NOMEADA • Páginas 67–91
Somaly Mam – Sua filha desapareceu, Somaly. Ela não estava na escola quando fui buscá-la. Eu não sei onde ela está! Somaly mal consegue respirar. Seu guardacostas telefona e Somaly teme que o pior tenha acontecido. A família vive sob ameaça constante de morte. A luta de Somaly pelas milhares de meninas vendidas como escravas no Camboja lhe rendeu muitos inimigos. O que fizeram com sua amada filha Champa?
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polícia começa imediatamente a procurar por Champa, 14 anos, entre as gangues criminosas donas dos bordéis da capital do Camboja, Phnom Penh. É lá que estão muitos dos inimigos de Somaly. Por todo o país, seus colegas de trabalho procuram dia e noite. Quando Champa está desa-
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Angkor Wat
Camboja
TEXTO : ANDRE AS LÖNN FOTO : PAUL BLOMGREN
POR QUE SOMALY É NOMEADA?
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Somaly Mam é nomeada ao WCPRC 2008 por sua longa e muitas vezes perigosa luta para salvar meninas vendidas como escravas para e nos bordéis do Camboja. Somaly, que foi vendida para um bordel quando criança, deseja que as meninas que foram escravas tenham as mesmas oportunidades na vida que as outras crianças. Através da organização AFESIP, ela construiu três lares seguros para as meninas que foram salvas da escravidão. Ali, elas têm alimentação, tratamento de saúde, um lar, chance de freqüentar uma escola e, mais tarde, acesso à educação profissionalizante. Sobretudo, Somaly oferece às meninas segurança, carinho e amor. 3.000 meninas que antes eram escravas, conquistaram uma vida melhor graças a Somaly. Ela e a AFESIP representam as meninas no Camboja e cobram constantemente do governo e das diversas organizações, para que cuidem das meninas do país. Somaly é freqüentemente ameaçada de morte. Em 2006, sua filha de 14 anos foi seqüestrada, estuprada e vendida para um bordel. Essa foi a punição de Somaly por sua luta em prol dos direitos das meninas.
parecida há 4 dias, a polícia telefona e diz que sua pista foi rastreada no norte do país, na fronteira com a Tailândia. Uma região conhecida pelo comércio de meninas escravas. Somaly segue direto para lá. Quando ela chega, a polícia já encontrou Champa em um bordel. Os seqüestradores a
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estupraram e depois a venderam para o bordel. O seqüestro de Champa foi uma experiência terrível para Somaly. – Eu não conseguia parar de chorar quando a abracei. Ela estava drogada e não me reconheceu. Eu tomei seu lindo rosto entre as mãos e lhe pedi perdão repetidamente. Doía tanto. Meus inimigos haviam feito mal à minha amada filha como retaliação contra mim. Ela havia sido obrigada a passar
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pelos mesmos abusos terríveis pelos quais eu passei durante tantos anos. Sem pai nem mãe A história de Somaly começa na floresta da montanha, ao leste do Camboja. Ela cresceu em um vilarejo, sem mãe nem pai. Ninguém sabia para onde eles haviam partido. O povo do vilarejo cuidou de Somaly. Sempre havia comida e um lugar para ela dormir na casa de alguma família. – Mas quando íamos dormir, eu via que as outras crianças se deitavam juntinho de suas mães. Eu me deitava sozinha e passava frio. Eu me sentia muito abandonada. Um dia, quando Somaly tinha nove anos, um homem chegou ao vilarejo para comprar madeira para vender na planície. Alguém no
vilarejo contou que o homem vinha da mesma cidade que o pai de Somaly. – Ele disse que conhecia meus parentes, e fiquei contente quando ele perguntou se eu queria ir com ele. Eu tinha esperança de encontrar meu pai lá na cidade. Nada foi como Somaly pensara. Ela não conseguiu encontrar o pai, e o homem, que Somaly havia passado a chamar de avô, deixou de ser gentil. – Ele não era casado e nem tinha filhos, portanto precisava de alguém para ajudar em todas as tarefas domésticas. Ele também precisava de ajuda para ganhar dinheiro para comprar bebida alcoólica. Tornei-me sua escrava. Eu tinha que me levantar às três horas toda manhã para buscar água no rio. Eu vendia a água para vários res-
taurantes que serviam sopa no café da manhã. Somaly caminhava por muitas horas com os pesados baldes d’água. Ao terminar, ela lavava a louça em um dos restaurantes, antes de correr para casa e fazer o almoço do avô. Durante o resto do dia, ela trabalhava para vizinhos que precisassem de ajuda nos campos de arroz. – Depois, eu ia toda noite para um lugar na cidade onde se fabricavam noodles. Lá, eu moia os grãos de arroz usando um pesado moinho de pedra para fazer farinha. Eu nunca chegava em casa antes da meia-noite. Se Somaly chegasse em casa com dinheiro suficiente para a bebida do avô, ele ficava bastante satisfeito. Caso contrário, ele ficava doido de raiva. – Ele me amarrava, me
açoitava com chibata e me chutava feito um louco. Vendida pela primeira vez Um dia, quando Somaly tinha doze anos, o avô lhe disse para ir buscar querosene para a lamparina na casa do comerciante. – Eu conhecia bem o comerciante. Ele costumava ser gentil e me dava doces. Porém, dessa vez, ele me bateu forte no rosto, arrancou minhas roupas e me estuprou. Depois, ele disse que me mataria se eu contasse para alguém. Ele também falou que meu avô lhe devia muito dinheiro. Agora eu sei que meu avô havia pagado sua dívida, permitindo que o homem me estuprasse. Essa foi a primeira vez que fui vendida. – À noite, me deitei sob uma grande mangueira e chorei. Eu sentia dores por
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fui espancada e estuprada pelo dono do bordel. Depois ele me trancou em um quartinho. Antes de sair, ele disse: ”Faça o que eu mando, ou então vou te bater e te estuprar todos os dias!” Somaly sonhava o tempo todo em fugir e, certa vez, ela conseguiu. Entretanto, eles a encontraram e, como punição, ela foi amarrada e abusada por vários homens durante mais de uma semana. - Eles conseguiram me domar. Eu tinha perdido, diz Somaly. Resgata a primeira menina Somaly ia em frente e tentava simplesmente sobreviver. Mas então ocorreu algo que mudaria sua vida. – Um dia chegou uma menina nova. Ela tinha só
todo o corpo e me sentia confusa e suja. Eu não entendia o que havia acontecido. Como não tinha ninguém com quem conversar, tentei falar com a árvore. Vendida novamente Um dia, quando Somaly tinha quinze anos, o avô disse que eles iam viajar para a capital, Phnom Penh,
dez anos. Ela tinha pele escura e era muito magra. Era como se fosse eu mesma que tivesse entrado por aquela porta. Eu sabia que essa menina seria arruinada como eu havia sido. Mas ela ainda podia ter uma boa vida. Logo lhe dei o dinheiro que eu tinha. Os donos e os vigias não estavam lá, e consegui deixá-la sair. Ela estava livre. Quando os donos perceberam a fuga, disseram que puniriam todas as meninas. – Porém contei que fui eu quem a libertou. Eles ficaram loucos de raiva e me bateram por muitas horas. Depois me trancaram em uma gaiolinha apertada para mostrar às outras o que acontecia com quem era desobediente.
para visitar os parentes dele. Todavia, ela foi enganada. A casa para onde o avô a levou não era de seus parentes, mas sim um bordel. Ele a havia vendido. De novo. – Quando entendi em que tipo de lugar eu tinha ido parar, tentei impor o máximo de resistência que pude. Eu me negava a atender ”clientes”. Como punição,
Somaly conversa com uma jovem garota e sua mãe. Somaly conta que a AFESIP está lá, caso as famílias precisem de ajuda.
