Contos populares do Brasil
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Contos populares do Brasil
Contos Populares do Brasil Seleção de contos populares feita a partir da coletânea disponibilizada pela Revista online Jangada Brasil. Disponível em: http://jangadabrasil.com.br/revista/setembro82/links.asp.
Sumário Contos Populares do Brasil............................................................................................................ 1 A adivinha do amarelo .............................................................................................................. 3 O amarelo mentiroso ................................................................................................................ 5 Bakaru juko ro (lenda do macaco) ............................................................................................ 6 Cairé e Catiti, as luas cheia e nova ............................................................................................ 8 OS MARIDOS DA LUA ............................................................................................................ 9 A canela do defunto ................................................................................................................ 10 O compadre invejoso .............................................................................................................. 12 O compadre rico e o compadre pobre .................................................................................... 14 O cunhado de São Pedro ......................................................................................................... 17 A dança de São Gonçalo e O melhor violeiro .......................................................................... 20 A DANÇA DE SÃO GONÇALO ............................................................................................... 20 O MELHOR VIOLEIRO ........................................................................................................... 23 Duas histórias com o urubu e o sapo ...................................................................................... 25 O urubu e o sapo (festa no céu) .......................................................................................... 25 Ainda o urubu e o sapo ....................................................................................................... 25 O erro do burro ....................................................................................................................... 27 O filho da Burra ....................................................................................................................... 31 História da coca, conto acumulativo ....................................................................................... 35 O homem que pôs um ovo ...................................................................................................... 37 O homem que se julgava sábio ............................................................................................... 38 um conto da tradição africana ................................................................................................ 38 As irmãs tatas e Mostrando as prendas .................................................................................. 40 AS IRMÃS TATAS .................................................................................................................. 40 MOSTRANDO AS PRENDAS.................................................................................................. 40
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Contos populares do Brasil Jesus e o tatu ........................................................................................................................... 41 O macaco e o rabo, ................................................................................................................. 42 conto acumulativo em duas versões ....................................................................................... 42 Não faças bem, sem saber a quem, um conto de origem indígena ........................................ 45 A onça, o veado e o macaco .................................................................................................... 45 Porque cachorro é inimigo de gato e gato de rato ................................................................. 47 Seis aventuras de Pedro Malasartes ....................................................................................... 48 Três contos populares ............................................................................................................. 52 O barba de ouro e a carantonha ......................................................................................... 52 Boca calada salva a vida ...................................................................................................... 54 A mulher curiosa e o galo .................................................................................................... 54 As três velhas........................................................................................................................... 56
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A adivinha do amarelo colhida por Luís da Câmara Cascudo
m rei tinha uma filha tão inteligente que decifrava imediatamente todos os problemas que lhe davam. Ficou com essa habilidade, muito orgulhosa, e disse que se casaria com o homem que lhe desse uma adivinhação que ela não descobrisse a explicação dentro de três dias. Vieram rapazes de toda parte e nenhum conseguiu vencer a princesa que mandou matar os candidatos vencidos. Bem longe da cidade morava uma viúva com um filho amarelo e doente, parecendo mesmo amalucado. O amarelo teimou em vir ao palácio do rei apresentar uma adivnha à princesa, apesar de rogos de sua mãe que o via degolado como sucedera a tantos outros. Saiu ele de casa trazendo em sua companhia uma cachorrinha chamada Pita e um bolo de carne, envenenado, que lhe dera sua própria mãe. Andou, andou, andou, até que desconfiando do bolo o deu à Pita. Esta morreu logo. O amarelo, muito triste, jogou a cachorrinha no meio do campo e os urubus desceram para comê-la. Sete urubus morreramtambém. O amarelo com fome, atirou com uma pedra em uma rolinha, mas errou e matou uma asa branca. Apanhou-a e sem deixar de andar ia pensando como podia comer sua caça quando avistou uma casinha. Era uma capela abandonada há muito anos. O amarelo entrou e aproveitando a madeira do altar fez uma fogueira e assou o pássaro, almoçando muito bem. Ao sair, viu que descia na água do rio um burro morto, coberto de urubus. Estando com sede, encontrou um pé de gravatá, com água nas folhas e bebeu a fartar. Quase ao chegar à cidade reparou em um jumento que escavava o chão com insistência. O amarelo foi cavar também e descobriu uma panela cheia de moedas de ouro. Chegando à cidade, procurou o palácio do rei e disse que tinha uma adivinhação para a princesa. Marcaram o dia, e o amarelo, diante de todos, disse:
Saí de casa com massa e Pita A Pita matou a massa E a massa matou a Pita Que também a sete matou Atirei no que vi Fui matar o que não vi Foi com madeira santa Que assei e comi Um morto vivos levava Bebi água, não do céu O que não sabia a gente Sabia um simples jumento Decifre para seu tormento
A princesa pediu os três dias para decifrar e o amarelo ficou residindo no palácio,
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Contos populares do Brasil muito bem tratado. Pela noite, a princesa mandou uma criada sua, bem bonita, tentar o amarelo para que lhe dissesse como era a adivinhação. O amarelo compreendeu tudo e foi logo dizendo: - Só direi se você me der a sua camisa. Vai a moça e deu a camisa ao amarelo, que contou muita história mas não explicou a adivinhação. A princesa, vendo que a criada nada conseguira, mandou a segunda e houve a mesma cousa, ficando o amarelo com outra camisa. Na última noite, a princesa procurou o amarelo para saber o segredo. O rapaz pediu a camisa e a princesa não teve outro remédio senão a entregar. No outro dia, diante da corte, a princesa explicou a adivinhação: - Massa era o bolo que a cachorra Pita matou porque comeu e foi morta pelo bolo, matando envenenados os sete urubus. A rolinha escapara da pedrada mas a asa branca morrera sem que o caçador a tivesse visto. Assou-a com madeira que guardara a hóstia santa. Um cadáver de burro levava, rio abaixo, uma nuvem de urubus vivos. A água que se conservava entre as folhas do gravatá, matara a sede do amarelo. O que não sabia o povo inteligente, sabia um jumento que cavava ouro ao pé de uma árvore. Era tudo. Bateram muita palma, mas o amarelo disse logo: - O fim dessa adivinha é fácil e eu vou dizer logo, antes que morra degolado! - Quando neste palácio entrei Três rolinhas encontrei Três peninhas lhes tirei E agora mostrarei…
E foi puxando a camisa da primeira criada e mostrando. Fez o mesmo com a da segunda. Quando tirou a camisa da princesa, esta correu para ele, dizendo: - Não precisa mostrar a terceira pena! Eu disse a adivinhação porque você me ensinou, e me ensinou porque é meu noivo… Casaram e foram muito felizes. (CASCUDO, Luís da Câmara. Literatura oral no Brasil)
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O amarelo mentiroso colhido por João da Silva Campos
O AMARELO MENTIROSO Era um rei que tinha anunciado pagar bem àquele que lhe contasse uma mentira do tamanho do Padre Nosso. Correu ao palácio uma porção de gente; mas ninguém contava uma mentira do tamanho que ele queria. Um dia, um amarelo empapuçado, que só vivia na cinza, disse ao pai: - Meu pai, eu vou contar ao rei uma mentira do tamanho do Padre Nosso. O pai, a mãe, os irmãos do amarelo, caíram na gargalhada. - Ora vejam só!... Vai, amarelo! Tomara que o rei mande te dar uma surra. Quando gente que sabe onde tem o nariz sai de lá de crista murcha, quanto mais, tu, empapuçado... Porém o amarelo não se importou. Amarrou a trouxa e meteu o pé no caminho Chegando ao palácio, o rei perguntou-lhe: - O que é que tu queres, amarelo? - Rei, meu senhor, não disse que pagava a quem lhe contasse uma mentira do tamanho do Padre Nosso? Pois eu vim contar. - Então conta lá, - tornou o rei, fazendo ar de pouco caso. O preguiçoso começou: - Meu pai era um homem pobre que vivia de fazer lenha. Já estando velho, cansado de trabalhar, comprou uma burrinha para carregar a lenha. Tanta lenha carregou, que fez uma pisadura nas costas da burrinha. Então ensinaram ele que botasse favas na pisadura. Mas não explicaram se favas secas ou verdes. Ele botou favas secas. Nasceu um faval nas costas da burrinha. Quando as favas secaram, meu pai a bater com um pau e a burrinha com o rabo, colheu cem alqueires de fava seca, sem uma pêca. Para encurtar de razões: - meu pai tem um sino de cortiça, com badalinho de lã, que batendo, daqui a cem léguas se ouve, por terra chã. Quando o preguiçoso acabou de contar a mentira, o rei disse-lhe: - Arre, que essa é maior que o Credo, quanto mais que o Padre Nosso. (MAGALHÃES, Basílio. O folclore no Brasil)
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Bakaru juko ro (lenda do macaco) J. B. M. A onça e o macaco tinham feito sociedade e, certo dia, foram caçar na floresta para passar o tempo. De fato, caçaram muito, mas a onça não estava satisfeita. E o que ela mais queria era matar e comer o macaco. Mas era-lhe muito difícil pegá-lo desprevenido. O bicho era esperto demais e ninguém até então conseguira supreendê-lo. Certa noite, estavam ambos na cabana, a onça deitada no chão e o macaco na rede. Contrariamente ao seu costume, naquela noite a onça não dormia e o macaco, muito preocupado, estava alerta. Fingia dormir, mas observava a companheira. De repente, a onça se levantou, aproximou-se cautelosamente da rede do macaco, para ver se ele dormia. O macaco, matreiro, roncava profundamente e a onça, convencida que o apanhara, levantou-se nas patas traseiras e estendeu as unhas para o estrangular. O macaco, porém, no instante preciso, pulou da rede, subiu pelos paus da cabana e encarapitou-se lá em cima, dizendo: — Ah, meu amigo! Não é assim tão fácil apanhar o macaco! Em seguida, saiu, saltou para uma árvore próxima e foi ficar no galho mais alto, não se mexendo dali apesar de a onça, com a cara mais ingênua do mundo, jurar que ele estava enganado, que descesse, para que pudessem ir caçar juntos novamente. O macaco não foi tolo. Não deu ouvidos às mentiras da onça e, assim que ela foi dar uma volta, ele se foi, pulando de galho em galho, para bem longe. Foi então que começou a rivalidade entre a onça e o macaco. Este, muito esperto, armavalhe constantes ciladas, de que ela custava a escapar e a inimizade foi ficando feroz, até que um dia o macaco apanhou a onça dormindo, depois de enorme banquete. Então, deu-lhe umas machadadas na cabeça, matando-a. Depois tirou-lhe o couro, assou a carbe e foi à toca da onça. Entregou a carne à onça-fêmea, dizendo: — Eis o que seu companheiro lhe mandou. Ele virá mais tarde. A onça estava com fome. Assou melhor a carne e pôs-se a comer. O filhote, porém, que tinha bom faro, notou que havia alguma coisa estranha naquela carne e avisou a mãe, que não ligou e continuou a comer. Quando terminou a refeição (de que o macaco compartilhara), este começou a caçoar, dizendo que tinham comido a carne do companheiro e pai. A onça, furiosa, quis agarrar o macaco, mas por mais que fizesse, não o conseguiu. Juko não se deixou apanhar. Afinal, a onça, cansada, pediu auxílio de uns animais chamados maregues: [*]
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Contos populares do Brasil — Vocês — disse-lhes — façam muito barulho, como se estivessem caçando uma fera. O macaco, ouvindo isso, virá ver o que é e eu o arranjarei. Os maregues assim fizeram. Começou uma barulheira infernal. Como era sabido, o macaco veio espiar. Mas trazia o machado consigo, dava machadadas para todo o lado, perguntando: — Kaiaba? Kaiaba? (Onde está? Onde está?) E foi então que viu os dentes da onça à superfície da terra. A onça tinha-se enterrado, deixando de fora só os dentes para apanhar o macaco. Este lhe deu meia dúzia de machadadas, quebrando-lhe a cabeça e, assim, acabou com a luta.
* Maregues: membros de uma antiga tribo da Amazônia.
