ENSAIOS
o canto de valdete Em Sambaqui, há manhãs à beira-mar em que tudo parece um pouco de tinta muito leve e mais nada. Apenas um pouco de tinta e frescura. A própria luz molhada estremece. O dourado tem muita água e desbota. Uma gota de azul basta para interligar céu e mar. Como névoa, a brisa da manhã, trespassada e a escorrer, nascendo e hesitando, vai beirando a costa verde de braços abertos para a baía, estreitando-a amorosamente contra si. Aqui nessa terra serena de montes e favos de Mata Atlântica, as povoações de origem açoriana constroem sempre os seus casebres brancos de janelas e portas coloridas virados de frente para o mar – por pura contemplação, acredito. Na última segunda-feira de fevereiro, o hálito cerrado de maresia molhava a vegetação e a claridade não hesitava em posar e o sol em aquecer, dourando os pescadores e suas baleeiras, as vielas de pedrinhas, os telhados, as paredes das casas e o farto campo de bananeiras de Dona Valdete, alimentado diariamente com nutrientes dos pés quase n’água. A cerca de cinco quilômetros daquele terreno, na quase inexplorada Ponta da Luz, a senhora rendeira do bairro nascia, há 82 anos, sob o abraço carinhoso das águas e da floresta nativa. No início do século XX, o bairro era somado por pequenas aglomerações, localizadas na Ponta do Sambaqui e Barra do Sambaqui - ambas interligadas através de longas trilhas de mata fechada. Para ir até a escola, na época um casarão branco de janelas e portas azuis, a pequena Valdete tinha que subir diariamente pelos morros e descer por riachos até encontrar, duas horas depois, um pedacinho de civilização. Quando ia de canoa com seu pai, a viagem levava 30 minutos.
Pelas dificuldades de locomoção, a rendeira estudou apenas por três meses. Desistiu também para ajudar seu pai nas atividades diárias: pesca, roça e venda de bilro – técnica artesanal de renda proveniente dos açorianos no Séc. XVIII repassada por sua mãe quando tinha apenas sete anos de idade. Às vezes, Valdete também se aventurava na canoa de seu pai e o acompanhava até o Mercado Público, no Centro da cidade, para vender renda e comprar mantimentos – jornada que durava longas e cansativas três horas de puro remo. Outros momentos, recorda que gostava de observar seu pai e irmãos remando na imensidão azul em direção aos navios que ali perto atracavam, entre as ilhas de Ratones. Lá, encostada à embarcação, a família comercializava mandioca, farinha, banana e artesanato com os marinheiros. Naquele tempo árduo, a mocidade durava como duram o desabrochar das rosas e, Valdete se via destinada apenas ao trabalho. “A infância foi difícil. Eu não brincava muito, tinha que trabalhar toda hora, meu filho. A gente era pobre e precisava ajudar o pai e a mãe a ganhar dinheiro. No tempo que tinha, eu brincava com o mar e com as amigas, cantava e namorava muito” conta, Valdete. A base alimentar de sua família era, de segunda a segunda, ostra in natura retirada das pedras mesmo, peixes diversos e de diversos preparos, berbigão, siri, arroz, farinha e pirão d’água. Às vezes também tinha cana, mandioca e milho. Já carne vermelha era artigo de luxo, compravam duas vezes por mês. E foi assim que passou sua infância e adolescência. “Carne era para quem tinha dinheiro para gastar, meu filho. A gente era pobrinho pobre. Comia o que o
mar e a terra podiam nos dar”. Finaliza Valdete, me chamando de Davi – nome do meio de meu irmão, com o qual tenho a honra de ser chamado toda vez que passo pela rua e ela me vê. “Davi, vocês toda hora passam por aqui e eu não vejo. E quando vejo eu não tenho mais banana para dar”. Reclama, em tom irônico. Às vezes, quando estou de folga, sentado em casa, o telefone toca: é Valdete dizendo que tem mais cachos de banana para entregar. Desligo o telefone e corro ligeiro porque sei que aquela senhora é arisca e não teme os 100 degraus feitos à mão com pedra e cimento. Quando chego, logo na ponta do último piso, entre as sombras de pitangueiras e árvore de espinhos, avisto Valdete já subindo a escada, agarrando com uma das mãos os arames improvisados de corrimão, enquanto na outra, aperta os cachos de banana embalados em sacolas de supermercado. “Ó, Davi, estas estão verdes mas deixa na cestinha que ela fica madura rapidinho”. Essa queridês em forma de pessoa fica contente ao me ver porque lhe remete ao passado, quando me viu horas depois do parto no colo de minha mãe. Diz que cresci tão rápido como chuva de verão. Não duvido, e muito menos contesto meu novo nome. À minha frente, enquanto dedilha na renda de bilro uma faixinha para cabelo, Valdete sopra pelo beiço fino de origem açoriana um sotaque genuíno e voz bela, serena e vivaz - daquelas que te prende os ouvidos e te enche o peito de ar em busca de refúgio para tantos suspiros. “Ratoeira bem cantada, faz chorar, faz padecer. Também faz um triste amante do seu amor esquecer. Meu galho de malva, meu manjericão, dá três pancadinhas no meu coração” canta, ritmada. No gingado do refrão da Ratoeira, - roda de homens e mulheres, onde cada um expunha os seus sentimentos em forma de versinhos ritmado-, a pele suave e enrugada da cor do pão era claramente refletida nos óculos transparentes que escondiam a profundidade dos seus olhos negros e cansados. Estava vestida com um gosto sutil: blusa branca e leve de pequenas rosas estampadas, saia preta de linha crua e Havaianas azuis remendadas com alças de cores distintas – laranja e vermelha. “Visse, tô bonita que nem rabo de cabrita” troça Valdete, em meio a gargalhada um tanto envergonhada. Quase sempre de uma bravura imensa, a mulher da beira-mar, logo que casa carrega consigo quase todo o peso do lar, cresta-se e envelhece. Com Valdete não foi diferente. No mar, enquanto pescava, conheceu o famoso seu Toló, pescador parrudo e falecido marido, quando estava na flor da idade, aos 19 anos. Desabrochou e casou-se logo em seguida, Texto: Vitor Shimomura Fotografias: Vitor Shimomura
quando Toló propôs o namoro, negado por ela. “Eu disse que não queria namorar para depois ele ir embora e me deixar. Era só casando mesmo, meu filho. Depois o Toló foi lá em casa, não tem, e me pediu em casamento, mas eu gostei. Casei cedo e ficamos mais de 50 anos juntos”. Enquanto assistia o marido subir à poupa da canoa para navegar, Valdete cuidava da casa e da filha, fazia renda, observava as bananeiras, capinava o jardim e os terrenos baldios dos vizinhos. Quando o pescador retornava do ofício diário, à espera, a mulher também limpava os peixes e os colocavam para secar no varal improvisado com bambu, para depois comercializar entre a comunidade, restaurantes e comércio local. Anos após sua morte, seu Toló acabou virando lenda e ganhou nome da praia ao lado de sua casa. Hoje, Valdete guarda saudades e lágrimas contidas, enquanto no varal que antes pregava peixes limpos e escalados, hoje residem apenas roupas, lençóis e panos de prato. A senhora que tenho diante de mim viu a vida lhe transformar, moldurando rugas por onde já caíram lágrimas, mãos deformadas e castanhas, que ganham o pão de cada dia e cheiram a sal e ervas daninhas. É uma beleza extraordinária. Beleza da verdade e da vida trágica, das pessoas que cumprem a existência e só caem esfarrapadas e exaustas à beira-mar, mas que encontram a felicidade todas as manhãs ao sentir a terna brisa que vem de longe, sem saber de onde, mas que transpassam pela janela somente para bater frescas em seu rosto. Dona Valdete não tem retratos da família, nem fotos suas ou de seus pais e irmãos. A única recordação que tem de sua vida passada é uma foto com seu marido e uma vizinha, tirada há 10 anos atrás. Para ela, as memórias que vem à mente bastam. “Naquela época não existia foto aqui, não. Tenho tudo de bom marcado na minha cabeça, lembro de tudinho e quando quero, Davi”. Portanto, Dona Valdete, guardo aqui um espaço para contar uma parcela de sua vasta história, perpetuada nas entrelinhas como patrimônio histórico de Sambaqui. Para mim, és cria da terra, rainha do mar e filha desse infindo vento sul. És bananeira, conchinhas e grãos de areia. Um retrato fiel da essência que move toda essa gente simples, calada e de peito aberto. Logo, logo tornarei a ver novamente o azul que nos cerca, e chegará mais alto até mim o seu imenso ecoar prolongado e tranquilo. Para nós, basta pregar os olhos marejados no horizonte para se perceber distintamente a grande voz do mar chamando. Valdete criou-se com ele e guardou-a para sempre em seu peito. – Eu também nunca mais a esquecerei.