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Salvou todas! Os anos se passaram. Somaly havia sofrido tantos maus tratos que não tinha mais autoconfiança e nem coragem de fugir. No fi nal, os donos do bordel confiavam tanto nela que a deixavam sair com seus clientes. Ela sempre voltava com o dinheiro. Durante um tempo, ela tinha um cliente americano rico que queria se casar com ela, mas ela não aceitou. Ela temia que ele a vendesse nos EUA. Antes de viajar de volta para casa, o homem deu 3.000 dólares a Somaly, para que ela pudes-
se começar uma nova vida. Era uma quantia enorme em dinheiro. Somaly podia comprar uma casa e ainda abrir um pequeno negócio. – Mas eu sabia que as outras meninas do bordel sofriam exatamente como eu. Desde que ajudei a primeira garotinha a fugir, meu sonho era libertar as outras também. Portanto, dei o dinheiro ao dono do bordel e ele concordou em libertar todas as dez meninas! Foi
Somaly brinca com uma menina de um bairro pobre. A AFESIP presta muita atenção nas meninas pequenas, pois o risco de que sejam vendidas para bordéis em breve é grande.
Medo do escuro – Detesto ficar sozinha no escuro. É nesse momento que todas as lembranças terríveis voltam. Adoro estar ao ar livre e brincar com as meninas no campo de arroz. Quando jogamos futebol, pescamos e caçamos caranguejos juntas, eu me sinto viva novamente, diz Somaly.
uma sensação incrível ver as meninas como pessoas livres! A primeira incursão Somaly conheceu um agente humanitário francês chamado Pierre. Ele a encorajou a começar uma nova vida. Ele disse que ela conseguiria. Eles se casaram, e depois de oito anos Somaly fi nalmente estava livre. Todavia, ela pensava o tempo todo nas
AComo FEa SIP organização de Somaly, a AFESIP, atua:
• Visitam os bordéis para ajudar as meninas que são obrigadas a trabalhar lá e para procurar meninas menores de 18 anos que foram vendidas como escravas. • Fazem incursões conjuntas com a polícia para libertar as meninas menores de 18 anos identificadas. • Ajudam as meninas a denunciarem aqueles que as venderam, compraram e abusaram delas. Também cuidam para que as meninas tenham advogados em casos de processos judiciais. • Proporcionam às meninas resgatadas um lar, alimentação, tratamento de saúde, ajuda psicológica, chance de freqüentar a escola fundamental e de, mais tarde, obter uma educação profissionalizante como estilistas ou cabeleireiras. • Ajudam as meninas a voltarem para suas famílias, quando possível. • Ajudam as meninas a começarem uma nova vida, oferecendo educação profissionalizante. Eles também fornecem os equipamentos de que as meninas precisam. A AFESIP visita cada menina durante pelo menos três anos para verificar se tudo vai bem. • Disponibiliza um telefone de auxílio para onde as meninas podem ligar 24 horas por dia. –O mais importante é que damos carinho e amor às meninas. Nada é mais importante do que isso. Assim, a maioria das meninas podem crescer fortes e cuidar de si mesmas, apesar de todas as experiências pelas quais passaram, diz Somaly.
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milhares de meninas que ainda estavam escravizadas nos bordéis. Todo dia, ela observava como meninas pequenas eram expostas a abusos terríveis. O sonho de Somaly era salvar todas as meninas da escravidão. – Conversei com Pierre sobre meus sonhos e nós decidimos fundar a organização AFESIP (em francês: Agir pour les Femmes en Situation Précaire – em português: Ação pelas Mulheres em Situação Vulnerável) para ajudar as meninas no Camboja. Somaly passou a visitar os bordéis em Phnom Penh. Ela ensinava às meninas sobre os cuidados com a saúde e como se proteger contra a AIDS. Ela levava as meninas doentes para o hospital. Os donos dos bordéis queriam garotas saudáveis, e deixavam Somaly fazer visitas freqüentes. O que eles não sabiam, era que ela sempre procurava por meninas menores de dezoito anos e que haviam sido vendidas como escravas. Logo a AFESIP fez sua primeira incursão conjunta com a polícia para salvar uma das
meninas que Somaly havia descoberto. Era uma garotinha de quatorze anos chamada Srey, que era mantida drogada. Somaly e Pierre cuidaram de Srey em sua casa. Com o tempo, vieram mais e mais meninas morar com eles. Todo o dinheiro que tinham foi usado. Somaly entrou em contato com todas as organizações assistenciais que conhecia e lhes pediu ajuda financeira para salvar as meninas. Após um ano, em 1997, Somaly finalmente conseguiu ajuda e teve a oportunidade de abrir um pequeno centro onde podia cuidar das meninas que eram resgatadas. Vale a pena morrer por essa causa Onze anos se passaram desde a fundação, e mais de 3.000 meninas foram salvas da escravidão e conquistaram uma vida melhor graças ao trabalho duro de Somaly e da AFESIP. Hoje, eles têm três lares seguros onde vivem 150 meninas resgatadas. Atualmente, a AFESIP conta com centros na Tailândia, no Vietnã e no
Laos. Entretanto, Somaly tem muitos inimigos e vive sob constante ameaça de morte. Ela recebe telefonemas ameaçadores no meio da noite, carros a seguem e os lares para as meninas resgatadas da AFESIP sofrem ameaças de bombas. Alguém incendiou sua casa, e Somaly tem que andar sempre acompanhada de guarda-costas. Ela é obrigada a viajar regularmente para o exterior, quando se torna perigoso demais ficar no Camboja. – Dizem que o tráfico de escravas rende mais dinheiro que o tráfico de drogas. Por isso, é difícil e perigoso acabar com ele. Os donos de bordéis, a máfia, certos policiais, juízes e políticos que ocupam altos cargos ganham muito dinheiro com o tráfico de meninas. Certas pessoas acreditam que pelo menos 20 mil meninas menores de dezoito anos sejam mantidas como escravas no Camboja. Somaly não irá interromper sua luta pelos direitos delas. – Eu quase desisti quando minha filha, Champa, foi seqüestrada e vendida para um bordel. Porém, ela me
– A única coisa que realmente me deixa contente é ver as meninas voltarem a brincar e rir. Aí eu também fico feliz! diz Somaly.
disse com tranqüilidade que eu deveria continuar. Champa disse que tinha a mim, e que ficaria bem apesar de tudo. Mas ela não sabia o que seria das outras meninas se eu desistisse. As palavras dela me deram força para seguir adiante. As meninas me chamam de mãe e eu realmente sinto como se elas fossem minhas filhas. Eu as amo. As garotas e eu passamos por experiências semelhantes, portanto eu sei do que elas precisam. Segurança, carinho e amor. Como eu poderia desapontá-las ou abandoná-las? Sei que posso ser assassinada a qualquer momento, mas lutar para que as meninas possam ter um bom futuro é uma causa pela qual vale à pena morrer.