(J. B. M. "Bakaru juko ro". Folha da Manhã. São Paulo, 14 de novembro de 1959)
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Cairé e Catiti, as luas cheia e nova do folclore amazônico
CAIRÉ E CATITI
As informações de Couto de Magalhães sobre a teogonia selvagem vulgarizam na planície a imagem da lua cheia: Cairé – por ele revelada como instrumento destinado a despertar as saudades no amante ausente. Segundo o experimentado sertanista, os tupis consideravam as luas, cheia e nova, elementos auxiliares de Rudá, os deus do amor, e tinham invocações semelhantes às que cantavam aquele deus, e para o mesmo fim de trazer os amantes ao lar doméstico, pelo poder da saudade. Eram estas as invocações à lua cheia (cairé) e a lua nova (catiti): Cairé, cairé nú Manuára danú çanú Eré ci erú Piape amu Omanuara ce recé Quanhá pitúna pupé Catiti, catiti Imara notiá Notiá imára Espejú (fulano) Emú manuára Ce recé (fulana) Cuçukui xa ikó Ixé anhú i piá póra. Cuja tradução, apesar da ignorância do sentido de alguns versos, é assim apresentada: Eia, ó minha mãe (a lua) fazei chegar esta noite ao coração (do amante) a lembrança de mim. Lua nova, ó lua nova! Assoprai em fulano lembranças de mim, eis-me aqui, estou em vossa presença; fazei com que eu tão somente ocupe seu coração. E existência de um deus do amor na teogonia tupi, como pretende Couto de Magalhães, é formalmente contradita pelos estudos efetuados em torno da alma aborígene e "incompassível com o seu fetichismo astrolátrico ainda mal definido" opina Basílio de Magalhães. Entretanto o autor de O Selvagem afirma que ouviu esses cantos repetidos as populações do Pará, conservando deles até
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a música. É imenso, variado e pitoresco o lendário indígena criado em torno da lua cheia. Uma das suas mais interessantes manifestações encontra-se entre os índios Inay e me foi narrada pelo paulista Pedro Faber Halembrck, que com eles convive e se faz revelador de seus costumes bem como de um curioso sistema de contagem pelas rotações do sol. Vede como é delicioso em sua ingenuidade este conto colhido entre os índios Inay, esta umbesáuacheia ao mesmo tempo, de ternura e malícia. OS MARIDOS DA LUA O indiozinho deitado na rede de tucum, está quase dormindo. A índia moça canta junto, sob uma árvore uma coisa esquisita que ninguém entende. De repente, um raio da lua, sem pedir licença entra pelas folhas e vai bater na rede em que o indiozinho está quase dormindo. O menino esfrega os olhinhos espia pela fresta e aponta para o alto, perguntando o que é aquilo redondo, bonito , prateado, que esta lá em cima no céu... E a mãezinha dele explica. Explica lá na sua língua, que ninguém entende. Aquilo é a moça lua. Sim, a moça lua. Uma moça que tem dois maridos. O primeiro é um tipo mau, escasso, brabo. Nada lhe dá pra comer. Promete-lhe surras. E a pobrezinha vai ficando magra, delgada, fina, doentinha que uma tristeza. Faz até dó. A gente olha cá de baixo e vê a coitadinha. Parece um esqueleto, um esqueletinho curvo, suspenso no céu. Quando ela já está quase na espinha aparece então o outro marido. Esse é bonzinho meigo, carinhoso. Leva-a para casa. Trata bem dela. Dá-lhe ervinhas macias, frutas gostosas, leite de castanha. E a lua começa então a engordar ficar outra vez bonita, nova, clara, leitosa, redonda como uma bola que a noite iluminasse com leite. É assim como essa imaginação fácil, curiosa e espontânea que a mãe do indiozinho lhe ensina aquilo que nós por aqui, chamamos quarto minguante e quarto crescente, isto é, as fases da lua no seu movimento de translação em torno da terra. (ORICO, Osvaldo. Vocabulário de crendices amazônicas)
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A canela do defunto colhido em Maceió por Abelardo Duarte A CANELA DO DEFUNTO Muitos dos contos ou das lendas populares que a tradição oral vai passando adiante, modificados ou alterados na sua forma primitiva, na sua tessitura íntima, mas conservado o sentido original, vieram de outras plagas longínquas, de além-mar. São contos ou histórias da península na maior parte. Portugal foi a tal respeito o nosso maior celeiro. Mandou-nos inúmeros deles que aqui se perpetuaram e se incorporaram definitivamente ao nosso folclore. O conto, de que a seguir reproduzo uma variante, está nesse caso. Proveio da boa cepa portuguesa. Teófilo Braga apresenta em seus Contos tradicionais do povo português, uma versão do Algarve sob o título de A mulher curiosa,e Barros Ferreira inclui também, nas suas Lendas da Península, uma outra versão lusitana, tida como real, dando-lhe o nome de O fêmur do defunto. Lindolfo Gomes, consagrado folclorista e autor de várias obras consideradas de subido valor, na sua rica coletânea de contos populares consigna uma variante brasileira colhida em São João del Rei, Minas Gerais. Leio, porém, em Contos tradicionais do Brasil, de Luís da Câmara Cascudo, que a "tradição é comum a Portugal e Espanha, onde os episódios são incontáveis". O insigne mestre professor Aurélio Espinosa possui duas versões recolhidas em terras de Espanha - La calle de la pierna (em Córdoba) e La averiguarana (em Ciudad Real). Nas versões peninsulares, como na versão brasileira, a narração se prende a uma procissão das almas-do-outro-mundo ou das almas penadas do Purgatório, noite alta, percorrendo invisivelmente as ruas tranqüilas e desertas. Afirma a tradição que a criatura que a presencia morre nesse mesmo ano, não dura seis meses. Há também a suposição de que quem a vê fica pateta, amalucado, ou só pode avistá-la "quem tem uma palavra a menos no latim do batismo". O conto refere sempre a uma moça ou a uma velha curiosa, bisbilhotando o que se passa na rua, à meia-noite, e recebe como castigo um círio aceso que se transforma em osso de defunto ou num esqueleto. A
variante
que
recolhi
é
a
seguinte: A
canela
do
defunto.
Havia em certo lugar uma velha muito beata e curiosa, que, às horas caladas da noite, se deixava ficar postada à janela da sala, vendo e ouvindo o que se passava na rua. Era um hábito que conservava de longa data. Certa vez, viu um cortejo fúnebre, que outro não era senão a procissão das almas penadas do Purgatório conduzindo um caixão de defunto, ao clarão de velas acesas. Aguçou-se-lhe mais a curiosidade e não se contentou de olhar apenas, através do vidro da janela ou das venezianas, a lúgubre jornada das almas-do-outro-mundo, vestidas nas suas mortalhas. Quis vê-las mais de perto. Abriu de par em par a janela. Aconteceu-lhe, entretanto, um fato estranho. Viu, estarrecida, deslocar-se do cortejo e encaminhar-se rapidamente para ela uma das almas, cujos segredos tentava desvendar na sua bisbilhotice. E antes que pudesse fechar a janela, o vulto entregou-lhe um círio aceso dizendo-lhe na sua voz fanhosa, como só devem possuir as almas-do-outro-mundo: - Amanhã, virei buscá-lo, às mesmas horas. Guarde-o bem guardado.
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Mal pôde recobrar o ânimo, qual não foi o seu espanto quando notou que sustentava nas mãos ainda trêmulas e gélidas, uma canela de defunto. Entre horrorizada e arrependida, correu a colocá-lo no santuário, rezando o credo. Na noite seguinte, transida de medo, devolveu-lh’a com duas velas bentas, ao que lhe retrucou, na sua voz de falsete, ao recebê-la, a alma-penada: - Foi o que te valeu. Que te sirva esta de lição.
(Recolhida em Maceió) (DUARTE, Abelardo. Em Boletim alagoano de folclore)
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O compadre invejoso conto do folclore capixaba O COMPADRE INVEJOSO Era uma vez dois compadres: um era rico e morava num grande palácio, e o outro era pobre e morava por perto, numa choupana. O compadre rico era muito avarento e não ajudava nada ao compadre pobre, o qual, muitos vezes, não tinha nem o que comer. Um dia o compadre pobre foi até o alto de um morro, onde havia um pé de coco; quando pelejava para derrubar um coco, este caiu e rolou morro abaixo, indo parar dentro da casa de um velhinho que morava por ali. O pobre homem desceu o morro e bateu à porta da casa pedindo licença ao velhinho para apanhar o coco e dizendo-lhe que era para alimentar seus filhos, que deixara chorando de fome. O velhinho disse ao compadre pobre que podia pegar o coco, mas perguntou-lhe se não o queria trocar por três abóboras. O pobre aceitou a proposta e o velhinho então, disse-lhe que fosse à horta e apanhasse aquelas abóboras que lhe dissessem: "Me tira! Me tira!" Assim fez o pobre homem, mas antes de ir embora foi agradecer ao velhinho, o qual falou: "Quando o senhor chegar com as abóboras no princípio do morro, jogue uma delas ao chão; quando chegar lá em cima, jogue outra; e quando chegar em casa, jogue a terceira que não se arrependerá." Quando o compadre pobre ia começar a subir o morro jogou a primeira abóbora ao chão, como o velhinho lhe dissera. Apareceu então um belo cavalo, todo arreado, no qual ele montou e prosseguiu caminho. Ao chegar lá em cima do morro, jogou a segunda abóbora ao chão; apareceu-lhe uma vaca acompanhada de um bezerrinho, que ele tocou para casa. Ali chegando, jogou a última abóbora; apareceu-lhe um montão de dinheiro, tão grande que levou dias apanhando-o com a mulher e os filhos e levando-o para dentro de casa. Com o dinheiro que ganhou, o homem mandou fazer uma bela casa e melhorou tanto sua pequena propriedade que ela parecia até um jardim. Daí por diante passou a viver como homem rico que era, e muito feliz com sua família. Um dia o compadre rico passou por ali e viu aquilo tudo tão mudado, que se admirou, não resistindo a uma visita a seu compadre, ao qual perguntou como conseguira tal riqueza. O compadre que era pobre contou todo o caso para o outro, sem esconder nada. O rico foi embora, picado de tanta inveja e resolvido a ganhar também uma riqueza de maneira tão fácil. Assim foi que se encaminhou para o mesmo coqueiro no alto do morro e deixou cair um coco, que rolou direito à casa do velhinho. O homem rico desceu o morro e foi ter com o velho, dizendo-lhe que era muito pobre e que aquele coco que ali caíra ia servir para alimentar os seus filhos. Como o velhinho sabia de tudo, disse ao homem invejoso que se ele quisesse trocaria o coco por três abóboras. Mais do que depressa o rico concordou. Então o velhinho explicou que fosse à horta e apanhasse as três abóboras
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que
falassem:
"Me
tira!
Me
tira!"
O compadre rico apanhou as abóboras maiores que ele viu na horta e foi embora sem nem sequer agradecer ao velhinho. Quando começou a subir o morro jogou uma abóbora no chão. No mesmo instante, apareceu um bando de marimbondos que deu em cima dele, picando-o todinho. O homem subiu o morro correndo e lá em cima tratou de jogar outra abóbora fora; apareceu-lhe, então, uma bruta onça, a qual saiu correndo atrás do homem, quase o pegando. Quando o compadre invejoso chegou à sua casa com a última abóbora em baixo do braço, fugindo da onça, abriu e fechou depressa a porta. Jogou a abóbora no chão, chamou a família toda e mandou que fechassem bem a casa. Assim fizeram. Foi aí que apareceram cobras por todos os lados, mordendo e matando todas as pessoas da casa. Quem mandou o homem ser tão invejoso? (Teixeira, Fausto. Contos populares capixabas. Informante: Duziana Teresa Baiôco, Professora rural – Município de Ibiraçu, 1959. Em Estórias e lendas de Minas Gerais, Espírito Santo e Rio de Janeiro, p. 238-239)
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O compadre rico e o compadre pobre coligido por João da Silva Campos
O COMPADRE RICO E O COMPADRE POBRE Um homem era muito pobre, casado, com muitos filhos, tendo um compadre que era podre de rico. Então o tal homem era preguiçoso, que uma cousa era ver e outra contar. A mulher dizia-lhe: - Marido, vá trabalhar. Vá pocurar a vida. - Eu não. - respondia o sujeito.- O que tiver que ser meu às minhas mãos há de vir. E ia pelas ruas malandrear, bebendo cachaça. Um dia, ele pegou na rede foi para omato, arnou-a e deitou-se, a fim de dormir à vontade do corpo. Pegando no sono, sonhou que Nossa Senhora chegou junto da rede e lhe deu um cacho de bananas, que quanto mais banana se lhe tirava, mais banana nascia, recomendando: - Não passe com esse cacho de bananas pela casa do compadre rico. Aí, ele acordou, e, abrindo os olhos, viu um cacho de bananas perto da rede. Para experimentar se era como Nossa Senhora lhe dissera no sonho, tirou uma banana e comeu. Nasceu logo outra. Tirou uma porção d ebananas e outras foram nascendo imediatamente, ficando o cacho perfeitinho. Muito contente, exclamou: - Olhe! Eu não disse que o que for meu às minhas mãos há de vir?!... desatou a rede mais que depressa e correu para casa. Passando pela do compadre rico, sem se importar com a recomendação de Nossa Senhora, ao chegar-lhe à porta, gritou: - Meu compadre, estou rico! - Já vem você com as suas maluquices para cá, seu bêbedo, seu preguiçoso? - Não é não, meu compadre. Quer ver? Olhe. Este cacho de bananasm quanto mais banana a gente tira dele, mais banana nasce. - Pois eu quero ver isso, tornou o compadre rico. O homem tirou uma banana, nasceu outra; tirou uma, nasceu outra; tirou uma, nasceu outra. Então o rico começou a conversar com ele e a dar-lhe bebida. Quando o pobre do homem ficou tonto, que caiu no sono, ele pegou no cacho de bananas, guardou, e mandou ver outro na despensa, botando no lugar. Quando acabou de curtir a cachaça, o sujeito apanhou o cacho de bananas e foi-se embora. Chegando perto de casa, gritou: - Minha mulher! Minha mulher! Estamos ricos! - Venha, - respondeu-lhe ela zangada - venha para casa com as suas besteiras! Ainda bem que eu hoje estou com os meus azeites...
