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AOCM – a organização d – Alguém consegue vê-lo? Agora só resta Naphtal, todos os outros familiares estão mortos. Se vocês o encontrarem, matem-o também! Naphtal prende a respiração. Ele está mergulhado em um rio há apenas alguns metros dos homens... Este fato aconteceu em Ruanda no ano de 1994, quando cerca de 800 000 pessoas foram mortas em 100 dias. 300 000 deles eram crianças e outras 100 000 crianças ficaram órfãs depois do genocídio. Naphtal Ahishakiye perdeu toda a sua família: o pai, a mãe e quatro irmãos. Enquanto Naphtal estava mergulhado no rio, ele jamais poderia imaginar que um dia fundaria a AOCM – L’Association des Orphelins Chefs de Ménages (Associação dos Órfãos Chefes de Família). Uma organização que seria nomeada ao WCPRC, pela sua luta para dar uma vida melhor a 6 000 dos órfãos de Ruanda...
uganda congo
POR QUE A AOCM ESTÁ SENDO NOMEADA? A AOCM está sendo nomeada para o WCPRC 2006 por sua luta em prol das crianças e jovens que tiveram seus pais mortos no genocídio de Ruanda em 1994. A AOCM é formada apenas por jovens que perderam seus pais no genocídio e juntos eles tentam ajudar uns aos outros a obter uma vida melhor. Eles almejam ser uma família na qual todos se importam com os outros. Apesar de a maioria dos membros da AOCM viver em grande pobreza, eles se ajudam mutuamente com comida, roupas, um lugar pra morar, novas famílias, acesso aos cuidados de saúde e a
tanzãnia
(kinshasa)
Ruanda Lago Kivu
Kigali Gitarama
Cyangugu burundi escola. E o mais importante: oferecer um ao outro amizade e amor. Mais de 6000 órfãos receberam uma chance de vida melhor através da AOCM. Jovens e crianças que, de outra maneira viveriam uma vida de drogas, crime, prostituição e violência nas ruas. A AOCM fala pelos órfãos em Ruanda, relembrando constantemente ao governo e organizações que os órfãos existem.
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dos órfãos N
aphtal mantém apenas o nariz fora da água. Apavorado, ele se agarra às raízes que crescem no fundo do rio. Seu coração bate tão forte que parece que vai explodir. Ele só tem coragem de sair da água horas mais tarde, quando já está escuro. Os homens foram embora, mas ele sabe que eles voltarão a procurá-lo, assim que estiver mais claro. Naphtal descansa um pouco, mas desliza para a água novamente. Seus pensamentos estão girando.Toda sua família está morta e tudo aconteceu muito rápido. Baratas Alguns dias antes, toda a família estava sentada ouvindo rádio. Como em
muitas outras vezes, a voz no rádio dizia que todos aqueles que pertenciam ao povo tutsi eram inimigos de Ruanda. Ouvia-se também que o povo hutu deveria estar pronto a defender-se com armas e que os tutsis eram falsos como cobras e sujos como baratas. Todos os hutus devem livrarse desses animais perniciosos. O pai de Naphtal disse que o governo patrocinava a estação de rádio. A família de Naphtali era tutsi e ficava preocupada ao ouvir estas coisas. Mas, naquela manhã, a preocupação havia crescido. O rádio dizia que o presidente morrera em um acidente aéreo. Seu avião teria caído quando ele voltava de uma reunião na Tanzânia com a FPR (Frente Patriótica de Ruanda), que estava em
guerra com o governo de Ruanda desde 1990. A FPR queria retirar o governo do poder e dizia querer criar um país para hutus e tutsis. Com o presidente morto, os hutus que não concordavam em manter a paz com a FPR ou dividir o poder com os tutsis, podiam agir como quisessem. Agora é o fi m. Os hutus vão começar a nos matar. Temos de nos esconder na floresta, cada um deve achar seu próprio esconderijo – disse o pai de Naphtal.
Mataram a família Alguns dias depois que a família havia se escondido, um grupo de homens armados chegou à casa onde moravam. Eles a derrubaram, cortaram as bananeiras, arrancaram batatas e mandiocas da terra e destruíram as plantações. As cabras e vacas da família foram roubadas. Do seu esconderijo, Naphtal viu tudo, e percebeu que muitos daqueles que destruíram sua casa eram seus vizinhos. No dia seguinte os
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Sozinho e com medo – Quando eu me escondi na floresta, tinha medo o tempo todo. Bastava algum ruído das árvores ou o barulho do vento nas folhas, para que eu pensasse que eram os assassinos que haviam voltado para me pegar. Era horrível dormir ali no escuro, sozinho- lembra Naphtal.
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homens voltaram. Eles encontraram o pai de Naphtal e o mataram. Se Naphtal tivesse tentado impedi-los, teria sido morto imediatamente. Dois dias mais tarde, o irmão mais velho de Naphtal foi encontrado. Eles amarraram suas mãos e pés e depois o mataram. Depois, eles pegaram seus três
Umutoni e Uwamwezi, completaram 6 e 7 anos Brinquedo favorito: Boneca que tinham juntas. Comida favorita: Frutas. Elas eram: As garotas do papai.
Fidèle, completou 9 anos Esporte favorito: Futebol. Comida favorita: Batatas fritas. Adorava: TV e estar com os amigos.
outros irmãos e sua mãe... Naphtal era o único que havia restado...sozinho, mergulhado no rio. Ele estava com tanto medo que não teve coragem de sair do rio por três dias e três noites. – De alguma maneira eu consegui sobreviver na floresta por vários meses. Eu bebia água da chuva e entra-
300 000 crianças foram mortas No genocídio de 1994 foram assassinadas quase um milhão de pessoas em Ruanda. 300 000 eram crianças. Se você deseja fazer contribuições em tributo à memória delas, escreva para: Kigali Memorial Centre, B.P. 7521, Kigali, Rwanda. Aqui estão algumas das crianças que foram mortas:
David, completou 10 anos Esporte favorito: Futebol. Adorava: Fazer que as pessoas rissem. Sonho: Ser médico.
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Com direito de ser criança A AOCM deseja que suas crianças mais novas possam participar de passeios. Nos passeios, eles podem comer comidas gostosas, tomar refrigerante, brincar e relaxar. – Nós tentamos passear sempre que possível, mesmo que não tenhamos dinheiro. Algumas pessoas acham que nós deveríamos usar nosso dinheiro apenas para as mensalidades escolares, comida e aluguéis. Mas eu não concordo. Eu creio que os passeios são tão importantes quanto estas coisas. Neles, as crianças podem sair, encontrar outras crianças e divertirem-se. Elas se tornaram adultas cedo demais, pois seus pais foram mortos. Nos passeios, elas têm permissão para serem crianças – diz Naphtal. – Os passeios são a coisa mais divertida do ano! – diz Jean Claude Habineza, 14, que toma conta de seus dois primos mais novos, sozinhos.
