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Cochabamba.

Fernando e Ana Maria gostam-se muito.

NOMEADA

Ana María Ana Maria Marañon de Bohorquez abraça Fernando. Ele nasceu nas ruas, filho de viciados em drogas, e começou a cheirar cola aos dois anos. Ana Maria passou a cuidar de Fernando quando ele tinha quatro anos e, desde então, o menino vive em seu abrigo para crianças de rua El Arca de Resgate de los Niños (A Arca de Resgate das Crianças).

Por que Ana Maria está sendo nomeada? Ana Maria Marañon de Bohorquez é nomeada ao WCPRC 2005, por seu longo trabalho altruísta com crianças de rua em Cochabamba, na Bolívia. Muitas crianças bolivianas são filhas de moradores de rua. A vida das crianças de rua é marcada por violência e drogas. A maioria cheira cola, como uma forma de atenuar a falta de amor recebida pelos pais. Ana Maria, porém, tem muito amor a oferecer. Apesar de sua incapacidade física, ela luta para que essas crianças tenham a oportunidade de uma vida melhor. Ela tem um abrigo para meninos, o El Arca, e um para meninas, o Rosa de Sarón. Lá, eles encontram adultos que lhes dão carinho e segurança, podem voltar à vida escolar e recebem ajuda para se profissionalizarem.

brasil

p e ru

Bolivia

Lago Titicaca

LA PAZ COCHABAMBA

Oceano Pacifico

paraguai

chile argentina

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P

epe, está pronto? Pegue o caldeirão de sopa. Vamos, agora, grita Ana Maria da cozinha. Ana Maria teve pólio, aos dois anos de idade, e desde então, vive em cadeira de rodas. Embora seja incapacitada física, ela vem trabalhando no auxílio às crianças de rua há quase trinta anos. Pepe, um ex-viciado em drogas, é o braço direito de Ana Maria e seu incansável assistente. A sopa de mãe Anita – Pare o carro!, grita Ana Maria. Dois meninos, cada qual com um frasco de cola nas mãos, caminham pela rua. Ana Maria põe a cabeça para fora do carro. – Oi! Tudo bem? Vamos distribuir comida. Venham! Os rostos dos meninos se iluminam e eles começam a correr. Em instantes, o caos está formado. De todas as direções, chega gente com vasilhas e panelas enferrujadas. Todos querem abraçar Ana Maria. – Mamãe Anita, que saudades!


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Ana Maria faz compras no mercado para a sopa das crianças.

Uma moça se pendura no pescoço de Ana Maria. Drogada, ela chora e ri ao mesmo tempo. – Mariela querida, como vai você?, pergunta-lhe Ana Maria. – Todas as crianças me chamam de mamãe Anita, ela explica. Anita significa ‘pequena Ana’ e é uma forma mais carinhosa do que ‘Ana’. – Venho até aqui várias vezes por semana. Distribuir comida é uma ótima forma de estabelecer contato com as crianças. Venho tentar

convencê-las a se mudarem para um dos nossos abrigos. Em La Coronilla, situada numa encosta da metrópole Cochabamba, vive gente da qual a sociedade prefere se esquecer. Muitos deles se destruíram totalmente no vício em cola e bebidas alcoólicas. E sobrevivem através de roubos, esmolas e prostituição. Quase queimado vivo Há quatro anos, Raul Martinez Corani, 14 anos, mora nas ruas.

lhes entregar o que roubaram. Ela conta a história de um menino que foi pego em flagrante quando arrombava um carro. – Os moradores do povoado cortaram as mãos do menino com um machado e penduraram-no em uma árvore. Três gerações de meninos de rua A sopa já chegou ao fim e Ana Maria resolve distribuir as roupas. – Calma, gente! Um de cada vez. Primeiro, para as

Raul vive nas ruas há quatro anos, mas já sente que agora basta.

TEXTO: SOFIA KLEMMING FOTO: KIM NAYLOR

– Fugi de casa, ele conta. Raul aprendeu rapidamente a cheirar cola e a roubar. – A vida nas ruas é horrível. Há muita violência e todo mundo nos trata mal. Há pouco tempo, ocorreu algo com Raul, que o deixou seriamente traumatizado. – Fui pego roubando na feira. Amarraram minhas mãos e meus pés e ameaçaram botar fogo em mim. Já estavam prestes a derramar gasolina em mim e acender o fogo, quando a polícia chegou. – Nunca chorei tanto do medo que senti. Desde então, parei de roubar as pessoas. Atualmente, Raul trabalha como engraxate e ganha 20 bolivianos (US$2,65) por dia. – Mas agora, já me decidi. Na segunda-feira, pretendo voltar para a casa dos meus pais. Ana Maria conta que, na Bolívia, as crianças de rua são tratadas pior do que os animais. A polícia está entre os que mais maltratam: eles batem nelas e forçam-nas a Muitas crianças de rua correm para abraçar Ana Maria.

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Muitos meninos de rua são filhos de crianças de rua e têm seu próprios filhos nas ruas.

crianças pequenas, ela diz. Uma jovem, Marcela, está sentada no meio fio com os dois filhos: Carolina, de um ano, e Eric, de três. Eles usam as mãos para tomar a sopa de uma tigela. Carolina e Eric são a terceira geração

de meninos de rua. A mãe segura um frasco de cola e cheira enquanto come. – Que futuro têm estas crianças? Muitas crianças que nascem nas ruas morrem vítimas de doenças, desnutrição e maus tratos, conta Ana Maria. A Bolívia é o país mais pobre da América do Sul. E a pobreza é a causa do aumento do número de crianças de rua.

– Não há empregos. A miséria desespera as pessoas e os pais acabam por anestesiar a angústia com drogas, negligenciando, assim, os próprios filhos, diz Ana Maria. As crianças, por sua vez, agem da mesma forma quando têm seus próprios filhos. Não quer ajuda O chão está coberto de lixo e há um forte cheiro de urina no ar. Cães vira-latas correm por todos os lados. Em La Coronilla, adultos e crianças moram em barracos feitos de sacos plásticos, sem água corrente ou ele-

tricidade. Alguns, não têm nem cobertores. – Dormimos com nossos cachorros, conta José Miguel Guzman, 12 anos. Os animais ajudam as crianças a se manterem quentes. José, que exala um forte cheiro de cola, abraça seu cão. – Fugi de casa porque meu padrasto me batia. José, que mora há dois anos nas ruas, é um dos meninos a quem Ana Maria tenta convencer a ir para o abrigo El Arca, mas o menino se recusa. – Não tenho vontade, ele explica. Ana Maria suspira.

