Centro Universitário Facens Trabalho Final de Graduação Arquitetura e Urbanismo
VILA HORTÊNCIA EM PERSPECTIVA: REVITALIZANDO O MATERIAL E IMATERIAL NO ALÉM PONTE (SOROCABA, SP) Vitória Amorim dos Santos Orientadora: Prof. Dr. Taiana Car Vidotto
AC1: Determinação de Tema e Local Palavras-chave: Arquitetura Industrial, Memória, Patrimônio Cultural, Urbanização, Vila Hortência, História de Sorocaba.
Sorocaba, SP 2022
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PARTE 1: O TEMA INTRODUÇÃO O seguinte trabalho tem como objetivo recordar e preservar a memória coletiva da região do Além Ponte, localizado em Sorocaba, interior do estado de São Paulo, através de um projeto arquitetônico de restauro aliado a reestruturação urbana do local, visando promover um desenvolvimento sustentável e adequado à escala do bairro. Conhecido como lar dos imigrantes espanhóis no início do séc. XX, em meio aos operários das tradicionais fábricas de tecelagem que modificaram a economia e paisagem da cidade, delineando a Manchester Paulista de outrora, o Além Ponte hoje abriga moradores de diversas camadas da sociedade, sejam eles atraídos pela proximidade que a região possui com o Centro, ou ainda assim aqueles que, geração após geração, cresceram e fizeram suas vidas em meio as ruas paralelas à Avenida Nogueira Padilha (Fig. 1). O fator em comum entre estas camadas de pessoas, histórias e percepções distintas é mais especificamente a Vila Hortência, bairro mais antigo do Além Ponte e partir do qual esta região se desenvolveu. Figura 1 – Vista da Avenida Nogueira Padilha. Ao fundo, a Paróquia Bom Jesus dos Aflitos, construída na década de 40.
Fonte: G1 Sorocaba (2016).
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Atualmente, o desenvolvimento urbano observado em Sorocaba – impulsionado principalmente pelo setor industrial – e a necessidade crescente do setor imobiliário de empreender em localidades próximas a eixos de conexão na cidade – apresenta um risco para a paisagem encontrada no Além Ponte caso o planejamento urbano seja feito de maneira alheia à comunidade que ali o habita, correndo o risco de perder sua essência e seus exemplares arquitetônicos históricos, como
ocorrido no final do século XX, quando o complexo fabril Santa Maria – empreendimento percursor do desenvolvimento têxtil proeminente em Sorocaba que se deu durante a Revolução Industrial –datado de 1892, foi demolido de maneira ilegal. Assim, para planejar uma cidade, é necessário compreender sua dinâmica urbana e suas camadas históricas, para que as intervenções – urbanas e arquitetônicas - sejam feitas de maneira sensível a história ali presente. Pode-se atrelar, então, o projeto de intervenção ao 11º Objetivo de Desenvolvimento Sustentável da ONU, que diz respeito a cidades e comunidades sustentáveis, em especial ao item “(...) aumentar a urbanização inclusiva e sustentável, e as capacidades para o planejamento e gestão de assentamentos humanos participativos, integrados e sustentáveis, em todos os países.” (PNDU, 2015). A primeira etapa do trabalho tem como objetivo documentar e compreender o local de estudo na escala da cidade, e a partir dela, identificar edificações históricas com potencial transformador do entorno, que se encontrem em estado de deterioração e subutilização, e a partir disso, espera-se intervir em um destes exemplares através da restauração do prédio e reuso do edifício selecionado e, assim, reinserilo na malha urbana, juntamente à uma proposta de reestruturação urbana, promovendo um ambiente de desenvolvimento alinhado com
os objetivos explanados anteriormente.
