto aprer;,o. Dizia a tetra:

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lnteligente, Brasileiro, Dr. Oetulio Vargas Que livrou o Brasil das garras das Aguias Aves sumid6ras de Huinas, .em novas Plagas Desejaram ao Brasil, derramamento de sangue e lagrimas Brasileiros, meus irmaos e camaradas Vede, o Brasil, livre da a~ao das Aguias livre, pelo o defensor, das novas P/agas E, o Brasi!eiro, Doutor Oetulio Vargas

No dia 18 daquele mesmo mes, o cidadao Norberto Martins, de Cruzeiro, enviava ao presidente carta comunicando da organizar;,ao de uma banda de musica naquela cidade que recebera o nome de Corporar;,ao Musical Or. Getulio Vargas. Na carta, Norberto Martins solicitava tambem auxilio para mandar niquelar e reformar os instrumentos, adquiridos ja bastante usados, ao que o ministro Gustavo Capanema solicita a Secretaria da Presidencia responder polidamente que o presidente agradece a homenagem, mas que o Ministerio nao consignava recursos para tais fins. A data do despacho de Capanema e 29/12/1937, a pen as onze dias ap6s a data em que fora escrita, tempo recorde, se levarmos em considerar;,ao o estagio em que estava a comunicar;,ao postal e a burocracia que estamos acostumados a ver cercarem quaisquer documentos na administrar;,ao publica. Curiosa e tambem a carta do conterraneo de Vargas Francilizio Pinto de Carvalho . Em 8 de setembro de 1938 Francilizio encaminha ao presidente um dobrado em sua homenagem. Afirmando que para cada passo da politica de Vargas escrevera uma canr;,ao, b missivista de Sao Borja enumera, segundo sua 6tica, todas as eta pas da carreira politica do presidente e as composir;,oes que criou em homenagem a cada uma delas. Em anexo a carta, um parecer do diretor da Escola Nacional de Musica encaminhado a Carlos Drummond

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de Andrade, entao chefe de gabinete de Gustavo Capanema, com o seguinte tear: "Pobreza mel6dica e harmonica". A carta, e o parecer anexo, foi encaminhada por Capanema a Vargas, em 1 l /1 l /38, e obteve resposta amavel de Luiz Vergara, em 28/11/38.

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2. 0 DIP e a propaganda

E nesse. tontexto__s:xtremamente favor.a.YeLq ue-0-DIP-..,.· Departamento de lmprensa e Pro _J!ganda - tern a el fund.amen tal. Seu iugar -noprojeto politic_O:.irtenl.6gico do Estado ti.mm. e de importa'n cia decisiva, ja que se constitui num dos mecanismos indis ensaveis da difusao da im e ct_o_r_e_gin:ie. E-atraves desse 6rga.Q_Qu e o Estado Novo ira produzir um discurso que "enfatiza sobretudo c..ar.aler nao arbi traria du_ Estado, rep udiando ince.s.s.antemi tea utiliza ao dos metod s.... 9e for!',;;a e violenci.a", mesmo que, na pratica, tal repudi.9 Fosse_ muitas vezes deixado de !ado em nome da arantia de m anuten~ao da autoridade do c9im.eJ_Qe qua! uer forma, 0 papel do DIP se'!!._P__!:~ foi _o de _priorizar a PLQRag~ da em ·detrim~nto da r~ pres~o. Alias, esse mesmo discurso que ] ustifica ~ autoriza a violencia policiai, posto que seu papel e o de garantir e supervisionar o ampio ·a cordo nacionai que o Estado Novo diz personificar. Quando o DIP_ e criado, em 27 de dezembro de 1939 (Decreto-Lei nQ l. 915), seus objetivos !W.Dsi1=1ai~_ sao os d~ "centralizar coordenar ,_w ientar e sup_e..d.n.t!!.n.d e.u:Lpropaganda p acional, interna ou externa, e servir, ermanentemente coma ~lemento auxiliar de informai;ao ct_os m inister.ios e entidades publicas e pnyadas.--:-__na_p_a.[IB_.Q Ue interessa a ro~anda nacion_a_l", aiem de "estimular as atividades espirituais, colaborando com artistas_e_in telectuais sileiros no sentido ~ Lncentiv um a_ adg e uma iiteratura genuinamente brasileiras, podendo, para isso, estabelecer .e conceder premios" e, ainda, "promover, organizar, patrocinar ou auxiliar manifestai;oes dvicas e festas populares com intuito patri6tico, educative ou de propaganda turistica". No ue diz respeito a musica ~ uiar, tais diretrizes ideol6gicas ir iam dese b , por um lado, ~ia do 9:!ltQ.._ao..lr..ah.alh.o ~ u111a politica__.!? im yj taneamenl.e .pate.rnal is.t~ e rq)ressiv 9 (sob a quai) aquela conversa mai comportada e marota que ja vinha ha algum tempo suscitando reai;oes de desagrado por parte dos setores da imprensa, autoridades e mesmo alguns s,;1mbistas, deveria ser decididamente proscrita da cena cultural. lncentiva·se os c.9mpositor_e~ a loy_vfil .9s meritos e as recompensas do trabalhador, a9_mesmo tern_po q !:l e l')e interditam e censuraJll os casos e fa~anhas do_ _maland w ". "Surgiram desta nova Fonte personagens que se empregavam em fabricas e outros afazeres ( ... ). Assim, o primado do trabalho, reconhecido pelo Estado,., chegava tambem voz dos compositores populares sob o estimulo ea -censura do DIF'". Na opiniao _do compos!!or, . ator e escritor Mario Lago, a

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figura carismatica de Vargas era inspirada em Mussolini. Mas, segundo o artista, com caracteristicas especificas: Oetulio, coma ditador, era uma figura carismatica, l

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l que apresentou uma lei regulamentando a profissao ;

l

de artista, que criou o direito autoral. Par isso, as artistas tin/Jam muito carinho par ele.

