{voz da literatura} | n. 4 agosto 2018

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GOETHE: POESIA E VERDADE entrevista com o tradutor Maurício Mendonça Cardozo HQs

HÁ DRAGÕES NA INTERNET

ANGOLA

REVISTAS LITERÁRIAS

super-heróis protagonizam romances de ficção no mercado literário

Demi Getschko inaugura a seção “sapere aude”

a escritora angolana Maria Celestina Fernandes traça breve panorama da literatura infantil em seu país

artigo raro de Paulo Leminski sobre revistas literárias dos anos 70

{} + antonio candido | música | cinema | tradução | pesquisas | teatro | brasis | agenda | crítica | redes sociais


{CAPA} LEONARDO DA VINCI (1452-1519). Desenho de uma máquina voadora (final dos anos 1480).

{} colaboradores desta edição Alice Ruiz Antonio K.valo Aurea Leminski Beatriz Reingenheim Claudio Alves Demi Getschko Devair Antônio Fiorotti Eduardo Luz Eleazar Venancio Carrias Estrela Ruiz Leminski Fabiano Curi Graziella Beting Isa Oliveira Joana Rodrigues Joyce Muzi Leonardo da Vinci {in memoriam} Letícia Alves Lucas Nobile Maria Amélia Dalvi Maria Celestina Fernandes Mateus Baldi Maurício Mendonça Cardozo Narcisa Amália {in memoriam} Patricia Peterle Patrícia Portela Paulo Leminski {in memoriam} Paulo Roberto Barbosa Rejane Rocha Renata Sanches Rosana Zanelatto Sonia Pascolati W. J. Solha Yuri Al’Hanati {} editor Rafael Voigt Leandro

{voz da literatura} revista de crítica e divulgação de obras literárias e afins. independente, mensal, gratuita e distribuída digitalmente. www.vozdaliteratura.com | facebook | instagram vozdaliteratura@gmail.com brasília-df | tiragem digital: ilimitada. {2}


{ ANTONIO CANDIDO

{ foto: Mary Lafer, 1984}

seção especial

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{antonio candido}

Antonio Candido, o crítico literário de jornal {} por JOANA RODRIGUES

N

este mês de julho, Antonio Candido completaria 100 anos. Não seria difícil encontrá-lo em uma comemoração familiar, entre netos e as filhas, Ana Luísa, Laura e Marina. Até se poderia pensar que, ao lado de sua esposa, a professora Gilda de Mello e Sousa, ele retomaria os bem humorados causos que gostava de contar nesses encontros mais intimistas. Mas se a reunião se estendesse aos amigos, haveria de ocupar um espaço muito maior que as salas de aulas da USP, da Unicamp e da Unesp (campus de Assis), por onde reuniu um número expressivo de alunos e alunas ao longo de quatro décadas de docência. Isso sem contar nos colegas militantes da literatura, dos direitos humanos e da política que se espalharam em uma diversidade de classes sociais, de idades e de escolhas ideológicas. Agora, se para a celebração do centenário fossem chamadas as amizades fora do Brasil, os festejos tomariam dimensões maiores.

tre os dois amigos resultou em um farto acervo intelectual, registrado em parte pela correspondência trocada entre eles, que teve organização numa publicação recente de Pablo Rocca e em projetos comuns como a criação da Biblioteca Ayacucho, uma coleção de mais de 300 títulos de obras voltadas para humanidades, em que não faltaram autores brasileiros. Isso sem falar na participação conjunta de projetos como a criação de um Centro LatinoAmericano, que não vingou, mas que resultou na publicação dos três volumes de América Latina Palavra, Literatura e Cultura. Obra essa organizada pela professora chilena Ana Pizarro que contou com a colaboração de cerca de cem estudiosos distribuídos pela Europa, Estados Unidos e América Latina e da dupla Candido e Rama, a quem pertencia a ideia original do projeto, que, entre outras coisas, ambicionava a realização de uma obra maior sobre a história da literatura da América Latina.

Mas ficamos com a memória que nos ajuda a alimentar a história. E puxamos o fio que uniu Candido à vizinhança intelectual latino-americana, ao voltarmos para o começo dos anos 1960, quando o jovem professor de Literatura chegou a ter – por um dia – Vinícius de Moraes entre os estudantes do curso de literatura brasileira ministrado no verão daquele ano em Montevideu, e lá conheceu o crítico uruguaio Ángel Rama. Foi ali, no ambiente universitário das dependências da Udelar (Universidad de la República), que os dois iniciaram uma amizade para além das linhas do mundo acadêmico, permeada pela militância da crítica literária e pela afetividade.

Afora, a amizade, Candido e Rama tiveram, em comum, nessa relação de congenialidade intelectual, a atuação como críticos literários na imprensa. Cada um em seu tempo e em seu país, eles tiveram as páginas dos jornais como parte de seu laboratório de escrita. Candido, na década de 1940, assinou a coluna semanal ou rodapé, como se chamava na época, Notas Críticas de Literatura na extinta Folha da Manhã hoje Folha de S. Paulo durante um ano e meio, transferindo-se em seguida para o Diário de São Paulo, em represália a um movimento de censura, com tons fascistas que tomava conta da redação do periódico

Entre tantos amigos, Rama foi um dos que esteve presente de forma intensiva na trajetória de Candido. De idades e traços de personalidades distintas – Rama era oito anos mais jovem que Candido –, eles se mantiveram unidos pela vontade política de imprimir à literatura latino-americana outros contornos, passando a definir um cenário que incluía a literatura brasileira.

{} Antonio Candido e Ángel Rama: críticos literários na imprensa Joana Rodrigues

Com o clássico Formação da Literatura Brasileira Momentos Decisivos recém-lançado, Candido, que então havia migrado da Sociologia para as Letras em passagem definitiva, passou a trocar ideias e correspondência com o crítico uruguaio, desde então. A simbiose en-

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Ed. Unifesp 2018 288 p.

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{antonio candido}

Ángel Rama, por sua vez, também se iniciou no jornalismo na década de 1940 e até sua morte, no ano de 1983, exercia a função de crítico em diversas publicações, sendo que foi no semanário uruguaio Marcha, um de seus pontos altos como crítico literário. Nutrido por um estilo mais ensaístico e eloquente, ele trouxe para os leitores uruguaios, autores e análises com um toque de originalidade da crítica jornalística, ao ancorar seu olhar bifocal para a tradição e para a novidade. O que tempos depois, veio a se ramificar em volumes clássicos da crítica literária como La Ciudad Letrada (1984), Transculturación Narrativa en América Latina (1982) e Las Máscaras Democráticas del Modernismo (1985). Esse olhar de bifocalidade de Rama trouxe para o público do periódico Marcha nesse ano 1960 um olhar mais detalhado de autores como Felisberto Hernández, Juan Carlos Onetti, Clara Silva, Mario Benedetti, Armonía Sommers e Francisco Spíndola, que começavam a despontar nas letras latino-americanas.

{Coluna “Notas de crítica literária”, Folha da Manhã, 4 de março 1943. Acervo Folha}

na época. Nessa tarefa de risco, como ele sempre assumiu, estava a perspicácia intelectual de reconhecer entre autores novos, aqueles que traziam a literariedade em primeiro plano, como o fez ao mirar acertadamente em nomes como Clarice Lispector, Ledo Ivo, Jorge Amado, João Cabral de Mello Neto, entre outros.

A exemplo de Candido, o crítico uruguaio teve no jornalismo o seu laboratório de escrita, na medida em que pôde exercitar suas reflexões a respeito de obras e movimentos da literatura latino-americana. Em particular nesse ano de 1960, voltando-se para autores uruguaios, na defesa e construção de uma identidade literária de seu país e de um espaço geopolítico social chamado América Latina que ainda vive às voltas com essa diversa vizinhança literária.

Porém, nem só de nomes consagrados na Literatura viviam as análises do estreante crítico de jornal, que trazia na bagagem a atuação na revista Clima, editada por um grupo de amigos intelectuais de Candido, entre eles Decio de Almeida Prado, quando teceu os comentários iniciais a respeito do jovem poeta Carlos Drummond de Andrade. Arraigado em suas raízes sociológicas, Candido levou doses de alertas ao seu leitor, no sentido de que ajustassem as lentes quando se deparassem com obras de caráter literário duvidoso. Ficaram com suas palavras, o registro daquele tempo: “Quando eu comecei a fazer crítica, eu fiz nome bastante depressa, sobretudo porque eu creio que os críticos eram quase todos católicos ou liberais e eu era de esquerda”. Tal atitude, segundo Candido, causou certo barulho na época da ditadura do Estado Novo.

Nessa faceta comum aos dois críticos e amigos, que em idiomas distintos, em épocas e em espaços diferentes dedicaram-se a essa atividade rareada entre os atuais veículos de comunicação, como os jornais, ambos deixaram como testemunho a relevância do espaço da imprensa para a formação do pensamento crítico do leitor comum, aquele que não está nas salas de aulas das universidades, e segue sem aceso às bibliotecas e aos acervos culturais ainda restritos a uma parcela da população latino-americana. Como intelectuais de nosso tempo, Antonio Candido e Ángel Rama fazem falta nas páginas impressas e virtuais desse universo de ideias que se escorregam em quantidade e carecem de reflexões críticas.

Imbricado entre o analítico e o ensaístico, Candido iria se mostrar um crítico com um pé no didático, capacidade devedora da docência que, aliada à clareza de estilo, elegância e ao recato da linguagem, se juntou a doses de descontração e bom humor quando abria diálogos – e a interatividade – com os leitores, bem ao estilo de uma conversa ao pé do ouvido.

{

Nessa configuração de crítico de rodapé, Candido admitiu a importância do jornalismo em seu laboratório de escrita, ao ressaltar que a experiência foi fundamental: “E devo dizer que para mim, pessoalmente, o jornalismo foi a escola de crítica. Eu não aprendi a fazer crítica na universidade, eu aprendi a fazer crítica no jornal”.

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JOANA RODRIGUES é doutora em Literatura pela

Universidade de São Paulo (USP), e professora de Literaturas em língua espanhola na Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da UNIFESP (Universidade Federal de São Paulo) . É autora do livro Antonio Candido e Ángel Rama: Críticos Literários na Imprensa (Editora Unifesp, 2018), resultado de sua tese de doutorado.

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{vitrine antonio candido}

{} O método crítico de Silvio Romero 16ª edição

{} Um funcionário da Monarquia: ensaio sobre o segundo escalão

2006 {1945}

2ª edição

256 p.

2007 {2002} 196 p.

{} Iniciação à literatura brasileira

{} Ficção e confissão

Ouro Sobre Azul e EDUSP

7ª edição

4ª edição

2015 {1987}

2012 {1955}

136 p.

152 p.

{} Tese e antítese

{} O discurso e a cidade 5ª edição

6ª edição

2015 {1993}

2017 {1964}

288 p.

160 p.

{} nas edições em homenagem a Antonio Candido, de julho a dezembro, a voz da literatura destacará outras obras do autor publicadas pela Ouro Sobre Azul. {voz da literatura} n. 4 | agosto | 2018

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“Nos países da América Latina a literatura sempre foi algo profundamente empenhado na construção e na aquisição de uma consciência nacional, de modo que o ponto de vista histórico-sociológico é indispensável para estudá-la. ” ANTONIO CANDIDO “Literatura de dois gumes” {1993}. In: A educação pela noite.

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{editora}

Fundada em 2014, a editora CARAMBAIA tem a proposta de publicar livros com textos literários de excelente qualidade, de autores nacionais e estrangeiros, em geral inéditos no Brasil ou com edições esgotadas há anos, em edições bem-cuidadas graficamente. Os projetos da CARAMBAIA são criados para leitores que não abrem mão do livro físico e valorizam uma bela edição. Com tradução direta do idioma original, acompanhada de ensaios introdutórios assinados por especialistas, cada livro da CARAMBAIA é tratado como um objeto único. Designers, tradutores, organizadores e ensaístas participam de todo o processo de edição, discutindo as particularidades do autor e da obra, para que o livro apresente um projeto gráfico que dialogue com seu conteúdo. Os títulos do catálogo têm tiragens únicas de 1.000 exemplares e cada volume é numerado manualmente. Em abril de 2018, a editora lançou a coleção Acervo, com a proposta de publicar os livros da CARAMBAIA que tiveram sua tiragem inicial esgotada em edições reformuladas, acessíveis em novo formato. Diferentemente dos livros do catálogo tradicional, os títulos do Acervo seguem um projeto de design único e terão tiragens iniciais de 3.000 exemplares cada. A editora, sediada em São Paulo, publicou seus primeiros títulos em março de 2015 e lança, em média, dez livros por ano. Alguns volumes do catálogo são: • Juncos ao vento, da italiana Grazia Deledda • Homens em guerra, do húngaro Andreas Latzko • Salões de Paris, do francês Marcel Proust • Coleção João do Rio, com crônicas, peças de teatro e folhetins do brasileiro João do Rio

• Caixa Korolenko, com dois livros do russo Vladimir Korolenko • Viagem de burro pelas Cevenas, do escocês Robert Louis Stevenson • Ifigênia – diário de uma jovem que escreveu porque estava entediada, da

venezuelana Teresa de la Parra

• Dom Casmurro, do brasileiro Machado de Assis • Dicionário do Diabo, do americano Ambrose Bierce • Jaqueta Branca ou O mundo em um navio de guerra, do americano

Herman Melville

• Os bruzundangas | Numa e a ninfa, do brasileiro Lima Barreto • Noites florentinas, do alemão Heinrich Heine • Caixa Henrik Ibsen: Espectros, Um inimigo do povo,

Hedda Gabler e Solness, o construtor, do norueguês Henrik Ibsen • O gabinete negro – cartas com comentários, do francês Max Jacob • Kyra Kyralina – as narrativas de Adrien Zograffi, do romeno Panaït Istrati • Viagem ao Volga – relato do enviado de um califa ao rei dos eslavos – do árabe Ibn Fadlān

CARAMBAIA.COM.BR | FACEBOOK:

POR FABIANO

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@CARAMBAIA | INSTAGRAM: @CARAMBAIA

CURI, DIRETOR EDITORIAL, E GRAZIELLA BETING, EDITORA.


{ sapere aude ouse saber

A palavra “matemática” vem da palavra grega máthema, que quer dizer “saber ciência”. A coisa de que Arquimedes mais gostava era a matemática, e ele trabalhava com todas as espécies de matemáticas conhecidas no mundo antigo. Não escreveu, como Euclides, livros de texto para uso de estudantes de matemática, mas ensaios brilhantes e complexos para serem lidos e estudados pelos matemáticos mais avançados de seu tempo - seus companheiros em Alexandria. Trecho do livro de Jeanne Bendick: Arquimedes: uma porta para a ciência. Tradução de Cecília Prada (Odysseus Editora, 2006).

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{sapere aude}

Há dragões na Internet {} por DEMI GETSCHKO

N

a sala 3420 do Ed. Boelter Hall na UCLA, Universidade da Califórnia, Los Angeles, há uma placa onde consta que a Internet nasceu exatamente às 22:30 do dia 20 de outubro de 1969 lá mesmo. É a sala do Prof. Leonard Kleinrock, um dos pioneiros da Internet.

do “nascimento” da Internet, houve o famoso festival de música de Woodstock. Também em 1969, enquanto a contracultura florescia nos EUA e especialmente na região da UCLA, na China a revolução cultural atingia seu ápice. O que parece claro é que a inspiração para os conceitos da Internet veio muito mais do caldo cultural existente à época, do que de rígidos padrões militares. A rede nasceu aberta, sem uma central de controle e sem uma “chave de desligamento”, mas muito resiliente e sólida. Em 1982 a ARPANET passou pela maturação definitiva: adotou um conjunto de protocolos desenvolvidos por Robert Kahn e Vinton Cerf, pesquisadores que haviam sido incumbidos da tarefa de aprimorar o funcionamento da rede. O protocolo conhecido como TCP/IP consta de duas camadas principais: a básica, IP (Internet Protocol), e outra fim-a-fim, o TCP (Transmission Control Protocol). O IP tem por função juntar todas as redes autônomas que se voluntariassem a se integrar numa única rede. O IP, assim, “cola” os retalhos que formam a rede. Seu sucesso foi tanto que a rede resultante adotou o nome do protocolo. Ela passou a ser identificada como a “Internet”.

A Internet nasceu como ARPANET, um projeto de rede de computadores dentro da ARPA, Advanced Research Projects Agency, que depois ganhou um D inicial (de Defense), e tornou-se DARPA. Para um projeto de rede financiado por recursos da área militar dos Estados Unidos da América, e desenvolvido em laboratório próprio, no final dos anos 60, seria de se esperar um sabor da “guerra fria”, então em evidência. Mas há outros viéses. Há que se levar em conta que nem sempre recursos militares financiam projetos que visem apenas à área militar. Muitos projetos que nascem em laboratórios militares tem finalidade e aplicabilidade ampla e se destinam a testar tecnologias e hipóteses. Foi no ambiente ARPA, por exemplo, que o sistema de geolocalização GPS foi desenvolvido, e também exoesqueletos, robôs, projetos de tradução automática (SIRI), de mapas (Google) e o próprio navegador TOR, que tem seu embrião na Marinha.

De 1982 em diante o que se viu foi uma expansão exuberante, que iniciou na área acadêmica mas em pouco tempo atingiu a sociedade como um todo: a disseminação de computadores pessoais e a evolução da tecnologia em Informática e em Comunicações, com a correspondente queda nos preços dos equipamentos e da infraestrutura. Também importante foi o aparecimento de sistemas operacionais abertos e gratuitos, como o UNIX e variantes. Numa evolução claramente simbiótica, podemos dizer que a Internet valeu-se de sistemas abertos como o UNIX e estes, por sua vez, puderam se desenvolver melhor com a cola-

{fotos: redesul.com.br}

No caso da Internet há ainda outra coincidência reveladora: em agosto de 1969, mesmo ano

{} Sala 3420 do Ed. Boelter Hall, na Universidade da Califórnia (Los Angeles) .onde nasceu a internet em 1969.

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{sapere aude} boração de entusiastas agrupados em todo o mundo usando a Internet...

questão. Ou seja, queremos ouvir coisas que reforcem nossas opiniões e posições, mesmo sem dar muita atenção à sua veracidade. Aliás, como dizia Millor Fernandes, uma meia-verdade é pior (e mais eficiente!) que uma mentira deslavada...

A partir de 1993, com a chegada da Web, o atrativo que a Internet tinha, como rede de comunicação de computadores, fortaleceu-se grandemente ao conectar indivíduos e servir de plataforma para conteúdos que todos quisessem publicar. Redes sociais são conseqüência direta da entrada de uma miríade de novos usuários na Internet, provenientes de qualquer local e cultura.

Nós, os brasileiros, temos características peculiares: não nos intimidamos com novidades tecnológicas, que acabam sendo adotadas rapidamente e sem muito escrutínio, e somos muito comunicativos, dando mais valor ao intercâmbio de informações do que à preservação de nossa intimidade. Em pouco tempo passamos a ter grande presença em redes sociais e a liderarmos na quantidade de tempo de conexão à rede.

Umberto Eco, ao fazer um paralelo entre as descompromissadas “conversas de botequim” animadas por vapores etílicos e as novas interações que a Internet permitiu, foi bastante ácido ao escarmentar o efeito da rápida chegada dos bilhões de humanos à rede. Há que se convir, entretanto, que esse enorme afluxo ocorreu sem que os ingressantes tivessem tempo de entender o poder e o alcance da nova ferramenta agora à mão. Passou-se de uma época com poucos emissores distribuindo informação a muitos ouvintes, a, com Internet, uma simetria no número de emissores e ouvintes. A voz de todos, suas ideias e posicionamentos, às vezes intempestivamente ou não suficientemente avaliados, passaram a circular na rede. A embriaguez de um indivíduo ter o poder de, por primeira vez, falar com alcance mundial é uma sensação irresistível. Uma inevitável cacofonia certamente iria se estabelecer... Junto com as levas de ingressantes tem-se, também, novas potenciais vítimas daqueles que se aproveitam da situação. Incômodos, em geral advindos de mensagens não solicitadas, passaram a embutir riscos adicionais: armadilhas para roubar dados dos neófitos, fraudes, ataques, chantagens e, claro, as notícias falsas. Se hoje estamos inundados com a quantidade de informação de baixa qualidade e confiabilidade, ou que carregam intenções espúrias, não devemos esquecer que: 1- mentiras sempre as houve; 2mentiras são tão mais eficientes quando mais receptivo estiver o destinatário ao tema em

Tentar olhar a floresta que a Internet representa é difícil. Há tanta “árvore”, tanto aplicativo, tantas informações, transações e divertimento, que acabamos por entrar na mata sem maiores precauções. Sem dúvida são tempos mágicos, em que facilmente nos agrupamos em comunidades de interesse, expomos veementemente nossos posicionamentos pessoais, exibimos nossa intimidade. Essa exuberância, essa espuma superficial, espero, deve coalescer à medida que se obtenha maturidade. Há riscos e custos mas, a meu ver, o ganho é inestimável e irreversível. No ambiente que se formou, as velhas métricas e padrões em muitos casos não mais se aplicam. São mares inexplorados esses em que nos aventuramos. Quanto a trechos desconhecidos, os antigos mapas advertiam: “hic sunt dracones”, “há dragões aí!”, mas a navegação sempre foi um desafio a enfrentar, e com entusiasmo. Bons ventos a todos!