José abraça seu cão. Ele tem o cheiro da cola que aspira. Ele mora nas ruas há dois anos e não quer ajuda para mudar sua situação.

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Meninos brincando no El Arca, um abrigo para meninos de rua, que Ana Maria fundou há dez anos.

Alguns meninos do El Arca.

Muitos meninos de rua não querem receber ajuda, preferem a liberdade nas ruas e a dependência da cola. – Somente aqueles que realmente estão motivados a mudar de comportamento, podem ir para nossos abrigos. Senão, tornam-se más influências para os outros, diz Ana Maria. Amor e educação – Mamãe Anita! A caminho do seu primeiro emprego, um rapaz aproveita para dar um abraço em Ana Maria. Octavio morou a metade de sua vida no abrigo El Arca e, atualmente, trabalha em um abrigo para crianças autistas. Octavio é professor formado, mas quer estudar medicina. – Nosso objetivo é dar às crianças uma profissão para que se sustentem no futuro, diz Jimena, filha de Ana Maria, e diretora do abrigo El Arca. Ana Maria fundou El Arca há dez anos, com seu marido, Santi. Hoje, há quarenta meninos morando no abrigo, onde recebem amor e educação para, assim, abandonarem de vez a vida nas ruas.

Mães jovens – Mamãe Anita! Um grupo de meninas corre na direção de Ana Maria, quando ela chega ao Rosa de Sarón – o abrigo para meninas de rua. O abrigo foi fundado há dois anos, quando Ana Maria percebeu o quanto essas meninas necessitavam de ajuda. Ali, elas recebem apoio para superar suas experiências traumáticas. – Fugi de um abrigo quando tinha dez anos e comecei a me prostituir, conta Jhovana. Ela teve seu primeiro filho aos onze anos e, o segundo, aos treze. Contudo, somente a filha de dois anos vive com ela. Seu filho foi adotado. – As meninas que têm filhos nas ruas não sabem como cuidar deles. Afinal, são apenas crianças. Aqui, elas aprendem a ser mães, diz Ana Maria.

Quando Ana Maria chega ao Rosa de Sarón, seu abrigo para meninas de rua, as meninas correm em sua direção. Todas se jogam no seu colo e lhe dão as boas vindas efusivamente.

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Fernando dá uma cambalhota no ar.

Fernando tem sua ú l Fernando nasceu nas ruas. Aos dois anos, seu pai lhe deu cola para cheirar e lhe ensinou a viver como um ladrão. Para ele, é difícil abandonar os maus hábitos. Apesar de já ter até roubado do abrigo El Arca, Fernando tem mais uma chance de mudar de vida.

Fernando abraça o irmão Bryn, que também mora no El Arca.

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– Sai da frente, que aí vou eu! Fernando toma impulso, dá uma volta no ar e cai no colchão. Bryan, seu irmão menor, e os outros meninos observam-no. Dar cambalhotas no ar é a especialidade de Fernando, ninguém mais tem coragem de repetir seu truque. A poeira se levanta quando um jipe se aproxima do jardim do abrigo El Arca, um casarão, situado no campo e rodeado de fazendas e plantações. – Olá, “abuelito”! Ana Maria saúda Fernando, que corre para abraçá-la. Fernando tem apenas doze anos, mas todos o chamam

de “abuelito” (vovozinho). – Não sei bem porquê. Acho que foi o meu pai quem começou a me chamar assim, diz ele. Ele é viciado em drogas. Eu nasci nas ruas e mamãe se sustentava vendendo cola. Até que meu pai a denunciou para a polícia, e ela foi parar na prisão. Cheirava e roubava – Comecei a cheirar cola aos dois anos. Papai me dava cola em vez de comida. Às vezes, ele ia preso e eu o acompanhava, pois não tínhamos casa. Dormíamos nas calçadas, com sacos e caixas de papelão. Com apenas três anos, o pai ensinou Fernando a roubar.


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Fernando jogando futebol no El Arca.

ú ltima chance – Ele me mandava roubar roupas e tênis dentro da prisão onde mamãe estava e ficava me esperando do lado de fora. Quando a mamãe ficou sabendo que eu estava roubando, me deu uma surra. Ela não sabia que era o papai quem tinha me mandado roubar, e eu não tive coragem de lhe contar. Enquanto a mãe de Fernando lhe dava surras quando ele roubava, o pai fazia o mesmo quando o menino não roubava. Ana Maria percebeu o quanto Fernando sofria e resolveu ajudá-lo. Aos quatro anos, o menino se mudou para o abrigo El Arca junta-

Fernando Pinto, 12 Gosta: De ginástica. Não gosta: Do meu pai. Música favorita: Requeton (hip hop sul americano). Sonho: Ser piloto e morar com a mamãe e os meus irmãos Escute a música favorita de Fernando em www.childrensworld.org

mente com Elmer, o irmão mais velho. Elmer achou mais fácil se adaptar, pois tinha morado com um tio. Mas para Fernando, que morava com o pai nas ruas, abandonar a criminalidade foi muito difícil. – No princípio, tudo correu bem, mas quando comecei a ir à escola, passei a roubar na cidade por pura vontade de atormentar as pessoas, conta Fernando. O problema agravou-se quando dois garotos novos mudaram-se para El Arca. – Nós fumávamos e cheirávamos cola na escola. Depois, fugíamos para roubar. Com o dinheiro, comprávamos facas.

