31 VIAGEM AO FUNDO DA TERRA
Não havia nenhuma razão em particular para os expedicionários terem decidido que aquela caverna era o esconderijo de Frei Bartolomeu e Curumicaauã, a não ser que se leve bastante a sério as intuições de Dom Francisco a respeito do lugar. É verdade que a aparência lúgubre da greta estreita e aparentemente profunda, semioculta pelas folhagens, e quase imperceptível à margem do Peabiru, inspirava a suspeita de que se tratasse do local mais óbvio para se ocultar. A fissura, na encosta de uma colina, abria-se verticalmente até uns seis metros de altura, e a forma ovalada como estava escavada, as beiradas arredondadas da rocha dos dois lados da entrada, marcada por sulcos convergentes levemente inclinados nas laterais, tudo recoberto por um musgo espesso e esverdeado, lembrava em demasia e de maneira deveras esquisita uma pantagruélica vulva escavada na pedra. - Se existe alguma toca de rato por estes rincões onde aqueles dois possam ter se metido não tenho dúvidas de que é esse. E a razão está bem aqui – exclamou Dom Francisco para o meio-irmão, apontando para uma imagem já familiar inscrita na parede da rocha, à direita da entrada da cavidade: uma versão mal acabada do Disco Solar inca. Em seguida, virandose para os sertanistas, vociferou – Tragam gravetos, recolham folhagens secas, quanto mais puderem, vamos encher esse lugar de tanta fumaça que o incêndio de Roma vai parecer uma fogueira em comparação. - Não creio que isso seja de grande valia – disse Valentim, puxando-o para o lado - Essas grutas costumam ter inúmeras passagens. A fumaça seria varrida pelas correntes de ar e rapidamente se dissiparia. - Bem, se preferes ficar do lado de fora rezando um rosário para que os dois saiam e se entreguem em paz, fique à vontade – replicou o capitão-mor, sarcástico. - O que eu estou querendo dizer é que não creio que eles tenham se enfiado nesse buraco... duvido que fossem imprudentes a esse ponto... - Sempre que tu dizes para seguir esse ou aquele caminho, estás com a razão, irmão – era a primeira vez em muito tempo que Trovão chamava Valentim assim - Mas é também verdade que, todas as vezes em que nos
alerta para não irmos por uma determinada direção, é bem provável que estejas errado. - Se achas isso, então a única maneira de eu provar que estou certo é entrando aí... – atalhou o mameluco, e o olhar decidido não deixava dúvidas do que pretendia. - Que seja, então, tu e os demais arregimentem quanto cipó puderem por as mãos, amarrem bem uns aos outros, com nós firmes, e fabriquem uma corda capaz de te sustentar durante a descida. Vais necessitar de uns bons vinte ou trinta metros. Mal a ordem foi dada, o alferes e os outros sertanistas puseram-se a vasculhar a mata ao redor para recolher pedaços de cipós. O resultado final ficou melhor do que o esperado. A corda improvisada parecia ser mais firme do que uma de verdade, e como Valentim era mirrado e de baixa estatura, o seu peso não seria um inconveniente. Uma vez amarrado à “corda”, e com os outros, inclusive o capitão-mor, segurando firme a outra extremidade, agachouse na entrada e preparou-se para descer. - Quando encontrares os malditos ou caso depare com uma barreira intransponível e a única alternativa seja regressar, dê três puxões fortes, compreendeste? Não te aventures além do necessário nessas gretas. Estamos em uma caçada, não em uma exploração do território. O mameluco fez que sim com a cabeça e enfurnou-se na escuridão úmida. Os primeiros cinco metros foram relativamente fáceis de serem transpostos, embora a passagem inicial fosse bastante estreita, até mesmo para alguém como ele, a ponto de obrigá-lo a se espremer por entre duas lápides paralelas e quase cerradas. Valentim sabia que o jovem índio não encontraria problemas em atravessar aqueles corredores apertados, mas tinha sérias dúvidas quanto ao jesuíta. Seguiu em frente, apoiando-se nas saliências pontiagudas que ia encontrando pela descida e testando a firmeza delas com os pés antes de se sustentar. Sem pressa, foi se embrenhando por entre as frinchas, ao mesmo tempo em que ia pedindo mais “corda” com puxões discretos no cipó estendido. À medida que se aprofundava na terra, a mortalha de escuridão foi