As cordas de Antonio Não havia em seu corpo nenhum indício da nês, que veio à sua oficina para consertar um violino enfermidade da moda, nem de nenhuma outra ten- e nunca mais retornou. Morreu de derrame. Aquele dência dos tempos modernos. O jeito tímido e humil- conceituado instrumento, inspirado em Stradivarius, de de lidar com a vida era simbolicamente exposto no músico que, no início do século 18, aperfeiçoou as que vestia: um conjunto cinza degrade, composto por qualidades dos instrumentos fabricados na Europa, moletom e calça rasgada, meia fina, óculos redondos foi a referência maior de seu trabalho. Anos depois, de garrafa e uma velha e boa sandália grega de cou- uma menina esbelta de cabelos longos e rosados aparo, daquelas que, com o tempo, acabam se tornando receu com um instrumento semelhante, pedindo ajude estimação. Era terça-feira, o dia estava nublado e da ao luthier: queria consertá-lo para tocar para uma havia um clamor de trovões escuros acima dos mon- senhora doente. Coincidentemente, era a esposa do tes e favos de pinheiros no horizonte. Mal havia saí- violinista polonês. Com suas mãos grandes de veias do do portão branco pontiagudo de flechas brancas, soltadas, Antônio pôs uma caixa sob a mesa, abriu o que dá entrada ao jardim de sua casa, e o experiente cadeado e levantou a tampa. Naquele momento, fisenhor italiano, de olhos fundos e melancólicos, co- nalmente se despedia do seu instrumento favorito. As meçava com simplicidade seu período de sesta. Ob- medidas perfeitas, todas anotadas, ainda permaneservando a tempestade distante, o luthier Antônio cem guardadas a sete chaves em alguma de suas gaveBittencourt, de 81 anos, se sentava sozinho à beira tas e, sua história, segue perpetuada em sua memória. da calçada, fingindo ler um livro à sombra da única Foi com histórias como essa que o atelier, árvore da ladeira, um flamboyant antigo e robusto. aos poucos, transformou-se em um santuário dos A vinte passos da rua, subindo por uma mir- instrumentos musicais e Antônio Bittencourt virou rada escada bamba de madeira, avistava-se uma alma milagreira. Em meio a algazarra criativa que porta áspera e enferrujada, por onde, todo ano, che- borda as superfícies do casebre, o artista puxa e segam violinos, violões, rabecas, cavaquinhos, ban- gura, com cuidado, um pinho entre as pernas. Embodolins e banjos em busca de reparos. Alguns, aos ra não toque ou saiba fazer música, o luthier não se frangalhos, deslizam para as mãos velhas e enruga- vê desprovido dos versos de arabescos. Ali, percebo das do luthier, em busca de seus cuidados. Outros, que sua vida está inteiramente interligada às bugidesenhados pelo próprio artista, surgem novinhos gangas que conserta, sendo o próprio Antônio criae brilhantes em sua mesa, construídos sob medida dor de toda a poesia penetrante e bela, materializada para atender aos pedidos dos clientes. Da janela do nas formas de música, madeira e verniz. Deve ser por modesto atelier, construído em cimento e tijolo nu, isso que seus clientes demonstram tanta gratidão. avista-se um pequeno bosque, cujas árvores, assim Nas paredes mordidas e castigadas por épocomo as histórias de Antônio, exalam preciosidades. cas passadas, foram pendurados escritos de agra No espaço apertado e úmido, ferramentas, decimentos pelos favores recebidos, matérias publiquadros e entulhos aglomeravam-se e se misturavam cadas em impressos locais e do exterior, orações e próximos à longa mesa de cedrinho, onde, há 50 anos, fotografias de artistas renomados. Todos os escritos são criados instrumentos musicais, caixas e peões eram reciclados e resumidos na fonte de sua arte que seguem por todo o Brasil, mas que, em épocas de enxuta, crível e sensível. Seja com lápis e papel, imouro, também alcançaram países da Europa. Sentado pressões ou presentes, cada um daqueles músicos em frente à mesa de trabalho, Antônio se curva para profissionais e amadores tinha encontrado sua macontar algumas de suas histórias e, por breves mo- neira perfeita de dizer ao luthier: muito obrigado. mentos, sinto dissipar a tristeza em seus olhos de vidro. Relembra a história peculiar de um senhor polo- Texto: Vitor Shimomura Fotografias: Vitor Shimomura
o artista das bananeiras João Olíbio da Silva tem um certo fascínio pelas bananeiras. As folhas, largas e compridas, caíram visíveis ao olhar do artista nos esconderijos de esconce-esconde, por essas inúmeras peripécias de infância na Ilha depois da ponte. Pela memória de seus 75 anos, lembra quando fora servente de pedreiro, de erguer casas pelas bandas altas do continente até entender que não teria que viver das mãos calejadas - a decisão de abandonar o trabalho de esforço excessivo foi aos 34 anos, logo ao descobrir que não eram só pincéis e tintas que faziam peças de arte. Da casa simples que construiu no alto do morro da Praia do Meio, em Coqueiros, eficiente por contemplar a Baía sul e o Cambirela da sacada, surgia o sensível manejar de fibras e palhas das árvores de banana. O que fazia? Invenções, e das muitas. Hoje tem obras dispersas por todos os cômodos, de comum, o fato de exaltar as figuras mais queridas da velha Desterro: a ponte, o mercado, o pescador, a igreja, a magia. Destas invenções que cultiva na casa do morro, vê-se um quadro grande situado acima da poltrona em que senta Dona Maria, a companheira que traz café passado. O exemplar, retangular de arestas maiores nos lados horizontais, faz a representação de uma espaçosa sala-de-estar sem muitas bugigangas de valor, e que tem em destaque, portando paisagens características de Florianópolis, seis janelas equilibradas e distribuídas geometricamente nas paredes. Para o Mané da Ilha, cidadão notório da capital catarinense por menção da própria Prefeitura, as benditas janelas na verdade tem o dom de se transformar em quadros, conforme a vontade do olhador. De qualquer forma de interpretação, aquelas janelas-quadro de teor surreal representam para seu Olibio um alto valor financeiro, devidamente justificado pela quantidade de miniaturas: “aí tem seis quadro em um”. Seu Olíbio gosta de exibir suas igrejas que brilham. Para isso se senta ao relento no sofá posicionado em frente à televisão que reproduz a Globo, e começa a desatar os nós dos fios de eletricidade que iluminam uma de suas pequenas casas de deus. “Esta é inspirada na da Lagoa da Conceição”, diz ele. A semelhança traduz a fa-
cilidade do artista em interpretar as formas e contrastes da arquitetura açoriana, símbolo da sua vida artística. Quando acesa à corrente, tem-se claro os personagens da missa: os assentos, a comunhão, a fé. Tudo é muito milimétrico no interior de uma igreja de João Olíbio, fruto de uma exatidão primordial para encaixar as peças de palha seca. Mas é quando fala da ponte que vem o entusiasmo: “a ponte é o meu forte”. Não é a toa que se vê a Hercílio Luz na maioria de suas invenções. Nesse momento lembra dos tempos bons que fora de receber muitos jornais com interesse em documentar sua história de arte e fascínio pelo monumento mais renomado da cidade. A ponte do artista tem um detalhe minucioso: é quase sempre desenhada do continente para a ilha. Talvez um reflexo de viver naquela região continental de Florianópolis, desde quando saiu da Barra de Aririú, na Palhoça, aos 14 anos. E deixar a casa que construiu com mãos próprias, na qual teve o privilégio de ver o Cambirela nevado, só para o que tem acima dela: a oficina. Para lá vai quando se cansa da televisão e dos afazeres domésticos. O espaço, no entorno da escada que sobe a casa de um dos dois filhos, não guarda apenas ferramentas e instrumentos para reparações. Por ali vivem, bem saudáveis e impacientes, cinco codornas e dois garnisés. É nítida uma involuntária simpatia do artista pelos bichanos. As aves, por sua parte, debatem-se como podem quando percebem o aproximar de Seu Olíbio em direção às gaiolas, localizadas logo atrás do banco usado para pequenos trabalhos braçais. Nas contas de João Olíbio, cinco ovos de codorna por dia, já os garnisés “são muito crianças para colocarem ovos”, afirma. Otimista é Dona Maria quando fala dos ovos que o marido lhe traz. Para ela, um bom incremento para o vinagrete e outras culinárias de raízes mané. E das raízes que o artista das bananeiras não ignora, entram os tempos de se aventurar a nadar pelas águas do Campeche nos dias de sexta-feira santa, os piqueniques com a família, a venda das obras no Largo da Alfândega e, o que mais lhe enaltece, a memória viva dos 41 anos de trabalho artístico. Texto: Pedro Stropasolas Fotografias: Pedro Stropasolas
