Universidade do Estado do Rio de Janeiro Concinnitas – Revista do Instituto de Artes da UERJ Editora Sheila Cabo Geraldo Co-editores Luiz Felipe Ferreira, Roberto Conduru Conselho Editorial Alberto Cipiniuk ART-UERJ / PUC-RJ, Arlindo Machado USP / PUC-SP, Carlos Zilio UFRJ, Christine Mello SENAC-SP, Cristina Salgado ART-UERJ / PUC-RJ, Eduardo Kac Art Institute of Chicago, Evandro Salles Artista plástico e crítico de arte, Gilles Tiberghien Paris I, Gustavo Bonfim PUC-RJ, Hélio Fervenza UFRGS, Hugo Segawa USP, Isabela Nascimento Frade ART-UERJ, Jorge Luiz Cruz ART-UERJ, José Thomaz Brum PUC-RJ, Kátia Maciel UFRJ, Lorenzo Mammi USP, Luciano Migliaccio USP, Luis Andrade ART-UERJ, Manuel Salgado UFRJ, Márcia Gonçalves IFCH-UERJ, Maria Beatriz de Medeiros UnB, Maria de Cáscia Frade FAV-RJ, Maria Luiza Saboia Saddi Artista plástica, Mario Ramiro USP, Michael Asbury Camberwell College of Art, Milton Machado UFRJ, Nanci de Freitas ART-UERJ, Nuno Santos Pinheiro Faculdade de Arquitectura de Lisboa, Paulo Sergio Duarte UCAM, Rafael Cardoso Denis PUC-RJ, Ricardo Basbaum ART-UERJ, Rodrigo Naves CEBRAP, Rogério Luz UFRJ, Sonia Gomes Pereira UFRJ, Vera Beatriz Siqueira ART-UERJ, Vitor Hugo Adler Pereira IL-UERJ Direção de Arte e Design Ligia Santiago Web Design Mariana Maia, Henrique Ferreira Equipe de Produção Gabriella de Amorim Gen, Henrique Ferreira Revisão Maria Helena Torres Capa Carlos Garaicoa. De como a terra quer parecer o céu (I), instalação (fumaça, metal, luz elétrica), 2005. Vista da instalação da 51a Bienal de Veneza. Cortesia do Artista e da Galeria Continua (San Gimignano-Beijing-Le Moulin). Foto: Ela Bialowska. Concinnitas é uma publicação semestral do Instituto de Artes/ART, vinculada ao Programa de Pós-Graduação em Arte. O projeto Revista Concinnitas recebeu apoio da FAPERJ. Os artigos são de responsabilidade dos autores e não refletem a opinião do conselho editorial.
Catalogação na fonte UERJ/REDE SIRIUS/PROTEC
2008
concinnitas [www.concinnitas.uerj.br]
Sumário
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Apresentação Dossiê
6
Brian Holmes Investigações extradisciplinares – Para uma nova crítica das instituições
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Suely Rolnik Memória do corpo contamina museu
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Diana B. Wechsler Peças para outra história da arte moderna
38
Michael Asbury Parisienses no Brasil, brasileiros em Paris: relatos de viagem e modernismos nacionais
48
Stéphane Huchet Presença da arte brasileira: história e visibilidade internacional Ensaio
66
Carlos Garaicoa Notícias Recentes Entrevista
76
Cayo Honorato A arte como atitude – Entrevista com Luis Camnitzer Artigos
86
Fernando José Pereira Novas da desolação – Notas sobre arte e real
98
Fabiola do Valle Zonno Multiplicidade na poética de Vito Acconci: paisagem e performance e arquitetura
113
Dorcas Weber Conversas reguladas – Observações em uma mostra de artes visuais
121
Letícia C. R.Vianna e João Gabriel L. C. Teixeira Patrimônio imaterial, performance e identidade
130
Janice Caiafa Questões para a arte hoje Traduções
144
Claire Bishop A virada social: colaboração e seus desgostos
156
Roberto Conduru Uma crítica sem plumas – A propósito de Negerplastik de Carl Einstein
163
Carl Einstein Negerplastik Resenhas
178
Luiza Interlenghi Diferenças e possibilidades do Brasil na ARCO 2008
184
Fernanda Lopes Torres A absolvição do “gânsgter da sensibilidade”: Yves Klein. Corpo, Cor, Imaterial
192
Ludotek Laboratório relacional
199
Abstracts
201
Sobre Concinnitas
201
Normas para publicação
Carlos Garaicoa. Notícias Recentes. Coleção particular de Helga de Avelar, Espanha. (Foto: Eddy A. Graicoa), 2007.
As condições e possibilidades de pesquisa em arte, teoria e história da arte nortearam a elaboração do dossiê que publicamos neste número. Sem formar um todo coeso ou conclusivo, os textos de Brian Holmes, Diana B. Wechsler, Suely Rolnik, Michael Asbury e Stéphane Huchet são reflexões epistemológicas articuladas sob a pressão de um momento em que os paradigmas são fluidos, mas não podem ser frouxos. Assim, buscam formas de pensar a arte, além das que nos têm valido de modelo desde a modernidade, de onde partem as reflexões em questão. Nesse processo, a discussão da arte e da história que se produziu e se produz na América Latina e no Brasil parece ponto a ser ressaltado. Há que pensar de novo e sempre essa condição moderna de outro, que fomos e que, ainda, muito freqüentemente, somos. Longe de reforçar qualquer forma de identidade, no que possa estar articulada com resquícios de closura, os textos, à exceção do de Brian Holmes, cujo foco é a crítica das instituições em geral, tratam da produção artística e histórica da chamada outridade, sob desejo de ampliar as trocas e os horizontes. Criar processos de contradição, colocar-se nas relações institucionalizadas de arte de maneira a agir como provocador de dissenso – esse parece ser o mais evidente contexto em que se move Carlos Garaicoa. O artista, que nasceu em Cuba, que vive entre Havana e Madri, nos presenteou com o projeto Notícias Recentes, especialmente concebido para esta publicação. Dele é também a capa desta edição. O processo de elaboração de Concinnitas 12 começou em novembro de 2007, quando publicamos uma chamada de artigos. Recebemos 24 textos, incluindo uma entrevista e uma resenha, vindos de várias cidades do Brasil, e de outros países. Os artigos de Fernando José Pereira, Dorcas Weber, Letícia C. R. Vianna e João Gabriel L. C. Teixeira, Fabiola do Valle Zonno e Janice Caiafa, assim como a entrevista de Luis Camnitzer a Cayo Honorato e a resenha de Fernanda Lopes Torres são respostas à chamada. Isso nos dá certeza de que a revista tem alcançado público amplo e de qualidade. Agradecemos essa colaboração enriquecedora, assim como a de Luiza Interlenghi que, a pedidos, nos enviou resenha sobre a ARCO’08, feira de arte contemporânea, que este ano homenageou o Brasil. Desse evento Concinnitas participou como publicação convidada e teve a oportunidade de estar em meio a uma situação em que o Brasil discutia suas fronteiras. Agradecemos a Rafael Sánchez-Mateos sua resenha-apresentação do projeto Ludotek, que coordena com Susana Velasco e que esteve presente no Encontro de Coletivos brasileiros e espanhóis, programação paralela do Matadero no período da ARCO’08. Para finalizar, como de costume, traduzimos dois artigos ainda inéditos no país: o ensaio Negerplastik, de Carl Einstein, aqui com introdução do co-editor Roberto Conduru, e que, sem dúvida, é texto histórico e de referência para a discussão que o dossiê promove, assim como o de Claire Bishop A Virada social: colaboração e seus desgostos, ácida e instigante discussão sobre os caminhos da arte contemporânea. Agradecemos a Claire e a Phil Collins a autorização para reproduzir texto e imagens; e a todos que colaboraram nesta empreitada.
Sheila Cabo Geraldo Editora 7
PrĂŠdio governamental em Baku (Ursula Biemann, Black Sea Files).
Investigações extradisciplinares – Para uma nova crítica das instituições Brian Holmes
De acordo com o velho tropismo modernista, a arte antes de tudo se designa fazendo da auto-reflexividade uma característica identificadora. Este texto descreve um novo tropismo e uma nova reflexividade, envolvendo tanto artistas como ativistas na passagem para além dos limites tradicionais. A palavra ‘tropismo’ carrega o desejo de virar-se rumo a um domínio exterior, enquanto a noção de reflexividade indica um retorno crítico à disciplina inicial. Essa espiral transformativa é o princípio operativo das investigações extradisciplinares. Crítica institucional, crítica imanente, extradisciplinar. Qual é a lógica, a necessidade ou desejo que cada vez mais impulsiona Tradução Jason Campelo. Revisão técnica Sheila Cabo Geraldo.
os artistas para fora dos limites de sua própria disciplina, definida pelas noções de reflexividade livre e estética pura, encarnada pelo circuito galeria-revista-museu-coleção e assombrada pela memória dos gêneros normativos da pintura e escultura? Já nas décadas de 1960 e 1970, a pop art, a arte conceitual, a body art, a performance e o vídeo romperam com as molduras disciplinares. Poder-se-ia argumentar, porém, que essas irrupções dramatizadas simplesmente importaram temas, meios ou técnicas expressivas, retomando o que Yves Klein nomeara como ambiência “especializada” da galeria ou do museu, qualificada pela primazia da estética e gerida pelos funcionários de arte. Raciocínios semelhantes foram desenvolvidos por Robert Smithson em seu texto sobre confinamento cultural, de 1972, e reafirmados por Brian O’Doherty, em sua tese acerca da
1 Robert Smithson. Cultural confinement (1972). In Jack Flam (ed.). Robert Smithson: The Collected Writings. Berkeley: U.C. Press, 1996; Brian O’Doherty. Inside the White Cube: The Ideology of the Gallery Space (edição ampliada). Berkeley: U.C. Press, 1976/1986.
ideologia do cubo branco.1 Tais argumentos são ainda bastante válidos. Somos atualmente confrontados com uma nova série de irrupções, sob nomes como net.art, bioarte, geografia visual, space art e database art, às quais ainda poder-se-ia acrescentar arqui-arte, ou arte da arquitetura, e que, curiosamente, nunca tinha sido assim batizada, bem como uma machine art, que remonta ao construtivismo da década de 1920, e, ainda, finance art, cujo nascimento foi anunciado na Casa Encendida de Madri, no verão passado. O aspecto heterogêneo da lista sugere, imediatamente, sua aplicação a todos os domínios em que a teoria encontra a prática. Nas formas artísticas resultantes, sempre se encontrarão sobras do velho tropismo modernista, por meio do qual a arte, antes de tudo, designa a si mesma, direcionando a atenção para suas próprias operações de expressão, representação, metaforização ou desconstrução. Independentemente do assunto que ela trate, a arte tende a fazer dessa auto-reflexividade sua feição distintiva ou identificadora,
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até mesmo sua raison d’être, em um gesto cuja legitimação filosófica foi estabelecida por Kant. Contudo, há algo mais em jogo no tipo de obra que pretendo discutir. Podemos abordar isso a partir da informação com a qual o Projeto Nettime costumava definir suas ambições coletivas. Para os artistas, teóricos, ativistas e programadores de mídia que compuseram aquela lista de correspondência – um dos importantes vetores da net.art da década de 1990 –, a questão era propor o que chamavam de “crítica imanente” da Internet, ou seja, da infra-estrutura tecnocientífica então em fase de construção. Tal crítica foi levada a cabo dentro da própria rede, usando suas linguagens e ferramentas técnicas, e focalizando seu objetos característicos, com o objetivo de influenciar ou mesmo modelar diretamente seu desenvolvimento – sem recusar, porém, as possibilidades de distribuição para fora desse circuito.2 Esboçava-se então um movimento de mão dupla que consistia em ocupar um campo com potencial de sacudir a sociedade telemática e depois irradiar-se para campos exteriores, a partir daquele domínio específico, com o objetivo explicitamente formulado de produzir mudanças na disciplina de arte (considerada formalista e narcisista demais para escapar de seu próprio círculo encantado), assim como
2 Cf. a introdução à antologia ReadMe! Nova York: Autonomedia, 1999. Um dos melhores exemplos de crítica imanente é o projeto Name space, de Paul Garrin, visando reformular o sistema de nomeação de domínios, que é aquilo que constitui a internet como espaço navegável; cf. pp. 224-29.
produzir mudanças na disciplina da crítica cultural (considerada historicista e acadêmica demais para confrontar as transformações atuais), e também na “disciplina” – se é que se pode chamar assim – do ativismo esquerdista (considerado doutrinário e ideológico demais para se aproveitar das ocasiões que se apresentam). Temos um novo tropismo e uma nova espécie de reflexividade em ação aqui, envolvendo tanto artistas quanto teóricos e ativistas, na passagem para além dos limites tradicionalmente atribuídos a seu exercício. A palavra tropismo transporta o desejo ou necessidade de virar-se rumo a algo além, a um campo ou disciplina exterior; enquanto a noção de reflexividade indica um retorno crítico ao ponto de partida, uma tentativa de transformar a disciplina inicial, de acabar com sua isolação, de abrir-se a novas possibilidades de expressão, análise, cooperação e compromisso. Esse movimento de ida e volta ou, melhor, essa espiral transformativa é o princípio operativo do que chamarei de investigações extradisciplinares. Esse conceito foi criado como tentativa de superar um tipo de dupla falta de propósito que afeta as práticas de significação contemporâneas, até mesmo como tentativa de fazer duplo desvio ainda que sem as qualidades revolucionárias que os situacionistas buscavam. Penso, em primeiro lugar, acerca da inflação dos discursos interdisciplinares nos circuitos acadêmicos e culturais, discursos que são sistemas de virtuosismo combinatório alimentando o moinho simbólico do capital cognitivo e que agem como uma espécie de suplemento a inúmeros cataventos financistas; o curador Hans-Ulrich Obrist é especialista nesses sistemas combinatórios. Em segundo lugar, há um estado de indisciplina que é efeito involuntário das revoltas antiautoritárias da década de 1960, em que o tema simplesmente se rende às solicitações estéticas do mercado (no filão do Neopop, indisciplina é o mesmo que repetir e remixar infinitamente o fluxo de imagens comerciais pré-fabricadas). Apesar de seus significados diferentes, interdisciplinaridade e indisciplina se tornaram as duas desculpas mais usadas para neutralizar pesquisas significativas.3 Não há, porém, qualquer razão para aceitá-las.
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3 Cf. Brian Holmes. L’extradisciplinaire. In Hans-Ulrich Obrist e Laurence Bossé (eds.). Traversées, cat. Paris: Musée d’art moderne de la Ville de Paris, 2001.