se fechando gradualmente em torno dele, a tal ponto que a dez metros de profundidade estava tão cego quanto um morcego. Contudo, nem o negrume nem a precariedade das rochas, que a toda hora ameaçavam despencar sobre a sua cabeça, eram obstáculos suficientes para detê-lo. Enquanto dispusesse de corda e conseguisse se arrastar para o fundo, prosseguiria. E, quanto mais se afastava da superfície, menos cuidados tomava. Por duas ocasiões quase escorregou nas pedras lisas e recobertas de líquen e deveu a vida à destreza de anos encarapitando-se nos galhos das árvores. Na segunda vez, foi incapaz de evitar que o maço de papeis do volumoso poema de Cornélio, que carregava enfiado no cinturão de couro que atava a calça, escapasse. Antes que pudesse apanhá-las, as folhas esvoaçaram pelo ar e se perderam nos meandros escuros das profundezas rochosas. Ocorreu-lhe então que estava arriscando o pescoço em nome de um mero capricho, pois era isso do que se tratava a fúria vingativa do meio-irmão. O que pretendia ele com aquilo tudo? Já conheciam a trilha que conduzia ao tesouro perdido dos incas, ao lendário Disco do Sol e aos tesouros de reis, como tinha observado Vasco Falcão. Não precisavam perder tempo e energia com aquela perseguição sem sentido. Mas o rancor de Dom Francisco o deixava cego para a razão. Quanta insensatez... Valentim não deu continuidade a esses pensamentos. Não porque eles o aborrecessem ou causassem enfado, mas porque o distraíram e o levaram a cometer um erro fatal a meio caminho da descida. Inadvertidamente, pisou em falso sobre um seixo ligeiramente solto. A umidade das paredes o impediu de se segurar. A inclinação das lajes o desequilibrou. A fundura do buraco cuidou de fazer o resto...
38 O DESCONHECIDO PERFEITO* * Para ser lido ao som do “Prélude à L’Après-Midi D’um Faune”, de Claude Debussy
“Qualquer descrição não passaria de um retrato bastante tosco e impreciso, difuso mesmo como o veu de Verônica
104,
do selvagem que se
erigia ali, a meros seis passos de distância, impassível e aparentemente inconsciente de minha presença. Digo inconsciente porque sequer era perceptível o menor movimento de seus membros e nem manifestava sinal de que eu havia, de algum modo, atraído a sua atenção. Se os meus olhos não houvessem já se acostumado àquelas penumbras, eu teria dificuldade em distingui-lo da mata circundante, da qual parecia ser parte inerente, como se emergisse das folhagens, e somente os seus contornos eram fugazmente visíveis sob certos ângulos, o que fazia recordar um alto relevo gravado na tessitura compacta da floresta. Por mais que as palavras, e o que são elas senão meros amontoados de letras e sílabas?, sejam insuficientes para descrever a primeira impressão, ainda assim podem fornecer uma ideia relativamente clara da rústica beleza de sua aparência. Pois não era ele mais do que um menino, se como tal entendermos um jovem na altura dos seus 13, 14 anos, aspecto reforçado pela completa ausência de pelos no corpo todo e o corte bastante curto do cabelo, que em muito se assemelhava à minha própria tonsura e que, em circunstâncias outras, talvez me permitisse confundi-lo com um irmão inaciano. Contudo, a altura, de mais de 1,60, e, sobretudo, o garbo de sua figura altiva e plenamente desenvolvida desautorizavam tacitamente essa afirmação preliminar. A postura em que o flagrei, equilibrado sobre as duas colunas de incrível solidez das pernas, tão ou mais grossas do que um par de troncos de considerável espessura, a direita dobrada para a frente e a esquerda estendida para trás o máximo possível que lhe permitia a elasticidade dos músculos da coxa, precariamente apoiadas tão somente nas pontas do pés, cujos dedos mal pareciam tocar a superfície áspera da rocha cinzaesverdeada, e o tórax, inclinado e levemente deitado, o que o forçava a comprimir as nádegas protuberantes para o alto, e os braços bem abertos na transversal, também escorados nas pontas possantes dos dedos das mãos,