va escondido nas plantações das pessoas para comer bananas. Durante as noites, eu dormia no chão. Eu estava muito triste e confuso. Eu tinha visto toda a minha família ser assassinada e não me sentia bem. Na verdade, eu havia perdido a vontade de viver. Mas algo me fazia
lutar e ir adiante – diz Naphtal. Uma nova família Enquanto Naphtal estava escondido na floresta por três meses, a FPR conseguiu derrotar o exército de Ruanda e dispersar o governo. Finalmente o genocídio
havia acabado. Naphtal e milhares de sobreviventes puderam sair de seus esconderijos na floresta e tentar começar uma nova vida. – Não foi fácil. Mas quando as escolas reabriram, eu decidi voltar a estudar. Eu queria honrar os meus pais e eu sabia que eles gostariam que eu tentasse viver uma vida melhor, apesar de tudo que aconteceu – diz Naphtal. Na escola, Naphtal encontrou muitas outras crianças e jovens que haviam perdido seus pais no genocídio. Todos eles tinham histórias terríveis para contar, mas
apoiavam uns aos outros. – Quando nós começamos a conversar, entendemos rapidamente que nenhum de nós poderia sobreviver sozinho. Aqueles que tinham algum dinheiro ajudavam os que não tinham nenhum. Eu tinha um dinheirinho, pois as pessoas que tinham roubado as cabras e as vacas de minha família, tiveram que me pagar uma indenização. Eu comprei cadernos e canetas e dei àqueles que não tinham. À noite, nós estudávamos juntos. Nós, que éramos mais velhos, ajudávamos aos mais novos com
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Fotografi as e textos publicados com autorização do Centro Memorial do Kigali, Ruanda.
Francine, completou 12 anos Esporte favorito: Natação. Comida favoritas: Ovos e batatas fritas. Bebida favoritas: Leite e Fanta. Melhor amiga: Claudette, sua irmã mais velha.
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Bernadin, completou 17 anos Esporte favorito: Futebol. Bebida favorita: Chá. Comida favorita: Arroz. Ele era: Ótimo na escola.
Yvonne & Yves, completaram 5 e 3 anos Bebida favorita de Yvonne: Chá ao leite. Comida favorita de Yves: Batatas fritas. Eles eram: A garota do papai e o filhão da mamãe.
Nadia, completou 8 anos Esporte favorito: Correr com seu pai. Bombom favorito: Chocolate. Bebida favorita: Leite. Adorava: TV e música. 45
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A AOCM ajuda 600 crianças a frequentarem a escola. Os maiores ajudam os menores com as lições.
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suas lições. Nos tornamos como uma família e era maravilhoso sentir que não estávamos mais sozinhos. O mais importante é o amor Alguns anos mais tarde, Naphtal e dois de seus colegas de escola, decidiram tentar ajudar os órfãos de toda Ruanda, da mesma forma com que tinham ajudados uns aos outros na escola. – No ano 2000 nós fundamos a organização AOCM, para que nós que somos
órfãos pudéssemos nos ajudar a ter uma vida melhor. A AOCM focalizou alguns problemas importantes: • Que todos deveriam ter onde morar, já que a maioria teve suas casas destruídas. • Que todos deveriam poder ir à escola e receber os cuidados de saúde necessários. • Que todos deveriam ter alimentação e vestuário. – Mas aquilo que nós considerávamos mais importante em toda a organização era
tentar criar uma atmosfera de amor entre nós que perdemos nossos pais no genocídio. Pois, se pudéssemos sentir amor, nos importaríamos uns com os outros e cuidaríamos uns dos outros. A novidade se espalhou rapidamente. Na primeira semana a AOCM ganhou 20 novos membros e na outra semana mais 20... Hoje a AOCM tem 1 800 famílias em sua associação e, todos juntos, somos 6100 órfãos, crianças e jovens. A AOCM construiu 112 casas
Como foi possível o genocídio? – É difícil de explicar como aconteceu o genocídio de Ruanda, mas eu vou tentar – diz Naphtal:
“Os povos hutus e tutsis viveram juntos em Ruanda por centenas de anos. Os hutus sempre foram a maioria, mas, por um longo período, Ruanda foi governada por reis tutsi. Desde o final de 1800 até 1962, Ruanda foi governada, primeiramen-
te, pelos alemães e depois pelos belgas. Os europeus governavam através do rei e deram muitos privilégios aos tutsis. Os tutsis receberam boa educação e bons empregos, enquanto os hutus não podiam ir à escola e seus empregos eram de
e apóia 600 órfãos fi nanceiramente para que eles possam ir à escola. Ela também ajuda outros a começar criações de porcos, salões de beleza, cafés e outras atividades através das quais seus membros possam se manter quando terminarem a escola. Todos precisam de alguém – No começo, nosso plano era que cada membro ajudaria com 100 Francos Ruandeses (0,18 dólares) por mês, mas não dá certo. A maioria de nossos mem-
trabalhos braçais. Fazendo assim, os europeus dividiram o povo de Ruanda, mas garantiram que os tutsis estariam do lado deles. O racismo e o ódio entre os hutus e os tutsis havia sido criado. Antes da independência, os belgas mudaram de opinião e passaram dar apoio aos hutus. Mas quando a independência chegou, em 1962, Ruanda passou a
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Todos têm o mesmo valor No começo, todos os membros ajudariam com 100 Francos Ruandeses (0,18 dólares) por mês, mas a maioria de nossos membros não consegue 100 Francos nem em um mês todo! Então, nós paramos com a contribuição mensal, para que ninguém se sinta diminuído em relação aos outros. Em vez disso, todos ajudam quando podem- diz Naphtal.
O mais importante é o amor
bros não possui esta quantia após um mês inteiro! Em vez disso, todos ajudam quando podem. Se alguém tem o que comer, então divide com quem não tem. Aqueles que têm dinheiro compram cadernos e lápis para os que estão em falta. Se alguém adoecer, nós o levamos ao hospital. Nós queremos ser como uma família de verdade. Nenhum dos que trabalham para a AOCM recebe salário, nem mesmo Naphtal, seu líder. – Primeiro, eu vou para o meu trabalho normal, depois trabalho na AOCM
nas tardes, noites e fi nais de semana. Eu me agarro ao telefone e corro de reunião em reunião com o governo, secretarias, organizações e pessoas ricas, tentando conseguir algum dinheiro para as crianças e jovens órfãos de Ruanda. Mas nunca é suficiente. Nos últimos anos, além do genocídio, nos deparamos com um outro problema: a AIDS. Pessoas estão morrendo de AIDS todos os dias e seus fi lhos estão ficando sozinhos. Nós fazemos o possível para ajudar, mas as necessidades são enormes.
Existem milhares de órfãos em Ruanda. Se eles não receberem nenhuma ajuda, vão terminar nas ruas e jamais terão uma chance de ir à escola. – Todos precisam de alguém. É por isso que nós começamos a AOCM e nós vamos continuar a lutar pelos direitos dos órfãos enquanto for necessário.
ser governada por pessoas que pensavam que todo poder deveria pertencer aos hutus. Elas passaram a se vingar dos tutsis por eles terem tido tantos benefícios por tanto tempo. Muitas das mesmas pessoas achavam que não deveria haver tutsis em Ruanda...de maneira alguma. Estas idéias permaneceram até 1994, quando os governantes hutus conse-
guiram enganar uma grande parte de seu povo, que passaram a matar seus vizinhos e amigos tutsis. O próprio governo entregou armas às pessoas simples, para que matassem tutsis.
poderia estar prestes a acontecer. Eles pediram que mais soldados da ONU fossem enviados, mas a ONU decidiu não o fazer. A França, que anteriormente havia treinado os soldados do governo, criou uma “zona de paz” no sudeste de Ruanda. Muitos dos responsáveis pelo genocídio foram para lá em busca de proteção e depois partiram em
O mundo abandonou Ruanda Em 1994, os funcionários da ONU a sede em Nova Iorque, que um genocídio
segurança para outros países. Eu acho que a ONU e o resto do mundo têm uma grande responsabilidade pela morte de tantas pessoas em Ruanda. A ONU poderia ter impedido tantas mortes, mas escolheu não fazer nada.”
