Po Anna Mollel, Tanzania

Page 1

Anna Mollel

POR QUE ANNA É NOMEADA?

NO M E A DA • Páginas 50–69

Graças a Anna e à sua organização, o Huduma ya Walemavu, milhares de crianças com deficiência têm a oportunidade de viver uma vida digna. Elas recebem assistência médica, cirurgia, fisioterapia, terapia, cadeiras de rodas e outros dispositivos de suporte, a oportunidade de ir à escola, segurança e amor. Anna sempre consegue ações em prol das crianças deficientes, ao falar sobre seus direitos para políticos e organizações, mas especialmente às pessoas nas aldeias rurais remotas. Desde 1990, 12.500 crianças, principalmente da etnia massai, têm uma vida melhor graças a Anna e ao Huduma ya Walemavu. Crianças que teriam sido negligenciadas, abandonadas e poderiam ter morrido se não fosse pela luta de Anna em prol de seus direitos.

TE X TO: ANDRE AS LÖNN FOTO: TOR A MÅRTENS

Anna Mollel é nomeada ao Prêmio das Crianças do Mundo 2012 por sua longa luta de mais de 20 anos em prol das crianças deficientes nas áreas rurais pobres do nordeste da Tanzânia.

50

Aos seis anos, Anna Mollel percebeu, pela primeira vez, como era difícil a vida das crianças deficientes nas aldeias massai, no norte da Tanzânia. A pior experiência veio muitos anos depois, quando ela já tinha um longo histórico na luta pelos direitos das crianças deficientes. Anna chegou a uma aldeia que acreditava estar totalmente desocupada, mas encontrou, abandonada no chão de uma casa, uma menina de oito anos que não conseguia se mexer e que teria morrido se Anna não tivesse ido até lá. Na página 55 você pode ler o que aconteceu com a menina Naimyakwa.

A

nna, que pertence à etnia Massai, tinha seis anos e havia voltado da escola para casa. Ela ajudou a mãe a buscar lenha e água e, em seguida, foi à casa de seus amigos, na aldeia vizinha. Eles brincavam no quintal quando Anna ouviu um barulho vindo do interior de uma das casas. – Quando perguntei à

minha amiga o que era, ela olhou para o chão antes de responder que era sua irmã. A amiga de Anna contou que sua irmã não podia sair, pois sua mãe não queria mostrar que tinha uma filha que não era “exatamente como deveria ser”. – Entrei na casa para verificar. E realmente havia uma menininha ali. Ela estava

deitada no chão, sozinha, e sorriu quando me viu, lembra Anna. Anna conhece Nauri

Anna ajudou a menina a sentar-se e elas começaram a brincar. A menina, cujo nome era Nauri, tinha a mesma idade de Anna. Ela estava feliz por finalmente ter companhia. No dia seguinte, Anna voltou quando a mãe de Nauri havia saído para buscar água, para que ela não percebesse nada. – Todavia, nos divertimos tanto que esqueci completamente do tempo. De repente, a mãe de Nauri entrou correndo e me bateu forte com uma vara. Ela gritou que eu nunca mais poderia por os pés em sua casa. Anna teve que fugir, mas estava determinada a voltar no dia seguinte. – As outras crianças


tinham medo, tanto de apanhar quanto de brincar com Nauri, que elas consideravam esquisita. Mas expliquei que todo mundo precisa de amigos. E, como Nauri era uma de nós, pensei que era óbvio que deveríamos ir até lá e fazer companhia a ela também. Anna conseguiu convencer os outros. Eles se revezavam vigiando enquanto os outros brincavam e, quando o vigia gritava que a mãe estava chegando, todos corriam para longe dali o mais rápido que podiam. Após alguns dias, Anna ajudou Nauri a ficar de pé, e depois elas treinaram alguns passos. Com o tempo, Nauri conseguia sair para o quintal e brincar. Injusto

Depois de algumas semanas, a mãe de Nauri veio falar com Anna. – Pensei que ela iria me criticar, mas ela afirmou que sabia o que eu estava fazendo,

e queria que eu continuasse! Ela disse que Nauri nunca se sentira tão bem e que era um milagre que ela conseguisse andar e correr. Como a mãe de Nauri estava tão feliz, Anna aproveitou para perguntar se Nauri poderia começar a frequentar a escola, mas ela não concordou. – Então eu ia à casa de Nauri todos os dias depois da escola e lhe ensinava o que eu tinha aprendido naquele dia. Embora ainda fosse criança, eu era sua professora, a única professora que ela já teve. O sentimento de injustiça permanecia em mim. Eu podia ir para a escola, mas ela não, só porque ela era deficiente. Ela tinha os mesmos direitos que eu, mas eu não conseguia ajudá-la mais do que estava fazendo. Eu sempre carregava uma sensação de que deveria ter feito mais. Tornou-se enfermeira

Anna formou-se em en-

Massai vulneráveis

fermagem e começou a trabalhar. Um dia, uma mulher alemã da igreja católica em Arusha veio ao hospital. Seu nome era Elifrieda e ela queria conversar com Anna. – Ela sabia que eu era massai, e pediu que eu contasse como era a situação das crianças deficientes em nossas aldeias. Expliquei que, no passado, era comum matar ou abandonar essas crianças logo após o nascimento. Acreditava-se que as crianças com deficiência eram castigo de Deus por algo que os pais haviam feito. Mas expliquei que o principal motivo era o fato de que nós, massai, somos pastores e que, para sobreviver migramos longas distâncias a pé através das planícies, em busca de pasto

fresco para os animais. Uma criança deficiente, que não consegue se mover, era considerada como um grande obstáculo para todo o grupo. – Expliquei que as crianças com deficiência continuavam tendo seus direitos violados. Elas ficavam escondidas, não recebiam os cuidados de que precisavam, não iam à escola, nem brincavam. Huduma ya Walemavu

Elifrieda perguntou se Anna desejava participar da criação de um projeto chamado Huduma ya Walemavu (Cuidando do Portador de Deficiência) para crianças deficientes nas aldeias massai. – Eu disse sim imediatamente. Era isso que eu estava esperando! Minha esperança

Orgulho massai

– Eu sou massai e me orgulho disso. Quero que meu povo tenha uma vida digna. É por isso que luto pelos direitos de nossas crianças deficientes, diz Anna.

O grupo étnico massai é formado por pastores. Existem cerca de um milhão de massai, metade na Tanzânia e metade no Quênia. Desde o início do século XX, as terras que os massai usam como pasto para o gado diminuíram em área. As autoridades transferiram grande parte das terras massai a proprietários privados e empresas para agricultura, áreas privadas de caça e parques nacionais, onde turistas podem ver animais selvagens. Os massai foram deslocados para as áreas menos férteis. Em 2009, policiais armados incendiaram oito aldeias massai no norte da Tanzânia, para que o terreno pudesse ser usado por uma empresa privada de caça. Turistas pagantes participariam de grandes caçadas selvagens ali. As pessoas foram espancadas e expulsas de suas casas. Mais de 3.000 homens, mulheres e crianças ficaram desabrigados. Os massai que permitiram que seu gado continuasse a pastar na área fértil foram presos. – Os massai já são os mais pobres. A menos que o gado tenha pasto para comer, ele morre. E quem mais sofre são sempre as crianças, explica Anna.

