Cidade é pra brincar!

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#CIDADE É PRA BRINCAR


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fauusp junho.2016 vivi tiezzi or. luĂ­s a. jorge



meus sinceros

agradecimentos

ao Luís, por me dar mais perguntas do que respostas ao Artur, por me jogar no caminho sem volta dos vídeos à Fefa, por caminhar comigo a reta final ao Pirata, por dividir minhas inquietações às faunas, amigas, terapeutas e, acima de tudo, companheiras à Demuth, por adoçar a minha jornada ao Lucas, por me ajudar a entrar, sobreviver e acabar a FAU à Rue d’Ostende 105, por me dar outra família ao Cooper, pela infância compartilhada até hoje ao Tito, por suavizar as angústias do fim aos Tiezzugumas, por me ensinarem a brincar



sumário

apresentação 9 introdução 15 o brincar 19 o espaço público 25 metodologia 29 mapeamento colaborativo 53 o projeto 63 considerações finais 87 legenda das imagens 98 bibliografia 100



apresentação:

crianças privatizadas


Pela manhã, a criança acorda e dirige-se à copa, onde encontra a mesa do café-da-manhã já posta. Hora de ir para a aula. Na garagem, entra no carro, do qual só sairá na porta da escola. De tarde, os pais estão trabalhando, hora de ir para o curso de inglês, ou de natação, ou de balé, ou de futebol, ou de qualquer outra coisa, até que algum adulto possa se ocupar dela novamente. Em suas (raras) tardes livres, brinca no playground do condomínio (seu ou de algum amiguinho). De noite, a família toda junta, assiste televisão enquanto janta.

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Eis o dia-a-dia de uma criança privatizada1 - aquela que não mais é responsabilidade das ruas e da comunidade, mas única e exclusivamente dos pais (e de quem por eles for contratado) - moradora de uma cidade-condomínio2. De dentro de um muro, para dentro de outro muro, sempre “protegida” dentro do carro. Tudo que está do outro lado do muro - excluído dessa realidade forjada - é tido como perigoso e prejudicial para essa jovem criatura em formação, inclusive as outras crianças. O conceito de crianças cada vez mais preciosas e indefesas na visão dos adultos, somado à reprodução constante do discurso do medo e da

(1) ROMÁN, Marta. Infancia y Movilidad. Toparse con la realidad. (2) BRUM, Eliane. Mãe, onde dormem as pessoas marrons? In: El País Online, 22 jun. 2015.


violência nas grandes cidades, geram uma população que se mantém afastada do espaço público, reforçando o processo de individualização da sociedade, e alimentando um ciclo vicioso de pessoas cada vez menos preparadas para a vida em comunidade.

Se as crianças devem transformar-se em homens completos, então não podemos esconder delas nada que seja humano. Sua própria inocência providencia espontaneamente todas as restrições e mais tarde, quando essas se ampliarem aos poucos, o novo encontrará personalidades já preparadas. (Myrona, 1916. In BENJAMIN, 2002, p.65) Neste sentido, a cidade apresenta-se como elemento fundamental na formação de seres sociais, ao invés de indivíduos. Afinal, qual melhor forma de aprender a viver na cidade, do que vivendo na cidade? A rua como outra educação3 - em contraposição à da escola - na qual as situações vividas dão conta de transmitir todo o conhecimento necessário para se formar um cidadão - no sentido mais literal do termo: habitante da cidade4.

(3) JORGE, Luís Antônio. A má educação das ruas e o desenho da cidade, 2014, p.75. (4) BUENO, Francisco da Silveira. Minidicionário da língua portuguesa. São Paulo: FTD: LISA, 1996.

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Num primeiro momento, mesmo para mim, a criança pareceu ser o elemento principal das minhas inquietações, quando na verdade, o que me incomodava eram as consequências desse tipo de infância na vida da cidade e de quem ali vive. Cidades fruto de uma lógica de produção, nas quais os espaços são pensados para garantir a eficiência; e a educação - tanto da escola, quanto da rua - para formar indivíduos que permitam seu bom funcionamento.

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A organização e a distribuição dos espaços, a limitação dos movimentos, a nebulosidade das informações visuais e até mesmo a falta de conforto ambiental estavam e estão voltadas para a produção de adultos domesticados, obedientes e disciplinados - se possível limpos -, destituidos de vontade própria e temerosos de indagações. (LIMA, 1989, p.10)

Em meu trabalho final no curso de arquitetura, decidi investigar, então, como as pessoas se rebelam disso tudo - pois sempre há o outro lado - e me deparei com o lúdico.

Brincar é uma crítica ao trabalho, à produtividade, à eficiência, ao progresso, à estabilidade, às convenções sociais (…) pela qual desenvolvemos novas práticas sociais (STEVENS, 2012) A pergunta que me fiz foi a seguinte: diante de espaços de lazer de baixíssima qualidade, numa cidade que desconsidera tudo que fuja da lógica de produção, onde e como as pessoas se divertem fora dos


muros? A fim de encontrar uma resposta - ou várias - parti para uma imersão no universo do brincar, escondido nas entranhas da cidade de São Paulo; deixando que os próprios usuários me apresentassem tais espaços e suas qualidades: o brincar como revelador do potencial dos espaços públicos5.

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(5) STEVENS, Quentin. The Ludic City: exploring the potential of public spaces. Oxon: Routledge, 2007, p.12.



introdução:

cidades funcionais


São Paulo é conhecida como a cidade do trabalho, onde as pessoas vivem para o trabalho e se definem como persona social em função das atividades que nele exercem. Esta cultura do trabalho está refletida no desenho da cidade e na forma como nos relacionamos com ela. Estabelecemos uma relação funcional com a cidade, com os seus equipamentos e espaços públicos, feitos para nos servirem, antes de quaisquer interesses não utilitários. São avaliados por seu grau de eficiência. Funcionalizamos a nossa relação com cidade e, muito mais, com as ruas que não se parecem com lugares, mas com caminhos para se alcançar lugares. (JORGE, 2013, p.79) 16

A fim de garantir a desejada eficiência de nossas cidades, os espaços precisam ser distribuídos e projetados de maneira a colaborar com a produção. O que significa que precisam atender funções e programas muito bem definidos, limitando suas possibilidades. Não há espaço para o não programado. No trecho a seguir, uma antiga moradora conta como era viver numa casa de Le Corbusier, mas acredito que descreva bem a lógica dos espaços públicos brasileiros, resquícios de um pensamento moderno na construção de cidades.

