a v a u p a r a u G pela
a l e n a J
SOBRE AS JANELAS
Para ser um lar, não basta ter paredes que formam cômodos. Não basta um teto, não basta um chão. Um lar transcende o tangível, necessita de uma base de significados. Acima de tudo, um lar é gente. As pessoas, seus sonhos, seus medos e seus objetivos são o foco deste projeto. “Guarapuava pela Janela” mostra que, por mais universal que seja, a palavra “lar” possui um leque semântico que invade as casas, pelas portas e janelas. Ao passar por uma residência e observar uma janela fechada, tudo sobre a vida de quem está do outro lado é um mistério. O que descobriríamos se abríssemos essas janelas? Quem estaria por trás delas? Como essas pessoas vivem? São essas e outras perguntas que pretendemos responder nas páginas desta serie fotográfica. As famílias que participaram literalmente abriram as janelas e as portas das suas casas para contar suas histórias de vida. Com isso, elas mostram que por mais que sejam inúmeros os materiais capazes de construir casas, todos os lares são feitos de uma combinação universal: carne, osso e sentimentos. Além disso, deixam claro que o conceito de “família” transborda a linguagem. Cada família é única, é peculiar não só na sua formação, mas sobretudo no que diz respeito ao significado que assume na vida de cada um de nós. Taís Nichelle
VÓ É MÃE COM AÇÚCAR
Na casa da Maria de Matos, há a intersecção de duas gerações. Ela tem 68 anos, e divide a casa com seu neto Robson, de oito anos de idade. “Minha filha trabalha em Candói e não tem tempo para ficar com ele durante a semana. Então, ele fica comigo, me faz companhia”, conta Maria.
A avó de Robson sobrevive com o dinheiro da aposentadoria do falecido marido, que trabalhava como guarda da Prefeitura Municipal. Como gosta de ter um dinheiro extra para comprar algo melhor para o neto comer, ela vende papelão. “O pessoal da rua sempre me traz caixas de papelão. Eu guardo e vendo para um homem, que vem de caminhão buscar. Dá para ganhar um dinheirinho e comprar os doces que ele (Robson) gosta”.
O menino diz que gosta muito de morar com a avó. “Ela é querida comigo e me deixa brincar na rua com as outras crianças quando eu volto da escola”, conta o menino, que sonha em ser astronauta quando crescer. Quem entra na casa da Dona Maria, sai com uma certeza: vó é mãe com açúcar. Na verdade, justiça seja feita: Dona Maria é um merengue completo.
S O M B R A E M A T E Q U E N T E
Nem só de universitários vive o bairro Santa Cruz. Seu Pedro, 73 anos, mora no local há 35 anos. Viúvo e pai de dois filhos, seu Pedro mora sozinho. Seu Pedro conta que agora chegou a hora de descansar, portanto, o que mais gosta de fazer é ficar em casa, cuidando da horta, tomando chimarrão, fazendo suas orações e, assim, curtindo sua “melhor idade”.
Pode se dizer que o bairro é composto por duas gerações bem distintas, os jovens universitários e os fundadores do bairro, maioria idosos e aposentados. A renda do seu Pedro vem do salário mínimo da aposentadoria, porém como o próprio falou “é muito pouco e com essa alta de preços em toda parte a gente tem que se virar”. Para conseguir uma renda extra, acabou alugando parte de sua casa e construiu algumas quitinetes nos fundos. Além do dinheirinho a mais no fim do mês seu Pedro acabou afastando a solidão e ganhado novos amigos.
JANELA PARA O MUNDO
No momento, Vitor Falcão é morador de Guarapuava. Sem um bairro, uma rua ou um número fixo. Ele vive dentro da sua Kombi, cuja pintura expressa sua filosofia hippie. “Eu não preciso de muito. Durmo dentro da Kombi, tomo banho em postos de gasolina, almoço onde der”, conta ele, que nasceu no Rio de Janeiro e cresceu em Matinhos, litoral do Paraná.
Há mais de 20 anos ele anda pelo Brasil com a sua Kombi, dormindo onde der vontade, parando onde lhe convém. No início, a mãe não concordou com o propósito de vida do filho. “Ela não aceitava, mas não teve escolha. Eu nasci para ser livre, não gosto de me sentir enraizado em algum lugar”. Mesmo assim, aos 35 anos, ele não pensa em sair tão cedo de Guarapuava. “Gosto daqui, me sinto acolhido. Por enquanto, não penso em ir embora”.