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- Olhe, - disse arriando o cacho, - a gente tira uma banana deste cacho e nasce outra logo. Os meninos aí caíram e comeram as bananas todinhas, não nascendo uma só. A mulher foi em cima dele com um pau, que foi pancada de criar bicho. No outro dia, o homem saiu, indo outra vez armar a rede no mato. Sonhou ter Nossa Senhora lhe dado uma toalha, que quando se estendia na mesa, dizendo - pôe-te, mesa -, apareciam comidas de todas as versidades. Tornou Nossa Senhora a lhe recomendar que não passasse pela casa do compadre rico. Porém ele passou, fazendo a mesma presepada que fez com o cacho de bananas. O compadre embriagou-o, trocou-lhe a toalha e ficou bem de seu. Chegando em casa com um berreiro muito grande, estendeu a toalha da mesa começando: - põe-te, mesa... põe-te, mesa... Qual põe-te, mesa, qual nada, meu senhor. Não apareceu nem um carocinho de farinha. A mulher coou em cima dele, de cacete, que fez-lhe a festa. Quando foi no terceiro dia, ele tornou a ir armar a sua rede no mato e Nossa Senhora deu-lhe uma bolsa cheia de dinheiro. Quanto mais dinheiro se tirava, mais dinheiro aparecia. Não se importou ainda com a recomendação de Nossa Senhora, passando pela casa do compadre rico que lhe trocou a bolsa, como trocara o cacho de bananas e a toalha. Chegando em casa, já se sabe, a bolsa estava limpinha, tornando a ir dormir. Finalmente, no quarto dia, tornando a ir dormir no mato, não teve sonho. Quando acordou, lamentando Nossa Senhora não ter lhe dado nada, levantou-se, espreguiçou-se, desatou a rede, abaixou-se e apanhou o chapéu que estava no chão. Quando foi botando o chapéu na cabeça, tinha um chicote de couro, bem fino e bem ensebado, enroladinho dentro, que foi desenrolando-se e caindo em cima dele, dando-lhe lambroadas a torto e a direito, por todas as partes do corpo. Quando já estava mole de tanto apanhar, lembrou-se de dizer: - Bastam chicote!... O chicote aí enrolou-se entrando para o fundo do chapéu. O homem correu mais que depressa para a casa do compadre rico que, mal o bispou ao longe, foi logo gritando, já muito alegre, pensando engzopá-lo mais uma vez: - Oh, meu compadre, o que é que temos hoje de novo? - Hoje, - respondeu-lhe o sujeito, - temos uma coisa muito boa, aqui dentro deste chapéu. Foi dizendo isso e botando o chapéu na cabeça do compadre. O chicote desenrolou-se, caindo na cacunda dele, que não brincou: -lépote, lépote, lépote... O homem abriu o eco, berrando mais do que bode: - Me acuda, compadre... me acuda... E o chicote comendo-lhe o couro. Quando o pobre viu que o compadre estava bem esfregado, disse-lhe que só mandava o chicote parar se ele botasse para ali, naquele momento, o seu cacho de bananas, a sua toalha
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e a sua bolsa. Mais que depressa, o rico mandou buscar tudo e entregou ao compadre. Então, este disse: - Basta, chicote. Foi que o chicote deixou o rico tomar fôlego. Também, ele estava com o corpo moído, que fazia pena. Chegando em casa sem dizer palavra, foi botando o chapéu na cabeça da mulher e o chicote foi-se desenrolando e caindo-lhe do lombo com vontade. Ela botou a boca no mundo, - auê... auê... - gritando pelo rei de França. O marido aí lhe disse: - Isto é em paga das cacetadas que você me deu. Quando viu que a mulher estava bem convidada, mandou o chicote parar. Então foi viver descansado, com o seu cacho de bananas, a sua toalha e a sua bolsa. (MAGALHÃES, Basílio de. O folclore no Brasil)
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O cunhado de São Pedro coligida por João da Silva Campos
O CUNHADO DE SÃO PEDRO Era um velho que tinha uma filha e três filhos. Um dia, apareceu um rapaz que lhe pediu a filha em casamento. Assim que acabou de se casar pegou a mulher e foi-se embora com ela, sem querer que a moça levasse nada, nada, da casa do pai. Só mesmo a roupa do corpo foi o que ela levou. Porque o rapaz era São Pedro, portanto não havia de conduzir para sua casa coisa que tivessem ranço de pecado. A moça vivia muito bem. Porém, tinha um desgosto: era que o marido não passava um dia que fosse em casa, pois sendo pastor de ovelhas não podia nunca deixar de levar os animais para o pasto. O irmão mais velho da moça indo visitá-la, ela contou-lhe isso. Então o rapaz esperou que o cunhado voltasse. Quando foi de noite, que ele chegou, disse: - Cunhado, minha irmã se queixa de que você desde que se casou ainda não pôde parar um dia que fosse, em casa, por causa das ovelhas. Eu amanhã vou pastorar elas e o cunhado fica em casa. São Pedro disse que sim. Quando foi no outro dia de manhã, chamou as ovelhas e entregou-as ao cunhado, recomendando-lhe que por onde elas passassem ele passasse também; onde elas parassem, ele parasse também; de tarde, quando elas voltassem, ele voltassem também. Aí, as ovelhas partiram, seguindo o rapaz no coice do rebanho. Depois de caminharem muito, chegaram à beira de um grande rio, sobre o qual tinha uma ponte que era formada por uma espada de prata, de gume para cima, afiado que nem navalha. As ovelhas meteram o pé e passaram. Quando o rapaz viu aquilo disse: - Qual! Quem é que vai passar aqui por cima? Eu, não! Sentou-se debaixo de um pé de árvore, na beira do rio, e ficou bem de seu, o dia inteiro. Entretanto, São Pedro que o vinha acompanhando de longe, passou por ele sem ser visto e seguiu atrás das suas ovelhas. Quando foi chegando de tarde, lá vêm as bichinhas. Assim que elas chegaram perto da ponte, São Pedro se escondeu. Logo que passaram a ponte o rapaz enfiou atrás delas. Ao chegar em casa, São Pedro já estava lá bem desencalmado. Perguntou ele: - Então, cunhado, como se foi? - Eu, bem. – Acompanhou os animais até no pasto? - Acompanhei, sim. – E não viu nada no caminho?
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Contos populares do Brasil - Eu, não. – Então não viu nada? - Eu, não. Disse São Pedro à mulher que seu irmão não servia e mandou-o embora. No dia seguinte veio o segundo cunhado e fez o mesmo que o primeiro. No terceiro dia veio o caçula, ao qual São Pedro fez a mesma recomendação que fizera aos outros dois. Respondeu-lhe o rapazola com firmeza: - Deixe estar, cunhado. Não tenha medo. São Pedro, não satisfeito, acompanhou-o de longe, como tinha feito com os dois mais velhos, espiando-os. Quando as ovelhas chegaram à beira do rio, que passaram pelo gume da espada, o rapaz ficou olhando, e disse: - Assim como vocês, ovelhinhas, bichinhos de Deus, passaram, e esta espada não vos ofendeu, eu também hei de passar e ela não há de me ofender. Mal foi botando o pé na espada e esta virando-se numa ponte, passando ele perfeitamente. Quando São Pedro viu isso voltou logo para casa, para passar o dia com sua mulher, porque compreendeu que o cunhado daria conta do recado. Chegando mais adiante, viu o moço duas pedras enormes que batiam uma na outra, lançando faíscas de fogo ao redor, que fazia medo. As ovelhas passaram entre as duas pedras, sem nada sofrer. O rapaz também passou. Com muito receio, mas passou. Quando chegou mais longe, estavam dois leões, que eram uns monstros, brigando em termo de se acabar, arrancando-se os pedaços, de danados que se achavam. As ovelhas passaram entre os dois leões. O rapaz também passou. Andando um bocado, encontrou um campo coberto de capim muito verde e viçoso, onde estavam pastando uns cavalos tão magros, que estavam se quebrando pela espinha. Passaram as ovelhas e o rapaz as seguiu. Depois encontrou um campo coberto de capim seco, esturricado, e uns animais muito gordos, muito bonitos, pastando. Passaram as ovelhas e ele. Mais além deu numa fogueira enorme, donde saía cada língua de fogo que parecia um fim de mundo. As ovelhas meteram o pé dentro daquela labareda toda, passando sem se queimar. O rapaz fez o mesmo. Finalmente deu num jardim, que era uma babilonha de grande, bonito que era uma maravilha, onde as ovelhas pararam então, começando a pastar. O rapaz ficou abismado de ver tanta flor, tanta roseira vindo abaixo de rosas. Então disse: - Eu vou apanhar umas rosas para levar à minha irmã. Começou a colher rosas. Colheu, colheu, e foi botá-las dentro do chapéu, voltando para colher mais. Tornando a ir botá-las dentro do chapéu só encontrou ali cinco rosas. Disse: - Ora, senhor, as ovelhas me comeram as rosas! Foi buscar outro bocado de rosas, botou dentro do chapéu e tornou a ir buscar mais. Voltando, só encontrou cinco rosas dentro do chapéu. Estava nessa lida, abaixo e acima, quando viu as 18
Contos populares do Brasil ovelhas se prepararem para voltar para casa. Aí, ele agarrou no chapéu e nas cinco rosas, acompanhando as ovelhas. Ao chegar em casa, São Pedro o recebeu muito satisfeito.
Jantaram, conversaram muito e por fim São Pedro perguntou-lhe o que havia visto no caminho. O moço referiu tudo quanto se passara. Então São Pedro explicou-lhe: as ovelhas eram as almas dos bons; o rio, com a ponte de prata, era o Jordão, onde São João batizou Cristo; as duas pedras e os dois leões, as comadres e os compadres que brigam neste mundo e quando morrem vivem eternamente a brigar no outro; os cavalos magros pastando no campo verde, os ricos ambiciosos, que vivem neste mundo na abundância, sem nunca estarem fartos de dinheiro; os animais gordos pastando no campo seco, os pobres fartos por natureza; a fogueira, o purgatório; o jardim, o paraíso; e aquelas cinco rosas, as cinco chagas de Nosso Senhor Jesus Cristo. Depois de dito isso, São Pedro lavou os pés da mulher, lavou os do cunhado, botou os dois nas palmas da mão e subiu com eles para o céu. (MAGALHÃES, Basílio de. O folk-lore no Brasil)
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A dança de São Gonçalo e O melhor violeiro dois contos sobre o padroeiro dos violeiros
A DANÇA DE SÃO GONÇALO (conto – 1935) Atmosfera de cauda de procissão. Bodum. Os homens formam duas filas diante do altar de São Gonçalo. São Gonçalo está enfaixado como um recém nascido. Azul. Branco. Entre palmas de São José. Estrelas no céu de papel de seda. Os violeiros encabeçando as filas, puxando a reza fazem reverências. Viram-se para os outros. E os outros dançam com eles. Bate o pé no chão de terra socada. Pan-pan-pan! Pan- pan! Pan! Pan-pan-pan! Pan! Param. De repente. Inesperadamente. Para bater palmas. Plá-plá-plá-plá! Plá-plá! Plá! Plá! Plá-plá-plá! Plá-plá! Param. Para os violeiros cantarem, viola no queixo: É este o primeiro velso Qu’eu canto pra São Gonçalo... - Senta aí mesmo no chão, Benedito! É este o primeiro velso Qu’eu canto pra São Gonçalo... E o coro começa grosso, grosso. Rola, subindo. Desce, fino, fino. Mistura-se prolongase. Ôôôôh! Aaaa! Ôôôô! Ôaiiiiih! Um guincho. O violeiro de olhos apertados saúda o companheiro. E marcha seguido pela fila. Dá uma volta. Reverências para cá. Reverências para lá. Tudo sério. Volta para o seu lugar. - Entra seu Casimiro! O japonês Kashamira entra com a mulher e o filhinho brasileiro de roupa de brim. Inclina a cabeça diante de São Gonçalo. Acocora-se. O acompanhamento das violas, feitos de três compassos não cansa. Os assistentes enchem os cantos sombreados. No centro da sala de vinte metros quadrados, a lâmpada de azeite se agita. Minha boca está cantando, Meu coração lhe adorando! Cabeças mulatas espiam pelas janelas. A porta é um monte de gente. A dona da casa, desdentada, recebe os convidados.
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- Não vê que meu defunto seu Vieira tá enterrado já há dois anos... fazia mesmo dois anos agora no natar... Pan-pan-pan! Pan-pan! Pan! - A alma dele esta penando aí por esse mundo de Deus, sem pode entrá no céu... Plá-pláplá! Plá-plá! - Eu antão quis fazê esta oração pra São Gonçalo deixa ele entrá... Vou mandá fazê um barquinho da raiz de alecrim... O menino de oito anos aumenta a fila da direita. A folhinha da parede é de Empório Itália Brasil. Garibaldi tem uma bandeirinha auriverde no peito e ergue bem alto a espada. Pra embarcá meu São Gonçalo Do promá pra seu jardim. Desafinação sublime do coro. Os rezadores movimentam-se. Trocam de posição. Enfrentam-se. Dois a dois avançam, cumprimentam à esquerda, cumprimentam a direita tocam-se ombro contra ombro, voltam para seu lugar. O negro de pala é o melhor dançarino da quadrilha religiosa. São Gonçalo é um bom santo Por livrá seu pai da forca. A noite cerca de escuridão a casinha de barro. Cigarros acesos são riscos de fogo nas mãos inquietas. A dona da casa é viúva de um português. E amiga de um negro. - Não vê que o Crispim também pegou uma doença danada... não havia jeito de sará... o coitado quis até se enforcá num pé de bananeira! Artá de São Gonçalo, Artá de nossa oração! - Nóis, antão, fizemo uma premessa. Que se Crispim sarasse, nóis fazia esta festa. Foi premessa que sarando Será seu precuradô! A cabocla trata de salvar a alma do morto e o corpo do vivo. A filha bonitinha, sorri, enleada. As violas tem um som, um som só. Chega gente. São Gonçalo tava longe,
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De longe já tá bem perto... Um a um curvam-se diante do altar, gingam. O violeiro de olhos apertados está de sobretudo. Negros de pé no chão. - Nóis tamo mesmo emprestado neste mundo... Cantando andam pela salinha quente. Abençoada seja a mão Que enfeitô este oratório! O preto de pala dá um tropicão engraçado. E a mulher de azul celeste ri, amamentando o filho. Mas os violeiros esganiçam: Da dança de São Gonçalo Ninguém deve caçoá. Ôôôôh! Aaaaah! Iiiiih! São Gonçalo é vingativo: Ele pode castigá! Silêncio na assistência descalça. As bandeirinhas desenham um X de papel sobre a cabeça dos dançarinos. Atrás da casa tem cachaça do Corisco. - Depois é a veis das moça. Quem quisé pegá São Gonçalo e dançá com ele encostado no lugar doente. Onde chega os pecadô Ajoelhai, pedi perdão! O estouro dos foguetes ronca no vale estreito. São fagulhas os vagalumes. De uma fogueira que não vê. Lá dentro, o mesmo ritmo. Faz já uma hora monótona. São Gonçalo está sentado Com sua fita na cintura. O caboclo louro puxa da faca e esgravata o dedão do pé. - São seis reza de hora e meia, mais ou menos... pro santo ficá satisfeito. Lá no céu será enfeitado Pla mão de Nossa Senhora. Pan-pan-pan-pan! Pan-pan! Plá-plá-pláplá! Plá-plá! Plá! Plá-plá-plá-plá! Oratório tão bonito
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C’uma luz a alumiá! Do alto do montão de lenha a gente vê no fundo São Paulo estirado. Todo aceso. Do outro lado, a Serra da Cantareira não deixa a vista passar. Nosso céu tem mais estrelas. São Gonçalo foi em Roma Visitá Nosso sinhô. - Só acaba amanhã, sim sinhô! Vai até o meio dia, sim sinhô! E acaba tudo ajoeiado. Ôôôôh! Aaaah! Ôaôôaaaôh! Ôôôiiiih! Parece um órgão no princípio. Cantochão. No fim é um carro de boi. Senhora de Deus convelso, Padre, Filho, Espírito Santo! Quem guincha é o caipira de bigodes exagerados. Esta crônica (ou conto?) de Antônio de Alcântara Machado figura no volume póstumo Mana Maria. O autor publicara os livros de contos Brás, Bexiga e Barra Funda e Laranja da china e o de impressões de viagem Pathé Baby. http://www.jangadabrasil.com.br/janeiro17/im17010a.htm (RIEDEL, Diaulas (org.). Histórias e paisagens do Brasil, O planalto e os cafezais)
O MELHOR VIOLEIRO Certa vez, dois moradores de Tatuí discutiam: - O maió tocadô de viola mora pras banda do Tietêr. – Quar! O mió e o maió de tudo quanto véve nesta redondeza mora em Pricicaba! - Isso é que não! São Gonçalo é o maió! - Tá enganado, home, o maiorá é Jesus Cristo! E não pode sê? - Uai… pode… né… (Recolhido em Sorocaba)
(XIDIEH, Oswaldo Elias.Narrativas populares) Vocabulário: Bodum - Transpiração fétida; Fedor de bode não castrado. Cantochão - Canto litúrgico, arrastado. 23
Contos populares do Brasil Esgravatar - Remexer ou escarafunchar com as unhas ou com instrumento apropriado. Veja também: • "Entre as características do São Gonçalo português contam-se: casamenteiro, tocador de viola, dançarino". Conheça a dança de São Gonçalo. • Rodas de São Gonçalo. Alguns versos cantados em Goiás e no Piauí. • O culto a São Gonçalo em diversas regiões do Brasil http://www.jangadabrasil.com.br/janeiro17/im17010a.htm
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Duas histórias com o urubu e o sapo recolhidas pelo barão Santana Néri
O urubu e o sapo (festa no céu) Um dia o sapo foi a casa do urubu. – "Que vai fazer hoje, compadre?" perguntou-lhe – "Devo ir a uma festa no céu..., mas chove neste momento e aproveito a chuva para tirar minha sesta.”. O urubu tinha feito seus preparativos para ir à festa: tinha mesmo colocado seu chapéu de forma alta sobre o parapeito que cercava a varanda de sua casa. O sapo fingiu despedir-se e meteu-se furtivamente no chapéu. Depois da sesta, o urubu vestiu-se apressadamente, pôs o chapéu na cabeça e, sem saber, levou consigo o sapo que ali achava-se encolhido. Chegou ao céu. Quando dançava, viu o sapo: - Ah, você aqui?... Que caminho você tomou para chegar até aqui? - Tomei um caminho que você não conhece, respondeu o sapo. O urubu desconfiou logo que o sapo zombava. Antes da festa terminar, o sapo meteu-se novamente na cartola do urubu. Este partiu do céu, cartola na cabeça. No caminho, descobriu que o sapo se achava ali escondido. Tirou a cartola e o sapo caiu, indo espatifar-se numa pedra!
