Registro de um Espaço em Convulsão: Metamundos virtuais e Espaço Ubíquo

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Faculdade de Arquitetura e Urbanismo USP

Registro de um espaço em convulsão Metamundos virtuais e espaço ubíquo

TFG Vítor de Araújo Silva Orientador Marta Bogéa



Universidade de São Paulo Faculdade de Arquitetura e Urbanismo Trabalho Final de Graduação

Registro de um espaço em convulsão Metamundos virtuais e espaço ubíquo

Vítor de Araújo Silva Orientador: Marta Bogéa São Paulo 2014



Registro de um espaço em convulsão Metamundos virtuais e espaço ubíquo



À João Antonio e Michaela


Dedicat贸ria


À minha família, João Antonio, Michaela e Maísa, por acreditarem na minhas escolhas e incentivarem meus sonhos. À Marta Bogéa por me ajudar a entender a complexidade e potencialidade do meu trabalho. Aos amigos pelas conversas, trocas de experiências e pelas risadas. À Deus por todas as experiências, tanto as boas, quanto as ruins.


Sumรกrio


Capítulo 1

Capítulo 2

Capítulo 3

Um certo começo

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A FAU dentro da FAU: memórias

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Tapume estrume

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Com o vazio plenos poderes

42

Mutável ao infinito

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Experimentações

50

Virtualidade

54

Ubiquidade

60

Metamundo

68

Andorinhas

74

Outras cores

80

Espaços improváveis

88

Névoa

96

Náusea

108

Convulsão

118

Branco

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Bibliografia

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“Virtualizar uma entidade qualquer consiste em descobrir uma questão geral à qual ela se relaciona, em fazer mutar a entidade em direção a essa interrogação e em redefinir a atualidade de partida como resposta a uma questão particular.” 1

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LÉVY, Pierre. O que é o virtual?. Editora 34, São Paulo, 1996. Pág. 18.


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CapĂ­tulo 1


Um certo comeรงo

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“Obra de recuperação da cobertura do edifício Vilanova Artigas” Documento GEEF e FAUUSP, 2013.


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FAU em construção Acervo Biblioteca FAUUSP Década de 1960

“Há um quadro de Klee que se chama Angelus Novus. Representa um anjo que parece querer afastar-se de algo que ele encara fixamente. Seus olhos estão escancarados, sua boca dilatada, suas asas abertas. O anjo da história deve ter esse aspecto. Seu rosto está dirigido para o passado. Onde nós vemos uma cadeia de acontecimentos, ele vê uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína e as dispersa a nossos pés. Ele gostaria de deter-se para acordar os mortos e juntar os fragmentos. Mas uma tempestade sopra do paraíso e prende-se em suas asas com tanta força que ele não pode mais fechá-las. Essa tempestade o impele irresistivelmente para o futuro, ao qual ele vira as costas, enquanto o amontoado de ruínas cresce até o céu. Essa tempestade é o que chamamos progresso.”1

18 Esse TFG investiga a FAU em um momento de reforma tendo como baliza certos procedimentos da arte e do virtual. A questão espacial foi estudada considerando o poder transformador da arte e das experiências arquitetônicas relacionadas a espacialidades, novas possibilidades e intervenções; o foco foi a virtualidade e a capacidade deste conceito em discutir os espaços a partir de ferramentas ou conceitos que a tornam possível visualmente. O virtual foi questionado em relação a sua 1

capacidade de criação de novos espaços que tornam a experiência de sua vivência possível. A arte virtual e literatura foram estudadas paralelamente a fim de compreender as possibilidades espaciais e as experiências sensórias vividas através delas. A virtualidade está fundamentalmente atrelada ao conceito de ubiquidade, sendo assim, este conceito foi trabalhado a partir da sua capacidade de gerar espaços que convivem simultaneamente no nosso mundo não virtual. Estes novos mundos virtuais coexistem em seu caráter temporal e espacial.

BENJAMIN, Walter. O anjo da história. Lisboa: Assírio & Alvim, 2010, p. 147

“Angelus Novus” Paul Klee 1920


O Edifício da FAUUSP num contexto de restauro – e num contexto lúdico – foi analisado a partir dos conceitos expostos através de fotografias a fim de explicitar visualmente as possibilidades espaciais desta nova FAU efêmera e modificada. A nova espacialidade do edifício, sua nova paleta de cores, novos usos e consequentemente novas experiências. Quando pensamos em espaço, podemos dizer que o gesto inaugural é reinventado e reconfigurado a partir do ato coletivo e do passar do tempo. A paisagem vivida se distancia da paisagem material e a metamorfose acontece e abre as possibilidades de escolhas daquilo que

queremos retomar, tendo como ponto de partida o não-retorno ao original. Os usos recolocarão possibilidades e estas darão origem à reinvenção do passado. Assim será pensado o espaço da FAU neste TFG e sobretudo será discutida esta FAU que habitei entre 2009 e 2014. Capítulo 1: Uma acoplagem da minha trajetória na FAU. Capítulo 2 : Revela o pano de fundo artístico e conceitual que acompanhou a feitura desse TFG Capítulo 3: Ensaio visual que constitui uma narrativa não verbal na qual essa FAU em convulsão revela outras FAUs possíveis.

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A FAU dentro da FAU: mem贸rias

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Cavalo Inflado Flutuante no AI Arquivo pessoal 25/09/2009

“Maldizer a maneira pela qual professores, alunos e Direção vêm tratando a questão da Reforma da FAU, poderia parecer injusto há alguns meses, pois pela primeira vez neste processo, já cheio de injustiças e irregularidades, todas as partes estavam dispostas a dialogar, a fim de se chegar a um projeto comum. Assim, gostaríamos que este projeto de Reforma fosse tratado com o respeito e dignidade que merece pois envolve questões importantíssimas que nos concerne: a intervenção em um prédio tombado pelo Patrimônio Histórico, e a reestruturação de uma Faculdade de Arquitetura e Urbanismo." 2