emprestava-lhe a sinuosidade e a graça de um gato à espreita da presa. O porquê daquela postura somente depois vim a descobrir. A pele acobreada, da cor do ouro mais puro, tão fascinante de se ver que a princípio julguei ser uma dessas pinturas com que os selvagens costumam se cobrir, refulgia sob o brilho esmaecido dos raios solares que se derramavam sobre ele com a suavidade de um manto de luz. Os tons dourados da tez pareciam realçar a firmeza dos bíceps e dos ombros, que sobressaíam em corcovas proeminentes qual uma cordilheira ondulante de montanhas espraiadas no horizonte. O pescoço, da grossura de um fardo de trigo e cortado por caudalosos rios de veias, servia de pedestal a uma cabeça perfeitamente talhada, um crânio de querubim de proporções invejáveis à melhor das esculturas de um artista florentino. Admirei-me com o esmerado trabalho com que a natureza havia desenhado o seu perfil, da testa nem demasiadamente curta nem demasiadamente larga, passando pelos intrigantes olhos azuis e curiosos, que se
sobrepunham
a
um
nariz
diminuto,
embora
de
belo
contorno,
harmoniosamente modelado acima de dois lábios carnudos, embaixo dos quais pendia, pouco acima do queixo ou sobressalente a ele, atravessada transversalmente, uma espécie de vareta de bambu de pontas afiadas. Como apreender, em poucas frases, a sutil atração que aquelas formas bem torneadas, de um exotismo feroz, exerceram sobre o meu espírito e converteram em serva a minha atenção? Estacionado ali, em gloriosa nudez, convidava a uma extasiante contemplação a que os meus olhos não se cansavam de pousar a vista. Se os anjos do céu têm forma reconhecível, e não são apenas entes luminosos, então a formosura daquele espécime humano era o mais próximo que se podia chegar deles neste mundo. Creio que nada, nenhum som, animal algum, nem sequer o próprio anúncio da volta do Salvador, seria capaz de roubar-me o êxtase daquela visão. Assim enlevado teria eu permanecido por horas a fio a admirá-lo e esquecido de mim mesmo e das necessidades imediatas se o jovem índio não houvesse desviado o olhar na minha direção. Bastou-lhe um súbito girar de cabeça, tão repentino e inesperado quanto o rasgo de um relâmpago em um céu límpido e desprovido de nuvens, e ao mesmo tempo tão displicente quanto a atenção de uma criança é desviada por um evento insignificante qualquer, para desarmar qualquer reação comedida que eu pudesse ter. Senti-me apanhado
desprevenido por aquele par de olhos tão brilhantes quanto candeias, da mesma forma que um guri que espia sorrateiramente pelo buraco da fechadura de uma porta, e não tive outra reação com que socorrer o espírito a não ser o susto. Sobressaltado, emiti um grito, caí para trás e rapidamente ergui-me nas pernas trêmulas. Afastei-me de costas, sem despregar o olhar daquelas formas admiráveis, até que, sem que percebesse, pus-me a correr tomado de um desespero crescente e implacável. Desnecessário dizer que não fazia a mínima ideia do caminho por onde seguia, ou sequer em que direção me embarafustava, só o que cumpria era obedecer aos pés, que em passadas largas e ousadas procuravam dilatar a minha distância até o silvícola. Arfava quase desprovido de ar, e sentia os pulmões queimando, mas nem isso era capaz de sobrepujar o estado alterado em que me encontrava. Do que fugia eu? Na ocasião, e mesmo agora, não saberia dizer. Na verdade, não eram pensamentos que enxameavam a minha mente, mas as sombras grotescas de sentimentos desprezíveis aos quais não ouso nomear. Cego de temor, enrosquei-me na miríade de galhos que cerravam a senda. Uma profusão de espinhos pontiagudos oriundos de todos os lados arranhou rosto, mãos e pernas, e cuidou de rasgar o pouco que restava inteiro de meu hábito. Em farrapos, exaurido, ensopado de sangue, contusões nos joelhos e no cotovelo direito, ferimentos horríveis nos tornozelos, quedei enredado pelo abraço doloroso daqueles azorragues, e vi-me tão imobilizado quanto a mosca apanhada em pleno voo pela teia de uma aranha faminta.”