a olaria Abençoadas são as mãos do oleiro Leonardo na confecção dos exemplares de argila. Enxerga-se o barro em seu olhar, na simplicidade com que menciona as origens do ofício que aprendeu com o pai. Não é de falar muito, prefere dar atenção ao torno, a máquina giratória responsável pela forma e acabamento das peças. Aqui suas roupas encardidas preenchem o sonido da respiração precisa, respeitosa com o processo de moldagem dos vasos, cântaros, utensílios domésticos e acessórios decorativos que constrói a cada momento. Pois tudo que se enxerga neste trabalhador não desprende a precisão, a entrega. Ao entrar em seu local de trabalho, um casarão antigo de dois andares, às margens da BR 101, emerge-se os ares da São José antepassada, pioneira no escoamento de exemplares de barro para a Ilha de Santa Catarina. E a Olaria do Tatá tem a característica própria de não apresentar vazios. Cada espaço é preenchido por peças, surpreendentes por serem diversas, repletas de cores e formatos. Eliatar Silva, o Tatá, pegou gosto pela arte do barro após vender o taxi que adquiriu aos 19 anos. No princípio, apenas revendia as peças confeccionadas por outro oleiros, em uma loja que comprou ao lado do Mercado Público, em 1972. Hoje, a loja ainda está por lá. A diferença é que com suas obras também expostas à clientela. Pelo piso superior da Olaria, a arte do ofício se torna mais clara. Corredores amarronzados em tons Texto: Pedro Stropasolas e Vitor Shimomura Fotografias: Pedro Stropasolas e Vitor Shimomura
berrantes, paredes de tijolos à mostra, montes de argila prestes a criarem feições, todos salientados por uma luz solar difusa, que entra por frestas de janelas precárias. Interessante perceber que por ocasião destas janelas, surge uma improvável interação entre sombras e becos iluminados, pela qual se ressaltam elementos raros. Neste caso, oleiros raros, filhos da tradição geracional vinda dos primeiros açorianos que pousaram em Santa Catarina por volta de 1750. Aqui trabalham cinco sobreviventes do ofício, aparecendo em vultos pelo espaço confuso, sem direção, até se estabelecerem nas tarefas estabelecidas por Tatá. Leonardo, um dos mais experientes, possui agilidade incomum. As peças nascem da sutileza de seus dedos, uma após uma, em passos acelerados, como se cada minuto perdido resultasse em uma família sem sua arte de argila. Em uma das paredes, um relógio velho conversa com o oleiro Mauro, o encarregado pelo acabamento das obras. Encrustado no mar de tijolos, o objeto sobrevive. Talvez por respeito aos trabalhadores que o observam. Os ponteiros, trêmulos, cumprem o papel de aparecer, jornada após jornada, barro sobre barro. Assim como Mauro, os companheiros tapados por pasta espessa, rubro de argila, e sandálias Havaianas mantêm-se persistentes, críveis de que seus corpos seguirão por essa camada densa e maleável que é a vida.
solos de acordeón Vendelin Vitório não admite que um juiz federal não saiba escrever corretamente o nome do instrumento: acordeón. “Se não sabe a palavra, consulta quem sabe. Eu só falo do que conheço. Aqui tá escrito em três línguas: em alemão, no italiano de Roma, e no brasileiro”, desabafa apontando para um guardanapo branco exposto sob o balcão da mercearia. A grafia correta, letra por letra, é desenhada pelo viés de um rabisco tremido, que cumpre a função de impressionar os visitantes de seu pequeno comércio, situado na estrada geral da Caieira da Barra do Sul, no extremo sul da Ilha de Florianópolis. Ao adentrar o espaço, qualquer pessoa diria que Vendelin tem uma mercearia completa. Por trás daquele balcão, expostos ao imaginário da clientela, vê-se produtos essenciais para a vida de cidadão cotidiano: óleo, ovo, manteiga, guarda-chuvas aos montes, sandálias de dedo, tesouras, chaves de fenda. De segunda a segunda, logo quando o sol abre ele já ta de pé para abrir a mercearia, servindo a tradicional mortadela com pão e o café preto em copo de cerveja. “Manter uma casa de comércio como essa tem que trabalhar. Aqui abriu já tem gente”, garante. Por lá passam amigos, gente do bairro, fornecedores de produtos. A maioria dos frequentadores tem apelidos, criados pelo músico-comerciante por conta das inúmeras situações pontuais que se eternizaram em seu imaginário. Atende de camisa aberta - sem muito se importar com a saliência da barriga crescida -, bermuda esportiva e os pés descalços. Não muito
se parece com o acordeonista da foto emoldurada na parede, com elegância notada dos pés ao penteado e pinta de galanteador de primeira qualidade. Sobre a carreira de músico, tem boas décadas de estrada. Saiu de Imaruí - no sul do estado -, a terra de Pedro Raimundo, o artista da grande obra “Adeus mariana”, regravada nas vozes de Sergio Reis e Gaúcho da Fronteira. “As pessoas me perguntam: tu é da terra do artista ne? Que artista? Pedro Raimundo. Sou, nasci e me criei junto com ele”, conta orgulhoso. Lembra da fama de namoradeiro,“cada apresentação que eu fazia arrumava duas, três mulheres. As três coisas que eu mais amo no mundo são roupa boa, música e mulher”, revela. Hoje quase não faz mais apresentações, o motivo: o custo de seu trabalho. Há algum tempo recusou um evento, que lhe pagaria trezentos reais, por não achar vantajoso.“Uma das coisas que mais estragam roupa cara é o acordeón”, questiona. O requinte da vida de acordeonista guarda em um quarto aos fundos. Há o costume de bem cuidar do instrumento musical que fez seu nome não ser esquecido pela comunidade que escolheu para criar raízes. Não há dia em que não deixa de cobrir o Acordeón com um pano branco, em um processo delicado que se assemelha a um trocar de fraldas. O exemplar é italiano, feito em Milão, diz ele. Após acobertar o filho com as mãos rugosas, cuidadosamente o coloca no mesmo armário dos atributos elegantes de músico namoradeiro: as
roupas de grife, a gravata importada, os abotoadores de manga, o relógio de ouro, as pilhas raras da Philips. Já chegou a acumular certa vez, segundo suas contas, quase trezentas mudas de “roupa cara”, pois afinal cultiva o gosto por “sempre andar bem trajado”. O interior daquele móvel é o que tem de mais valioso de sua memória musical. Abre para viajar no tempo, mesmo que hoje o palco não seja mais os grande bailes, e sim o solo de sua mercearia. Para chegar ao quarto do tesouro, atravessa-se um corredor pouco luminoso, por onde uma luz difusa entra da janela lateral e exalta o aipim descascado a mão. Vendelin manda buscar semanalmente a mandioca das fazendas de Santo Amaro da Imperatriz, e por manhãs inteiras se põe a descascá-la para depois separá-la em sacos esverdeados. O mesmo fio luminoso incide sobre geladeiras brancas, onde o homem guarda a macaxeira junto aos cascos de Pureza e Choco Leite, raridades nesta era tomada pelas embalagens de plástico. O café é preparado em uma chaleira de tantos aniversários, tantos já se passaram e a panela permanece fidedigna naquela cozinha silenciosa, de traços açorianos. Como bom colecionador de histórias gosta de mostrar fotografias. Comenta das que lhe dão orgulho. A do casamento da filha coloca em desTexto: Pedro Stropasolas Fotografias: Pedro Stropasolas