51


De volta à aldeia

– Nosso objetivo é sempre que as crianças retornem à sua aldeia de origem e levem o mesmo tipo de vida que o resto da família. Que essas crianças possam ir à escola junto com as outras crianças e fazer parte da sociedade, afirma Anna, aqui em visita à aldeia de Lomniaki.

era agora poder fazer mais pelas crianças deficientes do que pude fazer por Nauri quando éramos crianças. Em 1990, Anna começou a percorrer as aldeias e falar sobre os direitos das crianças deficientes. Ao mesmo tempo, ela aproveitava para cuidar de crianças que precisavam de ajuda. Uma das primeiras crianças que Anna conheceu foi a órfã Paulina, de 15 anos, que tinha sequelas da pólio e não conseguia andar. Ela tinha que rastejar pelo chão para se mover. Anna pensou que seria fácil convencer os líderes da aldeia de que 52

Paulina poderia ter uma vida muito melhor se ela fizesse a cirurgia certa, que eles achariam bom. Mas ela estava errada. Não desistiu

– Eles não sabiam que crianças deficientes podem passar por cirurgias e melhorar, e não acreditaram em mim. Como viviam longe de hospitais, não sabiam ler e nem tinham condições de ter um rádio, eles nunca haviam escutado isso. E, mesmo que fosse verdade, eles pensavam que seria um desperdício de dinheiro. Aquelas crianças nunca seriam capazes de ajudar com o gado ou frequentar a escola. Mas meu maior problema era eu ser uma mulher. Em nossa sociedade, as mulheres simplesmente não têm voz; portanto, eles não me levavam a sério.

Bem-vindo!

Anna não desistiu. Assim como havia desafiado a mãe de Nauri, ela agora desafiou os líderes da aldeia para ajudar Paulina. A viagem até a aldeia levava quatro horas, mas, em duas semanas, Anna foi até lá cinco vezes! Em cada reunião, ela explicava os direitos da criança e que haviam conseguido a cirurgia gratuitamente para Paulina. No final das contas, ela acabou conseguindo convencer os homens. – Fiquei tão feliz! Mas os problemas não tinham acabado. Eu havia reservado um

quarto para Paulina em um hotel simples na cidade, onde ela ficaria hospedada antes e depois da cirurgia. Mas quando entrei carregando Paulina nos braços, o pessoal da recepção olhou como se ela fosse um animal. Eles se recusaram a aceitá-la. A casa de Anna

Anna era uma mãe divorciada de seis filhos que moravam com ela, apertados em uma casinha. Mas levou Paulina para sua casa, de qualquer maneira. Não havia outra solução.


– Meus filhos tiveram que dormir juntos para que Paulina pudesse ficar sozinha em uma cama. As crianças ficaram um pouco insatisfeitas no início, mas entenderam quando eu expliquei. Dei banho em Paulina e ela ganhou roupas novas e limpas. Como ela não poderia sentar-se à mesa para comer, sentamos todos no chão e fizemos a ceia, para que Paulina não se sentisse sozinha. Quando a cirurgia terminou, Paulina voltou para a casa de Anna. Lentamente, ela começou a fazer exercícios

Brincar é importante!

– Quando pequena, eu sempre tive o amor de meus pais e podia brincar muito com meus amigos. Para uma criança, isso é incrivelmente importante. Ficar sozinha e não poder participar é a pior experiência que uma criança pode ter. É por isso que as brincadeiras e a proximidade são tão importantes para nós no centro, diz Anna.

e treinar para se sentar e ficar em pé. Após algumas semanas, ela começou a treinar caminhada com muletas que Anna comprou. – Ela ficou muito feliz, e eu também! Quando Paulina foi

150 milhões de crianças com deficiência De acordo com a Convenção dos Direitos da Criança da ONU, as crianças com deficiência têm os mesmos direitos que todas as outras crianças. Elas têm direito a apoio extra e ajuda para ter uma vida digna. Apesar disso, as crianças deficientes estão entre as crianças mais vulneráveis, não apenas entre os massai e na Tanzânia, mas em todo o mundo. Há 150 milhões de crianças com deficiência no mundo; acredita-se que dois milhões delas vivam na Tanzânia.

53


Anna brincando com as crianças na escola de sua aldeia.

para casa, três meses depois, e conseguiu entrar na aldeia andando sozinha, as pessoas começaram a chorar de alegria! Embora Anna estivesse feliz porque Paulina podia andar, ela também sabia que Paulina precisava receber uma formação para poder cuidar de si mesma no futuro. – Paulina queria ser costureira, por isso a ajudei a fazer um curso nessa área. Ela era muito boa! O centro em Monduli

O rumor sobre Paulina se espalhou nas aldeias. As pessoas passaram a ter coragem de falar sobre seus filhos deficientes, e queriam ajuda. Anna viajava longos dias para chegar às crianças que necessitavam de sua ajuda em aldeias remotas. A cada viagem, ela acolhia mais e mais 54

crianças. – Mas os hotéis continuavam se recusando a aceitar as crianças, então elas tinham que se hospedar comigo. Embora tivéssemos colchões no chão, e várias crianças compartilhassem a mesma cama, no final ficou insustentável. Escrevemos a amigos e organizações na Tanzânia e na Alemanha dizendo que precisávamos de dinheiro para construir uma casa onde pudéssemos cuidar das crianças. Primeiro, conseguiram o dinheiro que possibilitou alugar alguns quartos com capacidade para doze crianças. Foi suficiente até mesmo para contratar mais uma enfermeira e, pela primeira vez, Anna podia ter um pequeno salário. Antes, ela e sua família viviam de sua pequena horta. – Mais crianças chegavam o tempo todo, e nós pedimos

mais dinheiro. A organização Caritas da Alemanha nos ajudou e, em 1998, nosso próprio centro em Monduli ficou pronto. Fisioterapeutas e enfermeiros foram contratados, além de professores, porque Anna sabia que as crianças a quem eles ajudavam raramente haviam ido à escola. Havia espaço para trinta crianças, mas às vezes 200 crianças ficavam lá ao mesmo tempo.

Não apenas massai

– No início, trabalhávamos apenas com crianças massai, mas não é mais assim. Nós cuidamos de todas as crianças que precisam de nossa ajuda, não importa a qual grupo étnico ou religião ela pertença. Aqui há muçulmanos e cristãos, incluindo crianças que fugiram de guerras nos países vizinhos. A luta pelos direitos da criança não tem limites! – diz Anna.