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– A coisa mais importante tem sido criar uma atmosfera de amor entre nós que perdemos nossos pais no genocídio – diz Naphtal.
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O que é um genocídio? genocídio G
enócidio significa uma tentativa de exterminar um certo grupo de pessoas de uma área ou país. O extermínio dos judeus durante a Segunda Guerra Mundial (1939–1945) e o extermínio dos tutsis em Ruanda em 1994, são exemplos de genocídios. A palavra “genocídio” foi criada para descrever o holocausto – o extermínio de seis milhões de judeus e entre 200 000 e 600 000 ciganos durante a Segunda Guerra, pelos nazistas. Até mesmo homossexuais e outros grupos considerados de menor valor, foram assassinados. Anne Frank é uma das crianças que morreram no holocausto, ela recebeu póstumamente (depois de sua morte) o prêmio de honra (World’s Children Honorary Award) na primeira entrega do WPCRC no ano 2000 (leia mais sobre Anne no site www.childrensworld.org). Genocídios também aconteceram no Cambodia, ali foram assassinados 2 milhões de pessoas entre 1975–1979 e na Iugoslávia onde mais de 250 000 pessoas foram mortas entre 1992 e 1995. O que faz o mundo? Um dos propósitos mais importantes da ONU é evitar o genocídio, considerado o maior crime contra a humanidade. Em 1948, foi estabelecida
a Convenção para Prevenção e Repressão contra o crime de genocídio. Ali está escrito que o genocídio é um crime internacional e que os países que assinaram a convenção irão prevenir e punir quem o cometer. A ONU e o mundo falharam na prevenção do genocídio na Iugoslávia e em Ruanda. Mas depois do acontecido, a ONU estabeleceu Tribunais Internacionais para julgar e punir os responsáveis por genocídios. Em 1993, foi estabelecido o Tribunal Criminal Internacional para a Iugoslávia, em Haia, na Holanda e, em 1994 foi firmado o Tribunal Criminal Internacional para Ruanda em Arusha, na Tanzânia. Em 2002, foi fundado também o Tribunal Internacional da ONU (Internacional Criminal Court – ICC) em Haia, na Holanda. Com um Tribunal Permanente lá, a ONU espera descobrir e impedir rapidamente os genocídios, e até mesmo punir os culpados com mais rapidez. Em maio de 2005, 99 países se uniram para fazer parte do ICC, mas países como os EUA, a Rússia, a China e o Japão ainda não o fizeram. Isto significa que, pessoas destes países não podem ser julgadas no ICC.
“Todos nós precisamos de alguém. Foi por isso que abrimos a AOCM e vamos continuar trabalhando pelas crianças órfãs” – diz Naphtal.
Anne Frank
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Marie Grâce ao lado de sua casa destruída.
Marie Grâce adora sua casa AOCM Numa manhã de abril de 1994, todas as famílias tutsi foram atacadas no vilarejo onde Marie Grâce morava. A mãe e o pai dela foram assassinados e a casa deles completamente destruída. – Se nós não tivéssemos recebido uma nova casa da AOCM, teria sido praticamente impossível que eu e meus irmãos sobrevivêssemos – conta Marie Grâce.
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arie Grâce toca suavemente na parede quebrada de barro vermelho. Quando era pequena, ela morava ali, junto com seu pai e sua mãe. Eles tinham um lar de verdade. Agora, restam apenas ruínas. No chão, onde já fora o quarto da família e a sala, agora cresce mato e há lixo por toda a parte. Marie Grâce tinha apenas um ano quando seu vilarejo foi atacado. Ela não se lem-
bra de nada daquela época, mas, ainda assim, fica triste todas as vezes que vem aqui. – É muito triste. Eles destruíram nossa casa para mostrar que não nos queriam por perto. Milhares de pessoas perderam seus lares. Eu não consigo entender como uma pessoa pode fazer isso. E não entendo porquê. É muita estupidez. Depois de alguns instantes, ela caminha em direção a seu irmão mais velho,
Marie Grâce Nyiraminani, 12 Mora: Na vila da AOCM fora de Gitirama. Adora: Ser feliz. Odeia: A guerra. Pior que lhe aconteceu: Ter perdido meus pais. Melhor que lhe aconteceu: Quando ganhamos uma casa da AOCM. Quer ser: Enfermeira. Sonha: Ser rica e ajudar os órfãos pobres.
Diogène, que observa as bananeiras da plantação da família, há alguns metros da casa. Foi Diogène quem a salvou naquela manhã quando tiveram de fugir. Irmão preocupado – Ele me carregou e correu com todas as suas forças. Meus outros irmãos também
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Nenhuma diferença entre nós –Eu acho que os hutus e os tutsis deviam viver como vizinhos e amigos. Não há nenhuma diferença entre nós. Temos que parar de nos odiar. Eu não odeio as pessoas que mataram meus pais por serem hutus, mas porque mataram minha família – diz Marie Grâce.
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Jogando bananabol! Tayari, ou bananabol, é um jogo no qual duas pessoas ficam de pé, há 15 metros de distância uma da outra, e jogam uma bola feita de folhas de bananeira, uma para a outra. Entre estas duas jogadoras, ficam todos os outros que querem participar. Aquele que fica no meio tem de se desviar da bola, quando as outras duas pararem de jogar a bola uma para a outra e, de repente, tentarem acertá-lo. Se ele for atingido, sai do meio e troca de lugar com quem jogou a bola. – Além de jogarmos Tayari, nós também jogamos cartas aos sábados. Às vezes ficamos contando estórias e fazendo charadas. Aqui vai uma de minhas charadas – diz Grâce Marie : Qual é a casa sem portas que é feita por uma galinha branca? A resposta da charada está no final da página. Marie Grâce faz uma bola de folhas de banana.