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DEMI GETSCHKO é Diretor Presidente do NIC.br e também representante de notório saber em assunto da Internet do CGI.br. Membro do Hall da Fama da Internet, é formado em Engenharia Elétrica pela Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (USP), pela qual também é mestre e doutor. Foi o responsável pela primeira conexão TCP/IP brasileira, em 1991.

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___{vitrine} {} Dora sem véu {romance}

{} Úrsula Maria Firmina dos Reis

Ronaldo Correia de Brito

1ª ed.

1ª ed.

Editora ZOUK

Alfaguara

2018

2018

279 p.

248 p.

{} A jornada do escritor: estrutura mítica para escritores

{} O romance que não foi lido: Helena, de Machado de Assis

Christopher Vogler

Eduardo Luz

Trad. Petê Rissatti

1ª ed.

3ª ed.

Edições UFC

Aleph

2017

2015

231 p.

483 p.

{} O menino do Gouveia {conto}

{} Crianças do abismo

Capadócio Maluco

{romance}

1ª ed.

Johann Heyss

O Sexo da Palavra

1ª ed.

2017 {1914}

Kotter Editorial

50 p.

2018 132 p.

{} Poesia & diálogos numa ilha chamada Brasil: a América Latina na obra poética de Thiago de Mello e Ferreira Gullar

{} A arte do cinema: uma introdução

Marcelo Ferraz

Trad. Roberta Gregoli

Trad. Pedro Martins Criado

1ª ed.

EdUNILA

Ed. Unicamp; EDUSP

2018

2013

350 p.

768 p.

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David Bordwell; Kristin Thompson


{ CINEMA Assiste-se hoje a uma série de filmes voltados à autobiografia de realizadores. Trata-se de películas trazendo experiências pessoais dos cineastas, em geral mostrando faturas muito distintas daquela do cinema tradicional. A prática autorreferencial no cinema remonta pelo menos aos Lumière, que não hesitaram em registrar cenas de sua domesticidade em filmes como Le repas de bébé (1895) e Partie d’écarté (1896).

Trecho do livro Crônicas do

cinematógrafo: escritos sobre Cinema e Fotografia, de Paulo Roberto Barbosa (Relicário, 2018)

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{cinema}

O elefante e a cadeira elétrica {} POR PAULO ROBERTO BARBOSA

{cena do filme Eletrocutin na elephantede}

soas. E para provar essa inverdade, promoveu uma demonstração pública num parque de Nova Jersey, ligando um gerador da White Westinghouse (WW) a uma plataforma de metal, na qual passou a executar gatos, cachorros e outros animais. As execuções eram noticiadas pela imprensa, disseminando desconfiança em relação à WW. A disputa entre as duas empresas acirrou-se ainda mais pelo início do novo século, quando ocorreu um debate público sobre que sistema seria mais adequado à eletrocução de condenados à morte, em substituição aos tradicionais enforcamentos. Em 1888, o estado de Nova York adotava a pena máxima por eletrocução como método oficial de suas execuções. Restava saber que sistema seria utilizado para essas eletrocuções, se a corrente contínua ou a corrente alternada. Montou-se então um comitê governamental para examinar a questão. Influente, Edison manobrou a fim de que a corrente alternada fosse a escolhida para abastecer as cadeiras elétricas de Nova York. A intenção do empresário era carrear associações negativas à WW, pespegando-lhe a pecha de insegura para os seres humanos. Presidido por um dos técnicos de Edison, o comitê terminou por apontar a corrente contínua como fornecedora oficial de eletricidade para as penas sumárias naquele estado. À WW não restou senão acatar a decisão, conquistando para si o horror da população novaiorquina. As escaramuças entre a GE e a WW estenderam-se pela primeira década do século XX, e, em 1903, Edison ainda disparava petardos contra a corrente alternada. A execução do elefante Topsy constituiu mais um golpe do empresário para tentar assegurar-se o monopólio da exploração de energia elétrica nos EUA. Grandes plateias acorreram às projeções de Eletrocuting an elephant, filme que logrou ótimos resultados como propaganda negativa contra o sistema inventado por Tesla. Não obstante os ataques de Edison, a corrente alternada venceu a batalha tecnológica, provando-se o método mais barato e seguro para prover de energia elétrica as metrópoles modernas. Pior para o pobre Topsy, que, no fogo cruzado entre os dois sistemas, morreu esturricado, quando poderia tão-somente ter sido recolhido a um zoológico.

E

letrocuting an elephant (Edwin S. Porter e James B.

Smith) é um curioso filme de 1903, rodado pela Cia. Edison. Composto de dois quadros, abre com um elefante conduzido para fora de um parque de diversões. Topsy matara a patadas seu treinador e outras duas pessoas sendo por isso condenado à pena capital. No segundo quadro, o paquiderme posta-se numa plataforma para ser fulminado por uma descarga de três mil volts, observado por multidão histérica. Eletrocuting an elephant termina com Topsy tombado, em meio a rolos de fumaça. Sinistro, o filme pode parecer um alerta para que elefantes malvados não saiam por aí matando treinadores inocentes. Originalmente, contudo, consistiu em mais um round na briga entre Thomas Edison e George Westinghouse pelo fornecimento de energia elétrica nos Estados Unidos, ao início do século XX. Desde fins do século XIX, a General Electric (GE), empresa de Edison, dominava a distribuição de eletricidade nos EUA. O fornecimento era feito por meio da corrente contínua, sistema em que a corrente elétrica flui, em sentido único, até seu destino final. Pouco eficiente, o provimento de eletricidade por este método implicava imensa dispersão de energia, além de demandar a construção de um gerador a cada quilômetro para o abastecimento das casas. Para resolver esses problemas, o inventor croata Nikola Tesla (ex-funcionário de Edison), patenteou, em 1887, um sistema denominado corrente alternada, capaz de distribuir a energia de maneira mais eficaz. Por esse método, a corrente elétrica revertia a sua direção a intervalos regulares nos cabos elétricos, permitindo que os elétrons percorressem grandes distâncias, numa viagem de ida e volta, com perda mínima de energia ao longo do caminho. Em 1887 o empresário George Westinghouse comprou as patentes de Tesla, passando a fornecer eletricidade pela corrente alternada. A GE reagiu com uma campanha difamatória contra o sistema concorrente, espalhando informações falsas. Dizia, por exemplo, que a corrente alternada não era suficientemente segura, podendo eletrocutar pes{voz da literatura} n. 4 | agosto | 2018

MUSSER, Charles. The emergence of cinema: the american screen to 1907, Berkeley e Los Angeles: University of California Press, 1990. REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

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PAULO ROBERTO BARBOSA é professor de Artes Visuais na Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Autor de Crônicas do cinematógrafo: escritos sobre cinema e fotografia (Relicário, 2018).


{leituras}

{} uma confissão Liev Tolstói Trad. Rubens Figueiredo | Ed. Mundo Cristão | 2017

Este pequeno livro é uma preciosidade de Tolstói. Escrito em 1879, foi recentemente traduzido por Rubens Fiqueiredo, que apresenta o tema central da obra: “Em busca de alguma resposta para o sentido da vida, Uma confissão se detém na questão da fé: como ela se forma, como ela se perde, de onde ela vem”. Tema este conduzido com maestria pelo grande escritor russo, incluindo surpreendentes reviravoltas. Nesse percurso, alguns pontos chamaram-me à atenção. Vejamos. Falando do mundo literário, o autor admite que começou “a escrever por vaidade, cobiça e orgulho”. E segue, fazendo uma crítica impiedosa sobre “o modo de ver a vida próprio à casta dos escritores”, chegando a “pôr em dúvida a verdade da fé dos escritores”. Após refletir longa e acuradamente, o autor constata que “o saber racional, na pessoa dos sábios e cultos, nega o sentido da vida, enquanto a enorme massa de pessoas [...] reconhece esse sentido num saber irracional. E esse saber irracional é a fé”. A resposta intelectual (ciência e filosofia) para a pergunta sobre o sentido da vida consiste em devolver “a mesma pergunta, apenas numa forma mais complicada”. Pioneiro de uma pedagogia do campo, para Tolstói a solução daquela pergunta fundamental se inicia “graças ao meu estranho e instintivo amor ao verdadeiro povo trabalhador, que me obrigou a entendê-lo e a ver que ele não é tão tolo como pensamos”. Finalmente, o mestre russo sugere que a verdadeira fé, capaz de funcionar como o sentido da vida, “embora única em sua essência, tem de ser infinitamente variada em suas manifestações”. A quem a alcançar, fica o alerta: a manutenção da felicidade de ter encontrado o sentido da vida depende, em parte, de evitar as grandes questões teológicas e acadêmicas.

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ELEAZAR VENANCIO CARRIAS é poeta e pedagogo, com mestrado em educação pela Universidade de Brasília (UnB).

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{ biblioteca Para um homem que falava do universo como de uma biblioteca e que confessou ter imaginado o Paraíso «bajo la forma de una biblioteca», o tamanho de sua própria biblioteca o decepcionava, talvez por ele saber que, assim como dissera em outro poema, a linguagem no máximo consegue «simular a sabedoria». As visitas esperavam um lugar abarrotado de livros, com prateleiras quase explodindo, pilhas de publicações bloqueando as portas e se protuberando de todos os espaços, uma selva de tinta e papel. Em vez disso, encontravam um apartamento onde os livros ocupavam alguns cantos discretos. Trecho do livro Com Borges, de Alberto Manguel. Tradução de Priscila Catão (Âyiné, 2018)

{16}


O que é uma biblioteca? {} por LETÍCIA ALVES

A

todo o momento, podemos nos perguntar: o que é uma biblioteca? Essa dúvida surge entre leitores e não leitores. Seria uma coleção de livros? Como a etimologia da palavra nos fala? Ou a biblioteca é muito mais que uma coleção dos livros que amamos, que conhecemos, que porventura conheceremos e também daqueles que jamais colocaremos as mãos, e, ou pousaremos nosso olhar?

Você também encontrará, na biblioteca, profissionais que têm a competência para atender não só ao seu pedido de um livro específico da estante, mas poderá lhe sugerir leituras correlatas e prestar outros serviços, como realizar pesquisa bibliográfica de um assunto que você procura, emprestar o livro ou outro material que esteja disponível (isso vale para CDs, DVDs e outras mídias que a biblioteca possua). Muitas pessoas vão à biblioteca para ler uma revista, um jornal, um quadrinho ou buscar uma informação pontual e utilitária, como o local onde se confecciona uma carteira de identidade, e por aí vai.

Pois, vou te contar, a biblioteca é isso, uma coleção de livros e muito mais! Quando entramos em uma biblioteca pela primeira vez e olhamos para estantes e estantes cheinhas de livros, temos a impressão de que estamos em uma livraria, pois, infelizmente, muitas pessoas têm a oportunidade de pisar em uma biblioteca (se pisar), somente depois da experiência de frequentar livrarias. Na livraria temos os livros arranjados seja por autor, por gênero, por editora, a função. E o objetivo da livraria, é claro: a venda. Por mais, que as livrarias tenham vendedores simpáticos, leitores (nem sempre é assim), atenciosos com você – meu leitor – naquele “mágico” lugar, a finalidade é comercial.

Concluímos brevemente (pois poderíamos ficar muito tempo discorrendo sobre esse conceito) que a biblioteca é um organismo vivo e dinâmico, tem uma função social e cultural no meio na qual está inserida e possui profissional capacitado e qualificado – o bibliotecário - para organizar o acervo existente, gerenciar o espaço que contém a coleção e, além de tudo, oferecer serviços aos seus leitores, desde o empréstimo do livro específico até os demais serviços necessários e os demandados pela comunidade atendida.

Finalizo com uma fala do David Lankes1:

Agora, vem comigo para a biblioteca!

A missão de uma biblioteca é melhorar uma sociedade facilitando a criação de conhecimento em uma comunidade.

Lá na biblioteca (não entrarei na tipologia aqui, focarei na biblioteca onde há tanto literatura de lazer, como outros tipos literários), você vai encontrar autores diferentes lado a lado. Então você pode pensar “Mas por quê?” Porque estão ligados pelo mesmo assunto. Não importa a editora, o tamanho dos exemplares, a cor da capa e outras possibilidades utilizadas lá na livraria.

Então, agora você sabe o que é uma biblioteca?

LANKES, R. David. Expect More: melhores bibliotecas para um mundo complexo. Tradução de Jorge do Prado. São Paulo: FEBAB, 2016. 1

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LETÍCIA ALVES é bibliotecária e doutora em Ciência da Informação pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

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{ poesia Aos 10 anos e 2 meses Ao abrir a porta, ele surpreendeu a filha com as vistas perdidas na janela. Perguntou, então: – O que você pensa que é, Carmen? – Sou um enquanto isso, pai. O homem arrancou o livro de poesia da mão da menina, apressando-se em dizer que já era hora da lição de matemática.

Trecho do conto “Maturidade”, do livro Amortalha, de Matheus Arcaro (Patuá, 2017)

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{ poesia

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{poesia}

Nebulosas (1872) Narcisa Amália Gradiva Editorial; Fundação Biblioteca Nacional 2017 {2ª edição} 189 p.

O AFRICANO E O POETA Ao Dr. Celso de Magalhães

Les esclaves... Est-ce qu’ils ont des dieux? Est-ce qu’ils ont des fils, eux qui n’ont point d’aieux? Lamartine

No canto tristonho Do pobre cativo Que elevo furtivo, Da lua ao clarão; Na lágrima ardente Que escalda-me o rosto, De imenso desgosto Silente expressão; Quem pensa? – O poeta Que os carmes sentidos Concerta aos gemidos De seu coração. - Deixei bem criança Meu pátrio valado, Meu ninho embalado Da Líbia no ardor; Mas esta saudade Que em túmido anseio Lacera-me o seio Sulcado de dor, Quem sente? – O poeta Que o elísio descerra; Que vive na terra De místico amor! - Roubaram-me feros

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{poesia} A férvidos braços; Em rígidos laços Sulquei vasto mar; Mas este queixume Do triste mendigo, Sem pai, sem abrigo, Quem quer escutar?... - Quem quer? O poeta Que os térreos mistérios Aos paços sidéreos Deseja elevar. - Mais tarde entre as brenhas Reguei mil searas Co’as bagas amaras Do pranto revel; Das matas caíram Cem troncos, mil galhos; Mas esses trabalhos Do braço novel, Quem vê? – O poeta Que expira em arpejos Aos lúgubres beijos Da fome cruel! - Depois, o castigo Cruento, maldito, Caiu no proscrito Que o simun crestou; Coberto de chagas, Sem lar, sem amigos, Só tendo inimigos... Quem há como eu sou?!... - Quem há?... O poeta Que a chama divina Que o orbe ilumina Na fronte encerrou!... - Meu Deus! ao precito Sem crenças na vida, Sem pátria querida, Só resta tombar! Mas... quem uma prece Na campa do escravo Que outrora foi bravo Triste há de rezar?!... - Quem há-de?... O poeta Que a lousa obscura, Com lágrima pura Vai sempre orvalhar?!

{

NARCISA AMÁLIA {São João da Barra - RJ, 1852– Rio de Janeiro-RJ, 1924} foi poeta, escritora e tradutora. Uma das primeiras mulheres a atuar profissionalmente na imprensa brasileira. Publicou em jornais como A República, O Fluminense, Correio do Povo, Correio Fluminense, entre outros. Publicou o livro de poema Nebulosas pela Editora Garnier em 1872. {21}

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{poesia}

A engenhosa tragédia de Dulcineia e Trancoso (Rimance ) *

W. J. Solha Penalux 2018 95 p. * Rimance é um gênero literário de romance popular, em verso, que se canta ao som da viola; pequeno canto épico.

Trecho central do rimance A engenhosa tragédia de Dulcineia e Trancoso, em que Trancoso é o Quixote do Circo de sô Léo, armado em meio à multidão que aguarda o sacrifício humano que abrirá, finalmente, a Pedra do Reino, como profetizado insistentemente por Ariano Suassuna e seu grande ídolo, Cervantes.

A Morte, feroz, apaga, de vez, os faróis... de escavadeira, jipe, tanque, de caminhão –, para a zoeira. A multidão, no escuro, geme e teme, abandonada, mais do que tudo, o Nada! E EIS O CENTRO DO LIVRO, SEU CORAÇÃO, EM MEIO A ENROLAMENTOS DE ALTA TENSÃO. É quando a mão de Trancoso – num gesto... sinuoso – vai ao que lhe é estranho em seu crânio: o elmo,

relumbrante como si fuera oro,

que (por algum trote em Quixote), é, de repente, couro!, e... danado: chapado: na maluca testa e na nuca, com signos de Salomão... usados por... Lampião!: As grandes estrelas, como esquecê-las? Aí, há o rumor cavernoso da Pedra do Reino a se abrir,

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{poesia} e um vulto oculto – a catedral! – começa, então, a emergir, bela, de dentro dela, magnífica – de repente acesa – mirífica, com mil vitrais a luzir, ouvindo-se, de perto, de longe, o bronze dos sinos que – quando atingem quórum, entre os hinos – saúdam a Regina Angelórum, e eis que ela sai – violácea Mater Christi – da rosácea central, triste, espectral, a sua coroa de estrelas a iluminar a escadaria que se vai derramando em degraus, a precedê-la, em meio a espetáculos, nos pináculos, em que a revoada de anjos, arcanjos, querubins e afins – cantam em coro com seus clarins – celestiais, em belas vestes cerimoniais, até que ela se detém, entre círios e lírios, e diz, rindo, a seu “lindo” (que ela nunca conquista):

– Discreto dileto, em quem me comprazo, à vista e a prazo: Vi o que disse, visse?: que não teme a Morte, e reconheço que, pra isso, precisa-se ser... muito forte. Mas – fique sabendo – que Deus não erra: sem ela – trazendo terror – não haveria a reposição das criaturas da Terra e, por conseguinte, o amor, que vou despertar em você... e Dulcinéia, daqui a pouco, deixando-o como o seu Quixote: louco! Trancoso, sempre bem cauteloso, vê esse ser (como todos os outros: mais leves-que-o-ar) a falar, e... sabe – embora não seja descrente – que não se trata da Virgem, mas de algo na própria mente, o feminino em seu eu, que lhe fala, insinuante, mas muito atuante: – Assim que conhecer Dulcineia, viverá, com ela, a epopeia, à frente de todo esse povo, o que o fará um homem novo. – A senhora quer é um Moisés!... – E não me meta as mãos pelos pés!

{

W. J. SOLHA é romancista e poeta. Atuou como ator no filme O Som ao Redor, pelo qual recebeu o prêmio Guarani de melhor ator coadjuvante de 2012 e, em 2013, semelhante prêmio no Festival de Cinema de Brasília, por sua participação em Era uma vez eu, Verônica. {23}

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{editora}

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___{vitrine} {} Elementos de estilo tipográfico. Versão 4.0

{} Poemas reunidos: Vicente Salles

Robert Bringhurst

Vicente Salles

Trad. Sergio Flaksman

1ª ed.

1ª ed.

Editora PAKA-TATU

Editora UBU

2018

2018

448 p.

{} A cor da liberdade: os anos de presidência {biografia}

{} Paulo Freire: uma história de vida

Nelson Mandela e Mandla Longa

Ana Maria Araújo Freire

Trad. Denise Bottmann

2ª ed.

2ª ed.

Paz e Terra

Zahar

2017

2018

592 p.

496 p.

{} História dos animais - tomo 2 {ensaios}

{} Filologia: história e língua - olhares sobre o português medieval

Aristóteles Trad. Maria de Fátima Souza e Silva 1ª ed.