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PARTE 2: O LOCAL VILA HORTÊNCIA: CONTEXTO DE FORMAÇÃO Traçar o contexto de formação do Além Ponte é, inicialmente compreender as características geográficas do local. Localizado às margens do Rio Sorocaba, no eixo de conexão para a região Metropolitana de São Paulo, o comércio foi o fator inicial que levou ao primeiro assentamento urbano fora da colina onde se localizava a área urbanizada, hoje reconhecida como o centro histórico. Remontando ao período de 1750 a 1888, quando Sorocaba era conhecida como Vila Tropeira de Nossa Senhora da Ponte e realizavam-se as Feiras de Muares, a cidade passou a ter um grande desenvolvimento econômico, principalmente por estar localizada em um ponto de parada dos Tropeiros – responsáveis pelo comércio pecuarista. “O comércio próspero dessa atividade era então
refletido nas edificações dos detentores do poder tanto religioso quanto econômico e privado, em especial na arquitetura residencial, que, com casarões
espalhados
responsáveis
pelas
por novas
Sorocaba,
foram
urbanidades
que
surgiam fora do centro.” (SANTOS, 2021. Pg. 6)
Segundo Baddini (2002), o início da urbanização no Além Ponte foi ocasionado pela implantação do Registro de Animais, em 1750, na margem direita do Rio Sorocaba e levando à criação da Rua da Contagem, de nome modificado para Rua São Paulo em 1887 (fig. 2). Em 1880 a Chácara do Quinzinho de Barros – senhor de terras e agente de transformação da região - foi repartida em duas parcelas, originando o traçado da Avenida Cel. Nogueira Padilha, inicialmente Rua dos Morros. A Chácara do Quinzinho permaneceu a Norte, e a Chácara Amarela teve sua implantação ao Sul.
4 Figura 2 – Evolução urbana de Sorocaba 1820-1889. Área de estudo em destaque.
Fonte: BADDINI, Cássia Maria. “Sorocaba no Império”. São Paulo: AnnaBlume: Fapesp, 2002. 1 ed. Adaptado.
A mudança do tecido da região a partir de 1850 é observada com a
abertura
do
largo
do
Coronel
Manoel
Lopes
em
1871
e
consequentemente a formação de novas ruas, criando uma conexão da rua dos Morros (atual Nogueira Padilha) com a rua do Votorantim. O largo do Coronel passou por um processo de embelezamento, fazendo
parte de uma série de modificações urbanas que visavam a modernização de uma Sorocaba que iniciava seu posicionamento no cenário de industrialização no Brasil em meados do séc. XIX.
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Com a construção da Estrada de Ferro Sorocaba na região, a cidade rumava para um novo capítulo que demandava uma paisagem moderna. Assim, a rua dos Morros foi pavimentada entre 1873 e 1874 recebendo embelezamento devido à sua conexão com a rua São Paulo, até então uma das principais vias de entrada para a cidade. Através da inauguração da Fábrica de Tecidos Nossa Senhora da Ponte em 1880 (fig. 3), ocorreu um salto demográfico e econômico na região com a
oferta de novos empregos, que atraia também um contingente de imigrantes. Assim, a prosperidade advinda da industrialização fez com que no final do Séc. XIX se iniciasse a inauguração de uma série de fábricas – dentre elas, a Santa Maria em 1892. A partir de então, a ideia de progresso em Sorocaba passou a ser diretamente ligada com o movimento industrial crescente, mais precisamente com o setor têxtil.
6 Figura 3 – Contexto municipal e relação entre bairros operários: Além Ponte e Além Linha.
Elaborado pela autora (2022)
7 “A expansão urbana e populacional de Sorocaba
nesse
período
ocorreu
devido
à
consolidação da monocultura do algodão, ao desenvolvimento das linhas da Estrada de Ferro Sorocabana, aos investimentos no setor industrial têxtil e às atividades urbanas decorrentes das necessidades sociais que se apresentavam no cotidiano
da
cidade.
(...)