taque: carregou a herdeira até o altar, em um salão grande para quinhentos convidados. Outra que guarda com carinho mostra o casal de aves - um galo e uma galinha - que cultivava no gramado em frente ao comércio e que posteriormente seria furtado. Também exibe um conjunto de cartões postais vindos de diferentes cidades do mundo, sempre do mesmo remetente, um amigo da Costeira do Ribeirão. “Mora e trabalha em todos os países do mundo. Esse cara é inteligente, meu Deus do céu!”, afirma. Da sua própria caminhada, escreveu um livro intitulado Fim de baile, uma reverência ao sucesso gravado por Nelson e Jeanette, dupla sertajena consagrada no Rio Grande. “Ai que pena meu amor que está chegando a hora, o baile está terminando e eu preciso ir embora”, homenageia, no canto. A obra é um exemplar único, foi emprestada a um amigo, que ainda não lhe devolveu. Sobre a vida que preserva naquela mercearia, garante que não está só: “o homem lá de cima cuida de mim. Não mato, não roubo. Nunca estou sozinho. Quem cai em depressão é tristeza, cérebro fraco o nome dessa doença. É só andar alegre, sair e conversar com o povo que essa tristeza não existe”, finaliza Vendelin, com o tom imperativo que lhe é de direito.
kong Valtencir Valdevino Souza, o Kong, cabelos longos e coluna encurvada, trabalhava em mais uma prancha de surfe no rancho de madeira coberto por Garapuvus e Ipês, em uma das ruas estreitas do Canto da Lagoa. A sala, pouco ventilada, era salva por quatro pequenas janelas verticais, que se mantinham fechadas por uma extensa tora de eucalipto atravessada. Pelas quatro paredes, singulares por serem incrustadas pelo pó branco das lixas, via-se recortes de revistas, molduras e outras memórias do homem que vive das pranchas que respira. Falava do filho pequeno, da esposa batalhadora, da casa que construiu na Praia da Cigana, em Laguna, e do que viesse a cabeça para conter a vontade de surfar. O dia era sábado, fazia sol em poucas nuvens, e tinha onda boa no Matadeiro. “O surfe não é tu ser bom, o surfe é tu ir lá tomar teu banho de mar”. A frase de Kong define bem a vida tranquila. Não que a rotina lhe poupe de insatisfações, dificuldades e alguns acidentes de percurso. Mas, no caso do artesão, percebe-se uma rara aura hospitaleira, daquelas que os problemas, por respeito próprio, tendem a passar longe. É feliz com o segundo grau completo, com o dom de fazer os amigos flutuarem - pois afinal, no surfe, as amizades são mais imprescindíveis que o swell perfeito. Como bom manezinho, Kong é de se deslumbrar com as histórias que escuta. Verídicas ou não, são as conversas que mantém aquela oficina em pé, como se o tempo existisse
apenas para indicar quando é hora de cair na água. A relação com o esporte surgiu na adolescência, em meados dos anos 80, quando Florianópolis começava a despontar mundialmente como referência no cenário do surfe. A repercussão da cidade ganhou força com o Hang Loose Pro Contest, em 1986, evento que reuniu os principais surfistas do mundo, como Tom Carroll e David Macaulay. As ondas clássicas que quebraram na Praia da Joaquina encantaram os nativos, principalmente os que começavam a descobrir a atividade. As primeiras pranchas que chegaram ao Canto vieram com os paulistas. “Naquele época, aqui no Canto, ou tu era jardineiro ou pedreiro. Surfista era a paulistada” revela Kong. Do intercâmbio com os recém chegados à vizinhança, aparecia o gosto pela arte de deslizar sobre as ondas. Naqueles tempos de juventude, a saída para a praia era uma aventura. Kong e a turma do Canto seguiam em marcha com as pranchas artesanais em mãos, passando com valentia a subida do Morro do Badejo e chegando a Joaquina como se chegava na casa de um amigo, sem saber se iria encontrá-lo por lá. Desconhecia-se, na época, previsões de ondulação nas rádios que não fossem as do Raposão, exímio repórter das ondas. O caminho para o surfe, portanto, nem sempre rendia os quarenta minutos de caminhada. Com o surfe em crescimento, Kong daria início a uma longa trajetória como laminador, ofício que não apresentava tanta concorrência pelos bairros da
capital na década de 80, em razão do alto número de shapers - os profissionais responsáveis pelo desenho das pranchas. “A cada dez shapers, devia ter um laminador”, relembra. O artesão diz pertencer a uma época transitória na confecção de pranchas de surfe, onde o lado artesanal, de fundo de quintal, começava a perder espaço para a linha produtiva das grandes fábricas. A simplicidade do rancho de madeira, que se tornou a casa de seus trabalhos há aproximadamente dez anos, traduz com fidelidade a opção de Kong por um caminho pouco empreendedor. “Eu não quero explodir, disputar com ninguém. Isto é com os caras que são mais estudados e com mais visão de mercado. Tenho até medo que esse meu negócio cresça, e que eu vire um monstro de administrar dinheiro, porque não sou um cara que gasta muita grana”. Hoje faz, em média, a laminação de trinta pranchas por mês, o que rende em torno de cem reais por exemplar. Muitos não entendem o baixo custo do serviço, mas Kong garante que precisa apenas o bastante para administrar as contas em casa, principalmente após o nascimento do filho Pedro. Quando a pergunta é se o garoto de doze anos pode um dia seguí-lo no ofício da laminação, o artesão caiu silencioso em seu espaço de trabalho. Mas logo disparou: “Essa pergunta eu faço para mim toda hora. Eu só não queria que ele perdesse muito tempo estudando. Eu não estudei muito e Texto: Pedro Stropasolas Fotografias: Pedro Stropasolas
graças a deus aproveitei a vida”. Cria boa, fala que Pedro, no momento, está mais por brincar mesmo: de surf, de bola, de tudo. Assim gosta o Kong, que o filho aprenda conhecendo, criando raízes nos gostos de aventura. O trabalhador já fez duas pranchas para o filho, que com frequência, acompanha o pai nas remadas. “Não vai ser profissional, mas vai se divertir. Já tá vivendo o surf”, enfatiza . Hoje só não gosta que Pedro mergulhe na Lagoa da Conceição. Suja e mal compreendida pela “tempestade de concreto”, o nome que deu Kong para a ótica dos aluguéis e construções que afeta mesmo os ilhéus que cresceram ao seu lado. “Antes ficava todo mundo na roça, a terra dava para cultivar, a lagoa era limpa. Eu cresci nela. Pescando, mergulhando e brincando. Hoje ela tá podre” conclui. Já no ofício rotineiro, impera uma nítida despreocupação do laminador com o gás proveniente da resina que é utilizada nas pranchas. Cada pincelada entorpece sua saúde. Os pulmões, incrivelmente pouco castigados pelo desuso da máscara protetora novidade comprovada na bateria de exames feita pelo médico da região, o cliente e amigo Pedrão - constatam sua teoria pessoal de que o melhor remédio é a remada. E Kong tem consciência da importância de reservar um tempo para o esporte. “Se tu vacilar vai ficar só no sistema, correndo atrás do vento. Tem que ter a consciência que tu precisa pegar onda”.