A ambição extradisciplinar consiste em levar a cabo investigações rigorosas em áreas tão distantes da arte quanto finanças, biotecnologia, geografia, urbanismo, psiquiatria, o espectro eletromagnético, etc. Produzir, nessas áreas, “o livre jogo das faculdades” e a experimentação intersubjetiva – características da arte moderna –, mas também tentar identificar nesses domínios os usos instrumentais ou espetaculares que tão freqüentemente se fazem da liberdade subversiva do jogo estético – tal como faz o arquiteto Eyal Weizman, de maneira exemplar, quando investiga a apropriação, por parte de americanos e israelenses, do que a princípio foi concebido como “estratégias arquitetônicas subversivas”. Weizman desafia o militarismo em sua própria região, com seus mapas de infra-estruturas de segurança em Israel, e retorna com elementos para um exame 4 Eyal Weizman. Walking through Walls, em http://transform.eipcp.net/transversal/0507.
crítico do que costumava ser sua disciplina exclusiva.4 Esse complexo movimento, que não negligencia a existência de disciplinas diferentes nem se permite ser preso por elas, pode dar um novo ponto de partida para o que costumava ser chamado de crítica institucional. Histórias do presente O que tem sido retrospectivamente estabelecido como a “primeira geração” de crítica institucional inclui pessoas como Michael Asher, Robert Smithson, Daniel Buren, Hans Haacke e Marcel Broodthaers. Eles investigaram os condicionamentos de suas próprias atividades, através das restrições ideológicas e econômicas do museu, com o objetivo de se libertar delas. Tiveram forte ligação com as revoltas antiinstitucionais dos anos 60
5 Cf. Stefan Nowotny. Anti-Canonization: the differential knowledge of institutional Critique, http://transform.eipcp.net/ transversal/0106/nowotny/en/#_ftn6.
e 70 e suas conseqüentes críticas filosóficas.5 A melhor maneira de considerar seu foco específico acerca do museu é não o tomar como limite ou fetichização auto-imposto pela instituição, e sim como parte da práxis materialista, lucidamente ciente de seu contexto, mas com intenções transformadoras mais amplas. De qualquer maneira, a fim de descobrirmos para onde a história deles seguirá, precisaremos investigar nos escritos de Benjamin Buchloh como ele enquadrou a emergência da crítica institucional. Em texto denominado Conceptual art 1962-1969, Buchloh cita duas proposições de Lawrence Weiner. A primeira é A Square Removed from a Rug in Use, e a segunda, A 36”x 36” Removal to the Lathing or Support Wall of Plaster or Wallboard from a Wall (ambas de 1968). Em cada uma delas, o objetivo é tomar a forma mais auto-referencial e tautológica possível – o quadrado, cujos lados se repetem e reiteram os outros – e inseri-la em ambiente marcado pelos determinismos do mundo social. Segundo Buchloh, Ambas as intervenções – enquanto mantêm ligações estruturais e morfológicas com as tradições formais ao respeitar a geometria clássica... – inscrevem-se nas superfícies-suporte das instituições e/ou da casa, que aquela tradição sempre repudiou... Por outro lado, dissipam a expectativa de só encontrar a obra de arte em um local ‘especializado’ ou ‘qualificado’ (...) E, por um outro lado, nenhuma dessas superfícies poderia ser considerada, de qualquer maneira, independente
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de sua locação institucional, uma vez que a inscrição física em cada superfície em particular gera, inevitavelmente, leituras contextuais.6 As propostas de Weiner, nitidamente uma versão da crítica imanente, são vigor operacional com estruturas discursivas e materiais das instituições de arte; mas são lançadas como deduções puramente lógicas a partir de premissas minimalistas e conceituais. Elas simplesmente prefiguram de maneira nítida o ativismo simbólico das obras “anarchitecture” de Gordon Matta-Clark, como Splitting (1973), ou Window Blow-Out (1976), que confrontavam o espaço da galeria com a desigualdade urbana e discriminação racial. Partindo desse ponto, uma história da crítica artística poderia ter levado às formas contemporâneas de ativismo e pesquisa tecnopolítica, através da mobilização de artistas em prol da epidemia da Aids, no final dos anos 80. As versões mais difundidas da história cultural dos anos 60 e 70, porém, nunca foram por aquele caminho. De acordo com o subtítulo do famoso texto de Buchloh, o movimento teleológico da arte modernista tardia dos anos 70 seguia Da estética da administração à crítica das instituições. Isso seria o mesmo que uma visão estritamente frankfurtiana do museu como instituição idealizada de ilustração, danificada tanto pela burocracia quanto pelo mercado do espetáculo. Outras histórias poderiam ser escritas. Em jogo, a tensa dupla união: entre o desejo de transformar a “célula” especializada (como Brian O’Doherty descreveu a galeria modernista) em um potencial de conhecimento vivente móvel que pode alcançar todo mundo; e a contrapercepção de que tudo o que diz respeito a esse espaço estético especializado é como uma armadilha, foi instituído como forma de cerceamento. Tal tensão produziu as intervenções incisivas de Michael Asher, as denúncias cortantes de Hans Haacke, as desarrumações paradoxais de Robert Smithson ou a fantasia poética e o humor melancólico de Marcel Broodthaers, cujo motor oculto foi um compromisso juvenil com o surrealismo revolucionário. A primeira coisa a fazer-se é não reduzir, nunca, a diversidade e complexidade de artistas que jamais se juntaram voluntariamente a algum movimento. Outra redução vem do foco obsessivo em um lugar específico de apresentação: o museu, seja ele pranteado como relíquia evanescente da “esfera pública burguesa”, seja exaltado com discurso fetichista do site specificity. Esses dois alçapões posicionavam-se em compasso de espera por um discurso da crítica institucional quando ela tomou forma explícita, nos Estados Unidos, no final dos anos 80 e início dos 90. Era o período da chamada “segunda geração”. Entre os nomes mais citados encontramos os de Renee Green, Christian Philipp Müller, Fred Wilson ou Andrea Fraser, que perseguiram a exploração sistemática da representação museológica, examinando suas ligações com o poder econômico e suas raízes epistemológicas, em uma ciência colonial que trata o outro como objeto a ser exibido em vitrina. A isso acrescentaram, porém uma reviravolta subjetivizante, inimaginável sem a influência do feminismo e da historiografia pós-colonial, que lhes permitiu rearranjar hierarquias de poder externo como ambivalências do eu, abrindo
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6 Benjamin Buchloh. Conceptual art 19621969: from the aesthetics of administration to the critique of institutions. October 55, inverno de 1990.
uma sensibilidade em conflito à coexistência de múltiplos modos e vetores de representação. Há negociação incisiva, principalmente na obra de Renee Green, entre a análise do discurso especializado e a experimentação corporificada com o sensorial humano. Ainda assim, a maior parte dessa obra também foi levada a cabo na forma de meta-reflexões sobre os limites das práticas artísticas em si mesmas (mostruários de museu falsos ou performances de vídeo escritas), encenadas em instituições que eram ainda mais gritantemente corporativas – a ponto de se tornar crescentemente difícil resguardar as investigações críticas de suas próprias acusações e de suas conclusões freqüentemente devastadoras. Essa situação, em que o processo crítico toma-se a si como objeto, recentemente levou Andrea Fraser a considerar a instituição artística um molde insuperável, que tudo define, 7 “Assim como a arte não pode existir fora do campo da arte, nós mesmos, pelo menos enquanto críticos, curadores artistas, etc., não podemos existir fora do campo da arte... Se não há um exterior a nós, não é porque a instituição seja perfeitamente fechada ou exista como um aparato de um ‘mundo totalmente administrado’, ou tenha crescido a ponto de tudo abarcar, tanto em tamanho quanto em escopo. É porque a instituição está dentro de nós, e não podemos sair de nós mesmos.” Andrea Fraser. From the critique of institutions to the institution of critique. In John C. Welchman (ed.). Institutional critique and after. Zurich: JRP/Ringier, 2006. 8 Cf. Gerald Raunig. Instituent practices. Fleeing, instituting, transforming. In http://transform. eipcp.net/transversal/0106/raunig/en. 9 Marcel Broodthaers. To be bien pensant… or not to be. To be blind. (1975). October 42, Marcel Broodthaers: writings, Interviews, Photographs, inverno de 1987.
sustentado por sua crítica intrinsecamente direta.7 A análise determinista de Bourdieu sobre o encerramento dos campos profissionais, matizada à profunda confusão entre a jaula de ferro de Weber e o desejo de Foucault de “livrar-se de si mesmo”, acaba sendo internalizada em uma governabilidade da falência, em que o sujeito não pode senão contemplar seu ou sua própria prisão psíquica, e ainda tendo alguns luxos estéticos por compensação.8 Infelizmente, tudo isso pouco agrega ao lúcido testamento de Broodthaers, formulado em página única, em 1975.9 Para ele, a única alternativa à consciência culpada seria a cegueira auto-imposta – o que não é, exatamente, uma solução! Ainda assim, Fraser a aceita, ao propor seu argumento como tentativa de “defender a própria instituição, para a qual a imposição do ‘auto criticismo’ das vanguardas criou a seguinte potencialidade: a instituição da crítica”. Sem a existência de qualquer forma de relação antagônica – ou mesmo agônica – com o status quo e, acima de tudo, sem nenhuma meta para mudá-lo, tudo o que se defende passa a ser nada mais do que variação masoquista da “teoria institucional da arte”, empreendida por Danto, Dickie e seus seguidores (uma teoria de reconhecimento mútuo e circular a um meio orientado e enganosamente chamado de “mundo”). A virada foi virada; e o que até então havia sido um projeto artístico de exploração e transformação, complexo e em larga escala, dos anos 60 e 70 passa a encontrar um beco sem saída, tendo como conseqüências institucionais a complacência, a imobilidade, a falta de autonomia e a capitulação perante várias formas de instrumentalização... Mudança de fase O fim pode ser lógico, mas sobra algum desejo de ir além. O primeiro a fazer-se é redefinir os meios, a mídia e os objetivos de uma possível terceira fase da crítica institucional. A noção de transversalidade, desenvolvida pelos praticantes da análise institucional, ajuda a teorizar as montagens que unem atores e recursos, desde o circuito de arte até os projetos e experimentos que não se exaurem em si mesmos, mas, preferivelmente, estendem-se
10 Cf. Félix Guattari. Psychanalyse et transversalité: essais d’analyse institutionnelle (1972). Paris: La Découverte, 2003.
alhures.10 Tais projetos não podem mais ser definidos como arte sem ambigüidades. Em vez disso, são baseados em uma circulação entre disciplinas, freqüentemente envolvendo a reserva crítica real de posições marginais ou contraculturais – movimentos sociais, as-
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sociações políticas, ocupações, universidades autônomas – que não podem ser reduzidas a uma instituição que tudo abarca. Os projetos costumam ser coletivos, mesmo que tendam a fugir das dificuldades envolvidas na coletividade, ao agir como redes. Seus inventores, que amadureceram no universo do capitalismo cognitivo, são levados a funções sociais complexas, as quais eles apreendem em todos os detalhes técnicos e com consciência total de que a segunda natureza do mundo agora é estruturada pela tecnologia e sua forma organizacional. É o compromisso político, em quase todos os casos, que lhes dá o desejo de perseguir suas investigações exigentes para além dos limites de uma disciplina artística ou acadêmica. Porém, seus processos analíticos são ao mesmo tempo expressivos, e, para eles, toda máquina complexa
Encontro da União Européia em Tessalonica (Angela Melitopoulos e Timescapes, Corridor X).
é impregnada de afeto e subjetividade. Só quando esses lados subjetivos e analíticos se enredam em novos contextos produtivos e políticos de labor comunicacional (e não apenas em meta-reflexões encenadas exclusivamente para o museu) é que se pode, então, falar de uma “terceira fase” da crítica institucional – ou, melhor, de uma “mudança de fase” – sobre aquilo que antes era conhecido como esfera pública. Uma mudança que tem transformado, extensivamente, os contextos e modos da produção cultural e intelectual do século XXI. Um número da Multitudes, co-editado com o jornal eletrônico Transform, dá exemplos dessa abordagem.11 O objetivo é esboçar o campo problemático de uma prática exploratória que não é nova, mas cuja urgência é definitivamente crescente. Mais do que oferecer uma
11 Ver Extradisciplinaire. In http://transform. eipcp.net/transversal /0507.
receita tutorial, gostaríamos de jogar nova luz sobre os antigos problemas de fechamento de disciplinas especializadas, sobre a paralisia intelectual e afetiva que isto suscita, e a alienação da capacidade para qualquer tomada de decisão democrática que inevitavelmente a segue, sobretudo em uma sociedade tecnológica altamente complexa. As formas de expressão — como intervenção pública e reflexividade crítica — que se têm desenvolvido em resposta a condições podem ser caracterizadas como extradisciplinaridade sem o fetichismo da palavra, porém, às expensas do horizonte que ela busca indicar. Ao considerar obras e, particularmente, artigos que lidam com questões de tecnopolítica, alguns talvez viessem a imaginar se não seria interessante evocar o nome de Bruno Latour. Sua ambição é justamente a de “tornar as coisas públicas” ou, mais precisamente, elucidar os encontros específicos entre objetos tecnicamente complexos e processos específicos de tomada de decisão (sejam eles políticos de jure ou de facto). Ele apregoa que, para tanto, é preciso proceder sob a forma das “provas” — estabelecidas o mais rigorosamente possível e ao mesmo tempo “bagunçadas” — como as coisas do mundo em si.12 Há algo interessante no mecanismo de provas de Latour (mesmo que ele, de fato, tenda a seguir de maneira inequívoca rumo ao produtivismo acadêmico da “interdisciplinaridade”). É característica daqueles que não sonham mais com um exterior absoluto, ou com uma revolução que recomece tudo do zero, a preocupação de como as coisas são formadas no presente; o desejo de uma interferência construtiva nos processos e decisões que as formam.
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12 Bruno Latour, Peter Weibel (eds.). Making things public: atmospheres of democracy. Karlsruhe: ZKM, 2005.
De qualquer maneira, já é suficiente considerar os artistas que convidamos a participar do número de Multitudes, para perceber as diferenças. Por mais que se tente, o oleoduto BakuTiblisi-Ceyhan, de 1.750km, não pode ser reduzido a “prova” de coisa alguma, mesmo que 13 A vídeoinstalação Black sea files de Ursula Biemann, feita no contexto do projeto Transcultural Geographies, foi exibida em conjunto com as outras obras daquele projeto no KunstWerke, em Berlim, de 15 de dezembro de 2005 a 26 de fevereiro de 2006. Em seguida, foi exibida na Fundação Tapies, em Barcelona, de 9 de março a 6 de maio de 2007; publicada in Anselm Frank (editor e curador). B-Zone: Becoming Europe and Beyond, cat. Berlim: KW/Actar, 2005.