– Eu fingia que me comportava bem, mas nas ruas, fazia o que queria. Depois de um tempo, todos começaram a perceber e nos disseram para parar. Nessa época, Fernando e dois companheiros arquitetaram um plano para roubar dinheiro do escritório do abrigo. – À noite, saímos de mansinho e abrimos a janela. Um dos meninos entrou no

Roubo no abrigo El Arca Ana Maria e o pessoal do abrigo El Arca não sabiam das atividades de Fernando. 39


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Depois do roubo no El Arca, Fernando tem de provar que merece os mesmos direitos dos outros garotos. Por isso, ele não tem uma cama e dorme em um colchão no piso. Ele também perdeu o direito de usar o guarda roupa, e tem que guardar suas roupas numa bolsa.

escritório e roubou 470 bolivianos (US$61,46) de uma gaveta. Depois, nos escondemos no banheiro e aí combinamos o que faríamos com o dinheiro. Na manhã seguinte, eles foram para a escola, como se nada tivesse acontecido. – Depois, saímos e compramos pilhas, fitas cassetes e facas. Porém, quando os meninos voltaram para casa, o abrigo estava em alvoroço. Alguém tinha descoberto o roubo e Fernando e seus amigos eram os principais 40

suspeitos. Os diretores Jimena e Javier convocaram uma reunião com todos os professores e meninos. – Ficamos trancados em um quarto do segundo andar. À noite, os outros dois amigos desceram pela janela com a ajuda de lençóis amarrados. Eles levaram consigo as roupas e as facas e me deixaram sozinho. Última chance O que seria de Fernando? Os professores, que tinham trabalhado com o menino

David ajuda Fernando com os deveres de casa.

durante anos, não o queriam mais ali: estavam cansados de sua maneira de ser. Ele acabou sendo transferido para outra instituição para meninos de rua. Mas o local fechou e ele foi para uma terceira instituição, que ele odiava porque era maltratado. Quando a mãe de Fernando soube o que tinha acontecido, ficou fora de si. Furiosa com Fernando por tudo o que ele tinha feito, foi ao novo abrigo do filho para buscá-lo. A seguir, implorou a Jimena e Javier que aceitassem o menino de volta ao

abrigo El Arca. – Passamos uma semana inteira com insônia, conta Jimena. Conhecemos Fernando desde pequeno e gostamos muito dele. Contudo, ele já tivera tantas outras chances, que os educadores se recusavam a aceitá-lo de volta. – Foi horrível, diz Javier. Fernando é um líder e pode ser péssima influência para os outros meninos. Apesar de tudo, decidimos lhe dar uma última chance.


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Fernando não pode se sentar à mesa, senta-se eu um banco com um caixote, que serve de mesa. Seu prato é feito de um pote de margarina usado e seu copo, de uma garrafa plástica cortada. Mas Fernando acha que o tratamento é justo.

Eu vou conseguir D

epois do almoço, Fernando, com um pano úmido, limpa os restos do almoço do chão do refeitório. Ele está com os fones de ouvido conectados ao telefone celular, guardado no bolso dos jeans.

– Eu pego emprestado de um amigo, enquanto ele está na escola, diz Fernando. Desde que voltou ao abrigo El Arca, Fernando perdeu todos os privilégios que tinha conquistado. Como ir à escola, por exemplo. Ao

invés disso, ele trabalha com o professor David. ”Eu acho justo” – Venha! Vamos limpar essa sala aqui também. David chama Fernando e juntos limpam a sala de aula do segundo andar. Ninguém em El Arca conhece Fernando tão bem quanto David. – Cuidei de Fernando e de seu irmão mais velho desde que eles chegaram ao El Arca. Por isso, fiquei muito decepcionado com o furto do escritório. Tive a sen-

sação de ter fracassado no meu trabalho, conta David. Quando o menino voltou para o abrigo, pediu desculpas a David e aos outros professores. – Disse assim: “Desculpemme, eu vou mudar.” E, realmente, mudou. Antes, Fernando nunca fazia o que pedíamos, mas agora, escuta o que digo e me ajuda quando lhe peço um favor. Fernando ajuda David a fazer a limpeza, trabalhar na cozinha e limpar os ralos. Em troca, David lhe dá aulas para que possa se recuperar 41

TEXT: SOFIA KLEMMING FOTO: KIM NAYLOR

– Rapazes, estão prontos? O professor David chama os meninos, que já estão uniformizados, de sapatos engraxados e dentes escovados. David, então, lhes dá um pouco de creme hidratante para as mãos, antes de partirem para a escola. Fernando, porém, ainda não pode acompanhá-los...


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Fernando esperando para limpar o chão depois que os outros terminam de comer. Ele trabalha arduamente para ter de volta os direitos perdidos.

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do atraso na escola. Contudo, o menino não poderá ir à escola até provar que é realmente capaz de se comportar. – Estou proibido, também, de me sentar à mesa durante as refeições. Tenho que me sentar em um banquinho, com uma caixa que serve de mesa, explica Fernando. Meu prato é um pote de margarina velho e meu copo, uma garrafa plástica cortada. No quarto que comparte com seu grupo, Fernando mostra a pequena bolsa na qual guarda suas roupas e pertences. – Não posso guardar minhas roupas no armário e durmo em um colchão no chão. Quando tiver melhorado meu comportamento, vou 42

poder voltar a dormir na minha cama. – Na verdade, eu acho justo. Estou muito feliz de ter voltado para cá. Eu mudei minha forma de ser e pretendo reaver tudo o que possuía antes. Quer ser piloto David acredita que Fernando conseguirá mudar desta vez. – Tento escutá-lo e entendêlo, ao mesmo tempo em que o educo. Não adianta ser severo demais. Ele desapareceria de uma vez por todas, comenta David. – Se Fernando levar a sério esta oportunidade, terá grandes chances no futuro. Ele é um desses garotos que as pessoas param para escutar. Pode ter êxito em qualquer

atividade, basta que tenha as ferramentas apropriadas. Ana Maria também torce para que Fernando aproveite sua última oportunidade. – Fernando é um exemplo do quanto é difícil romper com a delinqüência. Afinal, aprender a cheirar cola e a roubar aos dois anos, provo-

ca conseqüências para toda a vida. No entanto, nós não desistiremos, diz Ana Maria, abraçando o garoto. – Meu sonho é ser piloto e morar com a mamãe e meus irmãos outra vez, diz Fernando.


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Bem comportado para ir à escola? O irmão menor de Fernando vai a uma escola perto do El Arca. A princípio, os meninos de rua não eram bem-vindos ali, pois tinham má reputação. O diretor receava que eles criassem problemas. Por isso, antes de irem à escola, os meninos são preparados pelo abrigo El Arca. Ao chegarem das ruas, eles recebem primeiramente aulas dos professores do El Arca. Só depois de seis meses, se já sabem se comportar com educação, eles começam a ir à escola.

Aprenda quéchua A língua oficial da Bolívia é o espanhol, mas apenas dois terços da sua população fala o idioma. Fora das grandes cidades, a maioria fala uma das três línguas indígenas: o quéchua, o aimará ou o guarani. O quéchua era a língua do povo inca, mas ainda hoje está presente na periferia de Cochabamba. Muitas crianças de rua, que vêm das aldeias dessa região, falam somente o quéchua.