– Apesar de não ter espaço, acolhíamos todas as crianças. As famílias eram tão pobres que não podiam pagar para que as crianças ficassem conosco, mas nunca mandávamos ninguém embora.


– Nunca me esquecerei da ocasião em que encontrei a pequena Naimyakwa sozinha na aldeia deserta. Ela tinha oito anos e estava deitada no chão de uma das casas. Ela mal respirava. Havia um cheiro forte de urina, pois, devido à sua deficiência, ela não conseguia ir a lugar algum. Eu não achei que ela sobreviveria, conta Anna, que ainda fica com os olhos marejados de lágrimas ao pensar no incidente, ocorrido há sete anos.

A nova escola

– Eu queria ter certeza de que o trabalho pelas crianças continuaria depois de mim. Por isso, passei a responsabilidade para uma mulher maravilhosa chamada Kapilima, e me aposentei em 2007, conta Anna. Quando se aposentou, Anna continuou a lutar pelas crianças vulneráveis. Ela construiu uma escola em sua aldeia natal para crianças que, de outra maneira, nunca poderiam ir à escola. Você pode visitar a escola de Anna na página 68. 

V

iajamos com nossa clínica móvel para a região onde vivia uma pequena órfã com paralisia cerebral. Muitas crianças deficientes nos visitaram durante o dia, mas Naimyakwa não apareceu com seus irmãos adultos e familiares, como costumava fazer. Quando perguntei se alguém sabia onde ela estava,

vila. O silêncio era completo. Não vimos uma única pessoa. A aldeia estava completamente deserta. Sentime mais calma e pensei que a família de alguma forma tinha levado Naimyakwa junto.

uma mulher disse que a família tinha ido embora com seus rebanhos em busca de pasto fresco, pois era a estação seca. Tiwque tinha a obrigação de ir à sua aldeia verificar. Apenas por razões de segurança. Estacionamos o jipe sob uma árvore e caminhamos o último trecho em direção à 55

TE X TO: ANDRE AS LÖNN FOTO: TOR A MÅRTENS

Naimyakwa

Já se passaram 20 anos desde que Anna ajudou Paulina e, desde então, 12.500 crianças com deficiência têm uma vida melhor graças ao Huduma ya Walemavu. Atualmente, 30 pessoas trabalham na organização.

Anna salvou


O guarda-roupa de Naimyakwa – Eu adoro roupas! Quando crescer, quero ser costureira e fazer meus próprios vestidos. Guardo minhas roupas no meu armário, aqui no dormitório.

– Esta é a minha bela saia. Eu a ganhei do sacerdote. – Uma menina do Canadá, que nos visitou, deu-me este lindo vestido...

Tínhamos começado a caminhar de volta para o carro quando ouvi um som estranho, como um gemido.

... e estes bonitos sapatos prateados! Ela realmente é minha amiga!

Um leão?

– A blusa de lã...

... e as calças de treino, eu ganhei de Anna e do Huduma ya Walemavu.

Lesão por paralisia cerebral A paralisia cerebral (PC) ocorre durante a gravidez, no parto ou antes que a criança complete dois anos. As causas comuns incluem hipóxia e hemorragia no cérebro. Algumas crianças têm apenas uma leve deficiência motora, enquanto outras ficam paralisadas. Muitas pessoas com PC, além da deficiência motora, apresentam outras deficiências, como

56

epilepsia, problemas na fala e na visão. Não se pode curar alguém com PC, mas, com auxílio de fisioterapia, terapia ocupacional e exercícios é possível tornar a vida o melhor possível para o portador de paralisia cerebral. – A paralisia cerebral é muito comum aqui, pois o dano geralmente ocorre quando há um problema no nascimento. Muitas pesso-

No começo, pensei que fosse um leão. Eu e dois colegas de trabalho reunimos coragem e entramos na aldeia novamente. Ao passar por uma das casas, ouvimos o som estranho de novo. Eu estava com medo, mas enfiei cuidadosamente a cabeça na casa e perguntei se havia alguém ali. A resposta veio na forma de um pequeno gemido. Inicialmente, não vi nada.

as vivem tão longe de hospitais e clínicas que não têm tempo ou condições financeiras de ir até lá quando chega a hora de dar à luz, explica Anna Mollel. Quando uma criança nasce com PC, seus pais, vizinhos e os líderes da aldeia podem fazer um curso de duas semanas no centro do Huduma ya Walemavu para aprender a cuidar da criança da melhor maneira possível.

Porém, nunca esquecerei o que vi quando meus olhos se acostumaram à escuridão. No piso de terra, Naimyakwa estava deitada perfeitamente imóvel, e ela mal respirava. Cheirava a fezes, porque, devido à sua deficiência, ela era completamente prostrada. Ao seu lado, uma cabaça dentro da qual houvera leite. Estava vazia, mas eu podia sentir o cheiro de leite velho. Depois, havia outra cabaça com um restinho de água. Naimyakwa estava muito fraca e quase não percebeu que estávamos ali. Ninguém podia dizer por quanto tempo

Eles ensinam exercícios simples e fisioterapia que são bons para o desenvolvimento da criança. O Huduma ya Walemavu tem esses cursos porque é desejável que toda a aldeia tenha um conhecimento melhor e, portanto, maior facilidade de sentir uma responsabilidade partilhada pela criança.


ela tinha permanecido lá, mas estimamos pelo menos uma semana, pois ela já estava muito desidratada e magra. A família realmente a havia deixado ali? Eu estava acostumada a famílias que deixavam seus filhos deficientes no centro e depois desapareciam. Mas abandonar a filha desta forma? Era como antigamente. Naimyakwa resgatada

Ajoelhei-me ao lado Naimyakwa, inclinei-me perto de seu ouvido e perguntei se ela estava sozinha. Ela assentiu com a cabeça, em silêncio. Depois, perguntei se ela queria que eu a levasse para o centro, para que pudéssemos cuidar dela. Ela assentiu novamente. Ela queria. Eu chorei. Todos os meus colegas do Huduma ya Walemavu choraram. Enquanto carregava Naimyakwa em meus braços, pensei que, embora os outros não tivessem dado o

amor de que ela precisava, eu o faria. Eu amaria esta criança. Mais tarde, percebemos que Naimyakwa nunca tinha entendido que a família havia partido em uma longa viagem. Ela estava deitada ali esperando que eles voltassem, como sempre. Dia após dia. Noite após noite. Mas eles nunca vieram. Somente dois meses mais tarde, quando as chuvas começaram, eles voltaram. Se não tivéssemos ido à aldeia, Naimyakwa teria morrido de fome e desidratação. O momento em que encontramos Naimyakwa certamente está entre as piores coisas que eu já testemunhei. Ao mesmo tempo, senti nascer uma força enorme para conseguir lutar pelo direito dela e de outras crianças vulneráveis a uma vida digna. Naquele exato momento, decidi continuar lutando por seus direitos enquanto eu viver”. 