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estavam conosco. Papai e mamãe tinham sido mortos, nossa velha casa destruída, e nós não sabíamos para onde ir. Finalmente chegamos a um campo de exilados para crianças sobreviventes. Ficamos ali três meses. Depois de um tempo, muitos dos assassinos, e até mesmo outros hutus, fugiram para o Congo, pois estavam com medo de represálias. Foi quando muitas das crianças, que sobreviveram ao genocídio, foram morar nas casas abandonadas. Assim também fi zeram Marie Grâce e seus irmãos. Ali, eles podiam morar de graça e comer bananas e verduras das plantações deixadas para trás. – Mas, depois de mais ou menos um ano, os exilados
começaram a voltar e nós fomos forçados a sair de lá. Tivemos que alugar uma casa na cidade e meu irmão fez tudo o que podia para que pudéssemos sobreviver. Foi muito difícil para ele conseguir dinheiro para o aluguel, comida e as outras coisas que precisávamos, pois não havia empregos na cidade. Nós vivíamos com fome e Diogène começou a ficar preocupado conosco. Salvos pela AOCM Há alguns anos, Diogène, irmão mais velho de Marie Grâce, e muitos outros que tinham perdido seus pais, entenderam que teriam de ajudar uns aos outros para poder sobreviver. Então começaram a cooperar com
a AOCM em Kigali. Em junho de 2003, aconteceu algo que mudou completamente a vida de Marie Grâce e seus irmãos. – Foi então que nós nos mudamos para nossa nova casa, na vila da AOCM. Ganhamos a casa de graça, não precisávamos pagar aluguel! Antes, todo nosso dinheiro ia para o aluguel, mas agora podemos comprar comida, roupa e outras coisas que precisamos. Nós jamais teríamos condições
de comprar uma casa por nós mesmos e se a AOCM não tivesse nos ajudado, teria sido muito difícil para mim e meus irmãos sobrevivermos. Nem por isso, a vida é fácil para nós agora, mas pelo menos ficou muito melhor. Quando Marie Grâce volta da casa antiga de sua família, ela corre até as bananeiras que ficam em uma ladeira, perto das casas da vila da AOCM. É sábado, e ela ainda tem um pouquinho de tempo para brincar,
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Visite a nova casa de Marie Grâce.
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Ikigurudumu antes de ir ajudar com a comida e fazer suas lições. Ela quer jogar “bananabol” ou Tayari, como é realmente chamado. Mas, primeiro ela deve fabricar a bola. Ela corta as folhas secas da bananeira e as junta num montinho no chão. Depois de pegar um número suficiente de folhas, ela senta na frente de casa. Ali, ela rasga as folhas em fitas fi nas, para depois as enrolar em camadas até que se forme uma bola. Ela molha as últimas fitas com água para dar uma boa forma à bola. Depois de 15 minutos, a bola está pronta.
Brinca com todos Marie Grâce brinca primeiro com sua irmã mais velha, Emma, que está de pé e joga a bola de volta. Depois, aparecem crianças de todos os lados, que querem brincar também. Muitos deles não moram na vila. – Nós que moramos aqui na vila da AOCM, somos tutsis, pois fomos nós que tivemos as casas destruídas em 1994. Mas as crianças que moram aqui perto são geralmente hutus. Nós brin camos juntos sem problemas. É a mesma coisa na escola. Eu tenho amigos tutsis e
hutus. Quando não estou pensando, nem sei quem é quem. Eu não vejo diferença nenhuma, nem me importo! Eu acho que todos têm o mesmo valor. Muitos adultos não pensam assim, mas deveriam. Se os adultos não começarem a pensar como nós, crianças tenho medo que haja guerra em Ruanda de novo.
Landouard, 12 anos, vem correndo pelo caminho entre as casas da vila da AOCM. Em uma das mãos, ele segura um brinquedo chamado Ikigurudumu. A brincadeira consiste em tentar rodar uma roda diante de si, com a ajuda de uma vara e um cordão, ao mesmo tempo em que se corre. – Eu mesmo fiz este aqui. Primeiro, peguei uma faca e cortei a roda de um pneu usado, que achei no ferro-velho. Depois fiz um cordão com alguns pedaços de roupa que eu amarrei. Por último, eu entrei na mata e trouxe uma vara, aí meu Ikigurudumu ficou pronto. Levei dois dias pra terminar. 51
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Bem-vindos a minha nova casa!
“Eu acordo todos os dias às 6h da manhã e faço a limpeza, dentro de casa e lá fora.”
“Este buquê de flores de sêda é a coisa mais bonita que temos em casa, penso eu.”
“Fazemos manteiga nessa cabaça que está pendurada na parede.”
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Porcos em casa própria...
“Lá no pátio nós lavamos as roupas, preparamos a comida e conversamos.”
Nas proximidades da casa de Marie Grâce, 20 porcos estão cavando e fuçando em sua própria casa. Os porcos foram um presente da AOCM para a vila. Todas as famílias na vila vão poder criar porcos para comer e para vender. – Eu gosto dos porcos e eu acho que eles podem nos ajudar a melhorar de vida – diz Marie Grâce. Dentro de pouco tempo vão chegar 1000 galinhas e 20 bodes para a vila da AOCM.
“Quando eu venho da escola, eu preparo a comida. Feijão e banana d’àgua, na maioria das vezes. Mas minha comida favorita é o arroz. Eu cozinho no fogo mesmo. Nós jantamos na sala.”
Meninas Primeiro Na vila onde Marie Grâce mora, a AOCM construiu 34 casas para 130 crianças que perderam seus pais no genocídio. No total, a AOCM construiu 112 casas em lugares diferentes em Ruanda. – Nós tentamos,
o tempo inteiro, conseguir mais dinheiro para construir mais casas, pois ainda existem muitos sem lugar para morar. Nós pensamos sempre nas meninas primeiro, porque elas são as mais expostas, por isso precisam
de casas. Na maioria das vezes, elas são forçadas a vender seus corpos aos homens adultos, para terem dinheiro para alugar um quarto ou uma casa para elas e seus irmãos mais novos. Muitas das meninas pegam AIDS e morrem.
Acontece quase todos os dias e, para trás, ficam crianças pequenas que têm que tomar conta de si mesmas sozinhas. Quando nós distribuímos comida e roupa, são também as meninas que ganham primeiro – conta Naphtal, líder da AOCM.
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Janvier está so O pai de Janvier e sua irmã foram assassinados no genocídio de 1994. Alguns anos depois, a mãe dele morreu em um acidente de carro. Desde então, ele mora nas ruas da capital Kigali. Milhares de crianças órfãs em Ruanda vivem como Janvier.
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anvier está cansado e com fome. Ele passou o dia no estacionamento ao lado da estação de ônibus, como costuma fazer. Janvier vai de carro em carro, estende a mão e diz: - Será que vocês podiam me ajudar? Eu preciso de dinheiro para comer... Mas hoje ninguém tinha dinheiro para lhe dar. Assim é quase todo dia. – Peço ajuda a todos, afinal todos parecem ter mais dinheiro do que eu. Alguns deles são bonzinhos, mas a maioria deles é má. Eles não me dão nada e dizem que eu deveria voltar pro meu vilarejo e plantar verduras em vez de pedir esmolas. É muito injusto, pois não tenho nem vilarejo nem terra para plantar. Eu fico com raiva e me entristeço quando os adultos dizem isso.Eu mesmo não quero viver assim, pedindo esmolas aos outros, mas como iria sobreviver de outra forma? – diz Janvier. Papai foi assassinado Quando Janvier tinha apenas dois anos, seu pai e sua irmãzinha foram assassinados no genocídio. Desde aquele dia, nada mais foi fácil para ele. – Minha mãe e eu tivemos muitas dificuldades sem o papai. Mamãe trabalhava duro na terra dos outros e conseguiu um dinheirinho para a gente se manter.