O
crescimento
populacional contou, assim, com migrantes e imigrantes que transformaram as relações sociais e o perfil cultural de Sorocaba.” (PINTO JUNIOR, 2003. Pg. 35)
O crescimento da economia industrial que proporcionou à Sorocaba o status de “Manchester Paulista” no início do Séc. XX, acompanhado do surgimento da classe operária, levou a formação de
um novo modo de morar habitando vilas próximas aos locais de trabalho. Os grupos moradores dessas vilas eram geralmente compostos por cidadãos sorocabanos, juntamente de imigrantes – em sua maioria italianos e espanhóis. Nesse sentido, surgiram também movimentos de regularização do trabalho e do acesso ao saneamento básico nessas vilas em desenvolvimento: surgiam os bairros operários, localizados nas regiões do Além Ponte e Além Linha. Em “Sorocaba Operária”, o autor Pinto Junior (2003) relata as relações de dependência entre proletário e empresa, que era maximizado devido às moradias serem de posse das fábricas. O aluguel era descontado do salário junto de despesas de armazéns e botequins que se instalavam nas proximidades das vilas operárias. A grande maioria dos trabalhadores residia com suas famílias e, logo, o peso de submeter-se às condições de vida no local estava relacionado à responsabilidade de prover o grupo familiar. “Tratava-se, portanto, de uma invasão da vida doméstica dos operários, pois estavam em contato com a propriedade do patrão até
8 quando dormiam.” (PINTO JUNIOR, 2003, p. 39)
A partir da década de 30, a região da Vila Hortência ficou conhecida como um bairro espanhol, devido a quantidade de imigrantes que habitavam o local, em grande maioria operários. A presença dos espanhóis no Além Ponte a tornou uma região com características únicas, quase como um núcleo urbano à parte. A urbanização a sul do Além Ponte (fig. 4) originaria o bairro Barcelona a
partir da segunda metade do séc. XX, e a influência espanhola é encontrada e homenageada nos nomes das ruas e avenidas. “Encontramos algumas peculiaridades no bairro Barcelona quando andamos por suas ruas. Estas têm nomes como a Av. Paraguai (...); num outro ponto do bairro temos rua Chile (...). Para os que vivem no bairro, a nomenclatura das ruas e avenidas tem relação com a imigração espanhola
como, por exemplo, a rua Sevilha, e também com a colonização espanhola na América Latina: muitas ruas e avenidas recebem a denominação de Bolívia, Venezuela, Paraguai, entre outras.” (pg. 26)
Observando o sentido da a evolução da mancha urbana entre os séculos XIX e XX (fig. 4), é possível afirmar que a fábrica Santa Maria foi fator primordial para a expansão urbana que se deu no local na mesma
medida em que a Avenida São Paulo e a Rodovia Raposo Tavares – cuja construção desta data da década de 60 – foram elementos estruturadores da hierarquia da região.
9 Figura 4 – Evolução urbana do Além Ponte
Fontes: BADDINI (2002), CELLI (2012) e LOSADA (2016). Elaborado pela autora (2022).
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A VILA HORTÊNCIA HOJE O cenário atual da Vila Hortência é composto por residências (fig. 5), em sua grande maioria térreas (fig. 6), e a Avenida Nogueira Padilha continua sendo o principal elemento estrutural da paisagem, de onde se localizam os comércios, de gabarito baixo e de pequeno porte. Figura 5 – Uso do Solo
Elaborado pela autora (2022) Figura 6 – Gabarito
Elaborado pela autora (2022)
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Apesar de não possuir o status oficial de Avenida, a Rua Nogueira Padilha é um elemento tão forte, onipresente desde o início da formação do bairro, e delimitadora da paisagem, que é chamada assim por seus moradores. Nesse mesmo sentido, a delimitação territorial administrativa do que é a Vila Hortência não comporta seu verdadeiro todo (fig. 7). Figura 7 – Delimitação administrativa da Vila Hortência
Fonte: Google Maps (2022).
Ao analisar as características morfológicas do bairro, como o traçado das quadras, tamanho das vias, e aspectos topográficos, tudo isso aliado à sensação de pertencimento dos moradores das regiões próximas a esses limites oficiais, é seguro afirmar que a Vila Hortência é muito maior do que seus limites reconhecidos oficialmente. “A história da imagem urbana contém um relato das formas de sentir, ver e sonhar a cidade... a arquitetura joga o papel do subconsciente, expressando o desejo coletivo inalcançável que se configura material e imediatamente.”