Trinta crianças moram no centro. Algumas estão à espera de cirurgia, outras fizeram a cirurgia e recebem reabilitação (fisioterapia e exercícios). Algumas crianças têm férias de seus colégios internos e ficam apenas alguns dias no centro. E há crianças como Naimyakwa, que têm o centro como seu lar.

6h00 Bom dia! Naimyakwa e seus amigos são despertados pelas mães da casa, que moram nos dormitórios das crianças. Quando Naimyakwa chegou aqui, ela mal podia usar seus braços e mãos. Era impossível para ela escovar os dentes, vestir-se e comer sozinha. Depois de muito treinamento, sua vida agora é completamente diferente. Aqui, ela escova os dentes com as amigas Modesta, de 13 anos, e Mdasat, de 11 anos.

O dia de Naimyakwa no Centro de Anna 7h00 Desjejum Para o desjejum, temos o mingau de milho, chamado Uji.

8h00 Reunião matutina

Anna não desaponta ninguém – Naimyakwa chegou aqui há sete anos, e ela ainda está aqui. Nunca mandaremos uma criança de volta para casa a menos que saibamos que ela será bem cuidada. Caso contrário, tentamos encontrar novas famílias para a criança. Mas é difícil cuidar de uma criança gravemente incapacitada. Até mesmo algo simples, como se locomover com a cadeira de rodas de Naimyakwa, se torna quase impossível no chão de areia da aldeia. Acompanhar as migrações da família com o gado é ainda mais difícil, diz Anna.

Toda manhã, todos se encontram na sala de reunião para a oração e os exercícios matinais.

8h30 Ronda matutina Os funcionários conversam com cada criança e decidem se elas precisam ir para o fisioterapeuta, enfermeiro, ou se podem ir diretamente para a escola do centro. Naimyakwa deve mostrar que consegue vestir a blusa sozinha. Quando ela o faz, eles analisam que tipo de fisioterapia ela precisa melhorar ainda mais.

57


9h00 1. Escola

2. Fisioterapia

Naimyakwa é assistida pela professora Flora Moses Kiwelu. Quando as crianças terminam seus tratamentos, elas recebem ajuda para começar a estudar na escola regular de sua aldeia, ou em escolas especiais, como colégios internos para crianças com deficiência visual ou com deficiência mental.

Naimyakwa faz meia hora de fisioterapia diariamente para conseguir cuidar melhor de si mesma no futuro. Ela recebe a ajuda das fisioterapeutas do centro, Eva Paul Mush e Anna Njuu (de tranças).

4. Ortopedia

3. Enfermaria

A ortopedista Mireille Eusebius Kapilima experimenta novas talas para as pernas de Modesta Cryspin, de 13 anos. No centro, eles fabricam suas próprias talas e próteses.

Loserian Simanga, de 11 anos, tem seus ferimentos cirúrgicos lavados e recebe novos curativos da enfermeira Veronica Kirway.

5. Economia Doméstica Na cozinha, Neem Mevukori, de 11 anos, e alguns de seus amigos cortam a hortaliça sukumawiki. Hoje, é sua vez de ajudar na preparação da refeição. – Eu acho divertido aprender a cozinhar. Além disso, poderei ajudar mais minha família quando for para casa.

10h00 Intervalo e brincadeira! Os intervalos e brincadeiras são importantes. As crianças se divertem e treinam seus corpos ao fazer movimentos diferentes. Naimyakwa tenta pegar a bola e passar adiante.

58

6. Oficina de dispositivos de suporte Na oficina de dispositivos de suporte, Kadogo Songura recebe ajuda de Loshilari para ajustar suas muletas. – Eu tive uma doença infecciosa em uma perna quando era pequeno. Quando vim para cá, a perna estava tão comprometida que precisou ser amputada. Depois, recebi uma prótese e comecei a treinar para caminhar. Eu tive muita dificuldade, mas agora as coisas estão indo muito bem, conta Kadogo.


12h30 Almoço – Meu prato favorito é arroz e feijão. Comemos isso duas vezes por semana, diz Naimyakwa.

13h30 Escola e lavar a louça

16h00 Recreação e lavar roupa

Todos os dias, algumas crianças ajudam a lavar os pratos antes de voltar para a sala de aula. Hoje é a vez de Tuplwa Longorini, de 12 anos, Rebeca Peter, de 16 anos, e Kadogo Songura, de 19 anos.

A maioria joga futebol, brinca no balanço, no carrossel ou apenas conversa. Aqueles que precisam lavar suas roupas o fazem. Lavar a roupa também é parte do tratamento no centro. As crianças praticam movimentos saudáveis do corpo ao mesmo tempo em que aprendem algo que é importante saber fazer.

20h00 Noticiário

18.30 Jantar

Toda noite as crianças assistem ao noticiário. Anna e os outros funcionários do Huduma ya Walemavu acham importante que as crianças saibam o que está acontecendo na Tanzânia e no mundo. Mas elas também podem, naturalmente, assistir a filmes e programas divertidos.

21.00 Boa noite!

TE X TO: ANDRE AS LÖNN FOTO: TOR A MÅRTENS

– Durma bem, diz a mãe da casa Halima Mkopi acariciando a bochecha de Naimyakwa. Halima dorme com as crianças para poder ouvir se alguém precisar de ajuda ou de ser confortado durante a noite. Há três dormitórios, e uma mãe da casa mora em cada um deles.

Comportem-se, pais!

– Eu não gosto de pais que não assumem a responsabilidade quando têm filhos com deficiência. Infelizmente, aqui é muito comum os pais abandonarem seus filhos deficientes. A mãe e o pai devem cuidar juntos dessas crianças, que são particularmente vulneráveis, diz a mãe da casa e cozinheira Martha Lota. 59


Clínica sobre quatro rodas alcança 51 aldeias

O Huduma ya Walemavu trabalha em uma área grande e escassamente povoada no nordeste da Tanzânia, que consiste de savanas, semidesertos e montanhas. Aqui, a grande maioria das pessoas vive em pequenas aldeias, para as quais não há nenhuma estrada. – Como as famílias geralmente são muito pobres e não têm condições de chegar até nosso centro, nós visitamos as crianças deficientes nas aldeias, explica Anna. O Huduma ya Walemavu alcança 51 aldeias em seu trabalho. Eles têm uma “clínica móvel” em seu Programa Comunitário, onde enfermeiros e fisioterapeutas viajam em um jipe com tração nas quatro rodas para chegar a todas as crianças que, de outra forma, nunca obteriam ajuda. Leva mais de dois dias para chegar à aldeia mais distante. Toda aldeia é visitada uma vez a cada três meses.