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2

Revista Caramelo, nº 3, outubro/1991, p. 14/15


Caramelo Ocupado Acervo pessoal 2011

Este texto trecho de reportagem é, 23 anos depois de escrito, atualíssimo. Presenciei, desde minha entrada na FAU no ano de 2009 reformas e intervenções como a interdição do Studio 3 (desde 2007), a abertura dos pilares para o reparo do sistema de captação de águas pluviais, o novo projeto para o jardim, a reforma dos departamentos e por fim a reforma completa da cobertura que teve início em 2013. Esta última uma grandiosíssima intervenção que modificou temporariamente toda organização espacial desta escola. Esses processos que geram modificações espaciais num edifício onde todos os seus usuário conhecem o projeto original são sempre questionados, registrados e discutidos. A comunidade FAU não deixa de tirar vantagem desses momentos como exemplos vivos de um edifício que não sabe envelhecer. Sendo assim, somos aqueles que presenciam uma tentativa de restaurar um edifício modernista. Vemos com o passar dos anos ele se desintegrando, gotejando em nossas cabeças aquilo que foi feito forte para ser eterno. A FAU também não escapa da liquidez do tempo e sua fragilidade estampada como um cenário evidencia erros e nos faz olhar para o

‹ ‹

Caramelo Ocupado Acervo Biblioteca FAUUSP 1969

sagrado como algo alcançável e criticável. “O espaço modernista redefine a condição do observador; mexe com sua autoimagem.”3 A minha memória do edifício desde 2009 e através do uso de imagens da FAU original do acervo de imagens da biblioteca que foram evocadas por questionamentos atuais, permitem uma descoberta do que foi a FAU e nos fala das possibilidades de questionamento do que é a FAU, o que só é possível graças ao estado em que ela se encontra. O questionar só se tornou possível por que o edifício perdeu neste processo partes de sua característica original.

3 LÉVY, Pierre. O que é o virtual?. Editora 34, São Paulo, 1996, p. 36

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‹ Cartão de direito o voto no PDP Arquivo pessoal 2011


Esta foi uma maneira de incluir toda a comunidade nas discussões para elaboração do Plano Diretor 2011 - 2018, que incluía a reforma da cobertura da FAU. Entretanto o PDP não considera discutir questões que envolvem o espaço, como o local das aulas durante o restauro. A reforma foi discutida com um caráter apenas informativo. O contexto político na FAU também sempre foi responsável por reorganizações espaciais na forma de intervenções ou de ocupações do espaço. “Cadeiraços”, bloqueio, barreiras e intervenções sempre foram muitas vezes usadas pelos estudantes como modo de evidenciar espacialmente situações com o alcance a todos os estudantes.

Nos dias 31 de maio e 3 de julho de 2011 tivemos na FAU o Fórum do Plano Diretor Participativo (PDP) que buscou nortear as ações de restauro na escola a partir de debates entre alunos, professores e funcionários através de representação paritária.

Salão Caramelo durante o PDP Foto: Cândida Maria Vuolo 2011 27


28 As ocupações no edifício da FAU evidenciam a potencialidade espacial do projeto de Vilanova Artigas. O Salão Caramelo com possibilidades infinitas de ocupação é utilizado por estudantes, corpo docente e funcionários para suas atividades; mas também serve de lugar para exposições, aulas, protestos, eventos e estar.

‹ Greve Arquivo pessoal 22/11/2011

Assim a multiplicidade de funções deste lugar ímpar na FAU evidencia o seu caráter primordial na vida dos usuários deste edifício. Este é a grande praça pública da FAU que absorve necessidades e explicita possibilidades.


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‹ Previsão de avanço da obra da cobertura FAUUSP/GEEF 2013


Durante o período de 2013 e 2014, no processo de restauro da cobertura do edifício, o espaço foi alterado para possibilitar o andamento da obra, seja para garantir segurança dos usuários do edifício, seja para que as aulas dentro da FAU ainda fossem possíveis. Passamos por momentos extremos como o período de lixamento do piso da laje até março de 2014, o que gerou uma enorme quantidade de poeira dentro da FAU; a progressiva interdição de áreas do edifício a começar pelos estúdios 1 e 2, depois salas de aula, caramelo e o restante dos estúdios. O avanço das obras também significou as alterações físicas no edifício: a introdução de elementos estranhos àquilo que era normal e reconhecível. A FAU aos poucos e progressivamente mudou de cara e progrediu em direção a uma convulsão visual registrada neste trabalho como ápice de um processo de metamorfose que potencializou novas leituras do espaço. Passamos a viver num espaço cenográfico com cores, poeira, transparências, fendas, rasgos e bloqueios. O espaço estranho foi aos poucos reconhecido, explorado, questionado e acima de tudo incorporado como sendo um espaço novo, porém indissociável de minha trajetória lá.

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‹ Sala 807 Acervo Biblioteca FAUUSP 1969 32 O registro fotográfico feito durante o período de restauro me permitiu aquilo que chamei de ubiquidade espacial, ou seja, uma dobra temporal que fez com que o edifício revivesse períodos passados, futuros ou mesmo períodos desconectados de contextos históricos ou pontuados na temporalidade. Esses cenários me permitiram reviver e conhecer a FAU de outros momentos. Habitei a FAU em transformação, registrando cenários mutantes. Neste momento, no desenvolvimento deste TFG retomo os arquivos de imagens históricas da FAU a fim de tornar

tangível visualmente esses tempos distintos habitantes deste espaço. Por exemplo, quando parecia estávamos de fato coexistindo em dois momentos temporalmente distantes. A imagem da Sala 807 revela num primeiro momento a FAU datada de 1969 onde podemos ver o edifício inicial, ou seja, a FAU em construção, a original; antes da ocupação dos alunos, da colocação do mobiliário, ou seja o edifício que existia antes de ser a FAU escola: espaço reconhecido, habitado, vivido e experimentado. O que é retratado na segunda imagem, que mesmo tendo sido


‹ Sala 807 Acervo pessoal 2014 33 registrada em 2014, nos remete à um momento passado da história do edifício. Esta dobra no tempo que fez com que os anos 2014 e 1969 coexistissem, como se num “buraco de minhoca” a física tivesse permitido que entrássemos num túnel do tempo que nos levou para um edifício sem sua história vivida e nos permitiu que mesmo que temporariamente estivéssemos na FAU original.