É a casa feita pela lei. O lugar de cada coisa estava prédesignado, antes mesmo da sua existência. O mesmo acontecia com o lugar das pessoas. Nela, era difícil de ser alguém com


vida. Nós, lá, moramos como esculturas. (JAOUL, Marie, em entrevista a François Barre. In: LIMA, 1989, p.16) Numa sociedade regida pela noção de que: “Nós somos o que fazemos. O que não se faz não existe. Portanto, só existimos nos dias em que fazemos.” (Padre Antônio Vieira); e que valoriza a negação do ócio “negócio” - a libertação está exatamente no não-fazer. Isto não é uma defesa do ócio criativo, mas do ócio pelo ócio. Mais adiante veremos que até quando tentamos compreender o lúdico, procuramos dar uma função a ele, quando na verdade o espírito do brincar consiste exatamente na não-necessidade.

a desfuncionalização da vida é um aprendizado de liberdade. (JORGE, 2014, p.79) Afinal, somos seres afetivos e sociais, e não moramos em cidades apenas por sua praticidade, como assinala Maslow:

Cities are typically seen as the engines of modern economic life. Cities are thus principally planned to optimize work and other practical, rational, pre-conceived objectives, and are designed accordingly, with even leisure space serving welldefined functions. But people do not only gather together in cities to meet their basic physiological needs; they also come to cities searching for love, esteem and self-actualization, and to experience the diversity of the world around them and to learn to understand it. (Maslow 1943, In: STEVENS, 2007, p.16.)

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brincar:

um ato de liberdade


Muitos foram os autores que já se questionaram sobre o “brincar”6, e muitos foram os significados e explicações encontrados para essa atividade tão básica. Mas existe uma noção que está presente em todas as obras sobre o assunto:

Brincar significa sempre libertação. (BENJAMIN, 2002)

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A fim de melhor entender o lúdico, antes de sair à sua busca pela cidade, debrucei-me sobre a obra de Johan Huizinga, de nome muito significativo: Homo Ludens7. Enquanto é muito fácil associar a brincadeira às crianças, Huizinga a discute como um elemento da cultura, como parte determinante da nossa espécie. Abre-se aí a dúvida que se faria presente durante todo o percurso: por que, então, os adultos deixam de brincar?

(6) Brincar, jogo, atividade lúdica, os termos variam de acordo com o autor e a tradução. (7) “Em época mais otimista que a atual, nossa espécie recebeu a designação de Homo sapiens. Com o passar do tempo acabamos por compreender que afinal de contas não somos tão racionais quanto a ingenuidade e o culto da razão do século XVIII nos fizeram supor, e passou a ser de moda designar nossa espécie como Homo faber. (...) Mas existe uma terceira função que se verifica tanto na vida humana como na animal, e é tão importante como raciocínio e o fabrico de objetos: o jogo.Creio que, depois de Homo faber e talvez no mesmo nível de Homo sapiens, a expressão Homo ludens merece um lugar em nossa nomeclatura.” (HUIZINGA, 2014, prefácio)


Sobre as possíveis definições do termo brincar, as quais Huizinga tenta reunir, o autor deixa claro que as mais variadas explicações não se excluem, mas completam-se. Uma das explicações mais recorrentes de porque brincamos, classifica o brincar como uma necessidade biológica. Definições tais quais “descarga da energia vital”, “satisfação de um certo ‘instinto de imitação’”, “necessidade de distensão”, escape para impulsos prejudiciais”, são exemplos da tentativa de encontrar uma função para o brincar. Reflexo do pensamento anteriormente citado de que as coisas devem servir para algo. O próprio autor se encarrega da resposta:

(...) As crianças e os animais brincam porque gostam de brincar, e é precisamente em tal fato que reside sua liberdade. Seja como for, para o indivíduo adulto e responsável o jogo é uma função que facilmente poderia ser dispensada, é algo supérfluo. Só se torna uma necessidade urgente na medida em que o prazer por ele provocado o transforma numa necessidade. É possível, em qualquer momento, adiar ou suspender o jogo. Jamais é imposto pela necessidade física ou pelo dever moral, e nunca constitui uma tarefa, sendo sempre praticado nas ‘horas de ócio’. (HUIZINGA, 2014, p.11) Outra explicação classifica o brincar como uma forma de interação com o mundo. É brincando que entendemos e nos relacionamos com

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o espaço e as pessoas que nos rodeiam, é brincando que aprendemos a resolver problemas na prática, e é brincando que nos tornamos conscientes de nossos próprios limites. Assim, pode-se dizer que se trata de uma forma de aprendizagem. Ainda neste contexto, muitos classificam o brincar como uma forma de preparar a criança para atividades futuras. Cabe ressaltar aqui o caráter educativo que se dá à brincadeira neste caso - em conssonância com a rua, como dito anteriormente.

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Complementar a essa noção de percepção do espaço, outra definição defende que é brincando que nos tornamos conscientes do nosso lugar nele. O jogo te insere na vida social, você participa, é parte de alguma coisa:

(...) a sensação de estar ‘separadamente juntos’, numa situação excepcional, de partilhar algo importante, afastando-se do resto do mundo e recusando as normas habituais, conserva sua magia para além da duração de cada jogo. (HUIZINGA, 2014, p.15) Este trecho evidencia ainda um último caráter a ser ressaltado: a hora de brincar sempre está desconectada da vida real, funciona como um intervalo na vida quotidiana, um complemento. Segundo Walter Benjamin8, para a criança, essa é a hora de criar seu próprio mundo


sem a interferência dos adultos; e para os adultos, uma forma de se afastar dos horrores da vida. Entretanto, o jogo não está deslocado da vida real apenas no campo temporal, como Huizinga explica a seguir:

Todo jogo se processa e existe no interior de um campo previamente delimitado, de maneira material ou imaginária, deliberada ou espontânea. (...) [tais campos] são mundos temporários dentro do mundo habitual, dedicados à prática de uma atividade especial (HUIZINGA, 2014, p.13) E são exatamente estes campos físicos o foco desta pesquisa. Como são, onde estão e por que foram escolhidos tais locais? Existe algo neles que estimula o brincar? Deixemos estas questões em aberto por ora, enquanto nos aproximamos de um segundo tema essencial à discução: o espaço público.

(8) BENJAMIN, Walter. Reflexões sobre a criança, o brinquedo e a educação. São Paulo: Duas Cidades/Editora 34, 2002, p.64.

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espaço público:

o lugar do lúdico


Assim como com o brincar, muitos autores escreveram sobre o espaço público e o que ele representa. Por coincidência, ou não, é quase unânime que trata-se de um local de liberdade de ação. No qual estamos livres de qualquer relação monetária ou de consumo, livres de nossas obrigações cotidianas e livres para ocupá-lo da maneira que nos for mais conveniente. Não seria, então, acertado dizer que todo espaço público é - ou deveria ser - lúdico?