Endeshi não tem linguagem Sentados sob uma árvore estão as crianças deficientes de uma pequena vila e seus pais, conversando com funcionários do Huduma ya Walemavu. Uma garotinha surda de 8 anos de idade chamada Endeshi está lá. Ela não tem linguagem, mas sua mãe Nailolie Lebahati conta:

60

– Os dois irmãos mais velhos de Endeshi, Esther e Loito também são surdos, e sempre tivemos apoio do Huduma ya Walemavu para que eles possam frequentar uma escola para crianças surdas. Eu sei que frequentar a escola é direito de todas as crianças, mas não tenho condições de pagar por ela; por isso, sou extremamente grata! – Agora desejo que Endeshi também possa ir à escola aprender uma linguagem. Ela tem direito de conversar com outras pessoas e explicar o que pensa, o que sente e suas opiniões. Não ser isolada como agora. Eu vim aqui hoje para perguntar se o Huduma ya Walemavu também pode ajudar Endeshi. E eles podem! Estou tão feliz!

Sonhos para o futuro

A irmã mais velha de Endeshi, Esther, de 18 anos, e seu irmão Loito, de 15 anos, falam a linguagem dos sinais e contam quais seus sonhos para o futuro: – Quero ser enfermeira, sinaliza Esther. – Eu ainda não decidi, sinaliza Loito. A mãe, Nailolie, fica um pouco triste quando vê as crianças falarem sobre o futuro. – E pensar que não temos a menor ideia de quais são os sonhos de Endeshi. Vamos esperar que ela consiga dizer, depois que tiver ido à escola por algum tempo. Quero saber quais são seus sonhos! – diz Nailolie e dá um abraço em Endeshi.


“Nós nunca teríamos podido ir à escola se não fosse por Anna. Tanto porque somos deficientes quanto porque somos de uma família pobre. Se uma família pobre tem dois filhos e um deles é deficiente, se eles tiverem condições de enviar apenas uma das crianças para a escola, é sempre o filho “saudável” que pode estudar. A grande maioria das pes-

Seriam obrigados a mendigar – Se Anna não nos tivesse ajudado, nossas vidas seriam completamente terríveis. Seríamos obrigados a mendigar nas ruas para ter o que comer, diz Loeku.

soas acha que não faz sentido deixar a criança com deficiência frequentar a escola porque não acreditam que a criança consiga fazer nada. Muitos creem que, se uma criança não enxerga ou tem qualquer outra deficiência, o problema também está na sua cabeça. Por isso, pensam que a criança nunca vai ser capaz de trabalhar, ganhar dinheiro e ajudar sua família. Desta forma, eles acham que é um desperdício de dinheiro enviar uma criança assim para a escola. Foi exatamente isso que aconteceu conosco. As outras crianças da aldeia foram enviadas para a escola, mas nós não.

Então veio Anna e nos deu a chance de ter uma vida digna. Recebemos bom tratamento médico e a oportunidade de estudar em uma escola para crianças cegas. O Huduma ya Walemavu já nos apoia financeiramente há sete anos. Meus avós não teriam conseguido fazê-lo sozinhos. No centro de Anna, nos ensinaram que aquilo a que estávamos expostos, ou seja, não poder ir à escola, é uma discriminação e uma viola-

ção dos nossos direitos. Todas as crianças têm o direito de ir à escola. Todas as crianças são iguais! Agora eu falo sobre isso com todos que encontro. Espero que isso possa ajudar para que, gradualmente, a vida melhore para os deficientes. Que sejamos tratados com respeito e tenhamos nossos direitos respeitados como todos os outros. No futuro, quero ser presidente e lutar pelos direitos de todas as crianças na Tanzânia!”

Anna apoia sonhos Os irmãos mais novos, Tetee, de 16 anos e Phillipo, de 15 anos, sonham se tornar professores quando forem adultos. – Sem Anna, um sonho assim nunca poderia ser realizado. Entretanto, como o Huduma ya Walemavu me apoia, acredito piamente que é possível, afirma Tetee.

61

TE X TO: ANDRE AS LÖNN FOTO: TOR A MÅRTENS

A clínica móvel para em uma aldeia onde vivem três irmãos cegos Loeku, Tetee e Phillipo. Eles são órfãos e recebem apoio do Huduma ya Walemavu para que possam frequentar um colégio interno. Normalmente, os irmãos moram na escola, mas agora é época de férias e Anna quer ver se eles estão gostando de passar algum tempo na casa de seus avós paternos. O irmão mais velho, Loeku, diz:

Anna deu chance

Loeku quer ser presidente


Lomniaki

foi mantido escondido

Lomniaki nasceu com as pernas curvadas para o lado errado. Ele tinha dificuldade de sentar-se e não aprendeu a andar. Seu pai não queria que as outras pessoas da aldeia o vissem, por isso trancava Lomniaki em casa. Ele não brincava com outras crianças nem frequentava a escola. – Eu não contava. Era como se eu não fosse uma pessoa real, mas depois Anna Mollel veio e me salvou. Ela me deu uma nova vida, e eu a amo por isso, diz Lomniaki Olmodooni Mdorosi, de 15 anos.

Q

uando era pequeno, Lomniaki ficava deitado sozinho na casa escura o dia todo. Ele ouvia as outras crianças da aldeia rindo e brincando lá fora. Seu maior desejo era estar junto com elas e participar. Às vezes, ele fechava os olhos e quase acreditava que estava com elas de verdade. Ele ficava igualmente triste toda vez que percebia que ainda não conseguia usar as pernas, e estava deitado com uma parede de barro baixa entre si e as outras crianças.

62

– Eu realmente não sei por que meu pai não queria que os outros me vissem, mas acho que ele tinha vergonha da existência de uma criança deficiente em sua família. Por isso, ele me proibiu de sair. Minha mãe não pensava assim, mas era meu pai quem mandava. Mamãe não podia opinar sobre o assunto. Porém, às vezes, quando o pai estava fora com o gado, ela costumava me carregar sorrateiramente e me colocar sob uma árvore da aldeia durante algum tempo. Dali, eu via como as outras crianças brincavam entre si. Mas não havia ninguém que brincasse ou falasse comigo, conta Lomniaki.

dar para a escola, uma vez que eu nunca poderia cuidar do gado ou conseguir um emprego e ganhar dinheiro para ajudar a família quando ele ficasse velho. Além disso, ele

Odiava o pai

Mais tarde, quando todas as crianças da aldeia começaram a estudar, o pai de Lomniaki não permitiu que ele também fosse. – Ele disse que eu era malformado e que ele não entendia qual o sentido de me manLomniaki como aluno no colégio interno na cidade...