Ursula Biemann o tenha comprimido em uma das 10 seções de Black Sea Files.13 Cruzando o Azerbaijão, a Georgia e a Turquia antes de desembocar no Mediterrâneo, o oleoduto forma um objeto de decisões políticas — mesmo enquanto se esparrama para além da razão e da imaginação, empenhando todo o planeta na atual incerteza política e ecológica. Da mesma maneira, os corredores pan-europeus de transporte e comunicação que atravessam a antiga Iugoslávia, Grécia e Turquia — filmados pelos participantes do grupo Timescapes iniciado por Angela Melitopoulos — resultam de um dos processos de planejamento infra-estrutural mais complexos de nossa época, concluído em níveis transnacionais e transcontinentais. Ainda assim, esses projetos econômicos, esquematizados com precisão, são imediatamente intrincados nas memórias conflitantes de seus precedentes históricos, e desferidos sobre a multiplicidade de seus usos, os quais incluem a encenação de gigantescos protestos auto-organizados; uma resistência consciente à manipulação da vida cotidiana pelo processo de planejamento desses corredores. Seres humanos não desejam ser a “prova viva” de uma tese econômica, criada de cima para baixo com instrumentos poderosos e sofisticados — que incluem dispositivos de mídia que distorcem suas imagens e afetos mais íntimos. A placa insistente de um protestante anônimo, agitada diante das câmeras de TV durante a cúpula em Tessalonica, diz tudo: QUALQUER SIMILARIDADE COM
14 A videoinstalação Corridor X, de Angela Melitopoulos, assim como a obra dos demais membros de Timescapes, foi exibida e publicada em B-Zone: Becoming Europe and Beyond, op. cit.
PESSOAS OU EVENTOS REAIS NÃO É INTENCIONAL.14 A história da arte emergiu no presente, e a crítica das condições de representação transbordou sobre as ruas. Porém, no mesmo movimento, as ruas assumiram seu lugar em nossas críticas. Nos artigos filosóficos também incluídos no projeto de Multitudes, instituição e constituição sempre rimam com destituição. Ter o foco específico na prática artística extradisciplinar não significa dizer que a política radical foi esquecida; longe disso. Hoje, mais do que nunca, qualquer investigação construtiva deve suscitar padrões de resistência. Meus agradecimentos a Gerad Raunig e Stefan Nowotny, por sua colaboração neste texto e no âmbito maior do projeto.
Brian Holmes é crítico cultural, mora em Paris e trabalha com a prática política e artística, deslocando-se incansavelmente pelo mundo. É autor de Hieroglyphs of the Future: Art and Politics in a Networked Era (Zagreb: WHW, 2002) e de Unleashing the Collective Phantoms: Essays in Reverse Imagineering (New York: Autonomedia, 2008). Atualmente colabora com o Continental Drift Seminar, com o 16 Beaver Group, e com o WHW Curatorial Collective. Uma coletânea de textos seus encontra-se neste endereço: http:// brianholmes.wordpress.com
Investigações extradisciplinares – Para uma nova crítica das instituições Brian Holmes
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Marlon de Azambuja. Casa con grande fachada, nanquim sobre papel, 30 x 22cm, 2007.
Memória do corpo contamina museu Suely Rolnik
Vou dar um exemplo pessoal: considero a poesia como um dos componentes mais importantes da existência humana, não tanto como valor, mas como elemento funcional. Deveríamos receitar poesia como se receitam vitaminas. Félix Guattari, São Paulo, 1982.1
Grande parte da obra de Lygia Clark consiste em proposições que implicam o corpo em sua capacidade sensível de ser afetado pelo outro. A obra deixa, aqui, de limitar-se ao objeto para se realizar enquanto acontecimento da relação poética entre seus receptores e o mundo. Impossível apresentar tais trabalhos apenas expondo os objetos usados nas ações que implicavam ou sua documentação, pois isso as reduz a um fetiche esvaziado de sua vitalidade crítica. Como, então, transmitir esse tipo de obra? Memória, micropolítica, macropolítica. O percurso artístico de Lygia Clark ocupa posição singular no movi1 Guattari, Félix e Rolnik, Suely. Micropolítica. Cartografias do desejo. Petrópolis: Vozes, 1986; 7a ed. revista e ampliada, 2007, p. 269. Versão em espanhol: Micropolitica. Cartografias del deseo. Madrid: Traficantes de Sueños, 2006, p. 263; ou Micropolitica. Cartografias del deseo. Buenos Aires: Tinta Limón (colectivo Situaciones), 2006, p. 328. Versão em francês: Micropolitiques. Paris: Le Seuil (Les empêcheurs de penser en rond), 2007. Versão em inglês: Molecular Revolution in Brazil. Nova York: Semiotext/MIT, 2007.
mento de crítica institucional que se desenvolve ao longo dos anos 60 e 70. Na época, como sabemos, artistas em diferentes países tomam como alvo de sua investigação o poder institucional do assim chamado “sistema da arte” na determinação de suas obras: dos espaços a elas destinados às categorias a partir das quais a história (oficial) da arte as qualifica, passando pelos meios empregados e os gêneros reconhecidos, entre outros tantos elementos. Explicitar, problematizar e superar tais limitações passam a orientar a prática artística, como condição de sua força poética – a vitalidade propriamente dita da obra, da qual emana seu poder de interferência crítica na realidade. No Brasil, a crítica à instituição artística manifesta-se desde o início dos anos 60 em práticas especialmente vigorosas e se intensifica ao longo da década, já então no bojo de um amplo movimento contracultural, o qual persiste mesmo após 1964, quando se instala no país uma ditadura militar. No entanto, no final da década, o movimento começa a esmaecer por efeito das feridas nas forças de criação ocasionadas pelo recrudescimento da violência da ditadura militar, com a
2 O Ato Institucional n. 5, promulgado pela ditadura militar em 13 de dezembro de 1968, permitia punir com prisão qualquer ação ou atitude consideradas subversivas, sem direito a habeas corpus.
promulgação do AI5 em dezembro de 1968.2 Muitos artistas são forçados ao exílio, seja por ter sido presos ou por arriscar sê-lo, seja simplesmente porque a situação se tornara intolerável: tal foi o caso de Lygia Clark. Como todo trauma coletivo desse porte, o debilitamento do poder crítico da criação por efeito do terrorismo de Estado estende-se por mais uma década depois da volta da democracia, nos anos 80, quando se instala o neoliberalismo no país. Com exceção de breve período de agitação cultural no bojo do movimento pelo fim da ditadura, no início dos anos 80,
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só mais recentemente a força crítica da arte volta a ativar-se por iniciativa de uma geração que se afirma a partir da segunda metade dos anos 90, com questões e estratégias concebidas em função dos problemas trazidos pelo novo regime, já então plenamente instalado. Como em práticas similares que se fazem hoje por toda parte, uma das características das estratégias atuais é a deriva extraterritorial, como assinala Brian Holmes.3 No caso do Brasil e de muitos países da América Latina, privilegia-se nessa deriva a conexão com práticas sociais e políticas (por exemplo, o Movimento Sem Teto do Centro na cidade de São Paulo). Isso não implica, no entanto, desertar por completo da instituição artística, com a qual se mantém relação despreconceituosa, em fluida dinâmica de idas e vindas, que a cada volta tende a injetar em seu
3 V. Brian Holmes. L’extradisciplinaire, publicado por ocasião de um trabalho em colaboração com François Deck na exposição Traversées, no Musée d’art moderne de la Ville de Paris, 2001. V. igualmente, do mesmo autor, L’extradisciplinaire. Vers une nouvelle critique Institutionnelle. Multitude, n. 28, Paris, 2007.
corpo agonizante doses de força poética que disparam micromovimentos de desterritorialização crítica. Essa é outra característica de tais práticas, que as diferencia das propostas marcadas pela crítica institucional dos anos 60 e 70, como sugere Holmes.4 O autor qualifica tal deriva como “extradisciplinar”, para designar o que ele circuscreve como uma terceira geração da crítica institucional, de modo a distingui-la das gerações precedentes: a primeira, dos anos 60 e 70, que ele caracteriza como “antidisciplinar” e, a segunda, do final dos anos 80 e início dos 90, que, segundo Holmes, leva o movimento da década anterior a seu limite, revelando o impasse
4 A participação de 13 coletivos de São Paulo na IX Bienal de Havana, com o título Território São Paulo, é um entre os inúmeros exemplos do movimento de idas e vindas do campo institucional da arte, por parte de jovens artistas brasileiros (http://www.bienalhabana. cult.cu/protagonicas/proyectos/proyecto. php?idb=9&&idpy=23).
ao qual a arte se vê confrontada ao orientar sua crítica para o interior da própria instituição artística. A tendência extradisciplinar que se afirma nos anos 90 é uma resposta a esse impasse, bem como às questões colocadas no contexto do neoliberalismo, cuja hegemonia internacional coincide com o surgimento dessa geração de artistas. Ao identificar na atualidade a tendência extradisciplinar, o autor também pretende, porém, distingui-la de outras tendências presentes em parte da mesma geração, em direção ao que ele qualifica como “interdisciplinariedade” e “indisciplina”. Com o primeiro termo, ele assinala deriva semelhante para outras disciplinas, mas que é apenas discursiva e que se utiliza de glamouroso virtuosismo no intuito de rechear um texto vazio, pastiche inteiramente destituído de crítica, de fácil digestão pelo mercado, bem ao gosto da demanda de estetização do novo regime. Com o segundo termo, o autor assinala em certas práticas atuais a presença de uma liberdade de experimentação indisciplinada aparentemente similar à dos movimentos dos anos 60 e 70, mas cuja razão de ser é na verdade a adaptação à flexibilidade de demanda de signos, própria do sistema capitalista contemporâneo. Nesse contexto, como sabemos, o conhecimento e a criação converteram-se em objetos privilegiados de instrumentalização a serviço do mercado, levando alguns autores a qualificar o neoliberalismo globalizado de “capitalismo cognitivo” ou “cultural”. A artista digere o objeto Em 1969, Lygia Clark escreve: ”No próprio momento em que digere o objeto, o artista é digerido pela sociedade que já encontrou para ele um título e uma ocupação burocrática: ele será o engenheiro dos lazeres do futuro, atividade que em nada afeta o equilíbrio das estruturas sociais”.5 Espécie de profecia, esse pequeno texto é a prova da aguda lucidez dessa artista acerca dos efeitos perversos do capitalismo cultural no território da arte, já em 1969, quando o novo regime apenas se anunciava no horizonte, vindo a instalar-se mais incisivamente só a partir do final dos anos 70. As formas da crítica que Lygia coloca em ação em suas proposições nas duas décadas
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5 Lygia Clark. L’homme structure vivante d’une architecture biologique et celulaire. In: Robho, n. 5-6, Paris, 1971 (facsimile da revista disponível In: Lygia Clark, de l’oeuvre à l’événement. Nous sommes le moule, à vous de donner le souffle, catálogo de exposição, Suely Rolnik & Corinne Diserens (eds.). Nantes: Musée de Beaux-Arts de Nantes, 2005. Versão brasileira: Lygia Clark, da obra ao acontecimento. Somos o molde, a você cabe o sopro. São Paulo: Pinacoteca do Estado de São Paulo, 2006 (encarte com a tradução para o português dos dossiers Lygia Clark em Robho). Republicado em inglês e espanhol in Borja Villel, Manuel e Enguita Mayo, Nuria (edit.). Lygia Clark. Barcelona: Fondació Antoni Tapiès, 1997. Duas edições bilíngües (francês/ português e espanhol/inglês).
seguintes só encontrarão ressonância 10 anos depois de sua morte, no movimento de deriva extradisciplinar empreendido pela nova safra de artistas. Diante da evidência dessa ressonância e, por conseguinte, da sustentação coletiva que então se oferecia ao gesto crítico da artista – o qual, por outro lado, vinha sendo abolido pela forma que tomava a incorporação recente de sua obra pelo mercado –, decidi realizar um projeto de construção de memória em torno de sua trajetória. Desenvolvido entre 2002 e 2007, o intuito do projeto foi o de criar condições para a reativação da contundência dessa obra em sua volta ao terreno institucional da arte. Lygia Clark embarcou em seu périplo como artista em 1947. Seus 13 primeiros anos foram consagrados à pintura e à escultura, mas já em 1963, com Caminhando, sua investigação sofreu guinada radicalmente inovadora que se mostrou irreversível, deslocando-se para a criação de propostas que dependiam do processo que mobilizavam no corpo de seus participantes como condição de realização. Mas em que consistiam exatamente tais propostas? As práticas experimentais de Lygia Clark são em geral compreendidas como experiências multissensoriais, cuja importância teria sido a de ter ultrapassado a redução da investigação artística ao âmbito do olhar. No entanto, se explorar o conjunto dos órgãos dos sentidos era questão da época, de fato compartilhada por Lygia Clark, seus trabalhos foram além: o foco de sua investigação consistia em mobilizar as duas capacidades de que seriam portadores cada um dos sentidos. Refiro-me às capacidades de percepção e de sensação, que nos permitem apreender a alteridade do mundo, como um mapa de formas sobre as quais projetamos representações ou como um diagrama de forças que afetam todos os sentidos em sua vibratibilidade, respectivamente. As figuras de sujeito e objeto só existem no exercício da primeira capacidade, a qual as supõe e as mantém em relação de mútua exterioridade; já no exercício da segunda, o outro é plástica multiplicidade de forças que pulsam em nossa textura sensível, tornando-se assim parte de nós mesmos, numa espécie de fusão. Dois modos de apreensão da realidade, irredutivelmente paradoxais tanto em sua lógica como em sua dinâmica, e cujas marcas formam igualmente dois tipos de memória. A tensão do referido paradoxo é o que mobiliza e impulsiona a imaginação criadora (ou seja, a potência do pensamento), a qual por sua vez desencadeia devires de si mesmo e do 6 Para mais esclarecimentos acerca da dupla capacidade do sensível e seu paradoxo, assim como de sua presença central na poética de Lygia Clark, v. Suely Rolnik. Terapêutica para tempos desprovidos de poesia/D’une cure pour temps dénués de poésie, pp.13-26. Versão em espanhol: Una terapéutica para tiempos desprovistos de poesía. In Aurora Polanco (edit). O Cuerpo y mirada: huellas del siglo XX. Madrid: MNCARS, 2007.
meio em direções singulares e não paralelas, impulsionadas pelos efeitos de seus encontros.6 Desde o começo de seu percurso, a experimentação artística de Lygia Clark buscou mobilizar nos receptores de suas proposições a apreensão vibrátil do mundo, bem como seu paradoxo em relação à percepção, visando à afirmação da imaginação criadora, que esse diferencial poria em movimento, e seu efeito transformador. O trabalho não mais se interromperia na finitude da espacialidade do objeto; realizava-se agora como temporalidade numa experiência na qual o objeto se descoisifica para voltar a ser um campo de forças vivas que afetam o mundo e são por ele afetadas, promovendo contínuo processo de diferenciação. Essa foi sua maneira de resistir à tendência da instituição artística a neutralizar a potência da criação por meio da reificação de seu produto, reduzindo-o a um objeto fetichizado. A artista, de fato, digeriu o objeto: a obra torna-se acontecimento, ação sobre a realidade, transformação da mesma.