Leonardo Lennertz Marcotulio e outros

1ª ed.

WMF Martins Fontes

Parábola Editorial

2018 254 p.

2018

{} Viagem ao Volga

{} Stanley Kubrick: o monstro de coração mole

336 p.

Ahmad Ibn Fadlan

Marcius Cortez

Trad. Pedro Martins Criado

1ª ed.

1ª ed.

Perspectiva

Carambaia

2017

2018

216 p.

144 p.

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{ entrevista A entrevista é uma forma narrativa plena. Busca uma carga a mais de significação sobre os fatos - um ângulo íntimo, “de dentro” - considerada privilegiada, não necessariamente verdadeira. Não se acredita propriamente na veracidade do relato, mas não pode haver dúvidas sobre a legitimidade do interlocutor. É gênero nobre no jornalismo, com características que o distinguem dos outros: •

Estrutura abera, porque não é pensada para concluir um assunto. Monólogo mediado, sem contraponto direto por outras versões. Múltipla, pois possibilita diversidade de história dentro do tema principal. Indutiva, porque atenta mais ao detalhe das situações.

Trecho de A apuração da

notícia: método de investigação na imprensa, de Luiz Costa Pereira Junior (Vozes, 2017, 4ª edição, p. 100-101)

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Goethe: poesia e verdade A {voz da literatura} entrevista MAURÍCIO MENDONÇA CARDOZO, tradutor, escritor e professor da Universidade Federal do Paraná na área de Tradução. A conversa aborda, principalmente, o processo de tradução do livro De minha vida: poesia e verdade, a autobiografia de Johann Wolfgang von Goethe , lançada em 2017 pela editora Unesp.

Sua última obra traduzida foi De minha vida: poesia e verdade, de Goethe, lançada pela Editora Unesp em 2017. Quais são os desafios de traduzir quase mil páginas dessa “autobiografia” de um dos maiores escritores alemães de todos os tempos? Como talvez não seja difícil de imaginar, a tradução de uma narrativa extensa coloca o tradutor diante do desafio do que poderíamos chamar, na falta de termo melhor, de consistência – desafio que também se impõe na tradução de textos mais curtos, mas que se evidencia de modo mais extensivo em obras de maior fôlego. Com a ideia de consistência, refiro-me aqui à toda sorte de questões de ordem estilística, à amarração dos inumeráveis fios narrativos, à precisão na retomada de informações, discussões e pontos de vista apresentados anteriormente (de importância especial num texto autobiográfico como o de Goethe) e assim por diante. Mas além desse grande desafio, que se traduz no trabalho de conferir alguma consistência à voz de um Goethe autobiográfico ao longo de quase mil páginas, há ainda um outro desafio, talvez menos evidente, que se impõe ao tradutor no curso do tempo em que ele vive o enfrentamento dessa empreitada tradutória: refirome ao desafio de procurar ser um mesmo tradutor de Goethe ao longo dos meses e anos de vida empenhados na tradução de uma obra como esta; ou, para dizer melhor, refiro-me ao desafio de enfrentar o fato de que ninguém se mantém exatamente o mesmo ao longo de uma relação tradutória como esta. Trata-se de um desafio nada desprezível, em especial se levarmos em consideração o quanto nos transformamos ao viver uma relação tão íntima e intensa por tanto tempo.

se também o desafio de entender o que essa obra e seu autor representam, hoje, para além de seu valor histórico. Em outras palavras, trata-se de pensar, como tradutor, se a obra a ser traduzida ainda tem algo a dizer ao homem contemporâneo em geral, se ela ainda tem força, como obra, para se constituir como uma forma de vida no mundo contemporâneo; ou se o objeto em tradução reduzse a seu valor canonizado, seja como monumento, seja como objeto de interesse apenas de um círculo mais restrito de especialistas.

Do ponto de vista crítico, pensando aqui numa espécie de circunscrição do espaço de ação do tradutor, impõe-

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{entrevista} Goethe é um daqueles autores, cuja obra padece do grande descompasso entre a amplitude de seu estatuto canônico e sua presença efetiva como forma de vida no universo literário contemporâneo. Como tradutor, entendo que é preciso apostar em algum modo particular de entender essa circunstância peculiar de sua recepção. Teria o tempo provado a superestimação do valor da obra em sua época? Teria a força da obra e de seu autor se desagastado com o passar do tempo? Ou será que o modo como hoje nos relacionamos com a obra e seu autor é que seria merecedor de certo grau de redimensionamento e atualização? Em minha tradução, assumindo que a obra de Goethe ainda tem muito a nos dizer, resolvi apostar nessa compreensão de que é o modo como nos relacionamos com sua obra que carece de reconfiguração; e se a tradução é, necessariamente, um modo de relação com o outro, ela se apresenta como uma ocasião privilegiada para exercer alguma forma de impacto sobre a relação dos leitores com a obra traduzida.

mesma medida de sua extemporaneidade –, teremos uma boa mostra da envergadura do autor por trás dessa autobiografia.

De minha vida: poesia e verdade parece revelar que traduzir não é apenas um ofício de verter uma língua em outra. O tradutor figura como um leitor e um intérprete privilegiado nesse processo por vezes tão exaustivo? Certamente. Diria, ainda, que o privilégio dessa figuração consiste no sentido mais forte desse termo: assim como o texto traduzido vai sendo construído aos poucos, como uma espécie de rasto textual – para evitar aqui a redução dessa experiência tão viva à simples ideia de produto – ou, simplesmente, como aquilo que resta da relação do tradutor com a obra e com seu autor – por certo uma relação de leitura e interpretação, mas, antes de tudo, uma relação de convivência –, também o próprio tradutor, aos poucos, vai ganhando contornos, forma, figura, enfim, vai se construindo e se tornando, no espaço e no tempo dessa relação, o tradutor dessa obra. Traduzir uma obra como esta dá-nos uma boa medida do quanto traduzir algo é sempre, também, uma forma de traduzir-se.

Em que período da vida Goethe escreveu De minha vida: poesia e verdade?

Apesar de se concentrar nas primeiras décadas de sua vida, desde seu nascimento, em 1749, até a partida para Weimar, em 1775, o autor começa a trabalhar em sua autobiografia somente entre 1808 e 1809. As três primeiras partes foram publicadas até 1814. A quarta e última foi publicada postumamente, apenas em 1833. Assim, se levarmos em conta que, ao lermos a voz viva e vigorosa desse jovem em formação, lemos o resultado do esforço intelectual e criativo de um homem sexagenário do início do século XIX – já então monumentalizado por seus contemporâneos, talvez na

De que forma o tradutor deve se preparar para a tarefa de ir fundo na linguagem de uma época já tão recuada, de um homem como Goethe, que viveu entre o século 18 e 19? Do ponto de vista mais geral, diria que, mais do que se preparar para cumprir, executar ou até mesmo renunciar às tarefas da tradução, é importante que o tradutor esteja preparado para experimentar intensamente os limites e as

{} De minha vida: poesia e verdade Johann Wolfgang von Goethe Tradução, apresentação e notas Maurício Mendonça Cardozo Editora Unesp 2017 955 p.

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{entrevista} Verdade – e algumas menções pontuais, o autor não se

detém mais alongadamente sobre nenhuma das versões de seu Fausto – segundo documenta a crítica, Goethe pretendia incluir, na quarta parte, uma exposição mais ampla sobre o projeto fáustico, mas acabou desistindo da ideia. Quanto ao Werther a situação é diferente: além de fazer todo um retrato do contexto de época em que se insere a obra, o próprio modo como Goethe desenha sua relação com a recepção de sua famosa obra epistolar oferece-nos um bom indício do modo como o autor parecia querer que entendêssemos as relações entre sua obra e sua vida. Mas além das menções mais ou menos pontuais a várias de suas obras, destacaria ainda a riquíssima dramatização dos dilemas e anseios que permeiam a relação de um jovem com a criação literária (Dichtung). Guardadas as devidas proporções (e os descontos por vezes necessários), essa narrativa de como a literatura vai ganhando aos poucos um lugar na vida do biografado parece-me extremamente contemporânea, seja porque alimenta um imaginário que nos é ainda muito presente e que define grandemente a imagem do que é (ou não é mais) ser um poeta, um escritor hoje em dia, seja porque algumas das questões de fundo dramatizadas na autobiografia, ainda que encontrem hoje formas obviamente muito distintas de manifestação, continuam se impondo com a mesma espessura para aqueles que se aventuram pela arte da criação literária.

{“Goethe em Campagna”, de Johann Heinrich Wilhelm Tischbein (1787)}

possibilidades da experiência de traduzir. E como traduzir nunca envolve apenas certezas, isso significa estar aberto, também, a tudo o que nessa experiência se impõe sob a forma da surpresa. O conhecimento das convenções e das diferentes formas de expressão da língua alemã em cada época é um pressuposto importante, de ordem técnica. Mas, no caso da tradução, como se sabe, esse tipo de conhecimento é mais um instrumento do que um fim em si, ou seja, os resultados de seu uso também dependem muito do modo como nos servimos desse instrumento. Na tradução de Poesia e Verdade, o importante para mim foi tentar flagrar um Goethe que, mesmo ao valer-se amplamente das convenções e dos valores de sua época, sabia fazê-lo de modo muito particular, sendo capaz de singularizar o que, até então, manifestava-se como algo meramente convencional.

Seja como for, a questão do valor de Poesia e Verdade como subsídio para a "explicação" de outras de suas obras ou para a elucidação de alguns episódios de sua vida é um tema amplamente discutido pela crítica desde a época de suas primeiras publicações; e a despeito do que a pesquisa pôde documentar dos tantos encadeamentos narrativos que nos informam sobre a vida e as percepções de vida, as aventuras e as desventuras desse Goethe, não esqueçamos que se trata, ainda assim, de uma narrativa autobiográfica e que, como tal, a obra empenha-se explicitamente na construção de uma figura bem particular do biografado.

Quais obras de apoio servem para o tradutor nesse processo? A edição revela um trabalho cuidadoso de inserção de notas para facilitar a leitura de vários trechos da obra. Como pude contar com bastante tempo para fazer esse trabalho, recorri a toda forma de apoio bibliográfico que pude encontrar, em bibliotecas e na internet, no Brasil e na Alemanha, com destaque para as diferentes edições da obra, para suas edições críticas e anotadas, bem como para as várias traduções anteriores da obra para o português, para o inglês e para o francês.

Quais as passagens de De minha vida: poesia e verdade você escolheria como sendo os seus preferidos? Por quê?

São muitas, mas tendo a gostar mais das passagens marcadamente irônicas, auto-irônicas e autocríticas, que fazem um contraponto importante na construção da imagem do biografado. Há também passagens que, mesmo não sendo espetaculares, acabaram me divertindo ou me encantando ao traduzir: pequenos detalhes, como os nomes que o professor de piano atribui a cada um dos dedos (no quarto livro); algumas frases de efeito, que abrem ou fecham digressões importantes; alguns

De minha vida ajuda a explicar o processo de criação literária de Goethe, em obras como Os sofrimentos de Jovem Werther ou Fausto? Apesar do longo relato sobre sua relação com Gretchen – seu primeiro amor, segundo a narrativa de Poesia e {29}

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{entrevista}

poemetos jocosos; alguns parágrafos que, em obra tão extensa, podem passar desapercebidos, mas são preciosos – entre tantos, para facilitar aqui a referência, o primeiro e o último. Mas gosto também daquelas passagens que se impõem ao tradutor como uma espécie de desafio, a exemplo da tradução, para o português, da tradução de Lenz, para o alemão, de alguns versos de Love's Labour's Lost, de Shakespeare (no décimo primeiro livro).

como objeto de reflexão, a exemplo da famosa passagem no décimo primeiro livro. Como todo pensamento sobre a tradução, também o de Goethe inscreve-se em seu tempo. Mas se podemos identificar em seu pensamento alguns traços que chamaremos de datados, boa parte de suas proposições ainda pode ser vista como mais contemporânea do que seriam capazes de admitir alguns teóricos contemporâneos da tradução. Apenas para nomear uma questão, entre tantas sobre as quais eu não teria como me alongar aqui, a tradução, para Goethe, é claramente uma prática que pode cumprir os mais variados fins e, portanto, uma prática com a qual podemos fazer muitas coisas diferentes, resultando, assim, em produtos textuais muito diferentes, ainda que igualmente legítimos. Esta, por exemplo, é uma posição que se afasta de certa visão vigente até hoje – em especial no chamado senso comum –, segundo a qual a tradução seria uma operação muito mais mecânica e restrita, cabendo-lhe cumprir apenas um único fim.

É possível dizer que, em De minha vida, a escrita de Goethe sintetiza todas as suas incursões pela literatura e por outras áreas do conhecimento? Eu não diria todas, mas a obra certamente constrói um dos melhores retratos do quanto esse homem foi capaz de incursionar por tantas áreas diferentes. A tradução figura entre os interesses do pensamento de Goethe. Suas reflexões sobre o processo de tradução são anacrônicas ou ainda podem ser retomadas de modo produtivo para a teoria da tradução? A tradução é tema que aparece na autobiografia de Goethe?

Apesar de ter algumas de suas principais obras traduzidas para o português do Brasil, parece que boa parte do público brasileiro ainda não conhece sua obra e sua importância dentro da história literária. Essa constatação é verdadeira?

A tradução é tema recorrente: ora como experiência, em geral como exercício ou a serviço de alguma forma de criação; ora como forma visível de mediação, ao levar em conta tradutores e diferentes modos de tradução quase sempre que se refere a obras estrangeiras publicadas em alemão; ora como questão, ao tematizá-la {voz da literatura} n. 4 | agosto | 2018

Creio que, hoje em dia, a importância histórica da obra de Goethe seja mais reconhecida do que conhecida. Várias de suas obras mais famosas foram traduzidas no Brasil, mas ainda há muito o que traduzir e retraduzir. Projetos editoriais como o da Editora da Unesp, que tem em vista a {30}


{entrevista}

Como professor de tradução na Universidade Federal do Paraná (UFPR), com quais disciplinas trabalha na graduação e na pósgraduação? Qual sua linha de pesquisa?

publicação de um conjunto amplo de obras de Goethe – algumas ainda inéditas, outras em retradução, como a edição de Poesia e Verdade – podem contribuir não apenas para ampliar o conhecimento da obra de Goethe, mas, também, para ampliar o círculo de leitores efetivos de sua obra.

Trabalho com as disciplinas específicas do Bacharelado com ênfase nos Estudos da Tradução, oferecendo disciplinas de teoria da tradução, história da tradução e tradução literária. Como pesquisador, meu trabalho se constrói como um diálogo entre a teoria da tradução e o pensamento contemporâneo. Em síntese, interessa-me pensar a tradução sempre como uma forma de poiesis da relação, ou seja, a partir do que a tradução representa como questão de alteridade.

Pretende traduzir outras obras de Goethe? Quais? Sim, seria ótimo poder trabalhar "com tempo" em projetos de mais fôlego envolvendo a obra de Goethe. Pois se há o que ser retraduzido, há também muita coisa menos conhecida que seria importante traduzir pela primeira vez. Gostaria de preparar, por exemplo, uma edição ampla da poesia de Goethe.

Além da tradução de De minha vida: poesia e verdade, quais outros trabalhos de tradução realizou? Quais poderia destacar?

Quem são os principais tradutores de Goethe hoje no Brasil? Comparado ao círculo de tradutores literários de outras línguas, não são tantos os tradutores da literatura de expressão alemã no Brasil. Em 2014, Tércio Redondo publicou a tradução d'As afinidades eletivas. Em 2016, Mário Frungillo publicou a tradução das Conversações com Goethe, de Eckermann. E, na virada de 2017 para 2018, saiu a tradução da Viagem à Itália, realizada por Wilma Patrícia Maas. Tenho notícia de vários outros projetos em andamento, o que parece apontar para um aquecimento da tradução e edição da obra de Goethe em nosso país.

Destacaria a tradução de E. E. Cummings (Editora da UnB, 2007), antologia que preparei com Mário Domingues e Adalberto Müller; a tradução de alguns poetas de língua alemã, como Paul Celan, Else Lasker-Schüler e RainerMaria Rilke (publicações em revistas); a tradução da Viagem ao Harz (Editora 34, 2013), primeira parte dos Retratos de Viagem de Heinrich Heine; e ainda o projeto de dupla tradução de uma novela alemã do final do século XIX, intitulada Der Schimmelreiter (1888), de Theodor Storm, que resultou n'A Assombrosa história do homem do cavalo branco e n'O centauro bronco, ambas publicadas, em conjunto, pela editora da UFPR, em 2006.

De onde partiu seu interesse inicial para o estudo da língua alemã? Nos estudos de alemão, Goethe fez parte de suas leituras?

Atualmente, quais os trabalhos que vem desenvolvendo de tradução literária ou dentro dos estudos da tradução?

Quando criança, tinha uma curiosidade pela língua alemã, em razão da convivência com minha avó materna, de ascendência alemã. Meu contato inicial com a obra de Goethe foi através do teatro, a partir de uma montagem do Fausto. Depois veio o Werther. Todo o restante que li de sua obra se deu na Universidade (ou a partir dela).

Venho trabalhando há alguns anos na tradução da obra do poeta Paul Celan. Há uma grande chance de que o primeiro livro ainda saia este ano, pela Editora 34. Além disso, estou envolvido em outros projetos de tradução da obra de Goethe – como, por exemplo, uma nova tradução do Werther – e de obras relacionadas a ele – como Lotte em Weimar, o romance goetheano de Thomas Mann. Estes devem sair pela Companhia. Na pesquisa, venho estudando as diferentes relações entre tradução, tempo e vida.

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{ música Houve um movimento à porta da entrada, era a música que chegava, enfim. Luiz Peru, fumo no braço, a flauta e os papéis de música debaixo do sovaco, tentava ajeitar os óculos, suando de impaciência e de atraso. Houve uma salva de palmas e assobios esparsos. (...)

Trecho de Três casas e um rio, de Dalcídio Jurandir (Pará.grafo, 2018)

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Raphael Rabello: o violão em erupção A {voz da literatura} conversa com o jornalista LUCAS NOBILE, autor da biografia sobre o violonista Raphael Rabello (1962-1995), Raphael Rabello: o violão em erupção, recém-lançada pela Editora 34 e que contou com o apoio do programa Rumos do Itaú Cultural. Lucas Nobile é autor de Dona Ivone Lara: A Primeira-Dama do Samba (Editora Sonora/Musickeria, 2015) e de alguns volumes da “Coleção Folha – Tom Jobim”. Foi consultor da Ocupação Dona Ivone Lara (Itaú Cultural). Trabalhou como repórter de música em jornais como Folha de S. Paulo, O Estado de S. Paulo, além de ter feito colaborações para Instituto Moreira Salles (IMS – Rádio Batuta), Apple Music, Bravo!, Rolling Stone, Clarín e Carta Capital.

O que lhe motivou a biografar o violonista Raphael Rabello? Quanto tempo esse trabalho demorou para ser concluído?

{foto: bruno poletti/folhapress.adaptada}

Ao todo, o livro levou seis anos para ser realizado. Em outubro de 2012, Raphael completaria 50 anos (ele morreu em abril de 1995). Na época, eu trabalhava na Folha de S. Paulo e propus de fazermos uma matéria falando dos 50 anos do Raphael. Na ocasião, estava para ser lançado um disco em homenagem a ele, “Um Abraço no Raphael Rabello”, com produção musical do violonista Rogério Caetano e produção executiva da Luciana Rabello. Além deste álbum, conversei com a Luciana e ela topou abrir publicamente pela primeira vez um pequeno baú que o Raphael havia deixado – com muitas fotografias, esboços de composições, cadernos de anotações das primeiras aulas dele (com o Meira, que foi professor também do Baden Powell). Eu já era fascinado pelo violão do Raphael. Mas quando fui “fazer a lição de casa” e pesquisar sobre ele para escrever aquela reportagem, percebi que havia pouquíssimo material sobre ele; eram informações dispersas na internet, com muitos erros e muitas especulações. A matéria foi publicada e notei que ainda havia muito assunto para tratar ali. Desde então, não parei mais. Em 2016, o projeto do livro foi contemplado no Rumos, edital do Itaú Cultural. Com isso, pude custear as inúmeras viagens para realizar pesquisas e entrevistas (são 132 personagens entrevistados para o livro). Agora, sem um pingo de cabotinismo, existe algo mais consolidado, mais substancial para quem quiser pesquisar sobre a trajetória do Raphael Rabello.