Ainda o urubu e o sapo Outro dia, o urubu e o sapo foram convidados para uma festa no céu. O urubu para debicar do sapo, foi à casa dele e lhe disse: "Então, compadre sapo, já sei que tem de ir ao céu, e eu quero ir em sua companhia". "Pois não, disse o sapo, eu hei de ir contanto que você leve a sua viola." Não tem dúvida; mas você há de levar o seu pandeiro", respondeu o urubu. O urubu se retirou, ficando de voltar no dia marcado para a viagem. Nesse dia se apresentou em casa do sapo, e este lhe recebeu muito bem, mandando-o entrar para ver sua comadre e seus afilhados. E quando o urubu estava entretido com a sapa e os sapinhos, o sapo velho entroulhe na viola, e disse de longe: "Eu, como ando um pouco devagar, compadre, vou indo adiante". E deixou-se ficar bem quietinho dentro da viola. O urubu, daí a pedaço, se despediu da comadre e dos afilhados, e agarrou na viola e largou-se para o céu. Lá chegando, lhe perguntaram logo pelo sapo, ao que ele respondeu: "Ora, nem esse moço vem cá; quando lá embaixo ele não anda ligeiro, quanto mais voar!..." Deixou a viola e foi comer, que já eram horas. Estando todos reunidos nos comes e bebes, pulou, sem ser visto, o sapo de dentro da viola, dizendo: "Eu aqui estou!" Todos se admiraram de ver o sapo naquelas alturas. Entraram a dançar e brincar. Acabado o samba, foram todos se retirando, e o sapo, vendo o urubu 25
Contos populares do Brasil distraído, entrou-lhe outra vez dentro da viola. Despediu-se o urubu e largou-se para a terra. Chegando a curta altura, o sapo mexeu-se dentro da viola e o urubu virou-a de boca para baixo, e o sapo despencou-se de lá de cima, e vinha gritando: "Arreda pedra, senão te quebras!..." O urubu: "Qual?! qual?!, compadre sapo bem sabe voar!..." O sapo caiu e ralou-se todo, por isso é que ele é meio fouveiro. (NÉRI, Frederico José de Santana. Folclore brasileiro)
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O erro do burro antiga história de rodas sertanejas
ERRO DO BURRO
Nas rodas sertanejas, antigamente se contava certa história de bichos, que ainda hoje não é esquecida. Vez por outra algum velho está a relembrá-la com todo os rique-fifes. História simples, sem maiores artifícios, não escondendo, entretanto, o fator moral como razão de ser da passagem pitoresca ocorrida entre animais que falavam, discutiam e agiam de conformidade com os seus interesses.
O fato é que o burro se encontrava muito de seu, pastando nos campos, comendo panasco verde – e a sua atitude pacata até despertava inveja dos próprios homens. Aquilo sim, é que era felicidade sem perturbações incômodas. Se chegava a hora de trabalhar, o burro trabalhava no duro, sem pedir misericórdia, sustentando o peso do serviço de carregamento e, ainda pior do que isso, sob o chicote dos moleques condutores ou boiadeiros malvados. Também do boleeiro, pois puxava o cabriolet do senhor e, diziam, fazia-o com uma competência ajudada pela carícia e pela ternura de servir. Embora o sangue mau do condutor.
Realmente, o burro era detentor de bondade extraordinária: não fazia nada de cara fechada, era sempre alegre que costumava enfrentar o serviço. Pois, em compensação, os instantes de folga eram compridos por demais, às vezes duravam dias e semanas. Comia o panasco e bebia no tanque de pedra. Andava gordo, sereno e venturoso. De que se queixar? A vida lhe sorria. Não era assaltado por nenhuma aspiração que não fosse sossego e paz, tranquilidade e bonança, trabalho e repouso, boa mesa e sono solto. A liberdade era tudo. Ela rodava-lhe em torno. Os homens falavam em democracia. Democracia deveria ser mais ou menos aquilo: liberdade e abastança, barriga cheia e despreocupação pelo que venha a suceder.
Mas de repente, quando se achava pensando nessas coisas amáveis, surge pela frente a raposa (a comadre raposa é sempre a mesma figura, no litoral, na mata e no sertão: aje astuciosamente e, de ordinário, com requintes de pervesidade criminosa) que, desde muito, espiava aquela beleza de existência retirada, sem imprevisto, sem qualquer sinal a mais ou a menos, sem a nota de altos e baixos. Que coisa? Aquilo precisava de sangue novo. Estava reclamando mais movimento, mais ação e, portanto, mais intimidade com a vida. Pois esta andava monótona para os espíritos inquietos e inteligentes, requerendo novidade e que, neste sentido, se fizesse o maior esforço de criação.
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Pensou indagando de si mesmo:
- Perto daqui não existe chiqueiro de galinhas?
Então a raposa dispôs-se à luta, procurando o burro, com ele mantendo longa conversação, fazendo-lhe sentir a necessidade de entrar por outros caminhos menos insípidos.
– Olhe, eu conheço a onça pintada que vive na Furna da Alegria. É um prazer visitá-la. Tem vivido muito e passado pelo que o diabo jamais imaginou. Nos meus momentos de angustia é para lá que rumo os meus passos.
– Mas eu não sofro nada, disse o burro. Tenho saúde perfeita. E não me queixo de coisa alguma.
– Isso não significa nenhuma novidade. Também quando me sinto feliz vou bater à porta da amiga. Ouço-lhe a voz cariciosa dos conselhos. Fico ainda mais alegre e cheia de felicidade. A tristeza vai-se embora.
Perversa, a raposa não desanimava na cantada, tudo fazendo para demover o burro do lugar onde se encontrava, pois não tinha ofício nem obrigação, se saía era sempre a passeio e, à noite, os galinheiros estavam à disposição de suas garras. Vagabunda, faladeira, mexeriqueira. Gostava e alimentava a perversidade como estigma da espécie a que pertencia.
Enquanto falava naquele tom, no íntimo bem sabia que a onça pintada era velha e encarquilhada, má, vivendo faminta e assaltando os bichos que tinham o topete de andar por perto de sua morada.
– Vou fazer essa visita que me pede.
E, decidido, largou-se o burro para o lugar em que vivia a onça tão boa, como afirmava a raposa, pacífica e generosa. Chegou às imediações da Furna da Alegria. Viu a bicha cheia de pintas pretas, saindo com um ar de mansidão, se arrastando, com os olhos fuzilando e, dando 28
Contos populares do Brasil salto ágil, procurou atingir o limite onde estava o burro. Este desconfiou da parada. E pernas para que te quero, danou no mundo, a galope, regressando num fôlego aos pastos de sua deliciosa mansão. Não sairia mais dali. E comentando com os botões:
- A onça queria me botar no papo. Faminta como quê. Essa cachorra da raposa que me apareça para eu lhe dar o troco merecido.
Os dias correram. Certa vez chega inesperadamente a comadre com toda delicadeza e a pedir desculpa. Aquilo fora um horror. Como obter o perdão de seu amigo? Não tinha direito a isso. Era uma pobre miserável, merecia a morte e, assim, lamentou-se até conseguir manifestações de ternura do burro. Animou-se a maliciosa hipócrita dizendo:
- A onça, eu sabia, estava doente há várias semanas e foi exatamente na ocasião em que você apareceu que ela, zangada e faminta, não o conhecendo, atirou-se com a violência que costuma empregar contra suas presas.
Adiantou cautelosa
- Porém eu já fiz as necessárias recomendações e ela, agora ciente, pede-lhe mil desculpas, contrariada que está e, sendo possível, espera-o quando você quiser ou achar conveniente.
– Bem, neste caso irei mais tarde.
E, de fato, renovou a dose, isto é: seguiu o caminho já de seu conhecimento. Foi e não voltou. A onça banqueteou-se a semana inteira com mesa opípara. Fazia muito tempo até que não saboreava carne tão gostosa. Carne macia e cheia de vitaminas.
A raposa alcançou o que escondia: os pastos precisavam ficar abandonados para o senhor da casa-grande, sem querer perdê-los (outro animal para soltar não possuía nas redondezas; o gado andava no cercado; apenas o burro estava privando de uma consideração excepcional; era privilégio forçado) e, ante a evidência, abrisse o chiqueiro e deixasse as frangas e capões invadi-lo para o mais gordo aproveitamento. E ainda teria dito consigo mesmo, apreciando os fatos em que fora figura principal:
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Contos populares do Brasil - Vá ser burro assim no inferno, na casa do diabo que o carregue. (Vidal, Ademar. Lendas e superstições. p.501-503)
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O filho da Burra colhido por Luís da Câmara Cascudo
O Filho da Burra Um casal teve um filho tão grande que era uma coisa por demais. Meses depois o homem e a mulher morriam e a criança foi criada por uma burra. O menino formou, botou corpo, e só o chamavam Filho da Burra. Já grande, Filho da Burra foi ganhar a vida e empregou-se num reinado onde mandou fazer uma bengala de ferro. O ferreiro fez uma bengala da grossura de um braço e Filho da Burra quando experimentou dobrou o ferro como se fosse um fio de arame. Mandou fazer outra, mais grossa, que ficou do seu gosto. Como o seu patrão não o podia sustentar, porque ele comia dois bois por dia e quatro sacas de farinha, o rapaz largou o emprego e saiu pelo mundo. Encontrou um homem arrancando pé de pau com raízes e tudo e rolando para um lado. — Como você se chama? — Me chamo Rola-Pau! — Vamos ganhar a vida juntos? — Vamos! Saíram os dois e lá adiante viram outro camarada que empurrava as pedras como se fosse brinquedo, tirando todas do lugar. — Como se chama você? — Me chamo Rola-Pedra. — Vamos ganhar a vida juntos? — Vamos! Foram os três andando até que pararam numa campina bonita e aí ficaram. Fizeram uma casinha de palha e todo dia, dois iam caçar e um ficava para fazer a comida num tacho bem grande. Ficou Rola-Pau e os companheiros foram para os matos. Quando o almoço ia ficando pronto apareceu um bicho enorme roncando e pedindo todo de comer. — Ou como o almoço ou como você! Rola-Pau trepou-se na cocuruta da casinha, com um medo doido e o bichão devorou o almoço todo. Quando Filho da Burra e Rola-Pedra voltaram e não viram a comida, ficaram para morrer de raiva. Ficou então Rola-Pedra e, nas horas costumeiras, o bicho chegou e Rola-Pedra botouse a ele brigando. Brigaram muito tempo e Rola-Pedra vendo que morria, largou e deu uma
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Contos populares do Brasil carreira de levantar poeira. Filho da Burra, quando chegou e não teve almoço, teve uma raiva danada. No terceiro dia ficou ele preparando a comida. O bicho apareceu com a mesma conversa. Filho da Burra largou-lhe uma bengalada com a bengala de ferro que pegou bem no focinho do bicho e este não quis mais peleja. Ganhou os matos e Filho da Burra foi atrás, pega aqui, pega acolá, até que o bicho pulou num buraco e sumiu-se de terra a dentro. Filho da Burra marcou bem o canto e voltou para a casinha. No outro dia veio com os dois companheiros e trouxeram o tacho amarrado numas cordas compridas. Filho da Burra meteu-se no tacho e os dois arriaram até embaixo. Lá no fundo da terra era espaçoso e tinha casas. Na primeira casa que Filho da Burra bateu apareceu uma moça bonita e disse que, pelo amor de Deus, ele fosse embora porque ali vivia uma serpente que matava toda a gente. O rapaz respondeu que viera para lutar com a serpente e matá-la. A moça explicou: — Não pode ser. Quando ela cansa de brigar e cai para uma banda, pede pão e vinho. Come e bebe e fica de novo forte, vencendo todo o mundo. — Pois a senhora, se quiser ficar livre, em vez de dar o vinho e o pão à serpente, dê a mim! A moça prometeu. A serpente foi chegando, quebrando árvores e fazendo um barulho de ventania. O rapaz escondeu-se detrás da porta. A serpente foi entrando e fungando: — Aqui me cheira a sangue real! Aqui me cheira a sangue real! A moça dizia que não havia ninguém mas a serpente tanto procurou que viu Filho da Burra e voou em cima dele para matá-lo. Filho da Burra passou-lhe a bengala de ferro que saía fumaça. Foi uma briga que não tinha fim, até que caíram, um para cada lado, sem forças. A moça, mais que depressa, trouxe pão e vinho que a serpente estava pedindo, e deu ao rapaz que comeu e bebeu, tornando a ficar forte. Levantou-se e sentou a bengala na cabeça da serpente esbandalhando-a. A moça ficou satisfeita e disse que tinha mais duas irmãs encantadas, morando em duas casas adiante. Filho da Burra foi para a segunda e lá a moça contou a mesma coisa. O rapaz fez a mesma proposta de comer o pão e beber o vinho e a moça aceitou. Escondeu-se e esperou o bichoferoz que chegou como um pé-de-vento, derribando tudo: — Aqui me cheira a sangue real! Aqui me cheira a sangue real! A moça negou, negou, mas o bicho caçou o rapaz e o encontrou, botando-se a ele e brigando com vontade. O bicho era terrível, mas a bengala de ferro não fazia graça e os dois inimigos terminaram sem força para acabar o combate, caindo no chão os dois. O bicho pediu o vinho e o pão, e a moça foi buscar mas entregou ao rapaz que esmagou a cabeça do monstro. Passou para a terceira casa e lá era um macacão que morava com a pobre moça. Aconteceu o mesmo. O macacão quando chegou farejando: — Aqui me cheira a sangue real! Aqui me cheira a sangue real! 32