Para sobreviver, Vitor vende artesanato. Colares, pulseiras, filtros dos sonhos. Tudo feito por ele. “Eu já tive um emprego normal, com regras e horários. Odiei. Não acho certo o ser humano se sacrificar tanto. Muita gente passa a vida trabalhando para os outros e se esquece de viver a vida”, declara, dentro da sua fiel escudeira de quatro rodas, estacionada na Rua XV de Novembro, onde sempre é encontrado vendendo seus adornos.
Mテウ DUAS VEZES
As gêmeas idênticas Bárbara e Nicoly de Oliveira Orcioly moram com a avó Dalila de Oliveira Rocha desde o terceiro dia de vida, fato que Dalila se orgulha em contar. A mãe morou três anos com elas, mas casou-se e as meninas ficaram com a avó, por desejo de Dalila, ou Vó Tita.
O pai morreu quando as meninas tinham 1 ano, logo após conhecê-las e registrá-las. Hoje, apesar de a mãe morar na mesma cidade, as meninas preferem viver com a avó. “Gostamos muito de morar com a Vó Tita, e não queremos sair de perto dela nunca” disse Bárbara. A renda é a soma dda pensão do falecido marido de Tita, junto com a pensão das meninas. “Não é muito, mas a gente economiza como pode. Desde cedo eu ensinei as meninas a tomar banho rápido, sempre apagar a luz quando saem do quarto, esse tipo de coisa que parece pouco, mas no final do mês dá uma diferença...” conta Dalila.
Irm達o de quatro patas
Engana-se quem pensa que o pequeno Nicolas é o primeiro filho do casal Michelle e Luciano Rossi. Mesmo que, de fato, os fatores biológicos provem o contrário. Alguns anos antes de o menino nascer, eles adotaram Luque, um cão da raça Golden Retriever, que é considerado muito mais que um animal de estimação. “Ele é da família. Considero meu filho”, declara Michelle.
Ao contrário de muitas mulheres, ela jamais pensou em se desfazer de Luque porque engravidou. “Nunca isso passou pela minha cabeça. Brinco que o Luque é meu primeiro filho. Nunca restringi o contato dele com o Nicolas”, reforça.
Seu marido, Luciano, compartilha da mesma opinião. “Eles convivem como irmãos mesmo, é uma amizade muito forte”, conta ele. Prole dupla, trabalho dobrado: o dia a dia do casal, ambos professores, é trabalhoso. “Ah, não é fácil controlar os dois nas brincadeiras… Fazem muita bagunça”, revela Michelle, entre risos.
Irmandade + Amizade = Irmanzade
A estudante de Enfermagem Karla Bianca Tomen, 17, há um ano está em Guarapuava. Inicialmente, veio morar com uma colega de curso, com quem não teve um bom relacionamento. Assim, seu irmão mais velho Nathan Tomen, 22, teve a função de vir fazer companhia à irmã. Ele já fazia faculdade de Engenharia de Produção na cidade e vinha toda noite. Arrumou um emprego em Guarapuava e, apesar das brigas rotineiras entre irmãos, convivem muito bem.
O sonho da formatura faz com que as brigas sejam irrelevantes. “Morando juntos, a saudade da mãe e do pai acaba sendo amenizada”, conta Karla Bianca. As despesas do apartamento de cinco cômodos em que vivem são divididas, parte é paga pelos pais e a outra parte Nathan paga com o auxílio-desemprego, já que ganhou a conta há alguns meses, e não consegue outro emprego. “Não paro de procurar, mas não está fácil. E já não aguento mais ficar em casa sem fazer nada” conta o estudante.
Eles vão para a casa dos pais pelo menos duas vezes ao mês. “Ir pra casa da mãe é ótimo, a gente traz muita comida que ela faz, aí economizamos no mercado e no tempo de preparação” conta Nathan, ao que Karla responde, entre risos “Como se você cozinhasse muito!”.
Na barra da saia
Dizem por aí que os pais criam os filhos para o mundo. Porém, na casa da Analzira Menon Galvão, não é bem assim. Aos 57 anos, Neuzi, a filha mais velha de Analzira, não saiu de casa. “Ela nunca teve um namorado, nunca falou em casar nem nada do tipo”, conta ela, que está mais para “mãe canguru”, que “mãe coruja”. “Gosto de manter a Neuzi pertinho, na barra da minha saia”.