(PESAVENTO, Sanda Jatay. O imaginário da cidade: visões literárias do Urbano. In RIBEIRO, Emerson. Caminhos e descaminhos: a ferrovia e
12 rodovia no bairro Barcelona em Sorocaba/SP p. 35-36)
A Nogueira Padilha – que é o ponto mais alto na topografia – age como espaço de transição para as vias locais, nas quais o fluxo é baixíssimo e a implantação das residências e comércios familiares mistos de baixa-média renda ditam as relações sociais. Na Vila Hortência, o conceito de “olhos na rua” (JACOBS, 1961) é observado de
maneira clara: no final da tarde, é comum ver os moradores – muitos destes que passaram a vida toda na Vila – se apropriando das calçadas para reuniões sociais, compostas muitas vezes por idosos e crianças, que mantém o senso de comunidade mesmo em um bairro localizado ao lado do centro. Os eventos que celebram a memória curiosamente acontecem na via de maior movimento (fig. 8), como é o caso da Feira de Sevilha e desfiles de Independência, tal qual procissões religiosas. Figura 8 – Desfile da Feira de Sevilha, evento de celebração da cultura espanhola na região.
Fonte: Jornal Cruzeiro do Sul (2019).
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Séculos após a divisão territorial entre Chácaras Amarela e Quinzinho marcado pela criação da Rua dos Morros, citadas anteriormente, a mesma ainda possui forte impacto na paisagem, marcados pela caída do terreno conforme o avanço aos núcleos leste e oeste. Hoje, uma pequena parte do que foi a chácara Quinzinho de Barros abriga o Zoológico Municipal (fig. 9), local igualmente delimitador da paisagem, que marca a divisão entre Vila Hortência e
Vila Haro. Figura 9 – Grande área verde na qual se localiza do Zoológico Municipal Quinzinho de Barros atraí visitantes de dentro e fora da cidade de Sorocaba.
Fonte: Secom/MPS (2018).
Dentro do perímetro do Zoológico está localizado o casarão do capitão Chico – também conhecido como Quinzinho – atualmente abriga o Museu Histórico Sorocabano (fig. 10) e é um ponto de parada obrigatório nas visitas ao Zoo, frequentemente feitas por crianças e adolescentes das escolas públicas e privadas de Sorocaba e região.
14 Figura 10 – Museu Histórico Sorocabano se localiza em casarão bandeirista.
Fonte: Agenda Sorocaba (2018).
Colocando em panorama os edifícios que transformaram a região, é imprescindível citar novamente as fábricas (fig. 3) e seu uso atual. A fábrica Santa Maria, inaugurada em 1892 (fig. 11), fechou suas portas em 1982 e, anos mais tarde, durante a década de 90, enquanto passava por um estudo para o tombamento do edifício, foi demolida ilegalmente (fig. 12). Na época, era forte a especulação imobiliária, afinal, o terreno de grande extensão se localiza em área de acesso direto ao centro e próximo das principais vias da cidade.
15 Figura 11 – Fábrica Santa Maria em 1954.
Fonte: Museu Histórico Sorocabano. Figura 12 – Notícia veiculada sobre a demolição da fábrica Santa Maria.
Fonte: Jornal Cruzeiro do Sul (1994).
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As edificações que não foram demolidas a tempo logo foram preservadas, bem como parte do maquinário. Atualmente o terreno comporta o Condomínio Residencial Villa de Espanha (fig. 13), enquanto uma parte restante da fábrica abriga a Secretaria do Meio Ambiente de Sorocaba e o maquinário está armazenado no Museu da Tecelagem, localizado na Rua Newton Prado. A escala do conjunto de edifícios residenciais bloqueia a vista dos remanescentes da fábrica, que, tirando
a chaminé que marca a paisagem, passam quase que despercebidos pelos pedestres e motoristas. Atualmente o museu da Tecelagem, que não chegou a ser inaugurado, se encontra fechado para visitação. Figura 13 – Terreno da Santa Maria atualmente comporta condomínio residencial. É possível observar os remanescentes que não foram demolidos e que atualmente se encontram tombados.
Fonte: Villar Mercado Imobiliário.