Direitos das meninas – Lembre-se que não importou que a minha mãe achasse que eu deveria ter permissão para brincar com as outras crianças e ir à escola. Era meu pai quem mandava. Fim da história. As opiniões de minha mãe não tinham importância. Anna Mollel me ensinou que isso é completamente errado. Meninos e meninas são iguais e, portanto, devem ter o mesmo direito de expressar suas opiniões e serem ouvidos. Temos os mesmos direitos. No futuro, quando for advogado, eu realmente lutarei pelos direitos das meninas.

disse que teria de me levar e buscar na escola porque eu não conseguia andar. Na época eu odiava meu pai. Eu o odiava porque ele destruiu a minha vida.

No final, sua mãe, Paulina, não aguentou mais. Ela se sentia tão mal em relação à maneira como Lomniaki era tratado, que decidiu deixar o marido. Um dia ela levantou Lomniaki em suas costas e eles deixaram a aldeia para sempre. Paulina atravessou as savanas até a aldeia de seus pais, onde foram calorosamente recebidos pelo avô e tios de Lomniaki, e suas respectivas famílias. Melhor estar morto

No início, Lomniaki pensou que tudo parecia muito melhor. Ele não ficava preso em casa e conheceu outras pessoas que eram gentis e conversavam com ele. Sua mãe ou um de seus tios o carregavam pela manhã e o deitavam sobre um couro de vaca debaixo da grande árvore de acácia, para que ele não se sentisse sozinho. Todavia, mesmo que as coisas estivessem bastante boas, ele pouco a pouco começou a sentir-se solitário ali, debaixo da árvore. E diferente. ... e como pastor massai na savana.

– Como eu não podia participar e correr e brincar, as outras crianças rapidamente se cansavam de ficar comigo. Elas corriam adiante. E quando elas iam para a escola, eu continuava deitado sob a árvore. Era impossível eu ir, pois a escola ficava muito longe. Os adultos realmente não tinham tempo para mim. Os homens saíam com o gado e as mulheres trabalhavam duro em casa, na aldeia. Lomniaki também precisava de ajuda com absolutamente tudo: vestir-se, comer, mover-se e ir ao banheiro. – Era constrangedor não conseguir cuidar de mim mesmo, e fui ficando cada vez mais deprimido. Muitas vezes eu pensava sobre o motivo de meu pai ter vergonha de mim, e porque logo eu tinha que ter nascido assim. Lentamente, percebi como seria minha vida. Eu nunca conseguiria brincar e realmente estar com as outras pessoas da aldeia. E nunca iria para a escola. Nunca conseguiria um

Árvore da vida

Anna Mollel faz uma visita à casa de Lomniaki. Eles se sentam sob a grande árvore de acácia e conversam. Anna quer saber como ele está, e se precisa de alguma coisa. – Inicialmente, esta era a árvore da decepção. Era aqui que me deixavam sozinho quando as outras crianças estavam brincando ou iam para a escola. Entretanto, hoje em dia eu a vejo como um bom lugar, o lugar onde Anna me salvou e onde minha nova vida, minha verdadeira vida começou! – Lomniaki diz.

emprego ou cuidaria do gado da família. Eu achava aquilo injusto, e sentia que não tinha tanto valor quanto os outros. Seria melhor estar morto.

63


Defesa contra animais selvagens Quando Lomniaki está fora com o gado, ele leva sua vara, sua faca e, às vezes, um porrete para o caso de precisar defender os animais do rebanho contra animais selvagens.

Leões e hienas – Elefantes e girafas muitas vezes passam bem aqui na frente, e hienas vêm todas as noites. Eu amo os animais selvagens que existem aqui, mas para que os predadores famintos não consigam chegar até o gado, fizemos uma barreira de fortes arbustos espinhosos em volta de toda a aldeia. Mais adiante, perto das montanhas e florestas há leões, guepardos (chitas) e leopardos. Uma vez, eu estava com o gado quando vi um leão; eu fiquei apavorado e corri! Quando for mais velho, terei uma lança, como todos os outros guerreiros massai. Aí então talvez eu me torne mais corajoso, diz Lomniaki, rindo. Aqui, seu tio Simon pratica com a lança.

Juntos – Quando venho para casa nas férias, posso cuidar do gado da minha família, como qualquer outro menino da minha idade na aldeia. Geralmente o fazemos juntos. O gado está entre as coisas mais importantes para nós, massai, e poder trabalhar com animais significa muito para mim, diz Lomniaki. Ele pastoreia cabras juntamente com seus amigos Juma (de vermelho) e Musa, ambos de 16 anos.

64

Anna Mollel

– Meu nome, Lomniaki, significa “bênção”, mas eu pensava que alguma coisa devia ter dado errado. O nome provavelmente foi feito para outro menino. Eu não era uma bênção. Eu era uma maldição. Mas havia alguém que tinha ouvido falar de Lomniaki, que achava que ele era tão digno quanto todas as outras pessoas, e que não desistiria até que Lomniaki tivesse uma vida digna. Era Anna Mollel. – Nunca me esqueço da tarde em que Anna chegou à aldeia pela primeira vez. Eu tinha quase nove anos e estava sozinho, dormindo sob a árvore, mas acordei assustado quando ouvi o som de um jipe. Como eu nunca tinha visto um carro, fiquei apavorado quando o vi se aproximando. Eu gritei e chorei. Uma mulher desceu, caminhou até mim e sentou-se. Ela sorriu, afagou-me suavemente a cabeça e tentou me confortar. Ela disse que eu não devia ter medo e que ela tinha vindo para me ajudar. Era Anna. Anna explicou à mãe, Paulina, que Lomniaki pode-

ria submeter-se a uma cirurgia que lhe permitiria andar sozinho. Ela também disse que era perfeitamente possível para Lomniaki começar a estudar como qualquer outra criança. – Minha mãe ficou muito feliz e queria que Anna me levasse com ela imediatamente. Porém, como meus tios não estavam em casa, isso não foi possível. Minha mãe precisava da permissão de seus irmãos, e Anna teve que ir sem mim. Sorte na terceira vez

Anna sabia que quanto mais Lomniaki crescesse, mais difícil seria corrigir suas pernas. Se ele não fizesse uma cirurgia em breve, o dano seria pior, e ele nunca aprenderia a andar. Havia pressa. Por isso, ao invés de esperar três meses, quando realmente seria hora de a clínica móvel visitar a aldeia novamente, ela voltou apenas algumas semanas depois, para conversar com seus tios. Sentaram-se debaixo da árvore de acácia, e Anna explicou sobre a cirurgia e o futuro de Lomniaki para seus tios e seu velho avô. Lomniaki nunca tinha expe-


rimentado nada parecido. – Eu nunca tinha visto uma mulher que ousasse falar daquela maneira com homens antes. Também nunca tinha visto homens ouvirem uma mulher com tanta atenção quanto meus tios fizeram sob a árvore. Anna era realmente diferente. A família de Lomniaki contribuiria com algum dinheiro para cobrir parte dos custos de sua alimentação no centro. Como eles não tinham o dinheiro naquele momento, ficou decidido que Anna voltaria em três semanas para buscar Lomniaki. Enquanto aguardava a volta de Anna, Lomniaki começou se atrever a ter esperança de que sua vida realmente mudaria. Porém, a esperança de uma vida melhor morreu antes do fim das três semanas. Quando Anna voltou pela terceira vez, a mãe, Paulina, estava de coração partido ao explicar que a família não tinha conseguido juntar o dinheiro necessário. Eles não podiam pagar. – Lembro-me de como Anna então me olhou e disse: “Calma Lomniaki. Está tudo bem. É claro que eu vou te

ajudar de qualquer maneira. Nós resolveremos isso de algum modo!” No começo, pensei que ela estava brincando, mas não. Naquela mesma tarde, Anna levou Lomniaki de jipe. A jornada para sua nova vida havia começado. Parte da turma