Olá! Oi Como vai? Bem Como você se chama? Meu nome é… Tchau Sim Não 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10

Napaykullayki! Raphi! Imaynalla? Sumaj Ima sutiiki? Sutii… K’allakama Ari Mana u’ iskai quinsa tahua phiska so’gta khanchis pusa’g iskon chuncha

Na feira de La Cancha, em Cochabamba, onde Ana Maria faz compras para a sopa das crianças de rua, há pelo menos trinta espécies de batata. Cada uma delas, com aparência e sabor diferentes. A pequena e alaranjada ‘papalisa’ é usada para sopas e ensopados. A ‘Huaico’ é preta e deve ser cozida com a casca. Há também a ‘cuchi chupita’, que significa rabo de porco.

Mil denominações da batata As crianças do abrigo El Arca e os meninos de rua que tomam a sopa oferecida por Ana Maria, adoram batatas. Sabe-se que os povos andinos já cultivavam a batata há oito mil anos. O cultivo desta raiz era um dos poucos que resistiam ao clima árido das montanhas. Os índios aimarás desenvolveram mais de duzentas espécies de batata no planalto do Titicaca, a mais de 3000 metros

acima do nível do mar. Entre 1476 e 1534, no auge do império inca, a raiz tinha seu peso avaliado em ouro, e havia até um culto ao ‘Deus da Batata’. Os quéchuas, descendentes dos incas, afirmam ter mais de mil denominações para a batata, que só chegou à Europa no século XVII, com os conquistadores que retornavam da América do Sul.

Batatas de pedra No mercado, vêem-se sacos com algo parecido a pedras pequenas. São os ‘chuños’, batatas desidratadas. Há oito mil anos, era muito difícil conservar os alimentos. Por isso, os incas desenvolveram um método, ainda hoje utilizado, para desidratar a batata. Espalham-se as batatas no solo durante as noites de geada. Durante o dia, elas são cobertas de feno, como proteção contra os raios solares. Depois de alguns dias, as mulheres e crianças as pisoteiam para retirar-lhes o líquido e a casca. Em seguida, as batatas são lavadas em água corrente durante semanas, para que o sabor amargo desapareça. Finalmente, elas são postas para secar durante duas semanas e, depois, podem ser armazenadas por até quatro anos.

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Presente de aniversário Depois de uma hora de brincadeiras é chegado o clímax da festa – a entrega dos presentes. Edson, que fez nove anos, fica encabulado ao ganhar seu presente. Ele abre o pacote ansiosamente. É um carro! – Na minha família nós nunca ganhávamos presentes, ele conta. Edson fugiu de casa porque era maltratado pelo pai. Ele morava nas ruas até ser resgatado pelo abrigo El Arca.

É hora do bolo de aniversário gigante de Ana Maria.

Enfim, a festa de ani É de manhã no abrigo El Arca. Bryan, 10 anos, e alguns amigos penduram balões e bandeirolas no teto. Da cozinha, um aroma de pipoca e amendoim torrado se espalha pela casa. Bryan está excitadíssimo. O dia da festa de aniversário, finalmente, chegou.

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o abrigo El Arca comemoram-se os aniversários dos meninos a cada três meses. Nessa ocasião, todos os aniversariantes do último trimestre são homenageados com uma grande festa. Os preparativos levam vários dias. Jimena compra os presentes, os professores e Ana Maria fazem o bolo e os 44

doces e as crianças preparam o espetáculo. – Pepe! Ajude-me! Ana Maria fez, como de costume, um bolo de aniversário enorme e, agora, precisa de ajuda para retirá-lo do jipe. É preciso duas pessoas para carregá-lo. Agora, é hora de decorar o bolo com glacê rosa e azul. Ana Maria trouxe uma ajudante de cha-

péu de abas largas. É Norah Rodrigez, mãe de Bryan, Fernando e Elmer. Vendia cola – Eu costumo visitá-los uma vez por mês e sempre venho nos aniversários e no natal, diz Norah. – Fico feliz quando a mamãe vem nos visitar. Queria morar com ela, mas ela diz que não é possível, pois mal tem dinheiro para a própria comida, diz Bryan. Norah passa glacê no bolo com uma colher de pau. – Gostaria muito de cuidar dos meus filhos, mas fugi da prisão, ela conta.

Norah foi condenada a dez anos de prisão por venda de cola de sapateiro. Foi o pai de Fernando e Bryan quem a denunciou. Com a metade da pena cumprida, Norah escapou e, desde então, é procurada pela polícia. – Não sou nenhum anjo, mas amo os meus filhos, ela diz. Aos treze anos, Norah começou a morar nas ruas. Ela cheirava cola, bebia e engravidou ainda muito nova. – Primeiro, nasceu o Elmer. O pai dele me batia muito, por isso o abandonei. Depois, conheci o pai do Fernando e do Bryan, que


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TEXTO: SOFIA KLEMMING FOTO: KIM NAYLOR

Fernando dá cambalhotas na parte de trás da casa. Ele fica feliz quando Norah, sua mãe, vem visitá-lo. – Bem-vindos à festa de aniversário!, fala Javier ao microfone, em cima do palco. Em seguida, um grupo de garotos encena uma peça de teatro sobre a vida nas ruas. Bryan e Fernando também participam dos espetáculos e Norah fica orgulhosa. O último número é encenado pelo grupo musical do El Arca. Eles cantam, tocam violão, charango (um violão pequeno), tambor e flauta zampoña (feita de cana-de-açúcar).

niversário era ainda pior. Ele até me feriu com uma faca, uma vez quando estava bêbado. Batia nos filhos Norah admite que também batia nos filhos. – Eu batia neles, sim. Especialmente no Bryan, quando morava comigo na prisão, Norah conta com os olhos cheios de lágrimas. Ana Maria a consola e diz: – Você se comportou mal antes, mas agora demonstra que realmente se preocupa com os seus filhos. Você é a única mãe que vem nos visitar! Bryan se aproxima e dá

um abraço na mãe, que lhe sorri. – Meu sonho é que meus filhos tenham uma profissão e que nós possamos morar todos juntos, algum dia, diz Norah. Ela se preocupa mais por Fernando, desde o roubo do escritório. – Ah, como eu lutei para ele voltar para cá! Espero que Fernando realmente aproveite essa oportunidade, diz Norah.