Próximo à fábrica Santa Maria, outra fábrica que se tornou importante marco para a urbanização foi a Alvejaria, Tinturaria e Estamparia São Paulo, inaugurada em 1909 e localizada na Rua São
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Paulo às margens do Rio Sorocaba. Após passar por diversas reformas para comportar avanços tecnológicos nas técnicas de tinturaria, a Fábrica São Paulo perdeu grande parte de sua característica arquitetônica inicial e está desativada desde 2010, sob posse do Grupo Splice, e com destino incerto. O grau de degradação do espaço atualmente (fig. 14) ruma a um novo episódio de demolição como ocorreu na Fábrica Santa Maria. Figura 14 – Vista aérea da Fábrica São Paulo atualmente
Fonte: Coelho Voador imagens aéreas.
Cenário similar é encontrado na Gerdau, antiga Siderúrgica Nossa Senhora Aparecida, inaugurada em 1937 (fig. 15), e cujo terreno de
grande extensão encontra-se subutilizado desde 1994, quando o Grupo Gerdau desativou o espaço da fábrica destinado a fabricação de aço, e focou
suas
atividades
em
realizar
acabamentos
de
materiais
processados vindo de outras unidades do grupo. Parte do complexo permaneceu em uso até 2014, na área de acesso pela Rua Padre Madureira (fig.
16)
e a área
atualmente sem uso
alonga-se
paralelamente à Avenida São Paulo, percorrendo as margens do Rio Sorocaba (fig. 17).
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Figura 15 – Siderúrgica Nossa Senhora Aparecida em meados do séc. XX.
Fonte: IBGE
Figura 16 – Parte do terreno se encontra em atividade atualmente pela Gerdau.
Fonte: Fernando Rezende (2014).
19 Figura 17 – Galpões fabris abandonados ocupam mais da metade do espaço de implantação da fábrica.
Fonte: Jornal Cruzeiro do Sul (2019).
“Em dezembro de 2014, a Câmara de Sorocaba derrubou o veto total ao projeto de lei nº 304, que declarou de utilidade pública, para fins de desapropriação, o imóvel (...) de propriedade da Gerdau. (...) Na ocasião, o então vereador Crespo destacou que a proposta surgiu quando a empresa Gerdau anunciou o fim das atividades na unidade local, e que o objetivo era utilizar a área para a implantação de um complexo multimodal
de passageiros que incluiria rodoviária, terminal de integração de ônibus e BRT, além de estação central do VLT (veículo sobre trilhos). Ele disse ainda que uma negociação amigável levaria ao pagamento
a
longo
prazo,
destacando
a
importância de se reservar a nobre área. Crespo afirmou que não se tratava de um projeto de desapropriação e sim de declaração de utilidade pública, para que a área fosse desapropriada no
futuro.” (Cruzeiro do Sul, 2021).
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PARTE 3: EM BUSCA DO EDIFÍCIO DE INTERVENÇÃO O tipo de obra realizado no terreno da Fábrica Santa Maria foi o pontapé inicial para a problematização do tema de estudo: afinal, para resgatar a memória de um outro período, o museu é o único uso possível? Como evitar destino similar ao de degradação encontrado nos exemplares da Fábrica São Paulo e Siderúrgica Gerdau? Restaurar é aplicar o conhecimento teórico de forma sensível ao ambiente do entorno, em relação aos aspectos urbanos do local, bem como aos elementos imateriais, como recordações, relações da vizinhança com o objeto de estudo, para que assim, o projeto vá além do edifício, reavivando a memória urbana e prolongando assim a vida útil do local. Por isso, antes de escolher de fato um edifício, é necessário estudar os aspectos relativos à dinâmica urbana do bairro e, assim, analisar qual a escala de intervenção desejada.
FÁBRICA SÃO PAULO A princípio, a Fábrica São Paulo (fig. 18) chama a atenção pelo grande vazio urbano e localização privilegiada na cidade. Figura 18 – Vista via satélite da Fábrica São Paulo.
21 Fonte: Google Maps (2022).
Apesar de, inicialmente não chamar atenção pelas características arquitetônicas (figura 19), o interesse de intervir nesse complexo vem de sua localização e contexto. É possível criar conexões com o Rio Sorocaba e sua preservação, reativando as margens, e trabalhar também na conexão com a Avenida São Paulo, onde atualmente os muros barram a visão para a fábrica. Suas poucas características
originais permitem maior liberdade para demolir algumas áreas e preservar outras. Figura 19 – Vista da Fábrica São Paulo a partir da Avenida de Mesmo Nome.