Quais foram os desafios para compor uma biografia como essa? É de se imaginar as milhares de dificuldades a superar na recuperação de documentos, na colheita de depoimentos, no levantamento de discografias e fichas técnicas (algumas dessas sem informações essenciais). Os desafios foram muitos. Apesar da curta trajetória do Raphael – ele morreu com 32 anos -, ele lançou 19 discos em vida, mais 6 álbuns póstumos. Além disso, ele tocou em mais de 600 faixas de discos de outros nomes da música brasileira e internacional. Portanto, era uma {33}

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{música} avalanche de informações e de histórias. Por isso, pelo fato de ele ter tocado e se relacionado com muita gente, acabei entrevistando 132 pessoas, a fim de contar a história do Raphael da maneira mais plural e polifônica possível. Depois de coletar esse mundo de materiais, foi um tanto quanto complexo organizar “o meio-decampo”, cruzar diferentes versões de um mesmo acontecimento, e contar essa história de forma saborosa para os leitores. Sempre com o seguinte norte: que o livro não soasse hermético para quem nunca ouviu falar de Raphael, mas que também não resultasse raso para quem já o conhecia bastante. Não é tarefa das mais fáceis chegar a esse equilíbrio.

Florence, que foi professor também do Baden Powell) e o Dino 7 Cordas, ambos integrantes do lendário Regional do Canhoto, que acompanhou “meio mundo” de solistas e intérpretes do choro (entre eles, Pixinguinha e Jacob do Bandolim) e do samba (como Cartola, por exemplo). Foram referências definitivas na vida do Raphael. Raphael adotou como solista, de maneira pouco usual, o violão de 7 cordas. Como se deu esse processo? Por volta dos 13 anos, o Raphael descobriu a existência do violão de sete cordas e ficou fascinado com aquilo. A descoberta se deu por meio, basicamente, de dois discos importantíssimos: “Choros Imortais”, de Altamiro Carrilho e Regional do Canhoto, de 1964, e “Vibrações”, de Jacob do Bandolim e Conjunto Época de Ouro, de 1967. Até então, a principal referência no instrumento era a linguagem consolidada pelo Dino 7 Cordas. O que isso queria dizer? Que até então o violão de sete cordas era utilizado apenas como um instrumento de acompanhamento – fazendo as chamadas “baixarias” e os contrapontos improvisados, espécies de segunda melodia, preenchendo espaços deixados pela melodia principal ou pelo canto. Em 1982, o Raphael lança seu primeiro disco solo, batizado de “Rafael Sete Cordas”. Ali, pela primeira vez o sete cordas é utilizado como um instrumento solista, ou seja, solando a melodia principal. Aquilo, definitivamente, foi uma revolução, um capítulo muito novo na literatura do instrumento. Hoje a gente tem uma série de grandes violonistas que utilizam o sete cordas como solista: Yamandu Costa, Alessandro Penezzi, João Camarero, Gian Correa etc. O primeiro a fazer isso foi Raphael Rabello.

No início da carreira, Raphael Rabello estava imerso em um dos gêneros musicais mais genuínos da música popular brasileira: o choro. É desse período, por exemplo, o grupo do qual Raphael participou com sua irmã Luciana chamado “Os Carioquinhas”. Quais foram as principais influências musicais de Rabello nesse período?

Raphael nasceu em uma família muito musical. Quando pequeno, ainda em Petrópolis (RJ), cidade onde ele nasceu, ele ouvia (por ser muito novo não chegou a participar de fato) seu avô dar aulas de piano, de violão e de práticas de coral para seus irmãos e irmãs. Além dessas aulas, ouvia-se muita música, por meio de discos e do rádio, na casa da família Rabello. Mais tarde, já na cidade do Rio, Raphael começou a tocar violão (o tradicional, de seis cordas, passando depois para o de sete) e a ouvir muito choro. Suas referências eram muitas, mas as principais eram o Meira (Jayme

{} Raphael Rabello: o violão em erupção Lucas Nobile Editora 34

Apoio: Rumos Itaú Cultural 2018 352 p.

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{música} Várias pessoas reconhecem Raphael Rabello como um grande violonista. Nesse caso, o que significa ser grande? Raphael “revolucionou” a maneira de tocar violão?

Vários nomes da música popular brasileira aparecem nessa biografia de Rabello, em especial alguns dos mestres da música instrumental. Entre outros, merecem destaque Dino 7 Cordas e Radamés Gnatalli, dois dos mestres de Raphael. Só pela biografia de Rabello, percebe-se que a vida de músicos como Dino mereceriam uma biografia à parte. Pensa em se dedicar a outra biografia de músicos desse quilate?

Difícil definir o que significa ser grande. Mas sem dúvida nenhuma a gente pode afirmar que existe uma história do violão popular brasileiro antes do Raphael Rabello e outra depois dele. Raphael, como eu disse anteriormente, revolucionou o sete cordas ao alçá-lo ao patamar de instrumento solista. Só por isso ele já teria escrito seu nome na história. Além disso, ele também revolucionou no quesito acompanhamento. O que ele fez em termos de harmonia, de contrapontos, de levada, de suingue, de batida, de células rítmicas foi algo absolutamente novo na história do violão. E essa atuação não se limitou nem se limita ao Brasil. Não é exagero nenhum a gente dizer que o Raphael foi um dos maiores violonistas do mundo. Até o surgimento dele, ninguém tocava daquela maneira. E hoje, mais de 23 anos após a morte do Raphael, ainda não apareceu ninguém tocando daquele jeito; e acredito que dificilmente ira aparecer.

Sem a menor dúvida. A crítica especializada e amigos têm dito que um dos méritos do livro é o de contar não apenas a história do Raphael, mas também de inúmeros outros músicos importantíssimos na história da música brasileira, como Dino, Radamés, Jacob, Canhoto etc. Quando você faz um livro desses, tem o dever de apresentar o contexto da época e, claro, de mostrar também quem veio antes do personagem biografado. No caso do Raphael, para falar dele, a gente tem de falar de seus antecessores, como Garoto, Dilermando Reis, João Pernambuco, Satyro Bilhar, Quincas Laranjeiras, Dino, Meira, Tute, China, Villa-Lobos, Radamés... Ainda estou respirando, “baixando a poeira” após ficar seis anos me dedicado ao livro sobre o Raphael, mas já tenho há algum tempo o projeto de uma nova biografia. Em breve, espero poder contar para vocês sobre quem se trata. Mas posso adiantar que é sobre um dos personagens mais importantes e populares da história da música brasileira.

Entre outros violonistas do mundo, Raphael Rabello manteve relação estreita com Paco de Lucía. Raphael incorporou ao violão brasileiro caraterísticas da guitarra espanhola? É possível dizer que Paco de Lucía também foi influenciado pelo violão brasileiro de Rabello? Difícil mensurar isso. Os guitarristas flamencos seguem muito à risca as tradições daquele gênero tão rico e tão especial na história desse violão ibérico. O que se pode afirmar com segurança é que o Paco considerava o Raphael um dos maiores violonistas do mundo. Eles tinham uma admiração mútua muito forte. Paco escreveu o texto da contracapa de um LP do Raphael e chegou a participar de um disco dele, tocando “Samba do Avião”, do Tom Jobim. Os dois tinham o desejo de fazer um álbum juntos. Infelizmente, pela partida precoce do Raphael, isso acabou não acontecendo.

O violão de Raphael Rabello acompanhou importantes nomes da música brasileira, de Elizeth Cardoso a Ney Matogrosso. No final dos anos 70, seu violão era um dos mais requisitados nos estúdios. Você poderia mencionar algumas das principais canções que contam com o registro do violão de Raphael? É uma tarefa “inglória”. Justamente pelo fato de o Raphael ter gravado com muita gente. Ficaríamos aqui até o ano que vem enumerando essas colaborações. Mas podemos destacar algumas de grande relevo: “Linha de Passe”, do João Bosco; “Meu Guri”, do Chico Buarque, os discos da Clara Nunes, do João Nogueira, de Dona Ivone Lara, Martinho da Vila, Francis Hime, Clementina de Jesus, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Maria Bethânia, Gal Costa, Paulinho da Viola, Paulo Moura, Zeca Pagodinho, Nara Leão, Elza Soares, Jamelão, Elizeth Cardoso. Era um tempo em que os artistas e as grandes gravadoras escalavam os principais músicos do país para tocar nos estúdios. Nesse contexto, o Raphael acabou atuando em mais de 600 faixas da música brasileira.

Raphael é sempre lembrado como violonista solo ou de acompanhamento. Porém, ele também compôs algumas músicas, o que está bem registrado em sua biografia. Poderia destacar algumas? Raphael dedicou sua carreira a ser um intérprete exímio. Isso, seguramente ele conseguiu. Mais para o fim de sua vida é que ele vinha se dedicando com mais frequência ao exercício da composição. Como morreu cedo, ele não teve tempo de deixar uma obra substancial como compositor. Ainda assim, de suas poucas composições, algumas se fazem presentes no repertório de muitos violonistas hoje em dia. Eu destacaria a valsa “Sete {35}

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{foto: trevo.us}

{música}

Cordas”, parceria dele com Paulo César Pinheiro”, “Camará” e “Salmo”, ambas também com Paulinho Pinheiro. Após a morte do Raphael, foi lançado o disco “Todas as Canções”, em 2002, com a Amelia Rabello, irmã do Raphael, interpretando composições dele. São canções feitas em parceria com Paulo César Pinheiro e Aldir Blanc, dois dos maiores letristas do país. Vale a pena conhecer essa faceta de compositor do Raphael.

Raphael foi o genial Aníbal Augusto Sardinha, conhecido popularmente como Garoto, que também foi um revolucionário. Não à toa, eu e mais dois amigos (Rafael Veríssimo e Henrique Gomide) estamos fazendo um documentário sobre o Garoto já faz quatro anos. O filme deve ser finalizado e lançado no primeiro semestre de 2019. Para aqueles que vão ouvir Raphael Rabello pela primeira vez, qual disco recomendaria?

Na maioria de seus discos, Raphael grava composições de importantes violonistas brasileiros: Garoto, João Pernambuco, Dilermando Reis, Américo Jacomino (“Canhoto”), Canhoto da Paraíba. Rabello tinha predileção por algum desses violonistas? É possível notar alguma semelhança técnica entre ele e um desses?

Outra tarefa complicada... Mas acho que um bom “cartão de visitas” para evidenciar a dimensão de quem foi Raphael é o disco “Rafael Rabello”, de 1988. Está “tudo” ali. A gravação de “Lamentos do Morro” (de autoria do Garoto) é uma das mais conhecidas e marcantes de toda a carreira do Raphael. Se pudesse apontar outro álbum, eu escolheria “Dois Irmãos”, de 1992, do Raphael com o Paulo Moura. Aquilo ali é aula sobre solo, sobre acompanhamento, é aula de música, um encontro entre dois gigantes.

Para fazer as revoluções que o Raphael fez no violão, era necessário conhecer quem veio antes dele. E isso ele fez como poucos; tinha um conhecimento profundo do repertório de seus antecessores. De todos estes, a gente pode dizer que uma referência salutar para o

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{leituras}

{} O livro do disco: Gilberto Gil - Refavela Maurício Barros de Castro | Ed. Cobogó | 2017

Imagine se, além do encarte de um disco, você tiver em suas mãos um livro que explica minuciosamente as condições históricas de composição, produção e gravação de canções antológicas? É o que se encontra na série da Cobogó "O livro do disco". O dedicado ao Refavela (1977), de Gilberto Gil, enquadra-se em uma trilogia de Gil dedicada à música brasileira e com referências afro, como Refazenda e Realce. O autor Maurício Barros de Castro divide em duas partes seu estudo e exposição sobre Refavela. Primeiro cuida do conceito do disco, desenhando um pano de fundo histórico e da vivência de Gil na África para compor algumas das canções do disco. Na parte seguinte, empenha-se em apresentar cada faixa, canção por canção, entre elas: "Aqui e agora", "Sandra", "Refavela”. Fazem falta, para ilustrar a obra, imagens do encarte e do próprio disco, fotos da gravação e de momentos da viagem de Gil à Nigéria. Contudo, apesar dessa lacuna, o livro merece ser lido por todos que se interessam pela história da música popular e têm curiosidade sobre a história de canções como as presents em Refavela, reveladoras sobre o processo histórico brasileiro no final dos anos 70. E não deixa de ser também um louvor e uma homenagem a uma os principais músicos e compositores do país: Gilberto Gil. {voz da literatura}

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{voz de criança Quando eu era criança, meu pai vivia longe. Só voltava para casa uma vez por ano, no verão, por duas semanas. Meu pai tinha cheiro de mar. Porque era um pirata. Um grande pirata.

Trecho de Meu pai, o grande pirata, de Davide Calì e ilustrações de Maurizio A. C. Quarello. Tradução de Celina Portocarrero. (Pequena Zahar, 2018)

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A literatura infantil em Angola {} por MARIA CELESTINA FERNANDES

A

literatura infantil angolana, propriamente dita, começou a despontar no início da década de oitenta. No período colonial os livros destinados às crianças eram de autores portugueses, dos clássicos Andersen, Irmãos Grimm, Perrault e outros, cujos conteúdos eram alheios à cultura e ao modus vivendi dos nativos.

Rádio Nacional. Mais tarde o Instituto Nacional do Livro e do Disco-INALD, actualmente INIC-Instituto Nacional das Indústrias Culturais, órgão afecto ao Ministério da Cultura, procedeu à recolha e ilustração dos textos e editou. Assim nasceu a colecção Piô-Piô com doze títulos, seguida da colecção Miruí. Entre os títulos destacamos: Quem vai buscar o futuro?, A raposa e a perdiz, Lutchila, A trepadeira que queria chegar ao céu, O pequeno elefante e o crocodilo, A amizade do leão não se faz com traição, A águia, a rola, as galinhas e os 50 lwei, Kibala, o rei Leão, O Tambarino dourado, O maboque mágico, O pato que não sabia nadar.

Porém, nas zonas rurais e suburbanas, onde escasseavam escolas e, por conseguinte, um índice de analfabetismo bastante elevado, poucas pessoas tinham contacto com aquelas obras e era da literatura oral, passada de geração em geração através da voz sábia dos mais velhos, que se alimentavam. O conhecimento dos kotas (mais velhos) era transmitido quase sempre ao serão, em redor de uma fogueira ou nos jangos, antes da hora da dormida – hábitos que lamentavelmente se vão perdendo com a migração das gentes para os centros urbanos, de sorte que uma boa parte da população desconhece a oratura. Por outro lado, uma vez que o registo escrito é diminuto, a tendência é ela vir a esfumar-se da memória colectiva do povo.

Eram livros de bolso bastante frágeis, impressos em letra de tamanho muito pequeno; em contrapartida, apelativos pelo colorido das ilustrações. De aplaudir foi o facto de terem saído em grandes tiragens e muitos dos exemplares chegarem aos leitores gratuitamente ou a preços módicos. Uma novidade e um regalo que a todos orgulhou: folhear livros que falavam de coisas com as quais se identificavam, foi deveras gratificante. E como na altura assistia-se ao processo de massificação da alfabetização, o interesse de filhos e educadores foi surpreendente! Este foi, de facto, o período áureo da nossa literatura infantil… Foto: Diniz Simão

Como referimos, a literatura para crianças, genuinamente angolana, deu os primeiros passos nos anos 80 e digamos de forma espontânea quando um grupo de cidadãos, consciente da lacuna, decidiu escrever histórias, sendo algumas delas adaptações de contos tradicionais. A intenção era fazer chegar aos mais novos, onde quer que se encontrassem, as diferentes facetas e manifestações da terra e do povo, de forma simples e recreativa: hábitos e costumes, canto, folclore, linguajar, mitos, tradições, belezas, fauna e flora, etc. Integravam o grupo de pioneiros: Dario de Melo, Cremilda Lima, Zaida Dáskalos, Octaviano Correia, Maria Eugénia Neto, Gabriela Antunes, Rosalina Pombal. Numa primeira fase, os desbravadores começaram por publicar os contos na página infantil dominical do Jornal de Angola e a fazê-los passar em programas infantis da

{Crianças angolanas em projeto de leitura: https://bit.ly/2NMvxDR }

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{voz de criança} tivesse trabalhos publicados em páginas de jornais desde o dealbar da década de 80. Actualmente a autora conta com uma vasta obra em prosa e poesia, alguma dela traduzida e premiada. Kalimba e recentemente Kambas para sempre saíram sob a chancela da editora brasileira Kapulana. O livro A árvore dos gingongos faz parte dos onze clássicos da literatura infantil angolana e no Brasil a edição feita pela DCL foi distinguida com o Diploma Altamente Recomendável da FNLIJ.

Para além dos já mencionados, passamos a citar nomes de mais autores: Manuel Rui, o autor do conhecido livro Quem me dera ser onda e de A caixa, este publicado antes das edições do INALD, porém pouco divulgado, Ondjaki que tal como nós foi premiado no concurso do conto promovido pela Associação Cultural e Recreativa Chá de Caxinde e também distinguido pela FNLIJ, John Bela, Marta Santos, Kanguimbo Ananás, Zuline Bumba, Maria João, António Pompílio, Ngonguita Diogo, Alice Berenguel, Áurio Quipungo.

{Jardim do Livro Infantil, Luanda, 2016 | http://www.angop.ao}

O grupo acabou por se desmembrar pouco depois, mas novas editoras, novas obras e novos autores emergiram no mercado livresco, embora nem sempre em quantidade e qualidade desejável. Dos desbravadores, alguns já falecidos, apenas Cremilda Lima continua a apresentar inéditos com alguma regularidade.

Algumas iniciativas têm sido empreendidas visando a promoção do livro e o incentivo à leitura, a exemplo da Feira do Livro Infantil realizada anualmente e do concurso literário a ele acoplado, contudo ainda há um longo caminho a percorrer para o real desenvolvimento e valorização da literatura infantil em Angola. Urge colocar o livro ao alcance do leitor em bibliotecas escolares e nas comunidades, formar formador, mediadores, etc. Actualmente, devido à crise económica, as edições e reedições paralisaram e dos concursos literários apenas subsiste o do Jardim do Livro Infantil.

A União Dos Escritores Angolanos, a primeira associação/editora do país, que já havia editado, logo após a proclamação da independência, o livro de Pepetela As Aventuras de Ngunga e E nas florestas os bichos falaram de Maria Eugénia Neto, textos revolucionários concebidos durante o processo da luta de libertação nacional, continuou a publicar livros para crianças e jovens na colecção denominada Acácias Rubras. Nesta colecção incluem-se as obras de José Alves Um poema e sete estórias de Luanda e do Bengo e de Maria Celestina Fernandes A borboleta cor de ouro, obra de sua estreia no mundo das letras, embora já

{

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MARIA CELESTINA FERNANDES é uma das principais escritoras da literatura infantil angolana. Alguns de seus livros foram publicados no Brasil:


___{vitrine infantil} {} Mitologia grega: uma introdução para crianças

{} Pássaros do Brasil e algumas histórias

Heather Alexander; Meredith Hamilton

Adriana Varejão 1ª ed.

Trad. Adriana Schwartz

Editora Cobogó

1ª ed.

2017

Panda Books 2013 96 p.

{} Minhas duas avós

{} Vó, para de fotograr!

Ana Teixeira 1ª ed.

Ilan Brenman; Guilherme Karsten

Pólen

1ª ed.

2016

Melhoramentos

32 p.

2017 27 p.

{} Antes e depois: um dia decisivo na vida de grandes brasileiros, quando pequenos

{} Contos encantados da América Latina

2ª ed.

Celina Bodenmüller e Fabiana Prando; Adriana Quezada

Companhia das Letrinhas

1ª ed.

2018

Moderna

203 p.

2018

Flávio de Souza; Daniel Almeida

104 p.

{} Os fantásticos livros voadores de Modesto Máximo

{} Aqui, bem perto Alexxandre Rampazo

William Joyce

1ª ed.

Trad. Elvira Vigna

Moderna

1ª ed.

2018

Rocco

61 p.

2012 56 p.

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leituras

{}

duas casas

Roseana Murray e Elvira Vigna | Ed. Abacatte | 2017 | 32 p.

Como um poema narrativo, Rosana Murray toca em tema que pode ser delicado para os filhos: a separação dos pais. A sensibilidade da autora no trato da questão possibilita ampliar o público ao qual se destina a obra, não se restringido a crianças que passam pelo problema suscitado. Os irmãos que podem ter duas casas, uma na montanha e outra à beira do mar, incutem imagens poéticas e valores humanos significativos nos pequenos leitores, como no trecho: Mas uma casa fala com a outra e às vezes o mar vira riacho e o riacho vira mar. Os irmãos decidiram então, amarrar as duas casas dentro do coração, com todos os quartos e janelas...