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Camboja duramente afetado A partir de 1963, guerras sangrentas irromperam no Camboja, devastando casas, estradas e terras cultiváveis e matando muitas pessoas: Durante a guerra dos EUA contra o Vietnã (1959– 1975), o vizinho, Camboja, também foi atingido. Entre os anos de 1969 e 1973, os EUA lançaram mais de 500 mil toneladas de bombas sobre o Camboja. Determinadas regiões do país foram totalmente destruídas e centenas de milhares de pessoas foram mortas. Entre 1975 e 1979, o partido comunista do Camboja, o Khmer Vermelho, tomou o poder no país. O líder do partido se chamava Pol Pot. Durante esse período, quase 2 milhões de pessoas morreram de fome e foram submetidas ao trabalho forçado, à tortura ou assassinadas. Até mesmo crianças foram mortas. Milhares de pessoas desapareceram sem deixar rastros. – Muitos dizem que meu pai foi levado pelo Khmer Vermelho e desapareceu, mas ninguém tem certeza sobre o que ocorreu, diz Somaly. O crime do Khmer Vermelho contra o povo do Camboja é considerado um dos piores genocídios da história da humanidade. (Leia mais sobre genocídio no site www.childrensworld.org)
A guerra e a violência tornaram o Camboja um dos países mais pobres do mundo na atualidade. Um terço da população do país vive com menos de 1 dólar por dia. Quase metade (45%) das crianças cambojianas são subnutridas. – A guerra e a violência não apenas tornaram o Camboja muito pobre, mas também destruíram as pessoas. Muitos perderam a noção de certo e errado. As pessoas se tornaram brutais, e se importam apenas com sua própria sobrevivência. A vida de outra pessoa não tem tanto valor. Acho que é por isso que tantas famílias vendem suas próprias filhas para bordéis como escravas. As meninas são as mais atingidas, porque, do ponto de vista cultural, uma menina vale menos do que um menino no Camboja. Uma menina muitas vezes é vista como uma escrava, que pode ser usada tanto pela família quanto por outros adultos. Nós lutamos para que meninas e meninos tenham o mesmo valor, diz Somaly.
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Sreypao
foi vendida como escrava Aos sete anos de idade, Sreypao foi vendida como escrava para um bordel por sua própria mãe. Foi o início de um longo pesadelo. – Acho que eu teria morrido se Somaly não tivesse me ajudado. Ela salvou minha vida e eu a amo por isso. Somaly é minha nova mãe, diz Sreypao.
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qui tem um! Venha cavar aqui! Depressa! Sreypao corre o mais rápido que consegue até as meninas ajoelhadas no campo de arroz um pouco adian-
te. Hoje é ela que está com a pesada pá de ferro usada para desenterrar os caranguejos dos buracos fundos na lama. Durante a estação chuvosa, Sreypao e as outras garotas, que moram no lar para meninas resgatadas de Somaly, saem à procura de caranguejos quase toda tarde. Sreypao observa as garras saindo da lama. Ela cava em torno do caranguejo com fi rmeza e cuidado, para ter certeza que não irá perdê-lo.
Sreypao, 16 Mora: No lar de Somaly para meninas resgatadas. Ama: A vida! Detesta: Que seja possível comprar e vender seres humanos. O pior que já lhe aconteceu: Ser vendida como escrava para um bordel. O melhor que já lhe aconteceu: Quando Somaly e a AFESIP me salvaram. Admira: Somaly! Ela salvou minha vida! Quer ser: Como Somaly, e salvar meninas da escravidão.
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Muitas vezes faminta – Meu pai morreu quando eu tinha um ano. Minha mãe tentava cuidar de mim e de meus cinco irmãos. Não era fácil para ela. Eu era a filha mais velha, por isso tinha que ajudar bastante. Eu cozinhava, lavava a louça, cuidava dos irmãos menores, fazia de tudo um pouco. Eu trabalhava nos campos de arroz dos vizinhos para ganhar um dinheiro extra. Muitas vezes, passávamos fome. Às
vezes comíamos uma vez por dia, às vezes não comíamos nada, lembra Sreypao. Um dia, quando ela tinha sete anos, uma mulher e um homem vieram visitar. Sreypao nunca os tinha visto antes. O casal disse que podia ajudar a família, empregando Sreypao como trabalhadora doméstica na casa de um parente deles na capital, Phnom Penh. – Minha mãe acabou concordando com a proposta e eu também. Eu queria ajudar, pois sabia que precisávamos de todo o dinheiro que pudéssemos conseguir. Sreypao começou a se preocupar quando eles se aproximaram de Phnom Penh. Ela nunca havia estado em uma cidade grande antes. A mulher e o homem foram gentis e disseram que não havia nada a temer.
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Depois ela enfia a mão na lama, tão rápido quanto um raio. – Não foi tão mal, hein? grita ela, pulando e chacoalhando o caranguejo o mais próximo que consegue dos rostos de suas amigas. Sreypao ri. Entretanto, durante muito tempo não havia alegria em sua vida.
“Nós te matamos!” Mas assim que entraram na casa, o homem e a mulher mudaram completamente. – Eles me jogaram em um quartinho e trancaram a porta. Eu fiquei com medo e comecei a chorar. Eu não
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O que é preciso para uma boa caça a caranguejos?
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... e amigos!
O maior templo do mundo! Uma pá de ferro...
O templo budista na camiseta de Khema se chama Angkor Wat e fica no noroeste do Camboja. Ele foi construído no século XII e é a maior construção religiosa do mundo. Todos no Camboja se orgulham muito do templo. O Angkor Wat está estampado até mesmo na bandeira e nas cédulas do país! Às vezes, as meninas resgatadas por Somaly e pela AFESIP fazem um passeio até Angkor Wat.
... um balde...
O guarda-roupa de Sreypao Cada uma das meninas do lar de Somaly tem seu armário no quarto, onde guardam todas as suas coisas. No armário de Sreypao há:
– Além disso, é claro que tenho minhas roupas no armário. Eu adoro roupas!
Uma bolsa escolar, com livros e canetas. Um sabonete. Um vidro de xampu. Uma escova de dente. Um creme dental. Um prato e uma colher. Um travesseiro. O colchão de palha colorido onde ela dorme, fica inclinado contra a parede em um canto do quarto, pois não cabe no armário. 76
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entendi nada e gritei: ”Por que vocês me trancaram? Eu vim para cá trabalhar como doméstica!” Então eles disseram: “Pare de gritar! Se você não se calar, vamos te matar!” Fiquei morrendo medo e quis voltar para casa. Os dias se passaram e Sreypao não foi libertada. Davam-lhe água, mas nada para comer. Depois de uma semana, o homem veio até ela e disse: “Cuide de um cliente”. – Eu disse que não sabia o que aquilo significava. Eu pensava ter ido para lá para limpar a casa e lavar a louça. O homem ficou furioso e mandou quatro homens entrarem no quarto. Eles rasgaram minhas roupas e me bateram com cinto e fios elétricos por todo o corpo. Depois eles me fi zeram um mal terrível. Na época eu não sabia o que era aquilo. Agora sei que eles me estupraram. Eu chorava e pedia
O uniforme escolar...