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Segundo _Lago, essc:1 imagf:m _de Vargas_teria surgido em substituic;:ao a imag~m de vjrilidad~ _d~ Mussolini! no qua! os idealizadores do Estado Novo teriam se lnspirado. Por isso, Mario Lago acredita que, em substituic;:ao ao Mussolini "grande garanbao", ~ homem qu.~cortava arvores com o peito nu.~, a que Vargas definitivamente nao correspondia, surgiu o presidente-malandrg, ue ermitia _a critica a suQ_ pessoa _e Lncentivava an~dotas sobre si mesmo. Subentende-se do depoimento do compositor que Varg~r ia a__personifiQtc;:ao,_por substituic;:ao, de t_2d__o s ?S malandros br~.§jleirosL aq_passo que a esses ultimQS cabia ~e regenera,r, ja que a maior - malanciragem era ser trabalhador. Num tal contexto, nao dificil compreender, assim, a substituic;:ao do legendario e prestigiado malandro dos anos anteriores pelo ambigu6 "malandro regenerado", do qua! o compositor Wilson Baptista foi, sem duvida - e ainda que meio a contragosto, como sua hist6ria pessoal deixa transparecer -, o cronista sob medida. Sobre esse autor conta-se uma hist6ria que ilustra sobremaneira o que pretendemos demonstrar. Segundo essa hist6ria, o famosoSao Januario, de Baptista e Ataulpho Alves, tinha como original a seguinte letra:

e

Quem trabalha nao tem razao Eu digo e nao tenho medo de errar O Bonde Sao Januario Leva mais um socio otario 56 eu que nao vou trabalhar A pedido do DIP, no entanto, a.expressao "socio otario" foi substituida por "operario" e "s6 eu que nao vou ... " por "sou eu quern vou ... ". Quern trabalha passa a ser "quern tern razao" ea composic;:ao, de elogio a malandragem, passa a constituir-se no seu reverso, o elogio do trabalho. Mario La _o conta, no depoimento¡ao JI3, outro caso nos mesmos moldes, desta vez referindo-se, ROr via indke.ta,_ a lnutilidade do trabalho frente a vida f.acil do rie.o...J;:J1L comparac;:ao a vidc!_do homem obre: 0 compositor Rubens Soares comp6s uma musica -, que tinha um verso assim: ''iii, ai, ai, a vida do pobre penar, ai, ai, ai, a vida do rico gozar': Francisco ! Alves chegou a cantar essa musica num filme de/ carnaval, mas na hara de gravar em disco, a censura nao deixou. O Rubens, que vivia das musicas de carnaval, se desesperou e me procurou para refazen

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e


-a Jetra.

Entao eu mudei para: '11i, ai, ai, o gala e que esta com a razao/Ai, ai, ai, puleiro de pato no chao/Este pato fez puleiro no coqueiro do quintal/Mas o rei do galinheiro achou isso desigual/Pois diz que o terreiro e para o gala vadiar/Pato se quiser puleiro pet;a apata pra arranjar". O Rubens levou a tetra para o Julio I3arata, que era o diretor do DIP, que deixou passar, mas me m~ndou o seguinte recado: "Diz ao Mario que eu nao sou burro nao: essa letra diz o mesmo que 'a vida do pobre penar e a vida do rico gozar', apenas esta dito de forma realmente muito inte/igente. Par isso deixo "' passar.

e

e

e

Embora essa nao tenha sido a primeira vez na hist6ria da musica popular brasileira em que a letra de uma canc;ao era modificada a pedido, no Estado Novo que isso acontece pela primeira vez como parte de uma politica cultural do Estado. ~or outro l ado, a esar do controle rigido que o Dlf...exen::la sobre a criac;ao artistica, seus funcionarios norl'!:l~ l!Tl ente nao _s~ furtavalJI a r,egociac;ao_e n~da os imRedia de se deixarem ~qnvencer pelos argumentQs _do..§ comRositores. Numa iniciativa inovadora naqueles tempos, o compositor Geraldo Pereira resolvera, perto do Natal de l 938, escrever, produzir, dirigir e participar como ator de uma pec;a que seria encenada na quadra da hoje extinta escola de samba Unidos da Mangueira, no morro de Santo Antonio, no Rio. A pe<;:a, de cujo nome nao se tern registro, contava a hist6ria c:la mulher de um "rnalandro" que e desrespeitada por um "bandido". O "malandro enfrenta o "bandido", que e posto para fora da comunidade. A pe<;:a terminava com um samba-choro que dizia assim :

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/Ya subida do morro me contaram Que voce bateu na minha nega Issa nao esta direito Bater numa mu/her que nao sua Deixou a nega quase nua ...