51 A REGIÃO ONDE HABITAM OS DRAGÕES * * Para ser lido ao som de “Marte”, primeiro movimento da “Sinfonia dos Planetas”, de Gustav Holst
A jornada até o limiar do Peabiru durou bem mais do que podiam esperar os fracos e bem menos do que gostariam os prudentes. Saindo dos contrafortes da Serra do Japi, que preferiram contornar para evitar indesejáveis encontros com eventuais tamoios, tornaram para Oeste em direção à atual cidade de Sorocaba. Somente ao cabo de duas extenuantes semanas de andanças sem fim pelas matas cobertas de penumbras eternamente indiferentes ao dia ou à noite, de arriscadas travessias de córregos e rios de calados profundos e de uma crescente, embora comedida, ansiedade que beirava as raias do desespero é que os expedicionários tiveram o primeiro vislumbre da trilha de terra mencionada por Curumicaauã e sugerida pelos vaticínios de Carrasco. Os capitães-mores podiam aliviar-se do fardo de que nenhum incidente digno de nota ocorreu durante todo o percurso até ali, em que pesassem os constantes murmúrios de insatisfação, as trocas de olhares enviesados, o mercadejar de impropérios nas eventuais disputas por porções mais fartas de comida e que, com a previsibilidade das chuvas, se alternavam, dia sim, dia não, em rompantes de agressividade por vezes desmesurados. Em contrapartida, o prêmio de tamanho esforço estava a léguas de distância dos devaneios mais impetuosos. O Peabiru em nada parecia pressagiar a exuberante estrada de tijolos amarelos que atestavam as lendas construídas em torno dele. Muito pelo contrário, foi com um profundo desconsolo mesclado a uma inamovível sensação de desengano que os sertanistas se depararam com uma trilha de terra batida, com alguns tufos de grama, de uns oito palmos de largura, e menos que isso em alguns trechos, ladeada em cada margem por capões de barba de bode de um verde bastante vivo e que se elevavam a quase dois pés de altura. Aberta meio que a esmo, a senda estreita serpenteava mata adentro, aparentemente sem traçado ou direção, um mínimo resquício de planejamento em sua execução. Definitivamente, pouco tinha da grandiosidade e majestade que faziam crer as descrições coloridas do garoto
indígena e menos ainda parecia ter qualquer parentesco com a Estrada Real dos incas, com o seu impressionante pavimento de pedra, a amplitude de suas dimensões ciclópicas, os tambos, ou postos, distribuídos a intervalos regulares. De fato, o caminho era tão discreto e miserável que passaria praticamente imperceptível aos olhares de um viajante desavisado, não fosse um sinal gravado em uma laje de pedra de cerca de dois metros de altura, no limiar da trilha. Meio desgastados pelas intempéries, os contornos de uma estrela, ou de um sol com rosto humano em baixo relevo eram visíveis na superfície áspera. O Disco Solar dos incas, indubitavelmente. Ao menos agora os sertanistas tinham a certeza de que se encontravam no rumo certo. Assim que chegou ao pé da rocha, Francisco Trovão acenou para que a companhia estancasse o passo. Apertando o olho são, com mais vigor do que talvez pretendesse, procurou mirar o horizonte em busca de uma confirmação qualquer de seus anseios. Não havia nada profundamente errado no fato de aquele caminho pouco lembrar o portento de uma Via Appia, exceto que nunca poderia ser o cenário das grandes aventuras, a rota para o Grande Paititi, que ele, mais do que todos, almejava encontrar e que vinha pintando com pinceladas largas e intensas em sua fantasia inflamada pela cobiça. Poderia, como Júlio César, anunciar a plenos pulmões e aos quatro ventos a aposta na sorte incerta, ao cruzar o Rubicão, mas em lugar dos arroubos de grandeza quedou cabisbaixo. “Então é aqui que habitam os dragões?”, indagou pensativamente, e não estava se referindo apenas ao caminho que escolheu tomar.