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José Paulo Paes define a infância como “o tempo em que a vida é de graça”. E se o espaço público não está atrelado a nenhum tipo de consumo, não seria ele o espaço da infância na cidade? Não no sentido de ser exclusivo das crianças, mas no de possibilitar momentos em que a vida parece ser de graça, pois ali - mesmo que por apenas alguns momentos - está desconectada daquela idéia de produtividade já tão comentada. Da mesma forma como o brincar está deslocado da vida quotidiana, o espaço público é descrito por Luís Antônio Jorge como o “tempo roubado da vida produtiva”, “intervalo no espaço-tempo”, aproximando ainda mais os dois conceitos. A fim de reforçar ainda mais tal proximidade, destaco uma vez mais um trecho de Stevens, no qual o autor ressalta o caráter social e interativo destes espaços:


It is in public open spaces that people are best able and most likely to engage with the social diversity gathered together in cities. (STEVENS, 2007, p.16) À luz dessas definições, percebe-se grande afinidade entre o espaço público e o brincar, não no sentido de serem sinônimos, e sim no de que o espaço público é o lugar do lúdico na cidade. Por isso, a fim de seguir com a pesquisa, consideraremos tais espaços nossos campos de jogo a serem investigados.

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metodologia:

espaรงos revelados


O renomado arquiteto e urbanista dinamarquês Jan Gehl, conhecido - dentre outros - pelos seus métodos de avaliação de cidades a partir da perspectiva do pedestre, defende9 que as atividades opcionais são grandes medidores da qualidade de um espaço: quanto maior a recorrência de usos não obrigatórios ou necessários, maior a qualidade daquele espaço. Pois, segundo ele, fazemos o que precisa ser feito sob quaisquer condições, enquanto a boa qualidade do espaço é pré-requisito para o desenvolvimento de atividades opcionais. Talvez essa relação diretamente proporcional faça sentido em outros países, entretanto, no Brasil não é bem assim:

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que sentido tem de se falar em qualidade de vida no Brasil, um país onde vida já é qualidade? (MOTA, Flávio. In: JORGE, 2014, 81) Em cidades como São Paulo, onde a carência de espaços públicos é inegável, a manifestação de atividades opcionais nos diz apenas uma coisa: usamos o que temos da melhor forma que podemos. A qualidade está em quem usa, não naquilo que é oferecido pelo espaço.

Geramos diariamente espaços, edifícios e trechos de cidades

(9) GEHL, Jan. Cidade para pessoas. São Paulo: Perspectiva, 2015. p.21


que habitamos, os reinventamos incessantemente com nossos desejos e nossa memória (ROZESTRATEN) Temos presente neste trecho a idéia de que um mesmo espaço físico pode gerar ambientes distintos, pois estes são resultado de atividade interna do usuário, e não apenas um conjunto de elementos dispostos no espaço. Como reforça o trecho de Mayumi Lima:

os espaços transcendem suas dimensões físicas, são entes e locais de alegria, de medo, de segurança, de curiosidade, de descoberta (LIMA, 1989, p.14) Ou seja, são os usuários que conformam o espaço. Melhor, são os usuários que revelam o espaço - e todo o seu potencial. Neste sentido, os chamados, no presente trabalho, espaços revelados só existem quando da interação com as pessoas.

___ É muito comum ouvirmos que São Paulo é uma cidade triste, cinza e feia. Entretanto, como paulistana, em muitos momentos não foi essa a sensação que eu tive da minha cidade. Acredito que o trecho a seguir seja uma boa explicação de porquê isso acontece:

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A cidade, como monstro, causa medo, nos sentimos vítimas prestes a ser engolidos. Mas ao passo que vamos descobrindo seus segredos, nos sentimos mais confortáveis, possuidores dela. (TREVELYAN, 1997) A busca pelos tais espaços lúdicos na cidade é também uma busca pela face mais humana dela, por “espaços que se abram como um convite e não como paisagem”10. Uma busca por espaços de liberdade.

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Para tanto, iniciei uma pesquisa de campo na qual, através da observação - interferindo o menos possível na realidade encontrada -, pude reunir uma série de exemplos de utilização do espaço público que contrariam a proposta original do projeto, evidenciando novas possibilidades para ele. Visto que, em geral, tais manifestações são completamente espontâneas e efêmeras, optei pelo uso do vídeo, a fim de captar ações momentâneas e poder voltar a elas sempre que necessário. A idéia não é a mera contemplação, mas o olhar aprofundado que problematiza o que vê. Segundo a definição de Sérgio Cardoso: “o olhar pensa; é a visão feita interrogação”11. Neste sentido, ao investigar o objeto em

(10) JORGE, Luís Antônio. A má educação das ruas e o desenho da cidade, 2014.


questão, o olhar é, em alguma maneira, transformador.

As coisas não querem mais ser vistas por pessoas razoáveis: Elas desejam ser olhadas de azul - que nem uma criança que você olha de ave. (BARROS, Manuel de) Sem (querer) saber muito bem o que buscava, saí a sua procura. Uma câmera na mão e uma pergunta em mente: como as pessoas se divertem nos espaços públicos? Os locais foram escolhidos pela memória de uso que eu mesma tinha deles, ou por indicações de gente que quis colaborar12. Dias de pescador paciente, olhando o movimento, na expectativa de voltar pra casa com bons peixes. Cheguei a fazer um primeiro teste com a câmera do celular por ser uma ferramenta que estaria comigo o tempo todo e chamaria pouca atenção por conta de seu tamanho reduzido. Mas a qualidade da imagem limitava as possibilidades do estudo pós-filmagem - a captura de frames, por exemplo, foi uma prática bastante utilizada para gerar

(11) CARDOSO, Sérgio. O olhar do viajante. In: NOVAES Adauto, org. O Olhar. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. (12): muitas indicações vieram da hashtag criada para este trabalho no instagram, falarei disso mais adiante.

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“fotos” a partir dos vídeos, e com as imagens do celular isso não era possível. Além de me obrigar a estar perto da cena para conseguir filmá-la. Optei então pelo uso de uma câmera Canon T2i com uma lente 55250mm, pois, apesar de grande e chamativa, possibilitava que eu me posicionasse longe das cenas, de forma a não constranger as pessoas em seus momentos de lazer, garantindo a espontaneidade da ação. Outra vantagem é que, num espaço aberto, com muitas pessoas, várias coisas acontecem simultaneamente, e essa lente me permitia filmar coisas acontecendo a diferentes distâncias com a mesma qualidade, sem ter que ficar me deslocando. 34

Inicialmente, visitei os locais acompanhada, por medo - por mim e pela câmera. Mas com o tempo percebi que era, não apenas possível, mas extremamente tranquilo sair para filmar sozinha, sem depender da disponibilidade de outras pessoas. Confirmando a teoria de que quanto mais distantes somos da cidade, mais ela nos assusta. Visitei lugares diversos, a princípio, durante dois meses. A seguir, o relato de alguns deles, que considero mais relevantes.