Abandonados pelos pais Todas as crianças no abrigo El Arca têm uma coisa em comum: foram abandonadas pelos pais. Norah, a mãe de Bryan, Fernando e Elmer, é especial. Nenhuma outra mãe vem visitar os filhos. – O mais difícil é não podermos dar a eles o que mais precisam: o amor dos pais, diz David, o professor de Fernando. – Contudo, nunca vi nenhum menino chorar pela falta dos pais. Eles os odeiam. Em geral, perguntam: Por que nos abandonaram? Eu respondo que não foi por culpa deles, mas por outros motivos, como o desemprego e o vício em drogas. – Uma vez, um menino quis que eu o acompanhasse até a casa da mãe. Ele não a via há muito tempo. Porém, quando chegamos lá, ela disse: O que você está fazendo aqui? O que você quer? O menino, então, me olhou e disse, com lágrimas nos olhos: Vamos embora, eu não quero ficar mais aqui. Escute o grupo musical de El Arca em www.childrensworld.org 45


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– Mãezinha! Mãezinha! Ana Maria mal passa pelo portão de entrada do abrigo Rosa de Sarón e as meninas já correm em sua direção, vindas de todos os lados. Maria se atira ao pescoço de Ana Maria. – Eu nunca pude sentir o que é ser amada por uma mãe. Desde pequena sempre escutei da minha mãe que seria melhor se eu morresse, diz Maria.

As meninas ajudam na Rosa de Sarón.

María fugiu pa M

aria se debruça e sussurra algo no ouvido de Ana Maria. – Claro, claro, ela responde e abraça Maria, que fica toda animada. O teor da confidência, ninguém jamais saberá. Ana Maria carrega milhares de segredos e não decepciona nunca. Por isso, Maria gosta tanto dela. Maria nasceu na capital, La Paz. Aos dois anos, seus pais se separaram e a mãe mudouse com as filhas para Cochabamba. Ela dava surras em Maria com freqüência e a situação só piorava. – Mamãe me culpava por tudo e me castigava muito. 46

Perdi a confiança em mim mesma, e tudo o que fazia, dava errado. – Um dia, papai pediu para voltar a viver conosco, mas mamãe disse que não e me proibiu de ter qualquer contato com ele. Chorei muito, pois não conseguia entender o porquê. – Fugi de casa e comecei a andar com umas meninas da escola, que eram verdadeiras ‘más’ companhias. Elas me ensinaram a cheirar cola, a beber, a fumar e a gostar de festas. Para ter dinheiro, nós nos prostituíamos. Até então, eu não sabia nada sobre sexo, mas acabei acompanhando-as.

Maria tinha apenas dez anos e tornou-se cada vez mais dependente de cola. – Às vezes, eu comia, às vezes, não. Eu não sentia fome, só tinha vontade de cheirar. O socorro Maria foi convidada a morar em um abrigo para meninos de rua. Lá, porém, as crianças faziam o que queriam. Ela dormia no abrigo à noite, mas continuava a sua vida nas ruas. – Eu tinha um namorado mais velho, que me batia e me fazia ameaças. Como tinha muito medo dele, tentei fugir. Mas ele me pegou e

me cortou nas costas com uma navalha. Por fim, o socorro veio de quem ela menos esperava. A mãe de Maria escutou que a filha estava em maus lençóis e resolveu levá-la para o abrigo Rosa de Sarón. – Descobri que aqui era diferente. Os professores

Os sapatos favoritos de Maria.


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Gosta: De cantar e pular corda. Seu maior desejo: Encontrar com o meu pai. Quer ser: Enfermeira.

Maria pula elástico.

para as ruas eram gentis e tinham muita paciência, conta Maria. Maria estava preta de sujeira quando chegou aqui. Mesmo assim, se recusava a tomar banho. Assim como tantas outras crianças de rua, ela teve que aprender a cuidar da própria higiene: tomar banho, escovar os dentes, ir ao banheiro, lavar as roupas. É o primeiro passo para quem que chega ao Rosa de Sarón. – Maria era uma verdadeira rebelde, mas muita coisa mudou em um ano. Dentro de pouco tempo ela vai estar madura o suficiente para recomeçar a escola, diz Ana Maria.

Muitas brigas Maria pula elástico com algumas meninas quando a professora Betty as chama para a próxima reunião. Três vezes ao dia, as meninas se reúnem para conversar sobre diversos temas, ou sobre o que ocorreu durante o dia. Onze meninas e seis crianças pequenas moram no Rosa de Sarón. Quase sempre, um pequeno detalhe pode dar lugar a uma interminável briga. Hoje é a vez de Júlia e Gabriella. Júlia grita: – Gabriella, eu odeio você! – E eu te amo, Júlia, responde Gabriella, com um sorriso nos lábios. As meninas decidem que o

Maria tinha muita raiva, a princípio. Agora se tornou mais calma e adora Ana Maria.

tema da semana será o ódio. Por que as pessoas se odeiam? O que significa o ódio? Como fazer para parar de odiar? Durante a conversa, as meninas recebem ajuda para elaborar os problemas que têm umas com as outras. Assim como Maria, todas carregam consigo experiências terríveis da época em que não moravam ali. Todas foram abandonadas pelos pais e a maioria já foi agredida ou abusada sexualmente nas ruas. Agora, precisam de ajuda para lidar com a angústia e a raiva que levam dentro de si. – Não se consegue resolver nenhum conflito com ódio,

diz Ana Maria. Aqui estamos todas na mesma situação. Moramos juntas e temos que aprender a conviver umas com as outras. Vamos mostrar amor, ao invés de ódio. As meninas concordam com a cabeça, algumas fitam o chão. Mais tarde, em seu quarto, Maria diz: – No princípio, eu era muito agressiva. Nas ruas, eu aprendi a me defender brigando. Achava muito difícil seguir as regras daqui e brigava o tempo todo com as outras meninas. – Às vezes, não tinha vontade de viver. Mas aqui aprendi a acreditar em mim mesma. 47

TEXTO: SOFIA KLEMMING FOTO: KIM NAYLOR

María Marlene Luque Zabaleta, 13


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Jhovana quer mud Jhovana com a filha Solveig. Jhovana mora no Rosa de Sarón há dois anos, mas ainda sente falta da vida nas ruas.

Jhovana nunca pôde ser criança. Aos quatro anos, ficou órfã. Aos dez, começou a cheirar cola e aos onze anos deu à luz seu primeiro filho nas ruas. Jhovana quer mudar de vida. Porém, às vezes, sente que não tem forças.