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Essa questão já estava presente nas estratégias picturais e esculturais de Lygia Clark.7 Depois de 1963, porém, a obra passa a não mais poder existir senão na experiência do receptor, fora da qual os objetos se convertem numa espécie de nada, resistindo em princípio a qualquer desejo de fetichização. O penúltimo passo foi dado no trabalho com seus alunos na Sorbonne, onde a artista lecionou de 1972 a 1976.8 Já aqui, ela opta por exilar-se do território institucional e disciplinar da arte, migrando para a universidade, no contexto da Paris estudantil pós-68, em que se torna mais viável introduzir em suas propostas a alteridade e o tempo, que haviam sido banidos do território da arte. Aqui, entretanto, se revela que a experiên-
7 V. Suely Rolnik. Molding a Contemporary Soul: The Empty-Full of Lygia Clark. In Rina Carvajal y Alma Ruiz (eds.). The Experimental Exercise of Freedom: Lygia Clark, Gego, Mathias Goeritz, Hélio Oiticica and Mira Schendel. Los Angeles: The Museum of Contemporary Art, 1999, pp. 55-108. 8 Lygia Clark foi professora na então recémcriada UFR d’Arts Plastiques et Sciences de l’Art de l’Université de Paris I, na Sorbonne (faculdade conhecida por St. Charles).
cia que seus objetos supõem e mobilizam como condição de sua expressividade choca-se contra certas barreiras subjetivas em seus receptores. Essas são erguidas pela fantasmática inscrita na memória do corpo, resultante dos traumas vividos no passado em tentativas de estabelecer esse tipo de relação sensível com o mundo. Tais tentativas teriam sido inibidas por não ter encontrado reverberação num entorno avesso a essa qualidade de relação com a alteridade (o que pode agravar-se em regimes ditatoriais em que esse tipo de relação é objeto de humilhação, proibição ou castigo, como é o caso do Brasil nos anos 60-70). Lygia Clark então se dá conta de que não era nada evidente concretizar uma das questões centrais de sua investigação artística: reativar nos receptores de suas criações essa qualidade de experiência estética. Refiro-me à capacidade de eles se deixarem afetar pelas forças dos objetos criados pela artista e dos ambientes em que esses eram vividos; mas também e sobretudo de se deixarem afetar, por extensão, pelas forças dos ambientes de sua existência cotidiana. É diante desse impasse que a artista cria a Estruturação do Self, último gesto de sua obra, que acontece depois de sua volta definitiva ao Rio de Janeiro, em 1976. O novo foco de pesquisa passava a ser a memória dos traumas e de seus fantasmas, cuja mobilização deixaria agora de ser mero efeito colateral de suas proposições, para ocupar o próprio centro nervoso de seu novo dispositivo. Lygia Clark buscava explorar o poder daqueles objetos de trazer à tona essa memória e “tratá-la” (uma operação que ela designava como “vomitar a fantasmática”). Foi portanto a própria lógica de sua investigação o que a levou a inventar sua proposição artística derradeira, à qual se agregava uma dimensão deliberadamente terapêutica. A artista trabalhava com cada pessoa individualmente em sessões de uma hora, de uma a três vezes por semana, durante meses e, em certos casos, mais de um ano. Sua relação com o receptor, mediada pelos objetos, tornara-se indispensável para a realização da obra: é a partir das sensações da presença viva do outro em seu próprio “corpo vibrátil”,9 ao longo de cada sessão, que a artista ia definindo o uso singular dos Objetos Relacionais.10 Essa mesma qualidade de abertura ao outro é o que ela buscava provocar naqueles que participavam desse trabalho. Nesse laboratório clínico-poético, a obra se realizava na tomada de consistência dessa qualidade de relação com a alteridade na subjetividade de seus participantes. Pesquisar essa qualidade relacional em suas propostas artísticas foi possivelmente a maneira que Lygia Clark encontrou para deslocar-se da política de subjetivação marcada pelo individualismo, já então dominante, tal como se apresentava – e se apresenta cada vez mais – no terreno da arte: o par formado pelo artista inofensivo em estado de gozo narcísico e seu
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9 “Corpo vibrátil” é noção que venho trabalhando desde 1987, quando a propus pela primeira vez em minha tese de doutorado, publicada em livro em 1989 (Cartografia Sentimental. Transformações contemporâneas do desejo. Reedição: Porto Alegre: Sulina, 2006, 3ª edição 2007). Tal noção designa a capacidade de todos os órgãos dos sentidos de se deixar afetar pela alteridade. Ela indica que é todo o corpo que tem tal poder de vibração às forças do mundo. 10 Objetos relacionais é o nome genérico que Lygia Clark atribuiu aos objetos que haviam migrado de proposições anteriores para a Estruturação do Self, ou que ela criava especialmente para esse fim.
espectador/consumidor em estado de anestesia sensível. Nesse sentido, a noção de “relacional”, medula da poética pensante da obra de Lygia Clark, poderia nos servir como lente suplementar para diferenciar atitudes na massa de proposições aparentemente similares que proliferam nos dias de hoje, somando-se às distinções propostas por Holmes entre, de um lado, a tendência crítica em direção à “extradisciplinaridade” e, de outro, a tendência acrítica em direção à “interdisciplinaridade” e à “indisciplina”. No interior do circuito institucional, as propostas que têm sido qualificadas e teorizadas 11 V. especialmente Nicolas Bourriaud. Esthétique Relationnelle. Dijon: Presses du Réel, 2002.
como “relacionais”.11 (incluindo as categorizadas nas rubricas “interatividade”, “participação do espectador” e outras) reduzem-se, freqüentemente, a um exercício estéril de entretenimento que contribui para a neutralização da experiência estética – coisa de engenheiros do lazer, para parafrasear Lygia Clark. Uma tendência perfeitamente ao gosto do capitalismo cognitivo e que se expande junto com ele, exatamente com o mesmo ritmo, velocidade e direção iguais. Tais práticas estabelecem uma relação de exterioridade entre o corpo e o mundo em que tudo se mantém no mesmo lugar, e a atenção se mantém entretida, imersa num estado de distração que torna a subjetividade insensível aos efeitos das forças agitadoras do meio que as circunda. Sendo assim, a suposta indisciplina de tais propostas ou a interdisciplinaridade estéril dos floreios discursivos que costumam acompanhá-las constituem meios privilegiados de produção de uma subjetividade facilmente instrumentalizável. Poética “e” política Nesse aspecto, podemos considerar que, pelo menos na intenção, é outra a situação das práticas ditas “extradiscipinares”. Essas se caracterizam por um movimento deliberado de deriva que as leva para fora das fronteiras do circuito e, aliás, em sua contracorrente. Refiro-me principalmente às propostas que se infiltram nos interstícios mais tensos das cidades, comuns na América Latina. Nesse movimento, elas freqüentemente se aproximam de práticas militantes. Mas o que estaria aproximando, artistas e ativistas no novo contexto? O que suas práticas teriam em comum? Por outro lado, o que as diferenciaria nessa sua intersecção? Ações micro e macropolíticas têm em comun o fato de constituírem duas maneiras de enfrentar as tensões da vida humana nos pontos em que sua dinâmica de transformação se encontra travada; ambas têm como alvo a liberação do movimento vital, o que faz delas atividades essencias para a saúde de uma sociedade – isto é, a afirmação de seu potencial inventivo de mudança quando essa se faz necessária. Entretanto são distintas as ordens de tensões que cada uma enfrenta, assim como as operações de seu enfrentamento e as faculdades subjetivas que elas envolvem. A operação própria da ação macropolítica intervém nas tensões que se produzem na realidade visível, estratificada, entre pólos em conflito na distribuição dos lugares estabelecidos pela cartografia dominante num dado contexto social (conflitos de classe, de raça, de gênero, etc.). São relações de dominação, opressão e/ou exploração em que a vida daqueles que se encontram no pólo dominado tem sua potência diminuída por tornar-se objeto instrumentalizado
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por aqueles que se encontram no pólo dominante. A ação macropolítica inscreve-se no âmago desses conflitos, tendo por objetivo lutar por uma configuração social mais justa. Já a operação própria à ação micropolítica intervém na tensão da dinâmica paradoxal entre, de um lado, a cartografia dominante com sua relativa estabilidade e, de outro, a realidade sensível em constante mudança, efeito da presença viva da alteridade que não pára de afetar nossos corpos. Tais mudanças tensionam a cartografia em curso, o que acaba provocando colapsos de sentido. Esses se manifestam em crises na subjetividade, que nos forçam a criar, de modo a dar expressividade à realidade sensível que pede passagem. A ação micropolítica inscrevese no plano performativo não só artístico (visual, musical, literário ou outro), mas também conceitual e/ou existencial. Isso só faz sentido se entendermos a produção – de conceitos e de formas de existência – como atos de criação, o que nos permite considerar transformações existenciais, sejam elas individuais ou coletivas, obras de arte. Nessas ações micropolíticas operam-se mudanças irreversíveis na cartografia vigente. Ao tomar corpo nas criações artísticas, teóricas e/ou existenciais, tais mudanças as tornam portadoras de um poder de contágio em seu entorno. É isso que escreve Guattari em 1982, na citação que coloquei como epígrafe, extraída de Micropolítica. Cartografias do Desejo, livro que fizemos em co-autoria: Quando uma idéia é válida, quando uma obra de arte corresponde a uma mutação verdadeira, não é preciso artigos na imprensa ou na TV para explicá-la. Transmite-se diretamente, tão depressa quanto o vírus da gripe japonesa. [Ou, em outro momento do mesmo livro] Considero a poesia como um dos componentes mais importantes da existência humana, não tanto como valor, mas como elemento funcional. Deveríamos receitar poesia como se receitam vitaminas.12 Em suma: do lado da macropolítica, estamos diante das tensões dos conflitos no plano da cartografia do real visível e dizível (plano das estratificações que delimitam sujeitos, objetos e suas representações); do lado da micropolítica, estamos diante das tensões entre esse plano e o que já se anuncia no diagrama do real sensível, invisível e indizível (plano dos fluxos, intensidades, sensações e devires). O primeiro tipo de tensão é acessado sobretudo pela percepção, e o segundo, pela sensação. A figura clássica do artista costuma estar mais do lado da ação micropolítica, e a do militante, do lado da macropolítica. Só recentemente, a partir dos anos 90, essa divisão começou a transformar-se. É que no contexto do capitalismo cultural, a arte tende a uma deriva extraterritorial e se aproxima do ativismo freqüentemente e de diferentes maneiras. Isso se deve ao bloqueio da potência política que lhe é peculiar ocasionado pelo novo regime que a instrumentaliza. Tal bloqueio decorre da lógica mercantil-midiática que o regime impôs no terreno da arte, a qual atua dentro e fora do mesmo. Dentro do terreno da arte, a operação é mais evidente: ela consiste em associar práticas artísticas aos logos das empresas, agregando-lhes com isso “poder cultural”, o que incrementa seu poder de sedução no mercado. O mesmo vale para cidades
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12 F. Guattari e S. Rolnik. Micropolítica. Cartografia do desejo, op.cit, p. 269.
que hoje têm nos Museus de Arte Contemporânea e suas espetaculosas arquiteturas um de seus principais equipamentos de poder para inseri-las no cenário do capitalismo globalizado, tornando-as assim pólos mais atrativos para investimentos. É certamente por sentir a exigência de enfrentar a opressão da dominação e da exploração em seu próprio terreno – que resulta da relação específica entre capital e cultura sob o neoliberalismo – que os artistas passaram a optar pelas estratégias extradisciplinares, agregando a dimensão macropolítica a suas ações. Entretanto, o bloqueio da potência crítica da criação se faz também fora de seu terreno, pois a lógica mercantil-midiática não só tem nas forças de criação uma de suas principais fontes de extração de mais-valia, como sabemos, mas sobretudo ela opera sua instrumentalização para constituir o que chamarei aqui de “imagosfera”, a qual hoje recobre inteiramente o planeta. Refiro-me à camada contínua de imagens que se interpõe como filtro entre o mundo e nossos olhos, tornando-os cegos à tensa pulsação da realidade. Tal cegueira, acrescida da identificação acrítica com essas imagens (que tende a se produzir nos extratos mais variados da população por todo o planeta) é o que prepara e condiciona as subjetividades para submeter-se aos desígnios do mercado, permitindo assim que sejam aliciadas todas as suas forças vitais para a hipermáquina de produção capitalista. Considerando que a vida social é o destino final da força inventiva assim instrumentalizada – sistematicamente desviada de seu curso para a produção da intoxicante imagosfera –, é precisamente a vida social o lugar que muitos artistas têm escolhido para armar seus dispositivos críticos, já impulsionados a lançar-se numa deriva para fora da atmosfera igualmente intoxicante das instituições artísticas. Nesse êxodo criam-se outros meios de produção artística como também outros territórios de vida (daí a tendência a organizar-se em coletivos, que se inter-relacionam, juntando-se muitas vezes em torno de objetivos comuns, seja no terreno cultural ou no político, e retomando a autonomia tão logo se realizem tais objetivos). Nesses territórios, voltam a respirar tanto a relação sensível com alteridade pulsante (ou seja, a experiência estética) quanto a liberdade do artista de criar em função das tensões indicadas pelos afetos do mundo em seu corpo – o que tende a chocar-se contra muitas barreiras intransponíveis no território institucional da arte. A dimensão macropolítica que se ativa nesse tipo de práticas artísticas é o que as aproxima dos movimentos sociais na resistência à perversão do regime em curso. Tal aproximação encontra sua recíproca nos movimentos sociais, que por sua vez, são levados a incorporar uma dimensão micropolítica a seu ativismo tradicionalmente limitado à macropolítica. Isso acontece na medida em que, no novo regime, a dominação e a exploração econômicas têm na manipulação da subjetividade via imagem uma de suas principais armas, senão a principal. Sua luta, portanto, deixa de restringir-se ao plano da economia política, para englobar os planos da economia do desejo e da política da imagem. A colaboração entre artista e ativista impõe-se muitas vezes na atualidade como condição necessária para levar a termo o trabalho de interferência crítica que tanto um como outro empreendem, cada qual num âmbito específico do real, e cujo encontro produz efeitos de transversalidade em cada um de seus respectivos terrenos.