Fonte: Google Street View (2021). "Apesar de o conjunto de edifícios da Fábrica São Paulo apresentar pouquíssimas características arquitetônicas originais, sua preservação se torna necessária para o entendimento do processo de industrialização da cidade e urbanização de toda aquela região (o Além-Ponte)". (MASSARI, 2011)
Atualmente existe uma obra de instalação do BRT em frente ao local de interesse, o que possibilita um estudo acerca das conexões possíveis entre a vocação do edifício e a mobilidade urbana da cidade. A escala é grande se comparada aos outros pontos escolhidos e um grande desafio.
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CINE ELDORADO Com o desenvolvimento urbano e econômico em meados da década de 40, novos empreendimentos públicos surgiam, inicialmente de estilo Art-Déco que “apresentou-se como estilo mais palatável de aproximação à modernidade e de fácil assimilação por parte da população dos grandes centros.” (MESTRE, 2014, p. 58). O estilo foi inicialmente popular em obras de caráter público, e na Vila Hortência destaca-se o Cine Eldorado (1939), localizado na Avenida Padilha (fig. 20). Figura 20 – Cine Eldorado durante do séc. XX.
Fonte: Terceira Margem (2019).
O prédio apresenta características marcantes em sua composição geométrica, de platibanda recortada e sacada maciça, além de
elementos decorativos típicos do estilo. Neste cenário, observa-se uma série de edificações residenciais, que replicaram características ArtDéco em suas fachadas. Tais obras de autores anônimos levantam a
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hipótese de terem sido feitas “à moda da época” entre as décadas de 30, 40 e 50, em paralelo com edificações públicas como é o caso do Mercado Municipal, Correios e Cine Eldorado, sendo este último atualmente sem uso na região (fig. 21). “[Existem, então] inúmeros exemplares de aplicação decorativa e vernacular em lojas, residências e sobrados, principalmente no Centro, [Além Ponte] e Além Linha (...) demonstrando a rápida penetração no universo de menor acesso econômico e cultural, decorrentes de ampla aceitação e fácil aplicação prática.” (MESTRE, 2014, p. 60). Figura 21 – Cine Eldorado durante do séc. XX.
Fonte: Terceira Margem (2019). "Inaugurado em 25 de março de 1939, o antigo Cine Eldorado - palco de encontro para casais apaixonados e dezenas de crianças da colônia espanhola de Sorocaba (SP) - está com a estrutura à venda por R$ 2,5 milhões, quase 80 anos após ser cenário da história da cidade. O
último ano de funcionamento do cinema no local foi em 1980, quando não havia mais nenhum comércio fixo no local. De lá para cá, o imóvel já serviu de ponto para
24 "balada", templo religioso e baile da 3ª idade." (G1 Sorocaba)
Apesar de apresentar maior rigidez em sua intervenção devido ao tombamento, a memória presente no edifício é o fator que mais desperta interesse. Porém, a sua escala menor não apresenta a possibilidade de intervir via edifícios anexos e a estruturação urbana do entorno imediato se vê possível via legislações e desenho de calçadas.
TRICO 1931 Investigações acerca do Cine Eldorado levam a um olhar mais atento às vias paralelas à Avenida Nogueira Padilha. Em meio à implantações residenciais sem recuo frontal e de características de bairro, um prédio chama a atenção na Rua Ruy Barbosa, corredor de transporte dentro da Vila Hortência que a conecta diretamente à Avenida São Paulo. Na fachada, um detalhe chama a atenção: “TRICO 1931” está escrito acima das janelas. (Fig. 22) Figura 22 – Edifício de arquitetura anônima, apelidado de “TRICO 1931”.
Fonte: Zaqueu Proença (2016)
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Uma visita ao entorno, ainda sem possibilidade de entrada no edifício, revelou que suas dependências vêm sendo usadas como estacionamento para cidadãos que trabalham nas proximidades. Nos fundos dessa edificação, na R. Ataliba Borges, existe um conjunto de galpões
também
desativados
(antiga REMONSA
RETIFICA
DE
MOTORES N SENHORA APARECIDA LTDA). (Fig. 23) Figura 23 – Edifício aos fundos se encontra igualmente subutilizado.