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"Mesmo sendo encenado no morro de Santo Antonio o espetaculo precisou ser liberado pela censura e o delegado do distrito circunscritivo da area implicou com aquela coisa de 'deixar a nega quase nua"', conta Adelina "Ru<;:o", um dos mais antigos moradores do morro de Santo Antonio e fundador da escola de samba.

e

E af foi aquela guerra. Onde que o Geraldo ia arranjar uma pa/avra para rimar com "rua" que era a chave da estrofe segui.1te? Depois de muita Iuta o deles;ado se convenceu que nao tin ha jeito, . que a palavra era nua mesmo. Eu (que era diretor "ditador" da "escola7 e o Geraldo nos comprometemos que a nega nao ia ficar nua em cena, era s6 para razer a rima do sam.Qa que a palavra "nw:•" estava a/i.

E importante lembrar,

no entanto, que na versao desse

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samba registrada por Claudia Matos o verso correspon dente a deixou a nega quase nua e deixou a nega quase crua no meio da rua . Essa versao ficou conhecida atraves da gravac;ao de Moreira da Silva, que comprou a musica de Geraldo Pereira e introduziu modificac;oes nela. Nao foi possivel contatar "Morengueira" para saber se a modificac;ao do verso foi feita "a pedido" ou devido a alguma iniciativa pessoal do pr6prio Moreira da Silva, o que parece pouco provavel. Alias, como lembra Claudia Matos, ha boas razoe§ para acreditarm_Q~que 0~ 11gaja11J.~J.1to de var.Lo_s_sJ11JJ bistas no prQgrama ldeol6gi o do Estado Novo nao tenha resultado sim12l~sm ente de uma efetiva adesao etjs:a e politi~ a 9o ~egime, embora isso parec;a ter sido fundamental, na min ha opiniao. Segundo Matos, em muitos cases, tat adesao acontece como uma atitude oportu n ista e artificiosa: "Abriam-se novos canals de divulgac;ao para os compositores populares, e os caches do DIP eram compensadores, afirma 21 a autora

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3. 0 lugar do samba Anteriprmente a gQesta.o da maia!ldrag~ l'!l - mas intimamente ligada a ela - outra uestao preocu12ava imensamente aos intele~ tuais_p!_'Q mptore~ _ct c;L.'.'.m odernizac;ao_c.o_fr__ se!:Vadora" gue teve se_uJ1plce corn o Estad.o Novo: _a dificil decisao sobre qual o lugar do samba na sogeda.9e brasileira. ~m outras _~alayras; e@._Q__§amba JJma tni!_nifesta~aq 12..u r~mente negra e d g morro - e ortanto heran a inculta e deploravel da sociedade escravocrata assim como os r6 rios neg(~ ~a ja um a manif~stac;ao cultural ti icamente · ~ a~ il~ir~, ge~ ina representante de uma sociedade diferente das demais formac;oes sociais de origem escravocrata, n<!_qu_jt l as qyestoes raciais havlam sido su12eradas - com saldo ositivo 12ara.as_o_cie.dad..e - atraves da misci ena ao? Enfim, coma tratar o samba? Nao se ode es ue~~t que a ideolo _ia estadonovista , no que toca musica popular, ~ncontrava resQaldo em_parte J~ignificativa da opinlao publica, como, de resto, acontecia em todos os demais aspectos da vida cultural brasileira, coma vimos. E era fundamental contar com a musica oJ!Ular, seus compositores, cantores e "radiouvintes" ,J;lara i!!!,plem.entar- com_su..c~sso o 12ro'eto do Estado Novo. Como demonstrac;ao de que, ainda antes do golpe de 10 de novembro, uma ideologia autoritaria e conservadora passava necessariamente pela musica popular e de que tinha respaldo em parte significativa da populac;ao, vejamos alguns exemplos. Acompanhemos, ROr exemplo, o que dizia o leitor Riz e Orvoc em carta a revista Carioca, ainda em 1936, 12reocupado com a re ercussao de nossas can ~ ~ xterLoJ' (!). Falando sabre o recorrente tema da malandrag~ m nos s.runlli!.s, o leitor _ uestiona:

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ue din!, 1!1'117 radio vinte_estrang€ir.o--a.o- ou-V-ir todas estas gabolices de mislJlrg_!;_Q_m a perturbadora

2

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Claudia Neiva Matos . op . cit., pp . 194- 195.

21

Idem. p . 91. Atitude semelhante, por parte dos cldadiios das classes pobres como um todo. e sugerlda por Jorge Luiz Ferreira . em sua dlssertai;iio de Mestrado .

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cadencia do samba, dum samba bem brasileiro? A vida <lo malandro sera tao digna f2aI..1L.ser--can.tada? /Yao! J'jjng_uem, a nao ser a pwp.ria...malandi:o-,-p.od..eaiJ:J.iz.e[ _que_sim. /'1as Qs compo~jta,:es 11acionae..§.,_f}.Or que nao veem outr9 motivo mais nobre para os.Ji.eus.JLerso.s senao a vida malandra dos eternos desocu ados?

--

E finalizava, advertindo: Compositores! Um conse/ho patriotico de amigo: - fa(:am sambas 'alheios' a vida a/heia, especialmente a do 22 malandro... ~

freQcup.9_<;;ao semelhante existia taf!1bem com relac;;ao a linguagem, a gramatica, as irias, manifestada par parte significativa dos leitores dos jornaise revistas, coma P-arte de u,.m__a_tentativa clara de dissociar o samba da malandra em, que eram fn;quentemente aproximados pela intelectualidade ligada a musica. Alem disso, era sempre Iembrado o "carater educativo" do radio, . o que a linguagem coloquial ea tematica do samba atrapalhavam. Mas a guestao era P-Olemica. Em outra carta, tambem de 1936, publicada na Carioca, sob o titulo de O samba e a grammatica, o leitor Alcantara O · eira defendia o linguajar do -malandro estam ado nos sambas coma forma de marcar o _e stilo brasileiro_e de nao d_escaracteriza-lo,

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pois o samba nasceu no morro, assim mesmo desugeitado, maJ vestido e falando em ca/ao. Querer vestil-o bem e par na sua mao uma grammatica sera o mesmo 23 que tirar-lhe a alma brasileira.