TEXTO: SOFIA KLEMMING FOTO: KIM NAYLOR

– Mamãe! Mamãe! Solveig, de dois anos, está impaciente. Quer que a empurrem mais alto no balanço e a mãe não a escuta. A mãe, Jhovana, brinca de pular elástico com outras meninas e não quer, na verdade, parar a brincadeira. Com má vontade, caminha até Solveig. – Pronto, amor. Vamos balançar? Jhovana sorri. Mas, na realidade, está cansada de 48

sempre ter que brincar com a filha. Brincar, trocar fraldas, amamentar, dar comida, consolar. A filha toma todo o seu tempo e ela nunca tem um minuto de paz. Jhovana tem 16 anos e Solveig é sua segunda filha. Começou a cheirar cola – Fiquei órfã aos quatro anos. Meus pais eram alcoólatras. Eu e meus irmãos fomos para orfanatos diferentes. Quando eu tinha dez

anos, comecei a beber e a me prostituir. Algum tempo depois, Jhovana experimentou cola. – Eu conheci um rapaz, Miguel, e me apaixonei. Nós cheirávamos cola juntos e, logo, fiquei grávida. Eu tinha onze anos. Jhovana teve um menino, mas não sabia como cuidar dele. – Eu ficava nervosa e batia nele sempre que chorava. Nós morávamos nas ruas. Meu namorado também batia nele. Então resolvi deixá-lo em um orfanato e o menino foi adotado por uma família. Depois disso, eu e Miguel brigávamos muito. Ele costumava me bater por

eu ter dado o nosso filho para adoção. A fuga Jhovana abandonou a vida nas ruas e foi morar com uma tia por um

Jhovana fez brinquedos artesanais para a filha.


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udar de vida Jhovana Rojas Gonzales, 16 Filhos: Um menino, 4 anos, uma menina, 2 anos. O filho foi adotado. O pior das ruas: Os insultos e a violência. O mais difícil no Rosa de Sarón: As regras e entrar em acordo.

Gosta: De escrever e desenhar.

Sonha: Em estudar e trabalhar com meninas de rua. Jhovana e Solveig desfrutam da liberdade no parque. Uma vez por mês, as meninas do Rosa de Sarón fazem uma excursão com os professores.

tempo. Ela tentou deixar a cola, mas a vontade de cheirar era muito forte. – Voltei para o Miguel e ele quis ter mais um filho. Eu não queria, mas fiquei grávida outra vez quando tinha treze anos. Jhovana teve uma menina. Dessa vez, porém, Ana Maria e os professores do abrigo Rosa de Saron a ajudaram, ensinando-a a cuidar da filha. – No começo, tudo correu bem, mas quando Solveig tinha seis meses, eu fugi para me encontrar com o meu namorado e cheirar

cola. Eu me prostituía para comprar fraldas, leite e comida para Solveig. Depois de um mês, não agüentei mais e acabei voltando. Naquela época, Solveig estava doente. Estava desnutrida e tinha queimaduras de sol. Jhovana pediu perdão e prometeu mudar. Contudo, já fugiu duas vezes desde então. – É muito difícil. Eu me sinto presa e sinto falta da liberdade das ruas. De fazer o que eu tiver vontade – cheirar cola, roubar, encontrar com o meu namorado – sem regras.

mesma tem que querer, diz a Jhovana. No Rosa, vivem três mães adolescentes e uma menina grávida. Lá, elas aprendem como ser uma boa mãe. – As meninas são muito violentas com os filhos, diz Ana Maria. Elas próprias são apenas crianças quando têm filhos e a única coisa que conhecem é a violência.

Todas elas apanharam dos pais quando eram pequenas. É por isso que temos que lhes ensinar a educar os filhos com palavras. – Eu quero mesmo mudar de vida, diz Jhovana, enquanto amamenta Solveig. – Quero lutar por nós duas. Depois, eu gostaria de Todas as meninas do Rosa de Sarón.

Determinada Ana Maria conhece Jhovana há muito tempo e luta para que a menina deixe o antigo estilo de vida. – Eu venho ajudando muitas meninas em situações iguais à dela. É possível mudar de vida, mas você 49


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pesar de ainda serem sete horas da manhã, o abrigo Rosa de Sarón já está em plena atividade. As meninas preparam suas bagagens e correm para todos os lados, tentando encontrar seus pertences. Daniela decide levar shorts e camiseta, ao invés do maiô. Em breve, parte o ônibus que levará a turma toda à piscina. – Estão todas prontas?, pergunta o professor Federico. Então, vamos! Daniela se senta ao lado da irmãzinha Angela, de quatro anos. Elas chegaram ao abrigo Rosa de Sarón há cinco semanas. – Meus pais são separados e mamãe não podia tomar conta de todos nós, conta Daniela. Éramos nove irmãos, mas três bebês morreram. Meu irmãozinho

Daniela na excursão com sua irmãzinha Angela.

A oportunidade de ser criança

Daniela Loaiza, 9 Gosta: De montar quebracabeças e fazer pulseiras.

O melhor do Rosa de Sarón: Brincar.

O mais difícil: Não dizer palavrões. Quer ser: Policial. Sonha: Em morar com a minha família novamente. 50

querido faleceu há dois anos. Ele bateu a cabeça em um vidro e morreu nos braços do meu irmão mais velho. Estávamos sozinhos em casa e meu irmão ficou apavorado. Então, fechei os olhos do meu irmãozinho e lhe dei um beijo na testa. Eu o amava tanto, ele tinha apenas um aninho. Em seguida, eu o lavei e o vesti com roupas limpas e coloquei seu corpo em um pequeno caixão. As lágrimas caem pelo rosto de Daniela, enquanto conta a história. Agora, ela tem que tomar conta de Angela. – Antigamente, eu batia na Angela porque tinha muita raiva dentro de mim. Daniela teve que amadurecer cedo demais. – Nós tínhamos que ajudar com tudo, em

casa. Às vezes, a mamãe batia em nós, mas ainda assim eu a amo. Ela sempre fez tudo por nós. No abrigo Rosa de Sarón, Daniela pode voltar a ser criança e a brincar. – Gosto daqui. Às vezes, brigo com as outras meninas, mas a raiva passa logo. O mais difícil para mim é não dizer palavrões, eles ainda escapam da minha boca.