que eles parassem. Por fi m, acabei desmaiando. Escorpiões e aranhas – Acordei com eles me jogando água e perguntando se eu ia “cuidar de um cliente”. Quando eu disse que ainda não entendia o que aquilo queria dizer, eles me trancaram em outro quarto. O quarto estava cheio de aranhas, escorpiões e animais venenosos. Depois de alguns dias, eu tinha ferimentos no corpo todo e fiquei muito doente. Eu chorei e gritei pela minha mãe, mas eles apenas disseram: “Não adianta, ela não te ouve. Ela não vai te ajudar!”. Eu não entendia o que estava acontecendo. Eles não me deixavam sair nem quando eu precisava ir ao banheiro. Até que não consegui mais segurar. Fui obrigada a fazer na roupa ou no chão. Quando os homens viram o que havia
... as roupas tradicionais que usamos para costurar e tecer. Foram as meninas que moram no lar de Somaly para garotas um pouco mais velhas que fizeram as roupas. Elas vão ser estilistas, e fazem roupas muito bem!
ocorrido, ficaram loucos da vida e gritaram: “Por que você não avisou?”. Eu fui punida. Eles me bateram e me açoitaram novamente.
aguardava quando senti que não conseguiria. Não mais uma vez. Eu ia fugir a qualquer preço. Mesmo que eles me matassem.
Desistiu – Por fi m, acabei desistindo. Eu não agüentava mais apanhar, e acabei concordando com o que eles me pediram. Mas nada melhorou, muito pelo contrário. Descobri que “cuidar dos clientes” era a mesma coisa. Estupro e agressão. Durante noites inteiras e com muitos homens diferentes. Em pouco tempo, parecia que meus sentimentos haviam sido destruídos de alguma forma. Como se eu estivesse morta. Sreypao foi vendida para outros bordéis. Uma noite, quando tinha onze anos e era escrava em diferentes bordéis há mais de quatro anos, ela tomou uma decisão. – Um novo “cliente”
A fuga Sreypao perguntou se podia comprar um bolo na loja da esquina antes do próximo cliente. Eles permitiram, mas dois homens iriam junto, como vigias. – Então eu disse que, se estavam com medo que eu fugisse, talvez fosse melhor eles irem comprar o bolo, enquanto eu esperava em frente ao bordel. Os homens nunca imaginaram que eu sairia dali. No entanto, assim que eles viraram as costas, eu corri o máximo que pude. Quando virei, vi que eles haviam me descoberto e estavam me seguindo. Eu chorava e meu coração batia forte.
Minhas roupas de ginástica...
... e minhas roupas preferidas. Eu ganhei a saia e as calças de Somaly. São as melhores coisas que tenho!
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Juntas. As meninas nunca saem sozinhas, elas cuidam umas das outras para que nada de mal aconteça. – Eu olhei para trás de soslaio e corri direto até trombar com um casal que caminhava. Eles viram que eu estava chorando e perguntaram o que houve. Expliquei o melhor que pude, e eles disseram que podiam me ajudar. Eles me mandaram subir depressa em sua motocicleta. Eu tinha muito medo de ser vendida novamente. Porém, o casal trabalhava para a AFESIP e estavam em sua ronda noturna usual no
Coentro para a sopa de caranguejo.
Caldo Tom Yam
parque, à procura de meninas que precisam de ajuda! O resgate – Quando chegamos à AFESIP, todos foram muito gentis comigo, e entendi que estava salva. Somaly me abraçou e disse que tudo ficaria bem. Eu confiei nela imediatamente. Eu sentia que ela entendia exatamente
pelo que eu tinha passado. Ganhei um sabonete e roupas limpas. Um médico me examinou e depois me encontrei com um psicólogo. Foi uma sensação muito boa poder falar sobre todas as coisas terríveis que haviam acontecido. Após quatro meses, Somaly quis saber se Sreypao não tinha vontade de se mudar
A mãe da casa, Sochenda, ajuda Sreypao a fazer a sopa.
para sua casa na zona rural e freqüentar uma escola. – Fiquei muito feliz. Imagine, poder deixar Phnom Penh e todas as lembranças ruins! E eu nunca havia tido chance de ir à escola. O dia em que entrei na sala de aula foi o mais feliz de minha vida. Agora já faz quase cinco anos que Sreypao mora no lar para meninas resgatadas de Somaly. – Sinto-me totalmente segura aqui. Somaly, nossa mãe da casa e todas as outras pessoas da AFESIP nos dão muito amor. Nós, meninas, somos como uma família e cuidamos umas das outras. Às vezes conversamos sobre todas as coisas terríveis que aconteceram. Toda quinta-feira, uma psicóloga vem aqui para nos ajudar. Tentamos fazer coisas divertidas e pensar em tudo de bom que pode acontecer no futuro.
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Somaly, minha nova mãe! – Tenho certeza de que minha mãe sabia que estava me vendendo para um bordel. Ela me mandou sair da sala quando o homem e a mulher chegaram, para que eu não ouvisse o que falavam. Não sei quanto dinheiro ela recebeu por mim. É claro que minha mãe era pobre, mas mesmo assim não entendo como alguém pode vender sua própria filha. A AFESIP me
O mesmo valor Sreypao quer lutar pelos direitos das meninas no futuro. Assim como Somaly, ela quer fazê-lo contando sua própria história. – Para que essa situação mude, os rapazes têm que mudar. Há algo muito errado quando alguém pensa que pode se aproveitar de meninas e mulheres, como fi zeram comigo. Eles não têm coração? Eles gostariam que suas fi lhas, irmãs, esposas ou mães fossem tratadas dessa forma? Os rapazes precisam começar a ver as meninas de outra forma. Eles têm que entender que temos o mesmo valor e deve-
ajudou a encontrar com minha mãe algumas vezes. Porém, ainda tenho raiva dela e não quero morar lá nunca mais. Na verdade, eu gostaria que ela fosse presa, mas não posso denunciá-la. Seja como for, ela é minha própria mãe. Apesar de que, agora, Somaly é minha nova mãe! Ela me ama e diz que vai me ajudar a realizar meus sonhos.
– Meu primeiro dia na escola foi o melhor dia da minha vida! diz Sreypao.
mos ser tratadas com respeito! Quero falar nas escolas sobre o que me aconteceu. Se os meninos tiverem a chance de ouvir minha história, talvez eles pensem e comecem a tratar melhor as meninas. É
difícil contar aos outros sobre todas as experiências terríveis pelas quais passei, mas Somaly me ajuda a ter coragem!
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meninas resgatadas em três lares – Quando me sinto triste e cansada, vou para o lar de meninas onde Sreypao mora. As meninas me dão força e vontade para continuar lutando. Eu as amo! Nós somos boas umas para as outras, diz Somaly. O lar é para as meninas mais jovens resgatadas da escravidão. Há 39 meninas morando lá no momento. A mais nova tem apenas sete anos. Quando as meninas terminam o ensino fundamental, a maioria se muda para um dos outros dois lares de Somaly para garotas um pouco mais velhas. Lá elas podem fazer os cursos profissionalizantes da AFESIP e se educarem como estilistas ou cabeleireiras. Elas também podem estudar matemática e khmer, o idioma falado no Camboja. – Quero começar o curso de cabeleireira, diz Sreypao. No momento, um total de 151 meninas resgatadas moram nos três lares.