16.ago | Instituto Butantã Um domingo de sol em um ambiente controlado. Não é exatamente o melhor exemplo dos lugares que eu me propus a procurar, mas foi onde eu comecei. De cara fui atraída por uma grande clareira ocupada por muitas pessoas que a utilizavam das mais diferenciadas maneiras, que mais tarde descobri ser um heliponto. A principal característica que pôde ser observada é que, justamente por ser um lugar considerado mais seguro, os usuários em sua maioria tratavam-se de famílias com crianças pequenas; e que o espaço funcionava bem justamente por acolher usos de dois tipos que dividi da seguinte maneira: de ação - correr, andar de bicicleta, jogar bola, escorregar; e de permanência - repousar, comer, conversar. Em geral, a primeira categoria agradando às crianças, e a segunda, aos adultos. Mas o que mais me interessou nesta visita foi o fato de que, por mais difersificados que fossem os usos, quase nenhum usuário era o único em sua atividade. Era possível encontrar mais de um exemplo da mesma ação e, em geral, isso estava associado às características físicas do espaço: piqueniques na região sombreada por árvores de inclinação suave, pais observando seus filhos da região mais alta, crianças escorregando na área mais íngreme do terreno, etc. Tais características não haviam sido pensadas para essas atividades, mas de alguma forma influenciavam o uso lúdico daquele espaço. Essa idéia e a vontade de entender como isso se dava estiveram presentes em todas as visitas que se seguiram.

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17.set | Largo da Batata Uma manhã desértica de quinta-feira. A Batata estava vazia de uma maneira que eu nunca tinha visto antes. São Paulo é realmente a cidade do trabalho e, como era horário comercial, a maioria das pessoas estavam apenas de passagem, muito apressadas. Entretanto, um olhar mais atento mostrou que haviam sim pessoas usando efetivamente aquele espaço: todas escondidas em pequenas sombras - algo quase inexistente no largo. Em geral os usuários procuravam abrigo do calor que fazia aquele dia e um lugar para se sentar, exceto por um grupo de músicos que ensaiava sua arte. 38

A falta de usuários me permitiu deixar a câmera de lado por um tempo, a fim de me dedicar a alguns desenhos. Na tentativa de representar o espaço em sua totalidade, em planta, me dei conta que a noção de relação de tamanho entre os diversos setores do largo que eu tinha era completamente distorcida. Os lugares onde normalmente vejo pessoas pareciam muito maiores do que aqueles que eram apenas de passagem.

Cada objeto investido de espaço íntimo se torna, nesse coexistencialismo, centro de todo o espaço (BACHELARD, 1993, p.329) A gente descobre que o tamanho das coisas há que ser medido pela intimidade que temos com as coisas (BARROS, 1993, parte XIII)




22.set | Praça Ouvidor Pacheco e Silva e Viaduto do Chá Por se tratar de uma tarde durante o horário comercial, esperava encontrar o mesmo que encontrei no Largo da Batata. Mas fui surpreendida por um grande número de pessoas usando os espaços em questão. As pessoas que estavam na praça, que passou recentemente por uma interverção, foram atraídas até ali exatamente pelas mudanças. Quase todos os usuários estavam sobre a estrutura de madeira recémconstruída, sentados ou deitados, diretamente nela ou em cadeiras de praia oferecidas pela prefeitura. Em sua maioria usando o celular, ao que se pressupõe: usando a nova rede de wi-fi ali disponível. Fora isso, um elemento antigo continua a atrair gente de todas as idades: o vento que sopra dos respiros do metrô. Apesar de serem gradeados para que ninguém suba ali, vez ou outra é possível ver alguns usuários se aventurando por alguns segundos - até a guarda civil aparecer e dizer que não pode. A alguns metros dali, o viaduto, num primeiro olhar parecia normal. Com gente indo e vindo sem ali se demorar. Entretanto, um olhar mais atento poderia perceber que havia algo de novo: pendurados em sua estrutura, enormes balanços deciam até o Vale do Anhangabaú. O local, que costuma estar vazio com exceção de quem ali vive, convidava os passantes - que normalmente têm medo - a parar por alguns instantes e ver a paisagem de uma outra perspectiva. E, na minha opinião, o mais interessante: sem expulsar os moradores dalí.

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30.set | Largo do Arouche Em uma tarde durante a semana, encontro o Largo do Arouche com praticamente todos seus assentos ocupados por pequenos grupos conversando. Pelo olhar que todos lançam a mim e aos amigos que me acompanham, claramente todos sabem que nós não somos dalí. Trata-se de um ambiente “familiar”, no sentido de que todos alí se conhecem e são um personagem que pertence àquele cenário. Isso muda completamente a relação das pessoas, é impossível ser invisível neste lugar, onde todos estão como se estivessem em suas salas de estar. 42

Em meio a esse clima bairrista em pleno centro de São Paulo, uma criança chama a atenção. Andando sobre uma grelha linear, faz de conta que é um trem nos trilhos, arrastando os pés e fazendo “piuí!”. Ao encontrar um banco de madeira de formas orgânicas onde algumas pessoas estão sentadas, rapidamente esquece o trem e corre para escalá-lo. Em questão de segundos o banco, que até então era apenas um banco, é trepa-trepa, escorregador, passarela e tudo mais que ela quiser. Nunca mais verei um ralo e um banco da mesma maneira, não depois dela ter me apresentado essas novas possibilidades.




30.set | Praça Roosevelt Outro lugar de clima intimista: as pessoas que chegam na praça cumprimentam todos, os usuários estão claramente à vontade para se portar como quiserem e todos reconhecem alguém que não pertence ao lugar. Com a diferença que aqui quem domina são os jovens, principalmente aqueles ligados à cultura do skate. Existe, no projeto, uma tentativa de setorização dos usos reforçada pelo uso de placas. O que, claramente, não funciona. Em sua parte central, que funciona quase como o coração da praça, é onde a maioria de seus frequentadores gosta de estar: é ali que todos os encontros se dão, é ali que cada um se faz visto. Segundo as placas, este não é o lugar dos skatistas, mas é onde eles estão. Outros usos são observados na praça, mas em posições mais periféricas e em menor quantidade. Percebo pela primeira vez a existência de uma exclusão mútua de usos: “if public spaces prioritise one kind of need, the people not motivated by that need will be inclined to stay away.” (Mean and Tims 2005:52, Ludic City). Tal exclusão se dá menos pelo projeto, neste caso, e mais pelo uso. Seria a contraposição do revelar espaços, pois ao revelar determinado uso, inibe, não intencionalmente, outros. Um detalhe pequeno me chama muito a atenção e vale a pena ser destacado: a presença de um plano inclinado em concreto, no qual meninos se divertem da mesma maneira antes observada em taludes de grama.