o coveiro O coveiro não tem aquela necessidade de falar sobre a dureza da morte. A aura marcante de Vilmar Leonel Vieira se atenta a saudar aos mortos com rezas rotineiras, pois afinal é preciso que alguém olhe por essas pessoas. No exercício cotidiano, abre a bíblia antiga e lê em voz alta algumas passagens em frente às miniaturas de Expedito, Paulina e outras santidades coladas e expostas no pequeno escritório erguido por ele, nos fundos da Capela São Sebastião, símbolo do catolicismo no Campeche e Patrimônio Histórico, Artístico e Arquitetônico do município. Aquele cômodo estreito de paredes cimentadas, construído para ter um descanso das covas costumeiras, guarda de tudo um pouco: seus trajes alaranjados, as luvas e máscaras para sepultamentos, a enxada leve e especialista em arrancar acúmulos de pasto por entre os túmulos, facas para jardinagem de todos os tamanhos e objetivos. Hoje veio com a medalha de cidadão honorário da prefeitura de Florianópolis, um reconhecimento para quem há mais de quatro décadas vem servindo à cidade. Os dizeres “Sou mané, graças a Deus” em uma das faces, ilustra o objeto que acompanha o coveiro, nativo da Trindade, pela caminhada em seu local de trabalho, o cemitério da Capela - ou Igrejinha do Campeche. Tam-
bém porta um chapéu de palha, uma referência aos antepassados cujo prestígio se nota na fala. Veio nos trilhos do avô, o saudoso Valdomiro Militão Vieira, administrador de obras da prefeitura até servir ao filho, Leonel Valdomiro Vieira, o posto de encarregado de obras. Vilmar seguiu a profissão herdada pelo pai, após passar em concurso da prefeitura no início dos anos 70. Atualmente, além de coveiro, é pedreiro da Intendência do Distrito do Campeche. “O senhor Vilmar é um funcionário que vai muito além do que lhe é proposto, pois não só executa seu trabalho com exímio profissionalismo, como também não reclama do trabalho em horários extraordinários no que se refere às exumações, abertura da casa mortuária para velórios, enterros, etc. Parabéns Vilmar Leonel Vieira! Que bom seria se todos os funcionários públicos tivesse a sua honradez, comprometimento e integridade”. Assim se encerra o documento assinado pela Intendência do Campeche, em junho de 2013, e que o coveiro exibe orgulhosamente em uma das mãos. A manutenção dos treze cemitérios municipais é feita por pessoas como Vilmar, funcionários de plantão, dispostos a atender familiares de falecidos mesmo em horários de pouso. “Aqui não tem horário. Duas, três da manhã, com chuva ou ven-
to, eu venho para abrir a casa mortuária”, revela. Todos os cemitérios de Florianópolis estão com as necrópoles esgotadas. Quem perder um ente querido, na atual conjuntura, ou desembolsa até 13 mil reais em cemitérios particulares e crematórios, ou deve enterrar nas “gavetas”, espaços gratuitos de enterro provisório, pelo período máximo de quatro anos. O maior, de nome São Francisco de Assis, no bairro Itacorubi, abriga quase 63 mil mortos. No Campeche, mesmo com a ampliação que quase duplicou a área do cemitério, em 2014, a situação é a mesma: não há mais espaço. Em 2011, Vilmar tinha uma rotina de nove a dez sepultamentos mensais. Hoje quase não lembra a última inumação que tenha feito. “Agora só se enterra quem é da família, pois aí se usa o mesmo túmulo”, explica. Ao caminhar pelo cemitério, Vilmar se vangloria do conhecimento que adquiriu do terreno e de todos que repousam por lá. Quando comenta do ajudante que o auxilia no ofício, reitera a necessidade do rapaz em entender cada metro quadrado do local. “Aonde é o túmulo do coveiro antigo, Brito josé das Chagas? Ele não vai nem saber. Então tem que saber explicar”, argumenta. Quando passa por um túmulo comum, situado em uma das divisas do terreno, revela, entusiasmado, o local em que será enterrado: “A minha casa já tá pronta, essa aqui vai ser minha morada!”. No dormitório de Vilmar já estão enterrados dois de seus amigos. CarTexto: Pedro Stropasolas Fotografias: Pedro Stropasolas
lo, mais abaixo, era carpinteiro e natural de Nova Trento. O coveiro conseguiu retirar o corpo do IML, após o comunicado que não havia lugar para enterrá-lo. “Pessoa muito boa, me arrumava o serrote quando eu precisava. Sempre me ajudou”, conta. Quem dorme em cima é Jorge, aposentado de São Bonifácio e comerciante de queijos e vinhos. A falta de um cemitério para o enterro também fez Vilmar trazer seu corpo para o Campeche. “Enquanto eu tiver nessa terra, ninguém me impede de fazer nada aqui. Quando eu morrer tudo bem”, finaliza. O ar imponente, pelo qual o coveiro nutre a relação com aquele local de almas vagantes, abastece uma sensação de deslumbramento quase que indispensável para sua caminhada. De apaixonante, o cemitério da Igrejinha, construído em torno de 1876, por alguma família devota da localidade, tem túmulos floridos com vista para o mar. Há de se ver também a grande duna vestida de vegetação rasteira, alguns pés de alecrim e pitanga pelas vielas confusas, raros exemplares de aranhas e lagartos invasores, vasos cheios de água da chuva, e por fim, a Ilha rupestre junto ao horizonte. A presença daquela ilha amiga, quase que no fim do campo de visão, aparentemente, se dá justo para mostrar que se está no Campeche, terra de Deca Rafael, Seu Chico, Lurdes, Aparício, Dona Chica, Seu Sérgio, Pedro, Emília, Hernesto, Vilmar e outros tantos filhos da terra.