Elvira Vigna, com sua arte de assinatura particular, ilustra com brilho a narrativa poética de Rosana. {voz da literatura}

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{ crítica literária E aqui caímos na questão da crítica. Divida entre a crítica acadêmica, especializada, que funciona como um mecanismo de seleção e hierarquização da literatura, mais ou menos de acordo com os critérios do já institucionalizado e, de uma certa forma, às vezes refugiada nos suplementos como Folhetim (da Folha de S. Paulo) ou Cultura (de O Estado de S. Paulo) e aquela outra, feita pelas revistas semanais, cujo objetivo mais e mais foi se reduzindo a fazer propaganda dos novos produtos disponíveis nas estantes das livrarias, a crítica literária regular e militante vai aos poucos se eclipsando.

Trecho de A imagem e a letra: aspectos da ficção brasileira contemporânea, de Tânia Pellegrini. (Mercado de Letras; Fapesp, 1999.)

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{crítica}

Sobre Noite dentro da noite, de Joca Reiners Terron

V

{} por REJANE ROCHA

asta é a fortuna crítica que se consolidou em torno da produção literária brasileira que, de algum modo, tematizou a Ditadura Militar ocorrida no país entre 1964 e 1985. Trabalhos seminais como os de Tânia Pellegrini (Gavetas vazias, 1996), Regina Dalcastagnè (Espaço da dor, 1998) e Renato Franco (Itinerário político do romance pós-64: A festa, 1998), para citar apenas alguns, estabeleceram, nos anos seguintes à abertura política, a descrição dos temas e das opções formais de autores que, em romances, contos e novelas, enfrentaram a difícil missão de compartilhar seu testemunho do horror e da violência, de contar a sua história e a história do país, de encontrar uma linguagem possível para organizar, literariamente, os escombros de um país arrasado, dando forma a uma história ora silenciada, ora distorcida pelo sequestro das liberdades democráticas. Não sem correr o risco do esquematismo e, certamente, sendo injusta com as nuances reflexivas dos estudos citados, é possível identificar, nessas análises críticas - e na produção literária objetos dessas análises - duas linhas de força: uma que identifica e descreve obras narrativas, produzidas no período ou logo depois da abertura, comprometidas com o relato realista, frequentemente objetivo, dos fatos históricos e as consequências individuais da violência do estado de exceção que se instaurara. Outra linha de força se relaciona com o experimentalismo da linguagem que, sem abandonar a nota política, ousa construir um universo linguístico em cuja (des)organização - fragmentações, estilhaçamento da voz narrativa, experimentação com a materialidade do objeto livro e da página - se entrevê a impossibilidade de um relato organizado a respeito dos eventos traumáticos.

com o mais prestigioso prêmio literário do país, o Jabuti, em 2016. Diante de números tão expressivos e de uma conjuntura sócio política atual tão delicada, em que parlamentares, candidatos e uma parcela da população brasileira vê a instauração de uma ditadura como solução para os problemas do país, seria interessante analisar essa produção, suas especificidades em relação àquelas narrativas que, durante a Ditadura ou logo após a abertura, abordaram e denunciaram os seus horrores e, ainda, refletir a respeito de como ampliar a reflexão crítica a respeito de uma produção que, se se relaciona estreitamente com aquele momento histórico, olha para ele desde este momento histórico. Evidentemente, narrar a Ditadura Militar, hoje, não é apenas narrar o fato histórico Ditadura Militar (se é que um dia terá sido só isso), mas é narrar a Ditadura Militar que se construiu ao longo de décadas de produção artística e intelectual a respeito do evento histórico; desde de 2012, quando se estabeleceu a Comissão da Verdade, é narrar também o que nunca tinha sido revelado graças ao sequestro dos documentos oficiais e ao silenciamento das vítimas; desde 2016 é narrar, também, o efeitos da instauração de um estado de exceção que, ainda que não "oficializado" faz sentir seus efeitos em muitos setores da vida social.

Nos últimos anos, a literatura brasileira tem assistido ao incremento na publicação de narrativas que abordam a Ditadura Militar. Um breve e despretensioso mapeamento aponta para a publicação de 17 romances que, desde 2010, abordam a temática, seja como ponto de partida para a organização do enredo, seja como tema secundário. É digno de nota que um deles, A resistência, de Julián Fucks - publicado no ano em que se completavam os 30 anos da abertura - foi agraciado

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{Passeata dos Cem Mil, maio de 1968 | Evandro Teixeira}

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{crítica} Muitas das apreciações críticas feitas no calor da hora a respeito do livro de Terron mencionam o dado autobiográfico - ou autoficcional, que seja! - que estaria no âmago da história que se narra. Motivada, talvez, pela designação que consta na segunda capa do romance, abaixo do título ("uma autobiografia"), a exploração do dado biográfico é reforçado pelas entrevistas realizadas com o autor: em uma delas, opta pelo termo auto-invenção para falar de seu trabalho. Embora não seja uma leitura que deva ser de todo descartada, não creio que ela possa levar a interpretações muito profícuas, que ultrapassem a constatação de que Joca Reiners Terron viveu - como muitos de nós, na casa dos 40/50 anos -, quando criança, sob os estertores da Ditadura Militar, tendo bem pouca consciência do que isso significava para além da obrigação de cantar o hino nacional todas as manhãs e de conviver com os pequenos - mas não irrelevantes - autoritarismos que permeiam todas as relações sob um regime autoritário.

{} Noite dentro da noite Joca Reiners Terron Cia das Letras 2017 464 p.

É essa a medida do desafio que enfrenta Joca Reiners Terron no seu Noite dentro da noite, lançado em 2017. O romance de intricada estrutura e um pouco usual narrador em segunda pessoa se organiza sobre a narração de memórias que não pertencem a quem as narra. Assim adverte o narrador Curt Meyer-Clason ao "você" cuja história acompanhamos ao longo das mais de 400 páginas do romance de Terron: "Essa história é sobre você, mas vai contá-la como se fosse sobre outro"; "Essa história é sobre você, porém é como se a assistisse em um filme cujo ator principal é desconhecido". Cumpre, então, esclarecer que o personagem principal, "você", perdeu a memória em um acidente aos 11 anos, em 1975, e que o relato que acompanhamos são as memórias delegadas a Curt Meyer-Clason pela personagem rata, por meio de gravações em fitas K7, mas a elas não se limita, uma vez que o narrador se ocupa, também, dos sentimentos e elucubrações (hipotéticas) desse personagem cuja memória se esmera em reconstruir, reconstruindo, então, a sua identidade fraturada, compondo os traços de um personagem que não tem consciência de si porque desconhece tudo o que viveu até os 11 anos de idade. A questão colocada pelo narrador, no primeiro capítulo, como se fora colocada pelo personagem talvez seja uma das chaves da compreensão do romance: "E por acaso que tipo de situação uma criança de onze anos pode viver que lhe faça falta se for esquecida assim de repente, é o que você se pergunta. Não se vive muita coisa até essa idade...". Isso porque a lacuna de 11 anos na memória do personagem principal coincide com os primeiros 11 anos da Ditadura Militar no Brasil e a articulação entre a constituição subjetiva do personagem principal e esse ponto de arranque do estado de exceção são fundamentais para o desdobramento do romance.

Mais interessante talvez seja pensar de que forma um romance como o de Terron se constrói sobre escombros de fatos, ideias, ideologias e representações em torno do evento histórico Ditadura Militar, não para organizá-los creio que essa chance já foi perdida pela sociedade brasileira, quando não escancarou os horrores do regime ditatorial, optando por uma solução apaziguadora (para os carrascos, claro) -, mas sim para os expor tal como são. Nesse sentido é que, acredito, o romance de Terron não se acomoda bem a nenhuma das duas linhas de força que a crítica identificou como caracterizadoras do romance pós64; ao mesmo tempo em que dialoga com ambas. Nele está presente o realismo possível na representação de um evento histórico que acumulou décadas de não ditos, de interditos, de versões oficialescas, de reflexões sociológicas e de representações artísticas, estas duas tentando contornar e desvelar o que, até hoje, insiste-se em deixar encoberto. E esse realismo possível só é possível graças ao emprego de uma linguagem que o desarticula: um relato de memórias (de outrem) a respeito das memórias (de outrem) narradas para que o seu suposto detentor possa saber qual é a sua identidade no presente, fragmentos de distintas histórias (e temporalidades diversas) que se imbricam e se contaminam mutuamente, o tom sombrio e o efeito de suspense que já podem ser chamados a caracterizar o estilo do autor. Enfim, um realismo possível construído a expensas do absurdo: algo parecido com o que vemos nos jornais, diariamente, desde 2016.

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REJANE ROCHA é professora de literatura na Universidade Federal de São Carlos (UFScar)

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{ sumário APRESENTAÇÃO ....7 1 LITERATURA E DEMOCRACIA

Margens da democracia: a literatura e a questão da diferença

1.1 Democracia da vida comum João Camillo Penna...13

Marcos Siscar e Marcos Natali (Org.) |

1.2 A soberba do naufrágio: poesia, elitismo, democracia Marcos Siscar...47

Ed. Unicamp e EdUSP

1.3 Poesia, língua comum?

2015

Marcelo Jacques de Moraes...81

380 p.

1.4 Encaroçada de estrelas: alguns poemas de Paulo Henriques Britto e a transição democrática Roberto Zular...109

1.5 O autoritarismo dos críticos: Hernán Vidal, Idelber Avelar e as transformações da crítica literária democrática Edwin Orlando Camacho Quintero...133

3.3 Estrela melancólica em ceú noturno: a perversão como genealogia da liberdade de expressão em Roberto Bolaño

2 LITERATURA E DIFERENÇA

Tiago Guilherme Pinheiro...303

2.1 Margens da história: a revisitação do passado na ficção afro-brasileira

3.4 Fantasmagoria Jaime Ginzburg...349

Eduardo de Assis Duarte...167 2.2 Ler o negro em Cidade de Deus

3.5 Notas sobre formas de dominação da esfera pública cultural contemporânea

Carolina Correia dos Santos...191

Smaïl Hadj Ali...359

2.3 Em nome da língua e da literatura: Jacques Derrida e Abdelkebir Khatibi testemunham

Sobre os autores....377

Maria Angélica Deângeli...209 {...} Colocar à prova a pertinência da literatura na sua relação com a lógica democrática (e inversamente) é uma maneira de recolocar em pauta palavras como “comunidade”, “justiça”, “exclusão”, “distinção”, “vida”, “língua”, “origem”, dando a elas profundidade éticocrítica sem necessariamente restringi-las a um teor-político-moral. Trata-se, antes, de compreender o que cada uma dessas noções pode dizer ou testemunhar a propósito de uma experiência comum que, paradoxalmente, não deixa de constituir uma experiência de alteridade. {...} [excerto da apresentação]

2.4 Impasses dos pós-colonialismo e “os povos originários” Meritxell Hernando Marsal...227 3 LITERATURA E LIBERDADE 3.1 A desconstrução é a justiça Raul Antelo...245 3.2 O sacrífico da literatura Marcos Natali...269

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{ tradução Em 1798, no contexto de um Brasil ainda colonial e periférico, Manuel Jacinto Nogueira da Gama (1765-1847) – primeiro marquês de Baependi, destacado militar, político e professor brasileiro – revela-se um pioneiro em termos da teorização da tradução técnica. Antecipando-se às ideias elaboradas por André Lefevere no final do século XX de que a tradução, sinal visível da abertura de um sistema, possibilita a expansão do conhecimento por meio de descrições de experiências novas (1990), Nogueira da Gama enfatiza o papel da tradução na disseminação de epistemologias. Sua contribuição para um volume em que predominam as reflexões sobre a tradução da literatura é bem marcante. Chama a atenção o fato de que essas reflexões de certa forma também prenunciam a visão de Jacques Derrida de que a tradução permite o crescimento de uma língua que, de outra forma, estaria isolada e atrofiada (1985): De que luzes, em fim, de que descobrimentos, e para dizer tudo de huma vez, de quantas obras excellentes, e preciosas em todo o genero seriaõ privados aquelles que, ignorando as linguas Latina, Alemã, Ingleza, Italiana, Franceza, além das mais, que, ainda que menos, concorrem todavia para o augmento dos conhecimentos humanos, que ignorando, torno a dizer, as principaes linguas da Europa, naõ fossem indemnisados pelo meio unico das Traducções?

Trecho do ensaio “A metalinguagem de tradutores brasileiros: uma introdução”, de Else R. P. Vieira, publicado no livro Palavra de

tradutor: reflexões sobre tradução por tradutores brasileiros, organizado por Márcia A. P. Martins e Andréia Guerini (UFSC, 2018).

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{tradução}

A porta morgana de Giorgio Caproni: poesia e tradução {} por PATRICIA PETERLE

G

A porta morgana: a Palavra – sobre poesia e tradução, reúne uma seleção das críticas escritas por Giorgio Caproni. Essa parte da produção é tão intensa

iorgio Caproni (1912-1990) já é conhecido por aqui como poeta, aliás como um dos grandes poetas da segunda metade do século XX. Na antologia publicada em 2011, A coisa perdida – Agamben comenta Caproni, é possível acompanhar o caminho dessa escrita, uma vez que nela temos pequenas amostras de todo o seu percurso poético: do primeiro livro Como uma alegoria (1936) ao póstumo Res amissa (1990), organizado pelo amigo e filósofo Giorgio Agamben. Sem dúvida a poesia é uma necessidade, é uma exigência que se impôs para Caproni, que faz parte daquele grupo para quem o laboratório poético, aos poucos, se transforma num modo de refletir sobre o que acontece na sociedade, sobre as relações humanas, enfim, sobre o que está ao redor: uma forma de conhecer. Nesse sentido, é interessante pensar como essa escrita que terá sempre elementos concretos (bares, copos, trens, mesas, portas, janelas) ao lado de outros mais lábeis (névoa, neblina, fumaça), trabalha com essa concretude dos próprios objetos e também da língua.

quanto as outras, indo desde a primeira metade da década de 1930 até a segunda metade de 1980. Isso significa que esse tipo de escrita segue em paralelo à elaboração, à iniciação e amadurecimento, do texto poético. Uma hipótese, portanto, é a de que esses textos constituem uma espécie de laboratório do poético em paralelo. A edição brasileira teve como ponto de partida os quatro volumes de Prose critiche, organizado por Raffaella Scarpa, com introdução de Gian Luigi Beccaria. Foram escolhidos 41 ensaios, dentre os mais significativos e emblemáticos. Ensaios por meios dos quais o poeta se abre e mostra um pouco das trilhas percorridas em campo poético.

Os textos dedicados à tradução compõem a última seção desse volume, Laboratório poético III – sobre tradução, atividade que segue em paralelo à produção poética e crítica, espaço também de reflexão sobre os próprios processos de escrita. Em mais de uma ocasião, Caproni terá a oportunidade de dizer e reafirmar que não tem claramente as regras, os eixos norteadores tanto de seu laboratório poético quanto do tradutório. Contudo, é um fato que a página em branco é um espaço de complexos processos. Ele perpassa pela grande pergunta: traduzibilidade e/ou intraduzibilidade? Opta pela

São várias as atividades que Caproni desenvolve ao longo dos seus 78 anos vividos entre Livorno, Gênova e Roma. A tradução é a mais importante depois da poética, na verdade, é um espaço que alimenta a reflexão de Caproni e sua própria poesia, como se observa em vários momentos dessas páginas. O deslocamento da centralidade do eu, a figura do outro, a atenção para os aspectos do cotidiano e concretos não deixam de ser fruto do questionamento de algumas categorias essenciais como pessoa, espaço, tempo e experiência. Em relação a essa última, poderíamos lembrar de alguns versos que colocam em evidencia o traço paradoxal de sua escrita: “Todos os rincões que vi, / que visitei, agora eu sei – estou certo: / por lá jamais andei”. A atividade de crítico, colaborador de várias revistas e jornais, importante por ajudar na renda familiar, é mais do que complementar, na verdade, é um laboratório em paralelo, no qual Caproni falando de questões da língua da poesia, lendo outros poetas, falando sobre sua atividade de tradução, não deixa de refletir e dar pistas principalmente sobre sua prática poética.

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{} A porta morgana: ensaios sobre poesia e tradução Giorgio Caproni Trad. e org. Patrícia Peterle Rafael Copetti Editor 2014 112 p.

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{tradução} importância da palavra, sua história cultural e etimológica na língua de partida, que corre o grande risco de se perder (como pode ser no caso da palavra “pão” e “bread”) não pode gerar o risco oposto, ou seja, o de ser literais quando se pode ou é preciso ser. É justamente com um exemplo desse tipo, que Caproni conclui o último texto “Divagações sobre o traduzir”, conferência dada em ocasião do recebimento do prêmio Monselice, atribuído-lhe pela tradução de Il n’y a pas de paradis de André Frenaud. Nos 41 textos reunidos neste livro se encena um pensamento sobre poesia, sobre tradução que perpassam por uma questão mais profunda que é a própria reflexão sobre linguagem. A primeira parte do título desse volume é um verso, justamente, do poema “A porta” que na sua construção vai elencando uma série de traços (transparência, opacidade, labiríntica, murada) na tentativa de perfilar essa porta, que no final é definida “A porta / morgana: / a Palavra”[“La porta morgana: / la Parola”] Caproni vai buscar na mitologia céltica, nas histórias do Rei Artur, essa porta que nada mais é do que a palavra. Não é, enfim, uma coincidência que ele escolha o termo “morgana”, referência à fada, cujas qualidades boas e generosas podem se tornar maléficas e até diabólicas. Fada também presente em Orlando Furioso, habitante com suas outras duas irmãs de uma ilha para além das colunas de Hércules. É, portanto essa tensão, que não precisa ser resolvida, que Caproni coloca a nu na linguagem. Gesto problematizador e sintomático de certa produção filosófica e poética ao longo do século XX e também XXI. A voz crítica de Caproni dialoga com os problemas da sociedade italiana do pós-guerra e do boom econômico, mostrando como a poesia é uma ação de disposição para o exterior e para o sentido. O texto literário é uma encenação, possui uma performatividade da linguagem, não é só técnica: “escrever não é certamente impor uma forma (de expressão) a uma matéria vivida”, para lembrar Deleuze. O poético, assim, mais do que oferecer formas e contornos, aponta para a não-forma, para o informe, o inacabado e o indiscernível: os fantasmas das palavras, como Caproni soube tão bem ler nos poetas arrolados na corrente liguística.

intraduzibilidade. A essa altura outra questão surge: como opta pela intraduzibilidade se traduziu muito e traduziu grandes autores. É justamente do plano da experiência com o texto de outrem, com a língua de outrem, que ele chega a essa conclusão. A tradução como transporte, transferência é uma tarefa fadada ao insucesso, à falência. E aqui retorna todo o debate que atravessa o Laboratório poético I, ou seja a discussão sobre poesia e linguagem poética, pois para Caproni, a tradução só é possível quando a música é sentida, e esse sentir, por si só, já transforma essa música em uma outra coisa; que por sua vez, possui características do traduzido, e também marcas de quem a traduziu, sendo o resultado final, nem um e nem outro, uma terceira via; um entre-lugar, que foi sendo gerado durante o próprio processo de tradução. Talvez seja por isso que no primeiro texto, “Pão e bread”, Caproni sinta a necessidade de falar sobre poesia, sobre a palavra em poesia. Uma comparação cara ao poeta que a usará em outros momentos é entre a tradução e a música. Por exemplo, uma música feita para violino, a ser tocada, por uma flauta, um oboé ou uma corneta, só é possível se sofrer modificações. Além disso, esse processo não é nunca estático e igual, pois depende de como os timbres são percebidos pelo ouvido que os escuta. As afinidades e diferenças entre as línguas se anunciam e se fazem ver na tradução. Dentro desse debate, Caproni parece tender para a posição benjaminiana, da transformação e renovação de tudo o que vive, ou seja, que ao perviver o original sofre modificações. Essa questões, de forma mais prática e concreta, aparecem nos comentários feitos às traduções de Antonio Machado, Paul Valéry e Louis-Ferdinand Céline. A tradução, a medida que a leitura vai sendo feita, fica claro que se torna um terreno mais do que fértil de aprendizagem e de experimentação do Capronipoeta. Esse complexo processo, também de embate com o texto do outro, é uma outra página em branco que, aos poucos, acolhe um texto terceiro que vai sendo tecido. Um apropriar se desapropriando, como coloca Agambem no prefácio de Res Amissa. Porém, toda a

O percurso oferecido é, portanto, uma experiência humana, ao longo do século XX, sobre a condição humana, é, enfim, uma experiência pensante da língua, na língua, que tem lugar nesses diferentes laboratórios do poético.