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16.out | Largo da Batata Voltei ao Largo da Batata, dessa vez no fim da tarde de uma sexta-feira, horário em que as pessoas estão saindo do trabalho, se preparando para o fim de semana. O clima era completamente outro: rodas de cerveja, casais abraçados, meninos jogando futebol, coletivos instalando novos mobiliários.

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A distribuição dos usos pelo espaço no largo é algo peculiar. Se dá sob forte influência de um elemento de projeto: existência ou não de postes de iluminação. Ao longo do tempo, por falta de qualquer tipo de mobiliário no local, os próprios usuários se mobilizaram para construir e instalar bancos e hortas, sempre perto das fontes de luz. Tais intervenções são as responsáveis por atrair mais pessoas para estas áreas determinadas. Nas regiões não mobiliadas, vemos a presença do futebol e do skate. A noção de privacidade em um espaço público foi algo que despertou minha curiosidade. O que me chamou a atenção para o tema foi a grande quantidade de casais, agindo com total liberdade e pessoas conversando sobre assuntos íntimos em um local com tantas pessoas estranhas a elas. Tudo isso se torna possível, neste ambiente, por algum grau de isolamento, podendo ser ele visual (mobiliário que não permite a visão de quem está ao seu lado) ou sonoro (a distância e o ruído externo não deixam que um grupo escute o outro).




18.out | Avenida Paulista Primeiro dia de Paulista Aberta todo domingo. É o assunto do fim de semana. E, ao meu ver, a comprovação da carência de espaços de lazer em São Paulo. Não é um parque, é uma avenida, e mesmo assim é vista como a maravilha das maravilhas. A grande comoção está em ocupar com o próprio corpo o espaço que, geralmente, é dos carros. Ver a paisagem de outro ponto de vista, em outro ritmo, em outro contexto. É engraçado reparar que, mesmo sem a presença de automóveis, a avenida não deixa de funcionar como avenida: a via continua funcionando como deslocamento, o sentido do fluxo é respeitado, os semáforos mantém sua função a fim de permitir a travessia de pedestres, ninguém obstrui a via. Resumindo, a ausência de carros não faz da Avenida Paulista um parque. Entretanto algumas relações sofrem alterações, como era de se esperar. Com a velocidade reduzida e a ausência de veículos motorizados, a sensação de conforto e segurança do pedestres aumenta, permitindo novas formas de ocupação dos espaços - como sentar-se na guia, desenhar com giz no asfalto, caminhar lentamente na faixa central, etc.

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Após cada uma das visitas, assisti atentamente aos trechos filmados e os dividi por tema conforme eles iam aparecendo.Não estabeleci categorias antes das filmagens com a intenção de ir a campo sem um olhar guiado, a fim de restringir o menos possível a investigação.

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Entretanto, o próprio exercício do olhar, ao longo do tempo, começa a delinear contornos. Dessa forma, algumas categorias foram se consolidando no decorrer desses dois meses, enquanto outras foram aos poucos deixadas de lado. Um fator que influenciou muito neste processo, também, foi o tipo de espaço visitado; comecei a escolher locais muito similares - principalmente em áreas centrais - sobretudo, pela facilidade de acesso e quantidade de usuários, acabando por reforçar certos exemplos em detrimento de outros. A fim de concluir essa etapa do trabalho, de forma a produzir uma síntese do que havia sido observado, debrucei-me sobre os grupos de vídeos previamente separados e elegi os mais representativos. Com isso, pude desenvolver um clipe13 - organizando os exemplos encontrados - que, não apenas compilava o que tinha sido feito até então, mas era capaz de comunicar a idéia do trabalho como um todo.

(13) TIEZZI, Vivi. Cidade é pra brincar! 2’32”. Disponível em: <https://www.youtube. com/watch?v=7h2dv4wfsKY>.




mapeamento colaborativo:

#cidadeĂŠprabrincar


Logo no começo da pesquisa de campo, me deparei com a dúvida: como escolher os espaços a serem visitados? Era uma cidade inteira de possibilidades e coisas acontecendo, e eu era apenas uma pessoa com uma câmera, tentando recolher o maior número de exemplos possível. Foi quando, em conversas com amigos, muitos se mostraram interessados em ajudar, em recomendar lugares, em contar coisas que viram. Na tentativa de compilar toda essa colaboração, criei o perfil de Instagram e a hashtag vivisp, que mais tarde se tornaram #cidadeéprabrincar (instagram.com/cidadeeprabrincar)

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Através deste perfil, num primeiro momento, convidei os usuários da rede a contribuírem com a busca com a seguinte proposta na descrição da página:

Projeto viviSP: pessoas que realmente vivem a cidade e reinventam os espaços públicos | colabore: poste usando a #vivisp e apareça aqui Com o número limitado de caracteres disponível para a descrição, optei por deixar os termos lúdico e brincar de fora. Em geral, eles são rapidamente associados a crianças ou brincadeiras e jogos propriamente ditos, deixando de lado uma gama de usos que, neste trabalho, são considerados lúdicos. A divulgação foi feita em sua grande parte por boca-a-boca, e com a ajuda do Facebook - publicando em minha página pessoal e em grupos



Carolina Junqueira Calefação Tropicaus

Carla Takushi Mirante 9 de Julho

Larissa Candro Paulista Aberta

Ana Costa Paulista Aberta

Diego Pirata Parque Minhocão

Denis Araújo Paulista Aberta

Patricia Tsunouchi Ocupa Food Park

Juliana Stendard Festival O.bra

Renata Peres Ocupa Cambuci


de temáticas relacionadas. A colaboração foi intensa no início, quando muita gente voltou às suas galerias buscando fotos antigas que se encaixavam no tema. As imagens davam uma idéia do que as pessoas entendem por usar o espaço público e me ajudaram a escolher lugares para visitar. Em sua maioria, as fotos recebidas foram tiradas em eventos, ou seja, fora da normalidade do dia-a-dia: o fechamento da Paulista para o trânsito de automóveis aos domingos, o novo horário de funcionamento do Minhocão, feiras de pequenos produtores se apropriando de ruas e estacionamentos, festas animando o centro da cidade aos fins de semana; sempre com um mínimo de organização por parte de alguém, seja público, privado ou promovido por coletivos. Com isso percebi duas coisas: a vontade de ocupar tais espaços existe, só precisa de um incentivo, que nesses exemplos é representado por esses eventos emergentes; e o papel das redes sociais na mobilização de pessoas para que tais eventos aconteçam. Essas observações pautaram os passos seguintes. Num segundo momento, já com o vídeo síntese da pesquisa de campo em mãos, foi possível direcionar mais a pesquisa. O vídeo, que finalmente se assemelhava muito a um trailer, além de servir como incentivo para explorar a cidade, funcionava como um guia do olhar, explicando de forma clara e rápida o que o projeto buscava. Foi então que mudei o nome do perfil, aproveitando para expandi-lo.