serralheria cardoso Nove horas da manhã. Uma rua movimentada, no bairro central da cidade. Prédios reluzem ao longe. Descendo ao fundo, à direita, uma casinha açoriana cor de amêndoas, separada da rua pela calçada cinza e vermelho. A casa está completamente aberta, repleta de grades. No primeiro plano, à esquerda, a luz adentra pelas frestas e chega ao salão. Perto da fachada, um banco macio e trabalhadores amontoados entre entulhos. No centro, ao fundo, uma esmerilhadeira perfila-se e grita alto diante de um portão de ferro com lanças pretas. A mesma rua Padre Roma é vista em diagonal. Os carros transitam incessantemente e os olhos dos serralheiros semeiam luz de brasa. Ponho o ouvido à escuta e ouço o trabalho persistente do fogo que funde há séculos o ferro e as almas dos esquecidos. Era nos últimos dias de abril. O céu, desmaiado de nuvens que corriam para o norte com sopros de um vento áspero, estava de uma tristeza indefinível. Às vezes, uma nuvem mais densa, cor de chumbo e pesada, escurecia a cidade, e uma chuva miudinha, como um borrifo, caía sobre o asfalto e se prolongava até as beiradas. No fim da manhã, um pé de vento forte e rasteiro levantava em redemoinho a poeira das calçadas, que alastrava o chão e invadia os estabelecimentos. Eminente sobre a porta de en-
trada da Serralheria Cardoso, na rua Padre Roma, seu Luís saía da penumbra para presenciar o evento. A chuva cessava, enquanto uma réstia de luz branca se estendia pela estrada e esbarrava no alto muro multicolorido, de janelas imensas, que abrigava um estacionamento. “Antigamente, aqui nessa rua não tinha nada. Era tudo de barro. A gente saía da serralheria e jogava molas no meio da rua para brincar. Hoje tudo está acelerado, cheio de carro e prédio. Esse muro histórico aí na frente nunca foi derrubado. É a única coisa que persiste daquele tempo”. Dentro do casarão açoriano, erguido com conchas, tijolo, pedra e óleo de baleia, o funcionário Humberto Ari, esguio e experiente, molda e corta peças de ferro com uma rapidez alucinante. Ao lado, já de volta ao ofício, a figura enternecida de seu Luís é projetada de baixo para cima, a partir de uma luz incerta, vívida e azulada que prolongava-se do portão em solda e iluminava uma pequena parte do ambiente. Para quem observa de fora, o imenso salão coberto por ferro e aço e ferramentas se funde como em um grandioso espetáculo alegórico, repleto de cores alucinantes, faíscas e sons berrantes. A história da Serralheria Cardoso teve início na metade do século XX, com seu Jorge, um grego operário que chegou ao Brasil para investir
no ramo, ainda pouco explorado em Florianópolis. Precisando de funcionários, contratou e ensinou seu Cardoso a técnica da solda e do corte. Trinta anos depois, seu Jorge voltou para sua terra natal e Cardoso comprou o estabelecimento, contratando 12 funcionários, - dentre eles Maureci e Luís. Em 1992, foi a vez da dupla administrar a serralheria, que segue firme até hoje com a ajuda de dois funcionários. “Sobrou eu, Maureci, Humberto e o Elias para tocar a profissão. A gente fica à espera da clientela, solda, corta e monta. Não criamos mais toda a estrutura porque demanda muito tempo e dinheiro. Serralheria hoje é que nem boteco, tem em toda esquina. Temos que nos adaptar”. As paredes, que aparentam longo desgaste do tempo, abrigam um sonho desconforme destes dois senhores, de bons cinquenta anos, amigos de ofício. Seu Luís e Maureci, que administram o local há mais de 20 anos, observaram a rotina da profissão mudar repentinamente. Com o tempo, a umidade entranhou-se nas paredes, o sol entranhou-se na umidade, e os corpos foram enrugando, assim como o chão da serralheira, hoje alternado entre chão batido e piso. “Antes a serralheria tinha a autonomia e tempo para produzir todas as peças. Agora vem tudo pré-fabricado, em pequenas partes. Ficamos refém porque cada vez mais essas peças ficam mais caras, e o nosso produto mais barato. Temos que trabalhar de oito a dez horas por dia para compensar”. A luz que recai toda manhã no centro da cidade entrava no ambiente por meio de três frestas, dois palmos acima da cabeça de Humberto. Depois seguia-se pelas bancadas de pau, colocadas rentes, duas a duas, deixando ao meio um intervalo, por Texto: Vitor Shimomura Fotografias: Vitor Shimomura
onde apoiavam os ferros para a solda. Nos corredores, a pólvora que saía das máquinas de polimento e corte se enfiava nas paredes encardidas e tecia lindas esculturas cinzas, pontudas e brilhantes, que eram comercializadas por artistas plásticos como obra de arte. Com os olhos arregalados acima dos óculos embaçados, seu Luís conta, contente, das proezas da serralheria. No começo dos anos 2000, aquele ambiente negrume e rústico também foi palco de uma importante propaganda, onde a serralheria se transformou em uma mina de extração e, os trabalhadores, em mineiros exaustos com capacetes amarelos de proteção e picaretas. Ao fundo, atrás das paredes, uma enorme pedra que divide espaço com armário, pia e banheiro, foi palco da iniciativa. “Esses dias teve até um primo meu querendo fazer ensaio fotográfico aqui dentro. A serralheria é rústica, é bonita e antiquada. O pessoal gosta. Por isso nunca reformamos e nem mexemos no nome”. Aquele espaço é como um templo consagrado unicamente à arte. Ali tem a pintura, o corte, a solda, a história, os causos e a literatura. Tudo ali fala. Há indícios de saudade a murmurar por cima dos silenciosos companheiros que nela vivem. Há marcos nas paredes desgastadas que rememoram sucessivas fases da vida no ofício. Os verdadeiros amigos de seu Luís são aqueles que ali convivem. Só eles guardam o segredo das comoções, da apreciada técnica que parece vibrar ainda naquele ambiente secular, - talvez o primeiro que lhe arrancou as alegrias e tristezas do trabalho. Só estes homens constroem a narrativa tal como lhe saem do coração. Nós não as vemos inteiramente, conhecemos-lhes apenas os vestígios. O ferro, o fogo, a brasa e o homem são todos um só.
terreiro de areia Sobre as ondas brancas de areia, aos poucos, o vento seco beija com paciência as dunas que circundam a Vila do Arvoredo, no bairro Ingleses, e carrega, infindamente, milhares de pequenos grãos até a fachada dos casebres que formam a comunidade, também conhecida como Favela do Siri. Abaixo das dunas e da mata rasteira, a típica restinga, as casas de madeira mambembe e telhado de zinco surgem como um oásis no meio do deserto, onde dezenas de famílias pobres lutam, diariamente, por uma vida digna e tranquila. Descalça, enquanto cuida os passos da filha de criação caçula, Mãe Mari, 51 anos, dona do único terreiro da favela, caminha e deixa a marca de suas pegadas na densa areia de primavera, castigada por longos 40 dias de chuva. Regidas pelo El Niño, ou por Iansã, a rainha dos ventos e tempestades, e Orixá da cabeça de Mãe Mari, as nuvens carregadas resolveram desaguar incessantemente no último mês, formando no seio da comunidade, um imenso lago verde, que logo alcançou o terreno da casa da Mãe de Santo: “Quero que vocês façam uma reportagem sobre as minhas galinhas. Olha só, as coitadas perderam tudo”, troçou, apontando para o galinheiro inundado. Não faz muito tempo que Mari , o companheiro, os filhos de criação e de santo chegaram à Favela do Siri, carregando os móveis e joias da Exu Mulher, a Pomba Gira, Maria Padilha por cima das dunas. Há um ano e meio, a Ialorixá ganhou a casa de uma filha de santo, agradecida pela amarração de um ho-
mem desejado, e saiu do aluguel no Sítio de Baixo, não muito longe dali, para viver na nova moradia. Sempre lhe rondando, os filhos de santo que escolheu lhe dão orgulho, mas são muito exigidos: não podem beber, não podem trair, e até para cortar o cabelo pedem a permissão da autoridade. “É, eu sou antiga”, explica, com um ar irônico. Para ela, em seu peito, sempre haverá espaço para mais um: “Se tiver feijão e arroz, têm para mais um. Se eu tiver que comer só arroz e ovo, vamos comer arroz e ovo juntos”. Pela porta estreita do casebre de madeira, observa-se parte da família de Mãe Mari acolhida no único sofá de uma sala escura e apertada. Em pé, a Ialorixá aproveita o tempo para curtir o único fache de luz que adentra o cômodo, enquanto assiste uma versão animada de Star Wars ao lado dos filhos e filhas de santo. Minutos depois, impaciente, a dona de casa decide pôr fim ao marasmo e começa a varrer o chão. Diz que é “pelas visitas”. No entanto, para quem mora à beira das dunas, limpar a casa é questão de rotina. Aos poucos, por toda os lugares, montinhos de areia acumulam-se nas arestas e cantos de portas, nos móveis, camas e rejuntes que interligam os pisos de porcelana. Do lado de fora, enquanto um dos filhos de santo lava o resto de louça que sobrou do almoço, um cano branco de PVC atravessa a parede de madeira e prolonga-se por baixo do terreno caótico. Ali, pessoas, animais e entulhos se juntam em meio à terra pastosa, podre e cinza, repleta de fungos, bichos e larvas de