TAPUME ESTRUME

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“Ao invés de nos conduzir à lembrança do passado, como fazem os antigos monumentos, os novos monumentos parecem nos fazer esquecer o futuro”.4 Dessas ruínas recentes que se fazem invisível aos tantos arquitetos que por esta escola circulam e nos tornam passivos frente àquilo que nos é imposto como salvação, tivemos muitos exemplos de reformas, restauros, intervenções que alteraram para sempre o projeto original de Vilanova Artigas para o edifício da FAUUSP. Desde a reforma dos jardins, reforma dos departamentos, reforma dos banheiros... Muitas delas feitas sem consulta prévia aos estudantes e sem levar em consideração o projeto original de Artigas. Em 2009 tivemos o reforma dos departamentos na FAU, o que alterou para sempre o projeto original desta área. O tapume rosa colocado no piso do AI passou a fazer parte do nosso dia a dia na escola e gerou revolta dos estudantes que além de pichá-lo resolveram derrubálo. Passamos a conhecer um AI diferente, com cores diferentes e que não entrava 4 SMITHSON, Robert. Entropy And The New Monuments. Editora University of California, 1996

em contato com a FAU que conhecíamos. A primeira parede branca foi fundada dentro dum edifício modernista. Foi esta primeira intervenção que me marcou com o desconforto na FAU. O tapume rosa saiu, mas deixou em seu lugar uma nova estrutura espacial da escola que parece não fazer sentido. A primeira de muitas alterações que foram feitas sem consulta a comunidade e sem respeitar o projeto original da nossa escola. O tapume saiu, ficou o estrume. 35


AI Acervo Biblioteca FAUUSP 1969

Estas outras imagens também datadas de 1969 e 2014 retratam o mesmo sentimento em outro local da FAU, o AI. O Atelier Interdepartamental já em 2009 sofreu uma grande modificação em relação ao projeto original de Artigas com a reforma dos departamentos. Perdeuse definitivamente a visão de um andar inteiro de janelas que ficaram restritas aos departamentos dos professores. Ganhamos no lugar um grande paredão branco. Contudo o AI durante o restauro passou a ser utilizado amplamente como salas de aulas, agregando todas as atividades que eram reservadas aos estúdios ou propriamente as salas de aula: apresentação de disciplinas, apresentação de trabalhos, avaliações, orientações; além de cumprir sua função original de ser o Estúdio coletivo da FAU.

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Este espaço ganhou novas cores, novas luzes, novos barulhos e sujeira. O restauro veio lento e constante, passou pelo AI, modificou o seu espaço e se foi. O novo AI, sem janelas não poderá resgatar a sua intenção original de uso. Ele se fragmentou em 2009 com a reforma dos departamentos e agora, mesmo que temporariamente no ano de 2014.

AI Arquivo pessoal 2014

Eu que conheci a FAU em 2009, quando olhei o AI de uma paisagem anterior entendi melhor aquilo que interessa em relação à organização deste lugar e de suas possibilidades de trabalho e seu uso como um estúdio coletivo. O edifício da FAU em contraste com seu brutalismo inanimado parece conseguir contornar a rigidez modernista e se mostra passível de reorganização.

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CapĂ­tulo 2

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“Le Vide” Yves Klein 1958


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Com o vazio, plenos poderes1

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1

Albert Camus escreve no livro de visitas da exposição de Yves Klein na Galerie Iris Clert, 1958.


“Quando um vazio é um espaço pleno? O que a tudo altera e permanece inalterado? O que não tem lugar nem tempo e continua sendo um período? O que é o mesmo lugar em qualquer lugar? Concluída a retirada de todo conteúdo perceptível, a galeria torna-se um espaço nulo mutável ao infinito”2 Em maio de 1958 na Galeria Iris Clert, Paris, Yves Klein buscou um mundo sem dimensões e esvaziou uma sala para “atestar a presença da sensibilidade pictórica em estado de matéria-prima”3 Klein retirou toda o mobília da galeria, pintou as paredes e a vitrine vazia de branco – A exposição foi intitulada Le Vide (O Vazio) e tinha um título alternativo mais longo: “O Isolamento da Sensibilidade num Estado de Matéria-prima Estabilizado pela Sensibilidade Pictórica”. Com esta intervenção, Klein demonstrou que a arte de galeria deveria ser colocada entre aspas, criticando a validação da arte institucionalizada como arte de verdade. 2 O`DOHERTY, Brian. No Interior do Cubo Branco. Editora Martins Fontes, 2009, p. 102 3 O`DOHERTY, Brian sobre a obra Le Vide de Yves Klein. No Interior do cubo branco. Editora Martins Fontes, 2009.

Assim os limites espaciais da galeria foram explorados e puderam ser experimentados pelos espectadores. A obra Le Plein (O Pleno) de Armand P. Arman, 1960, preenchendo toda a galeria, de parede a parede, com sucata, impedindo a entrada do público que via apenas pela vitrine que a galeria era agora um espaço completamente tomado. Podemos então pensar nestes dois exemplos extremos de espacialidade que tornam possíveis novos tipos de experiências no espaço, que colocado no centro de discussão da arte, torna o espaço da galeria e do museu de arte em ambientes de existências virtuais infinitas e por consequência tornam também infinitas as leituras. Não saber reconhecer de imediato dentro da galeria aquilo que é arte ou não aproxima essa realidade muitas vezes isolada do contexto da cidade. A confusão do espectador é colocada em foco neste ambiente, porém fora do espaço da galeria esta confusão não é sentida como um problema. "A consciência é agente e meio. Então, possuir um nível mais elevado de consciência torna-se uma permissão para explorar seus

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subalternos evolucionários. Dessa maneira o estado da galeria reflete o mundo exterior.”4 E ainda: “Esse espaço minimalista não se restringe apenas a museus e galerias, mas estende-se pelas ruas, praças, terrenos e prédios da cidade. Tratase de um espaço real, ou seja, todo e qualquer espaço em que não caibam interpretações ulteriores – quer seja da ordem institucional, quer seja da ordem urbana.” 5 Na obra “Caminhão de Mudança” de Dias e Riedweg estes limites da certeza da arte representados pelos espaços institucionalizados são extintos. A arte acontece na rua e o seu suporte é um caminhão que leva em sua carroceria uma paisagem paralela existente nas ruas e faz com que o expectador questione e veja este espaço de uma maneira nova, temporariamente sendo retirado deste contexto inserido em outro. Este caminhão carrega nele todo um mundo possível virtualmente, ou seja, um mundo possível de ser “adentrado” e que é inicialmente considerado como 44 sendo característico de um espaço de arte, acessível e circulável, o que entra em contradição com o espaço de uma galeria cheia de sucata, impenetrável e bloqueada. O espaço da galeria então se satura a ponto de não podermos mais avançar e se torna um espaço impenetrável. O espaço saturado se torna irreconhecível e portanto se prova mutável, destacando seu poder transformador. Reconhece-se então que o espaço da galeria mesmo vazia não é neutro. 4 O`DOHERTY, Brian. No Interior do Cubo Branco. Editora Martins Fontes, 2009. p. 118. 5 DEL CASTILLO, Sonia S. Cenário da Arquitetura da Arte. Editora Martins Fontes, 2008. p. 163.