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Roda pião… Edson brinca com seu pião “trompo”. Deve-se puxar o barbante enrolado no pião e jogar o brinquedo longe para que gire. Os meninos mais habituados agarram o pião no ar, antes que toque o chão.

… meu pião de eucalipto também Dos eucaliptos, que crescem em volta do El Arca, caem pequenos ‘chapéus’, que os garotos usam como piões. Eles procuram pelo chão os melhores exemplares e é preciso ter habilidade para conseguir girar os “chapeuzinhos”. Primeiro, contam até três. Depois, cada menino gira seu pião. Aquele cujo pião girar por mais tempo, ganha o jogo.

A charada de Ramiro O que é o que é? Seus habitantes são grãos de café, sua terra é vermelha e o universo que a rodeia é verde.

Selina, Angela e Daniela têm o mesmo corte de cabelo de menino. Elas tiveram que cortar o cabelo quando chegaram ao abrigo Rosa de Sarón, porque tinham piolhos.

Sandálias de pneu A zampoña dos Andes Ricardo, professor do El Arca, ensina os meninos a construir e tocar flauta zampoña, um dos instrumentos mais tradicionais dos Andes. A flauta é feita de hastes de cana-de-açúcar, que são cortadas, lavadas e, depois de secas, lixadas. Em seguida, amarram-se as hastes em duas fileiras, sendo que a fileira de cima leva uma haste a mais. Por fim, a flauta é afinada com uma ferramenta especial. Solução: Melancia

A maioria dos meninos do abrigo El Arca usam sandálias feitas de pneus velhos. Elas são mais baratas e muito mais resistentes do que os sapatos comuns.

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Nada de piolhos


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”Toc! Toc! Toc!” – Atenda a porta, Pepe!, grita Ana Maria da cozinha, enquanto descasca cebolas. Na casa de Ana Maria, todos são bem-vindos. Como no dia em que Fernando, um menino de rua de quatro anos, entrou ali pela primeira vez.

À

porta, está uma mulher com uma criança à espera de uma consulta com o doutor Lucas, pai de Ana Maria e que, aos 90 anos, ainda exerce a medicina. Há anos que pessoas doentes de baixa renda vêm à casa da família, no centro de Cochabamba, para receber atendimento. – Na Bolívia, se você não tem dinheiro, morre. Se as crianças de rua ficam doentes, não conseguem nem mesmo entrar nos hospitais, revela Ana Maria. Por isso, ela e a família sempre ajudaram os mais necessitados. Em sua casa, eles podem tomar um prato de sopa, obter cuidados e

Flori e Ana maria preparam a sopa para os meninos de rua.

Todos são bemcurativos para machucados causados por brigas de rua ou, simplesmente, ter um ombro amigo. No quintal, há limoeiros e papagaios, que palram em suas gaiolas. Ali, moram Ana Maria e o

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Fernando, ex-menino de rua, e o filho de Ana Maria, Christian, são como irmãos.

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marido Santi, Christian, o filho de doze anos, e os pais, Lucas e Adriana. Também fazem parte do núcleo familiar, a empregada doméstica Flori, uma índia sem família, Pepe, um ex-viciado em drogas, que é o braço direito de Ana Maria, além de Marco e Fernando, ex-meninos de rua que, agora, são considerados como filhos pela família. Agredido ”Toc! Toc! Toc!”, batem à porta sem cessar. Fernando chega da escola. Ele entra e dá um beijo em Ana Maria. – Oi, mamãe Anita! – Eu chamo a Ana Maria de mãe. Minha verdadeira mãe se chama Andréia, mas agora já não a considero mais minha mãe. Ela me visita de vez em quando, mas eu não sinto nada por ela. Uma mãe não é apenas alguém que põe

um filho no mundo, mas alguém que cuida de você, que apóia e ensina o certo e o errado. Fernando chegou à casa de Ana Maria com quatro anos. Naquela época, ele era um menininho desnutrido, sujo e amedrontado, que só falava quéchua. – Venho de Potosí, uma cidade longe daqui. Meu pai morreu quando eu tinha dois anos e minha mãe não tinha recursos para cuidar dos nove filhos. Minha irmã mais velha me levou para uma família, em Cochabamba. Lá, eles me batiam e não me alimentavam. Por isso, um dia eu fugi. Eu só tinha quatro anos e não sabia o que fazer. Minha irmã, porém, descobriu que eu tinha fugido e me encontrou. Ela me levou à igreja que Ana Maria freqüenta e perguntou se ela poderia cuidar de mim.


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Fernando Chuncho, 14 Gosta: De trabalhos manuais, como costura e carpintaria.

Não gosta: Que maltratem os mais fracos.

Sonha: Em ter um trabalho Os meninos de rua sabem onde Ana maria mora e vão à sua casa quando têm problemas.

para cuidar de Ana Maria, quando ela envelhecer.

m-vindos! Ameaças em troca de brinquedos Na primeira noite, Fernando dormiu na casa de Ana Maria. – Brinquei com o Christian e ele me emprestou seus brinquedos. Desde então, somos amigos. No dia seguinte, ele foi para o abrigo El Arca, mas continuou a passar os fins de semana e feriados na casa de Ana Maria. – No início, a vida era difícil no abrigo. Eu era o menor de todos e não entendia o que os outros diziam, pois só falava quéchua. Os garotos mais velhos implicavam comigo e me batiam. – Eles implicavam também porque eu passava os fins de semana na casa de Ana Maria. Chamavam-me de “filho adotivo” e de “gordinho”, pois achavam que eu ganhava mais comida lá. Eles me mandavam trazer os

brinquedos do Christian para o abrigo El Arca. Caso contrário, bateriam em mim. Então, eu pegava emprestadas as coisas do Christian, mas não tinha coragem de contar nada a Ana Maria, pois eu apanharia ainda mais. Quer ajudar a Ana Maria Um dia, aos onze anos, quando Fernando estava pronto para regressar ao abrigo depois das férias, Christian perguntou ao pai se Fernando não poderia morar com eles para sempre. “Não”, disse Santi. “Não temos recursos para isso. Teríamos que dar ao Fernando as mesmas coisas que damos a você.” “Mas eu não quero nada, quero que vocês comprem coisas para o Fernando!”, disse Christian aos prantos. Por fim, Santi concordou. Foi o melhor dia da vida de

Ana Maria com o marido Santi, o filho Christian, os pais Lucas e Adriana, os ex-meninos de rua Marco e Fernando, o seu braço direito Pepe e a empregada Flori.