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Em dezembro desse mesmo ano, o leitor Aristoteles Navarro vinha fazer coro a Alcantara Oliveira no que dizia respeito ao samba enquanto "expressao maxima das coisas do .B rasil". Mas sugeria que se fizessem "letras corretas, sem erros gramaticais". Pedia, ainda, o missivista: e que deixem o malandro cantar 'porque o samba ver4 dadeiro s6mente pode existir nascido d'alma ma/andri'- .

22 Carioca, Ol /08/ l 936, p. 45.

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23 Carioca, 03/10/1936. p. 46.

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Carioca, 19/12/1936. p. 46 .

.·: Atitude . ~arte dos .')s pobres

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· ) rid a por .. , em sua ) ado.

26

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Carioca, 23/01/1937 p. 48 . Sambademorro. samb!I da cidade . Carioca, 30 1

01/1937. p. 43.

14

Um mes depois, Carioca publicava outra carta, da leitora AnnaWeksber, .em que era sugerida a censura a musica popular 25 devido as constantes falhas de sintaxe encontradas nas letras . No dia 30 desse mesmo mes, Carioca reproduziria uma cronica que tinha ido ao ar pela Radio Nacional em que o autor criticava o samba par ter vindo para a cidade. 0 cronista dizia que, ao descer o morro, o samba deixava de ser autentico, admitindo nas entrelinhas que desde que nao deixassem os limites dos morros o samba, a malandragem e os erros gramaticais erarn nao apenas inofensivos coma ate louvaveis, 26 par "autenticos" Com a instauracao do Estado Novo serao buscadas soluc;;oes de consenso ~ ao mesrno tempo atencfessem ao 1xo _ramaJ.d.e.oLog.iJ o de or fim a Fi ura do malandro e, par


outro Iado, incorporassem o samba a sociedade brasj)ejra, nao mais como expressaci tipica da malandragem mas como · representante legitimo da nacionalidade. De certa form a, Qode:se dizer que essas_s_olu_~ fofl!lll_..encontradas: s_ua__:timp_eza" i- atraves__d a_ gramatica, ~ra pre_ocuQa ao consta n te do DJ_E_;_ por outro lado, o malaDdr:o, simbolo da esperteza, _e eficazmen te substituido pelo trabalhador. 0 "otario" - o trabalhador dos as_.iO__:___.e __ q !J._~p_a~-~ ser o malandro, j_~ ue a partir do Estado Novo a es erteza esta em trabalhar, em ganhar o pao com o suor do pr6prio rosto. A esse respeito, um artigo do jornalista e tambem compositor Braga Filho, de 1941, e lapidar:

Antigamente, o samba que nao falasse das bravatas dos malandros e nao tivesse elogios a capoeiragem moral dos inimigos dos patroes, nao podia ser rotu!ado verdadeiramente com o name de me!odia popular. .. O faiscar das navalhas e o colorido sanguineo entraram nas composir;oes, fazendo parceria.. . A orgia foi alcandorada: os casebres de caixotes de bacalhau e fa/has de zinco, marcaram a moradia da vadiagem, prima irma das batucadas, amiguinha das !arras de taponas e paraty. .. (. .. )Mas ludo isto passou... Ficaram perdidas nos camavaes que desfilaram. Osamba tirou carteira de identidade e agora apresenta uma folha corrida de bans servir;os... (. .. ) 0 bojo dos navios e o bracejar dos guindastes sao confidentes das alegrias que visitam a vida de um taifeiro, ap6s as oito horas de traba!ho... Os desencantos iniciais que o amor proporciona sahem rythmados na musica das perfuradeiras e nos compassos ex6ticos das br6cas, 27 dos marte!los e dos serrates ... Ao contrario do que se poderia imaginar, Braga Filho nunca pertenceu aos quadros do DIP e o teor do artigo citado, ao que nos fazem crer o depoimento de Mario Lago, as Mem6rias do Cafe Nice, do tambem jornalista e 28 ··· compositor Nestor de Holanda Cavalcanti e varios outros depoimentos de compositores , jornalistas e pessoas do meio artistico em geral a epoca do Estado Novo, era relativamente consensual. Compositor e jornalista, Braga Filho pertencia aos quadros do Departamento de Compositores da Sociedade Brasileira de Autores Teatrais SBAT, originario, ainda no Estado Novo, da Associa~ao Brasileira de Compositores e Autores - ABCA, em seguida da Uniao Brasileira de Compositores - UBC e, finalmente, da Sociedade Brasileira de Autores, Compositores e Editores de Musica - SBACEM, dissidente da UBC. Ao \ado d o samba exaltat6rio as virtudes do trabalho e dos trabalhadores arece o samba a P-Q.l.Q_g,e.li c.o-: nacio~ a, cujo pr incipal e xpo.ente__tal vez ten basld.o-Ary Barroso~ autor de Aquarela do Brasil, com seu 6bvio "coqueiro que da coco", e can~oes de cunho semelhante. Em seu depoimento JB, Mario Lago admite que o governo estimulava tais composi~oes, mas que havia tambem um