Contos populares do Brasil Foi procurando e achou o rapaz, partindo para cima dele. Filho da Burra enfincou-lhe a bengala com vontade. Briga lá e briga cá, até que uma bengalada raspou a cabeça do macacão e uma orelha caiu no chão. Filho da Burra agarrou a orelha e meteu-a no bolso porque o macacão sumiu-se, correndo como um condenado. O rapaz juntou as três moças e os tesouros que elas tinham e foi para onde estava o tacho. Balançou na corda e o tacho foi puxado por Rola-Pau e Rola-Pedra, cheio de dinheiro. Depois subiram as três moças e o tacho desceu. Imaginando que os dois camaradas tivessem maldando a morte dele para ficar com as moças e o tesouro, Filho da Burra botou uma pedra bem grande no tacho e balançou a corda. Subiram o tacho até quase em cima e depois cortaram as cordas, despencando tudo para baixo. Rola-Pau e Rola-Pedra já tinham escolhido as duas moças para noivas e acharam que deviam deixar Filho da Burra no buraco para gozarem a riqueza que tinham ganho. Foram para o reinado do pai das três moças. Ficando lá embaixo, Filho da Burra estava meio triste quando apareceu o diabo, que era o macacão, gritando e saltando: — Filho da Burra, me dá minha orelha! — Não dou. — Filho da Burra, me dá minha orelha que eu te tiro daqui! — Tire primeiro. O diabo virou-se numa árvore e o rapaz subiu por ela até fora do buraco. Quando ficou livre, voltou o diabo pedindo a orelha. — Só dou a orelha se você me levar para o reinado! — Levo. Vou me virar num cavalo e você monte, feche os olhos e só abra quando eu parar! Virou-se num cavalo, selado, e Filho da Burra montou, fechou os olhos. Quando o cavalo parou, ele abriu e estava no reinado do pai das moças. Rola-Pau e Rola-Pedra, numa carruagem, tinham ido casar na igreja. No palácio só ficara o rei e a princesa mais moça. Filho da Burra, quando o diabo tornou a pedir a orelha, disse que queria se encontrar dentro do palácio real: — Feche os olhos! Ele fechou e quando abriu, estava no salão do rei. Chamou o rei e contou toda a sua história. O rei não queria acreditar na malvadeza dos futuros genros. O rapaz tirou do bolso um lenço e mostrou a ponta da língua da serpente que vivia com a princesa mais velha, a orelha da fera que estava com a do meio e a orelha do macacão que prendera a caçula. O rei chamou a princesa e esta confirmou tudo. Mandaram buscar Rola-Pau e Rola-Pedra que voltaram com os convidados. Quando foram vendo Filho da Burra 33
Contos populares do Brasil no salão, correram para a janela e saltaram do sobrado abaixo, quebrando a cabeça nas pedras do calçamento, morrendo imediatamente. Filho da Burra casou com a princesa mais moça e viveu muito feliz. E a orelha do macacão? O diabo recebeu e voltou para os infernos. (Informante: Cícero Salvino de Oliveira. Alexandria, Rio Grande do Norte) (Cascudo, Luís da Câmara. Contos tradicionais do Brasil. Belo Horizonte, Editora Itatiaia; São Paulo, Editora da Universidade de São Paulo, 1986, p.77-80 [Reconquista do Brasil, 2ª série, v.96])
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História da coca, conto acumulativo HISTÓRIA DA COCA Uma vez um menino foi passear no mato e apanhou uma coca; chegando em casa, deu-a de presente à avó, que a preparoiu e comeu. Mais tarde, sentiu o menino fome e voltou para buscar a coca, cantando: Minha vó, me dê minha coca Coca que o mato me deu Minha vó comeu minha coca Coca recoca que o mato me deu A avó, que já havia comido a coca, deu-lhe um pouco de angu. O menino ficou com raiva, jogou o angu na parede e saiu. Mais tarde, arrependeu-se e voltou, cantando: Parede, me dê meu angu Angu que minha vó me deu Minha vó comeu minha coca Coca recoca que o mato me deu A parede, não tendo mais o angu, deu-lhe um pedaço de sabão. O menino andou, andou, encontrou uma lavadeira lavando roupa sem sabão e disse-lhe: — Você lavando roupa sem sabão, lavadeira? Tome este pra você. Dias depois, vendo que a sua roupa estava suja, voltou para tomar o sabão, cantando: Lavadeira, me dê meu sabão Sabão que a parede me deu Parede comeu meu angu Angu que minha vó me deu Minha vó comeu minha coca Coca recoca que o mato me deu A lavdeira já havia gasto o sabão: deu-lhe então uma navalha. Adiante, encontrando um cesteiro cortando o cipó com os dentes. Disse-lhe: — Você cortando o cipó com os dentes?... Tome esta navalha. O cesteiro ficou muito contente e aceitou a navalha. No dia seguinte, sentindo o menino a barba grande, arrependeu-se de ter dado a navalha (ele sempre se arrependia de dar as coisas) e voltou para buscá-la, cantando: Cesteiro me dê minha navalha Navalha que lavadeira me deu Lavadeira gastou meu sabão Sabão que parede me deu Minha vó comeu minha coca
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Coca recoca que o mato me deu O cesteiro, tendo quebrado a navalha, deu-lhe, em paga um cesto. Recebeu o cesto e saiu dizendo consigo: — Que é que eu vou fazer com este cesto? No caminho, encontrando um padeiro fazendo pão e colocando-o no chão, deulhe o cesto. Mais tarde, precisou do cesto e voltou para buscá-lo com a mesma cantiga. Padeiro me dê meu cesto Cesto que o cesteiro me deu O cesteiro quebrou minha navalha Navalha que a lavadeira me deu Lavadeira gastou meu sabão Sabão que parede me deu Minha vó comeu minha coca Coca recoca que o mato me deu O padeiro, que tinha vendido o pão com o cesto, deu-lhe um pão. Saiu o menino com o pão, e, depois de muito andar, não estando com fome, deu o pão a uma moça, que encontrou tomando café puro. Depois, sentindo fome, voltou para pedir o pão à moça e canta: Moça me dê meu pão Pão que o padeiro me deu O padeiro vendeu meu cesto Cesto que cesteiro me deu O cesteiro quebrou minha navalha Navalha que a lavadeira me deu Lavadeira gastou meu sabão Sabão que parede me deu Minha vó comeu minha coca Coca recoca que o mato me deu A moça havia comido o pão; não tendo outra coisa para lhe dar, deu-lhe uma viola. O menino ficou contentíssimo; subiu com a viola numa árvore e se pôs a cantar: De uma coca fiz angu De angu fiz sabão De sabão fiz uma navalha Duma navalha fiz um cesto De um cesto fiz um pão De um pão fiz uma viola Dinguelingue que eu vou para Angola
(Em Pedreira, Ester. "História da coca". Revista Brasileira de Folclore, ano 11, nº 31, Rio de Janeiro, setembro/dezembro de 1971, p.319-322)
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O homem que pôs um ovo registrado por Luís da Câmara Cascudo O HOMEM QUE PÔS UM OVO Um marido tinha uma mulher muito gabola de saber guardar segredo. Vivia dizendo que as outras eram saco rasgado e ninguém podia confiar no juízo dela. Tanto se gabou e se gabou que o marido pensou em fazer uma experiência para ver se a mulher era mesmo segura de língua. Uma noite, voltando tarde para casa, o homem trouxe um grande ovo de pata, que é muito maior do que os da galinha e deitou-se na cama. Lá para as tantas da madrugada, acordou a mulher, todo assustado e pedindo que ela guardasse todo segredo, contou que acabara de pôr um ovo! A mulher só faltou morrer de admiração mas o marido mostrou o ovo e ela acreditou, jurando que nem ao padre confessor havia de dizer o que soubera. Ora muito bem. Pela manhã, assim que o marido saiu para o trabalho a mulher correu para a vizinha e, pedindo segredo de amiga, contou que o marido pusera um ovo na cama e estava todo aborrecido com essa desgraça. A vizinha prometeu que ninguém saberia mas passou o dia contando o caso, ao marido, aos vizinhos, aos conhecidos, sempre pedindo segredo. E como quem conta um conto aumenta um ponto, toda vez que a história passava adiante o ovo ia mudando de número. Primeiro era um, depois dois, depois três. Ao anoitecer já o homem pusera meio cento de ovos. Voltando para casa, o marido encontrou-se com um amigo e este lhe disse que havia novidade naquela rua. - Qual é a novidade? - Não soube? Uma cousa esquisita! Imagine que um morador nesta rua pôs, penso eu, quase um cento de ovos, seu mano! Diz que está muito doente e que cada ovo tem duas gemas. É o fim do mundo. O marido não quis saber quem estava de vigia. Entrou em casa, chamou a mulher, agarrou uma bengala e passou-lhe a lenha com vontade, dando uma surra de preceito, que a deixou de cama, toda doída e com panos de água e sal. Depois o homem saiu contando como o caso começara e a mulher ficou desmoralizada. Por isso é que os antigos diziam que: Quem tiver o seu segredo Não conte a mulher casada Ela conta ao seu marido O marido aos camaradas... (CASCUDO, Luís da Câmara. Contos tradicionais do Brasil)
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O homem que se julgava sábio um conto da tradição africana
por Téo Brandão
O HOMEM QUE SE JULGAVA SÁBIO Uma das lendas contadas por muitos dos antepassados deixou registrado que em uma certa ocasião se deu um grande roubo que chegou a abalar diversas cidades, e cuja tentativa a fim de descobrirem tão grande quadrilha de ladrões, causadores de semelhante atentado nos haveres alheios, causou grandes dificuldades. O roubo foi de tamanho vulto que o rei anunciou uma conferência, com todos os sábios da terra e de outros lugares, para se reunirem, a fim de consultarem a maneira que deveria ser empregada, com todos os esforços, para descobrirem o paradeiro dos objetos roubados. Nessa mesma cidade, em um bairro um pouco afastado do meio social, existia um homem por nome Ologbon que, confiado num grande trabalho que Eleda (anjo da guarda ou creador) lhe mandou fazer, se intitulava de muito sábio e tinha a mania de dizer que havia de ser rico um dia. No dia que o rei determinou, foi realizada a conferência no palácio, sem que nenhum daqueles grandes sábios chegasse à conclusão do que haviam de fazer para descobrir a quadrilha dos ladrões. Depois que terminou a audiência e que todos se retiraram, o rei, bastante aborrecido e preocupado com aquela situação, andava de um lado para outro pensando de que forma podia solucionar aquele grande problema. Foi quando apareceu um dos sentinelas, acompanhado de um homem que, por despeito, foi dizer ao rei para mandar chamar Ologbon, porque, na qualidade de sábio, era o único que podia dar a solução daquele grave problema. O rei imediatamente fez vir Ologbon à sua presença, sob pena de morte, e disse o que queria dele. Ologbon não se fez de rogado, respondendo ao rei que era com grande prazer que aceitava aquela incumbência de descobrir todos os respectivos larápios, e pediu que lhe concedessem trinta dias para poder resolver o problema, os quais foram pelo rei concedidos. Ologbon voltou para casa pensando como ia se ver livre daquilo que tinha prometido fazer ao rei para resolver o caso. No primeiro dia ele pegou um caroço de milho e disse: — Nenhum deles (querendo dizer com isso que esgotava o primeiro dia dos marcados), e botou o caroço do milho dentro de uma latinha. É de notar que a quadrilha de ladrões foi sabedora de que o rei tinha incumbido aquele homem, que se chamava Ologbon, arvorado a grande sábio, para descobrir o roubo e, por desconfiança, o chefe da quadrilha mandou um dos ladrões ficar na beira da casa de Ologbon, para escutar qualquer coisa a respeito deles; foi quando o ladrão ouviu a voz de Ologbon dizendo dentro de casa:
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Contos populares do Brasil — Este é um deles — pegando em um caroço de milho e jogando dentro da latinha. E assim sucessivamente, cada dia vinha um dos ladrões, e Ologbon sempre colocando mais um caroço de milho na latinha dizendo — Esse é mais um deles —, até quando completou treze dias. Aí os treze ladrões resolveram ir diretamente à casa de Ologbon, confessaram tudo o que tinham feito e pediram a ele para não descobrir o nome deles como autores do roubo. Ologbon ficou todo confuso e atrapalhado, com a surpresa inesperada, porém logo se refez, prometendo fazer o que fosse possível por eles. Imediatamente, Ologbon foi ao palácio do rei em companhia dos ladrões, comunicar que não precisava do prazo de 30 dias para resolver o problema, pois já estava senhor de todo o ocorrido, e pediu ao rei misericórdia para os ladrões que ele ia denunciar. O rei, muito contente pela notícia que Ologbon já tinha dado, prometeu diminuir a pena dos ladrões o máximo possível. Ologbon então contou tudo o que sabia do roubo e apresentou os ladrões, que logo fizeram a entrega do roubo, quase intacto, ao rei. O rei, muito satisfeito, convidou a todos os prejudicados para irem apanhar seus pertences, gratificando Ologbon com muito dinheiro, juntamente com todas as pessoas que tinham sido roubadas, ficando Ologbon milionário e com o título de primeiro conselheiro da coroa. Ele disse e esperou, até que o dia de ser rico e sábio chegou. Como se está a ver, é uma versão obtida da tradição africana na Bahia, que narra apenas o episódio principal do raconto, sem a menor referência aos episódios secundários das demais versões brasileiras ou universais. (Em Brandão, Téo. Seis contos populares do Brasil. Rio de Janeiro, Instituto Nacional do Folclore; Maceió, Universidade Federal de Alagoas, 1982, p.60)
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As irmãs tatas e Mostrando as prendas recolhidos por Luís da Câmara Cascudo AS IRMÃS TATAS Eram quatro irmãs tatibitates e a mãe delas tinha muito desgosto com esse defeito. Como as queria casar, aconselhava que não falassem diante de gente estranha dando uma impressão má. – Quem falar não casará -, ameaçava a velha. Uma vez, saíra a mãe, e as quatro moças estavam em casa quando apareceu um rapaz bem vestido, pedindo um copo d’água para beber. A mais velha correu para buscar a bilha, mas o fez tão estouvadamente que lhe escapou das mãos e espatifou-se no chão. A moça, não se contendo, exclamou: - Lá si quêbou a tatinha de mamãe! (Lá se quebrou a quartinha de mamãe!) A segunda: - Que si quêbou, que si québásse! (Que se quebrou, que se quebrasse!) A terceira, lembrada das recomendações maternas: - Mamãe num dissi que a genti num fáiásse? (Mamãe não disse que a gente não falasse?) A última, tranquila pela sua conduta: - Eu cumu nun faiêi, cazaêi! (Eu, como não falei, casarei!) MOSTRANDO AS PRENDAS Três moças vaidosas receberam presentes muito bonitos, um anel, um par de brincos e uns sapatinhos de baile, todos obra de luxo e vistosos. Um dia receberam elas uma visita e para mostrar os presentes, chamando atenção sobre os mesmos, imaginaram uma cena que foi assim: A mais velha, apontando com o dedo onde brilhava o anel, indicou a sala: - Negra, vai varrer esta sala! A do meio, sacudindo a cabeça e fazendo faiscar os brincos, completou: - Que sala suja! A última, passando o pé no chão, concluía: - Neste canto já está limpo! Neste canto já está limpo! E as três mostraram as ricas prendas que tinham recebido. (CASCUDO, Luís da Câmara. Contos tradicionais do Brasil)
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Jesus e o tatu colhida por Rossini Tavares de Lima