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{} texto adaptado da introdução “Às voltas com Giorgio Caproni” do livro em análise. PATRICIA PETERLE é tradutora e docente da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). {voz da literatura} n. 4 | agosto | 2018


{ teatro Resta informar que o teatro grego no Brasil é mais frequentemente traduzido para ser lido por uma elite acadêmica que dispensa a performatibilidade. Há nisso uma perversão, pois em tempos gregos antigos o teatro era popular e alcançava agricultores, mercadores, marinheiros, legisladores, filósofos e até estrangeiros, nele todos os signos falavam. O teatro grego não era arte para poucos, ele se fazia entender e discutir pelas vivências de um grande corpo social. Com o corpo e pelo corpo (individual e socialmente falando). Assim, propomos restaurar o corpo na tradução performativa e coletiva.

Trecho do ensaio “Dramaturgia e construção de memória: enfrentando traumas”, de Tereza Virgínia Ribeiro Barbosa, publicado na obra Crime e

transgressão na literatura e nas artes (Ed. UFMG, 2015). {50}


mitos, por quê?

[ Espaço para foto ]

{} POR SONIA PASCOLATI

P

or mais que dois milênios nos separem das origens do teatro ocidental, na Grécia, a presença da tragédia, do trágico e dos mitos na contemporaneidade nos aproxima do rito performático das dionisíacas. De fato, o legado da tragédia grega marca profundamente toda a história do teatro, alimentando nosso imaginário tanto com o sentimento do trágico, recorrentemente ressignificado, quanto com figuras emblemáticas de Édipos, Medéias, Antígonas e Ifigênias.

{} Por que Hécuba Matéi Visniec Editora É Realizações

Também o romeno Matéi Visniec (1956- ) assumese herdeiro dessa tradição ao lançar o grito dramatúrgico-teatral Por que Hécuba (original em francês e tradução brasileira pela editora É Realizações, ambos de 2014), texto em que a rainha destronada de Tróia é retratada especialmente como a mãe que perdeu todos os filhos para a guerra – nem mesmo Polixena é poupada, pois casa-se com a morte ao juntar-se a Aquiles – e cujo drama serve como divertimento para os sádicos deuses do Olimpo.

2014 112 p. A antiga rainha, agora serva, lança seu grito emudecido: por que ainda continuamos escravos das guerras? E ele ecoa em nosso ouvidos moucos... Nós que pouco aprendemos com a cegueira de Édipo, derrotado pelo próprio orgulho da invencibilidade, e com a ambição de Jasão, que impele a dura vingança de Medeia pelo filicídio. Nós que fechamos os olhos para o sacrifício de Ifigênia, necessário para que bons ventos façam o extermínio singrar os mares, e o de Antígona, aquela que perde os irmãos um pelo braço do outro, sempre na disputa pelo poder.

Visniec utiliza o metateatro para denunciar o sadismo dos deuses: conduzido pelo Coro, o sofrimento de Hécuba é dado em espetáculo a Zeus, Hera, Poseidon, Hefesto, Afrodite, Hermes, Atenas e Apolo. Não bastasse a intensidade do sofrimento da mãe circundada por dezenove montes de cinza – cinzas que são penosamente engolidas por ela, num gesto que devolve ao útero os filhos perdidos para a guerra –, os deuses querem (re)ver o espetáculo de sua dor sem dar-lhe o direito de protesto, uma vez que Hera lhe oferece hidromel como forma de secar-lhe a voz: a boca de Hécuba se abre, mas o grito não tem som.

Visniec quer nos falar sobre o nosso próprio tempo e para isso nos faz reencontrar Hécuba. O retorno ao mito é um dos caminhos trilhados pelo teatro contemporâneo para apontar para o presente e reafirmar a vocação política do teatro.

Hécuba é a representação da maternidade destruída pelas guerras, antigas e contemporâneas, especialmente aquelas a que a religião serve como pretexto. Em tempos de imediatismo midiático, em que a destruição é transmitida ao vivo e em cores, vivemos o paradoxo de termos a guerra mais próxima, porque vista em real time, e mais distante, porque mediatizada e espetacularizada, como os deuses fazem com o aniquilamento de Tróia.

{ {51}

SONIA PASCOLATI é docente da Universidade Estadual de Londrina (Paraná) e pesquisadora na área de dramaturgia e teatro.

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{ periรณdicos homenagem a paco cac {in memoriam}, poeta e colecionador de periรณdicos literรกrios brasileiros.

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__ O VENENO DAS REVISTAS DA INVENÇÃO {} POR PAULO LEMINSKI

Consolem-se os candidatos. Os maiores poetas (escritos) dos anos 70 não são gente. São revistas. Que obras semicompletas para ombrear com o veneno e o charme pocromático de uma “Navilouca”? A força construtivista de uma “Pólem”, “Muda”, ou de um “Código”? O safado pique juvenil de um “Almanaque Biotônico Vitalidade”? A radicalidade de um “Pólo Cultural/Inventiva”, de Curitiba? A fúria pornô de um “Jornal Dobradil”? E toda uma revoada de publicações (“Flor do Mal”, “Gandaia”, “Quac”, “Arjuna”), onde a melhor poesia dos anos 70 se acotovelou em apinhados ônibus com direção ao Parnaso, à Vida, ao Sucesso ou ao Nada.

“Tinha uma pedra no meio do caminho” (Drummond). Quem diria que um súbito obstáculo iria sustar a marcha do bardo? “A Carne é Triste e eu Li todos os Livros” (Mallarmé). Ninguém poderia imaginar que a carne e os livros poderiam sair juntos na mesma notícia. Querem mais uma não-tícia? “Tu pisavas nos astros distraídas” (Orestes Barbosa). Ora, vamos e venhamos, mas essa da nega pisar em estrelas é dose. E distraída, ainda por cima! Não param aí os absurdos. Quando você menos espera, vem um português magrinho, bêbado, que diz, detrás de um bigodinho Chaplin-hitleriano: “O poeta é um fingidor/finge tão completamente/que chega a fingir que é dor/a dor que deveras sente.” Aí é demais. O desrespeito pela santidade da lógica e da realidade é de molde a fazer qualquer leitor, medianamente instruído, a torcer o nariz. Nisso, o Augusto de Campos chega e encerra o assunto, mandando aquele abraço para o espaço cósmico: “Abra a janela e veja/o pulsar quase mudo/abraço de anos-luz. Abraço de anos-luz! Chega. Eu passo.

POESIA, UMA COISA PRA NADA Lavra, faz tempo, um “boom” poético, nestas partes pudendas, descobertas por Cabral. Livros. Livretos. Folhas. Folhetos. Grafitis. Gravetos. Vagas. Vogas. Ondas. E, sobretudo, poetas. Índice, eu acho, de uma insatisfação com a(s) linguagem(ns) vigentes e seus limites. Afinal, se a poesia tem algum papel nesta vida é o de não deixar a linguagem estagnar, deitada em berço esplêndido sobre formas já conquistadas. Sobre clichês. Sobre automatismos. Papel de renovar ou revolucionar o como do dizer. E, com isso, ampliar o repertório geral do o que dizer. Formas novas, qualquer malandro percebe, geram conteúdos novos.

É pra isso que poesia existe. Pra dizer o que não se diz. E só assim aumentar o campo dos prováveis do dizer. Para bem de todos, da poesia à prosa. Subversivamente. Nos anos 70, a poesia que mais fez isso foi a que esteve nas revistas. As revistas são a obra-prima da poesia brasileira, na década que acabou de passar. Mas não pára. Porque na vida dos signos superiores, gratuitos. O que passa, fica. E só fica o que passou, forte.

Para a poesia, alargar as fronteiras do expressável. Um poema – um dia, respondi a um repórter que queria saber – é o contrário de uma notícia de jornal.

O subversivo dessa linguagem casou, de véu e grinalda, com a era das nanicas jornalísticas (“Pasquim”, “Movimento”, “Coojornal”, “Em Tempo”, “Versus”, “Repórter”), e crítico-humorísticas (“Ovelha Negra”, “Raposa”, “Risco”, “Pato Macho”), alternativas-quixote para o sanchopança do jornalismo oficial, acadêmico e rotineiro, conformado e auto-satisfeito.

Uma notícia de jornal diz coisas previsíveis e, portanto, possíveis: Irã Sequestra Corpo Diplomático dos Estados Unidos. URSS Invade o Afeganistão. Direita Vence Eleições em El Salvador. Recrudesce a Luta no Oriente Médio. Já a poesia fala de coisas que ninguém previa, impossíveis, nadas: {53}

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{periódicos} Jorraram nanicas na Idade das Trevas, sob a sombra do AI-5. Foi a idade da imprensa pobre, “povera”, precária, aquém dos padrões empresariais da bananamaçã (ou ouro) da imprensa vigente. E muito além dela quando à independência de opiniões, contacto com as bases, contundência crítica e originalidade criativa. As migalhas de dinheiro que caíram das mesas da fartura do “milagre brasileiro”, talvez, consigam explicar alguma coisa da facilidade com que os pequenos jornais e revistas proliferaram nos anos 70.

das publicações correntes, meros suportes-excipientes de poemas, impressos corriqueiramente, sem a consciência da plasticidade do texto-página. E aquelas que, de certa forma, herdaram o apuro industrial e o elevado repertório gráfico-visual das revistas da Poesia Concreta paulista nos anos 50/60 (“Noigrandes”, “Invenção”).

Com a alta do petróleo e a carestia geral, aventuras como as nanicas começaram a se tornar, financeiramente, menos prováveis. As bombas nas bancas, intimidando o intermediário, agravaram ainda mais o quadro clínico das nanicas. Quantas vão bem das pernas hoje?

Aproveito para grafar assim o nome da revista que já se chamou “Qorpo Estranho”, na esperança de que, um dia, por força de tanta estranheza, assim seja seu nome. Ou pior. Ou melhor: mais “Xtraño” ainda.

Com os senhores, “Navilouca”, “Pólem”, “Código”, “Poesia em Greve”, “Artéria”, “Pólo Cultural/Inventiva” (de Curitiba), “Jornal Dobradil”... Nosso convidado de hoje tem um nome estranho: “Qorpo Xtraño”.

To make a long story short, todo esse papo foi para mor de dizer que está siando, lindo, o n.º 3 do “Corpo (ou Qorpo?) Estranho”, uma das nanicas de produção mais competentes e sofisticadas dos 70 (o n.º 1 é de 76). Se os dois primeiros números foram auto-editados, agora, pintou uma editora (a Alternativa, de São Paulo, claro), com jeito e peito para bancar a iniciativa.

NANICAS NA PRODUÇÃO Par e passo com as nanicas de consumo (tipo “Pasquim”), a geral e as arquibancadas (mais estas que aquela) assistiram ao desfile das nanicas de produção, onde os poetas mais jovens procuraram criar novos processos e novas formas de dizer, dizendo coisas novas. Enfim, isso que chamam por aí de poesia. Com o passamento dos suplementos literários nos jornais, que marcaram os anos 50/60, a minoritária linguagem da poesia buscou novos leitos e novos leitores para fazer correr seu leite (essa foi de lascar, hein, Régis?).

E assim “Corpo Estranho” (e, com ele, as nanicas de produção) passou do underground para o overground, a material viabilidade editorial do difícil. No leme: Júlio Plaza e Régis Bonvicino respondem pelo design do banquete e pelas iguarias: a recriação de um conto de vanguarda do beatle John Lennon, fragmentos inéditos do Diário Confessional de Oswald de Andrade, poemas inéditos de Haroldo de Campos, um depoimento de Arrigo Barnabé, um texto do cubano Severo Sarduy, o poema trans-verbal Poética/Política do próprio Júlio Plaza, traduções de Tristan Corbière, uma entrevista com o lendário Rogério Duarte e inúmeras outras atrações da pesada.

Pequenas revistas, atípicas, prototípicas, não típicas, coletivas, antológicas, representando um grupo ou tendência (“formalistas”, pornô, “marginais”), onde predominou a faixa etária dos 20 aos 30 anos. Em comum: a auto-edição (samizdat), todo mundo juntando grana para comprar a droga da poesia. Antologias: essa coletivização do aparecer (se não do fazer) corresponde a uma politização, mesmo que não explícita. E a escolha da revista como veículo (mais que um jornal, mas menos que um livro), a uma posição estético-filosófica: a eleição do provisório, a arte e a vida no horizonte do provável, a renúncia e o repúdio ao eterno por parte de uma geração que cresceu à sombra do apocalipse. Talvez não haja mais tempo para a glória. Só para o sucesso. Assim como não há mais lugar para a emoção. Só para o suspense. Entre essas nanicas de produção, dá pra distinguir muito bem entre umas, de design de nível baixo, e outras, com um repertório mais alto de informação plástico-visual. Aquelas com programação visual nível gráfico-técnico inferior à média

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{

PAULO LEMINSKI foi poeta, letrista e compositor de música popular. {} texto originalmente publicado no caderno “Folhetim” do jornal Folha de São Paulo, domingo, 16 de maio de 1982.

{} {} um especial agradecimento a Alice Ruiz, Aurea Alice Leminski e Estrela Ruiz Leminski por autorizarem a publicação.

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___{vitrine leminski} {} Vida: quatro biografias (Cruz e Souza, Bashô, Jesus, Trótski)

{} Toda poesia: Paulo Leminski 1ª ed.

1ª ed.

Companhia das Letras

Companhia das Letras

2013

2013

424 p.

392 p.

{} Distraído venceremos {poesia}

{} Caprichos & relaxos

1ª ed.

1ª ed.

Companhia das Letras

Companhia das Letras

2017

2016

96 p.

168 p.

Poesia de Bolso

Poesia de Bolso

{} Afrodite: quadrinhos eróticos Alice Ruiz e Paulo Leminski

{} Ensaios e anseios crípticos

1ª ed.

2ª ed. ampliada

Veneta

Editora Unicamp

2015

2012

112 p.

384 p.

{} Envie meu dicionário: cartas e algumas críticas

{} Catatau {romance}

Paulo Leminski e Régis Bonvicino

Iluminuras

1ª ed.

2010 {1975}

Editora 34

256 p.

1ª ed.

1999 272 p.

{55}

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{leituras}

{} granulações Anna Monteiro Ed. Reformatório | 2018 | 184 p. | romance

O romance Granulações, livro de estreia de Anna Monteiro, reserva ao leitor uma narrativa de dupla voz. Nina e Pedro, casal em crise, se revezam na condução da narrativa a cada capítulo. Ambos jornalistas, mas cada um com suas tendências. Nina atua na seção de economia. E deseja ascender cada vez mais na carreira, alcançando o posto de editora-chefe no mesmo jornal onde o marido trabalha. Pedro, por sua vez, é um fotógrafo com forte tendência social, com interesse em registrar e defender comunidades indígenas ou quilombolas. Nina pretende colocar ordem na vida de Pedro. Pouco afeito a normas e regras, ele exagera na bebedeira e na jogatina. É incapaz de perder um Carnaval para viajar em férias com Nina. Pela perspectiva de cada um, a cada capítulo, os motivos para a ruína da relação vão se amontoando. Nas entrelinhas, nas granulações dessa narrativa, há muito o que se desenovelar em interpretações das mais produtivas sobre como a estética do romance de Anna Monteiro estimula leituras mais fundas. A descrição do tempo em certos trechos da narrativa, como o céu escuro no início e no fim do romance. As referências musicais do casal. O olhar de Pedro para Nina pela lente da câmera fotográfica. Pedro se autodenominando Neanderthal. A experiência de Nina na montanha russa da infância. São tópicos de interesse para outras análises possíveis da narrativa. E a simples frase “Acabou, Pedro, acabou”, ao final do romance, ganha força e lança o leitor em um vórtice da existência de Pedro, em que ele parece “acabar”, em um res ipsa loquitur sinalizado muito bem pela autora. {voz da literatura}

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{ BRASIS As imagens fotográficas ocuparam um papel estratégico na representação do Brasil durante o segundo Império, justamente no momento em que se tornaram mais caras noções de civilização e progresso, e quando o país se tornara alvo de interesse de muitos viajantes em busca de novos repertórios e possibilidades. Aquela conjuntura foi também marcada pela grande produção exportadora do café, sobretudo nas províncias do Rio de Janeiro e de São Paulo. Uma economia que demandou a construção de ferrovias ao longo do complexo cafeeiro, registradas (de modo privilegiado) por Ferrez. Desse modo, quando a fotografia entrou em moda por aqui, o café constituiu o cenário de um Brasil que se queria civilizado, apesar da escravidão.

Trecho do artigo “A lente de Marc Ferrez e o trabalho escravo nas lavouras cafeeiras oitocentistas”, de Maria de Fátima Novaes Pires, publicado no livro Bahia: escravidão,

pós-abolição e comunidades quilombolas estudos interdisciplinares (EDUFBA; EDUNEB, 2018), organizado por Maria de Fátima Novaes Pires, Napoliana Pereira Santana e Paulo Henrique Duque Santos.

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{brasis}

A Oeste, o Centro {} POR ROSANA ZANELATTO

O

conceito retórico de inventio/invenção compreende o percurso do orador na busca por argumentos que consolidarão/justificarão sua hipótese. É uma tarefa que envolve, segundo Carlos Ceia em seu E-Dicionário de Termos Literários 1 : um esforço intelectual, à cata de dados concretos para sua defesa; “uma reflexão moral”, cujo objetivo é defender a verdade; e “um envolvimento afectivo”, com o intuito de provocar a aquiescência do público.

por vezes, ainda se sustenta/é sustentado num realismo de caráter positivista. Não negamos a importância, nem a mirada realista; porém, nos interessa apresentar, ler, comentar e registrar textos que abdiquem de um realismo reprodutivo, de “[...] fachada, [que] apenas auxilia na produção de um engodo" 2. Mas que engodo é esse? No caso específico de uma literatura do/no Centro-Oeste, o engodo vem especialmente de hostes críticas exteriores que construíram/constroem personagens, tempos e espaços que isolam os textos num mundo paradoxalmente marcado pelo caos pré-criação e pelo paraíso organizado depois de uma possível interferência divina, venha esse deus de onde vier... Esse engodo surge da ainda vigente homologia entre literatura e realidade.

Se essa percepção clássica de invenção, que tem base aristotélica e ciceroniana, especialmente a partir da segunda metade do século XIX, com a guinada positivista dos/nos estudos de estética, foi obscurecida pela falácia de um certo realismo, hoje se faz necessário (re)problematizá-la, com vista a discutir a historiografia literária brasileira. É preciso que ela seja lida como um projeto narrativo inventado por vozes – a seu tempo, justificadas e estabelecidas por um projeto político de construção de um conceito de nacionalidade – calcadas na observação empírica e no objetivismo, reificando um espaço chamado Brasil e uma gente chamada brasileiros.

Sob o risco também de sermos um engodo, posto que analisar/ler literatura está no terreno das possibilidades, inventamos uma brevíssima lista de escritores/as que valem a pena serem ao menos consultados/as: Paulo César Pimentel, Divanize Carbonieri, Isaac Ramos, Silva Freire, Nicolas Behr, Cora Coralina, José Godoy Garcia, Anderson Braga Horta, Hermenegildo Bastos, Gilberto Mendonça Teles, Bernardo Élis, Lobivar Matos, Manoel de Barros, Douglas Diegues, Flora Thomé, Samuel Medeiros, Elias Borges, Isloany Machado, Lucilene Machado, Luciano Serafim. São artistas comprometidos/as com o que Deleuze e Guattari chamam de “enunciação coletiva, e mesmo revolucionária”, colocando em cena outras potencialidades e outras sensibilidades para a construção de uma literatura brasileira possível, criando poéticas de um centro a oeste do Brasil.