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27

Braga Filho. Quando passei po r suacasa. de rnro1ha.cedo ... Vida Nova , fev . 1941. pp . 8-9, grifo meu. E importanle mencionar que ale a chamada "Nova Republica" constava de to das as carteiras de trabalho uma mensagem do mlnlstro do Trabalho, lndusti-ia e Comerclo do Estado Novo. Alexandre Marcondes Fllho, que d!z ia: A carteira. pelos lan~amentos que recebe. coriftgura a hist6ria de urna vida. Quem aexaminar, logo uercise o portador e urn ternperarnento a· quietado ou verscitil ; se ama aprofissao escolhida ou ainda na.o encontrou a pr6pria uocm;a.o ; se andou defcibricaem fcibrica. corno urna abelha, ou perrnaneceu no rnesrno esta· belecimento. subindo a escala profissional. Pode ser um padrao de honra. Pode ser u· ma adv er tenc ia.,E igualmente importante lembrar que s6 com os novos dlreltos clvis garantldos pela Constltul<;:ao de 1988 e que o nao portador de Carteira de Trabalho delxou de ser detldo pela policia por "vadlagem". 28

Nestor de Rolanda. Memorias do Cefe Nice. Subterraneos da mtisicapopular e davida boemia do Rio de Janeiro. 2. ed. Rio de Janeiro, Conquista, 1970. Ver especialmente paginas 86-87 .

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certo clima que favorecia. Embora o pr6prio Lago, ao falar da grande popularidade dos artistas de radio - incluindo aL alem de cantores e compositores, os atros dos programas de audit6rios, os locutores de programas jornalisticos e de pe<;as publicitarias (entao chamadas de "reclames") e, particularmente, os "radioatores" -, admita que "e claro que o Estado Novo se aproveitava de tudo isso", para acrescentar em seguida:

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(. .. ) e verdade tambem que Oetulio tin ha uma preoc'upaplo com os intelectuais e com as areas culturais (. .. ). ffavfa uma mobilizaplo, uma participap!io (. .. ). (. .. ) · Todos os dias 3 I de dezembro, par exemp/o, ele organizava uma serenata no Palacio Ouanabara, aonde iam 9 todos os artista.s1- . Ainda sobre o pa~da musica QORula__r nao mais como exalta<;ao ao malandro mas como elogio ao trabalho e as ~lezas do Qais, vale acrescentar o testemunho da carta do ouvinte Alvaro Silva, du2_ct...ejanetro de 1940, ao presidente Vargas. Silva reclama ao residente_q_u_e_na audi<;ao de A Hor~ cfo Brasil do di_a_Jp @quele mes,_g_ia ~ funda<;ao da ca ital, ao inves de se produzi um pLograma_e_xaltat6r_io das belezas do Rio, decidiu-se pela biogrnfia de Noel Rosa ciy_e, se undo ele, era "sambis@ qu~escrevi sambas de malardr~gem. Com essa orientai;ao - ~ 011ti!1_~ava ele -, nQ__s~ Patria em vez de progredir, retro-age ao tern o das senzalas". ~ta carta foi enviad~_ : J2or VargM,...J'.! Lourival fol:JreA,_giretor ger_:_al do [)IP, d~ quern· o Qresidente solicitava "aRurar e informar". Lou rival Fontes, por sua vez, remete-a Jul.i.rr..B..~tor da Divisao de RaQ_io do DIP gue, em res osta, contra-ar umenta: A Divisao de Radio do DIP tern sido ate acusada, pelos jornais, de hostilidade musica popular e, ainda na vespera, dia I 9, irradiou um programa de composir;oes de Vila Lobos, Mignone, Fibich e Obradores. Acontece, entretanto, que a Divisao de Radj_Q, embora decidida a elevar, or todos os meios o_s__e.u_a.Lc.an.c.e.,_QJ,JiJt..eLda..gosto do povo, nao pretend__e excluk do seu_f2_rogr ama a musica P.._OI!J-lfar autentica, desde que seia de boa qua/idade. E !Yoe! Rosa foijustame, te o rewesentante maxima dessa IJJUs}_@_genuinametJte brasileira, q_ue e a e p r...es,5.;io--8.J:::. !.fstica do nosso povo. !Ya? glorifl..c_a u e!e a malandra~~IJ1, l}__e!JJ focalizou aspectos oaixos da vida da idade... 0

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Em seguida Barata, de ois de lembrar gue com esse IBQgr_c!._ma, A Hor<!_do Brasil recebera ela rimeira vez elogios da imprensa e no Qr6pri.Q_[adlo (lembre-se que o programa ;;;apelidado de "O r"ala-Sozinho" ... ), pede gue sua justificativa s~j_~- assada ao Qresidente e lamenta gue nao_ru ompanhe a carta do .9uv~t~~~rei;o__12ara_ uma res_Rosta. 29 Estado nao da samba. Este epis6dio a meu ver aradigmatico tanto do intecit. resse de parte da opiniao publica sobre o tema da malandra30 Arqulvo Naclonal. Fun~ __gem, de suaauiescencia uanto a osi -0 do Estado, favoravel do da Secretarla da Presla substituii;ao do malandro pelo trabalhador e dos barracoes dencla da Republlca. Serie de zinco pelas paisagens paradisiacas do pais tropical, guanto

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17. Lata 510 - DIP.