‹ “Caminhão de Mudança” Dias e Riedweg 2010

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“Le Plein” Armand P. Arman 1960


Mutável

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Brian O’Doherty em 1976 analisa o cubo branco como a base fundamental de organização visual da maneira de expor moderna e observa como esta nova forma influenciou desde artistas até o público de museus. Essa extrapolação dos limites do espaço de expor com a criação de um mundo idealmente asséptico e atemporal graças ao rebaixamento das características arquitetônicas do edifício gera uma modificação na maneira com a qual o espectador se relaciona com a obra de arte. Ele também se vê reduzido àquilo que é básico e fundamental: sua visão. Sendo esta a intenção do espaço neutro, porém um espaço responsável por novas paisagens e consequentemente novas percepções. O caráter sagrado dos espaços expositivos institucionalizados é dado pelo uso da cor branca, pela exigência do silêncio, pelo ritmo da visita – o caminhar vagaroso – e principalmente pelo caráter elitista intelectual imposto pelo ambiente artístico, já explorados por Paul Valéry. Assim o público de museus não existe dentro deste espaço (reduzido a apenas um sentido, a visão) o seu corpo é negado, ou até mesmo seu corpo não existe neste espaço. Pode-se dizer que o expectador

existe virtualmente neste ambiente. “À medida que nos deslocamos naquele espaço, olhando para as parede, evitando o que está no chão, nós nos conscientizamos que a galeria também contém um fantasma errante mencionado frequentemente nos informes da vanguarda – o Espectador.”6 Esse tipo de experiência por parte do espectador acabou se tornando o modo atual de como se comportar num espaço de arte. Este espaço feito para ser neutro, ou seja, feito para ser o não-espaço acaba interferindo na maneira como o percebemos. Ele não é neutro – ele comunica uma ideia. Então, além da experiência proporcionada pela própria arte, este espaço dita formas de interação, pois pode-se dizer que boa parte da arte produzida no século XX foi pensada a partir do questionamento de como expor neste espaço e o segundo, o público, pela sua nova interação com o espaço.

6 O`DOHERTY, Brian. No Interior do Cubo Branco. Editora Martins Fontes, 2009. p. 37.

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“[...] a pretensa neutralidade do cubo branco, mais do que um simulacro, [...] constitui uma convenção. Uma natureza de recorrências que permite que um espaço codificado seja parte considerada na construção de uma obra.”7

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6

BOGÉA, Marta. Deslocamentos acerca do cubo branco. Vitruvius, Fevereiro de 2007.


O cubo branco então é um espaço fluido e ponto inicial de infinitas modificações - sendo assim este espaço se torna um lugar em comum no mundo, um lugar que se repete e repete suas características e possibilidades numa escala global. Como um espaço que por suas características semelhantes se tornam atemporais e não pertencem a lugar nenhum. São dobras temporais que assim como espelhos ou buracos negros possibilitam a imersão do público de uma maneira efetiva ao retirálos de uma realidade conhecida e inserilos numa outra que proporciona uma leitura espacial diferente. Poderíamos comparar este fenômeno quando pensamos na virtualidade possível graças à tecnologia? Os museus virtuais proporiam a mesma interação de uma maneira semelhante, retirando o espectador do uma realidade atual, o nosso “mundo real”, e inserindo-o numa realidade virtual tecnológica que é atemporal e não depende de uma localização geográfica? Já que a necessidade de determinações de barreiras entre arte e espaço caem na análise do cubo branco, podemos dizer que o que resta é um espaço em potência. Esta potência como veremos mais a frente entra como agente base da teoria do virtual. Onde encontramos virtualmente

a existência em potência de infinitos espaços distintos, contidos no cubo branco. Em potência, o “mundo real”, o “mundo virtual tecnológico” ou o “cubo branco”, podemos perceber que as interações humanas serão determinantes na sua formação. Mesmo no metamundo tecnológico a organização se dá a partir das “coisas” que fazem o espaço. Essas coisas são as pessoas e suas relações. Ou seja, um espaço jamais será neutro, mesmo o cubo branco que foi entendido como neutro, tem no ato coletivo do seu uso uma reconfiguração e uma reinvenção que provocam a metamorfose deste espaço e recolocam possibilidades de uso, leitura e experimentação. Os espaços modernos tendem a serem vistos como espaços abstratos e atemporais, mas o cubo branco é a confirmação de que essa utopia não se confirma: o eterno presente não existe. Os espaços modernos dos museus e das galerias são emblemáticos no desdobramento da discussão sobre a neutralidade do espaço. Esse enfrentamento é feito conceitualmente por O’Doherty, de onde pode-se concluir que o cubo branco não é abstrato e nem neutro, assim como a FAU.