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A lente relacional Uma vez identificada a deriva extraterritorial, segundo a visão que Holmes nos oferece com sua cartografia, temos condições de tornar seu traçado ainda mais preciso. É que se faz necessário diferenciar atitudes também nessa deriva. Se no contexto do capitalismo cultural os artistas compartilham com os ativistas os mesmos focos de tensão da realidade, no entanto as práticas artísticas de interferência na vida pública mais contundentes não são as que, em sua aproximação com as práticas militantes, acabam confundindo-se inteiramente com elas – reduzindo seu campo de ação à macropolítica e correndo o risco de se tornar estritamente pedagógicas, ilustrativas e até panfletárias. As práticas artísticas de interferência na vida pública mais contundentes são, com efeito, aquelas que afirmam a potênca política própria da arte. Aqui, novamente, pode nos servir de lente a noção de “relacional”, tal como definida pelas propostas de Lygia Clark. Nessa deriva em direção à vida pública, as intervenções artísticas que preservam sua potência micropolítica seriam aquelas que se fazem a partir do modo como as tensões do capitalismo cultural afetam o corpo do artista, e é essa qualidade de relação com o presente que tais ações podem convocar em seus ‘perceptores’.13 E quanto mais precisa sua linguagem, maior seu poder de liberar a expressão e suas imagens de seu uso perverso. Isso favorece outros modos de utilização das imagens, outras formas de recepção, mas também de expressão, as quais podem introduzir novas políticas da subjetividade e de sua relação com o mundo, ou seja, novas configurações do inconsciente no campo social, em ruptura com as referências dominantes. Em outras palavras, o que esse tipo de prática pode suscitar naqueles que são por ela afetados não é simplesmente a consciência da dominação e da exploração, sua face visível, macropolítica, mas sim a experiência dessas relações de poder no próprio corpo, sua face invisível, inconsciente, micropolítica, que interfere no processo de subjetivação exatamente onde ele se torna cativo. Diante dessa experiência, tende a ser impossível ignorar o mal-estar que essa perversa cartografia nos provoca. Isso pode nos levar a romper o feitiço da imagosfera neoliberal sobre nossos olhos, despertando sua potência vibrátil de seu estado doentio de hibernação. Ganha-se com isso mais precisão de foco para uma prática de resistência efetiva, inclusive no plano macropolítico que, em compensação, se debilita quando tudo que diz respeito à vida social volta a reduzir-se exclusivamente à macropolítica, fazendo dos artistas que atuam nesse terreno meros cenógrafos, designers gráficos e/ou publicitários do ativismo (o que, além do mais, favorece as forças reativas que predominam no território institucional da arte, ao lhes fornecer argumentos para justificar sua separação da realidade e sua despolitização). O novo contexto leva à colaboração entre artistas e ativistas, permitindo ultrapassar o abismo entre micro e macropolítica que caracteriza a conturbada relação de amor e ódio entre movimentos artísticos e movimentos políticos ao longo do século XX, responsável por muitos dos fracassos de tentativas coletivas de mudança. Para isso, porém, é preciso manter a tensão dessa diferença irreconciliável de modo que ambas as potências – micro e macropolíticas – estejam ativas e se preserve sua transversalidade nas ações artísticas e
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13 ‘Perceptores’ é sugestão do artista brasileiro Rubens Mano, para designar o tipo de relação estabelecido em propostas artísticas que para realizar-se dependem de seu efeito na subjetividade de quem delas participa. Noções como a de receptor, espectador, participador, participante, etc. são inadequadas para esse tipo de proposta.
militantes que a nova situação favorece em cada uma delas e, por extensão, na vida social como um todo. Uma relação marcada por um “e” tensionado entre ações radicalmente heterogêneas, distinta das relações caracterizadas seja pela redução de uma à outra, seja pela opção por uma “ou” outra ou ainda pela alucinação de sua síntese, mas também pela suposição de sua não-relação, pois, como sugere Rancière, “o problema não é mandar cada qual para sua praia, mas manter a tensão que faz tender, uma para outra, uma política da 14 Jacques Rancière. Est-ce que l’art resiste à quelque chose? Conferência proferida no V Simpósio Internacional de Filosofia – Nietzsche e Deleuze “Arte e Resistência”, Fortaleza, CE, 8-12/11/2004.
arte e uma poética da política que não podem se unir sem se auto-suprimir”.14 Precocemente sensível a esse estado de coisas, Lygia Clark optou pela solidão dessa posição extradisciplinar, já nos anos 70, muito antes de ela se tornar objeto de amplo movimento coletivo de crítica no terreno da arte. O trabalho desenvolvido em sua deriva consistiu na construção de um território singular, ao qual a artista foi dando corpo, passo a passo, no transcorrer de toda a sua trajetória. Com a Estruturação do Self, completa-se essa construção. Nesse sentido é importante reconhecer que de fato Lygia abandonou o campo da arte e optou pelo campo da clínica, após sua breve passagem pela universidade. Essa é uma decisão estratégica que deve ser reconhecida enquanto tal. Tratava-se de fazer um corpo no exílio do território institucional da arte, em que sua potência crítica não encontrava ressonância e tendia a apagar-se na esterilidade de um campo sem alteridade (o que se agravava mais ainda no Brasil sob ditadura). Nessa migração, a artista reinventa o público no sentido forte de subjetividades portadoras de experiência estética que havia desaparecido do universo da arte, no qual fora substituído por massa indiferenciada de consumidores, destituídos do exercício vibrátil de sua sensibilidade e cuja existência se reduz a sua classificação em categorias estatisticamente estabelecidas. Lygia constrói esse novo público com seus dispositivos na relação com cada um de seus receptores, tendo como objeto a política de subjetivação e como meio a duração (condição para interferir nesse campo, reintroduzindo aí a alteridade, a imaginação criadora e o devir). Mas se, com essa démarche, Lygia Clark inscreve-se no movimento de deriva extradisciplinar que viria a tomar corpo duas décadas mais tarde, seu gesto viu-se constrangido a permanecer no exílio, já que o território da arte não estava pronto para recebê-lo. Nesse sentido, sua obra teve que manter-se parcialmente prisioneira da posição antidisciplinar que caracterizara os movimentos de sua época. Do ponto de vista do território insólito que a artista constituiu com sua obra, estética, clínica e política revelam-se como potências da experiência, inseparáveis em sua ação de interferência na realidade subjetiva e objetiva. Como vimos, opera nessa proposta uma intervenção sutil no estado de empobrecimento da criação e da recepção no circuito institucional da arte”, sintoma da política de subjetivação do novo regime capitalista. Mas não pára por aí: a reativação da experiência estética que essas propostas promoviam consistiu mais amplamente num ato terapêutico e de resistência política no tecido da vida social, indo além das fronteiras do campo da arte e colocando assim em crise sua suposta autonomia. Com esse trabalho seus “clientes” brasileiros – assim Lygia Clark qualificava aqueles que se dispunham a vivenciar a experiência – estariam provavelmente mais bem equipados para tratar os efeitos tóxicos do poder ditatorial em sua potência de criação,
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mas também para evitar que essa sua força fosse tão facilmente instrumentalizada, no momento em que seria reativada pelo poder perverso do novo regime.15 É esta tripla potência da obra de Lygia Clark – estética, clínica e política – que eu quis reativar com o projeto de construção de memória, em face da névoa de esquecimento que a envolve. Mas o que quer dizer “esquecimento” no caso de um corpo de obras como esse que, pelo contrário, vem sendo cada vez mais celebrado no circuito internacional da arte?
15 V. Suely Rolnik. Geopolítica da cafetinagem/The geopolitics of pimping”. In Rizoma. net, revista eletrônica, Documenta 12 Magazine Project, 2006. Versão em espanhol: Geopolítica del chuleo. In Madrid, Documenta 12 Magazine Project, 2006. Versão em alemão: Geopolitik der Zuhälterei. In Transform.eipcp. net/Transversal “subjectivities and machines”, 10/2006.
De volta ao museu De fato, durante a vida de Lygia e ainda por 10 anos após sua morte, suas práticas experimentais não tiveram recepção alguma no território da arte. Em 1998, o circuito institucional enfim reconhece as propostas experimentais da artista,16 mas a partir de então elas passam a ser fetichizadas: expõem-se simplesmente os objetos que participavam dessas ações ou se refazem tais ações diante de espectadores a elas externos. Se a artista fizera de sua obra a digestão do objeto para reativar o poder crítico da experiência artística, o circuito agora digeria a artista fazendo dela o engenheiro do lazer de um futuro que já chegara, o que “em nada afeta o equilíbrio das estruturas sociais,” tal como havia previsto. No melhor dos casos se apresentam documentos, que, entretanto, só permitem apreender tais ações fragmentariamente e em sua mera exterioridade, destituídas de sua essência “relacional”. Anula-se, assim, o valente esforço do gesto crítico da artista, de modo a fazer de sua obra uma iguaria de luxo para o banquete da instrumentalização. O mal-estar que essa situação me provocava a cada vez que me deparava com a obra de Lygia Clark trancafiada no território da clínica ou reduzida a um nada fetichizado no território da arte foi o que me impôs a exigência de inventar uma estratégia que transmitisse o que estava em jogo nessas práticas e com isso ativasse a contundência de seu gesto, no proprio momento de sua incorporação neutralizadora pelo sistema da arte. Se deixar a energia crítica das propostas de Lygia Clark ser cafetinada para os fins do capitalismo cultural seria sua morte; deixar essas propostas na clínica, destituídas do sentido do gesto migratório que as caracterizara, seria confiná-las numa nova disciplina, apagando a chama disruptiva dessa deriva. Como em todo exílio, se o território da clínica lhe servira de corpo-prótese para reativar a vitalidade da criação agonizante no território da arte, o processo prosseguiria com a volta a este último, com a condição de que o corpo de sua obra, reinventado e revitalizado no exílio, pudesse irradiar aí sua potência, abrindo espaços de pulsação poética. Mas como transmitir uma obra que não é visível, já que ela se realiza na temporalidade dos efeitos da relação que cada pessoa estabelece com os objetos que a compõem e com o contexto estabelecido por seu dispositivo? Promover um trabalho de memória por meio de várias entrevistas, que seriam cinematograficamente registradas, tal foi o caminho de resposta que encontrei. A idéia era produzir um registro vivo da reverberação do corpo constituído por Lygia em seu exílio da arte, em
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16 Refiro-me à pequena sala consagrada a algumas das proposições experimentais de Lygia Clark na Documenta X e, sobretudo, à retrospectiva itinerante de sua obra organizada pela Fondació Antoni Tapiès, a qual circulou em outros museus europeus e no Rio de Janeiro.
seus efeitos no entorno cultural e político no Brasil e na França da época. O alvo era trazer à tona a memória das potências dessas propostas, mediante uma imersão nas sensações vividas nas experiências que elas proporcionavam. Para isso, não bastava restringir as entrevistas àqueles que estavam diretamente ligados a Lygia Clark, sua vida e/ou sua obra; era necessário produzir igualmente uma memória do contexto no qual sua poética tivera origem e condições de possibilidade, já que a intervenção na política de subjetivação e de relação com o outro então dominante estava no ar do tempo e se dava igualmente, de outras tantas maneiras, no efervescente ambiente contracultural da época. Era particularmente importante convocar e registrar a angustiante experiência do abismo que se interpunha então no Brasil entre as ações macro e micropolíticas (que se manifestavam na guerrilha e na contracultura, respectivamente) numa espécie de mútua rejeição paranóica. Esse abismo agora podia ser problematizado, já que começava a ser transposto. Se fazia necessário incitar um trabalho de elaboração dessa intensa experiência de toda uma geração, o qual havia sido impedido até então pela superposição dos efeitos nefastos da ditadura e do neoliberalismo no exercício do pensamento (tarefa para a qual eu contava com meus 30 e tantos anos de prática clínica). Em suma, tratava-se de produzir uma memória dos corpos que a vivência das propostas de Lygia Clark afetara e nos quais se inscrevera para fazê-la pulsar no presente, já que seu solo, irrigado ao longo de 30 anos pelas sucessivas gerações de crítica institucional, voltava a ser potencialmente fertilizável. A operação iria a contrapelo da neutralização da obra de Lygia Clark em sua volta a este território promovida pelo mercado. A aposta era que a reativação dessa memória – especialmente a do legado da artista – agenciada com o vigor do movimento artístico reavivado pela atual geração de crítica institucional teria o poder de lhe agregar novas forças oriundas dessas poéticas ancestrais; e, reciprocamente, o poder de agregar novas forças à experiência de tais poéticas ancestrais que se haviam tornado objeto de esquecimento defensivo. Desse modo, elas poderiam ser reativadas, e suas questões, retomadas no confronto com o presente. A estratégia tornou possível a escuta de um concerto de vozes paradoxais e heterogêneas, marcadas pelo tom da singularidade das experiências vividas e, portanto, dissonantes dos timbres aos quais estamos habituados, seja no campo da arte, da clínica ou da política. Para isso, foram realizadas 66 entrevistas, na França, nos Estados Unidos e no Brasil, cujo pro17 Vinte DVDs com legendas em francês, acompanhados de um livreto, constituirão uma caixa fabricada com tiragem de 500 exemplares na França a ser distribuídos gratuitamente a instituições culturais e educacionais e comercializados em livrarias. Além disso, 53 das 65 entrevistas filmadas estarão disponíveis ao público, tanto na íntegra quanto em sua montagem, no Musée de beaux-arts de Nantes, na França. Além do referido Museu, a realização desse projeto contou com o apoio do Ministère de la Culture et de la Communication e do Le Fresnoy – Studio national des arts contémporains.
duto é uma série de DVDs.17 No transcorrer das filmagens, Corinne Diserens, que dirigia na época o Musée des Beaux-Arts de Nantes, propôs que pensássemos uma exposição a partir desse material. Outro desafio se colocava então: seria pertinente trazer essa obra para o espaço museológico, sabendo que Lygia havia desertado desse território já em 1963? Se a artista ainda estivesse viva, teria ela optado pela circulação em mão dupla que se tornou possível na atualidade? Jamais saberemos. No entanto, de algo podemos estar certos: ela reagiria energicamente ao modo como sua obra tem sido trazida de volta ao museu. Mas Lygia não está mais entre nós, e a decisão de como reagir a essa volta só pode ser tomada por nós mesmos. Assumindo a responsabilidade e o risco dessa decisão, optei por interferir nos parâmetros de transmissão de sua obra, no interior do próprio museu. Mas como transmitir um trabalho como o de Lygia Clark nesse tipo de espaço?