A razão pelo apego ela não sabe explicar. “Tenho outra filha, que é casada e me deu 3 netos. Mesmo sendo a mais nova, nunca senti que ela precisava muito da minha proteção. Já com a Neuzi foi diferente, não sei explicar, mas somos muito dependentes uma da outra”. Depois que o marido faleceu, há 19 anos atrás, a primogênita de Analzira decidiu ficar de vez: “Casar e ter filhos nunca estiveram nos meus planos. Quando meu pai faleceu, eu resolvi que nunca mais sairia de casa. Assim, eu faço companhia para a minha mãe e ela me faz esquecer da solidão”, revela Neuzi.
Dona Analzira é merendeira aposentada. Sua filha Neuzi, trabalha como diarista. Na casa, que é da família desde 1969, elas dividem não só o espaço e as contas, mas também as histórias e principalmente, os pitacos sobre a novela. “Eu vi na novela esses dias que uma mulher casou depois dos 50. Falei pra Neuzi que ainda dá tempo dela encontrar um marido”, aconselha Analzira, ignorando o tom de desaprovação da filha que brava logo em seguida: “Crendios pai, mãe!”.
Da janela lateral, um recomeรงo
Para Joana Ferreira, o que faz da sua casa um lar é a esperança de recomeçar. Nas enchentes que afetaram Guarapuava em 2014, ela perdeu muito do que tinha: casa, móveis, roupas, comidas, documentos… Uma vida de conquistas, roubada em poucas horas.
Felizmente, não perdeu quase nada, porque tudo que tem são seus cinco filhos, cinco luzes na escuridão. Mesmo com as dificuldades (Joana é desempregada e sobrevive apenas com o dinheiro do Bolsa Família), as crianças continuam sorrindo. Um sorrisão daqueles que só crianças cheias de vida são capazes de mostrar. A filha mais velha, Pricila, tem 13 anos de idade e ajuda a mãe a cuidar dos irmãos: Pablo, 11 anos; Nicolas, 8 anos; Yasmin, 6 anos e o caçulinha Igor, de 1 ano. “Era pra ter mais um bebê aqui comigo, eu estava grávida de gêmeos. A irmãzinha dele morreu no parto. Se chamaria Ashley”, conta Joana.
Aos poucos, ela e os filhos vão reconstruindo a rotina que a água levou na enchente. “Estou vivendo de doações. Alguns doam roupas, outros alimentos... Ainda falta bastante coisa, como camas para as crianças, mas tenho fé que as coisas vão melhorar”, declara ela, não como quem tem uma certeza, mas como quem repete um desejo em voz alta, na esperança de que se torne realidade.
Do trabalho para casa
Quando alguém quer parecer trabalhador, logo diz: “Trabalho tanto, que é do trabalho para casa!”. O que pode parecer eufemismo para muitos, é uma realidade literal para Maria Aparecida Alves, que mora no mesmo lugar em que trabalha. Aos 51 anos de idade, parece que ela aprendeu a manipular o relógio a seu favor. “Eu acordo todos os dias, às seis horas da manhã. Preparo os quitutes para vender, a comida para as marmitas, as encomendas de salgadinho, enfim... Intercalo a cozinha com o balcão. Às vezes nem eu acredito que consigo fazer tanta coisa em um dia só”, relata.
Há dez anos, Maria decidiu que não seria mais empregada de ninguém. Trabalhava em uma rede de supermercados quando decidiu se arriscar nos negócios. Juntou um dinheirinho e começou a vender salgadinhos, pães e outros alimentos para os vizinhos. Com o tempo, parte da casa foi transformada em uma mercearia.
Com os lucros gerados pelo estabelecimento, ela sustenta a filha Kelly, de 16 anos de idade. “Meu marido não me ajuda. Ele trabalha com obras, mas raramente vem para casa. Fica meses sem aparecer e sempre foi assim. Me viro sozinha. Minha filha me ajuda no que pode, mas ela não tem muito tempo porque estuda muito. Ela está fazendo magistério e um curso à noite. Quero muito que ela estude e seja independente, assim como eu sou”.
Além de cozinhar e administrar a mercearia, ela ainda vende cosméticos para as mulheres do bairro. “Moro aqui há 27 anos. Conheço todo mundo e gosto muito de morar aqui, apesar de todo mundo achar que é um bairro ruim. Na minha opinião, é a gente que faz o lugar ser bom, não o contrário”, diz Maria, que encontra tempo para tudo, menos para reclamar.
Universidade Estadual do Centro-Oeste Comunicação Social - Jornalismo Projeto fotográfico produzido pelas acadêmicas Any Mary Ossak Cordeiro, Taís Nichelle e Walquiria de Lima na disciplina de Comunicação Contemporânea. Orientação: Éverly Pegoraro Guarapuava - PR Agosto/2015