JESUS E O TATU Recolhido por Rossini Tavares de Lima, no bairro do Brás, São Paulo, 1959 O tatu é conhecido como animal que não tem compaixão por ninguém. Jesus quis então ver se era verdade. Transformou-se num menino pobre e começou a chorar numa manhã de frio, junto à casa onde morava um tatu. O tatu, ao sair, viu o menino tremendo de frio e fingiu não enxergá-lo. Apressou até o passo, com medo que o menino lhe pedisse alguma coisa. Quando voltou para casa, Jesus, disfarçado no menino, disse ao tatu: "Senhor tatu, tenho frio." O tatu mandou que ele corresse para esquentar. Jesus disse que a noite já vinha chegando e a chuva estava forte. O tatu mandou que fizesse um buraco para se abrigar. O menino, que era Jesus, disse que não tinha força, pois não tinha comido naquele dia. E perguntou, por que o tatu não lhe dava a metade do seu abrigo como o Senhor mandava, já que Deus tinha lhe dado um lindo poncho e unhas para que ele construísse sua casa. O tatu disse que agradecia muito a Deus por ter lhe dado tudo isso, mas não iria rasgar o seu poncho para dar a metade a um vagabundo. Dizendo isso, o tatu retirou-se para sua cova. Jesus então falou que jamais sairia do corpo do tatu o poncho que possuía, ainda que fizesse calor. E até hoje, quando o homem assa o tatu para comê-lo, não lhe tira o casco. (Lima, Rossini Tavares de. Abecê do folclore. 4ª ed. São Paulo, Ricordi, sd, p.42)
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O macaco e o rabo,
conto acumulativo em duas versões
por Sílvio Romero O MACACO E O RABO (em duas versões recolhidas por Sílvio Romero, a primeira em Sergipe e a segunda em Pernambuco) I m macaco uma vez pensou em fazer fortuna. Para isso foi-se colocar por onde tinha de passar um carreiro com seu carro. O macaco estendeu o rabo pela estrada por onde deviam passar asrodeiras do carro. O carreiro, vendo isso, disse: - Macaco, tira teu rabo do caminho, eu quero passar. – Não tiro, - respondeu o macaco. O carreiro tangeu os bois, e o carro passou por cima do rabo do macaco, e cortou-o fora. O macaco, então, fez um barulho muito grande: - Eu quero meu rabo, ou então dê-me uma navalha… O carreiro lhe deu uma navalha, e o macaco saiu muito alegre a gritar: - Perdi meu rabo! Ganhei uma navalha!…Tinglin, tingilin, que vou para Angola!… Seguiu. Chegando adiante, encontrou um negro velho, fazendo cestas e cortando os cipós com o dente. O macaco: - Oh, amigo velho, coitado de você! Ora, está cortando os cipós com o dente… tome esta navalha. O negro aceitou, e quando foi partir um cipó, quebrou-se a navalha. O macaco abriu a boca no mundo e pôs-se a gritar: - Eu quero minha navalha, ou então me dê um cesto! O negro velho lhe deu um cesto e ele saiu muito contente gritando: - Perdi meu rabo, ganhei uma navalha, perdi minha navalha, ganhei um cesto… Tinglin,tinglin, que vou pra Angola! Seguiu. Chegando adiante, encontrou uma mulher fazendo pão e botando na saia. – Ora, minha sinhá, fazendo pão e botando na saia! Aqui está um cesto. A mulher aceitou, e, quando foi botando os pães dentro, caiu o fundo do cesto. O macaco abriu a boca no mundo e pôs-se a gritar: 42
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- Eu quero o meu cesto, quero o meu cesto, senão me dê um pão! A mulher deu-lhe o pão, e ele saiu muito contente a dizer: - Perdi meu rabo, ganhei uma navalha, perdi minha navalha, ganhei um cesto, perdi meu cesto, ganhei um pão… Tinglin, tinglin, que vou pra Angola! E foi comendo o pão. II ma ocasião achavam-se na beira da estrada um macaco e uma cotia e vinha passando na mesma estrada um carro de bois cantando. O macaco disse para a cotia: - Tira o teu rabo da estrada, senão o carro passa e corta. Embebido nesta conversa, não reparou o macaco que ele é que corria o maior risco, e veio o carro e passou em riba do rabo dele e cortou. Estava um gato escondido dentro de uma moita, saltou no pedaço do rabo do macaco e correu. Correu também o macaco atrás, pedindo o seu pedaço de rabo. O gato disse: - Só te dou, se me deres leite. – Onde tiro leite? – disse o macaco. Respondeu o gato: - Pede à vaca. O macaco foi à vaca e disse: - Vaca, dá-me leite para dar ao gato, para o gato dar-me o meu rabo. – Não dou; só se me deres capim. – disse a vaca. – Donde tiro capim? - Pede à velha. – Velha, dá-me capim, para eu dar à vaca, para a vaca dar-me leite, o leite para o gato me dar o meu rabo. – Não dou; só se me deres uns sapatos. – Donde tiro sapatos? - Pede ao sapateiro. – Sapateiro, dá-me sapatos, para eu dar à velha, para a velha me dar capim, para eu dar à vaca, para a vaca me dar leite, para eu dar ao gato, para o gato me dar o meu rabo. 43
Contos populares do Brasil – Não dou; só se me deres cerda. – Donde tiro cerda? - Pede ao porco. – Porco, dá-me cerda, para eu dar ao sapateiro, para me dar sapatos, para eu dar à velha, para me dar capim, para eu dar à vaca, para me dar leite, para eu dar ao gato, para me dar o meu rabo. – Não dou; só se me deres chuva. - Donde tiro chuva? - Pede às nuvens. – Nuvens, dai-me chuva, para o porco, para dar-me cerda para o sapateiro, para dar-me sapatos para dar à velha, para me dar capim para dar à vaca, para dar-me leite para dar ao gato, para dar meu rabo… - Não dou; só se me deres fogo. – Donde tiro fogo? - Pede às pedras. – Pedras, dai-me fogo, para as nuvens, para a chuva para o porco, para cerda para o sapateiro, para sapatos para a velha, para capim para a vaca, para leite para o gato, para me dar meu rabo. – Não dou; só se me deres rios. – Donde tiro rios? - Pede às fontes - Fontes, dai-me rios, os rios ser para as pedras, as pedras me dar fogo, o fogo ser para as nuvens, as nuvens me dar chuvas, as chuvas ser para o porco, o porco me dar cerda, a cerda ser para o sapateiro, o sapateiro fazer os sapatos, os sapatos ser para a velha, a velha me dar capim, o capim ser para a vaca, a vaca me dar o leite, o leite ser para o gato, o gato me dar meu rabo. Alcançou o macaco todos os seus pedidos. O gato bebeu o leite, entregou o rabo. O macaco não quis mais, porque o rabo estava podre.
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Não faças bem, sem saber a quem, um conto de origem indígena colhido por Couto de Magalhães NÃO FAÇAS BEM SEM SABER A QUEM Inti remunhã catú auá çupé requau Um dia a raposa estava passeando, ouviu um ronco: u... u... u... — O que será aquilo? Eu vou ver. A onça enxergou-a e lhe disse: Eu fui gerada dentro deste buraco, cresci, e agora não posso sair. Tu me ajudas a tirar a pedra? A raposa ajudou, a onça saiu, a raposa perguntou-lhe: — O que me pagas? A onça, que estava com fome, respondeu: Agora eu vou te comer. E agarrou a raposa. e perguntou: Com o que é que se paga um bem? A raposa respondeu: O bem paga-se com o bem. Ali perto há um homem que sabe todas as cousas; vamos lá perguntar a ele. Atravessaram para uma ilha; a raposa contou ao homem que tinha tirado a onça do buraco e que ela, em paga disso, a quis comer. A onça disse: Eu a quero comer porque o bem se paga com o mal. O homem disse: Está bom. Vamos ver a tua cova. Eles três foram, e o homem disse à onça: Entra, que eu quero ver como você estava. A onça entrou; o homem e a raposa rolaram a pedra e a onça não pôde mais sair. O homem disse: Agora tu ficas sabendo que o bem se paga com o bem. A onça aí ficou; os outros foram-se. (Magalhães, Couto de. Em Cascudo, Luís da Câmara. Antologia do folclore no Brasil, p.212-213)
A onça, o veado e o macaco colhido no Sergipe, por Sílvio Romero
A ONÇA, O VEADO E O MACACO (Sergipe) ma vez, amiga onça convidou amigo veado para ir comer leite em casa de um compadre, e amigo veado aceitou. No caminho tinham de passar um riacho, e a onça enganou o veado, dizendo que ele era muito raso, e não tivesse medo. O veado meteu o peito e quase morreu afogado. A onça passou por um lugar mais raso e não teve nada. Seguiram. Adiante encontraram umas bananeiras, e a onça disse ao veado: "Amigo veado, vamos comer bananas; você suba, coma as verdes, que são as melhores, e me atire as maduras". Assim fez amigo veado, e não pode comer nenhuma, e a onça encheu a pança. Seguiram; adiante encontraram uns trabalhadores capinando uma roça. A onça disse ao veado: "Amigo veado, quem passa por aqueles trabalhadores deve dizer: - Diabo leve a quem trabalha!" Assim foi; quando o veado passou pelos homens gritou: "Diabo leve a quem trabalha!" Os trabalhadores largaram-lhe os cachorros, e quase o pegaram. A onça, quando passou, disse: "Deus ajude a quem trabalha!" Os homens gostaram daquilo, e a deixaram passar. Adiante encontraram uma cobrinha
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Contos populares do Brasil de coral, e a onça disse: "Amigo veado, olhe que linda pulseira para você levar à sua filha!" O veado foi apanhar a cobra, e levou uma dentada; pôs-se a queixar-se da onça, e ela lhe respondeu: "Quem manda você ser tolo!?" Afinal chegaram à casa do compadre da onça; já era tarde e foram dormir. O veado armou sua redinha num canto e ferrou no sono. Alta noite, a onça se levantou devagarzinho de pontinha de pé, foi ao curral das ovelhas, sangrou uma das mais gordas, aparou o sangue numa cuia, comeu a carne, voltou para casa, largou a cuia de sangue em cima do veado para o sujar, e foi-se deitar. Quando foi de pra manhã o dono da casa se alevantou, foi ao curral e achou uma ovelha de menos. Foi ver se tinha sido a onça, e ela lhe respondeu: "Eu não, meu compadre, só se foi amigo veado, veja bem que eu estou limpa". O homem foi à rede do veado e achou-o todo sujo de sangue. "Ah! Foi você, seu ladrão!?" Meteu-lhe o cacete até o matar. A onça comeu bastante leite e foi-se embora. Passados tempos, ela tomou um capote emprestado ao macaco e o convidou para ir comer leite em casa do mesmo compadre. O macaco aceitou e partiram. Chegando adiante, encontraram o riacho, e a onça disse: "Amigo macaco, o riacho é raso, e você passe adiante e por ali". O macaco respondeu: "Ah! Você pensa que eu sou como o veado que você enganou? Passe adiante senão eu volto..." A onça, que viu isto, passou adiante. Quando chegaram nas bananeiras, ela disse: "Amigo macaco, vamos comer bananas; você coma as verdes, que são as melhores, e me atire as maduras". – "Vamos", disse o macaco, e foi logo se atrepando. Comeu as maduras e atirou as verdes para a onça. Ela ficou desesperada, e dizia: "Amigo macaco, amigo macaco!… Eu te boto a unha!…" – "Eu vou-me embora se você pega com histórias". Quando passaram pelos trabalhadores, a onça disse: "Amigo macaco, quem passa por aqueles homens deve dizer: Diabo leve a quem trabalha; porque ali eles são obrigados" O macaco, quando passou, disse: "Deus ajude a quem trabalha". Os trabalhadores ficaram satisfeitos, e o deixaram passar. A onça passou também. Adiante avistou uma cobrinha de coral, e disse ao macaco: "Olhe, amigo, que lindo colar para sua filha! Apanhe e leve". – "Pegue você!" E não quis o macaco pegar. Afinal chegaram à casa do compadre da onça e foram-se deitar porque já era tarde. O macaco de sabido armou sua rede bem alto, deitou-se e fingiu que estava dormindo. A onça, bem tarde, saiu de pontinha de pé, foi ao chiqueiro das ovelhas, sangrou a mais bonita, comeu a carne, e foi com a cuia de sangue para derramar no macaco. Ele estava vendo tudo, deu-lhe com o pé, e o sangue caiu todo em riba da onça. Quando foi de pra manhã, o dono da casa foi ao curral, e achou uma ovelha de menos, e disse: "Sempre que a malvada da comadre dorme aqui, falta-me uma criação!" Largou-se para casa, e já encontrou o macaco de pé e apontando para a onça, que fingia que estava dormindo. O homem a viu toda suja de sangue, e disse: "Ah! É você, sua diaba!" Deu-lhe um tiro e a matou. O macaco comeu muito leite, e foi-se embora muito satisfeito. (ROMERO, Sílvio. Contos populares do Brasil)
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Porque cachorro é inimigo de gato e gato de rato um conto etiológico registrado por Luís da Câmara Cascudo POR QUE O CACHORRO É INIMIGO DE GATO... E GATO DE RATO Antigamente todos os bichos eram amigos e o leão governava todos. Cachorro, gato, rato, ovelha, onça, raposa, timbu, pinto, tudo vivia junto e sem briga. Uma feita Nosso Senhor mandou o leão libertar os bichos, passando carta de alforria a todos, para que pudessem ir onde quisessem. Havia muita contenteza. O leão chamou os bichos mais ligeiros e entregou as cartas de liberdade para ir dando aos outros animais. Chamou o gato e deu a ele a carta de alforria do cachorro. O gato saiu numa carreira danada. No caminho encontrou o rato que estava entretido bebendo mel de abelhas. - Camarada gato! Para onde vai nesse desadoro? - Vou entregar essa carta ao camarada cachorro! - Deixe de vexame! Descanse e beba esse melzinho gostoso. O gato foi lamber o mel e tanto lambeu e gostou que acabou enfarado e dormindo. O rato, de curioso, foi cascavalhar a bruaca que o gato trazia a tiracolo e encontrou uns papéis. Meteu o dente, roendo, roendo, roendo, e deixou tudo virado em bagaço. Vendo que fizera uma desgraça, fez um bolo e sacudiu dentro da bruaca do gato e ganhou a mata. O gato, acordando, largou numa carreira "timive" até encontrar o cachorro, a quem entregou o papel. O cachorro foi ler e viu que tudo estava esbagaçado e roído. Não podia provar ao homem que era bicho-livre e ficou zangado de ferro e fogo com o gato, dando uma carreira atrás dele para matá-lo. O gato, por sua vez, sabendo que aquilo era trabalho do rato, não procurou coisa senão passar-lhe o dente para vingar-se. E até hoje, cachorro, gato e rato, são inimigos até debaixo dágua. (Informante: João Monteiro. Natal, Rio Grande do Norte) Nota: É um conto etiológico, explicando a inimizade de cães, gatos e ratos. Corrente nos folclores da Europa do norte e leste. É o Mt. 200 de Aarne-Thompson, The dog’s certificate. João Ribeiro, O folk-lore, XLIV, 3135. Fábula e provérbio, estudou o motivo, transcrevendo uma versão africana de Libolo, Angola. Cão, gato e rato brigam por que o último não restituiu (a rata roera) a carta de alforria que o primeiro confiara ao segundo, p. 316-318. Motivo idêntico ocorre na La querelle des chiens et des chats, de La Fontaine, não aparecendo os ratos.