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A exposição trouxe uma resposta possível, com o recurso à memória que constituiu seu nervo central. Os filmes impregnavam de memória viva o conjunto de objetos e documentos expostos de modo a restituir-lhes o sentido: isto é, a experiência estética, indissociavelmente clínica e política, vivida por aqueles que participaram dessas ações e do contexto em que elas tiveram seu lugar. Minha suposição era de que só dessa forma a condição de arquivo morto que caracteriza os documentos e objetos que restam dessas ações poderia ser ultrapassada para fazer deles elementos de uma memória viva, produtora de diferenças no presente. Para essa empreitada, eu contava com um tipo de experiência de trabalho clínico no âmbito social, introduzida pela Psicoterapia e Análise Institucionais, com as quais eu estivera envolvida ao longo dos mesmos anos 70 e 80 em que Lygia desenvolvia suas experimentações relacionais. Naquelas décadas, um amplo movimento de crítica institucional agitava o campo da saúde mental em vários países provocando rupturas irreversíveis. Provavelmente foi essa a razão pela qual Lygia escolheu esse campo e não outro para sua deriva extraterritorial (período em que no território da arte, ao contrário, o movimento crítico se calara, sob o peso esmagador do mercado da arte que atinge seu apogeu nos anos 80). O que me leva a supor a razão dessa escolha é o vivo interesse que esses movimentos haviam despertado em Lygia – especialmente a experiência de Psicoterapia Institucional empreendida em La Borde, hospital psiquiátrico cujo diretor clínico era Guattari; e, também, seu desdobramento na Esquizoanálise, fruto da colaboração do psicanalista com Gilles Deleuze. A artista leu com avidez O AntiÉdipo, primeira obra conjunta desses autores, no exato momento de sua publicação em 1972, tendo aí encontrado curiosa sintonia com suas próprias investigações. Injetando poesia no circuito A melhor maneira de colocar o problema de se caberia ou não apresentar esse tipo de proposta artística em museus talvez não seja a de indagar-se se tal instituição permite esse ou qualquer outro gesto de deflagração crítica. Diferentemente do que pensava a primeira geração de crítica institucional, não existem regiões da realidade que sejam boas ou más em si, numa suposta essência identitária ou moral que as definiria de uma vez por todas. É preciso deslocar os dados do problema, como se tem feito mais recentemente. O foco da questão deve ser ético: rastrear as forças que investe cada museu, em cada momento de sua existência, das mais poéticas àquelas de sua neutralização instrumental a mais indigna. Entre esses dois pólos, ativo e reativo, afirma-se uma multiplicidade cambiante de forças, em graus de potência variados e variáveis, num constante rearranjo dos diagramas de poder. Não existem fórmulas prontas para realizar semelhante avaliação; ela depende da ativação das potências vibráteis do corpo de cada um – seja ele artista, curador ou crítico. Porém, antes de avaliar o lugar, a vibratibilidade de seu corpo deve lhe servir para fazer-se vulnerável aos novos problemas que pulsam na sensibilidade coletiva. É que problemas
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em estado virtual são o ponto de partida do gesto poético que os traz para o visível e o dizível. No caso do curador, por exemplo, sua vulnerabilidade lhe permite farejar as proposições artísticas que teriam o poder de atualizar tais problemas. Com esse critério de escolha, ele colabora com o trabalho de produção de sentido que caracteriza o pensamento artístico, assumindo a responsabilidade ética de sua função, consciente do valor político (e clínico) da experiência artística e de sua própria interferência nesse âmbito. O passo seguinte consiste em criar as condições adequadas para a transmissibilidade de cada uma dessas proposições, bem como da articulação entre elas, de modo a dar corpo ao problema que ele pretende veicular. É só então que se coloca a questão do lugar. Que tais ações se façam ou não em espaços museológicos dependerá de sua singularidade e da qualidade do problema que se encontra em sua origem; e se, em certos casos, o museu pode ser “o” lugar adequado para elas, ou pelo menos um dos lugares possíveis, aí, sim, a escolha da instituição há de passar por uma cartografia das forças em jogo antes de se tomar qualquer iniciativa. É dessa maneira que a força propriamente poética pode participar do destino da sociedade atual, contribuindo para que sua vitalidade se afirme, imune ao apelo sedutor do mercado que lhe propõe orientar-se exclusivamente segundo seus interesses. A força poética é uma das vozes na polifonia paradoxal por meio das quais se desenham os devires heterodoxos e imprevisíveis da vida pública. Esses não param de se inventar para liberar a vida de seus impasses que se formam nos focos infecciosos em que o presente se faz intolerável. O artista tem ouvido fino para os sons inarticulados que nos chegam do indizível nos pontos em que se esgarça a cartografia dominante. Sua poesia é a encarnação desses sons, que passam assim a se fazer ouvir entre nós. ”Os microprocessos revolucionários não são necessariamente da natureza das relações sociais. A relação de um indivíduo com a música ou com a pintura, por exemplo, pode acarretar um processo 18 Guattari, F. e Rolnik. S. Micropolítica. Cartografias do desejo, op. cit. p. 56. Versão em espanhol: Micropolitica. Cartografias del deseo. Madrid: Traficantes de Sueños, op. cit, p. 63; ou Buenos Aires: Tinta Limón, op.cit, p. 67. Versão em francês. Micropolitiques, op.cit., p. 67.
de percepção e de sensibilidade inteiramente novo,”18 assinala Guattari. E o esquizoanalista recomenda: ”deveríamos receitar poesia como se receitam vitaminas”. É talvez por ter produzido doses generosas de força poética que o legado de Lygia Clark continua alimentando o pensamento crítico em nossa atualidade.
Suely Rolnik é psicanalista, ensaísta, curadora, professora titular da PUC-SP e do Programa de estudios Independientes (PEI) do Museu d’Art Contemporani de Barcelona (MacBa). Pesquisadora convidada pela Fondation de France – Institut national d’histoire de l’art (INHA) em Paris, em 2007. Autora, entre outros, de Micropolítica. Cartografias do desejo em colaboração com Félix Guattari (Vozes 8a ed. 2007), publicado em cinco países. Criadora de um projeto de pesquisa e construção de memória sensível da obra de Lygia Clark e seu contexto, no qual realizou 64 filmes de entrevistas no Brasil, na França e nos EUA, nervo central de uma exposição da qual foi curadora e editora do catálogo com C. Diserens (Musée de Beaux-arts de Nantes, 2005, e Pinacoteca do Estado de São Paulo, 2006).
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La historia no es exactamente la ciencia del pasado porque el “pasado exacto” no existe. George Didi-Huberman, Ante el tiempo Partindo do preceito de que as narrações históricas são construções históricas, e com o propósito de repensar os tópicos canônicos da história da arte moderna, este ensaio testará a possibilidade de refletir acerca dessas histórias, considerando fontes diferentes. A hipótese central é a de que esses documentos oferecem outros nomes, atores, problemas, etc. e, em virtude disso, admitem outras narrações e com elas “outra” história da arte moderna. Arte moderna, metrópole cultural, América Latina. Algumas considerações iniciais A afirmação provocadora de Didi-Huberman foi escolhida como abertuTradução Michelle Ribeiro Bacalhau.
ra para este texto porque permite situá-lo rapidamente no lugar da polêmica historiográfica. Entretanto, não é o problema da história da arte em geral que tentaremos abordar aqui. Este ensaio tem um propósito mais preciso: exercitar a suspeita sobre o alcance de um dos relatos particulares dessa história, que se refere ao último período do século XIX e mais intensamente às duas primeiras décadas do século XX. A intenção é problematizar as histórias da arte do século XX, atravessadas por uma questão que se apresenta de maneira quase excludente: a da arte moderna, assinada pela emergência das vanguardas, marcos de renovação entendidos como chaves de um discurso instituído que tem a leitura dos processos artísticos culturais do século passado atravessando – desde recorte a saltos de inovações – outros processos não menos modernos que os das vanguardas. Nesse sentido, a leitura que este artigo propõe – como fragmento de um trabalho mais extenso – é a de revisar as perspectivas canônicas da arte moderna, a partir da incorporação de algumas fontes, para pensá-las como indícios da que poderia ter sido outra história da arte moderna: povoada de matizes, enriquecida por numerosas presenças e por certas colorações que a escrita do grande relato eludiu. A tradição da historiografia artística européia e norte-americana moderna de pós-guerra marca em seu percurso um caminho que exclui – ou, no melhor dos casos, deixa em
Juan Gris. La guitare sur la table, 1913 (óleo sobre tela, 60 x 71,9 cm). Coleção Fundação Telefônica da Espanha.
segundo plano – os processos dos espaços culturais (chamemo-los provisoriamente periféricos), deixando de contemplar aspectos que fazem a dialética própria do moderno, como
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as interações, as migrações, as viagens, as redes de relação entre artistas e intelectuais, a convivência de “uns e “outros” nos espaços metropolitanos; não advertindo, aliás, na centralidade outorgada às vanguardas, sua própria condição periférica em um momento de ascensão, em Paris, Berlim ou Milão, por exemplo. São justamente esses elementos que constituem o centro de atenção do trabalho que desenvolvo há vários anos. Dentro dele, este artigo é peça breve de uma montagem mais extensa. Nele, tenta-se recuperar, por meio de uma análise do movimento moderno em algumas das metrópoles culturais1 da América Latina e da revisão de certos itinerários dentro de outros espaços como Paris, por exemplo, a dimensão densa desses processos ativando os laços de articulação entre metrópoles. Dessa forma, o propósito da pesquisa
1 Registra-se aqui a delimitação da noção de “metrópole cultural” proposta por Raymond Williams em La política del modernismo. Buenos Aires: Manantial, 1997.
é colocar a noção da arte moderna em debate, a partir da consideração de novas coordenadas de análises, o que implica revisá-la, incluir outras perguntas, colaborar com outras visões. Nesse sentido, o estudo do impacto da modernidade na América Latina, a apropriação e co-produção das linguagens das vanguardas e os processos entre as guerras colocam em conflito a perspectiva habitual das histórias da arte moderna escrita na segunda metade do século XX. A consideração das condições, buscas, percepções e inserções diferenciais que, durante a viagem estética, os artistas das metrópoles de América Latina realizam na Europa nas primeiras décadas do século XX e o estudo das escolhas, dos percursos, bem como a recepção e inclusão dos artistas europeus que migraram para essas terras a partir dos anos 20, revelam um mapa enriquecido da arte moderna permitindo recuperar uma rede de interações internacionais dinâmica e rica.2
2 Aspectos que desenvolvi em outros trabalhos.
Têm lugar nesse marco interativo processos em que se desenvolvem diversas seleções, apropriações, elaborações e reelaborações de linguagens. Dentro desse panorama, os casos das metrópoles culturais latino-americanas – São Paulo, Montevidéu, Buenos Aires e México – são postos em foco partindo da consideração de que nelas a arte moderna oferece rota singular assinada por migrações, trânsitos fluidos e intercâmbios de pessoas, imagens, obras, mostras, livros, catálogos, revistas, etc. A análise desse tipo singular de migração (entre as metrópoles latino-americanas e as européias, e vice-versa) abre novas alternativas para a leitura do movimento moderno, recuperando uma dialética que o grande relato canônico diluiu. Centrando-nos agora no percurso que pontualmente se desenvolverá neste artigo, avancemos sobre os objetos impressos – fontes privilegiadas deste trabalho. Os jornais e as revistas das metrópoles das periferias faziam eco do movimento moderno em Paris, Londres, Milão, Veneza, Berlim, Munique, Madri; enfim, de todos aqueles acontecimentos que permitiram que as páginas da arte e da cultura estivessem “em dia”. Um afã de atualização que inundou também artistas e intelectuais, que povoavam mais
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ou menos compulsivamente suas bibliotecas com revistas, livros, catálogos, postais, em suma, todo tipo de material impresso que os informava acerca do que ocorria do outro lado do oceano, com a angustiante sensação, entretanto, de que todas as formas, todo esse esforço era em vão e –como é recorrente ler nas autobiografias– “aqui não chegava nada”. No entanto, essas leituras lhes permitiam armar um mapa imaginário que transitava no momento de poder concretizar a ansiada “viagem à Europa”. E “Europa”, afinal, podia começar por qualquer parte na hora de colocar o primeiro marco no plano: podia ser o lugar de chegada do navio – Londres, Gênova, Vigo, Hamburgo –, o de nexo mais forte (ligado à tradição familiar, aos ensinamentos recebidos pelos mestres, ao contato prévio com algum outro colega que houvesse estado ou ainda permanecesse nesse lugar). Parecia que o que realmente importava, sobretudo nessa experiência da viagem, era a possibilidade de se confrontar com o “outro” e nesse confronto “ver-se”, medir-se e avaliar o 3 Cfr. meu texto Pettoruti, Spilimbergo, Berni: Italia en el iniciático viaje a Europa. In D. B. Wechsler. Italia en el horizonte de las artes plásticas. Buenos Aires: IIC-Asociación Dante Alighieri, 2000, pp. 143-189; e o mais recente Cosmopolitismo, cubismo y arte nuevo. Itinerarios latinoamericanos. In Eugenio Carmona. El cubismo y sus entornos. Santiago de Chile: Fundación Telefónica, 2008.
caminho a seguir. Esses caminhos, porém, fazem parte de outros trabalhos.3 Retornemos aos papéis, a fim de afirmar que a imagem da arte moderna começava e se constituía, para os artistas latino-americanos, a partir do material impresso que chegava a suas mãos antes da iniciada viagem. Material que orientaria, por sua vez, os rumos a seguir e as relações que se estabeleceriam. Proponho, dessa forma, como ensaio, centrar este breve texto em alguns artigos referentes à arte moderna publicados na revista quinzenal de arte e crítica livre Martín Fierro, editada em Buenos Aires entre 1924 e 1927. Nela certamente se produziu o primeiro encontro de muitos de nossos artistas com algumas imagens, nomes, estéticas e debates. Além disso, os leitores puderam em suas páginas aproximar-se de algumas das formas iniciais da escrita da história da arte moderna. Um tipo de escrita realizado “em aquecimento”, procurando dar forma aos processos que contemporaneamente se desenvolviam. Esses primeiros traços – adiantemos a hipótese – dão uma perspectiva plural e sem dúvida mais dialética desse período da história da arte. É possível imaginar, a partir daqueles textos e da presença de artistas e das obras em publicações, como a que aqui será objeto de análise, uma arte moderna que responde à dialética dos intercâmbios fluidos e à convivência nos espaços metropolitanos, colocando em prova a idéia de pensar em um processo de construção, no âmbito da arte moderna, como uma co-produção em que as imagens e representações se foram constituindo no somatório de vozes e observações diversas. Traços de uma história precursora da arte moderna em Martín Fierro Arte moderna. Com essas duas palavras a revista quinzenal de arte e crítica livre Martín Fierro costumava chamar a atenção de seus leitores. Na manchete – várias vezes na primeira página – destacava-se uma tipografia que permitia a rápida identificação. Aparece pela primeira vez em um número de maio de 1924 a reprodução de uma obra de Ottomann, exposta no Salão de Outono de Paris de 1923. Às vezes, “Arte moderna” aparecia qualificada como “argentina”, “mexicana”, “francesa”, como referência à nacionalidade do artista cuja obra se reproduzia; outras, a imagem reproduzida resultava em si mesma eloqüente, e o titular genérico era substituído pelo nome do artista: Rodríguez Lozano, Julio Castellanos, Miguel Covarrubias e Abraham Ángel, entre os mexicanos; Pedro Figari,
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Norah Borges, Pablo Curatella Manes, Emilio Pettoruti, Xul Solar, entre os rio-platenses; Carlo Carrá, Benedetta Marinetti, Pablo Picasso, Marie Laurencin, os Delunay, Boccioni, Depero, Dalí, Moreno Villa, entre os europeus. A aposta da revista no novo enfatizava-se a cada número, e a questão da arte moderna convertia-se em uma constante: imagens e textos convergindo com o propósito de contribuir com os traços de um lugar para a nova arte na imaginação dos leitores. A observação sobre o passado americano fez parte também do repertório vinculado à construção de uma nova cultura visual marcada pela revista. Apelando para o recurso do contraste de imagens, tenta favorecer a identificação daquele que se considera válido – pela simplicidade estrutural da congruência das formas e por seu lugar entre os percussores da arte moderna –, o que se desqualifica categoricamente – dada a falta de “sinceridade”. Dois conceitos de escultura, por exemplo, é o título com que se apresentam contrastadas – em uma simples e eficaz nota gráfica – duas obras em pedra: a figura jacente de José Llimona, qualificada como “péssima” e o “asteca anônimo: magnífico”4. A revista também incluiu imagens da arte do passado que funcionavam por esses anos como eficazes referências de