Fernando. Ele começou a freqüentar uma nova escola e, de repente, passou a entender tudo o que os professores diziam. Antes, ele tinha péssimas notas. – Era porque eu não estudava. Agora, faço os deveres todos os dias e tenho ótimas notas. – Eu gostaria de trabalhar

como técnico de rádio e televisão, assim poderia ajudar a mamãe Anita quando ela envelhecesse. Quero retribuir tudo o que ela fez por mim. Às vezes, quando vou à escola, vejo alguns garotos nas ruas cantando e pedindo esmolas. Nessas horas, penso que eu poderia ser um deles, se não estivesse aqui. 53


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Enrique estuda para ser mecânico. Ele quer ganhar dinheiro para poder ajudar Ana maria quando ela for mais velha.

Enrique ganhou pastéis de natal e um futuro TEXTO: SOFIA KLEMMING FOTO: KIM NAYLOR

Era noite de natal quando Enrique pisou pela primeira vez em El Arca. Até então, ele não passava de um menino de rua de dez anos, que devorava faminto os dois pastéis de natal que lhe foram dados. Talvez, aquele tenha sido o momento em que ele decidiu lutar por uma vida melhor. Hoje, Enrique já concluiu a escola e estuda para ser mecânico.

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á é noite quando Enrique e seus amigos voltam de ônibus da escola. A caminho do quarto, Enrique cumprimenta Lucito, o zelador de El Arca. 54

– Eu o chamo de papai Lucito. Ele e mamãe Anita (Ana Maria) são as duas pessoas que significam mais para mim. Graças a eles, me sinto bem.

Enrique tem 21 anos e morou metade de sua vida em El Arca. Daqui a dois anos, ele termina o curso de mecânica e não vê a hora de se mudar do abrigo. – Eu achava que queria ser arquiteto, mas descobri que gosto de ficar debaixo dos carros fazendo consertos! Alguns meninos se aproximam para conversar com Enrique. Os rapazes mais velhos de El Arca são um exemplo para os outros. – Eu me lembro do respeito que sentia pelos mais velhos

quando cheguei aqui. Eles falavam de uma forma diferente, diziam “por favor”, e eu gostava disso. Queria ser como eles, conta Enrique. Natal mágico – Cheguei aqui aos dez anos. Era noite de natal e tudo parecia mágico. Deram-me dois pastéis de natal! Totalmente diferente dos outros abrigos em que eu tinha estado. Mesmo assim, fugi depois de três semanas. Eu sempre fugia dos lugares onde estava. Mas, quando percebi os privilégios que os meninos mais velhos tinham, acabei ficando. Hoje, Enrique é um daque-


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Enrique Sehuenca, 21 Exemplos: Ana Maria e papai Lucito (o zelador em El Arca). Eles são carinhosos e são as pessoas mais geniais do mundo. Gosta: De tocar violão. Odeia: Drogas. Quer ser: Mecânico e trabalhar na Europa, para ajudar a família.

Enrique toca violão na orquestra de El Arca.

les que ele antes costumava admirar. Em El Arca, há quatro grupos e a passagem para o grupo seguinte não depende só da idade, mas também do comportamento e do desenvolvimento. – Passar para um grupo mais avançado é um estímulo, pois queremos ter as mesmas vantagens que os outros garotos têm, diz Enrique. Ele e os amigos têm quartos mais bonitos do que os mais novos, e também maior liberdade. – Nós podemos sair nos fins de semana, desde que voltemos na hora determinada. Também podemos ter namoradas. Namorei uma menina por um ano, mas terminei com ela há pouco tempo. Quando você se apaixona, corre um grande risco de que tudo que construiu acabe desabando. Como no caso, por exemplo, de a namorada engravidar. Papai me batia Enrique lutou muito para alcançar o que conseguiu – ir à escola e se profissionalizar. Ele é o primeiro na família que teve uma chance como essa.

– Eu venho de Mina Asientos, uma cidade mineira. Meu pai trabalhava nas minas, mas ficou desempregado e nos mudamos para Cochabamba. Papai começou a beber cada vez mais. Meus pais brigavam o tempo todo e papai batia na mamãe. Quando eu e meus irmãos tentávamos defendê-la, ele batia em nós, conta Enrique. – Uma vez, quando eu tinha oito anos, eles brigaram tanto que eu fiquei apavorado e fugi para a rua. Foi a última vez em que estive em casa. Nunca mais tive coragem de voltar, com medo de ser castigado. Enrique viveu dois anos nas ruas. Ele andava com outras crianças de rua e começou a roubar e a cheirar cola. – Era como estar voando, eu não pensava em comer nem dormir. Nada mais tinha importância. Ficar livre do vício das drogas foi o mais difícil para Enrique, nos dez anos em que viveu em El Arca. Aqui as drogas são proibidas, mas lá fora, elas estão em toda a parte. – Na escola há muitos que cheiram cola ou cocaína. Eu

já recaí no vício várias vezes. Mas agora, com a ajuda de Deus, me decidi. Vejo meus amigos das ruas que estão destruídos, e agradeço pela ajuda que recebi aqui. Irmão querido – Nosso objetivo é preparar os meninos para a vida fora de El Arca. Queremos darlhes autoconfiança, bons costumes e uma educação, para que possam caminhar com seus próprios pés quando se mudarem daqui, diz Jimena, que dirige El Arca com o marido Javier. – O primeiro passo é que façam um curso técnico profissionalizante, mas temos um sonho de que, alguns dos nossos meninos, consigam, um dia, ir para a universidade, diz Javier. Octavio, um deles, tornouse professor primário e trabalha em uma escola. Seu Enrique é mestre em fazer pulseiras.

objetivo é ser médico e El Arca irá ajudá-lo. – Meu sonho é trabalhar no exterior como mecânico e ganhar muito dinheiro para ajudar minha família. Depois, quero me casar e ter filhos, mas não antes de ter condições de sustentá-los. Não quero que meus filhos passem pelo mesmo que passei, diz Enrique. Aos 16 anos, ele tomou coragem e voltou à casa da família para visitá-los, pela primeira vez em oito anos. – Eles não ficaram tão felizes quanto eu imaginava. Papai continua bebendo e mamãe se mata de trabalhar, vendendo refrigerantes. Já meu irmão mais velho ficou muito feliz. Ele sustenta a família hoje em dia e me disse: “se você não nos esqueceu totalmente, talvez possa nos ajudar” Eu amo meu irmão.


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