(Cascudo, Luís da Câmara. Contos tradicionais do Brasil)
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Contos populares do Brasil
Seis aventuras de Pedro Malasartes registradas por Luís da Câmara Cascudo
I Um casal de velhos possuía dois filhos homens, João e Pedro, este tão astucioso e vadio que o chamavam Pedro Malazarte. Como era gente pobre, o filho mais velho saiu para ganhar a vida e empregou-se numa fazenda onde o proprietário era rico e cheio de velhacarias, não pagando aos empregados porque fazia contratos impossíveis de cumprimento. João trabalhou quase um ano e voltou quase morto. O patrão tirara-lhe uma tira de couro desde o pescoço até o fim das costas e nada mais lhe dera. Pedro ficou furioso e saiu para vingar o irmão. Procurou o mesmo fazendeiro e pediu trabalho. O fazendeiro disse que o empregava com duas condições; não enjeitar serviços e do que primeiro ficasse zangado tirava o outro uma tira de couro. Pedro Malazarte aceitou. No primeiro dia foi trabalhar numa plantação de milho. O patrão mandou que uma cachorrinha o acompanhasse. Só podia voltar quando a cachorra voltasse para casa. Pedro meteu o braço no serviço até meio-dia. A cachorrinha deitada na sombra nem se mexia. Vendo que era combinação Malazarte largou uma paulada na cachorra que esta saiu ganindo e correu até o alpendre da casa. O rapaz voltou e almoçou. Pela tarde nem precisou bater na cachorra. Fez o gesto e o bicho voou no caminho. No outro dia o fazendeiro escolheu outra tarefa. Mandou-o limpar a roça de mandioca. Pedro arrancou toda plantação, deixando o terreno completamente limpo. Quando foi dizer ao patrão o que fizera este ficou feio. - Zangou-se, meu amo? - Não senhor, - respondeu o patrão. No outro dia disse que Pedro trouxera o carro de bois carregado de pau sem nós. Malazarte cortou quase todo o bananal, explicando que bananeira é pau que não tem nó. O patrão ficou frio: - Zangou-se, meu amo? - Não senhor. No outro dia mandou-o levar o carro, com a junta de bois, para dentro de uma sala numa casinha perto, sem passar pela porta. E para melhor atrapalhar, fechou a porta e escondeu a chave. Malazarte agarrou um machado e fez o carro em pedaços, matou os bois, esquartejou-os e sacudiu, carnes e madeiras, pela janela, para dentro da sala. O patrão, quando viu, ficou preto: - Zangou-se, meu amo? - Não senhor. Mandou vender na feira um bando de porcos. Malazarte levou os porcos, cortou as caudas e vendeu-os todos por um bom preço. Voltando enterrou os rabinhos num lamaçal e chegou em casa gritando que a porcada esta atolada no lameiro. O patrão foi ver e deu o desespero. Malazarte sugeriu cavar com duas pás. Correu para casa e pediu à dona que lhe entregasse dois contos de réis. A velha não queria
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Contos populares do Brasil mas o rapaz para certificá-la, perguntava ao patrão por gestos se devia levar um ou dois, e mostrava os dedos. Ante aos gritos do amo, a velha entregou o dinheiro ao Pedro. Voltou para o lameiro e começou a puxar a cauda de cada porco que dizia estar enterrado. Ia ficando com todas na mão. O patrão ficou suando mas não deu mostras de zanga. E Pedro ainda negou que tivesse recebido dinheiro. Vendo que ficava pobre com aquele empregado, o fazendeiro resolveu matá-lo o mais depressa possível, de um modo que não o levasse à justiça. Disse que andava um ladrão rondando o curral e deviam vigiar, armados, para prender ou afugentar a tiros. A idéia era atirar em Malazarte e dizer que se tinha enganado, supondo-o um malfeitor. De noite o fazendeiro foi para o curral e Pedro devia substituí-lo ao primeiro cantar do galo. Quando o galo cantou, Malazarte acordou a velha e disse que o marido a esperava no curral, e que levasse a outra espingarda, porque ele, Pedro, ia fazer o cerco pelo outro lado. A velha apanhou a carabina e foi, sendo morta pelo fazendeiro com um tiro certo de que abatia, pelo vulto, o atrevido criado. Assim que a velha caiu, Pedro apareceu chorando e acusando o amo. Este, assombrado pagou muito dinheiro para não haver conhecimento da justiça e ofereceu ainda mais dinheiro se o Malazarte se fosse embora, sem mais outra proeza. O rapaz aceitou e voltou rico para casa dos pais.
II Não podendo ficar sossegado, Malazarte largou a casa, indo correr mundo. Logo no primeiro dia encontrou um urubu com uma perna e uma asa quebradas, batendo no meio da estrada. Agarrou o urubu e meteu-o dentro de um saco, seguindo caminho. Ao anoitecer estava diante de uma casa grande e bonita, alpendrada. Pela janela viu uma mulher guardando vários pratos de comidas saborosas e garrafas de vinho. Bateu e pediu abrigo mas a mulher recusou, dizendo que não estava em casa o marido e ficava feio ter um homem de portas a dentro. Malazarte foi para debaixo de uma árvore e reparou na chegada de um rapaz ainda moço, recebido com agrados pela dona da casa que o levou imediatamente para jantar. Iam os dois começando a refeição quando o dono da casa apareceu montado num cavalo alazão. O rapaz pulou uma janela e fugiu. Malazarte deu tempo para o dono da casa mudar o traje e tornou a bater e pedir dormida. O dono apareceu e mandou-o entrar, lavar as mãos e ir jantar com ele. A comida que apareceu era outra, bem pobre e malfeita. Malazarte, sempre com o urubu dentro do saco, deu com o pé, fazendo-o roncar, começou a falar, baixinho, como se estivesse discutindo. - Com quem está falando? - Perguntou o dono da casa. - Com esse urubu. - Sim senhor, falando e adivinhando. Esse urubu é ensinado a adivinhar. - E o que ele está adivinhando a agora? - Está me dizendo que naquele armário há um peru assado, arroz de forno, bolo de milho e três garrafas de vinho. - Não me diga ... Procura aí, mulher! A mulher procurou e, fingindo-se assombrada pela surpresa, encontrou tudo quanto anunciara o urubu e trouxe os pratos e o vinho para a mesa. Comeram fartamente e o dono quis porque quis comprar o urubu. Pela manhã Malazarte, muito
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Contos populares do Brasil contrariado, aceitou o dinheiro alto e foi embora, deixando o urubu que nunca mais adivinhou cousa alguma.
III Malazarte encontrou uma ruma de excremento ainda fresca, no meio da estrada. Parou curvou-se e cobriu com seu próprio chapéu, ficando de cócoras, segurando as abas, como se guardasse uma preciosidade. Passou um homem, a cavalo, e parou, perguntando: - Que está guardando aí? - O mais bonito passarinho do mundo! Custou mas segurei-o - E o que vai fazer? - Esperar que passe um conhecido para vendê-lo ou mandar comprar uma gaiola. - Quanto quer pelo passarinho? - Vinte mil-réis! - Está fechado. Tome o dinheiro, monte neste cavalo e vá buscar uma gaiola, ali na vila. Apeou-se, Malazarte meteu o dinheiro no bolso, cavalgou o animal, picou-o nas esporas e desapareceu para sempre. O dono do passarinho esperou, esperou e, perdendo a paciência ou cutucado pela curiosidade, passou a mão para segurar a mais linda ave do mundo, ficando com ela suja e nauseante, furioso pelo logro e sem poder castigar o astucioso larápio.
IV Órfão de pai, Malazarte viu morrer sua mãe, ficando muito triste. Mas, sendo ardiloso por natureza, do próprio cadáver quis aproveitar e ganhar mais dinheiro. Saiu com ele e escondeu-o nuns capins, perto de um pomar. O dono desse pomar era homem rico e violento, tendo comprado uma matilha de cachorros ferozes para a defesa das frutas. Ao anoitecer, Malazarte levou o corpo da velha e sacudiu-o por cima da cerca. Os cachorros acudiram imediatamente ladrando e mordendo. Nesse momento, Malazarte começou a gritar pelo dono do pomar, e quando este apareceu acusou-o de haver assassinado sua mãe, velhinha inofensiva que entrara no sítio para apanhar um graveto de lenha. Sabendo da ferocidade dos cachorros, Malazarte correra para impedir mas já chegara tarde. O dono do pomar, cheio de medo, pagou muito dinheiro e ainda encarregou-se de enterrar a velha com toda a decência.
V Pedro Malazarte comprou uma panelinha nova para cozinhar quando viajasse. Na primeira viagem que fez levou a panelinha e estava preparando seu almoço, já abrindo a fervura, quando ouviu o tropel de um comboio que carregava algodão. Mais que depressa cavou um buraco, colocou todas as brasas e tições, cobrindo de
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Contos populares do Brasil areia, e pôs a panela por cima, fervendo. Os comboieiros que iam passando ficaram admirados de ver uma panela ferver sem haver fogo. Pararam, discutiram e perguntaram se Malazarte a queria vender por bom dinheiro. O sabidão fez-se muito rogado, dizendo ter adquirido aquele objeto em terras distantes, mas terminou vendendo a panelinha. Os comboieiros seguiram jornada, muito satisfeitos da compra que no outro dia verificaram ser mais um logro do endiabrado rapaz.