Fonte: Google Street View (2021).
O complexo da R. Ataliba Borges será demolido para a construção de um condomínio de edifícios: o JJR HORTÊNCIA. (Fig. 24). A conexão com o caso da Fábrica Santa Maria é direta: um conjunto arquitetônico que se destaca na paisagem e remonta ao passado industrial do bairro que se encontra ameaçado de desaparecer devido ao interesse do setor imobiliário na área.
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Figura 24 – Edifício JJR Hortência
Fonte: JJR Empreendimentos
O edifício TRICO 1931 não possui tombamento, e sua implantação juntamente ao desativado REMONSA LTDA, aponta para o risco do mesmo ser demolido a fim de integrar o terreno entre ambos edifícios para a construção do empreendimento residencial (fig. 25).
27 Figura 25 – Vista aérea revela proximidade direta entre os lotes. A conexão direta que a Rua Dr. Ruy Barbosa possui com a Avenida São Paulo faz-se deduzir que o empreendimento terá acessos também nesta rua, e provavelmente o TRICO 1931 será demolido.
Fonte: Google Maps (2021).
O programa que se desenvolverá a partir do TRICO 1931 ainda é nebuloso, uma vez que é necessária a análise do entorno imediato de maneira minuciosa, bem como investigações diretas sobre o edifício, para que, assim, sua vocação e uso sejam delimitados de maneira a respeitar sua inserção urbana. Fato é que, a intenção é preservar o edifício da década de 30, e estudar a demolição do REMONSA LTDA devido às suas poucas características arquitetônicas e implantação mais recente, surgindo a possibilidade de projetar um edifício anexo. A região possui grande potencial e é possível ligar ambas edificações e criar um complexo. Ele se adequa na escala do bairro, possui um grande potencial de modificação da paisagem, e pode ser a chave para a problematização apresentada anteriormente.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ARAÚJO NETO, Adalberto Coutinho de. O proletariado – a presença da classe operária em Sorocaba. In: Sorocaba Operária. Sorocaba, SP: Crearte, 2005.
BADDINI, Cássia. Passagem de tropas e comércio de animais: os usos da cidade e o ordenamento do espaço urbano, In: Sorocaba no Império: comércio de animais e desenvolvimento urbano. São Paulo: Annablume: Fapesp, 2002.
CELLI, Andressa.
Evolução Urbana de Sorocaba. Dissertação
(Mestrado). Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2012.
GOULART FILHO, E. Quadro da Arquitetura no Brasil. São Paulo: Perspectiva, 2010.
MESTRE, João Luís Bengla. A Arquitetura Moderna em Sorocaba: Décadas de 50, 60 e 70. Dissertação (Mestrado). Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2014.
PINTO JÚNIOR, Arnaldo. A invenção da Manchester Paulista: embates culturais em Sorocaba (1903 – 1914). Dissertação (Mestrado) Faculdade de Educação/UNICAMP, 2003. Capítulo 2 – Adentrando a invenção da Manchester Paulista: dialogando com produções historiográficas e (re)conhecendo especificidades; Capítulo 3 – Inventando uma nova cidade.
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PRESTES, Lucinda. A vila tropeira de Nossa Senhora de Ponte de Sorocaba: aspectos socioeconômicos e arquitetura das classes dominantes (1750-1888).
MASSARI, Marco Antônio Leite. Arquitetura industrial em Sorocaba: o caso das fábricas têxteis. Dissertação (Mestrado). Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2011.
PINTO JUNIOR, Arnaldo. A invenção da Manchester Paulista: embates culturais em Sorocaba (1903 – 1914). Dissertação (Mestrado) Faculdade de Educação / UNICAMP, 2003. Capítulo 2 – Adentrando a invenção da Manchester Paulista: dialogando com produções historiográficas e reconhecendo especificidades; Capítulo 3 – Inventando uma nova cidade.
RIBEIRO, Emerson. Caminhos e descaminhos: a ferrovia e a rodovia no bairro Barcelona em Sorocaba/SP. Dissertação (Mestrado). Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2006.