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da seriedade com ue o Estado encarava o se~pel de ggia cultur~I das mas~a~ Seriedade atestada oficialmente nas paginas de Cultura Politica, publicac;:ao oficial do regime, sob a direc;:ao de Almir de Andrade e diretamente vinculada ao DIP. Em um artigo intitulado Radiodifusao, fator social, Alvaro F. Salgado, em setembro desse mesmo ano, afirmava, sobre o papel da musica popular para a educac;:ao das massas: (. .. ) ... todos os indivfduos analfabetos, broncos, rudes, de nossas cidades, sao, muitas vezes, pela musica, atrafdos civilizacao.

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Em seguida, o autor considera que as manifesta<;oes musicais populares, barbaras por excelencia, precisam ser domesticadas e ensina como o Estado deve trata-las:

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Enquanto nao dominamos esse fmpeto barbaro, e inutile prejudicial combatermos no 'broadcasting' o samba, o maxixe, a marchinha, e os demais ritmos selvagens da musica popular. Seria contrariarmos as tendencias e o gosto do povo. A solup'io do problema

A resolur;ao esta na elevar;ao do nfvel artfstico e intelectual das massas. (. .. ) (. . .)

0 samba, que traz em sua etimologia a marca do sensualismo, e feio, indecente, deshann6nico e arritmo. !'1as, paciencia: nao repudiemos esse nosso irmao pelos defeitos que contem. Sejamos benevo/os: /ancemos mao da inteligencia e da civi/izar;ao. Tentemos, devagarinho, torna-lo mais educado e social. (. .. ) E finaliza o autor: Os programas de calouros de nossas emissoras estarao, par certo, fadados a um importante /ugar na arte do canto se !hes der o DIP orientar;ao severa e bem controlada. (. .. )

Felizmente, a radiodifusao tende a entrar em nova fase. Em boa hara sob a direr;ao do DIP,. fazem-se1 lhes seler;oes, censuras e leis. (. ..

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Deve-se destacar o papel da SBAT e do seu Departamento de Compositores em particular, que contribuiu ativamente para a consolidac;:ao do regime, como ja apontei anteriormente. Em representac;:ao encaminhada a Presidencia da Republica, no comec;:o de 1938, por exemplo, uma comissao de diretores da SBAT reivindicava, ao !ado do cumprimento integral da lei sobre direitos autorais, a unificac;:ao da censura policiaL tornando-a valida em todo o

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Al varo . F' . Sal ga do./ :" ..

Juso.o.fator social. C, ' ! litica. 11(6):79-93,ai.' ·· I ~• .

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territ6rio nacionar32 . Tais expedlentes, que se tornaram corriqueiros no dia-a-dia da entidade, eram nada mats do que a expressao de um grupo representativo da vida artistica brasileira, que via no presidente O simbolo da pr6pria nacionalidade 33 e "benemerito patrono dos artlstas brasileiros" . Nao se p_o_d_e_pensar esse consen_1m,_porem, como alg_g esp_ontaneo. Era fruto do traj)__alh..o c_o_njQgado de diversos Ministerios, em particul~r o "Ministerio_Capanema",_Qa Educa~ao g S_aude, e do Ministerio do Tra.balho, IQdustria e Come_rcio, particularmente durante a gestao de Alexandre Marcondes Filho e, e claro, do DIP. Nesse projeto politico, o radio tinha papel fundamental: - O "broadcasting", mesmo nos programas de musica, ja u/trapassou os limites que competem a um mero instrumento de diversao. Cabe as me!odias, na epoca atormentada que o mundo atravessa, nao s6 distrair o publico, mas co/aborar tambem na sua formarao cfvica. !fa menos de um ano, R. D. Darrell lanrava, em /Yova York, a ideia de uma discoteca de "music for courage", destinada a manter nos sintonizadores norte americanos o "pioneer spirit", atraves de hinos e dobrados que fossem a voz do patriotismo (. .. ). e, se o governo de Washington deixou a sugestao entregue aos caprichos das empresas parUculares, as autoridades brasileiras souberam /evar a efeito um piano identico, elaborado com max/mo carinho34.

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4. AEra do Radio - samba desce o morro Em um balan~o das atividades de 194 l encaminhado ao presidente Vargas, o DIP dava conta de que foram submetidos a censura 3. 97 l programas de radio, dos quais foram pro.ibidos 44, e 9.363 letras de musicas, das quais foram interditadas I. l 33. Do ponto de vista do DIP, alem das proibi~oes, foram "efetuados numerosos cortes em textos que se achavam em desac6rdo com a orienta~ao do D. I. P., que procura imprimir ao radio uma orienta~ao inoralizadora e uti1" 35 , tendo sido este o principal objetivo da censura de letras das can~oes po32 Cf. Boletim da SBAT', pulares . (166):6. abr. 1938. Embora nae, tenhamos relat6rios semelhantes para outros anos do Estado ,'lovo nem para o regime militar, quando a 33 er. Boletim da SBA1', censura foi tamb ~m extremamente rigorosa e perversa - o gue (212):2, jul.-ago. 1942. impossibilita qua,squer conclusoes deflnitivamente fundamentadas -, nao e dif cil verificar que a taxa de program as de radio e de letras de ec n~oes proibidas e bastante pequena: I, I% e 34 Martins Castelo. Radio 12, I%, respecti',amente. Por outro lado, resultaria ingenuo toVII. Cultura Po Ii tic a, 1(7):~64, set. 1941. mar esses valor cs como expressoes da verdade sem especularmos sobre o que para este trabalhado primordiai: nao 35 Relat6rio do DIP ao Preseriam numeros tao baixos decorrentes da aquiescencia de sldente - 1941. Arqulvo diretores de programa~ao e de compositores relativamente aos Naclonal. Fundo da Secretarla da Presldencla da Re._ cortes e modifica~oes que o DIP impunha aos programas e publlca. Serie 17 - Mlnlsletra.s de musica? Epara onde aponta a maioria das evidencias ... terlo da Educa~ao e Sai1de. Em_.9iscurso ronunciado or ocasiao dUlli!llg__uta~ Lala 510 .