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Experimentações

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‹ “Máscaras Sensoriais” Lygia Clark 1967

51 A busca por maneiras diferentes de sentir os espaço é mote de trabalho de arquitetos e artistas. Dan Grahan, Olafur Eliasson, Lygia Clark e muitos outros que tinham em comum a premissa da arte como experimentação – oposição conceitual ao Cubo Branco – e assim procuraram trabalhar a espacialidade a partir de obras que alteram o ambiente. O cubo branco é um certo espaço com certa previsibilidade. Um espaço diáfano deslocado do mundo tangível. Lygia Clark trabalhou a multisensorialidade focada na experiência

do espectador. Era essencial que ele interagisse e passasse a fazer parte da obra para que ela se concluísse como arte de transformação social e a partir desse ponto, onde as duas metades, obra e espectador, se encontram, a obra passa a fazer sentido. As Máscaras Sensoriais de 1967 de Lygia Clark foi pensada para que o espectador, neste caso já parte da obra, encontrasse dentro de si uma maneira fantasmagórica de ver o mundo. Feitas de várias cores estas máscaras faziam com que o usuário tivessem os ouvidos e olhos substituídos por dispositivos que alteravam a visão e a


audição de formas variadas nas diferentes máscaras. Por elas cobrirem toda a cabeça, o usuário também tinha a sua aparência modificada em algo monstruoso, fazendo com que este perdesse totalmente o fio de contato antes existente com a realidade externa. Nesta mesma linha o coletivo austríaco Haus-Rucker-Co fundado em 1967 buscou explorar o potencial performático da arquitetura e criar experiências tanto de vestimentas quanto de novas espacialidades construídas a fim de experimentar sensorialmente a cidade de uma outra maneira. Também criaram máscaras e dispositivos prostéticos de alteração de percepção espacial, mas se destacaram pelo trabalho em estruturas pneumáticas, criando novos espaços de isolamento, reflexão e observação.

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Criaram performances nas quais os espectadores passavam a fazer parte da obra e podiam assim influenciar o ambiente em que estavam presentes, ou seja, deixavam de ser apenas espectadores passivos.

‹ “Mind Expander” Haus-Rucker-Co 1967

Na Obra “Oase No. 7” de 1972 na qual uma estrutura pneumática foi construída na fachada de um edifício como parte da programação do Documenta V, na cidade

“Oase No. 7” Haus-Rucker-Co 1972


53 de Kassel, Alemanha, a fim de criar um espaço relaxamento e brincadeira. A série “Mind Expander” de 1967-69 consistia numa série de capacetes criados com a finalidade de alterar a percepção daqueles que os usavam. Um deste, o “Fly Head”, assim como as máscaras de Lygia Clark, alteravam a visão e audição, criando um novo tipo de apropriação da realidade. Poderia ser a câmera fotográfica um desses dispositivos de percepção do espaço? Num momento onde o edifício da FAU chega ao máximo desconforto e ao ápice de sua perda de identidade, o registro fotográfico permite além de

imortalizar este momento ímpar, mostrar qual é esta nova FAU, quando a encaramos como um espaço que procurava se manter inalterado, mas que pelos novos modos de trabalho que ocupavam este espaço já estava modificado. A FAU foi atravessada por momentos passados e novas organizações de seus espaços. Este espaços sobrepostos evidenciaram camadas temporais de momentos que já definiram o edifício e por não-momentos de indefinição e mal estar que buscaram por definições num edifício que tem a premissa de ser sagrado.


Virtualidade

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edadilautriV


O virtual é comumente definido pela sua oposição errônea ao real. Porém o real não se opõe formalmente ao virtual, apesar do caráter não presencial que esse muitas vezes carrega. De acordo com Pierre Lévy, o virtual é sinônimo de força, potência. E aquilo que existe em potência é virtual. O exemplo mais comum é o da semente, na qual a árvore encontra sua existência em potência, ou seja, a árvore existe virtualmente na semente. A semente é a base de um complexo problemático onde a árvore existe, porém sua existência é uma interrogação já que existem uma enorme quantidade de problemas a serem enfrentados e resolvidos para que esta semente se torne uma árvore. A solução deste complexo problemático é o que faria a árvore existir. Este conceito não pode ser confundido com o possível, já que ele, já constituído, é exatamente como o real, faltando-lhe apenas existir. Se não há necessidade de resolução de uma problemática (ou se mesmo não existe uma problemática) não existe a potencialidade de uma existência, assim não podemos considerar aquilo que é possível como virtual. Sendo assim o virtual não se opõe ao real,

mas sim ao atual. A atualização, ou seja, a solução de uma problemática visando a mudança, caracteriza este processo de criação e resolução. O virtual existe enquanto existir uma problemática, e quando ela é solucionada temos o atual. “O real assemelha-se ao possível; em troca, o atual em nada se assemelha ao virtual: responde-lhe.”8 A virtualização entra então como um conceito complementar ao virtual. Essa consiste na passagem do real para o virtual, o que não significa que este processo torne não-real aquilo que foi virtualizado, mas sim que houve uma mutação. A entidade (a semente por exemplo) passa a encontrar sua existência num campo problemático. Podemos então, a partir desta noção de virtualização entrar num mundo de problemáticas onde o virtual, real, atual e virtualizado convivem e se desafiam. Muitos artistas e arquitetos viram a potencialidade desses conceitos a fim de discutirem o espaço. Dan Graham 7 LÉVY, Pierre. O que é o virtual?. Editora 34, São Paulo, 1996. p. 17.

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56 “Alteration to a suburban house” Dan Graham 1978

Cabana da mulher nômade de Tóquio Toyo Ito 1985

numa experiência realizada em 1978 criou o “Alteration to a suburban house” no qual ele substituiu a parede opaca da fachada frontal de uma casa num subúrbio americano por placas de vidro e no interior dessa casa revestiu as paredes do corredor paralelo a esta fachada com espelhos. Ao tornar o limite da privacidade (do público e do privado) praticamente inexistentes, ele expõe a vida dos moradores desta casa ao externo ao mesmo tempo que traz virtualmente os transeuntes para o interior dessa casa com suas imagens nos espelhos. Buscando criticar a vida no subúrbio, ele usa a virtualidade a fim de quebrar barreiras e extinguir limites.


