Do amor à camisa à falta de dinheiro: as histórias da Sociedade Esportiva São Borja na Terceira Divisão Por Vitor Kellner No escritório de advocacia em que trabalha de segunda à sexta-feira é Filipe Velasque, com a bola no pé, dentro do gramado, é Filipinho. O lateral-esquerdo da Sociedade Esportiva São Borja, SESB, representa a garra do time. Sobreviver somente do futebol é um objetivo, ou talvez apenas um sonho distante, praticamente impossível. A idade para conquistar uma vaga categorias de base de uma grande equipe já passou, o torneio é sub-23 e os principais clubes profissionais costumam aceitar jogadores até no máximo 18 anos. O lateral esquerdo já completou 23. A não ser que se destaque muito e tenha a sorte de ser observado por um olheiro, pule a etapa das categorias de base e receba uma vaga direta no grupo principal, o que é cada vez mais incomum. Filipe terá o futebol como um lazer e não como ganha pão para o resto da vida. O último grande exemplo que conseguiu atingir o sonho de Filipe é o atacante Leandro Damião, com passagens por Inter, Santos, Cruzeiro e Seleção Brasileira. Velasque sabe da dificuldade de atingir o objetivo de conseguir uma vaga num grande time. Ele diz que é um tiro no escuro com a idade que está. “A gente tem que dar o máximo, se destacar num jogo, se alguém gostar talvez chame”, pondera Filipinho, com a entrega dentro de campo e a motivação, que contagia quem está ao seu lado. Sentado sozinho nas cadeiras azuis enferrujadas do estádio Vicente Goulart, Filipe espera o treino começar, num sábado da manhã. No celular, escuta uma bandinha, se aquece com o calor do sol e um agasalho do Grêmio. Aliás, no tricolor gaúcho, o irmão Matheus Velasque é zagueiro do sub-23. “Ele já fez alguns treinos no principal quando o Felipão era o técnico. O Celso Rigo [da Pirahy Alimentos, de São Borja] é o empresário dele. Ele ganha por mês, já faz três anos que ele tá lá”, afirma orgulhoso Filipinho.
Poderia ser ele, talvez. A possibilidade de fazer carreira no futebol esteve mais perto, em 2011. A Associação Esportiva São Borja, AESB, era patrocinada pelo mesmo empresário, que investe no futebol do Grêmio e foi investidor na contratação de jogadores como Giuliano e Miller Bolaños. Os jogadores recebiam salário de dois mil reais, o estádio era pintado e o gramado tinha cuidados diários. O time vinha bem, Filipe fazia parte do grupo, era titular. Mas foi chamado para o Exército Brasileiro e teve que abandonar o clube. Uma decisão arbitrária, que definiu o restante da vida. “Infelizmente, como fiquei só um ano no quartel, não aproveitei nada e ainda perdi a chance de disputar o campeonato”, relembra, com os olhos azuis, querendo marejar. A emoção que se aproximava é driblada pelo lateral-esquerdo, que abre um sorriso leve para disfarçar e muda de assunto, relembra como o estádio estava diferente, bem cuidado. Havia funcionários somente para cuidar da limpeza das arquibancadas e do gramado. Filipinho lembra que vinha assistir aos jogos, em que seu irmão era zagueiro da AESB. O bem humorado de antes das más lembranças, volta. Orgulhoso, conta que aqui na cidade, Matheus sabia só dar balão para frente e tinha altura, lá nas categorias de base do Grêmio aprendeu a ter saída de jogo, bom passe, cabeceio e até drible. O destino às vezes se cruza, os irmãos Filipe e Matheus eram diferentes. Matheus gostava de estudar e Filipe de jogar futebol. Os caminhos se inverteram. Por enquanto, o mais novo é jogador de um grande time e o mais velho trabalha num escritório de advocacia. Com ideias opostas, Celso Rigo e alguns dirigentes da AESB decidiram desfazer a parceria. Assim, o empresário deixou de investir no futebol da cidade e o Vicentão de ser cuidado pelos funcionários da arrozeira que o patrocinava. O gramado impecável ganhou alguns desníveis e outros buracos. O projeto de por as cadeiras do Olímpico, antigo estádio do Grêmio, em todos os setores e de comprar seus refletores, foi engavetado. Restaram apenas cerca de mil cadeiras, que precisam de reforma e pintura devido a ação do tempo e de um faxineiro para recolher o lixo deixado pela torcida. Dos tempos de outrora sobraram apenas os coletes pretos do staff, que trazem a logo do Arroz Prato Fino.