Depois que cresci, tentei ajudá-la ao máximo possível. Eu ia buscar água, lavava os pratos e fazia muitas outras coisas. Eu amava minha mãe de verdade! Mesmo sem muito dinheiro, ela pagou minha escola para que eu pudesse fazer a primeira e segunda séries. Mas, um dia, aconteceu aquilo que não podia acontecer. A mãe de Janvier morreu em um acidente de carro, e de repente ele ficou sozinho. – Eu chorei muito. Eu estava com medo e morria de saudades dela. Não tinha ninguém pra tomar conta de mim e eu não tinha a menor idéia do que fazer pra sobreviver. Onde é que eu ia arrumar comida? Onde é que eu ia morar? Forçado a deixar a escola Janvier não tinha dinheiro, por isso ele teve que deixar a escola que ele tanto amava. Depois disso, não demorou muito para que ele fosse forçado a sair da casa onde morava e acabar nas ruas. Desde aquele dia, ele sobrevive pedindo esmolas no centro da cidade. Começa de manhã cedo e vai até à noite. Todos os dias. – Eu não sei por quanto tempo fico aqui, mas eu odeio viver assim. A única coisa que eu quero é voltar para a escola, mas isso é impossível. Quem vai pagar
minha escola? Quem vai comprar meu uniforme e meus livros? Eu não tenho ninguém para me ajudar. São quase sete horas, o sol começa a desaparecer por trás das montanhas de Kigali. Ninguém deu dinheiro a Janvier hoje. Ele tenta uma última rodada perto dos carros, mas desiste logo. Ele já não tem mais forças. Mora nas calçadas Janvier deixa o estaciona-
Janvier Tuyishimire, 13 Mora: Nas ruas de Kigali. Adora: Jogar futebol. Odeia: Quando os adultos batem nas crianças.
O pior que lhe aconteceu: Quando mamãe e papai morreram. Deseja ser: Um homem de negócios bem sucedido. Sonho: Ter uma casa e um carro bonito.
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sozinho Crianças pobres apanham – Muitas noites na eu vou dormir sem ter comido nada o dia todo. Mas não importa quanta fome eu tenha, eu nunca iria roubar comida ou dinheiro. Se o povo te pega, te bate até morrer. Eu já vi várias crianças que vivem nas ruas apanharem muito dos adultos, até mesmo da polícia, por estarem roubando. Eu acho isso errado. Crianças pobres que vivem nas ruas, não têm culpa de roubarem. Elas estão com fome.
se encosta no poste. Esta é sua casa. E,logo mais, ele vai se deitar e tentar dormir. – Eu deito junto do semáforo porque a luz fica acesa a noite toda. Os rapazes maiores da rua vêm em cima de nós menores e tomam nosso dinheiro. Já aconteceu, muitas vezes, de eles me chutarem e me baterem e depois levarem aquilo que eu consegui durante o dia. Mas aqui perto do sinal, outras pessoas podem ver, se eles tentarem me machucar. Sozinho Janvier não tem cobertor, todas as noites ele sente muito frio deitado na calçada. Aí vem os duros pensamentos. Ele sabe que não tem futuro, afi nal de contas não está na escola. Ele também
sabe que jamais vai querer ter uma família nem ter fi lhos, pois morre de medo que eles terminem na rua, na mesma situação difícil que ele está. – Muitas vezes quando me sinto deprimido e sozinho me lembro de meu pai, minha mãe e minha irmã
que estão mortos. Eu tenho muita saudade deles. Mas eu tento sair dessa e parar de pensar. Não adianta. Minha mãe e meu pai jamais vão voltar para mim, não importa o quanto eu pense neles.
Ajudem as crianças nas ruas – Nós queremos que as crianças órfãs que vivem nas ruas sejam ajudadas e possam ir à escola-diz Naphtal, líder da AOCM. A UNICEF, órgão da ONU, crê que 7000 crianças vivem nas ruas em Ruanda.
TEXTO : ANDRE AS LÖNN FOTO : MARK VUORI
mento e vai em direção do semáforo no cruzamento onde ele costuma dormir. Muitos estão voltando do trabalho para suas casas. Em todos os lugares, entre carros e camelôs, movem-se pequenas gangues de crianças que vivem nas ruas. Mas Janvier está sozinho. Ele fica assim quase sempre. – É melhor ficar sozinho, pois têm sempre umas brigas rolando. Muitas das crianças que vivem nas ruas cheiram cola para esquecer que seus pais foram mortos, e se tornam violentas. Todos querem mostrar que são os mais fortes e que são os chefes da gangue. Quando Janvier chega ao semáforo, ele pega um pedaço de papelão que escondeu lá. Ele se senta no papelão e
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Jean-Claude é órf Jean Claude sabe que recebeu uma oportunidade que muitos órfãos em Ruanda apenas sonham. – Se a AOCM não tivesse me ajudado, eu teria terminado nas ruas e nunca teria a chance de ir à escola – diz ele. Hoje, Jean Claude toma conta de seus dois primos mais novos: Eric e Gloriose. Eles são uma família e a AOCM os ajuda.
A Jean-Claude Habineza, 14 Mora: Em Kigali com seus dois primos mais novos. Adora: Fred, Manchester United e a Mercedes-Benz. Odeia: A guerra e ficar sozinho. O pior que lhe aconteceu: Mamãe e papai terem sido mortos.
O melhor que aconteceu:
ssim que é liberado, Jean Claude vai da escola para casa. Kigali tem muitas ladeiras e, geralmente, ele demora uma hora no trajeto.Quando fi nalmente chega em casa, lá embaixo da ladeira, já são 14h30! Ele tem no máximo duas horas antes que seus primos Eric, 11 anos, e Gloriose, 12 anos, voltem da escola. Antes que isso aconteça, ele deve buscar água e começar a preparar a comida, ele está com pressa. Todos os dias da semana são assim.
Jean Claude troca de roupa e põe uma camiseta e uma bermuda, depois vai buscar o balde amarelo de dez litros. Eles não têm água encanada, por isso ele tem de subir até a “torneira do bairro”. Demora meia hora para ir e voltar. No caminho de volta, ele traz o balde na cabeça. É muito pesado. Assim que chega em casa, Jean Claude acende o fogo e começa a ferver a água. Ao mesmo tempo, ele prepara o feijão e as bananas d’água que comprou no mercado, ontem.
Perdeu sua família Finalmente a comida começa a borbulhar na panela e Jean Claude se dá por satisfeito: Ele conseguiu hoje também! – Oi pessoal! Tudo bem? Gloriose e Eric acabaram de aparecer. Jean Claude sorri. Nada o faz mais feliz do que ver seu irmãozinho e irmãzinha. Ele os chama assim, mesmo eles sendo primos, porque é assim que ele se sente com Eric e Gloriose. Jean Claude jamais vai esquecer do dia em que ele
Quando o genocídio acabou.
Quer ser: Mecânico de auto-
Jean Claude prepara as bananas d’água.
móveis ou ministro da ação social. Sonha: Que todos as crianças órfãs do mundo tenham seus direitos respeitados. A melhor rolha.