Para se contrapor a esse projeto pósindependência, ainda de caráter imperial, ao longo dos tempos republicanos, o caráter federativo do Estado brasileiro foi sendo (re)organizado, chegando, em 1970, à atual configuração nas cinco regiões: Norte, Sul, Centro-Oeste, Nordeste e Sudeste. A região Centro-Oeste agrega os estados de Goiás, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul e o Distrito Federal, comportando três dos principais biomas brasileiros: o cerrado, o pantanal e a floresta amazônica, esta restrita ao norte de Mato Grosso. Trazemos à tona o lugar geográfico demarcado por suas especificidades climáticas e ecológicas, a fim de pensar sobre a invenção de um lugar literário que,

ADORNO, Theodor. Posição do narrador no romance contemporâneo. In: _______. Notas de Literatura I. Trad. Jorge de Almeida. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2003. p. 57. 2

Disponível em: <edtl.fcsh.unl.pt/encyclopedia/invencao>. Acesso em: 11 jul. 2018. 1

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ROSANA CRISTINA ZANELATTO SANTOS é professora de literatura na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul.


{brasis}

Os demônios estão por aí, espíritos ruins também

{} POR DEVAIR ANTÔNIO FIOROTTI

Q

uando chegamos, existiam cerca de cinco milhões de indígenas no Brasil, falando em torno de 1500 línguas. Sim, 1500. Hoje não chegamos a 200 línguas indígenas faladas no Brasil e pouco mais de 800 mil habitantes. O que os povos indígenas sofreram e vêm sofrendo chama-se genocídio. Nesse exato momento em que se lê esse texto, só para exemplificar, indígenas guarani kaiowá estão sendo vítimas da força e ganância humana, como há 500 anos.

Impomos um silenciamento e genocídio cultural ainda em curso aos povos indígenas. As artes verbais desses povos estão sofrendo mudanças bruscas para aqueles que optaram ou não tiveram escolha de viver em contato com nós (outros). Essas mudanças, do ponto de vista do respeito às diferenças e de suas possibilidades de existência humana, representam uma perda muito grande, pois nós não conseguimos registrar praticamente nada efetivamente dessas possibilidades de artes verbais, centenas, talvez milhares de formas já se foram definitivamente sem registro algum e estão em curso nesse exato momento a morte de centenas dessas formas.

As evidências levam a crer que cada povo desse existente ou que existiu possuía suas artes verbais, performances artísticas, modos de se relacionar com a linguagem. O que nós fizemos e estamos fazendo para conhecer tais artes? Na área de Letras, em que me incluo, praticamente nada, com raras exceções. A nossa relação com o belo nas letras sempre foi e ainda está acoplada à palavra escrita e a construções culturais de poder, na quase totalidade, o que muitos chamam de cânone. O interesse efetivo de quem usufrui a literatura dita nacional está bem visível em estudos de representação das minorias, por exemplo.

Talvez mais do que nunca um canto macuxi diz da necessidade de eles serem fortes e ensinarem a nós um pouco mais de humanidade: makuipeman taa tanne iripeman taa tanne ekonekakîn sîrîrî epîremakîn sîrîrî kesera’pe e’to’pe ekonekakîn sîrîrî [os demônios estão por aí espíritos ruins também continuarei forte sendo a mesma maniva]1 Dados do meu projeto Panton Pia', tradução minha e de Terêncio Luiz Silva. 1

{

DEVAIR ANTÔNIO FIOROTTI é professor de literatura na Universidade Federal de Roraima.

{Lara, criança Macuxi | por Devair Fiorotti.}

{59}

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{brasis}

Literatura cearense: entradas {} POR EDUARDO LUZ

V

ivo em Fortaleza há 37 anos. Desde 1992, sou professor da Universidade Federal do Ceará, vinculado ao Departamento de Literatura. Durante vários semestres, dividi com meus alunos o encantamento que tenho pela literatura cearense, sobre a qual gostaria de escrever algumas linhas. Antes, no entanto – e perdoe o leitor o tique acadêmico -, impõe-se explicar que rótulos como, por exemplo, regionalista e nacional, tão rotineiramente associados a escritores e obras, devem aqui ser considerados como meramente descritivos. Não entendo como menores o escritor ou a obra que exploram o particular, assim como o escritor ou a obra não são maiores por, simplesmente, manifestarem uma dicção supostamente universal ou por entrarem em diálogo com vertentes culturalistas mais em voga. Feita essa ressalva conceitual, passo ao sucinto inventário pessoal de autores que afetiva e/ou intelectualmente me tenham estimulado, na expectativa de que eles venham ativar a curiosidade do leitor. A exiguidade de espaço me impõe renunciar ao século de José de Alencar (1829 - 1877) e apenas tangenciar o de Rachel de Queiroz (1910 2003), dentro do qual gostaria de iniciar por um de seus amigos, Jáder de Carvalho (1901 – 1985), com sua obra poética e narrativa de imensa dignidade e responsabilidade social. Há um poeta obscuro, que sofre de constrangedor ineditismo nos estudos acadêmicos, que é exemplar na adequação que empreendeu entre humor, crítica social e lirismo modernistas: Franklin Nascimento (1901 - ?). Destaco o romancista João Clímaco Bezerra (1913 – 2006), cujo primeiro livro, Não há estrelas no céu (1948), teve sua edição sugerida vigorosamente por Graciliano Ramos. Companheiro de

João Clímaco no prestigioso Grupo Clã, Moreira Campos (1914 – 1994) é um contista apuradíssimo, capaz de fazer expandir nossa comoção e nossa reflexão para muito além de seu texto. Escritores magistrais, de dicção poderosa, dialeticamente particulares e universais, são Patativa do Assaré (1909 – 2003) e Gerardo Mello Mourão (1917 – 2007). Morto precocemente, há um contista e romancista arrebatador, de linguagem única (e, ao mesmo tempo, de todos os cearenses): Juarez Barroso (1934 – 1976), inegociável como necessidade de leitura. Por fim, concluindo as sugestões, falarei daqueles e daquelas que ainda posso encontrar por Fortaleza: o poeta maior Horácio Dídimo, com suas composições rápidas, desconcertantes em sua simplicidade, inesquecíveis, e a poetisa maior Maria Helena Pinheiro Cardoso, que não nos faz ler poesia; faz-nos rezá-la. Entre os que constroem narrativas, há o prodigioso Jorge Pieiro, cujos contemas não poderiam ser assinados por mais ninguém, e a irretocável Tércia Montenegro. Todos os aqui citados são entradas para a literatura cearense, um universo de qualidade estética superior, construído por escritores e escritoras muitas vezes retesados e mesmo inviabilizados sob rótulos como regionais, estaduais, nacionais ou globais, enquadramentos inaceitáveis para a teoria crítica do conceito de valor, mas enquadramentos estabelecidos com relativa frequência em relação, sobretudo, a polos anacronicamente considerados periféricos – e, lamentavelmente, muitas vezes ainda acolhidos e repercutidos nos próprios polos.

{ {voz da literatura} n. 4 | agosto | 2018

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EDUARDO LUZ é professor de literatura na Universidade Federal do Ceará.


{brasis}

Curitiba {} POR JOYCE MUZI

“P

ara todos os efeitos, estamos felizes” . Temos disponíveis, em tempos de redes digitais ultraeficientes, a poesia que circula em verso e prosa, feita para nos fazer felizes. Nessas terras por que circulam a obra de Alice Ruiz, Luci Collin, Paulo Leminski, Helena Kolody, Dalton Trevizan, Cristóvão Tezza, Valêncio Xavier, também circula a poética de Assionara Medeiros de Souza (1969 -2018), a potiguar que escolheu Curitiba como casa. Uma delas, porque quando sua obra veio a público, o sul foi pouco. Pesquisadora cuja verve poética se configura em contos, poemas, peça de teatro, que nos enleiam em imagens de rostos, cachimbos, sorvetes, ruas, céus, chuvas, gritos de guerra. Até no México ela chegou. Do sul do Brasil para o mundo.

doutoranda em Estudos Literários na UFPR, sem nenhuma pretensão instrucional, Assionara Souza nos alerta para as fusões e confusões que encontraremos; não obstante o início que ela considerou tímido, a jovem escritora também habitante da capital paranaense não segue prescrições e recorta, copia, cola – sugere que aceitemos essa fusão de formas, linguagens e sensações para enfim confundir o que é e o que era pra ser: “Esse diário fala de uma mulher e de um cavalo que não são nem a mulher e o cavalo que estão aqui diante dos nossos olhos e nem a mulher e o cavalo que vivem na nossa cabeça... ”

Como crítica literária competente, seu próprio fazer poético foi posto em xeque com a leveza de quem conta um causo: “De onde vem essa coisa toda que se chama poema?/ Ah, talvez daquela rua/ Um garoto atravessando/ Ele tem um lenço azul no bolso/ E fica parecendo o rabo de um gato ”. Generosa que só, soube olhar para aquelas que leram seu texto e, mais do que inspiradas, mergulharam nessa louca coisa chamada poética de viver. Ou seria viver de poética? Sorte de Julia Raiz. Ou melhor, sorte a nossa. Na apresentação de Diário: A mulher e o cavalo, livro de estreia da

Assim como tantas outras mulheres que escreveram, que escrevem e, principalmente, as que nunca vão se sentir aptas à escrita, a narradora do Diário assume: “É preciso me convencer todos os dias que escrever vale estar acordada” . Uma mulher sozinha não tece uma manhã. “Mas eu sei que as mulheres estão todas interligadas, nossas mentes formando uma grande rede” . Assionaras, Julias, Bernadetes, Didis, Jandiras, Lidias, Marias, Olgas, Teresas seguem tecendo no sul do mundo apesar das manhãs.

{

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JOYCE MUZI é professora no Instituto Federal do Paraná (IFPR).

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{brasis}

Literatura do Espírito Santo

{} POR MARIA AMÉLIA DALVI

É

comum, quando estou fora do Espírito Santo, que as pessoas ao me descobrirem capixaba falem: “Não sei nada sobre o Espírito Santo! Vocês são o Acre do Sudeste?”. Não; o Acre tem os memes de Internet, para o bem e o mal do preconceito e da arrogância dos que estão nos eixos hegemônicos do país. No nosso caso, nem os memes – e esse é nosso charme. Por isso comento, entre melancólica e secretamente debochada, quando alguém dá indícios de não lembrar direito onde coubemos no mapa do Brasil: “O Espírito Santo é aquele estado que serve para separar o Rio de Janeiro da Bahia”. Toda essa situação tem relação com nossa história político-econômica – da colonização por um capitão falido à disparidade de forças com os vizinhos poderosos. Tratado como “primo pobre” da família, vamos vivendo nossa vida, parindo vez ou outra um Carlinhos Oliveira, uma Elisa Lucinda, uma Nara Leão, um Rubem Braga, um Sérgio Sampaio, um Waldo Motta.

maior parte de suas carreiras literárias nestas bandas? Se parecem bobagens para quem não precisa falar em literatura carioca ou literatura paulistana, para nós, situados e sitiados entre Minas e o mar, essas são pautas quentes. Indo, pois, ao ponto que interessa, apresento uma seleção pessoal de indicações de autores e obras que considero imperdíveis. Infelizmente, o espaço é restrito – e terei que deixar de fora nomes que considero fundamentais. Para tentar dar alguma lógica às minhas escolhas, privilegiei autores contemporâneos e que foram premiados por júris especializados. Outro critério, claro, foi: o que eu li e gostei. Na poesia, penso que o leitor destas minhas linhas não pode ignorar a produção de: Alex Moraes, Bith, Caê Guimarães, Casé Lontra Marques, Danilo Ferraz, Deny Gomes, Douglas Salomão, Fernando Achiamé, Jorge Elias Neto, Jorge Verly, Josely Bittencourt, Lino Machado, Lucas dos Passos, Miguel Marvilla, Paulo Roberto Sodré, Raimundo Carvalho, Renata Bomfim, Rodrigo Leite Caldeira, Sérgio Blank, Suely Bispo, Waldo Motta. Já na prosa (conto, crônica, romance), penso que o leitor precisa conhecer: Adilson Villaça, Aline Prúcoli, Ana Laura Nahas, Andréia Delmaschio, Antônio Rocha Neto, Bernadette Lyra, Fernando Tatagiba, Luís Guilherme Santos Neves, Herbert Farias, Luís Eustáquio Soares, Mara Coradello, Reinaldo Santos Neves, Sarah Vervloet, Saulo Ribeiro, Tiago Zanoli, Wolmyr Alcântara. Na dramaturgia, penso que o leitor precisa ler: Alê Bertoli, Fernando Marques, Nieve Mattos, Paulo de Paula. Por fim, na literatura infantil e juvenil, recomendo: Andréia Delmaschio, Francisco Aurelio Ribeiro, Paulo Roberto Sodré, Silvana Pinheiro.

Faço essas considerações para dizer que, havendo uma íntima relação entre Literatura & Sociedade, a dinâmica literária capixaba ressente-se de certo ostracismo na correlação com o restante do país. Infelizmente, os editais públicos de premiação e publicação de obras literárias (Prêmios Edufes e Secult, Lei Rubem Braga etc.) não estão satisfatoriamente articulados à “vida literária” nacional, de modo a assegurar um circuito de publicação, crítica, difusão conectado aos grandes veículos e aos espaços de maior prestígio. No entanto, a realidade é dinâmica e pujante, para quem sabe ver miudeza: editoras e editores atuantes, prêmios disputadíssimos com jurados de renome, eventos devotados à produção local, uma “fortuna crítica” de qualidade, um Núcleo de Estudos e Pesquisas da Literatura do Espírito Santo com mais de 25 anos de atuação.

Há, certamente, a dificuldade de nossos escritores e suas obras se fazerem acessíveis ao grande público – por isso, para quem quer começar, sugiro uma breve visita à página da editora Cousa, que, salvo engano, na atualidade, é a editora que tem publicado a maior parte dos melhores escritores do estado. Outra opção é iniciar-se pelas obras de, por exemplo, Reinaldo Santos Neves, publicadas pela Bertrand Brasil; ou de Waldo Motta, publicado pela Editora da Unicamp; ou de Bith, publicado pela editora Patuá – e assim sucessivamente. Bom, eu mesma estou com meu primeiro livro de poemas no prelo. Mas aí, descontado o cabotinismo, é mote para outra conversa.

Há uma discussão, bastante polarizada, sobre a existência ou não de uma “Literatura Capixaba” ou uma “Literatura do Espírito Santo”. De um lado, os que defendem que as expressões soam como provincianismos (e, em geral, preferem falar em uma “Literatura Brasileira feita no Espírito Santo”) e, de outro, os que defendem que, sem pautarmos nossa especificidade, “desaparecemos” no cenário nacional. Outra polêmica é sobre quem seria o autor capixaba: o nascido, o residente, o que pauta realidades locais? Nesse sentido, há perene desconforto: podemos reivindicar a produção de autores nascidos aqui, mas que alçaram voo fora e não fizeram nenhuma questão de remeter às suas origens? Podemos colher o quinhão de glória de autores que, não tendo nascido no Espírito Santo, desenvolveram a {voz da literatura} n. 4 | agosto | 2018

{ {62}

MARIA AMÉLIA DALVI é professora de literatura na Universidade Federal do Espírito Santo (UFES).


{ PORTUGAL (...) Se as poesias de Pessoa e a sua actividade global nos parecem insólitas ou ininteligíveis ou contraditórias é porque nelas tem lugar efetivamente o combate pelo máximo de claridade de que a linguagem foi objecto entre nós - e não só entre nós - e que a consciência do Poeta se fracciona e se une em função desse desejo demoníaco ou celeste de uma total autotransparência. Como não conhecemos lugar algum em que a autotransparência se tenha revelado - sobretudo não a conhecemos sob a forma “crítica” - o mais prudente é consentir receber do monstruoso combate de Pessoa por ela a luz propícia para percorrer com algum sucesso labirintos que ele mostrou não serem só dele, pois é neles e na sua companhia que nós com terror e alegria nos perdemos. Não são tais labirintos “literatura”, e muito menos “de literatura”, e só exteriormente o são até de poesia que quando o é da extremada forma que em Pessoa recebeu, é, na verdade, aventura sem nome próprio.

Trecho de Pessoa revisitado, de Eduardo Lourenço (Tinta da China, 2017)

{63}


{portugal}

A performance narrativa de Patrícia Portela {} POR RAFAEL VOIGT

Patricia Portela é biógrafa de um sujeito desconhecido chamado Acácio Nobre? Teve, de fato, contato com o espólio desse gênio que viveu perto de um século, entre 1869-1968? A performance narrativa de Patricia Portela avança sobre essas questões. E a escritora portuguesa é uma artista performática. Sua narrativa se compõe de fotos de objetos pessoais, dos puzzles inventados e construídos por Acácio, cartas e outros pertences, capa de um livro de ficção científica escrito por Acácio. Acácio, um homem que jamais se deixou fotografar. Que conviveu com Fernando Pessoa e seus heterônimos. Foi cultuado por um grupo fechado de intelectuais. Acácio Nobre, um gênio apagado da história por Salazar. Patrícia nos entrega outra certeza: a de que esta ditadura apagou da história vários outros Acácios, que só poderão retornar à vida por meio da performance ficcional. Patricia Portela se vale de um discurso que legitima "a verdade", com notas de rodapé, cronologias, objetos da coleção privada de Acácio Nobre.

{} A coleção privada de Acácio Nobre

Se Acacio existe apenas ficcionalmente, foi muito bem inventado, a ponto de incutir um alto teor realista nessa personalidade tão próximo de um gênio incompreendido, provocador e avesso a várias vanguardas.

Patrícia Portela Dublinense 2017

Patricia, em sua narrativa, monta um palco, uma instalação, alinha elementos da arte contemporânea? Sim. É instigante pensar e repensar, construir e desconstruir, junto com Patricia, a vida de Acácio Nobre.

Literatura Portuguesa

Essa é uma das muitas qualidades de uma prosa que promove o enagajamento do leitor.

{ {64}

RAFAEL VOIGT, editor da {voz da literatura}, é doutor em literatura pela Universidade de Brasília (UnB)


{portugal}

As minhas melhores férias* {} POR PATRÍCIA PORTELA

H

á perguntas inofensivas que nunca se deveriam fazer sob o perigo de nos revelarem que de

Só muito mais tarde, no fim dos dias da nossa história física comum, o visitei noutro lugar, no hospital. Nunca o visitei depois de morto. Mas lembro-me de todas as viagens que fizemos juntos. Na e pela sua biblioteca. A primeira vez que fui à Argentina foi com ele. E com o Córtazar. A maior parte das vezes que fui a Espanha foi pela sua mão. E pela de Goya e Lorca e Buñuel. Com ele desaguei no porto de Tanganrog onde me apresentou pessoalmente a Tchekov, dei à costa com Brel no porto de Amesterdão, e subi ao cimo de um contentor com Walesa no Porto de Gdánsk. Com o meu avô cheguei mesmo a ir ao espaço por uma equação secreta, viajei à velocidade da luz por telepatia, conheci os primeiros amino-ácidos, desenhei com régua e esquadro uma raíz quadrada de um número muito comprido e percebi porque é que as televisões funcionam, literalmente, a vácuo, na sua estrutura física e mental. A melhor viagem que fiz com ele foi uma das últimas. Até à cave. Ele deu-me uma chave às escondidas e disse-me para não dizer a ninguém que a tinha. Apontou-me para um baú poeirento e disse-me: Ali jaz Acácio Nobre. Acorda-o quando tiveres idade para isso. Mas tenho esta foto dele que convosco partilho. Foi tirada durante um almoço em que me queixava de ter saudades dos meus discos quando estava fora. “Um dia ainda havemos de enviar músicas pelo ar uns para os outros, deve estar para breve”, sossegou-me o meu avô. Acho que foi ele que inventou a internet. Só para mim. Só para continuarmos a viajar mesmo quando estou longe dele e da sua biblioteca.

perto ninguém é normal 1. Se me perguntam pela minha infância, lembro-

me de imediato do meu avô. Se me pedem uma imagem de umas férias idílicas imagino-me em viagem e no verão. Mas eu viajo quase sempre em tourné, como se diz na gíria da minha profissão. Tal como os caixeiros viajantes, os inspetores do trabalho, os veterinários, os engenheiros, os feirantes e, na prática, mais de metade dos profissionais deste planeta (ainda azul) apesar de quase todos imaginarmos (ou reclamarmos de) um emprego das 9 às 5. Quando ainda não contribuía para o maior mistério do mundo que é esse o de fazer dinheiro para viver, viajava para ir viver noutros lugares ou para visitar a família, a que ficou na casa a que sempre regresso, ou a que também se deslocou em busca de melhores horários ou recompensas salariais. Quero escrever sobre as minhas melhores férias com o meu avô. Começo a desenhar de imediato uma bola nivea na praia, uns banhistas na toalha ao lado com tijolos invejáveis a inundarem o ar de um punk distorcido gravado em cassetes pirata, a minha avó vestida até ao pescoço sentada dentro da casota de pano às riscas a descascar maçãs, penso em epás ainda com bola de pastilha às cores, rifas dos escuteiros e sardinhas no pão vendidas pelos bombeiros voluntários para ajudar na compra de uma cadeira de rodas elétrica de mais um menino com dificuldades na rua e reparo com surpresa: Nunca passei destas férias com o meu avô. Nem me lembro de o ver partir para férias assim. Nunca me sentei ao colo do meu avô. Nem me lembro de o ver sentado sem ser frente à sua secretária ou à mesa do jantar. Mas também, e agora que penso com vagar nisso, nunca saí à rua com o meu avô, sempre o visitei no seu apartamento, num quarto andar com quatro quartos, se contarmos com a sala e a cozinha como sempre contei.