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A conta no Instagram passou a se chamar Cidade é pra brincar! e ter a seguinte descrição:

A cidade é um imenso parquinho, como você brinca nela? Mostre com a #cidadeéprabrincar e entre pra nossa galeria

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Ao repostar fotos de outros usuários ou as minhas próprias, tomei o cuidado de inserir, sempre que possível, os endereços de onde foram capturadas. Com essa informação, o próprio aplicativo do Instagram gerava automaticamente um mapa, o que era extremamente interessante, pois espacializava a informação. Entretanto, este não era fácil de entender, nem de manusear, o que me levou à criação de um outro14 no Google Maps (imagem da página ao lado), vinculando-o com a galeria de fotos. A plataforma é muita conhecida, sendo de fácil compreensão; e passível de ser acessada pelo computador e/ou celular. Cada um dos pontos vermelhos corresponde a uma contribuição coletada no Instagram. Clicando em qualquer um deles, tanto na lista como no mapa, você tem acesso às imagens daquele lugar. A atualização dessa informação é constante e inteiramente manual, de forma bem simples.

(14) Cidade é pra brincar. Disponível em: <https://www.google.com/maps/d/u/0/ viewer?hl=pt-BR&authuser=0&mid=1ubj4eQpPjORPKLiVVAK0Pcv9Ufg >.



O mesmo nome foi usado para criar uma página no Facebook (facebook. com/cidadeeprabrincar), a fim de unir toda a informação e comunicar melhor o que estava sendo feito. Na descrição da página:

Cidade é pra brincar é um mapeamento colaborativo das potencialidades dos espaços públicos escondidas na rotina agitada das cidades.

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Colabore enviando fotos e vídeos que mostrem toda e qualquer forma de brincadeira que encontrar! Vale usar a #cidadeéprabrincar nas redes sociais, vale mandar inbox no facebook, vale mandar direct no instagram (@ cidadeeprabrincar). Só não esqueça de informar o endereço onde a brincadeira aconteceu para entrar no mapa. Tendo consciência de que o Facebook hoje tem menos impacto sobre o público do que o Instagram, decidi fazê-lo mesmo assim por uma série de motivos: necessidade de uma página central que comunicasse o processo em sua totalidade e fosse capaz de redirecionar às outras páginas; a diversidade de conteúdo (texto, foto, vídeo, gif) comportada pela plataforma; a possibilidade de interação com grupos de temáticas relacionadas; e, principalmente, a necessidade de dar uma cara ao projeto - poder postar, não mais como pessoa, mas como figura (o que antes só era possível no Instagram). Buscando proporcionar tal unidade e maior credibilidade ao projeto,


desenvolvi uma imagem para usar em ambos os perfis, que acabou por pautar toda a comunicação do projeto e hoje é capa deste volume. A ausência de cores e de tipos infantilizados vai contra o senso comum de projetos que discutem o brincar, assim como o título - quase mais uma ordem do que um convite. Isso não aconteceu por acaso. A idéia aqui é discutir o brincar como uma crítica a essa lógica de produção que constrói e move cidades. Não faz sentido tratá-lo como “coisa de criança”, mas como um ato de rebeldia. Numa sociedade onde tudo tem função: rua é pra passar, banco é pra sentar, paisagem é pra observar... e se a cidade fosse pra brincar? A opção pelo uso de plataformas existentes e conhecidas pelo público, tampouco foi ao acaso. A intenção é estar o mais perto possível do usuário, sem complicações ou esforços desnecessários, a fim de conseguir maior participação. Em determinado momento surgiu a idéia de criar um site ou um aplicativo específico para o trabalho, mas esses recursos seriam apenas mais uma barreira entre a proposta e o usuário. Além disso, a utilização de plataformas que já existem é análoga à apropriação do espaço público em discussão: pensar novos usos para estruturas dadas.

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projeto:

cidade ĂŠ pra brincar - o jogo


Com o decorrer da pesquisa, me pareceu estranho falar sobre ocupar os espaços públicos e manter toda a discussão apenas na internet. Eu precisava devolver essas informações para a rua e, ao mesmo tempo, criar uma forma do projeto também ser um incentivo para o uso dos espaços públicos. Surgiu então, inspirada no trabalho do grafiteiro Invader15, a vontade de transformar tudo isso em jogo - se vamos falar de brincar, por que não fazer isso brincando? O jogo funciona como uma espécie de caça ao tesouro, no qual o jogador é convidado a explorar quatro pontos espalhados pela cidade em toda sua potencialidade. São eles: Praça Roosevelt, Largo da Batata, Minhocão e Avenida Paulista. 64

Para jogar é só acessar a página do Facebook do Cidade é pra brincar e clicar em jogar. O botão te encaminhará automaticamente para o mapa - o mesmo do mapeamento colaborativo - onde você encontrará, além dos pontos vermelhos, outros amarelos. Basta escolher um deles, conferir sua localização e sair para explorá-lo. Para cada um, foi desenvolvido um vídeo que mostra várias maneiras de brincar aquele

(15) O artista esconde pequenas intervenções pela cidade e atribui pontos a elas. O mapa contendo a localização de todas, assim como a pontuação podem ser encontrados em um folder ou online. Disponível em: <https://www.google.com/maps/ d/u/0/viewer?mid=1u3Rk5ZFf4fp6E2aYG7oDI7iVSXQ&hl=en_US>.