– Se alguma de nós precisa de ajuda ou tem vontade de fazer alguma coisa, como um piquenique, podemos escrever uma carta e depositá-la na caixa secreta. Só Somaly tem a chave dela. Ela lê todas as cartas. Como Somaly passou pelas mesmas coisas que nós, ela entende como nos sentimos e o que precisamos. Eu escrevi uma carta e pedi que minha irmã mais nova pudesse morar aqui. Tenho medo que nossa mãe a venda. Somaly prometeu que ela poderá vir para cá, e estou imensamente feliz por isso. A chave para os sonhos das meninas...
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Um dia no lar para m – Bom dia, garotas! Vocês dormiram bem? Ainda está escuro lá fora quando a mãe da casa, Sochenda, acorda as meninas na bela casa de madeira construída sobre palafitas…
05:30 05:00 Ginástica da manhã Aquelas que têm boa disposição de manhã tentam animar as demais. Todas tiram os pijamas e vestem roupas de ginástica, descem as escadas e se posicionam no jardim. Então é hora da dura ginástica matinal, durante pelo menos meia hora toda manhã.
Banho Depois do exercício, todas tomam banho e escovam os dentes.
06:30 Para a escola Todas vestem o uniforme escolar. – Sempre ajudamos umas às outras quando vamos para a escola. Principalmente nós, que somos um pouco mais velhas, cuidamos para que os uniformes das meninas mais novas estejam corretos e que elas não esqueçam seus livros, diz Sreypao.
07:00
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Café da manhã Antes do café da manhã, as meninas vão até seus armários no quarto de dormir e pegam seus próprios pratos e colheres. – Hoje temos arroz e feijão, mas meu café da manhã preferido é peixe com legumes. A comida é uma delícia e nunca fico com fome, diz Srey Moch, 11 anos. Depois do café da manhã, cada uma lava seu prato e sua colher.
Aulas – Eu adoro estar na escola. Concentro-me para aprender coisas para o futuro e assim não tenho tempo para pensar sobre todas as coisas horríveis que aconteceram. Não freqüentei uma escola até os 11 anos de idade, porque era escrava em um bordel. Agora estou na quinta série, apesar de ter dezesseis anos. Se a AFESIP não tivesse pagado meu uniforme e livros, eu nunca teria tido condições de ir à escola, diz Sreypao.
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Siesta Hora de descansar. É bom poder subir para casa e deitar para ler ou dormir quando está tão quente lá fora.
Limpeza As meninas se revezam na limpeza da casa e do jardim. Algumas ajudam a preparar o jantar. Quem precisa, tem aulas extras com um professor da AFESIP.
11:00 Almoço Todas as meninas voltam para casa e almoçam. 80
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Tecelagem Toda tarde, as meninas aprendem a tecer e costurar na máquina. – Quando me mudar daqui, gostaria de fazer o curso de corte e costura da AFESIP. Quero ser uma ótima tecelã para poder me sustentar quando for adulta, diz Chitra, 13 anos.
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Dever de casa A maioria jogam futebol, brinca de esconde-esconde e caça caranguejos no campo de arroz. Outras lavam suas roupas, tomam banho e fazem o dever de casa. Às 18:30 o gerador é ligado para a casa ter eletricidade. Assim, as meninas não precisam fazer o dever de casa no escuro, apesar de morarem na zona rural, onde geralmente não há eletricidade. – Nós nos ajudamos com os deveres de casa. Se tiver alguma coisa que você não entende, sempre tem alguém que sabe explicar. Quero ser médica quando crescer, portanto sei que preciso estudar muito, diz Leng, 11 anos (à esquerda), que estuda ciências junto com Sopheap, 12 anos, (à direita).
Hora do Filme! Somaly acredita que é bom para as meninas assistirem TV de vez em quando, para saberem o que está acontecendo ao seu redor, no Camboja e no mundo. – Mas prefiro assistir filmes engraçados, que me fazem rir bastante! diz Sreypao.
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Hora de dormir sob o mais longo (?) mosquiteiro do mundo Todas pegam seus colchões de palha. Elas esticam os colchões lado a lado em duas fileiras no chão. Depois, algumas meninas cobrem os lugares de dormir com dois enormes mosquiteiros. Os cortinados têm mais de dez metros de comprimento e protegem as garotas de pegarem malária. Pouco antes de o gerador ser desligado e da luz se apagar, a mãe da casa, Sochenda, vem dizer boa noite. – Ela faz isso toda noite. Ela realmente se importa conosco, como uma verdadeira mãe, diz Sreypao.
Hora do terror… De vez em quando, alguma das meninas acorda de seus belos sonhos com alguém acariciando sua perna ou seu cabelo. Se olhar para cima nesse momento, ela fitará um par de olhos mirando-a fixamente e ouvirá uma gargalhada terrível… – Às vezes, quando as outras já dormiram, eu saio, me pinto e me transformo no fantasminha da casa! Volto para o quarto silenciosamente e escolho uma boa vítima. Primeiro, eu seguro seu pé cuidadosamente... Depois, a puxo para fora do mosquiteiro com toda força, ao mesmo tempo que dou o urro mais alto que consigo. Todas acordam e correm em volta do quarto, gritando. Eu adoro me fantasiar e, se fosse possível, gostaria de participar de um grupo de teatro de verdade no futuro. Esse é o meu sonho, diz Kanha, 19 anos.
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Meninos mais amados
– Fiquei super triste quando meu irmão entrou na escola, enquanto eu fui obrigada a ficar em casa e trabalhar, conta Ly, 13 anos, que mora em dos lares para meninas resgatadas de Somaly.
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qui no Camboja nós, meninas, temos muito mais deveres em casa do que os meninos. Já aos 5 anos de idade, temos que começar a lavar louça, cozinhar, costurar, limpar a casa, trabalhar no campo de arroz e cuidar de nossos irmãos menores, para que nossos pais possam trabalhar. Os meninos nunca precisam fazer esse tipo de coisa. Tudo o que eles fazem é brincar! Quando os pais pedem a ajuda de seus fi lhos e o menino não quer, não há problema. Ele não é obrigado. Porém, se a menina se recusar, eles ficam terrivelmente bravos. Eu acho injusto e fico com raiva só de pensar nisso. Os meninos deveriam ajudar as meninas. Se ajudássemos uns aos outros, as tarefas seriam feitas com mais rapidez e assim as meninas também teriam tempo livre. É claro que também gostamos de brincar!”. O filho na escola Se uma família é pobre e os pais têm que escolher entre mandar o fi lho ou a fi lha para a escola, eles quase
sempre escolhem o menino. Foi assim comigo. Fiquei decepcionada quando meu irmão entrou na escola e eu fui obrigada a ficar em casa e trabalhar. Os pais acreditam que os meninos terão condições de conseguir um emprego melhor e poderão sustentar a família mais tarde. Já as meninas só são capazes de realizar as tarefas domésticas. Porém, acredito que podemos fazer as mesmas coisas que os meninos se tivermos chance. Nós também podemos trabalhar em escritórios e sermos chefes! Para termos uma vida melhor, é importante freqüentarmos a escola como os meninos. Eu adoro ir à escola! Aqui no centro, sempre conversamos sobre como a vida é mais difícil para nós, meninas, do que para os meninos. Espero que isso mude para as meninas terem uma vida melhor no futuro. Mas acho que isso vai demorar, pois todas as famílias do Camboja parecem amar mais seus filhos do que suas filhas. Não entendo porquê.”