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rfão e “pai”
Manchester United é o melhor! Antes eu jogava futebol, mas depois do acidente de carro, eu manco um pouco e sinto dores na minha perna quando me esforço muito. Mas eu escuto muito rádio e tento acompanhar os times. Eu adoro futebol e o Mancehester United é meu time favorito.
descobriu que os dois existiam. Foi o dia mais feliz de sua vida. Antes disso, a vida era dura, injusta e solitária: – Minha mãe, meu pai e meu irmão mais velho foram assassinados no genocídio de 1994. Todos desapareceram e fiquei sozinho. Eu só tinha três anos na época. Alguém pode dizer que eu tive sorte, pois o tio de meu pai conseguiu me salvar. Nós escapamos pelo rio Akanyaru para o país vizinho, o Burundi, onde eu fui levado para um campo de exilados para crianças que tinham fugido de Ruanda. Depois de seis meses nos colocaram em vários ônibus de volta para casa. Eu me lembro que todos os ônibus estavam cheios de crianças. Quando chegamos em Ruanda, fomos levados para
uma enorme casa para crianças que tinham perdido os pais no genocídio. Novos desastres – Nos primeiros momentos, eu vivia esperando que a minha mãe viesse me buscar. Mas ela nunca veio. Depois de dois anos, eu compreendi que ela jamais viria. Eu entendi que ela também fora assassinada. Mas quando Jean Claude tinha 11 anos, tendo morado quase sete anos no orfanato, aconteceu algo que lhe deu nova esperança. – Minha tia Léocadie, que também tinha sobrevivido, conseguiu me encontrar e queria que eu fosse morar com ela. Claro que eu queria! Ela me amava muito e me tratava como seu próprio filho. Parecia
Meu bem favorito – Eu adoro meu rádio! Todas as noites, eu escuto as notícias e as estórias, porém, mais que tudo eu gosto de ouvir música. Meu artista favorito é Munyanshoza Dieudonné, ele também sobreviveu o genocídio. Ele canta muito sobre as coisas terríveis que aconteceram, mas também sobre o amor e uma Ruanda melhor, cheia de paz.
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Ouça Munyanshoza Dieudonné no site
www.childrensworld.org
A família AOCM
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oje Ange e Pamela vieram almoçar com Jean Claude e seus primos. – Vamos dividir o pouco que temos. Depois é nossa vez de comer com outras pessoas. É assim que funciona na AOCM. Todos os membros são pobres, mas nós tentamos ajudar uns aos outros o máximo possível. Quando nós não temos dinheiro nem comida, os outros órfãos dividem o pouco que têm conosco. Se alguma coisa grave acontece, ou se Eric e Gloriose ficarem doentes, eu peço ajuda a Naphtal ou aos outros líderes. Desse modo,
eu sempre consigo algum dinheiro para remédios ou para irmos ao hospital. Eu também vou às reuniões da AOCM três vezes por mês. Ali, nós tentamos encorajar uns aos outros a continuar com a vida, apesar de tudo que aconteceu. Nas reuniões, nós também contamos se estamos precisando de ajuda com dinheiro ou qualquer outra coisa. Não nos sentimos sozinhos, pois todos temos os mesmos problemas. Somos como uma família, não sobreviveríamos sem os outros – conta Jean Claude.
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Fazendo as lições à luz de vela. Jean Claude ajuda seus primos Gloriose e Eric o máximo possível.
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que eu havia encontrado uma nova mãe! Agora parecia que a vida, fi nalmente, ia ser boa de novo. Mas, mal tinha Jean Claude morado um ano com Léocadie, um acidente aconteceu. – Minha tia tinha problemas na visão e um dia, quando voltávamos do oftalmologista, o taxista perdeu o controle da caminhonete. Ele bateu de frente de uma árvore e minha tia morreu na hora. Eu feri gravemente a perna e passei seis meses no hospital. Uma nova família A AOCM tinha construído
a casa onde Jean Claude morava com sua tia antes do acidente. Quando ele saiu do hospital pode morar lá inteiramente de graça. Mas Jean Claude tinha perdido a vontade de viver. – A vida parecia sem sentido e injusta. Eu só queria morrer. Mas um dia, uma das vizinhas me contou que dois de meus primos mais novos ainda estavam vivos e moravam num orfanato. Primeiro, eu não acreditei que fosse verdade. Mas depois fiquei super feliz, pois pensava que estava completamente sozinho! Eu tinha morado no orfanato e sabia
como era. Mesmo que você tenha comida, um lugar pra morar ou até mesmo possa ir à escola, ainda existe aquele sentimento de que alguma coisa está faltando. Eu estava cansado de viver sozinho e eu queria dar ao Eric e a Gloriose uma chance de ter uma família de verdade. A AOCM prometeu ajudar Jean Claude a tomar conta de seus primos e ele tomou o ônibus para o orfanato. Ele contou para o diretor que Eric e Gloriose eram seus primos e que ele queria que eles fossem morar com ele em Kigali.
– O diretor concordou e meus primos ficaram muito felizes! Desde então, nós somos uma família. Estamos morando juntos 3 três anos e eu os amo. Um futuro Quando Jean Claude, Eric e Gloriose terminam de comer, já começa a anoitecer. Jean Claude acende uma vela e a coloca na mesa. Eles batem papo, riem baixinho, mas também dão gargalhadas. Depois de um tempinho, Gloriose e Eric trazem
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Jean Claude lava roupas nos finais de semana.
Tenta ser um pai – Na maioria das vezes, estamos muito bem. Mas alguns dias são muito difíceis. Começamos a pensar sobre por quê nossos pais foram mortos e coisas desse tipo. Eric e Gloriose ficam muito tristes e choram em dias como estes. Eu tento consolá-los sem mostrar que também estou triste. Mas, às vezes, eu me tranco em um outro quarto e choro quando eles não estão vendo. Eu também
seus livros e começam a fazer a lição de casa. Jean Claude os ajuda o quanto pode. Ele decidiu que, enquanto viver, vai fazer todo o possível para que eles continuem indo à escola. – Eu tenho uma responsabilidade muito grande, pois sou a única pessoa que eles têm. Eu tenho que me esforçar muito para fazer todas as coisas. Fico cansado na maioria das vezes, pois estou estudando e tomo conta de uma família. Nos fi nais de semana, lavo roupa e faço outras coisas em casa, quase
tenho saudade de minha mãe e de meu pai...muita saudade. Eu gostaria de ter pais como qualquer outra criança. Os pais podem dar tudo de bom para uma criança. Carinho, amor e um senso de que ela é parte de um lar em algum lugar. Eu tento fazer com que Eric e Gloriose tenham tudo isso. Isto é a coisa mais importante para mim – diz Jean Claude.
nunca tenho uma folga nesses dias. Mesmo a minha vida sendo dura, sei que eu tenho uma oportunidade que os outros órfãos de Ruanda apenas sonham em ter. Se a AOCM não tivesse me ajudado eu teria terminado nas ruas e jamais teria a chance de ir à escola. As crianças que vivem nas ruas e não estão na escola irão sempre sofrer pra sobreviver. Agora sinto que eu e meus irmãos temos um futuro.
Nós somos uma família Eu amo Jean Claude. Ele veio nos buscar e agora nós somos uma família. À noite, quando terminamos nossas lições, costumamos sentar, dizer charadas, contar estórias e brincadeiras uns para os outros. Nós rimos muito e eu me sinto bem- diz Gloriose. – Aqui está uma de minhas adivinhações: – Quem anda sempre falando consigo mesmo? Resposta no final da página. – Aqui vai um provérbio que eu aprendi: “ O passarinho que não tem coragem de voar, nunca vai saber onde o sorghum* mais gostoso cresce.” * Sorghum é um tipo de cereal, comum em Ruanda.
Resposta da adivinhação: A língua! 42-65 Rwanda.indd 59
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Jean-Claude
sonha ser Ministro da Aç O maior sonho de Jean Claude é ter um Mercedes azul e se tornar ministro da ação social para ajudar crianças órfãs.