espaço, e faz um convite ao jogador para que ele mostre também a sua própria forma de se divertir ali ou exemplos que encontrou. Tais vídeos podem ser acessados no próprio mapa ou então por QR-codes disponíveis no local, incluindo, dessa forma, tanto internautas como passantes desavisados. A contribuição com qualquer tipo de registro (foto, vídeo, etc) através da #cidadeéprabrincar comprova que o jogador esteve alí. O jogo termina quando o mesmo jogador tiver visitado os quatro pontos. A idéia é, focando em alguns pontos específicos, aumentar a alimentação de dados sobre estes espaços, formando um mosaico de usos mais completo. E, através dessa proposta de jogo, levar as pessoas para a rua, levar os vídeos de volta para os lugares onde eles foram filmados, inspirando, assim, um questionamento dos usuários sobre todo o potencial escondido ali; além de funcionar, na internet, como propaganda para quem ainda não conhece tais espaços. A fim de ser o mais acessível possível, o jogo se utiliza das mesmas plataformas que já haviam sido usadas em fases anteriores do projeto. A única novidade é o canal no YouTube, que concentra todos os vídeos em apenas um lugar. Mas, em geral, o acesso a eles continua sendo feito pelo Facebook, uma vez que os QR-codes redirecionam o usuário para um post e não para o canal. Ainda neste sentido, os lugares de intervenção foram escolhidos tendo em mente a probabilidade de participação. Ou seja, com base

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na quantidade de dados recebidos durante as fases anteriores, elegi os lugares que atraem mais pessoas e inspiram registros fotográficos. Todos os quatro pontos escolhidos estão muito presentes na discussão e na cultura emergente de ocupar a cidade, assim como apresentam uma série de usos variados, atendendo a públicos diversos. Tornando, portanto, maior a possibilidade de engajar usuários e gerar material diversificado e completo.

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O desejo era de que as intervenções fossem discretas, sem que passassem despercebidas. Decidi por placas em acrílico, por conta da durabilidade e resistência do material, e porque, dessa forma, elas não se perderiam no meio dos lambe-lambes e adesivos presentes nestes espaços. Cada intervenção consiste em uma dupla de placas: uma contendo o título do projeto e a outra um QR-code. Ambas medem 15x15cm e, por funcionarem como módulos, podem ser instaladas vertical ou horizontalmente, dependendo da superfície encontrada. O acrílico foi comprado em chapas de 2mm de 50x50cm, nas cores branca e preta, cortadas em uma máquida de corte a laser e coladas com cola acrílica. Para a instalação, usei dupla face de espuma de fixação extrema. No total produzi oito pares de placas, dois para cada um dos quatro pontos. As passagens de jogadores pelos pontos do jogo foram sendo publicadas no Instagram conforme elas chegavam a mim, da mesma maneira que já acontecia com o mapeamento colaborativo geral.




A diferença é que nestes casos eu inseri um filtro a mais na repostagem: #[nomedolugar]éprabrincar, gerando, assim, uma galeria específica para cada um dos quatro pontos. Estas podem ser acessadas de três maneiras: digitando a tag no campo de busca no aplicativo, clicando sobre a tag na legenda de qualquer uma das fotos, ou ainda pelo link presente na descrição dos pontos no mapa. A fim de ter o jogo funcionando por mais tempo e, ao mesmo tempo, gerar dinamismo na página, lancei cada ponto separadamente, um por semana durante um mês. Dessa forma podia desenvolvê-los separadamente e ter respostas de alguns pontos mesmo que os outros não estivessem concluídos. 06.maio | #1 Praça Roosevelt 14.maio | #2 Largo da Batata 22.maio | #3 Minhocão 28.maio | #4 Avenida Paulista

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ponto #1:

qual a sua roosevelt?





ponto #2:

qual a sua batata?





ponto #3:

qual o seu minhocĂŁo?





ponto #4:

qual a sua paulista?





consideraçþes finais:

resultados


Patrícia Miho A primeira pessoa a visitar os quatro pontos! As fotos de Patrícia confirmam a constatação feita na primeira fase do trabalho: os usuários tendem a ocupar o espaços públicos quando há algum tipo de incentivo. Com exceção da foto tirada no Largo da Batata, onde estava em um piquenique com amigos, as outras duas fotos e o vídeo enviados por ela retratam eventos organizados.

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O vídeo mostra casais dançando na Praça Roosevelt durante um show de jazz; a foto tirada no Minhocão mostra ele lotado de gente em um dia de feirinha; e a foto da Paulista retrata o primeiro dia de Paulista Aberta aos domingos. Este conjunto de fotos é a perfeita ilustração da sensação que Huizinga chama de estar “separadamente juntos”. Os momentos lúdicos registrados por Patrícia são todos experimentados de forma coletiva, onde o usuário se sente parte de um evento único, afastado da normalidade e divide o mesmo sentimento com os outros usuários envolvidos. O desejo que existe em cada um de ocupar a cidade é reconhecido e validado no desejo do outro.Neste sentido, fica evidente o papel das redes sociais na mobilização de pessoas com interesses em comum, a fim de se organizar entorno deles e promover algo novo, que talvez não fosse possível sem essa ferramenta.




Diego Pirata Fotógrafo urbano e maior contribuidor durante todo o processo, Diego também completou os quatro pontos. Dado seu interesse prévio em fotografar as ruas de São Paulo e seus moradores, percebe-se que seu olhar sobre o lúdico na cidade é completamente outro - muito mais de observador do que de ator. Neste conjunto de imagens, percebemos ações mais espontâneas, quase parte da rotina: pelada com os amigos, skate na praça, roda de samba; eventos que não precisam de muito fora os próprios usuários para acontecer. Diego se posiciona fora da cena, muito como eu em meus vídeos. Tratase de um exercício de observação, que não deixa de gerar reflexão sobre os espaços: a rua como campinho, o painel do ponto de ônibus como mobiliário de manobra para o skate, a esquina da praça como pista e a calçada como palco. Estes exemplos são representativos do caráter da atividade lúdica como reveladora de potencialidades; e da tomada de consciência, por parte do usuário, do seu poder como transformador e gerador de espaços.

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Vicente Tito De cara, Vicente chama a atenção por, não apenas aceitar o convite para o jogo, mas também se colocar como ator da brincadeira. Sua foto com o bambolê na Avenida Paulista, no lugar que geralmente é ocupado pelos carros, evidencia a mudança de relação com os espaços através de seus usos lúdicos. Até pouco, imaginar essa cena na principal avenida da cidade era impensável; mas agora, com certo tempo de sua abertura para os pedestres, novos usos são inventados e descobertos a cada dia.