Como a legislação atualizada para a Copa do Mundo de 2014 prevê que toda a torcida tenha que ter espaço para sentar, somente esses mil ingressos podem ser vendidos. Além disso, sem iluminação, os jogos tem que ser disputados durante o dia, inclusive nos meios de semana. O que afasta o público e diminuiu a já pequena renda das partidas em casa. Da qual, metade é dividida entre os jogadores. Mas apesar de todas as diferenças dos tempos de vacas gordas no passado e, até o momento, vacas magras no presente, Filipe é otimista, afirma que quem está no clube tem condições técnicas de chegar a um grande clube, o que falta é preparo físico. A realidade do futebol, em contrapartida, parece ser um pouco mais pessimista. Se com o auxílio do empresário, apenas dois jogadores chegaram às categorias de base de um grande clube, Darlan Mendes é companheiro de Matheus no Grêmio. Sem empresários, agentes, investidores e todos estes personagens de bastidores do futebol, movidos pela máquina do dinheiro, chegar a um grande clube é mais que um tiro no escuro, a dificuldade aumenta porque falta a arma para disparar o tiro. Cristiano, também divide o tempo com as luvas de goleiro da Sociedade Esportiva São Borja, com as leituras do curso de Direito, que realiza em Santo Ângelo, a cerca de 200km de São Borja. Para jogar pela SESB, teve que trancar algumas cadeiras. Mas, para ele, ajudar a equipe dentro e fora de campo, justifica o atraso na faculdade. O capitão contribuiu na escolha dos jogadores para montar o grupo, que disputa a Terceirona. O futebol em São Borja era apenas um lazer, um campeonato amador aqui, um amistoso com o time de outro bairro lá. Mas neste ano, ficou sério com a reativação da SESB para a disputa da Segunda Divisão do Campeonato Gaúcho, de acordo com a nomenclatura oficial da Federação Gaúcha de Futebol, FGF, mas de fato é terceira divisão do futebol no Rio Grande do Sul, última a ser considerada profissional. Aliás, o que lembra o futebol profissional é apenas o ponto eletrônico, que a arbitragem utiliza para se comunicar durante a partida. Agora, será que deve ser considerada profissional uma arbitragem que perde a súmula do jogo e tem que recorrer à imprensa e solicitar a foto do documento para enviar a federação?
Por falar na FGF, a mudança constante nas datas dos jogos e o mau planejamento do calendário na primeira fase também lembravam campeonatos amadores organizados na várzea. O campeonato amador de São Borja é a categoria de base da SESB. Pois a maioria dos atletas nunca tinha jogado nem no juvenil ou nos juniores. A Sociedade Esportiva São Borja é praticamente uma seleção dos melhores jogadores do campeonato varzeano. Entretanto, desfalcado de algumas peças, devido ao regulamento que limita a três, o número de jogadores acima de 23 anos. A falta de categorias de base é um problema de acordo com o dirigente da SESB, Eldomiro Marchezan. Os jogadores até tem boa técnica, mas durante o jogo não conseguem dosar os arranques e jogar com a bola no pé, para evitar o cansaço. Além disso, no final do jogo se o time está na eminência de perder, surge uma falta mais forte e logo o cartão vermelho sai do bolso do árbitro. “São poucos que tem a cabeça centrada, chega no final do jogo, a equipe deslancha”, complementa Marchezan. Falta de preparo físico e de categorias de base também dificultam o percurso já pedregoso do São Borja na busca por conseguir montar um time competitivo. No início do ano, foi realizada uma peneira com os jogadores que disputam o campeonato amador da cidade. Mais de 60 atletas se inscreveram. Foram selecionados, pelo então técnico Candinho, os que, em princípio, eram os melhores, garante Marchezan. O orgulho de vestir a camisa da cidade já entra aí, as condições para jogar nos times amadores são melhores. Pelo menos uma festa, uma bebida, um par de chuteiras novas e até às vezes um valor em dinheiro fazem parte do escambo promovido entre dirigentes e atletas. Já na Sociedade Esportiva São Borja, os jogadores recebem apenas a metade da renda dos jogos em casa. No jogo de maior público, contra o Atlético de Carazinho, na última rodada da fase de classificação, cada jogador recebeu 140 reais. “Eu, mais gasto do que ganho aqui, mas gasto porque gosto”, enfatiza o goleiro Cristiano.