Toyo Ito em “A mulher nômade de Tóquio” utiliza-se deste mesmo conceito para falar das necessidades de uma mulher solteira que vive em Tóquio. Neste projeto de uma cabana moderna transparente e que flutua pela cidade, Toyo Ito discute num projeto as novas necessidades da vida numa cidade cosmopolita e focada no trabalho. Esta cabana não possui máquina de lavar, nem geladeira, nem sala de estar, já que todos esses elementos podem ser supridos por equipamentos urbanos e públicos e pelo caráter móvel da cabana, ela se move ao encontro da sua necessidade. Esta mulher moderna de uma capital pungente observa a cidade de dentro de sua casa e ela também é observada pela cidade. Ela é onipresente e ausente ao mesmo tempo. Na FAU a virtualização nos revela que ao viver num espaço ao longo de um período de tempo, ou seja, ao nos encontrarmos num certo presente, todos os espaços vividos podem estar convivendo em potência, o que geraria miragens deste espaço. Personagens distintos reconhecem a FAU de maneira distinta, logo a virtualização deste momento da FAU é gerada por essa pluralidade de vivências e a consequente pluralidade de miragens que alteram o edifício que, num momento de metamorfose, sofre influência na possibilidade de reorganização,

readequação e reestruturação deste espaço que é pura potência. Quando o espaço está consolidado e quieto, não é preciso rememorar sua história, por isso ele é deixado como está, mesmo se não estiver vivendo o seu momento ideal. Porém ao interferir na linearidade deste espaço e causar turbulência, como o processo de restauro da cobertura do edifício, teremos a todo momento um chamado pela história e pelo projeto original (a rememoração é essencial num período em que a FAU muda a cada dia), a fim de que este espaço num esforço inútil retorne àquilo que era, porém dada a impossibilidade de que isso ocorra, esse chamado ao passado vem para reorganizar espacialmente o modo de ocupar. Na literatura também encontramos a virtualidade utilizada como maneira de discutir espaço e interação social. No “The Veldt” 9 como uma miragem virtual em potência, onde a dobra virtual do tempo tornou possível uma confusão entre o mundo real e o virtual.

9 BRADBURY, Ray. The Veldt. Publicado em “The World the Children Made”, 1950.

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Numa casa tecnológica dos anos 50 uma família vive supostamente tirando o melhor proveito daquilo que a tecnologia pode oferecer, o que inclui um quarto de brincar para as crianças que é ativado pela imaginação e através da tecnologia projeta em suas paredes um novo ambiente, com seu cheiro, iluminação, temperatura, etc. Este 58 quarto, o preferido das crianças era um quarto de possibilidades infinitas e assim passou a ser o lugar da casa preferido destas crianças. Aquilo que elas imaginavam lá dentro logo passou a ser uma preocupação para os pais, já que o lugar preferido das crianças passou a ser uma savana tórrida com leões sempre a vista. A perfeição dessa imagens sempre assustaram os pais, mas nunca as crianças. * Resenha feita a partir da leitura da obra

The Veldt Preocupados com o que aquele pensamento obsessivo poderia significar, os pais buscaram ajuda de um psicólogo que aconselhou que as crianças ficassem um tempo sem frequentar este ambiente da casa. Obviamente esta nova regra não trouxe alegria para as crianças que acabaram ganhando dos pais o direito de usá-lo mais uma vez. E tão tomadas por esse mundo virtual controlado pela imaginação e pelo medo de perder aquilo que eles consideravam como mais familiar, resolveram se entregar totalmente à savana, na qual seus habitantes, os leões foram responsáveis pelo fim de seus pais. Uma quebra lógica do atual e virtual que destacou a dobra virtual temporal onde se tornou possível a confusão entre o mundo real e o virtual.


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Ubiquidade

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“Equilibrium” Tim Head 1972

The Veldt nos permite reconhecer um conceito importante na questão da virtualidade, a Ubiquidade. “Alter Bahnhof Video Walk”, 2012 é uma obra em que Janet Cardiff e George Bures Miller utilizam-se de uma filmagem prévia feita com um iPod numa estação de trem com uma narração descrevendo os acontecimentos registrados pela câmera. Contudo a obra se concretiza quando o púbico ao fazer o download do vídeo em seu próprio dispositivo, pode experimentar a partir dele e da narração os acontecimentos que em outro período de tempo aconteceram naquela estação. O público é surpreendido pela sensação de estarem vendo fantasmas de um outro tempo. Ao verem o vídeo no dispositivo que aponta para o mesmo local anteriormente filmado, eles veem uma realidade que não mais existe, porém pelo fato dela estar virtualmente inserida na atualidade, temos a sensação de presenciar uma dobra temporal-espacial. Os dois momentos estão sobrepostos e existem no mesmo instante e ao caminhar pela estação o público se sente presente em duas realidades distintas. “ [...] em termos tecnológicos, entende-se por ubiquidade a

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coordenação de dispositivos inteligentes, móveis e estacionários para prover aos usuários acesso imediato e universal à informação e novos serviços, de forma transparente, visando aumentar as capacidades humanas.” 10 Ao considerarmos o conceito da virtualidade aplicada a uma espacialidade atual e como sua nova organização o torna virtualmente real, é possível considerarmos na elasticidade do tempo, um espaço que existe tanto na atualidade quanto em outros momentos temporais. 62 Existe então uma “co-fusão” da entidade singular – sendo essa entidade o espaço, e uma multiplicação da existência de sua materialidade sobrepostas neste mundo atual como camadas de mundos passados e futuros. Seriam estas operações semelhantes aquelas que são encontradas em “The Veldt” e em “A máquina de Morel”, onde realidades de tempos distintos são inseridas no nosso mundo presente e ao se tornaram tangíveis passam a alterar a nossa realidade? É essa sobreposição que torna possível o convívio de um mundo real e virtual ao mesmo tempo? 10 SANTAELLA, Lúcia. Comunicação Ubíqua. Editora Paulus, São Paulo, 2013. p. 16

O uso de dispositivos que evidenciam o conceito de ubiquidade é essencial. Seja o iPod na obra de Cardiff e Miller, seja o nosso computador pessoal que nos coloca num mundo cibernético onde estamos presentes em todos os lugares do planeta de uma vez só, ou seja no uso de dispositivos como a câmera de vídeo ou até mesmo espelhos. Na obra de Dan Graham, “Present Continuous Past(s)” de 1974, uma sala revestida de espelhos e esquipada com uma câmera e um monitor temos a dobra temporal do passado e presente evidenciada. Os espelhos representam o tempo presente e a câmera que grava os acontecimentos da sala reproduz com um atraso de oito segundos estes acontecimentos no monitor. Porém como a câmera grava as imagens refletidas pelo espelho, se o corpo do espectador não bloquear a reflexão da imagem do monitor no espelho, a câmera regrava o reflexo da imagem do monitores que já tinha um atraso de oito segundos, gerando assim na tela oito segundos depois uma imagem atrasada em 16 segundos. Assim as possibilidades para o espectador de reviver momentos neste espaço são enormes e ele passa a existir num espaço no qual o presente e o passado são ambos atuais.