4 Martín Fierro, ano II, n.24 , Buenos Aires, 17 de outubro de 1925.
tradições recuperadas, entre elas a obra de Cranach e a de El Greco adquirem outra visibilidade a partir da reapresentação estética – e historiográfica - que tinha nesses anos. As contribuições de Martín Fierro ocorreram em um contexto de Buenos Aires como centro cultural, recebendo e produzindo com avidez todo tipo de material impresso.5 Textos como os de Margherita Sarfatti – Segni, colori e luce (1926) – e Franz Roh – Nach realismus (1925)6 – rondavam as bibliotecas dos artistas contemporâneos e também buscavam com interesse o acesso a publicações como Cahiers d’Art (Paris), Simplisísimus (Munique), La Gaceta literaria (Madri), entre outras. Junto a elas, Martín Fierro contribuía não só com a voz de seus próprios envios, como também com a publicação de textos de Maurice Reynal, Marcelle Auclair, Sandro Volta, André Salomón, André Lhote... As viagens e a estrita vinculação com a revista, além de sua vontade de estabelecer redes, resultaram especialmente em significativa imagem de Oliverio Girondo – Primus Inter Pares –, que buscou enlaçar Buenos Aires, Uruguai, Chile e México, a “Europa latina”, a partir da viagem realizada em 1924. “Por sua iniciativa (...) e decididamente apoiado por Martín Fierro, Oliverio Girondo conseguiu formar a frente única da juventude intelectual argentina, e dando as mãos, franca e cordialmente com os camaradas do Uruguai, leva Buenos Aires, em sua viagem, a representação deste periódico” e de outros da região que respondiam ao que se agrupava como a “nova geração”.7 Por um lado, a recepção de notas8 de ensaístas e escritores é parte dos recursos de aglutinação da revista entre os que resultam de particular interesse para este trabalho. Algumas contribuem com a pergunta acerca de como foi sendo construída essa narração precursora da arte moderna. Ensaiemos uma leitura sobre esses textos que permita entre-
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5 Cf. Entre os trabalhos mais recentes referentes ao campo artístico: meu Papeles en conflicto. Arte y crítica entre la vanguardia y la tradición (1920-30). Buenos Aires: UBA, 2004; M.I. Saavedra y P. Artundo (comps.). Ler las artes. Buenos Aires: UBA, 2004; e D. B. Wechsler. Una biblioteca moderna. In Orbis Tertius. Universidad Nacional de La Plata, 2008 (em processo de edição). 6 Sobre esses autores e sua relação com a cena artística argentina, ver os trabalhos mais recentes: D. B. Wechsler, Da una stética del silenzio a una silenciosa delcamazione in Chiarelli (curador) e Wechsler (curadora adjunta). Novecento sudamericano, Milão: Skira, 2003; e Melancolía, presagio y perplejidad in Territorios de diálogo. Entre los realismos y lo surreal. Buenos Aires: FMN, 2006; R. Antelo, “ Modernismo reactivo y abstracción, e C.Rossi, Una pulseada por la abstracción: Romero Brest entre Margherita Sarfatti e Lionello Venturi” in A: Giunta y L.Malosetti (comps.). Arte de posguerra. Buenos Aires: Paidos, 2005, pp.37-51 y 51-71 respectivamente. 7 Martín Fierro, ano 1, n.7, Buenos Aires, 25 de julho de 1924. 8 Entendem-se aqui por “notas” aqueles textos que não são publicados como crítica de arte – no sentido de referir-se a uma exposição que esteja tendo lugar em Buenos Aires, mas que aspiram ao formato de ensaio em que se avaliam aspectos dos processos artísticos dos últimos tempos.
ver as formas de apropriação de um passado artístico próximo a partir de sustentar que à medida que se acelera a consideração de tempo mais iminente resulta a necessidade de elaborar um discurso que permita (a ilusão de) fixar os acontecimentos. Neste traçado de uma primeira vontade de historiar o passado artístico recente – e prosseguindo com o propósito de nos centrarmos no percurso que uma leitura de Martín Fierro oferece – aparecem os textos de Sandro Piantanida Descubrimiento del cubismo I e II, publicados a partir de entregas sucessivas nos números de outubro-novembro de 1924 e 9 Sandro Piantanida. Descubrimiento del cubismo I e II. In Martín Fierro, ano I, n.1213 e 14, Buenos Aires, outubro-novembro de 1924 e janeiro de 1925, respectivamente.
janeiro de 1925.9 Piantanida encara a questão do cubismo enfocando a “impossibilidade de traçar (...) um quadro completo da pintura francesa anterior”. Continua: “devia me contentar em escrever dois nomes e observar na sua obra o aspecto característico e típico dos movimentos impressionista e pós-impressionista. Renoir – un artista. Cezánne – un artífice.” A partir dos ensinamentos de ambos, assinala o caminho pós-impressionista e Picasso como ponto de inflexão até um novo rumo: “é Picasso quem conduz a fila”, e agrega: “é ele quem peneira, pesa, experimenta. Interroga os mestres e aplica a nova invenção”. Para concluir que “Picasso funda a escola”. O crítico destaca dois momentos no processo de recepção do cubismo: o primeiro que horroriza a crítica, e o segundo de aceitação dos dados; os “saudáveis efeitos do feliz e eficaz descobrimento”. Piantanida está “descobrindo” o cubismo ante seus leitores, partindo da experiência dos anos 20. Essa leitura arma um relato que vai desde o impressionismo ao cubismo – como ocorre, veremos em outros ensaios –, mas que está refletindo sobre as experiências metafísicas e, mais precisamente, a experiência da arte italiana contemporânea como pontos de chegada em praias seguras “em meio ao caos e às quimeras”. A observação histórica que esses textos oferecem está atravessada pela fratura suposta pela Primeira Guerra Mundial, levando-o a interpretar que “o impressionismo foi a arte de um mundo vacilante”, “que a tentativa dos expressionistas foi a arte de um mundo que se desfazia”, tanto que “a pintura de 1910 era um pressentimento inconsciente dos anos da guerra geral. Era quase uma ideologia figurativa dela.” O artigo indaga, a partir desses pressupostos que vinculam a experiência sociopolítica com as buscas artísticas, sobre as maneiras diferenciadas nas quais os artistas do entorno cubista (Braque, Archipenko, Metzinger, Leger, Jeininger), aqueles que fazem “uma arte sem objeto” (Kandinsky e Klee), os da área expressionista alemã (Kokoschka, Nolde, Groszmann) e os italianos (metafísicos Carrá e de Chirico) tentaram solucionar os problemas da representação: “nunca se falou tanto acerca da forma e da construção como nesse período de anarquia e de desorganização” (em referência aos anos entre 1910 e 1920). O texto de Piantanida conclui onde tacitamente havia começado, reforçando seus pressupostos: a certeza de que todo caminho percorrido “do impressionismo ao cubismo”,
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em que se delinearam distintas maneiras para criar imagens plásticas, havia alcançado sua meta na arte italiana contemporânea que “salvou o tradicional espírito clássico” e conseguiu “uma força espontânea que o fez realizar, frente à visão de mundo, o acordo completo, o equilíbrio entre a faculdade de se comover e a faculdade de entender e se expressar”. É interessante observar que ao colocar no centro do ensaio a questão do cubismo, o autor entende que deve fazer uma retomada da história mais ou menos próxima da arte francesa e paradoxalmente, logo depois, apela para as referências alemãs, italianas e para aqueles atores que dentro desta pesquisa definimos como migrantes modernos: artistas que transitam por espaços distintos, pensando e repensando as linguagens e o processo artístico contemporâneo. Por sua vez, a revista Martín Fierro, que havia respaldado a viagem de Girondo e hospedava calorosamente textos e imagens de distintas procedências, estende suas redes para saudar quem reconhece como “martinfierristas da Itália” a partir da redação de Sandro Volta, uma “amizade de bordo” que Girondo estabeleceu e que permitiu capturar essa voz. Em seu texto de apresentação, ele introduz alguns dados que permitem apoiar a possibilidade de outra escrita do percurso da arte moderna quando afirma: “Há que dizer a quem crê que hoje não existem pintores fora de Picasso, Derain e Matisse, que existe, pelo contrário, todo um florescimento de artistas que colocam a Itália na vanguarda do movimento moderno pictórico e que se chamam Sóffici, Carrá, de Chirico, Rosai e Lega”.10 Novamente a perspectiva italiana como contraponto dos processos que tinham lugar em Paris. A partir dessa primeira intervenção se sucedem as notas de Vol-
10 Sandro Volta. In Martín Fierro, ano 1, n.1213, Buenos Aires, outubro-novembro de 1924.
ta, nas quais apresenta um artista italiano e com ele introduz sua interpretação sobre a arte contemporânea. Enquanto isso, e como indício do circuito internacional que havia estabelecido a revista, chegam à redação cartas de reconhecimento de Ardengo Soffici, Ottone Rosai e Achille Lega, que enviam também uma coleção de desenhos originais de Margherita Sarfatti. Ramón Gómez de la Serna e Guillermo de Torre são outros concorrentes assíduos – nesse caso da Espanha – das páginas da revista. O suplemento de “saudação” a Ramón como antecipação de sua visita a Buenos Aires11 ou a crítica de Jorge Luis Borges ao livro Literaturas europeas de Vanguardia de de Torre12 são alguns dos dados visíveis dessa relação. No caso do livro de Torre, cabe ressaltar que a inclusão dessa nota bibliográfica introduz não só a problemática da vanguarda como também a questão de sua relação com uma concepção do tempo. “Quero encarar seu progressismo (afirma Borges), esse gesto molesto de tirar o relógio a todo momento.” A crítica está encaminhada até aquele esquema “do depois” – como dirá Borges – segundo o qual se sucedem os movimentos uns a outros com apressado afã de mudança e novidade – nesse sentido de urgência de mudança contemporânea que subjaz nessa necessidade de historiar as literaturas
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11 Martín Fierro, ano II, n.19, Buenos Aires, julho de 1925. 12 Martín Fierro, ano II, n.20, Buenos Aires, agosto de 1925.
Juan Gris. La Chanteuse, 1926 (óleo sobre tela, 92 x 64,7 cm). Coleção Fundação Telefônica da Espanha.
européias de vanguarda, no caso citado, ou as artes plásticas do impressionismo ao cubismo, em outros textos. Situando-nos agora novamente no âmbito das artes plásticas, Auclair publica nas páginas da revista La nueva estética. “Este ano, o Salão dos Independentes organizou uma “expo-
13 Martín Fierro, ano III, n.27-28, Buenos Aires, maio de 1926.
sição retrospectiva” de 1884, data de sua fundação, até 1924.”13 A autora encontra um grande “sentido prático” para essa iniciativa já que permitirá que o público tenha acesso a um bom repertório de obras, entre as quais figuram as de Cézanne, Derain, Van Gogh, Matisse, Redon, Rousseau, Lautrec, Vlamink, Laurencin, etc. Trata-se de uma exposição que distribui “conhecimentos pictóricos prudentemente dosados” para apreender as coordenadas da arte precursora do século XX. Essa mostra representou também uma instância de balanço que conduziu outros críticos a pensar sobre a trajetória recente da arte moderna. Assim Raynal retoma o tema no
14 Maurice Raynal. Del impresionismo al cubismo. In Martín Fierro, ano III, n.29-30, Buenos Aires, junho de 1926.
número de junho de 1926.14 A seguinte frase sintetiza seu enfoque histórico-crítico: “seguindo essa lei pela qual a arte busca seu progresso de reação em reação, surgiu
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o cubismo, que despojou o impressionismo de sua afetação”. Em seu juízo, a mostra retrospectiva dos Independentes cumpre então o propósito de revisar o caminho percorrido pela arte, uma vez que “demonstrar” a lei enunciada mostra uma tensão permanente até a suposta superação de uma instância na qual segue. Como indica Raynal, isso demonstra as obras de Leger, Delaunay, Marcousis, Ozenfant, “a falta de Braque, de Gris, de Picasso, de Metzinger, que estavam ausentes”. O cubismo representou – segundo o autor que não pode ler o passado a não ser da perspectiva de “retornos”15 do seu presente – “um verdadeiro retorno até a sobriedade das linhas e cores”. E agrega mais adiante: “as palavras de Cézanne como as intenções de Seurat e o rigor plástico da arte negra suscitaram de 1908 a 1914, entre alguns dos artistas acima citados, esse retorno à análise dos planos e dos volumes, até um conceito mais pictórico da pintura no sentido de que o objeto fosse submetido à imaginação criadora do artista para prover os elementos de um novo objeto: o quadro.” Apresenta o artista como um criador de “objetos novos” e estes movimentos – o impressionismo e o cubismo – como partes de uma tradição, a da boa pintura, e nesse sentido marca as formas como os artistas daquelas gerações representadas na retrospectiva retomaram os ensinamentos da tradição plástica a respeito dos usos da cor e da arquitetura das formas. Nas páginas percorridas se descobrem várias questões. Talvez a primeira, para quem trabalha sobre a história da arte latino-americana, seja a da intensidade dos intercâmbios revelados nesse breve trajeto, e com eles a forte presença de textos e imagens que informavam e formavam um novo público. Por outro lado, a centralização na leitura sobre as notas que remetiam a uma precursora escrita da história da arte moderna deixa à vista duas vertentes: a que considera de maneira excludente os processos parisienses fundadores do movimento, e aquela que permeia a presença de outros, dentro daquela cena, reconhecendo outros espaços como opções alternativas e co-produtoras desse processo. Entretanto, o que subjaz em ambas as vertentes é certa idéia do fluxo da história das imagens dentro de uma dialética de ação e reação. Como Wölfflin havia pensado as polaridades entre renascimento e barroco, os ensaístas dos anos 20 buscaram reter e organizar o passado próximo com esquemas similares – assim, Roh e seu gráfico polar em que contrastava expressionismo e pós-expressionismo, e Raynal opondo as características do impressionismo às do cubismo. Esse exercício de suspeita teve como propósito revelar certos matizes presentes nessa escritura da história da arte moderna dos anos 20, um relato no qual se fundem as vozes de um e do outro lado do Oceano Atlântico, que exibe em sua reconstrução alguns indícios das migrações modernas. Assim mesmo, sabemos que a primeira dessas tendências mencionadas, depois da Segunda Guerra Mundial, terminará absorvendo a outra porque o resgate dessas origens favoreceria sua reposição e com ela a dialética contemporânea.