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ean Claude está deitado, mexendo em um dos carros velhos da oficina da escola. Há uma semana, ele contraiu malária e por dois dias, não teve forças para ir à escola. Ele está feliz por estar de volta. – Eu adoro a escola. Quando eu estou aqui, aprendo várias coisas importantes para o futuro. Mas eu acho divertido também! Por algumas horas eu esqueço de tudo de ruim que aconteceu e não me preocupo com o futuro. Eu trabalho somente com os
carros que mais gosto. Meu carro favorito é o MercedesBenz. Não importa qual o modelo, apenas que seja azul – diz Jean Claude e ri. A classe de Jean Claude tem 45 alunos, e todos estão na oficina trabalhando com motores e carros nessa aula. Para Jean Claude, as horas passam rápido demais. Ele mal começou a trabalhar em seu carro e um dos professores já está chamando: – Descansem um pouco antes da aula de teoria mecânica, rapazes!
Jean Claude se levanta e limpa a sujeira de seu macacão. Ele vai ao pátio da escola, junto com os outros, mas queria mesmo era ter ficado na oficina trabalhando. Ele é muito grato à AOCM por ter lhe dado uma chance de ir à escola, e ele quer aprender o máximo possível lá. – Para mim seria impossível ir à escola se a AOCM não me ajudasse com as mensalidades escolares. Toma conta de si mesmo O curso de mecânica dura
dois anos, e quando Jean Claude terminar a escola, ele poderá trabalhar como mecânico de automóveis, se quiser. – Fui eu mesmo quem decidiu por este curso técnico. Para mim, ele é perfeito por várias razões. Os dias de aula são mais curtos aqui do que em escolas normais, assim eu tenho tempo de correr para casa e tomar conta de Eric e Gloriose. O curso em si mesmo é bem curto e eu ainda aprendo uma profissão. Se eu tiver sorte, vou conseguir emprego rápido e ter meu próprio dinheiro. Eu quero poder tomar conta de minha família sem ter que sempre
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Tentando uma amizade – Nós temos tutsis e hutus na minha sala de aula. Nós tentamos ser amigos apesar de tudo que aconteceu, mas não é tão fácil. Às vezes, tenho a impressão de estarmos apenas fingindo. Eu tenho medo de que aquilo que aconteceu em 1994 possa acontecer de novo, pois ainda não somos amigos de verdade – diz Jean Claude.
Ação Social pedir ajuda a alguém. Eu me envergonho de ficar pedindo ajuda todo dia e me sinto pequeno, de alguma maneira. Se eu conseguir um emprego, vai ser muito mais fácil para Eric e Gloriose terem uma vida melhor. Talvez, no futuro, eles possam até entrar na universidade! A única coisa que Jean Claude acha ruim em seu curso é que eles não estudam nenhum outro assunto além daqueles relacionados com carros e técnicas. – Eu acho que é importante aprender outras coisas também, por exemplo, como o mundo é, história e coisas desse tipo. Eu costumo pedir
emprestado livros de história e geografia de outros colegas que são de uma escola comum, e os leio à noite, antes de dormir. Sempre que posso eu tento ler jornais, pois eu quero estar por dentro do que acontece em Ruanda e nos outros países. Eu sou bastante interessado nessas coisas e, mesmo estudando para ser mecânico, o que eu gostaria mesmo de ser é Ministro da Ação Social de Ruanda. Assim eu poderia ajudar os órfãos a ter comida suficiente, um lugar para morar e uma escola.
600 menores recebem apoio “Nós acreditamos que a escola é a coisa mais importante que existe, para que alguém venha a ter uma boa vida. Agora mesmo, estamos apoiando economicamente 600 crianças e adolescentes, para que eles possam ir à escola. Isto desde o ensino fundamental até à escola técnica profissinonalizante e à universidade. Nós tentamos ajudar com as mensalidades escolares, transporte de ida e volta à escola, uniforme escolar e, algumas vezes, até com material escolar, como livros, cadernos e canetas. Entre aqueles que ajudamos, estão 146 adultos que foram forçados a deixar a escola por causa do genocídio de 1994. Nós lhes damos uma chance de completar o ensi-
no fundamental. No momento, não temos dinheiro para ajudar mais de 600 alunos, mas ajudamos muitos outros de outras maneiras. Nós queremos ser os pais que essas crianças perderam, tentamos fazer aquilo que seus pais fariam se estivessem vivos. Se uma criança apresenta dificuldades na escola e começa a faltar, por exemplo, nós a visitamos e tentamos descobrir o que há de errado. Encorajamos a criança a continuar na escola, mesmo estando difíceis com todas as dificuldades. Chegamos a visitar até mesmo outras escolas e conversamos com os professores, se for necessário, para que as crianças possam voltar a estudar”. Naphtal Ahishakiye, líder da AOCM
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Vestine quer perdoar os assassinos S
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Vestine olha para o lago Kivu, no sudeste de Ruanda. Do outro lado do lago, está o país vizinho, o Congo, que ela pode ver claramente da praia onde se encontra. – Aqueles que mataram minha família estão, provavelmente, escondidos nas florestas do Congo. Eu tenho medo de encontrá-los, mas espero fazê-lo algum dia – diz Vestine, 15 anos.
ão 11 horas da manhã em um vilarejo ao redor da cidade de Cyangugu, onde Vestine mora. Numa clareira, em frente à pequena escola, reuniram-se mais de 200 pessoas. A maioria delas já está sentada na grama, esperando há duas horas. Mas, apesar se serem tantos, o ambiente está quase em silêncio absoluto. Todos estão esperando que o “ Tribunal da vila” – ou Gacaca, como é chamado-comece. Vestine está sentada na parte de trás com um grupo de mulheres. Ela observa cuidadosamente tudo ao seu redor. O gacaca dessa semana é especial para ela. Hoje, ela decidiu contar sua história para todos os que estão aqui. E ela sabe que muitos dos que estão aqui ao seu redor , também estavam presentes quando quase toda sua família foi assassinada. Finalmente, Modeste, líder da reunião, limpa a garganta e diz: Vestine Uwinbabire, 15 – Hoje vamos começar Mora: Internato de Cyangugu, a falar sobre aquilo que aconteceu com a família de ao lado do lago Kivu. Vestine. Bem-vinda à frente, Adora: Ir à escola e dançar. Vestine. Odeia: A guerra. O pior que lhe aconteceu: Pais assassinados Ter perdido meus pais. O melhor que lhe aconteceu: Quando Vestine vai à frente, muitos olham com surpresa. A paz ter chegado em Não é comum que crianças e Ruanda. jovens apareçam no Quer ser: Médica. Sonho: Que nunca mais haja guerra no mundo inteiro.
“Tribunal da vila”. Mas Vestine já esteve lá duas vezes e hoje ela começa a contar sua hostória com voz fi rme. – Em uma manhã, todas as nossas casas foram queimadas e muitos tutsis foram assassinados. A matança durou muitos dias. Meu avô foi morto quando tentava se esconder entre as bananeiras. Depois de alguns dias, eles mataram meu irmão mais velho e minha avó. Minha mãe e meu pai foram assassinados aqui neste vale, exatamente atrás de nós – diz ela e aponta. Vestine conta os nomes de todas as famílias que foram mortas e até mesmo os nomes dos assassinos que ela conhece. Sua voz já não está tão forte e fi rme. Finalmente, ela começa a chorar. Muitos daqueles que a escutam tam-
bém estão chorando. Quando Vestine volta ao seu lugar, uma senhora vai à frente testemunhar. – Eu reconheço a dureza
Vestine conta as terríveis coisas que aconteceram com sua família.