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QQ.§_estudi s..._da__lia diQ.. Mayrinl\ Veiga, em_ abiil de 194:._1 , J ~ r . a . J aro uanto ao RaPo DIP em suas relac;oes com a radiodifusao:

( .. ) Quem nao comprehendesse a finalidade do Departamento ou imaginasse que, em relar;ao ao radio, coma em relar;ao a imprensa e ao livro, fosse a nossa missao meramente repressiva de uma fort;:a policial au simp!esmente fiscalizadora' das repartir;oes aduaneiras, estaria redondamente enganado. Como erraria tambem quem !he attribuisse o sortilegio de um poder miraculoso, capaz de reno var, em dias au em horas, a face das coisas ou mesmo conjurar a crise, pela qua! nem o nosso governo nem o Brasil sao responsaveis. O Dep artamento de l.mpLen£:Le_£rol2f!IJ.anda,..JJQ__Seu_qu.atLdia.no .conta.c.to_ com o adio, ~ erce, c;_om o alto espirito proprio do regime - espirito de uniao naciona!, de aproveitamento de todos os va!ores, de estreita coo era ao de todQs as brasi!eiros_ f:JS funcot:§_que LLma. fei,positw a, mioJK.iosa e adapt<J...da aQJ1osso meia,_/he_djs.crimin.au....clar.aJ.JLeJJ1e. ( . .)

Mas a verdade, que nao devemos_es.conder,...e..esm.; o radio e ho ·e um porta-voz real e penn.ane.nt.e...Jliis ~ndes aspirat;:Q~s nacionae e.....caopera,....sab~ cao rio D<;;.12.atta_mento_d.eJrv.prensa....e.Er..ap.agi:JJ1QfL. co111 q regime, que foi impla-ntaeo, em !'10 11.e m.bro....d e....19...,JZ 6 para a definitiva construccao do verdadeiro f3rasii3 . Contando com a fiscaliza ao severa mas extremamen..::. _te paternalista do_DIE o samba "civilizou-se". A im portancia _go_DIP n.o e~quema de propagac;ao da ideologia .d..a...E.stado t:fovo pode ser medida pelo se_u_statl!§.._de..ntro....do aparelho _ de Estado: era um 6rgao diretamente subordinado a Presid encia da R~publica e coritava ~-;m nomes como OS deCandido Mota Filho e Cassiano Ricardo para traduzirem em linguagem popular, reinterpretando, as diretrizes oficiais. Esse 6rgao _e.i:._a o responsav ~ , d~ntre suas in um eras tarefas, por promover toda e qualquer ma_!lifes_!:ac;ao civica e cultural, organizar e promover exposic;oes demonstrativas das ativi dades do governo, alem de, e claro, ser tambem o respon- _ save( pela elaborac;ao do farto material que diariamente invadia as redac;oes dos jornais ~ a programac;ao noticiosa sias radios. Calcula-se que 60% das materias dos jornais eram fornecidos pelo DTP. . _!\o mesmo tempo, o radio era empregado para a difusao dos discursos, mensagens e noticias oficiais. 0 programa A Hora do Brasil. criado em 1931, passa, logo ap6s a cripc;ao <!o DIP, a ser tambem r esponsabilidade sua. Q_J:,rograma tin ha como cont~udo__, pr_i ncipalmente, a irradiac;ao de_discursos, a nasrac;ao de atos e empreendimentos do governo, entrevistas, descrk;:oes das regioes percorridas p~Ia comi tivapresidencial, alem de "amenidades" como a ~ sgis;a2....9 e 36 regioes e cid?de~do pais, noticias_g e livros recem-lanc;ados, Comprehenda o radio, o seu valor e o seu poder. VidaNova. a audic;ao de obras de grandes compositores, principalmente 0

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abr. 1941. pp . 5 e 46.

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-os brasileiros, e noticiario em geral. A partir de 1942 o programa passa a incorporar, uma vez por semana, palestras do ministro do Trabalho, lndustria e Comercio, Alexandre Marcondes Filho. Esse material era reproduzido na imprensa, no dia seguinte, e transformado em livro. A sucessao de atividades com as quais o DIP se envolvia, no campo das artes e dos meios de comunicac;ao em geral, tern praticamente a abrangencia desses meios. ·s eria ocioso citar quantas e quais as atividades desse 6rgao, verdadeiro responsavel pela sustentac;ao ideol6gica do regime e talvez somente comparavel ao Ministerio da Propaganda de Hitler. Sua atuac;ao nos indica que, muito mais do que no papel repressivo, o Estado Novo investiu recursos, intelectuais, equipamentos e instalac;oes num intenso trabalho de propaganda politica como forma de obtenc;ao de hegemonia. Censura e propaganda estiveram sempre intimamente ligadas no Estado Novo, compondo duas faces de uma mesma moeda em que o DIP era ao mesmo tempo cara e coroa.