Vida de risco para meninas – Detesto ter medo só porque sou menina, diz Oudom, 15 anos, que vive em um dos lares para meninas resgatadas de Somaly. “
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o Camboja, estamos expostas a mais perigos do que os meninos. Se sairmos do lar, podemos nos envolver em problemas muito sérios. Podemos ser estupradas, seqüestradas e vendidas para bordéis e sermos exploradas por adultos de todas as formas possíveis.
Por isso, muitas meninas não querem, ou ousam, arrumar um emprego fora de casa. Eu me sinto exatamente como elas, e detesto sentir isso. Deveríamos poder circular livremente, sem medo. Isso deveria ser um direito de todos! Aqui no centro de Somaly,
cuidamos umas das outras para que nada de mal aconteça a nenhuma de nós. Nunca saímos de casa sozinhas, sempre o fazemos em grupos de várias meninas. Se alguma das minhas amigas estiver em apuros, eu farei tudo para apoiá-la e ajudá-la”.
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Para que se usa um krama? Krama é um tecido tradicional muito comum no Camboja. Aqui, Chitra, 13 anos, mostra algumas das maneiras que se pode usar o tecido!
Para manter o suor longe dos olhos… …ou só porque é bonito!
Para proteger a cabeça do sol… …e do vento. Como cachecol…
…xale…
Para comprar berinjelas…
Quando se vai ao templo budista…
…ou melões no mercado!
…vestido…
…e saia!
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Synoun ganhou uma nova vida – Eu fui mantida prisioneira, como escrava em um bordel na Tailândia, por mais de um ano e achava que minha vida tinha acabado. Mas Somaly e a AFESIP me deram uma nova vida. Agora tenho meu próprio salão de cabeleireira e posso cuidar de mim mesma, diz Synoun.
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TEXTO : ANDRE AS LÖNN FOTO : PAUL BLOMGREN
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resci em uma vila pobre na zona rural aqui no Camboja. Uma de nossas vizinhas costumava viajar para a Tailândia para comprar e vender coisas. Ela dizia que era fácil ganhar dinheiro. Um dia, a mulher contou que ela conhecia um homem na Tailândia que podia me arrumar um emprego em uma fábrica têxtil. Minha família precisava muito do dinheiro, então eu concor-
dei. Porém, fui enganada. O homem não me levou para uma fábrica, mas sim para um bordel. Eu tinha só 16 anos, mas quando fui aprisionada senti como se minha vida já tivesse acabado. O bordel era tão terrível que eu perdi a esperança de jamais conseguir sair de lá. A sorte é que eu estava errada. Depois de um ano, a polícia invadiu o bordel e nós fomos libertadas e mandadas de volta para casa.
Família pobre Quando cheguei em casa, minha mãe disse que nunca mais me deixaria sair da vila novamente. Eu só poderia andar por perto, para que nada de mal acontecesse. Mas não era tão fácil. Minha família continuava pobre e não havia como ganhar dinheiro onde nós morávamos. Como poderíamos sobreviver se eu não saísse para procurar emprego? Meu pai se preocupava o tempo todo com a minha segurança. Um dia, ele contou que havia ouvido falar de uma organização em Phnom Penh que ajudava meninas que haviam sido vendidas para bordéis. Talvez eles pudessem nos ajudar. Meu
pai telefonou para lá e não demorou muito para que duas pessoas da AFESIP viessem me buscar. Eles estavam preocupados com minha irmã menor, Samnang, que também poderia ter problemas. Eles pediram permissão para ela também vir conosco. Nossos pais concordaram e eu fiquei super feliz, pois amo minha irmã. Belos penteados Estávamos muito nervosas quando chegamos a Phnom Penh. Porém, Somaly nos
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abraçou e todas as outras pessoas também foram muito gentis. Finalmente relaxamos. Dias depois, chegaram algumas meninas que fi zeram o curso de cabeleireira da AFESIP e mostraram como fazer belos penteados e lindas unhas. Na mesma hora senti que era aquilo que Synoun, 23 eu queria fazer no futuro. Mora: Junto com minha Ao mesmo tempo em que irmã mais nova. iniciei o curso de cabeleireiAma: Minha família. ra, minha irmã começou a Detesta: O tráfi co de escravos. aprender a costurar e tecer. O pior que já lhe aconteceu: Eu realmente adorei o curso. Ser seqüestrada e vendida Eu fazia estágio com difecomo escrava na Tailândia. rentes cabeleireiros, sempre O melhor que já lhe aconte- sonhando em abrir meu próceu: Fazer curso de cabeleireira prio salão e ser bem sucedie receber ajuda para abrir meu da. No entanto, eu tinha próprio salão. pouca autoconfiança. Admira: Somaly. Somaly e os funcionários me Quer ser: Uma cabeleireira apoiaram e me deram muito bem sucedida. amor. Eles diziam que eu Sonho: Conhecer outros países. certamente conseguiria!
O próprio salão! Após um ano, me senti preparada. A AFESIP me pediu para encontrar um bom local onde pudesse abrir meu salão. É claro que não podia ser na minha vila de origem, pois lá ninguém tinha condições de ir ao cabeleireiro. Todavia, na cidade que ficava a apenas meia hora de viagem de moto-táxi da vila, eu encontrei um bom lugar onde
No salão “Cortes Modernos de Synoun” você pode cortar o cabelo, fazer permanente no cabelo e nos cílios, alongar o cabelo, desfrutar de uma massagem facial e embelezar suas unhas com a manicure! O alongamento de cabelo é muito popular entre as clientes de Synoun e custa US$ 0,75.
poderia morar e trabalhar. Algumas pessoas da AFESIP foram até lá e, depois de aprovarem o lugar, me ajudaram a começar. Eles me deram tudo: tesouras, pentes, secadores de cabelo, armários, xampu... tudo! Foi incrível. Minha irmã mais nova abriu seu ateliê de costura no mesmo local. Dividimos o aluguel e fazemos companhia uma à 85
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Amor de irmãs – Me sinto segura por morar junto com minha irmã mais nova. Minha mãe e meu pai estão muito felizes por estarmos tão bem agora. Eles vêm sempre aqui, e nós costumamos visitá-los em casa na vila pelo menos uma vez por semana, diz Synoun.
outra. No início, a AFESIP nos visitava com freqüência para ver como as coisas estavam indo, se estávamos conseguindo cuidar de tudo e se as pessoas da cidade nos tratavam bem. Era bom. Um dia Somaly visitou o salão e eu fi z suas unhas,
que ficaram lindas. Aquele foi um ótimo dia! Ela me pediu para telefonar sempre que eu precisasse de algo. É reconfortante saber que Somaly estará lá se precisarmos de ajuda. Ela ou algum outro funcionário ainda vem aqui de vez em quando
Moda Justa
para ver se está tudo bem. Se a AFESIP não tivesse me ajudado, eu nunca teria conseguido a vida que tenho hoje. Nunca teria tido condições de fazer o curso de cabeleireira e nem de abrir meu próprio salão sozinha. Mesmo não sendo sempre
fácil, é fantástico ter uma educação profissionalizante e um trabalho de verdade. Agora me sustento sozinha e ainda posso ajudar minha família. Maravilhoso!”