A outra metade do dinheiro é utilizada para custear despesas do clube, como pagar as refeições dos atletas nas viagens. Com a falta de patrocínio e a consequente falta de verba para o clube surgem vários problemas, principalmente para os jogos fora de casa. Um dos dirigentes do clube é o vereador Eldomiro Marchezan. Entretanto, segundo ele, apesar de a SESB ter sido reativada neste ano, em que acontecem eleições municipais, o projeto não tem fins eleitorais: “Se eu tiver que um dia ir ao campo pedir voto, eu deixo de ser candidato, porque eu vivo o futebol”. Devido as suas articulações políticas conseguiu o apoio da câmara de vereadores e da prefeitura da cidade para as viagens. O poder executivo cede o ônibus e o legislativo custeia a diária do motorista e o combustível. Para não ter que pernoitar em hotel e pagar diária para a equipe toda, o deslocamento é feito no dia do jogo, a chegada à cidade do adversário acontece entre cinco e duas horas antes da partida começar. Com essas viagens longas e o pouco tempo de recuperação entre a viagem e o início dos jogos, Filipinho afirma que a questão física dos jogadores do São Borja fica ainda mais debilitada. “A gente faz um primeiro tempo bom, mas aí no segundo tempo falta perna”, pontua, com o semblante desanimado. Marchezan justifica a falta de patrocínios. A agropecuária é a principal fonte de renda do município. Mas nos últimos anos, o setor passa por seguidas crises e por isso o lucro diminui e não sobra dinheiro para patrocinar o clube. O principal empresário da cidade deixou de investir no futebol local. “É diferente do Nova Prata, da Apafut de Flores da Cunha, que vive mais perto da Serra Gaúcha, onde tem mais indústrias, tem mais patrocínio”, analisa o dirigente. O principal patrocinador da equipe neste ano é o Ramada, comerciante local, que tem uma loja de roupas a brinquedos. Para o próximo, Marchezan diz que outros comerciantes e agropecuaristas já o procuram para patrocinar o clube. Mas, primeiro, será feito uma avaliação. Caso não sejam concretizadas as parcerias, patrocinadores de fora da cidade serão convidados. O goleiro Cristiano explica que dentro de campo, a equipe corresponde, o problema é que como falta estrutura fora de campo para realizar um treinamento correto, é difícil de manter o pique. Soma-se a isso a falta de dinheiro, que talvez seja o principal fator.
Mesmo com todas as dificuldades, duas características marcam os jogadores da SESB: o amor à camisa e o fato gostar de jogar futebol pelo time da cidade. Prova disso são Cristiano e Filipinho. Filipinho se destaca pela raça, o lateral esquerdo faz o massagista e os maqueiros entrarem em campo, pelo menos umas vezes por jogo. Em Flores da Cunha, contra a Apafut, teve que sair do estádio de ambulância para realizar exames médicos, após um choque no ombro, mas por sorte não foi nada grave. Contra o Gaúcho, uma bolada no abdômen. No Vicentão, contra o Nova Prata, já pela segunda fase, após um choque com o adversário, lesionou o joelho e teve que ser substituído devido as dores. Na rodada seguinte, de novo um checking no Hospital Ivan Goulart, após o jogo da volta contra o Nova Prata, após cair com o ombro nas pedras britas ao lado do campo. Para ter a raça do lateral em outro clube, será necessário oferecer uma proposta melhor que a do São Borja. Filipinho está convicto que se não recebesse salário fixo, não trocaria a SESB: “Eu prefiro ficar aqui e ajudar a minha cidade”, afirma. Cristiano é capitão e líder do grupo. Além de defender os ataques adversários, o goleiro é responsável por ajeitar o material para a equipe treinar, isso significa buscar as bolas e coletes. “Eu sou um dos pioneiros aí na volta do São Borja. Eu estou aqui jogando é porque eu gosto mesmo”, pondera. “Eu quero ajudar, eu penso em reerguer mais este time ainda, ter uma estrutura profissional mesmo”, completa o jogador. Com a vontade de vestir a camisa do São Borja supera-se qualquer dificuldade dentro de campo: “é um time que eu gosto e pelo futebol, faço de tudo”, reitera. Mas se fosse em outro time, Cristiano garante que não jogaria sem remuneração fixa: “para sair de São Borja não pode jogar no amor a camiseta, tem que ser profissional, tem que ter remuneração, carteira de trabalho, tudo certinho”. Até o dirigente, comenta que quando a SESB está em campo, a sensação é diferente: “eu sou colorado, mas quando o São Borja está em campo, é o São Borja sempre. Não tem camisa que supere essa”. Na primeira rodada da segunda fase contra o Gaúcho de Passo Fundo, era unanimidade entre os jogadores, torcedores e comentaristas, que a vitória daria a chance de o time brigar pela classificação. Torcedor e motorista da SESB, Pimpim dizia “O Gaúcho é superior a nós, mas uma vitória é importante para classificar”.