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Outro ponto que vale ser destacado das fotos de Vicente é a interação dos usuários com o mobiliário do Largo da Batata. Além de cumprir sua função de prover lugares para se sentar à sombra - evidente no adulto sentado, o mobiliário em questão inspira a brincadeira - como pode ser visto nas crianças se pendurando na estrutura. Essa foto é um exemplo do papel do design de mobiliário na construção, e até subversão, das relações usuário-espaço, onde, neste caso, ele resignifica um espaço que anteriormente era apenas de passagem. E o faz com um projeto que, ao mesmo tempo em que atende às suas funções primárias - sombra e repouso, inspira e estimula a imaginação, deixando o usuário livre o suficiente para interagir de outras formas, exatamente o que defende Mayumi Lima sobre a construção de espaços para crianças.




Mariana Demuth Mariana também se coloca dentro da cena, e vai mais além, intervém no espaço. Em sua foto do Minhocão, retrata um dia de feirinha, no qual ela, com mesas e araras de roupas, reconfigura a via, apropriandose dela como algo íntimo. Dessa forma, retoma um dos significados originais de espaço público, o de ser uma pausa da vida produtiva, pois, apesar de estar praticando uma atividade comercial, é um comércio que quebra com a lógica de produção das grandes cidades. Ela também traz dois exemplos de como o lúdico pode se manifestar: na brincadeira das crianças - gira-gira e patinete; e no ócio dos adultos - a simples contemplação. E como todas essas atividades convivem bem no espaço público, retomando seus verdadeiros significados. Neste conjunto de imagens temos mais uma vez a confirmacão da influência do mobiliário e do próprio desenho do espaço no comportamento de seus usuários. O piso elevado no Largo da Batata que atrai uma roda de amigos; o gira-gira no MASP que atrai as crianças e os bancos ao fundo repleto de observadores; o poste de luz que vira encosto para o casal na Praça Roosevelt; a nova configuração do canteiro central do Minhocão transformando-o numa feira. Eles são o impulso para que a ação aconteça, mas a atividade geradora de tal ambiente é interna e depende do usuário.

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Este breve experimento nos mostra um desejo inegável por parte dos cidadãos em ocupar suas cidades. Cada vez mais as pessoas invadem os espaços que são delas por direito, e desse contato nascem inúmeras novas possibilidades, bem como uma nova consciência. Abaixo a produtividade. Abaixo a eficiência. Viva o ócio! Viva a brincadeira! A cidade não é uma máquina.

Cidade é pra brincar!



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legenda das imagens


pg. 8 - parquinho do Parque Ibirapuera pg. 14 - automóveis na Avenida Paulista pg. 18 - meninas se divertem em estrutura em desuso na Praça Kantuta pg. 24 - intervenção do Basurama no Vale do Anhangabaú pg. 28 e 35 - pesquisa de campo, por Guilherme Pimenta pg. 36 - pique-nique no heliponto do Instituto Butantã pg. 39 - homem desenhando no Largo da Batata pg. 40 - escoteiras se divertem no respiro do metrô na Praça do Ouvidor pg. 43 - menina se diverte com o banco no Largo do Arouche pg. 44 - menino escala parede na Praça Roosevelt pg. 47 - início de noite no Largo da Batata pg. 48 - Avenida Paulista aberta aos pedestres pg. 51 - tela do programa de edição de vídeo (Premiere Pro) pg. 52 - família tira selfie sentada na calçada no Cambuci pg. 59 - mapa do Cidade é pra brincar em 9 de junho de 2016 pg. 62 - placas do jogo fixadas na Praça Roosevelt pg. 67 - placas do jogo (em acrílico) pg. 68 - placas implantadas pg. 70 - garotos se divertem na Praça Roosevelt pg. 72/73 - storyboard do vídeo “Qual a sua Roosevelt?” pg. 74 - meninos conversando no Largo da Batata pg. 76/77 - storyboard do vídeo “Qual a sua Batata?” pg. 78 - domingo no Minhocão pg. 80/81 - storyboard do vídeo “Qual o seu Minhocão?” pg. 82 - casal caminha na Avenida Paulista pg. 84/85 - storyboard do vídeo “Qual a sua Paulista?” pg. 86 - jogador usando o celular pg. 97 - homem de bicicleta no Minhocão

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bibliografia bรกsica


HUIZINGA, Johan. Homo Ludens: o jogo como elemento da cultura. São Paulo: Perspectiva, 2014. BENJAMIN, Walter. Reflexões sobre a criança, o brinquedo e a educação. São Paulo: Duas Cidades/Editora 34, 2002. JORGE, Luís Antônio. Sobre as espessuras e as veredas das artes do projeto. In: NOSEK, Vitor, org. Praça das Artes. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2013. JORGE, Luís Antônio. A má educação das ruas e o desenho da cidade. In: Revista Contraste nº3, 2014. LIMA, Mayumi Souza. A cidade e a criança. São Paulo: Nobel, 1989. 101

STEVENS, Quentin. The Ludic City: exploring the potential of public spaces. Oxon: Routledge, 2007. STEVENS, Quentin. The how and where of urban play. 14’26”. Bruxelas, 2012. Disponível em: <https://vimeo.com/54131664>. Acesso em: 8 out. 2015. ROMÁN, Marta. Infancia y Movilidad. Toparse con la realidad. 20’41”. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=vBb91vNeViU>. Acesso em: 22 jul. 2015. TARJA Branca. Direção: Cacau Roden. Produção: Maria Farinha Filmes, 2014. Documentário, 80’. Disponível em: < https://www.youtube.com/ watch?v=dTB99SdN7BA>. Acesso em: 12 out. 2015.


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bibliografia complementar


ALMEIDA, Elvira de. Arte lúdica. São Paulo: EDUSP, 1997. KUASNE, Selma Maria. Um pequeno tratado de brinquedos para meninos quietos. São Paulo: Peirópolis, 2009. LE CORBUSIER. O espaço indizível. Paris, 1945. ROZESTRATEN, Artur. Ensaio para diálogos futuros sobre o espaço indizível. MUNARI, Bruno. Fantasia: invenção, criatividade e imaginação na comunicação visual. Lisboa: Presença, 1981. CARDOSO, Sérgio. O olhar do viajante. In: NOVAES Adauto, org. O Olhar. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. CARVALHO, Amanda. Brinquedo máquina, Brinquedo Escultura. Trabalho Final de Graduação. São Paulo: FAUUSP, 2014. OLIVEIRA, Rayssa. Espaços afetivos na escola. Trabalho Final de Graduação. São Paulo: FAUUSP, 2014. BRUM, Eliane. Mãe, onde dormem as pessoas marrons? In: El País Online, 22 jun. 2015. Disponível em: < http://brasil.elpais.com/ brasil/2015/06/22/opinion/1434983312_399365.html>. Acesso em: 16 nov. 2015.

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