“Alter Bahnhof Video Walk” Janet Cardiff e George Miller 2012

“Present Continuous Past(s)” Dan Graham 1974

Seria o que a gente vive hoje na FAU uma espécie de sobreposição, de condensação, de muitos tempos possíveis e na medida em que ela se transforma permanentemente é que ela nos permite rememorar outras paisagem? Ao estranhar a paisagem presente ela trás em presença imagética todas as paisagens anteriormente colocadas? O constante escape desses momentos efêmeros é o que tornou necessária a necessidade constante de fotografar o avanço do restauro da FAU? Não estamos falando da ubiquidade na FAU em relação à presença de todos os mundos dentro do edifício, mas sim de todas as paisagens possíveis desta mesma paisagem convivendo na atualidade. Temos nesta realidade a revelação de um passado perturbado que insistentemente volta a se revelar. Todos esses mundos passados se tornam reais e tangíveis, o mundo da memória que ubiquamente habita o mesmo espaço.

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‹ 64 “Ocasião” Cildo Meireles 2005

Os espelhos, os vidros transparentes, translúcidos, as telas, perfurações, vãos, frestas, fendas são ferramentas que também tornam possíveis essa presença de um mundo perturbado. A obra ocasião de Cildo Meireles consiste de paredes de espelho e uma bacia de dinheiro no meio. Um desses espelhos é aquele de polícia, que permite que se veja por detrás. Assim o público desavisado ao entrar na sala com a bacia de dinheiro interage de maneira a pegar dinheiro ou deixar dinheiro. Para sua surpresa percebe-se que os espelhos são monitores para os espectadores já avisado. Podemos encontrar na literatura a ubiquidade usada como mote. “A Máquina de Morel” é um romance do escritor argentino Adolfo Bioy Casares que utiliza-se de uma tecnologia fictícia que torna possível o passado e o presente conviverem no atual.


“O lapso, o hiato temporal que separava o objeto fotografado da própria foto tornou-se extremamente tênue. Em vez de duplo, devidamente separado, estático, eternizador de um instante que se foi para sempre, as fotos imiscuíram-se na continuidade, na vertente da vida que vai passando. O instantâneo é ainda rastro, mas um rastro capaz de acompanhar, quase sem defasagem, o mesmo movimento da matéria evanescente do instante que o presente engole para devolvê-lo como passado. A vida portanto, recebe, em um instantâneo visual, seu registro quase na exata temporalidade em que ela escoa.”11

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‹ Marseille Vieux Port Foster + Partners 2011

FAUUSP Arquivo pessoal 2014

SANTAELLA, Lúcia. Comunicação Ubíqua. Editora Paulus, São Paulo, 2013. p. 128


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A Invenção de Morel Morel, com a energia produzida pelas forças das marés, vive eternamente numa ilha juntamente com seus amigos que sem saberem trocaram a vida real pela eternidade virtual. Ao criar uma máquina capaz de gravar todas as ações que se passaram nesta ilha durante uma semana, ele faz coexistir a repetição eterna desta semana gravada de suas vidas com o tempo presente e contínuo em que vivemos – esta experiência é desvendada por este fugitivo da lei que buscava abrigo numa ilha deserta que de repente é tomada por pessoas, ou pela imagem delas. Este fugitivo muito confuso passa a fugir desses habitantes da ilha, sem saber que todos eles são fantasmas. A trama se desenrola numa história de amor presente em tempos distintos, onde o virtual e o atual podem coexistir. Faustine, o * Resenha feita a partir da leitura da obra

amor desse fugitivo nunca chegou a vê-lo ou conhecêlo, mas ele jurava que havia reciprocidade, que havia sentimentos, que havia amor. Então num ato solitário de Romeu sem Julieta, ela decide, após decifrar o funcionamento da máquina, gravar sua imagem interagindo com Faustine, olhando nos seus olhos quando ela olhava o horizonte, sentando ao seu lado quando ela estava sozinha e até dialogando depois de decorar tudo que ela havia falado durante esta semana. O fugitivo então também sofre a degradação do corpo – em um paralelo podemos citar o medo dos indígenas de tirar fotografias, pois acreditavam que nossa alma seria roubada por aquela máquina que imortaliza um momento. Então ele passa a viver como imagem virtual que somente vive de acordo com a vontade das marés, porém vive eternamente numa ficção de história de amor.

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Metamundo

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Meta-

«além de; para além de» ideias de «mudança, união, transformação» e de «nível superior, maior generalidade».

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A expressão “metamundo virtual” aparece no livro Cibercultura, de Pierre Levy. Nele Levy define o metamundo virtual como sendo o espaço possível graças à virtualidade. O metamundo virtual citado por Lévy refere-se ao mundo virtual cibernético. Este ambiente tecnológico relacionado a rede mundial de computadores geram novas possibilidades de comunicação, trocas de experiências e aprendizado. Este metamundo virtual é um espaço real, no qual habitamos em imagens, hipertextos e vídeos. Este mundo, ou seja, um mundo paralelo 70 que transcende e se modifica pode ser então aplicado a mundos virtuais, ou em virtualização, mas de caráter não tecnológico. Assim experiências espaciais como uma intervenção artística num contexto urbano, ou até mesmo a montagem de uma exposição numa galeria ou museu podem ser então encarados como uma dobra temporal que nos faz perceber um metamundo. Este mundo posterior se assemelha no conceito da virtualização, já que a metamorfose de um espaço, se considerarmos ele como sendo a entidade, pode ser descrita como um processo de virtualização, encontrando força de existência na sua própria problemática. Criando assim um espaço virtualizado.

Este tipo de espaço é o objetivo de estudo deste trabalho. A partir dessa afirmação, pode-se analisar espaços virtualizados e suas novas possibilidades de experiências sensoriais que podem ser vividas pelas pessoas, sendo espectador de museus, de galerias, da cidade, etc. No filme Matrix de 2009 de Andy Wachowski e Larry Wachowski, temos evidenciada essa criação de um metamundo virtual. Nele seres humanos que passaram a ser controlados por máquinas que os cultivavam apenas para a geração de energia, tinham uma vida “real” vivida virtualmente dentro de um programa de computador que emulava nossa realidade atual. Este filme levantou questões sobre inteligência artificial e realidade simulada, na qual humanos livres lutavam para viver numa realidade deprimente num mundo atual controlado por máquinas que escravizavam humanos. Encontramos na FAU em reforma uma certa reinvenção do real, ou seja, mundos múltiplos que se tornaram tangíveis e a partir dessa presença vê-se de fato o que este espaço deveria ser. O mundo da memória se materializou e tornou possível as novas possibilidades do edifício.