VI Nas cercanias da casa de Pedro Malazarte morava um homem rico e muito avarento. Vivia enganando toda a gente e sendo detestado por todos os vizinhos. Não pagava ordenado aos seus empregados porque fazia apostas e não era possível cumprir-se uma das condições porque tinham sido escolhidas com intenção de burla. Malazarte ofereceu-se para criado e o homem aceitou. Se Malazarte ficasse trinta dias sem pedir a conta, seria pago três vezes, e não o fazendo, nada teria de direito. O homem mandou Malazarte com mais duzentas ovelhas para o campo, com ordem de passar por uma garganta de serra muito estreita. As ovelhas recusavam avançar e os empregados anteriores haviam desistido com esse embaraço. Malazarte chegou ao boqueirão, agarrou uma ovelha, amarrou-a e saiu na frente puxando o animalzinho. As outras acompanharam sem dificuldade. Não deram rede para Malazarte dormir. Durma onde quiser, disse-lhe o homem. Pedro, vendo que o casal guardava a comida num armário grande, trepou-se para cima, com as pernas descidas e recusou sair, dizendo ser aquela a sua cama. Como o casal queria comer, ofereceram ao novo empregado o direito de fazer as refeições com eles, marido e mulher, chegando à conclusão de que só iam comer pão e bolachas, o que davam a Pedro quando ele se empregou. Mandou o dono que Malazarte levasse o carro de bois e o metesse numa sala sem passar pelas portas. Malazarte despedaçou o carro, partiu os bois em quatro e jogou tudo pela janela. Dias depois o dono da casa foi viajar e recomendou a Pedro que queria encontrar o gado muito bem tratado, rindo-se com o tempo. Quando o homem voltou viu que Malazarte havia cortado os beiços dos bois, vacas, novilhos, touros, deixando-os com os dentes de fora, como se estivessem rindo. Não quis mais conversa. Pagou três vezes e mandou que Pedro Malazarte fosse embora antes que ficasse completamente arruinado. (Cascudo, Luís da Câmara. Contos tradicionais do Brasil. Belo Horizonte; São Paulo, Itatiaia, Editora da Universidade de São Paulo, 1986. Reconquista do Brasil, 2ª série, 96)
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Três contos populares por Aluísio de Almeida O barba de ouro e a carantonha Havia um rei que tinha uma bonita barba de ouro. E um dia ele foi chamado ao quarto da rainha para ver a criança que acabava de nascer. Mas esse barba de ouro era encantado e mau. Assim que viu o lindo menininho, pegou e foi comendo-o à vista de todos. A rainha, quando de novo estava esperando outra criança, combinou com a comadre para lograrem o rei. Arranjaram um coelhinho. Chamaram o barba de ouro e lhe apresentaram o filho. Ah! O rei comeu o coelhinho e gostou. A comadre levou a criança, que era uma menina, para criar por uns camponeses a um outro reinado. A menina foi crescendo, crescendo. Os pais adotivos eram pobres, não sabiam o que fazer com ela. E já estava em ponto de casar. Então mataram uma ovelha, tiraram-lhe a pele e vestiram com ela a mocinha, que ficou que nem um bicho. A madrinha, que era uma fada, pôs-lhe no dedo um anel que era para ela pedir o que precisasse. E subiram as água-furtadas da casa, despediram-se da moça e, dizendo-lhe que se fosse com Deus, pelo mundo, empurraram-na da janela. Aquela coisa foi, foi, ao leu do vento e, enfim, caiu na floresta. O bicho ficou por ali, quieto. Ouvia as cornetas: tu, tu, ru, tu, e latidos dos cães. O rei estava à caça. E então apareceram os caçadores e já levavam a arma à cara, quando o rei ordenou: não atirem! O rei desse reinado era moço e curioso. Achou esquisito aquele bicho que falava como gente. Levou-o para a cozinha do palácio e pôs-lhe o nome de Carantonha. A Carantonha assistia às festas de longe. Uma ocasião ouviu contar, na cozinha, de três grandes bailes que o rei ia dar em seguida, para escolher a sua noiva. Em todo o reinado, era um reboliço fora dos costume e costureiras e alfaiates não tinham mãos a medir. As moças queriam ser princesas. O rei gostava de ver sempre a Carantonha, que lhe prestava serviços, muito humilde. Carantonha segurava a bacia de prata para o rei lavar as mãos. – Vossa majestade me deixa ir na festa? - Tu, Carantonha? O rei falou assim e borrifou o rosto dela, brincando. O que é que ela ia lá fazer? Carantonha saiu chorando para o seu cantinho da cozinha. Só então é que se lembrou do anel. Esfregou-o e disse: - Anel, pelo poder que Deus te deu, quero que me arranjes um vestido cor da terra e uns chapins muito bonitos! – Imediatamente Carantonha viu-se transformada naquela princesa mais bonita e procurou as salas de baile sem que ninguém
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Contos populares do Brasil percebesse. Opa! Foi um sucesso! O rei dançou com ela e quase só com ela. Perguntou-lhe donde era e Carantonha respondeu: - Eu sou da terra dos borrifos de água. E tratou de sair despercebida, para a cozinha, vestindo de novo a pele de ovelha. No outro dia a criadagem não falava de outra coisa: da nova princesa que aparecera e ninguém sabia de que reinado era. Quando ela foi apresentar a toalha ao rei, pediu-lhe licença para ir ao baile. O rei atirou-lhe a toalha: - Tu, Carantonha? Lá foi a moça para o seu cantinho da cozinha, esfregou o anel, e: - Hoje quero um vestido cor de céu. E já estava como uma princesa. E foi entrando com jeito no salão. Opa! Que sucesso! O rei dançou com ela até a madrugada. Perguntou-lhe donde era. – Eu? Eu sou da terra do joga a toalha. E tratou de escapulir-se. No terceiro dia, enquanto o rei lavava as mãos depois do jantar, Carantonha pediulhe outra vez a licença para ir ao baile. – Tu, Carantonha? E o rei deu-lhe um tapinha na cara, brincando. A moça pediu ao anel o vestido cor do mar, muito mais lindo que os outros. E entrou no salão. Já o rei foi recebê-la e dançaram, dançaram. – Donde és, bela princesa? Quero casar-me contigo, disse-lhe o rei. – Eu? Eu sou da terra do leva um tapa. Mais tarde a Carantonha escapou e foi vestir sua pele na cozinha. Estava acabando o baile. O rei resolveu descobrir o enigma. A princesa acabava de desaparecer. Devia estar ainda no palácio. O rei mandou a polícia ocupar todas as saídas e quando as moças iam saindo examinava uma por uma a ver-lhe o vestido cor do mar e as feições do rosto, que muito bem lembrava. Nada! Ninguém! Examinou depois as camareiras do palácio. Carantonha pediu ao anel o mesmo vestido cor do mar, cobriu-se com a pele e ficou esperando. O rei estava certo que ninguém saíra. E então só faltava examinar a Carantonha. Ele já andava desconfiado. Por isso chegou de repente, puxou a espada e rasgou-lhe um pedaço da pele. Apareceu o vestido – Ah! É assim? – disse o rei, riscou a pele de alto a baixo e Carantonha apareceu se rindo, nos modos e no porte de uma princesa. Os cortesãos estavam admirados! Que coisa! Mas o rei, meio carrancudo, interpelou a moça. – Tu estavas zombando de mim? Olha, que eu não sou para brincadeiras. Porque é que me dissestes que era da terra dos borrifos de água? - Ué! Então vossa majestade não se lembra mais que quando pedi para ir ao baile da primeira noite me esborrifou a água no meu rosto? - Ah! Tens razão. E porque na segunda noite disseste seres da terra do joga a toalha? - Porque vossa majestade, quando pedi para ir ao baile, me jogou a toalha.
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– Ah! É verdade. E na terceira noite tu erra da terra leva um tapa. – Pois sim! Vossa majestade, quando lhe pedi para ir ao baile, me deu um tapa, brincando. Em seguida, o rei apresentou a noiva aos cortesãos e convidados, marcou-se o dia das bodas. À hora do banquete, a nova rainha, como era costume, contou uma história. A história dela, a sua infância escondida, a caçada real, a madrinha boa fada. O barba de ouro era falecido, e a rainha mãe dela. Os pais adotivos vieram morar no palácio. Parece que ainda existem, arcadinhos, arcadinhos, mas contentes da vida! *** Contou Luís Maria Ferreira, que lhe contou uma tia de seu pai lá por 1880, na Ilha da Madeira. Variante da conhecida Pele de burro com a Maria Borralheira, mais a interposição de um elemento novo, o barba de ouro, para explicar o motivo da transmutação, deixadas em paz as pobres madastras.
Boca calada salva a vida Havia um velho pai que não cansava de dizer aos filhos: - "Boca calada! Boca calada salva a vida!". Um dos filhos guardou bem o conselho e saiu pelo mundo. Uma vez ele entrou numa casa, onde viu uma mulher enterrada no chão até a cintura. Ficou com muita vontade de falar, de perguntar porque era aquele castigo. Mas quando ia abrir a boca, lembrava-se do conselho. O homem da casa, então, começou a provocar o mocinho: - Pergunte porque ela está enterrada? Vamos fale! Acontece que esse homem mau matava quem perguntasse. O menino não dizia nada. Por fim, o homem ficou vencido. Ele se ajoelhou perante a mulher, lhe pediu perdão e a desenterrou, dizendo que esse menino era um justo. *** Contou Maria Lima Rodrigues, de Itapetininga. Esta "estória" pertence à categoria das histórias de exemplo, moralizantes. Parece ser o resumo de outra mais comprida, que ouvimos em Sorocaba, e de que damos os pontos principais.
A mulher curiosa e o galo Era uma vez um homem que entendia a linguagem dos bichos. Passeava com a mulher pelo campo. Quando ouviu dois cavalos conversarem, e deu uma bruta risada. A mulher perguntou-lhe porque se ria. O homem respondeu: - Por causa da conversa dos dois cavalos. Então, ela começou a instar com o marido para lhe referir a dita conversa. – Eu bem podia contar a você o que os cavalos conversaram, mas na mesma hora
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Contos populares do Brasil que acabar de contar, morrerei. – Mas eu quero saber! – retrucou a mulher curiosa. – Então você quer que eu morra? - Não sei nada disso! Tem de me contar a conversa dos cavalos! A discussão durou muitos dias. O pobre homem ficou meio zonzo. Viu que não convencia a mulher e entregou-se. - Olha, mulher sem coração! – falou ele – eu vou contar a você a conversa dos cavalos, mas melhor aprontar tudo para o enterro! (Dizia isto pensando que a mulher se arrependesse a última hora). Mandou comprar o caixão, e as velas e assentou-se na rede muito triste. O galo subiu no caixão, bateu as asas e cantou. A cachorrinha, que estava num canto, pensativa, falou ao galo: - Galo, coração de pedra! Você tem coragem de cantar na despedida de nosso dono? - Canto e mais que canto. Ele vai morrer, porque é um moleirão e se entregou à mulher. Porque ele não faz como eu, que no terreiro tomo conta de vinte galinhas? O homem ouvindo isso, criou coragem, de repente. Mandou o empregado trocar o caixão e as velas por um chicote. E depois pegou o chicote e perguntou a mulher: - Você ainda quer saber a conversa dos cavalos? - Quero, como não? - Pois foi assim. E lepte, lepte, lepte, nas costas da mulher, que dava cada grito! Parou um pouco. – E... você ainda quer saber? - Quero sim! Continuou a tunda com todas as regras, até que a curiosa ajoelhou e pôs as mãos, murmurando entre soluços. – Pelo amor de Deus! Chega! Maridinho do meu coração, não quero mais saber da conversa dos cavalos. Nunca mais! *** Esta história contou-a em Sorocaba dona Guilhermina Borges. É de encantamento e exemplo ao mesmo tempo.
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As três velhas por Luís da Câmara Cascudo AS TRÊS VELHAS Luís da Câmara Cascudo Informante: Maria Severa Torres de Almeida Souza. Paraíba Uma viúva tinha uma filha muito bonita e religiosa que agradava a toda a gente. A viúva queria casar a filha com homem rico e para isso fazia o possível. Na esquina da rua onde moravam as duas havia uma casa de comércio afreguesada, cujo dono era solteiro e de posses. A viúva fazia as compras nessa casa e vivia estudando um meio de conseguir fazer com que o homem conhecesse e simpatizasse com sua filha. Um dia ouviu-o dizer que só se casaria com uma moça trabalhadeira e que fiasse muito mais do que todas na cidade. A viúva comprou logo uma porção de linho, dizendo que era para a filha fiar, e que esta era a melhor fiandeira do mundo. A moça ia todas as madrugadas à missa das almas e encontrava lá três velhas muito devotas que a cumprimentavam. A viúva chegando a casa entregou o linho à moça, dizendo que teria de fiá-lo completamente até a manhã seguinte. A moça se valeu dos olhos, chorando, e foi sentar-se no batente da cozinha, rezando, desconsolada da vida. Estava nesse ponto quando ouviu uma voz perguntar. — Chorando por quê, minha filha? Levantou os olhos e viu uma das três velhinhas da missa das almas. — E não hei de chorar? Minha mãe quer que eu fie todo esse linho e o entregue dobado amanhã de manhã... — Não se agonie, minha filha. Se você me convidar para seu casamento e prometer que três vezes me chamará tia, em voz alta, darei uma ajuda. A moça prometeu. A velha despediu-se e foi embora, deixando o monte de linho fiado e pronto. A viúva, quando achou a tarefa pronta, só faltou morrer de satisfeita. Correu até a loja do negociante, mostrando as habilidades da filha e pediu uma porção ainda maior de linho. O negociante espantado pelo trabalho da moça não quis receber dinheiro pela compra. Vendo que as cousas se encaminhavam como ela desejava, a viúva voltou a dar o linho pra a filha fiar até a manhã seguinte. Novamente a moça se agoniou muito e foi chorar na cozinha. Novamente apareceu uma velha, a segunda das três, que lhe propôs ajudá-la se ela a convidasse para o seu casamento e a chamasse tia por três vezes. A moça aceitou e o linho ficou pronto num minuto. A viúva voltou correndo à loja do homem rico, mostrando o linho fiado e
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gabando a filha. O negociante estava simpatizando muito com a moça que fiava tão depressa e tamanhas qualidades. A viúva voltou com uma carga de linho enorme, entregando aquela penitência à sua filha. Aconteceu como nas outras vezes. A terceira velha, mediante convite para o casamento e chamá-la tia três vezes, fiou o linho num rápido. Quando o negociante viu o linho fiado, pediu para conhecer a moça, conversou com ela e acabou falando a casamento. Como era de agradável presença, a moça aceitou e marcou-se o casamento. O homem mandou preparar sua casa com todos os arranjos decentes e encheu uma mesa de fusos, rocas, linhos, tudo para que a mulher se ocupasse durante o santo dia em fiar. Depois do casamento, na hora do jantar, estavam todos reunidos e muito alegres, quando bateram palmas e entrou uma das três velhas da missa das almas. A noiva correu logo dizendo: — Que alegria, minha tia! Entre, minha tia, sente-se aqui perto de mim, minha tia. Assim que a velha sentou na cadeira, chegou a outra, recebida com a mesma satisfação: — Entre minha tia! Sente-se aqui, minha tia! Vai jantar comigo, minha tia! A terceira velha chegou também e a noiva abraçou-a logo: — Dê cá um abraço, minha tia! Vamos sentar, minha tia! Quero apresentá-la ao meu marido, minha tia! Foram para o jantar e o marido e convidados não tiravam os olhos de cima das três velhas que eram feias como o pecado mortal. Depois do jantar, o marido não se conteve e perguntou por que a primeira era tão corcovada, a segunda com a boca torta e a terceira com os dedos finos e compridos como patas de aranhas. As velhinhas responderam: — Eu fiquei corcunda de tanto fiar linho, curvada para rodar o fuso! — Eu fiquei com a boca torta de tanto riçar os fios de linho quando fiava! — Eu fiquei com os dedos assim de tanto puxar e remexer o linho quando fiava! Ouvindo isso o marido mandou buscar os fusos, rocas, meadas, linhos, e tudo que servisse para fiar, e fez com que queimassem tudo, jurando a Deus que jamais sua mulher havia de ficar feia como as três tias fiandeiras por causa do encargo de fiar. Depois, as três velhas desapareceram para sempre. O casal viveu muito feliz.
(Cascudo, Luís da Câmara. Contos tradicionais do Brasil. Belo Horizonte; São Paulo, Itatiaia, Editora da Universidade de São Paulo, 1986. Reconquista do Brasil, 2ª série, 96, p.158-159)
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