Parte das meninas que fazem o curso de cabeleireira da AFESIP ou o curso de corte e costura têm dificuldade de conseguir emprego quando se formam. Isso se deve à alta taxa de desemprego no Camboja, mas também porque muitas das meninas não são aceitas quando voltam para a comunidade. Às vezes elas são consideradas “sujas”, e as pessoas preferem comprar suas roupas ou cortar o cabelo em outro lugar. Para ajudar essas meninas, a AFESIP fundou, em 2003, a “Fair Fashion” – Moda Justa. As meninas fabricam roupas que são vendidas no Camboja e no exterior. Elas recebem salários com os quais podem se sustentar, e o local de trabalho é seguro. As meninas são tratadas com respeito e não são obrigadas a fazer hora extra. Claro que o trabalho infantil é proibido na Fair Fashion. Porém, essa situação não é semelhante no Camboja, onde metade das crianças trabalha. O dinheiro que a Fair Fashion recebe com a venda das roupas é usado para salvar outras meninas da escravidão. No momento, 30 meninas trabalham na Fair Fashion no Camboja. Em 2004, a Fair Fashion foi aberta também no Vietnã.
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Syna salva escravas Quando Syna tinha 13 anos, foi atraída de sua vila no Vietnã para a capital do Camboja, Phnom Penh. Lá, ela foi vendida como escrava para um bordel. Hoje ela faz aquilo que todas as garotas que foram salvas por Somaly sonham...
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yna mantém os olhos abertos quando passa pelos corredores escuros dos bordéis. Ela sabe que atrás de cada uma das portas fechadas de metal por onde passa, pode haver meninas de até sete anos de idade, mantidas prisioneiras como escravas sexuais. Ela conhece os terríveis abusos a que essas meninas são submetidas e o quanto elas sofrem. Por três anos, a própria Syna foi trancada e explorada por homens. Agora, ela trabalha como assistente social nos bordéis para a AFESIP. Em um pequeno quarto no fundo do bordel, dez
meninas esperam por Syna. Elas ficam esfuziantes quando ela chega. – Oi! Que bom vê-las novamente! Como estão vocês? pergunta Syna e abraça cada uma delas. Elas se sentam em círculo no chão e começam a conversar. No começo há muitas piadas e risos, mas depois a coisa fica mais séria. Muitas contam que seus ”clientes” batem nelas e que é difícil se defender. Uma menina chega depois das outras. Ela é magra e fraca e está muito doente. Syna se preocupa com ela. – Você deve vir à clínica da AFESIP para podermos
ajudá-la. Você promete que virá? A garota acena com a cabeça e diz que vai tentar. Syna lembra as meninas de que a melhor forma de se protegerem contra a AIDS é usar preservativo. Ela também explica como é importante que elas se lavem bem para se manterem saudáveis. Ela distribui preservativos, creme dental, escovas de dente, e sabonetes gratuitamente para todas. A menina foi laçada Depois da visita, Syna fica cansada. A escuridão, os quartos pequenos e o odor desagradável fazem com que
Quando eu descubro alguma menina que foi vítima do tráfico de escravas, informo à polícia, que liberta a garota. Mesmo que este trabalho muitas vezes me faça mal devido a todas as antigas lembranças, vale a pena. Toda vez que uma menina é salva da escravidão, me sinto muito feliz, diz Syna.
ela quase sempre sinta náuseas. Todas as memórias terríveis daquele quartinho retornam. – Se eu tivesse menos de dez homens por dia, apanhava do dono do bordel. Muitas vezes, meu castigo era ficar sem comer nada. E não dava para fugir, independente do quanto eu desejasse a liberdade. O bordel havia sido construído sobre palafitas no meio da água, e a única chance de chegar ou sair de lá era por uma ponte estreita e muito bem vigiada. Em volta do bordel, os donos espalharam varetas pontiagudas e pontas de fer87
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ro no fundo da água. Uma vez, uma menina conseguiu serrar a grade de sua janela e pular para fora. Ela foi laçada. – Eu sonhava o tempo todo em escapar da minha prisão, e depois de um ano, achei que meu sonho se realizaria. A polícia invadiu o bordel e nos levou para a delegacia. Mas não demorou muito até que a dona do bordel chegasse e pagasse os
policiais. Ao invés de nos salvar, eles nos levaram de volta para o bordel. Eu gritava que havia sido raptada e que queria voltar para o Vietnã, mas ninguém se importava, lembra Syna. Então, um dia, três anos depois, a polícia invadiu o bordel de novo. Dessa vez foi diferente. Os policiais fi zeram a incursão junto com a AFESIP para salvar as meninas.
As duas tarefas de Syna 1. Cuidar das meninas que são obrigadas a se venderem nos bordéis para sobreviver. Principalmente salvá-las do HIV e da AIDS. 2. Salvar crianças que foram raptadas e vendidas como escravas.
– Foi totalmente irreal! Eu não ousava acreditar que estava livre! ”Não são mais escravas!” – Somaly veio até mim, pois percebeu que eu estava com medo. Ela me abraçou, passou a mão pelos meus cabelos e disse: ”Como está você, minha fi lha? Não tenha medo. Tudo vai se resolver.” Eu não sentia tamanho calor humano há muito tempo. A mãe de Syna procurou por ela durante mais de três anos. Elas se gostam muito, e aqui Syna ajuda a mãe a cozinhar.
Nunca vou me esquecer, diz Syna. Ela foi morar no lar para meninas resgatadas de Somaly e fez o curso de corte e costura da AFESIP. – Depois, Somaly perguntou se eu ainda sabia falar vietnamita, pois ela precisava de alguém que pudesse conversar com todas as meninas trazidas do Vietnã para o Camboja. Fiquei com medo, mas aceitei imediatamente! Somaly havia me dado tanto carinho e amor, e até salvou minha vida. Agora eu sentia que teria a chance de devolver um pouco ajudando outras meninas em dificuldades.
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TEXTO : ANDRE AS LÖNN FOTO : PAUL BLOMGREN
Syna fez cursos de inglês, psicologia e terapia de grupo. Acima de tudo, Somaly a ajudou a recuperar sua auto-estima, que estava muito abalada depois do longo período como escrava. – Lembro que ela falou: ”Não tenha medo, Syna. Agora somos fortes. Não somos mais escravas!” Ela me explicou que eu tinha direitos, que eu deveria ser forte e corajosa. E isso ajudou! Salvou 14 meninas – Já faz seis anos que trabalho como assistente social. Junto com pelo menos mais uma assistente social, eu visito cerca de três bordéis por dia e tento ajudar as meninas a se cuidarem. Grande parte do trabalho é ensiná-las a se protegerem do HIV e da AIDS. Também escuto seus problemas. Sou amiga. Se existe uma coisa de que precisamos quando
somos obrigados a trabalhar em um bordel, é de amizade. Nada pode ser mais solitário. Elas precisam de intimidade e carinho, e eu tento lhes oferecer. Toda vez eu digo às meninas que a AFESIP está pronta para ajudá-las a conseguir uma educação e uma vida diferente. Porém, muitas vezes as meninas foram submetidas a tantas coisas terríveis que perderam totalmente a autoconfiança. Elas têm vergonha e não acreditam que podem fazer outra coisa. Elas crêem que suas vidas já estão destruídas. Comigo era a mesma coisa. Antes de a Somaly me ajudar, eu não acreditava nem mesmo que conseguiria olhar nos olhos de outras pessoas novamente. Como as meninas sabem que eu passei pelas mesmas experiências que elas, percebem que realmente é possível construir uma nova vida.