Lomniaki gostou muito do centro de Anna desde o início. Além do fato de que Anna e as mães da casa fizeram tudo que podiam para que ele se sentisse bem, ele finalmente começou a estudar e aprendeu a ler e escrever. Lá, ele também aprendeu sobre direitos da criança. E, pela primeira vez na vida, conheceu outras crianças deficientes. – Foi tão bom conhecer todas elas! Em casa, eu sempre tinha sido a única criança deficiente. Sempre fui solitário e me senti como um intruso. No centro, fiz muitos novos e bons amigos de uma vez só. Podíamos falar sobre tudo, porque nos entendíamos muito bem. E eu não ficava deitado sozinho, como em casa, pois havia sempre um de meus novos amigos para me levar para todos os lugares em uma cadeira de

rodas, para que eu pudesse participar. Pela primeira vez na vida, eu não me senti diferente, mas sim como parte da turma. Foi uma sensação fantástica! Depois de duas semanas, Lomniaki foi submetido à sua cirurgia no hospital da cidade. Quando voltou para o centro, ele começou a fisioterapia e o treino de caminhada. – Na primeira semana, eu sentia dores nas pernas e caía o tempo todo. Mas foi melhorando cada vez mais, e logo eu podia andar com muletas. Após treinar durante um ano, tive coragem de soltar as muletas na fisioterapia e finalmente consegui andar sozinho. Foi o dia mais feliz da minha vida! Quer ser advogado

Depois de mais um ano, Lomniaki estava tão bem das pernas que pode deixar o centro. Então Anna o ajudou para que ele pudesse frequentar a escola. Primeiro, pensaram na escola de sua aldeia natal, mas perceberam que seria muito longe para ele ir a pé. – Minhas pernas não eram suficientemente fortes para

Lomniaki Olmodooni Mdorosi, 15 AMA: Ler e aprender sobre o mundo. Geografia e História. DETESTA: Não poder estar com os outros. Ficar sozinho não é vida. O MELHOR: Quando Anna me deu a oportunidade de fazer uma cirurgia e frequentar a escola, de ser uma pessoa comum, um ser humano de verdade. O PIOR: Que meus direitos foram violados quando eu era pequeno. Mantinham-me escondido e eu não podia ir à escola. ADMIRA: Anna Mollel, é claro! Ela salvou minha vida. QUER SER: Advogado e lutar por todas as crianças que precisem de mim. SONHO: Que todas as crianças deficientes do mundo todo possam viver uma vida digna e ser felizes.

65


que eu conseguisse caminhar para a escola no semideserto; além disso, eu não teria chance de fugir ou me esconder caso encontrasse animais selvagens. Portanto, Anna me ajudou a começar a estudar num colégio interno na cidade. Agora estou no oitavo ano, e o Huduma ya Walemavu continua pagando tudo para mim. Uniformes, livros, tudo! E sou imensamente grato por isso. Se eles não o tivessem feito, eu nunca

teria tido a chance de ir à escola. Lomniaki adora estar em sua casa na aldeia nas férias e feriados, e hoje em dia consegue facilmente ajudar com o gado, junto com os amigos de sua idade. Entretanto, ele ainda sonha em continuar estudando e se formar como advogado. – Quero ser como Anna e dedicar toda minha vida à luta pelos direitos das crianças vulneráveis, assim como

ela lutou por mim. E pensar que ela fez a longa e difícil viagem através das savanas até minha aldeia três vezes para me salvar. Ela realmente se importava comigo. Eu nunca esquecerei isso. Se Anna desistisse e não tivesse voltado, eu ainda estaria sozinho em casa ou sob a árvore, incapaz de me mover. Em vez disso, ela me proporcionou uma vida que vale a pena ser vivida. 

Técnica em computação A irmã menor de Lomniaki, Naraka, de 12 anos, busca água, faz a ordenha e ajuda a cozinhar todos os dias. Entretanto, ela também vai para a escola. – Agora vou começar o sétimo ano e, no futuro, quero trabalhar com computadores, conta Naraka. As meninas e mulheres da aldeia fazem belas joias.

Nasceu com fluorose esquelética A doença óssea com a qual Lomniaki nasceu é a chamada fluorose esquelética, e é causada pelo consumo excessivo de flúor oriundo da água potável. O flúor se acumula nos ossos e pode causar rigidez, dor, membros torcidos e paralisia. Milhões de pessoas em todo o mundo são atingidas. Níveis naturalmente elevados de flúor na água potável geralmente ocorrem no sopé de altas montanhas vulcânicas, como no Rift Valley, na África Oriental, onde Lomniaki vive. Muitas regiões onde os níveis de flúor são perigosamente elevados também são muito secas, por isso as pessoas acabam sendo obrigadas a beber a água de qualquer modo. Na Tanzânia, mais de 30% da água potável contém nível muito elevado de flúor.

66

Histórias junto à fogueira Lomniaki sentado com seu tio mais velho, Karaine (à esquerda), e alguns outros homens junto ao fogo. Eles estão assando uma cabra. – À noite, cada família se sentar ao redor do fogo, em casa, para cozinhar e conversar. Muitas vezes contamos histórias sobre o gado e animais selvagens que vimos na savana. Eu adoro isso, diz Lomniaki.


TE X TO: ANDRE AS LÖNN FOTO: TOR A MÅRTENS

Lindas cabaças

Quando Lomniaki volta para casa com o gado, ele se senta do lado de fora da casa e bebe leite com sua mãe, Paulina, e sua irmã mais nova, Nashipai, de 6 anos. Eles bebem em cabaças que Paulina decorou com lindas pérolas. – Amo minha mãe por ela ter tido a coragem de deixar meu pai. Isso mostra que ela realmente me ama e se importa comigo. Nunca mais vi meu pai depois que fomos embora.