mosquitos, que se proliferam pelo lago artificial formado ao longo do barraco de Mãe Mari. Sem saneamento básico, todos os sobrados e casebres ganham um apêndice atrás das paredes de madeira, onde os banheiros de cimento e tijolo nu ganham espaço. A TV a cabo e a luz são provenientes de “gato”. Diferente de Mãe Mari, com o aquecimento do ramo da construção civil e da especulação imobiliária na região, desde os anos 1980, muitos trabalhadores e trabalhadoras migrantes optaram por comprar terrenos de famílias nativas nas chamadas Áreas de Preservação Permanente (APP), assim como grande parte das residências do bairro Ingleses. E com o tempo, na virada do século, a Favela do Siri começou a se encorpar, chegando a cerca de 210 famílias, aproximadamente 791 pessoas, segundo levantamento feito por agentes de saúde do município. No entanto, a comunidade continua em expansão. O terreiro Caboclo Rompe-Mato costuma encher em dia de festa, principalmente de Exu. Afinal, durante essas longas noites, Mari incorpora a Exu mulher, também conhecida como Maria Padilha ou Pomba Gira. Mãe Mari virou Ialorixá no Candomblé, diz que aprendeu perguntando e que já superou os conhecimentos de sua professora. “Não acredito nessa gente que aprende a religião em livro, isso não existe”. Além disso, a Mãe de Santo não parece se sentir menos sábia e não vê como obstáculo mal saber assinar o nome. “Sair do ponto neutro e escolher o caminho certo” reflete, enquanto passa pano e limpa as pequenas bruxas de brinquedo penduradas por toda a casa. Sentada em bom descanso na cadeira do quintal, Mari vive tempos de tranquilidade, onde pode conviver e cuidar da família e propagar sua religião sem interrupções externas. Mas a sacerdotisa conta que houve um momento em que o povo de terreiro foi perseguido e teve que fazer com que Exu fosse considerado o mal, para que ele combatesse a verdadeira maldade, o chicote, a senzala e a escravidão. Para isso, eles tiveram que fazer com que os brancos temessem os feitiços de Exu. Enquanto termina de fumar uma carteira, Mãe Mari tenta me convencer de que, durante aquela época, Exu virou o mal para fazer o bem, ou seja, o mal para quem fazia o verdadeiro mal. A Ialorixá lembra de como os terreiros eram perseguidos nos anos 80, muitas vezes o povo santo tinha que se fechar para fazer as giras, pois, caso a vizinhança escutasse qualquer barulho, pedras voavam e atingiam o terreiro. Além de pedras, a polícia também invadia as sessões, batia em Mãe de Santo e jogava spray de pimenta na cara até das entidades que ainda estavam ali. No entanto, Mari acredita que hoje as agressões já não são mais frequentes e afirma que na comunidade onde mora não há tanto preconceito com sua religião, tanto que muitas pessoas de outras
crenças a procuram para buscar novos caminhos. Quando nasceu, Mãe Mari foi registrada no cartório como Mário Miranda, filho de evangélicos: uma índia do Maciço do Morro da Cruz e um policial militar. Aos dois anos, a criança adoeceu e foi internada. Na época, uma Mãe de Santo avisou os pais que, se eles não deixassem o Candomblé intervir, o bebê iria falecer. Surpreendidos pela gravidade da situação, o casal aceitou que a Preta Velha fizesse o trabalho de limpeza dos maus espíritos e a criança, “com sorte”, sobreviveu. Mais tarde, aos sete anos, Mãe Mari já sabia quem era: muito mulher. No entanto, sua feitura com a religião de matriz africana só teve início aos 15 anos, primeiro sendo seguidora de Candomblé, para depois se tornar Mãe de Santo na Umbanda. Mari pouco fala sobre esta passagem. Começava a contar a história, mas interrompia para tentar controlar a pequena Micaela, de dois anos, a única que não consegue domar: “Essa tem uma personalidade forte, deve ser filha daquele lá… Ogum”. Além de Micaela, Mãe Mari tem outros tesouros: da caixa escondida acima do armário, a mulher tira joias, colares e brincos de bronze, prata e ouro. São presentes que ganhou dos filhos de santo, são de ouro e prata porque Maria Padilha não gosta de bijuteria. Sobre a cama do casal, ela espalha seus tesouros e mostra cada um com suas longas unhas pintadas de branco. “Uma vez o Alcionei disse pra eu vender, de brincadeira. Eu fiquei semanas de cama. Elas são muito importantes para a Padilha”. No entanto, quando o assunto é Umbanda, seu marido também ganha autoridade no terreiro. É ele que faz o atabaque ecoar do chão de madeira até o céu estrelado; é ele que conhece os pontos de todos os Orixás, cantos quase infinitos, mas se molesta com a falta de memória dos filhos de santo, que muitas vezes o deixam cantando sozinho durante as sessões. Da sua voz rouca, ecoada no genuíno sotaque manézinho, a feiticeira conta que o Terreiro de Umbanda Caboclo Rompe-Mato foi erguido com esforço de sua família e filhos de Santo, que levantaram a construção , primeiro de bambu e depois de madeira. Como forma de dar adeus à construção frágil, que tinha sido consumida por constantes tempestades de areia, a Ialorixá organizou uma grande festa. Mas, justamente quando seu esposo, Alcionei, e os filhos de santo, tinham acabado de erguer e pregar as últimas tábuas da construção, uma vizinha denunciou o feito da família e a Fundação Municipal do Meio Ambiente (FLORAM) tratou de intervir e multar a dona da casa, alegando que a construção terreiro era irregular. Obstinada, a Mãe de Santo argumentou que a casinha não era para morar mas , sim, para religião. A União de Cultura Negra em Santa Catarina (UNIAFRO) estima que, nos últimos dois anos , foram multados 120 ter-
reiros de Umbanda em Florianópolis e região. Já a Fundação Municipal do Meio Ambiente (Floram) informou que 39 casas sofreram reclamações de vizinhos e foram multadas ou notificadas. Esses terreiros de Umbanda se juntam às mais de 2000 casas de religiões de matriz africana presentes na Grande Florianópolis, segundo levantamento do Projeto SOS Racismo, da Universidade Estácio de Sá. E a tarde ensolarada, regada a muito cigarro falsificado, vai caindo, enquanto as crianças do vilarejo brincam em um pequeno lago que se formou do outro lado da favela, no meio dos montes de areia. Dentro do terreiro, chega a hora de Mãe Mari sentar no trono de madeira, coberto por adornos e panos coloridos. Ao redor, nas bordas do salão, todos os filhos vestem roupas brancas, que antes secavam ao vento no varal. Rezaram o Pai Nosso e bateram cabeça para pedir licença para os Orixás. “Para que quero fumar um cigarro. E, Simone, vista tua roupa de Pomba Gira!”. Logo depois, a prima Simone retorna vestida como uma cigana, enquanto Padilha, de corpete vermelho e negro, passa a garrafa de cachaça e, como se o líquido branco fosse limpar as impurezas do corpo, cada um esfrega a umidade no cangote e ombros. A sessão está para começar. No vermelho e preto do vestido, com joias e colares ofertados ao corpo, chapéu e cachimbo, Exu Mulher dança em rodopio. Na gira, o som do atabaque dita o ritmo da sessão, sendo interferido por sussurros e falas bêbadas. “O que achas de minha face?”, pergunta Exu, com boca na fumaça e um olhar escondido, misterioso e desviado. Na mão desgastada de unhas brancas prolongadas, como as de uma bruxa dos contos de Franklin Cascaes, segura uma reluzente taça de prata, onde bebe champanhe e águardente. Da repetição de seus gestos, saem Texto: Luara Wandelli e Vitor Shimomura Fotografias: Vitor Shimomura
coisas não ditas, enganações e sedução de sobra a todos que adentram o terreiro. E , no embalo, os discípulos seguem o ritual, cada um com sua singularidade. Sensíveis, rodopiam incessantemente, tremem, caem e descansam aos pés de Exu e de todos os santos. No banco grudado à parede de entrada, convidados da comunidade observam, batem palma e escutam a sessão diligentes, enquanto a pequena Micaela brinca com o primo, em meio ao arrebatamento do terreiro. Sem se deter diante das broncas da mãe ou avó, a pequena demonstra a tendência de ultrapassar os limites e, assim como Ogum, se irrita com facilidade - é teimosa, orgulhosa, intempestiva e sincera. Logo mais, Mãe Mari aponta para a criança que bate palma e canta junto: “Visse a menina?!”. E a sessão continua. Entre um gole e outro, um trago no cigarro, um canto e um rodopio, a noite segue na força do axé. Os pés descalços, com a barra da calça dobrada, vibram junto com o chão de madeira oca. “Exu dá boa noite! Gostas de cerveja, é?” seduz Exu. E quando o silêncio finalmente preenche o vazio do terreiro, do lado de fora, uma imensa orquestra de sapos e pererecas tratam de continuar festando, seja por exu, ogum, iemanjá, ou, pela simples e efervescente dança do acasalamento em pleno sábado à noite. Perto das 23h, a família que me abrigara prepara o descanso. Caminhando pelos montes de areias frias em direção ao ponto de ônibus, paro por um momento e, pela última vez, desvio o olhar e me fixo na comunidade. Naquela singela despedida, percebo a importância da vivência e o prazer inverossímil de constatar, perante tantas angústias dos tempos modernos, que às vezes não existem obstáculos que possam superar a vontade de viver.