– Entretanto, minha tarefa mais importante nos bordéis é identificar meninas menores de dezoito anos. Meninas que foram vítimas do tráfico de escravas. Quando eu descubro alguém, nós informamos a polícia, que faz uma busca no bordel e liberta a garota. Então nós cuidamos dela. Eu descobri quatorze meninas que haviam sido vítimas do tráfico de escravas e denunciei isso. Todas ganharam uma nova vida graças à AFESIP. Mesmo que este trabalho me faça mal muitas vezes, por causa de todas as lembranças do passado, vale à pena. Toda vez que alguém é salvo da escravidão, me sinto muito feliz! Entretanto, eu ficaria ainda mais feliz se nenhuma menina no mundo todo tivesse que passar pelas coisas que eu passei. Todas nós merecemos coisa melhor.
Syna, 23 Mora: Com minha família, em Phnom Penh. Ama: A liberdade. Detesta: Quando os adultos fazem mal às crianças e violam seus direitos. O pior que já lhe aconteceu: Ser escrava e não poder fazer nada contra aquilo. O melhor que já lhe aconteceu: Somaly e a AFESIP terem me dado uma nova vida. Admira: Somaly, é claro! Ela é uma mulher incrivelmente corajosa.
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Vida em Família – Eu procurei por Syna todos os dias durante mais de três anos. Primeiro no Vietnã e depois no Camboja, pois me disseram que muitas meninas vietnamitas eram raptadas e vendidas em Phnom Penh. Eu tinha uma foto de Syna e
Syna e seu irmão mais novo, Tanga, 12 anos, ajudam a mãe a preparar o jantar.
andava pelas vilas e cidades batendo nas portas e perguntando se alguém tinha visto minha amada filha. Não posso descrever como fiquei aliviada quando finalmente vi a fotografia dela na delegacia e descobri que a AFESIP estava
– Amo Syna e tenho muito orgulho de seu trabalho, diz a mãe, Chou.
cuidando dela. Eu senti que a AFESIP podia oferecer uma nova vida a Syna e por isso decidimos ficar aqui em vez de voltar para casa. Agora a família toda mora junto novamente e sou grata por isso! Eu amo Syna e tenho muito orgulho daquilo
que ela faz. Tenho certeza de que sem Somaly e a AFESIP ela teria morrido, diz Ceou, a mãe de Syna. Quando possível, a AFESIP encoraja as meninas a voltarem para suas famílias e terem uma vida normal novamente.
é comércio de escravos A grande maioria das meninas que Somaly ajuda foram vítimas do “tráfico”. Traficar é comercializar seres humanos, e torná-los escravos. Mais de 1,2 milhões de crianças no mundo são vítimas do tráfico, o que significa, muitas vezes, ter negado o direito de viver com seus pais, o direito à proteção contra
violência e abuso, o direito de ir à escola e o direito de brincar. O comércio de meninas escravas ocorre em todo o Sudeste da Ásia. Milhares de meninas do Vietnã são vendidas no Camboja, e meninas do Camboja, Laos, Birmânia e da Malásia são freqüentemente levadas para a Tailândia. Garotas
tailandesas e chinesas entram clandestinamente através das fronteiras de países como o Camboja. Somaly ajuda a todas Para Somaly, não importa de onde as meninas vêm. Nos três lares do Camboja vivem meninas cambojianas e vietnamitas. A AFESIP cuida para que as meninas
do Vietnã, Tailândia e China possam voltar para casa, quando se sentem prontas. Todavia, isso só ocorre quando se sabe que as meninas terão uma boa vida ao retornarem. A AFESIP também conta com centros no Vietnã, Tailândia e Laos.
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pesar de todos os países do mundo, inclusive o Camboja, terem leis que proíbem a discriminação contra as meninas, muitas vezes elas são tratadas de forma inferior. Muitas meninas são expostas a abuso, tráfico e à pior de todas as formas de trabalho infantil – a prostituição em bordéis. Mais de 2 milhões de crianças, em sua maioria meninas, são exploradas no comércio sexual. É mais fácil manipular e tirar vantagem de crianças que não foram alfabetizadas. 65 milhões de meninas não vão à escola. Das 150 milhões de crianças que abandonam a escola antes da quinta série, 100 milhões são meninas. Dos 875 milhões de adultos no mundo que não sabem ler
e escrever, quase 600 milhões são mulheres. Em todo o mundo, as mulheres geralmente têm salários inferiores aos dos homens, mesmo desempenhando as mesmas funções. Apesar de as mulheres constituírem dois terços da mãode-obra do mundo, sua renda representa apenas um décimo da renda mundial. Os homens têm mais poder na política e na economia, pois é mais comum serem chefes e líderes. O fato de as meninas não serem tão bem tratadas quanto os meninos fere Convenção da Criança da ONU, que determina que todos têm o mesmo valor e devem ter as mesmas oportunidades na vida, independente de terem nascido meninos ou meninas.
Sete assistentes sociais As sete assistentes sociais da AFESIP em Phnom Penh trabalham em sete distritos, visitando bordéis, parques e outros lugares onde meninas obrigadas a se prostituir precisam de ajuda. – Só no meu distrito, há 65 bordéis. Eu visito cada bordel uma vez por mês, conta Syna. Os donos de bordéis permitem que Syna e outras assistentes sociais entrem, porque a AFESIP ajuda ”suas” garotas a se manterem saudáveis. Sobretudo ajudam essas meninas a se protegerem contra o HIV com a distribuição gratuita de preservativos.
100 das meninas de Somaly morreram de AIDS A credita-se que quatro, de cada dez garotas obrigadas a se venderem no Camboja, estão contaminadas com o HIV. – Quando as meninas vêm até nós, elas podem visitar nossa clínica. Lá nós explicamos sobre o HIV e a AIDS e informamos que elas podem fazer o teste, se desejarem. Porém, nunca obrigamos ninguém. Se uma garota decide fazer o teste e o mesmo revela que ela está contaminada, fazemos de tudo para que ela possa receber os remédios e o tratamento adequados. Antes de tudo, lhe oferecemos apoio, porque é um sofrimento muito grande descobrir que se tem uma doença letal. A pessoa precisa de muito carinho e amor nessa situação. Alguém da AFESIP sempre acompanha as meninas ao hospital, para que elas não se sintam solitárias. Se as meninas forem sozinhas até lá, elas podem ser muito maltratadas. Os médicos e enfermeiros geralmente dizem que as meninas são ”ruins” e ”sujas”. – Nós cuidamos das meninas até o final. Um de nossos lares para meninas resgatadas foi batizado em homenagem à primeira de nossas meninas que morreu de AIDS. Ela se chamava Tomdy, e eu nunca vou esquecê-la. Desde então, mais de cem de nossas meninas morreram de AIDS, conta Somaly.
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Meninas têm tratamento pior no mundo todo
Ama a liberdade! – Eu amo a liberdade! Não existe nada pior do que ser presa e explorada. É por isso que sempre costumo dizer às crianças para não confiarem em ninguém que não conheçam. Que não se sintam tentados a seguir alguém que diz que eles podem ter uma vida melhor em outro lugar. Isso pode terminar muito mal. Eu sei, pois aconteceu comigo, diz Syna.
Syna com a filha de uma das meninas de um bordel.
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