{

De perto ninguém é normal faz parte da letra de uma canção que (também) canta Caetano Veloso. Não me lembro do título. 1

{65}

* Texto publicado originalmente no Jornal das Letras, 29.07.16. PATRÍCIA PORTELA é autora de performances e obras literárias.

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{ HQs

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Os quadrinhos da página de abertura da seção HQs foram retirados de A vida é boa,

se você não fraquejar: uma novela em quadrinhos, de Seth, lançada em abril pela editora Mino.

{67}


{HQs}

abcdafghrstulo

Super-heróis protagonizam romances ´ ~ de ficção no mercado literário

´

No universo dos quadrinhos é comum vermos adaptações literárias para as HQs, especialmente os grandes clássicos da literatura. Personagens do universo quadrinístico se tornarem protagonistas de obras literárias é algo curioso, em especial super-heróis. Como imaginar aquela cena de ação do Batmóvel voando em alta velocidade pela cidade de Gotham em texto corrido? Deve ser uma leitura um tanto enfadonha, mas não é bem assim que acontece.

{} ISA OLIVEIRA

S

A grande questão não é o impacto da adaptação visual para o textual, e sim as ramificações que as histórias já conhecidas dos super-heróis ganham durante o romance. Eles protagonizam situações que os quadrinhos ainda não souberam apresentar ao público que são os dramas pessoais dos heróis. Há a exceção de algumas edições em graphic novel, como Asilo Arkham, em que o próprio herói Batman enfrenta um drama psicológico nas mãos do seu rival Coringa. Os romances de ficção se tornaram verdadeiros thrillers psicológicos dos heróis dos quadrinhos, explorando o lado humano por detrás das armaduras e neste momento notamos quando a máscara cai e vemos um rosto humano carregado de entraves afetivos. O fator primordial dos romances é a capacidade literária de dar outras roupagens aos heróis, humanizando a figura do super-herói.

e da DC Comics, são exemplos desse processo de migração de nicho editorial dos super-heróis. Os romances de ficção mostram essa faceta mais humana, o eixo central delas é o personagem Bruce Wayne. O romance Wayne de Gotham, de Tracy Hickman, publicado pela editora Leya – Casa da Palavra, com o selo Fantasy; Batman: criaturas da noite, de Marie Lu, publicado pela editora Arqueiro. Há outras prosas de ficção como a Coleção Marvel, publicada pela editora Novo Século. Essas editoras são as únicas no momento que editam adaptações das HQs para a literatura no Brasil. O mais curioso desses casos, que essas editoras são todas especialistas em edições literárias e não em edições de quadrinhos. Os romances são verdadeiros atrativos para o leitor literário que não está acostumado a ler quadrinhos. As narrativas são adaptadas de forma a respeitar as características originais dos super-heróis e o seu universo, porém elas exploram bastante o lado humano deles que não é comumente abordada na narrativa gráfica. Para os apaixonados por literatura de ficção eis a oportunidade de ler super-heróis em uma versão diferente.

O mercado editorial dos livros tem investido em outro formato de protagonismo dos super-heróis fora do universo dos quadrinhos, mantendo as características originárias, mas aproveitando-se de lacunas existentes sobre a vida por detrás dos heróis. Mostram que os personagens não são heróis 24 horas do dia, em algum momento eles amam, sofrem, passam por perdas familiares, estabelecem laços de amizade e afetivos, criam inimigos próprios. Para citar alguns exemplos, dois romances do personagem Batman foram publicados por duas editoras brasileiras sob o licenciamento das editoras americanas

JKLMNOEIR {voz da literatura} n. 4 | agosto | 2018

{68}


{HQs} editoras de quadrinhos

j

As histórias em quadrinhos vivem um bom momento editorial. Na primeira lista, temos algumas editoras brasileiras que editam só quadrinhos, sejam nacionais ou internacionais, sejam adaptações ou traduções. E na segunda lista, aparecem editoras nacionais que possuem, dentro do seu catálogo, selo voltado para edições de HQs.

especializadas • • • • • • • • • • • • • •

r l

Pipoca e Nanquim Mino Panini Comics/Panini Books Mauricio de Sousa Produções - MSP Figura 85 Mythos HQM Devir Veneta Zarabatana Books JBC (mangás) Draco Jambô Vertigo

Editoras com selo de quadrinhos no catálogo • • • • • • • • • • • •

q

Dark Side Books Marsupial Balão Editorial Lote 42 Sesi-SP editora Nemo (Grupo Autêntica) Quadrinhos na Companhia (Grupo Cia das Letras) Intrínseca Grupo Editorial Pensamento Globo Abril Record

{ {69}

ISA OLIVEIRA é doutoranda em Estudos de Linguagens - CEFET/MG e Pesquisadora em Histórias em Quadrinhos, Literatura e Processos Editoriais. Revisora, Resenhista e Poeta. {voz da literatura} n. 4 | agosto | 2018


___{vitrine HQs} {} Demolidor: a queda de Murdock

{} Guardiões do Louvre Jiro Taniguchi

Miller / Mazzucchelli

1ª ed.

1ª ed.

Pipoca & Nanquim; Louvre Éditions 2018

Panini 2017 216 p.

{} Natureza Humana

{} Couro de Gato: uma história do samba

Gonçalo Junior e Nestablo Ramos

Carlos Patati e João Sanches

2ª ed. HQM

1ª ed.

2012

Veneta

88 p.

2017 144 p.

{} Segundo tempo

{} Crime & castigo

Alex Mir e Marcelo Costa

(Fiódor Dostoiévski)

1ª ed.

David Zane Mairowitz; Alain Korkos

DRACO

Trad. Alexandre Boide L&PM

2016

2016

56 p.

128 p.

{} Marx: uma biografia em quadrinhos

{} O diário de Anne Frank

Corinne Maier; Anne Simon

Trad. Mariana Echalar

Anne Frank; Mirella Spinelli

1ª ed.

Autêntica

Boitempo

2017

2018

96 p.

64 p.

{voz da literatura} n. 4 | agosto | 2018

{70}


{ REDES SOCIAIS TERMOS E CONDIÇÕES Que dardos os dados trazem hoje? Tudo é camuflado, sabe? A leiloar no ar Nós e nossa privacidade Tipo o leopardo e o bote O papa-léguas e o coiote No meio de tanto Pad A vida pede, enquanto a gente Notebooks e faces Truques e jeitos Putz, o tempo passou A gente curte e deixa Surte efeito Surge sempre a dor

E os notebooks e faces (vieram depois) Truques e jeitos (truques e jeitos) Putz, o tempo passou (e fica sempre a mesma sensação) A gente curte e deixa (depois esquece) Surte efeito (é quente) Surge sempre a dor

Além do código binário Algoritmos, pop-ups Tipo presidiários Agora os deuses moram junto dos backups Numa nuvem poluída Carbonos, informações Pense na tormenta ser

Diria Lombardi isso é incrível! O digital desossa o indivisível E se a locomotiva aqui pegamos pro futuro Usar o ódio como combustível O que é o pódio? O que é o próximo nível? Se já estamos em frangalhos, em destroços E agora a inteligência artificial piora tudo E doma sentimentos nossos, tão nossos Em cliques, cliques, cliques Lights, lights, web host Em todo lugar, em lugar nenhum, tipo Ghost O conforto é uma arapuca de Wall Street Onde alguns estão presos em postes Outros em posts de

Parida por essas monções de Notebooks e faces Truques e jeitos Putz, o tempo passou A gente curte e deixa Surte efeito Surge sempre a dor Snaps e chats E gadgets bons Tudo é meio Jetsons Snaps e chats E gadgets bons Tudo é meio Jetsons Snaps e chats E gadgets bons Tudo é meio Jetsons Enfim, na boa Mas o primeiro touchscreen foi de uma pessoa

Notebooks e faces (como condenados) Truques e jeitos (como coitados) Putz, o tempo passou (e no final, o que resta de nós) A gente curte e deixa (extasiados) Surte efeito (anestesiados) Surge sempre a dor Emicida e Erasmo Carlos. Do álbum Amor é isso, de Erasmo Carlos, 2018. {71}


{redes sociais}

Resenha de Bolso A plataforma Resenha de Bolso, criada e dirigida por Mateus Baldi, surgiu no final de 2016 com o objetivo de oferecer pequenas resenhas para grandes leitores. Através de textos dinâmicos, com foco na literatura contemporânea, as críticas curtas levam uma indicação segura para quem está buscando o próximo livro. A Resenha de Bolso está presente em facebook.com/resenhadebolso, instagram.com/resenhadebolso e no site www.resenhadebolso.com.br . Mateus Baldi nasceu em 1994. Fundador da plataforma literária Resenha de Bolso, foi editor de cultura da revista Poleiro e colaborador de literatura do site da Piauí. Colaborou com jornais como Estadão e O Globo, e escreve roteiros para cinema.

Livrada! Inicialmente um blog e posteriormente um canal no YouTube com desmembramento para outras redes sociais, o Livrada!, criado em 2010 pelo jornalista e crítico literário Yuri Al’Hanati – conhecido como Yuri RA ou O Anticristo – tem como característica principal uma abordagem mais leve e informal sobre um vasto leque de obras de literatura clássica e contemporânea adulta, com foco particular em literatura russa do século 19. Tomando duas frentes de batalha, o Livrada! procura, de um lado, combater a cultura anti-intelectualista brasileira e, do outro, o elitismo esnobe com que a alta literatura procura se proteger de uma possível popularização superficializante. Com duas publicações no canal por semana e mais posts quase diários no Instagram, o jornalista e seu parceiro de empreendimento, o fotojornalista Murilo Ribas, procuram peneirar o grande volume de publicações literárias do país para direcionar o leitor mais exigente e apresentar novas obras ao público geral. Além de resenhas, o conteúdo do canal também compreende vídeos de discussão, entrevistas com escritores e coberturas de festivais e feiras literárias, como a FLIP, de Paraty, o Fórum das Letras de Ouro Preto e o Salipi, de Teresina. Mesclando jornalismo cultural, crítica literária, direcionamento de consumo e reflexão sobre a arte, sempre com uma pitada cáustica de sarcasmo e irreverência, o Livrada! conquistou um público cativo e influenciou outros canais de literatura no Youtube. “Sempre selvagem”, como diz o bordão do canal.

{voz da literatura} n. 4 | agosto | 2018

{72}


{leituras}

{} o ano da leitura mágica Nina Sankovitch Ed. Leya | 2011

“As pessoas compartilham os livros que amam. (...) Somos aquilo que gostamos de ler, quando admitimos que adoramos um livro, admitimos que este livro representa verdadeiramente algum aspecto de nosso ser, seja o fato de sermos loucos por romance, ou por aventuras, ou secretamente fascinados por crimes.” Adoro livros. Sim, de papel, celulose, capas coloridas, tamanhos diversos, narrativas de toda sorte e forma. Ler sempre foi uma alegria. Grande. Todas as minhas melhores lembranças, de uma forma ou de outra, envolvem um livro. Faz parte da minha História e do meu habitat da mesma maneira que um perfume, uma cor, ou um sentimento. Fases compulsivas, em que um autor foi destrinchado em todas as suas obras, em curtíssimo período de tempo. E fases de livrinho degustado como chocolate raro, pedacinho por pedacinho, sem pressa alguma. Mas nunca me organizei. Aqui e acolá, fazia comentários sobre o que estava lendo, indicava títulos para os amigos, uma espécie de palpiteira literária free

-lance.

Até que a proposta de N.Sankovitch me apresentou ao ano mágico. E no réveillon de 2011, dei as mãos para a autora e me desafiei a ler, pelo menos, uma obra literária por semana. Em apenas 3 dias, concluí a delicada, honesta e lírica leitura desse que é, sem dúvidas, uma celebração ao prazer de ler. Um resgate de epifanias cotidianas, em um mundo que nos cobra pressa, eficiência e consumo. Ler para escapar da dor, da ausência, do nãoentendimento, como fez Nina. Ler para conhecer, para viajar, para rir, para sobreviver, para arejar, para registrar. Ler porque a capacidade de contar histórias é o que nos torna um pouco mais humanos. E é bom saber disso quando se tem um ano novinho pela frente.

{ {73}

RENATA SANCHES é mestre em Relações Internacionais.

{voz da literatura} n. 4 | agosto | 2018


___{vitrine} {} As melhores novelas brasileiras de ficção científica

{} A infância dos dias

Finisia Fideli, Afonso Schmidt, Andre Carneiro (Org.)

1ª ed.

1ª ed.

2017

Editora Devir

192 p.

Laís Barros Martins Laranja Original

2011

224 p.

{} A invenção dos discos voadores {ensaio}

{} A formação do leitor literário em casa e na escola

Rodolpho Gauthier Cardoso dos Santos

Caio Riter

Alameda Editorial

1ª ed.

2016

Biruta

269 p.

2009 104 p.

{} Pequeno guia de incríveis artistas mulheres que sempre foram consideradas menos importantes que seus maridos

{} Crônicas da territorialidade Kaiowá e Guarani nas adjacências da morte

Beatriz Calil

1ª ed.

1ª ed.

Elefante

Urutau

2017

2018

368 p.

Bruno Martins Morais

58 p.

{} Assim se benze em Minas Gerais: um estudo sobre a cura através da palavra

{} Quando o verão {poesia}

Edmilson de Almeida Pereira; Núbia Pereira de Magalhães Gomes

1ª ed.

1ª ed.

Rafael Dabu (fotografia) Kotter; Patuá 2018

MAZZA

187 p.

2018 408 p.

{voz da literatura} n. 4 | agosto | 2018

Rodrigo Tadeu Gonçalves

{74}


{ agenda { agenda { agenda { agenda { agenda {75}


{agenda}

{8} agosto 1

RJ, Rio de Janeiro

2

SP, Santos

3-12

SP, São Paulo

LANÇAMENTO | “Bigornas” (poesia), de Yasmin Nigri (Editora 34) Livraria da Travessa, Rua Voluntários da Pátria, 97, Botafogo LANÇAMENTO | “A face serena”, contos. Autora: Maria Valéria Rezende (Editora Penalux). A partir das 17h, no Tradição Bar & Petiscaria: Rua Goiás, 128, esquina com R. Tocantins – Santos, SP Bienal Internacional do Livro de São Paulo http://www.bienaldolivrosp.com.br

5-26

DF, Brasília

LIVRE! Festival Internacional de Literatura e Direitos Humanos Todos os domingos. Taguatinga, São Sebastião, Sobradinho e Plano Piloto

6-10

PR, Curitiba

LITERCULTURA Festival Literário de Curitiba Literatura: lugar de escuta, Capela Santa Maria, a partir de 19h30

06-11

AC, UFAC

XIII Jornadas Andinas de Literatura Latinoamericana Éticas e poéticas dos mundos andinos-amazônicos: trânsitos de saberes, linguagens e culturas. Campus da Universidade Federal do Acre

8-10

PE, UFPE

I Congresso Nacional do Núcleo de Estudos de Literatura e Intersemiose - NELI Universidade Federal de Pernambuco

8-10

MA, Bacabal

II Congresso Internacional de Letras (UFMA) Universidade Federal do Maranhão, campus III (Bacabal)

9

PR, Curitiba

PAIOL LITERÁRIO com Leticia Wierzchowski

10

SP, São Paulo

LANÇAMENTO | “A alma dança em seu berço”, do poeta dinamarquês Niels Hav (Editora Penalux) A partir das 18h, na livraria Tapera Taperá: Av. São Luis, 187, 2º andar, loja 29 – Galeria Metrópole | República – São Paulo, SP. LANÇAMENTO | “Ciranda Lado B”, poesia. Autora: Fernanda Pacheco (Editora Penalux) A partir das 19h, no Estúdio Lâmina: Av. São João, 108 – Centro – São Paulo, SP. LANÇAMENTO | "Trilhas para andar descalça", de Ticiana Werneck (Editora Moinhos) Casa de livros - Rua Capitão Otávio Machado, 259 - Chácara Santo Antônio - São Paulo/ SP, às 19h. LANÇAMENTO | "O último minuto custa a chegar, mas é maravilhoso", de Victor Toscano (Editora Moinhos) Patuscada Livraria & Café - Rua Luís Murat, 40 - Pinheiros, São Paulo/ SP, às 16h

11

SP, São Paulo

14-17

DF, Ceilândia

Jornada Literária Distrito Federal Teatro Newton Rossi - Sesc Ceilândia

15-17

RJ, UFRJ

Clariceana 2018 Auditório E3 da Faculdade de Letras da UFRJ

{voz da literatura} n. 4 | agosto | 2018

{76}


{agenda}

15-17

RJ, Rio de Janeiro

Colóquio “Imprensa, Moda e Mulher: trânsitos, circulação e trocas” de 9h às 18h | Realização: Fundação Casa de Rui Barbosa; Programa de Pósgraduação em Artes Visuais/EBA/UFRJ | Local: Fundação Casa de Rui Barbosa R. São Clemente, 134 - Botafogo

16

CE, Fortaleza

LANÇAMENTO | "Avenidas da alma", de Júlio Araújo (Editora Moinhos) ADUFC - Av. da Universidade, 2346 - Benfica, às 19h.

17

DF, Brasília

18

SP, São Paulo

18-26

DF, Brasília

Bienal Brasil do Livro e da Leitura Centro de Convenções Ulysses Guimarães

22-24

SP, USP

5as Jornadas Internacionais de Histórias em Quadrinhos - ECA/USP http://www2.eca.usp.br/jornadas/

27-29

AM, Manaus

I Simpósio Nacional Jogos de Poder em Literatura De 27 a 29 de agostoTodos os dias das 13h às 20h Manaus, AM Universidade Federal do Amazonas

28-30

SP, Campinas

XII Congresso Internacional de Estudos Japoneses no Brasil (CIEJB) / XXV Encontro Nacional de Professores Universitários de Língua, Literatura e Cultura Japonesa (ENPULLCJ)

LANÇAMENTO | “Nascida da Independência”, romance. Autora: Lília Figueiredo. (Editora Penalux) Intervalo da tarde, no Stand da Audibel, durante o 17º Congresso da FO LANÇAMENTO | “Matemática para centauro” (poesia), do poeta e tradutor José Eduardo Degrazia e “Remorsos para um cordeiro branco” (poesia cubana), Reina María Rodrigues (o tradutor representará a autora no evento). (Editora Penalux) A partir das 19h, no Bar Canto Madalena: R. Medeiros de Albuquerque, 471 – Vila Madalena.

{9} setembro 4

PR, Curitiba

PAIOL LITERÁRIO com Rubens Figueiredo

5-7

PI, Teresina

IV COLÓQUIO INTERNACIONAL LITERATURA E GÊNERO: DESCOLONIZAÇÃO, GÊNERO, CORPOREIDADE E RESISTÊNCIA – I COLÓQUIO NACIONAL DE IMPRENSA FEMININA HOMENAGEM – ESCRITORAS LATINOAMERICANAS

10-12

DF, Brasília

VII Encontro Internacional de Estudos Literários: discursos e tensões nos caminhos da modernidade brasileira Universidade de Brasília (UnB), Campus Darcy Ribeiro

17-22

PR, Curitiba

XVI Feira do Livro UFPR 37ª Semana Literária SESC

26-28

PR, Curitiba

X Seminário de Pesquisa e II Encontro Internacional do Mestrado em Teoria Literária da UNIANDRADE VII Jornada Intermídia (UNIANDRADE)

26-28

SP, Assis

XIV SEL-SEMINÁRIO DE ESTUDOS LITERÁRIOS “LITERATURA PARA QUÊ”? Unesp, Campus Assis {77}

{voz da literatura} n. 4 | agosto | 2018


{voz da literatura} www.vozdaliteratura.com vozdaliteratura@gmail.com facebook | instagram

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