A mesma ideia era partilhada pelo comentarista da Rádio Cultura AM e ex-jogador, Josemin Guerreiro: “É um jogo de extrema importância até para a futura classificação do São Borja”. O Gaúcho tinha a melhor campanha da primeira fase. Apesar da luta do São Borja em campo, o resultado foi 3 a 1 para o Gaúcho. Após o apito final, o lateral Filipinho sentou-se ao meio do campo, baixou a cabeça e ficou por lá por cinco minutos, até os assessores de imprensa do time, Bianca Garcia e Vincius Kuball irem até lá consolá-lo. “Em casa era nossa obrigação ganhar. Agora a gente vai ter que buscar fora de casa e fora de casa é difícil. A gente vai contra a torcida, contra tudo, contra todos”, disse Filipinho, ainda dentro de campo, com o semblante triste e cabisbaixo. Mas o principal lamento era ter desapontado aos mil torcedores, que estavam presentes no Vicentão e foram para casa antes do jogo acabar. A essa história, soma-se Ronan, que é o jogador mais técnico do time, tem bom drible, passe e finalização. É natural de Manaus, já jogou na Suíça e é jogador profissional há três anos. Está só de passagem pelo clube, vai jogar no próximo semestre na sua terra natal. Mas nem por isso, não dá sangue durante a partida. No jogo contra o Atlético de Carazinho, Ronan perdeu um pênalti e logo depois foi substituído, saiu de campo desolado, sentou-se nas escadas, que levam ao vestiário do estádio Vicente Goulart, baixou a cabeça e chorou. Sorte dele, que apesar do pênalti perdido, o time se classificou a segunda fase. A falta de salário, claro que atrapalha, mas segundo o manauara, o mais importante é atuar, estar no mercado do futebol. “Porque pretendo chegar a um grande clube e eu estou trabalhando para isso”, assegura o atacante de 21 anos com seu sotaque característico do norte do país, sentado nas cadeiras vermelhas, após o treino. A entrevista foi rapidinha, a carona para ir até a casa, em que ele e seu irmão estão hospedados em São Borja, já estava saindo. Se a falta de remuneração é uma dificuldade, o amor por jogar no São Borja é verdadeiro. No Facebook, os jogadores atualizaram suas descrições para “jogador na Sociedade Esportiva São Borja”. Após um jogo ou um treino em que a imprensa está presente, um atleta pede no Whatsapp ou no Facebook se tirou alguma foto em que ele
aparece. Se tiver, com certeza ela será postada, acompanhada de alguma frase de autoajuda. Os compromissos da SESB no próximo semestre podem ser ainda mais difíceis. A equipe foi convidada para participar da Super Copa Gaúcha, torneio de segundo semestre, organizado pela FGF, que reúne clubes, da primeira, segunda e terceira divisão do campeonato gaúcho. Para a disputa da competição, Marchezan garante que é necessário ter uma receita de no mínimo 30 mil reais por mês, para reforçar a equipe com jogadores de fora da cidade. Cada jogador profissional recebe no mínimo mil e quinhentos reais de salário. “Se não tiver recursos financeiros, não vamos conseguir trazer atleta de fora, porque não podemos sonhar com alguém que venha jogar de graça”, afirma o dirigente. A vontade de disputar a competição é nítida, só de falar durante a entrevista, ao lado do estádio Vicente Goulart, após o jogo contra o Nova Prata, os olhos já brilham. Vinte um anos depois, a Sociedade Esportiva São Borja está de volta. Logo no primeiro ano, conseguiu se classificar a segunda fase da Terceirona. Colheu os primeiros frutos do projeto, está convidado para todas as competições que a Federação Gaúcha de Futebol realiza. Porém, o trabalho não pode terminar. Desistir do projeto agora poderia resultar numa demora de mais 10, até 15 anos, para juntar o dinheiro para todas as taxas necessárias para reativar um time profissional. O caminho até conquistar uma vaga na Divisão de Acesso ainda é longo. Mas ficar entre os oito melhores da Segunda Divisão orgulha os jogadores e os dirigentes. Para o próximo ano, algumas lições ficam. Atualmente, futebol não se faz apenas com amor à camisa, é preciso também dinheiro. É necessário contratar jogadores profissionais de fora da cidade, manter uma comissão técnica profissional com treinador e preparador físico para a disputa do campeonato. Foi apenas o primeiro campeonato da nova SESB. Ressuscitada após duas décadas. O momento ainda é de aprendizados. O projeto ainda está em versão beta.