Anna deu esperança cotidiana! – Depois da cirurgia, posso dançar com as outras pessoas na aldeia. As danças são importantes para nós, massai, por isso estou muito feliz com isso. Eu nunca pensei que algum dia em minha vida eu poderia participar da dança. Nunca! Mas Anna tornou isso possível. Aqui, Lomniaki dança Longwesi, que significa Cotidiano. Na dança, os rapazes desafiam uns aos outros no salto em altura. Quem pular mais alto vence. Aqui, Lomniaki batalha contra seu amigo Babu.

Jacob quer correr!

Não está sozinho

Em uma cama do hospital Arusha Lutheran Medical Centre, Jacob Loishooki Lazer está deitado com as duas pernas engessadas. Ele acaba de passar por uma cirurgia semelhante àquela a que Lomniaki se submeteu, e está feliz.

Jacob ficou no hospital por quatro dias e, durante todo esse tempo, dia ou noite, a mãe da casa, Neema, do Centro de Anna o acompanhou. – É muito importante que as crianças não se sintam sós. Eu conto histórias, leio livros e as conforto, quando necessário, explica Neema Eliphas Mollel. – Quando sair daqui, você deve cuidar de suas pernas. É importante que você se mantenha limpo, para que os ferimentos não infeccionem, está bem? Em seis semanas, você deve vir aqui. Se tudo parecer bem, tiramos o gesso e então você pode começar com a fisioterapia e o treino de caminhada no centro, diz a enfermeira Lilian Michael.

“Doeu no início, mas está melhorando cada vez mais. Estou muito feliz porque em breve eu conseguirei andar, e então poderei ajudar minha família de verdade. Antes de vir para cá, eu tentava ajudar a pastorear nossos rebanhos de vacas e cabras, mas era uma luta para mim, porque eu tinha dores terríveis nos joelhos. Agora sei que, pouco a pouco, conseguirei até mesmo acompanhar nossos animais em longas caminhadas durante a estação seca, quando eles precisam de pasto fresco. E poderei brincar com meus amigos. Idealmente, eu gostaria de retirar o gesso e usar minhas pernas saudáveis para correr agora mesmo!”

67


Aula sobre Direitos da Criança É manhã de segunda-feira e Anna, como sempre, encontra as crianças na pequena escola:

– Bom dia a todos. Como estão vocês? – pergunta Anna. – Bom dia, vovó! Estamos muito bem! – responde a classe animadamente. – Ótimo! É divertido na escola? – Sim, vovó!! – Ótimo! Vocês cuidam uns dos outros? – Com certeza! – Ótimo. Isso é muito importante. Alguém pode me dizer quais são os direitos que vocês, crianças, têm? – pergunta Anna. As mãos das crianças imediatamente começam a acenar. Muitos querem responder. – Ir à escola, diz Theresia, de 12 anos. – Ir para o hospital, caso seja necessário, afirma Baraka, de 9 anos. – Poder brincar e participar... – responde Violet, de 7 anos. – Exatamente, estes são alguns dos seus direitos. E como é para as crianças deficientes? – É a mesma coisa, vovó – responde Violet. – Isso mesmo. Crianças com deficiência têm exatamente os mesmos direitos que as outras. Ir à escola, receber tratamento médico, brincar e ser amadas. Todos nós fomos criados por Deus e devemos ser tratados com respeito. Não se esqueçam! – diz Anna, sorrindo com todo o corpo enquanto observa “suas” crianças.

A escola de Anna para todos E m uma pequena colina de Moivo, a aldeia natal de Anna Mollel, fica a escolinha que ela fundou em 2009, após se aposentar do Huduma ya Walemavu e mudar-se de volta para a aldeia. A escola se chama escola Engilanget, que significa a escola da Luz no dialeto massai. Todas as 25 crianças são de famílias muito pobres. Muitas são órfãs, algumas são deficientes, outras têm HIV. Para Anna, todas as crianças são bem-vindas. Especialmente crianças de quem ninguém mais quer cuidar.

TE X TO: ANDRE AS LÖNN FOTO: TOR A MÅRTENS

“Proibido bater nas minhas crianças!” – Em minha escola é proibido bater nas crianças. Nunca se deve bater em uma criança. Nunca se deve intimidar uma criança. Apenas explicar e amar. Uma criança que é espancada vai espancar os outros. Os castigos físicos são comuns nas escolas da Tanzânia, mas se um professor batesse em alguma das minhas crianças, ele seria demitido imediatamente! – diz Anna.

68

– Eu sabia que muitas crianças deficientes não tinham oportunidade de ir à mesma escola que a maioria das outras crianças frequentava. Ela ficava muito longe e era muito cara. Isso é muito injusto, e decidi abrir uma escola onde crianças deficientes e não deficientes estudam juntas. Uma escola onde as crianças aprendem a compreender que todos são iguais, têm direitos iguais e a mesma necessidade de ser amados, conta Anna.


Arranha-céus – Estamos construindo um arranha-céu, conta Fanuel. – Sim, e quando crescermos, vamos construir coisas reais, como esta casa. Nós nunca vimos um arranha-céu de verdade, apenas em revistas e na TV, diz o amigo Baraka, 9 anos.

Adora futebol – Na minha escola, todos podem participar das brincadeiras. Nós gostamos uns dos outros, diz Fanuel, que adora jogar futebol nos intervalos.

Anna ama todas as crianças! “Fico feliz quando estou na escola. Aqui todos são amigos de todos. Parece que somos irmãos e que cuidamos uns dos outros. Eu sou órfã e moro com a minha avó. Nós nunca teríamos tido condições financeiras de frequentar outra escola. Eu gosto muito de Anna por me permitir estudar aqui. Ela tem um coração enorme e sempre cuida de nós, mais que os outros adultos”. Theresia Edward, 12 anos

Oficina de costura de Anna ajuda crianças – Muitas das crianças na minha escola são de famílias tão pobres que não têm condições de pagar por uniformes escolares, livros, ou a pequena taxa semestral que cobre os salários de meus dois professores. Eu tenho uma pequena oficina de costura onde produzo tecidos chamados koikoi, que vendo. Com o dinheiro, compro uniformes, sapatos, livros, canetas e todas as outras coisas com as quais as crianças mais pobres da classe precisem de ajuda, diz Anna.

Invenção imaginativa Theresia na horta de Anna – Eu cultivo feijões e outros vegetais que as crianças comem no almoço. Assim, sei que até mesmo os estudantes mais pobres recebem pelo menos uma refeição nutritiva por dia, diz Anna.

– Esta roda de fiar se chama Chaka. Eu e meu filho a fizemos com uma velha roda de bicicleta. Não é preciso muito dinheiro ou equipamentos caros para ajudar aos outros, mas é preciso ter imaginação e ser criativo! Se fôssemos sentar e esperar que alguém nos desse um monte de dinheiro antes de começarmos, teríamos que esperar muito, muito tempo. Há muitas crianças que precisam de nossa ajuda. Portanto, resolvemos assim, à nossa própria maneira, conta Anna, rindo.

69


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.