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‹ “Matrix” Andy Wachowski e Larry Wachowski 2009


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CapĂ­tulo 3

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Andorinhas

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"Agora é possível visitar o prédio como só as andorinhas podiam fazer”1

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1 Paulo Mendes da Rocha em entrevista. “Paulo Mendes da Rocha comenta com entusiasmo a reforma da Pinacoteca”, In: Revista Projeto Design. São Paulo, Arco Editorial, maio 1988, n. 220, p. 47.


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Outras cores

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Estamos habituados a uma paleta de cores características da FAU. O cinza do concreto e o caramelo do epóxi do piso. Além dessas cores, podemos ver o vermelho e o azul em algumas paredes, porém estas aparecem de maneira mais secundária por serem menos frequentes. O branco, como já citado não é uma cor característica da FAU, mas acabou surgindo no piso do AI com a parede dos departamentos. Durante o período de obras na FAU fomos introduzidos temporariamente a uma nova paleta de cores. Além do azul das lonas da cobertura, já nosso amigo desde 82 2007 e a interdição do Estúdio 3, fomos introduzidos ao azul mais escuro e ao amarelo das lonas, ao rosa dos tapumes (um recorrente nas nossas memórias desde o Tapume Estrume), as laranja das faixas de isolamento tanto no perímetro exterior do prédio, quanto no seu interior nas rampas e ao redor do caramelo e aos novos tons de cinza da nova fachada malhada da FAU. Essa inserção de cores “alienígenas” além de causar estranheza visual nos traz um sentimento de não reconhecimento do espaço antes familiar e faz da FAU um novo espaço possível.


"O espaço é hoje apenas o lugar onde as coisas acontecem; as coisas fazem o espaço existir"2

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2 O`DOHERTY, Brian. No Interior do Cubo Branco. Editora Martins Fontes, 2009. p. 36.


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Espaรงos improvรกveis

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Sala improvisada no Caramelo Arquivo pessoal 2014

AI interditado Arquivo pessoal 2014 91

Uma das características mais consideráveis do edifício é o seu caráter panóptico. Estamos habituados a usar essa característica a nosso favor. Estes espaços abertos, transparentes e que fluem fazem da FAU um edifício sem segredos: vemos todos e tudo, exceto nas salas de aula, um dos raros momentos em que a FAU se fecha Durante ao restauro da cobertura, perdemos esta característica. Lonas, telas, tapumes geraram novos bloqueios visuais e passamos a ter novas espacialidades na forma de novos lugares usados como salas de aula, lugares interditados

num espaço que sempre foi livre, novas sombras onde tínhamos luz. Passamos a ter além do bloqueio visual, o bloqueio físico num edifício pensado para ser completamente fluido. Essa alteração do percurso, o bloqueio do caramelo, as rampas fechadas como caixas bloqueando a visão dos transeuntes, a interdição das salas de aulas e estúdios fez da FAU um novo edifício recortado e segmentado. Pensando na forma social do edifício e em como a apropriação do espaço é o que o faz, vale reconhecer como essa modificação do uso alterou a forma com que nos apropriamos deste lugar.


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Névoa

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‚ Sala 803 Arquivo pessoal 2014


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Estúdio 5 Arquivo pessoal 2014 Sala 812 Arquivo pessoal 2014 Sala 801 Arquivo pessoal 2014 A FAU foi “perfurada” por momentos multitemporais que a deslocaram do hábito, daquilo que é reconhecível. Espaços vazios, inabitados, abandonados. Poeira, névoa, visão embaçada. A preparação para o restauro gerou ambientes descolados da realidade da memória viva dos usuários contemporâneas deste edifício. Talvez uma dobra temporal de um metamundo possível da decadência , do abandono, da substituição. Esta não é nenhuma memória, mas sim uma dobra temporal de um dos futuros possíveis da FAU e da arquitetura moderna.

Como na Obra da artista plástica Rochelle Costi, Resíduos/Waste, na qual ela faz uma reunião de elementos que fizeram parte 104 da história do antigo Hospital Matarazzo em São Paulo. Esses elementos são dispostos numa das salas deste hospital abandonado há 20 anos. A leitura que esta obra nos permite do espaço faz com que haja um sentimento de apego ao passado, de remorso pelo seu estado atual e um questionamento sobre as possibilidades perdidas com este espaço. Na FAU a interdição parcial foi resultado da desocupação de certas áreas do edifício, como os estúdios para que fosse possível a realização das atividades de restauro. Mas não menos foi o sentimento e a leitura das possibilidades que esta dobra temporal nos trouxe.


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‹ Resíduo/Waste Rochelle Costi 2014


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Nรกusea

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Convulsão Convulsão Convulsão Convulsão Convulsão Convulsão Convulsão Convulsão Convulsão Convulsão Convulsão Convulsão 118

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A convulsão nos faz perder a essência, a persona. Esta perda nunca é inicialmente encarada como “potencializadora” de futuros e possibilidades de reinvenção. Estar convulsionado significa perder-se completamente; não ter controle e deixarse sentir a ausência de consciência, não se reconhecer e de certo modo permitir-se zerar, anular-se e se destruir. A convulsão é chocante para quem olha, mas de certo modo libertador para a entidade que a sofre. Permitir-se a perda é permitir-se também a redefinição e a reestruturação. A FAU convulsionada disparou um sentimento de incompreensão - as dobras do tempo a cada inserção de elementos novos neste contexto nos fez relembrar, repensar, reviver e reinventar. Como arquitetos não podemos esquecer destes nossos poderes. A FAU não é sagrada, nenhuma arquitetura é. Tiramos a FAU do pedestal para que ela tenha o direito e a possibilidade de não ser apenas uma ideia, mas de ser as muitas FAUs que nela podem existir ou coexistir.

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Branco

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Bibliografia

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