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§~undo o compositor Joao da Baiana, um dos pre- . nao tern fundamento a ideja de que o samba nasceu no morro. Como confirma Roberto Moura, 37 ·em trabalho magistral , o samba teria nascido na planicie. O morro segundo Joao da Baiana, era agenas o esco!]_derijo dos sambistas reprimjdos pela pQlicia 8 . 0 seu rimeiro reduto foi a Prar;a Onze, no Rio de Janeiro. Do bairro carioca_ Q.a Saude ate_essa prac;a formaram-se os primeiros nucleos de sambistas, concentr.~dos nas proximidades das casas das varias "tias baian.as - babalorixas que desde fins do seculo _x1x_,_promovi~m an Imada~ f~~ills~ in~entivavam ~ produc;ao musical da QQ.pulac;Jt<L PQbre, geralmente negrn, proveniente_Q.1! q_~scendente_de ex-escra.vos vinct._os da Nordeste. Na casa de Hilaria de Almeida, a "tia" Ciata, nasceu o Pelo Telephone, considerado como o primeiro samba gravado no pais. A partir de_fins_dos arms_ 2._Q,_p_o.rem,_~ u e §.u_t>ira os morros para fugir da_policii!,_ja_tinba adeRtos brillJ.: c;os e w _classe_ _media, tendo_como prin~lP-al __r_~__r::esentante N_oel f_k>.§ 9 , do bairro "classe-media" de Vila Isab~! · Embora o samba "letrado" de Noel, ou de Sinha, mulato que fez de tudo para "embranquecer" seu samba, Fosse vista como um modelo a ser seguido, o pr6prio Noel, em 1933, reconhecia, em seu Feitio de Orac;ao:

s:_ursores do samba,

Batuque nao e um privilegio !Yinguem aprende samba no colegio Sam bare clrorar de alegria sorrir de nostalgia Dentro da melodia

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Op. cit.

38 Cf. Valter Krausche. Musica Popular Brosileira. Sao Paulo, Braslliense, 1983, p. 29.

0 samba, na realidade, !Yao vem do morro ,1em la da cidade

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E quem suportar uma paixao Sentira que o samba, entao, flasce do corapio

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A constatar;:ao de Noel Rosa tinha dais vetores, quase que antag6nicos. Se R._or um !ado reconhecia gg__e o samba era um "estado de e~pirito", por outro constatava g ~ o samba nao ~!::Im segredo de .iniciados, ja ue nasc~ na cidade nem no morr_2 , f!las no corar;:ao. 0 crescimento rapido da quantidade ~ e aparelhos de_ radio o s r imeQto da gravar;:ao eletrLca ( 1927) e as_ reo_5:upar;:Q.e§ da i!}telectua] <Is1s:Ie cqnservadora-autoritaria, a par- _ _JiJ dos anos 30, se uniram JLara o trabalh.s? <!_e disciplinar o samba, tra-lo de volta ao as.f?lto, irradia-lo da capital a outras ~idades, ao pais inteJm. Alem <iis,s_o, outros fatores entravam em cena: a ex- · _______. pansao do ra_dio e do disco ~ensava _o patrocinio de blodurante o C_ar1:1avaL_para a divt1lgar;}iQ das musicas; or outro !ado, ao Carnaval, ao radio e ao disco se somava o cinema falado. Mas nao apenas isso: institucionalizam-se g s_.concurso__s_,_c_o ttLa d istribui<;_ao d_e prem iQ~. _Q__cJima_ern, assitn, extremarn~nte favoravci aj nter ve!K,ao de w n _Estado soi-disant modelar e modelador. Em l 935 o governo cria uma das primeiras medidas concretas no sentido de incorporar o samba, esse "irmao feio e indecente" da musica, a vida cultural brasileira, ainda antes da criar;:ao do DIP e antes mesmo da existencia "legal " do Estado Novo, passando a subvencionar o concurso das Esco las de Samba. Antes disso, ainda em 1932, a Escola de Samba Deixa Falar, primeira a ser fundada, no Largo do Estacio, em 1928, trazia como enredo A Revolur;:ao de 30, primeiro passo no sentido da oficializar;:ao dos desfiles. Em l 937, atraves de decreto sancionado pelo presidente da Republica, as escolas de samba ficavam obrigadas a criar o samba-enredo e as alegorias "inspirados" em tematica patri6tica. A partir de 1939, o dia 3 de janeiro ficava consagrado coma Dia da Mt'.tsica Popular Brasileira. Sinh6 morreu em 1930, durante uma viagem de barca da liha do Governador para o Rio. Noel Rosa morreu em 1937. Datas emblematicas. Sua genialidade "branca", "do asfalto", nao tern responsabilidade pelo que aconteceu depois. Sequer fizeram falta ao projeto varguista, mesmo que tenham deixado saudades entre muitos, ate hoje. Em l 937 o samba ja nao era mais uma arte caracteristica de exescravos ou de negros e mestir;:os em ascensao social'39 ~~

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Cf. Affonso Romano de Sant'Anna. Mtisica popular e modemapoesia brasileira. Petr6pol!s, Vozes. 1977. p. 186. 39

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