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No tribunal da vila, o chamado Gacaca, chega a vez de Vestine falar sobre o que aconteceu com sua família.
Quando termina de falar, Vestine se entristece com as horríveis lembranças.
da situação ocorrida aqui na vila em 1994. Muitos tutsis tiveram suas casas queimadas e depois foram assassinados. Mulheres gritavam e crianças corriam para todos os lados. Eu mesma roubei roupas, telhas de zinco, aparelhos de TV e videocassetes dos tutsis que tinham se dado mal. Eu quero pedir desculpas e acho que todos os outros deveriam fazer o mesmo para que nós pudéssemos viver em paz uns com os outros. Pesadelos Depois do Gacaca, Vestine está cansada e triste. Muitas lembranças incômodas voltaram. – Mesmo eu tendo apenas quatro anos quando tudo aconteceu, eu ainda me lembro dos gritos e do sangue no chão.
– Eu ainda tenho pesadelos e acho muito difícil falar dessas coisas horríveis. Mas, acho ainda mais difícil guardar todos estes pensamentos e sentimentos só para mim. Me sinto melhor em poder conversar com outras pessoas que experimentaram as mesmas coisas. É por isso que eu vou para o Gacaca. Vestine também vai para lá por outras razões. Ela espera que aqueles que mataram sua família, um dia, estejam lá quando ela contar sua história. – Muitos dos assassinos estão escondidos no Congo, mas muitos estão na cadeia aqui mesmo em Ruanda. Quando eles forem soltos, vamos nos encontrar aqui no Gacaca. Eu fico com medo, pois sei que posso ser morta se contar a verdade.
Mas eu espero que, em vez disso, eles me peçam perdão. Eu jamais vou esquecer aquilo que eles fi zeram comigo e com minha família, mas eu quero tentar perdoar. Eu sou membro da AOCM e nós nos encorajamos a falar sobre nossas vidas no Gacaca e a perdoar aqueles que mataram nossas famílias. É difícil, mas eu creio que esta é a única maneira de podermos ter um futuro melhor em Ruanda. O grupo de dança À tardinha, Vestine começa a sentir-se melhor. Hoje à noite haverá ensaio do grupo de dança da AOCM. Essa é a coisa que ela mais gosta. Eles ensaiam no quintal da casa de um de seus amigos. Quando Vestine chega à casa, troca de roupa bem rápido e
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O grupo de dança é como uma grande família para Vestine. Eles compram comida, material escolar e roupas com o dinheiro de suas apresentações.
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corre ao encontro dos outros. Um dos rapazes começa a cantar e marca o tempo em um tambor. É uma canção de casamento e todos logo começam a cantar. As meninas dançam em fi la e se movem como uma cobra no pátio. Vestine está sorrindo. Quando ela dança, sente calma e todas as memórias horríveis que haviam voltado durante o “Tribunal da vila” pela manhã, começam a desaparecer. Depois de alguns instantes ela já não pensa nem no tambor, nem em seus amigos. Por alguns minutos, ela está apenas feliz. O grupo é minha família Fazer parte do grupo de dança da AOCM é muito importante para mim, especialmente quando eu me sinto triste e sozinha. Todos os
membros do grupo perderam seus pais e nós tentamos apoiar e encorajar uns aos outros. Nós somos como uma família. A maioria de nós começou a dançar ainda no orfanato, depois do genocídio. Somos um grupo de 62 pessoas, mas muitos estudam em outros lugares, por isso o grupo diminui no fi nal do semestre. Nós nos apresentamos em casamentos, festas e festivais. O dinheiro que nós ganhamos quando dançamos é compartilhado de maneira igual entre nós. Com o dinheiro, compramos material escolar, roupas, comida e outras coisas que precisarmos. Nossas músicas são sobre o genocídio, a AIDS, o Gacaca, a alegria, o casamento, o amor...enfi m, os mais variados temas. -diz Vestine.
Veja e escute Vestine e o grupo de dança, no site:
www.childrensworld.org
Salvo pelos hutus – No mesmo dia em que minha mãe foi morta, eu e quatro de meus irmãos fomos salvos por uma mulher hutu que se chama Francine. Ela era uma boa amiga da minha mãe. Quando chegamos à sua casa, já havia cinco crianças tutsi que também tinham sobrevivido. Francine tinha seus próprios filhos e não podia tomar conta de todos nós. Nós fomos divididos entre famílias diferentes. Eu terminei com uma mulher que se chamava Bibiane. Ela também era hutu. Quando a paz chegou, alguns meses mais tarde, eu e meus irmãos nos mudamos para um orfanato. Agora eu moro na escola internato aqui em Cyangugu.
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O que é o Gacaca? D
epois do genocídio de Ruanda, 100 000 pessoas foram presas por participarem do massacre e esperam por um julgamento. Apesar do estabelecimento do Tribunal Criminal Internacional para Ruanda em Arusha, Tanzânia e de outros Tribunais em Ruanda para tratar exclusivamente do genocídio, foi fácil compreender que iria demorar muito para julgar tanta gente. Levaria aproximadamente 100 anos! Em 2001 foi decidido, então, que se reestabeleceria um antigo sistema de “Tribunais das vilas”, os chamados Gacaca. A palavra Gacaca, significa algo como “sentar na grama”. Antigamente os moradores das vilas sentavam-se juntos e
tentavam resolver pequenas questões. Nos Tribunais modernos das vilas, 250 000 pessoas, escolhidas pelos habitantes de suas próprias vilas e comunidades, foram treinadas para atuarem como juízes nos novos Tribunais das vilas. Em Ruanda existem hoje, mais ou menos 11 000 tribunais Gacaca, que tratam de questões diferentes. Uma coisa é ter uma audiência e julgar pessoas que participaram do genocídio, outra, é escutar a história das vítimas. Espera-se que as vítimas e aqueles que cometeram os crimes possam de alguma maneira encontrarem-se e perdoarem-se.
Crianças em Ruanda Ruanda é um dos países mais pobres e menores da África. Ali vivem oito milhões de pessoas. Metade delas é composta de crianças abaixo de 18 anos. Muitas das crianças vivem em situação difícil. Uma entre cinco crianças morre antes de completar cinco anos de idade, e metade de todas as crianças em Ruanda é desnutrida. Crianças órfãs: 613 000 Crianças que são chefe de família: 101 000 Crianças fora da escola: 400 000 Trabalhadores infantis: 120 000 Meninos de rua: 7 000 Crianças abaixo de 14 anos com hiv/AIDS: 22 000 Crianças refugiadas no Congo(Kinshasa): 2 500 Muitas das crianças de Ruanda estão em péssimo estado psicológico desde o genocídio de 1994. Milhares delas foram vítimas de violência e abusos e outros milhares foram forçadas a assassinar e praticar violência, contra suas vontades. Muitas delas acabaram na cadeia.
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