Rancho da naca Em Santa Catarina, a mulher depende do mar e vive dele: cria-se na areia, cheira a peixe e entranha-se de salitre. Entre barcos, mar e pedras vistosas, a Praia da Ponta dos Ganchos, em Governador Celso Ramos, guarda a bravura de dona Naca, especialista em montar redes de espera, principalmente a “feiticeira” - composta por três panos e famosa pela grande eficiência: tudo que entra nela, não sai. Sob a sombra do único rancho de pesca da região comandado por uma mulher, Naca se tornou referência na luta pela emancipação das trabalhadoras do mar. Com a fala pausada e rouca, a pescadora conta sobre a experiência de estar no azul infindo, envolta pela madeira gasta de sua embarcação. “Pescar é uma maravilha. É ir, botar a rede, pegar peixe e camarão. Enquanto eu puder, vou pescar porque, para mim, pesca é tudo: é paz, tranquilidade. Você coloca a rede e fica tranquila. Não tem fofoca, não tem mosquito, não tem nada te incomodando”. Naca nasceu em Governador Celso Ramos e se criou na Baía das Bromélia, onde começou a fazer tarrafa com oito anos. Aos 11, por ser a filha mais velha, já saía para pescar junto com seu pai - época em que a fartura de peixes é notável de lembrança e suspiros. “Deus do céu. Já peguei dia de 200kg de peixe sozinha. De eu carregar meu barquinho bem cheio de peixe, não tem? Peixes grandes também já peguei 220kg de Miraguaia - 30kg cada um. Também já peguei 250 kg de bagre em um dia. Era muita fartura”. Por todo o litoral catarinense, quem vive da pesca
mora em barracos com aspecto rústico, de madeiras por pintar e telhas de zinco e argila. No vasto areal cinzento de Governador Celso Ramos, a pescadora divide espaço do seu rancho com barcos, montantes de redes, pedras vistosas e uma porção de gatos que se emaranham pelas redes como peixes em dia de arrasto. Em pé no rancho que leva seu nome, a pescadora elabora mais uma rede, enquanto conta da experiência de estar em alto mar, rodeada de homens e ter que mudar seu comportamento para se sentir como parte da comunidade. “Lá no mar eu sou homem porque eu não posso me comportar como mulher. No meio deles, os sinais e o vocabulário são iguais, como se fossem de homem para homem. Para eles, eu sou quase um homem, mas nunca fui um. Aqui em terra é diferente, no meu rancho eles vivem, mas eu que mando. No final, eu tenho que expulsar eles para poder trabalhar nas redes”. Desde criança as trabalhadoras do mar têm o corpo modificado: perdem em agilidade e equilíbrio, a pele enruga, os músculos atrofiam e o ar entra seco. A rotina de trabalho das pescadoras envolve riscos à saúde em função de Lesão por Esforço Repetitivo (LER) e pela exposição ao sol que podem causar o câncer de pele, dermatites e o envelhecimento precoce. Além disso, podem vir a desenvolver problemas ginecológicos em razão das horas que passam em contato com águas poluídas e enlameadas. Em relação aos homens, as mulheres, em geral, adoecem mais rápido, pois são submeti-
das cotidianamente não só aos serviços relacionados a pesca, mas também às tarefas domésticas que os homens não assumem. Quando saem do barco e o encalham na areia os pescadores costumeiramente não fazem mais nada, além de reparar as redes e as carcaças da embarcação. Segundo Naca, o resto compete à mulher: é ela que lava as redes e o peixe, que o salga e carrega, que cuida dos filhos, cozinha e barganha com os comerciantes. “Eu cuidava dos filhos e quando saía para pescar ele que cuidava, né; Cuidava porque a minha pesca é rápida. Saia 5h da manhã mas 10h já estava de volta. Mas sim, eu trabalhava duas vezes porque pescava e cuidava da casa, dos filhos. Tinha dias que eu dormia sentada de cansada”. Em todo o vasto mar turvo que se estende da praia, a pesca é dentro de embarcação. A época de frio no estado traz consigo grande abundância de Tainha grande, média e pequena ou miudinha, como lhe chamam os manézinhos. O areal e a água ensinam e exigem da pesca uma grande rede, braços experientes e um forte prazer de estar à beira-mar. Com a primeira malha metida entre os dentes, enquanto na mão direita a agulha vai costurando a estrutura da “feiticeira”, Naca fala da importância das mulheres se unirem e seguirem como protagonistas Texto: Vitor Shimomura Fotografias: Pedro Stropasolas e Vitor Shimomura
na pesca, pois, todas tem o direito de habitar a terra e o mar, cultivar o manejo de suas embarcações e o costurar das inúmeras redes no ofício. “Eu acho que é uma beleza de bom. Elas devem continuar na pesca e incentivar as outras. Tem que gostar e não ter medo de enfrentar os desafios que a profissão impõe, principalmente a macharada que diz que mulher não é pra pesca. Tem que ser firme e ir em frente”. Pela manhã, o verde do mar envolve as pedras seculares e o hálito salgado penetra por toda o areal da Praia dos Ganchos. De perto, é explícito que as pescadoras sempre acompanharam o mar - e não o deixam: conhecem sua voz, a mistura de seu hálito e a luz viva que recai sobre ele toda manhã. Vivem dele e com ele dividem histórias para vida inteira. “Em 1980 eu fui a primeira mulher do município a tirar a carteira da pesca profissional artesanal. Quando fizeram uma homenagem pra mim, o seu Sebastião e outros homens aparecem no CD falando assim, ó: ‘Essa mulher aí, ó, sabe muito mais do que eu. Ela tem destreza, ela chega e pega o ancourador, ancora, pula e eu não sei fazer isso. Quando fui pular, caí na água’. Não é me gabar, mas eu sei muito mais do mar do que muitos homens”. Conta Naca, com um sorriso empoderado no rosto.