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15 Em referência às declarações de Cocteau de retour al ordre e da moderna clasicidad de Sarfatti, por exemplo.
Finalmente. “Quem se guiasse pela lógica poderia inferir desde uma gota d’água à existência de um Oceano Atlântico ou de um Niágara sem necessidade de os ver ou sem ter ouvido falar a respeito deles.” Conan Doyle põe na boca de Scherlok Holmes essas 16 A. Conan Doyle. Estudio en escarlata. Barcelona: Edicomunicacion, 1998.
palavras na sua primeira novela.16 A história está governada, mais do que pela lógica, pela memória que, por sua vez, está guiada por seleções e resseleções permanentes. No entanto, se é possível pensar que as gotas d’água são aqui os textos e imaginar o oceano como a história da arte moderna, a releitura dessas fontes projeta outras águas e, com elas, novas páginas para aquela história.
Diana B. Wechsler é doutora em História da Arte. Pesquisadora do Conicet. Professora de Sociologia e Antropologia da Arte, FFyL-UBA, e arte argentina e latino-americana do século XX e na IDAES-UNSAM. Membro da cátedra do Caia. Tem recebido bolsas e subsídios para pesquisa de, entre outros, Post Doctoral Fellowship (Getty Foundation), Ministério de Cultura da Espanha, UBACyT. Publica artigos em livros e revistas da área. Realizou pesquisa e curadoria de várias exposições em Argentina, Itália, Brasil, México e Espanha.
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Frédéric Sauser (Blaise Cendrars). Feuilles de Route, 1924 (Capa do livro com illustração de Tarsila do Amaral, Estudo para Negra, 1923).
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Este ensaio é baseado em um relatório apresentado na conferência “Imagined Modernities: Travel, Literature, Illustration and the Nation State in Asia and the Americas 1850-1950”, promovida pelo Departamento de Antropologia da Universidade de Coimbra, de Portugal, em fevereiro de 2004. O ensaio investiga as trocas empreendidas entre os modernistas no Brasil e na França, durante os anos 20, argumentando que tais encontros geraram momentos de contaminação cultural em ambos os lados. Modernismo, purismo, hibridismo. O consenso acerca do desenvolvimento do modernismo brasileiro coloca Tradução Jason Campelo. Revisão técnica Lucenne Cruz.
sua significação histórica como algo correspondente à estratégia de afirmação de uma
1 Zilio, C. A querela do Brasil: A questão da identidade da arte brasileira. Rio de Janeiro: Funarte, 1982, reeditado por Relume Dumará, 1997.
giraram em torno do fato de que tal identidade foi alcançada à custa da verdadeira natu-
2 Conforme Paulo Venancio argumentou: ‘Nosso Modernismo não foi uma vanguarda, no sentido explícito do termo, exceto no sentido estritamente local, e certamente não foi em termos de artes plásticas. Foi uma vanguarda incerta, difusa sem nenhuma unidade. Certamente não se requer uma coerência organizada de uma vanguarda, e sim uma direção de confronto. Aqui, o Modernismo colocou-se contra o Academicismo e buscou por uma identidade nacional. A luta contra o Academicismo é premissa básica da modernidade; a busca por uma identidade nacional não é. É contra isso que a modernidade luta, contra as linguagens e identidades nacionais, por um internacionalismo de linguagens.’ Desde então, Venancio mudou sua visão. Cf.: Venancio, P. A Modernização Abstracionista. In Abstração Geométrica 2. Rio de Janeiro: Funarte, 1988, p. 7. Projeto Arte Brasileira. 3 Tal é o caso do estudo de Beatriz Resende, no qual uma (de um total de três que ela nomeou) das características do Modernismo ‘é a identificação da identidade cultural brasileira, que acaba sendo múltipla, plural e híbrida, em vez de ser singular e estável, conforme se pensava nos tempos modernistas’. Resende, B., Brazilian Modernism: The Canonical Revolution, In Shelling, V., (ed.) Through the Kaleidoscope: The Experience of Modernity in Latin America (2000) Verso, London.
identidade nacional através da apropriação da estética moderna européia.1 Muitos debates reza das vanguardas, ou seja, o desenvolvimento rumo à abstração.2 Tal aspecto canônico da estética modernista se diferenciou dos primeiros avanços modernistas no Brasil, onde se deu evidente hibridização por meio da introdução de referências figurativas ao povo e aos lugares brasileiros. Tal abordagem se presta, de maneira bastante elegante, a validar teorias e idéias que instruem práticas culturais correntes, trazendo vários artistas e pensadores brasileiros do início do século XX para o domínio das referências que legitimam a produção da arte contemporânea no Brasil.3 Eis que o que emerge é uma construção histórica paradoxal que declara o caráter nacional, enfatizando sua hibridez, enquanto suas referências exteriores são solapadas em favor de uma continuidade histórica interna.4 A visão canônica do desenvolvimento da arte moderna enfatiza um movimento geral rumo à autonomia do exercício criativo. De acordo com esses relatos, tal fenômeno foi possível devido à ruptura pictórica trazida pelo romantismo, e levada à frente pelo impressionismo, das obras de Cézanne em diante. Esse desenvolvimento linear serve como evidência formal do fato de que a arte moderna se internacionalizou, uma vez que o fim da representação de lugares culturais e geográficos específicos, trazido pela crescente linguagem abstrata, e particularmente seguido à chegada do cubismo, legou a possibilidade de percepção da nova estética autônoma como algo universal em caráter. Portanto, tal mudança é vista como sendo a que leva a arte para além das fronteiras culturais nacionais; fato esse que foi enfatizado posteriormente pela apropriação européia de elementos estéticos de culturas não-ocidentais, tais como a japonesa e a africana.5 Todavia, é justamente através
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de tal processo que um essencialismo eurocêntrico é desvelado. Isso é devido ao fato de
de independência cultural enquanto também servia como modo de distinguir-se daquele
4 Asbury, M. Tracing Hybrid Strategies in Brazilian Modern Art. In Harris, J. (ed). Critical Perspectives on Contemporary Painting. Liverpool: Tate Gallery Liverpool and University of Liverpool Press, 2003. Critical Forum Series n.6. Sobre a questão de uma noção mais ampla de hibridismo no contexto da produção cultural latino-americana, cf.: Canclini, N. Culturas Híbridas: Estrategias para Entrar y Salir de la Modernidad. Mexico: Editorial Grijalbo 1989. Versão em inglês: Chiappari, C. L. & López, S. L. Hybrid Cultures: Strategies for Entering and Leaving Modernity. Minnesota: University of Minnesota Press, 1990.
que lhe serviu de modelo. A abstração nesse sentido nunca foi o objetivo dos pioneiros
5 Zilio, op. cit.
que pretensões universais eram inaplicáveis no contexto dos modernismos não europeus, já que estratégias similares de apropriação serviam apenas para enfatizar seu status de dependência cultural. Nesses tão mencionados contextos periféricos, a introdução do modernismo só poderia ser um empreendimento nacionalista. A ruptura estética que ocorreu, por exemplo, no Brasil, seguindo o romantismo, chegou como maneira de atualizar a produção cultural da nação. De qualquer modo, ao contrário de sua contraparte européia, seu propósito era duplo: trazer à frente a representação vigente da nação como marco
brasileiros do modernismo. Tal propósito duplo tem sido o foco de análises históricas que logo se desenvolveram. As críticas formalistas predominantes chegaram, recentemente, ao consenso de que essas referências locais se distinguiram como prova de inadequação, da inabilidade que a arte moderna teve, no Brasil, em alcançar os pré-requisitos necessários ao estabelecimento de vanguarda verdadeiramente universal. Mais proximamente, estudos pós-coloniais questionaram as doutrinas formalistas do modernismo europeu, argumentando que, apesar de sua retórica universalista, ele nunca se livrou da feição nacionalista. Esse é o argumento6 que situa o modernismo europeu como aquele que mantém relação implícita conectadora do legado do Iluminismo a um projeto nacionalista. Projeto que, visto sob essa tal luz, em nada difere do efetuado pelos
6 Bhabha, H. K. DissemiNation: Time, Narrative, and the Margins of the Modern Nation. In Bhabha, H. K. (ed). Nation and Narration. Londres, Nova York: Routledge 1990, p. 293.
próprios modernistas brasileiros. Com a emergência de processos mecânicos, como a fotografia, por exemplo, que substituíram a função da arte de representar uma versão particular da realidade nacional, permitiu-se nas belas artes autonomia da prática ainda maior. Além disso, o racionalismo que deu origem à mudança de leis de similitude em leis de diferenciação levou a uma era em que áreas do conhecimento se tornam cada vez mais específicas.7 Em conseqüência, a arte rompeu com seu papel tradicionalmente representativo apenas para ganhar um novo papel na sociedade burguesa. Dentro de tal equação, tanto a soberania nacional quanto outros ideais universais vinculados a ela dependeram da existência do Outro contra o qual se afirmavam. Ao ser simultaneamente o europeu e o Outro, o projeto modernista brasileiro distorceu de modo perverso essa forma, afirmando a soberania nacional ao evocar tanto seu caráter exótico local quanto as pretensões nacionalistas/universais da cultura européia. Em seguida, essas abordagens críticas reinterpretativas do impacto e pertinência do modernismo brasileiro enfatizaram sua diferença e irreverência acerca da cultura européia sob luz mais positiva. Tais narrativas ressaltam distinções do modelo europeu ao implicar certa autonomia do desenvolvimento criativo das práticas no Brasil ao longo do século XX. Não obstante, o processo pelo qual a cultura é absorvida e permutada envolve, inevitavelmente, contato pessoal, com freqüência amizade, e é essa subjetividade em
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7 Foucault, M. Les Mots et les Choses. Paris: Editions Gallimard, 1966, p. 51. Publicado origialmente na Inglaterra: The Order of Things: An Archaeology of the Human Sciences. Londres: Routledge, 1970.
conjunto com micropolíticas que o guia, que desvela a complexidade do fluxo cultural. As permutas que ocorreram entre os círculos artísticos parisienses e o modernismo brasileiro inicial contaminaram as duas narrativas nacionais. Nesse caso, “contaminação” parece ser o termo apropriado, já que, ironicamente, foram ideais e estéticas promovidos pelo purismo que tiveram influência tão profunda no desenvolvimento da arte e arquitetura modernas no Brasil. O purismo — nem tanto um movimento, mas uma abordagem teórica da produção póscubista — foi iniciado por Charles-Edouard Jeanneret (Le Corbusier, 1887-1965) e Amédée Ozenfant (1886-1966), e talvez tenha sido uma das expressões mais óbvias de nacionalismo subjacente ao racionalismo modernista francês. O ideal purista de nacionalismo emergiu em seguida à Primeira Guerra Mundial e tentou livrar a produção pós-cubista de quaisquer sobras de romantismo, percebidas, naquele momento particular, como alemãs em temperamento. O ideal purista tentou estabelecer senso maior de ordem nos experimentos estéticos, sugerindo premissas geométricas e matemáticas, às quais a composição e o tema do cubismo poderiam sujeitar. Para tanto, o repertório de natureza morta cubista foi simplificado em ‘objetos-tipo’. A idéia de um rappel á l’ordre, por meio da qual 8 Sobre a importância do rappel à l’ordre no modernismo brasileiro, cf. Fabris, A. Forms of (Possible) Modernity. In Schwartz, J. (ed.). Brasil: 1920-1950, de la Antropofagia a Brasilia, catálogo de exposição, Valência: Ivam, 2000, pp. 533-539. 9 A pesquisa demonstrou que outras figuras centrais do modernismo brasileiro tinham conhecimento íntimo dessa seção dos círculos artísticos parisienses, como se pode ver no uso do termo Espírito-novismo por Graça Aranha e na coleção de todas as edições do L’Esprit Nouveau Journal pertencente a Mário de Andrade. Cf.: Teles, G. M. Vanguarda européia e modernismo brasileiro. Petrópolis: Vozes, 1972, pp 25-35. 10 Sobre a questão do classicismo na arte moderna do entre-guerras, cf. Golding, J. & Green, C. Léger and Purist. Paris: Tate Gallery, exhibition catalogue 1970. Apesar de não mencionar Le Corbusier nessa passagem, Léger afirma, por exemplo, que seu filme Ballet Mechanicque surgiu no tempo em que ‘arquitetos falavam a respeito de uma civilização mecânica’. Léger, F. Functions de la Peinture. Paris: Éditions Donoël-Gonthier, 1965. Edição revisada e ampliada: Paris: Éditions Gallimard, 2004, p. 133. Mais tarde, Le Corbusier teria influenciado profundamente os arquitetos brasileiros, após suas visitas ao país, em 1929 e 1936. Sobre questões de arquitetura e identidade nacional no Brasil, ver Asbury, M. Changing Perceptions of National Identity in Brazilian Art and Architecture. In Borden, Hernandez e Millington (eds.). Transculturation: Cities, Space and Architecture in Latin America. Amsterdam/Atlanta: Rodopi, 2005, pp. 56-71.
a cultura francesa era considerada a herdeira direta da tradição clássica,8 foi associada à estética purista e promovida pelo jornal L’Esprit Nouveau.9 Para Jeanneret e Onzenfant, esse projeto representava uma afirmação da tradição francesa, em continuação a Poussin (1594-1665), Ingres (1780-1867), Corot (1796-1875) e Seurat (1859-1991). Para outros, como Jean Cocteau (1889-1963), o momento era mais paradoxal em sua expressão da estética moderna e racional e em sua fascinação pelo primitivo e exótico. Foi nesses círculos artísticos que os modernistas brasileiros entraram, logo que desembarcaram em Paris, no início da década de 1920. A pintora Tarsila do Amaral (1886-1973), por exemplo, teria sido exposta a essas idéias enquanto fora aluna de André Lhote (18851962), Albert Gleizes (1881-1953) e, mais tarde, Fernand Léger (1881-1955), todos eles em níveis diversos de associação com o “clamor à ordem” e com a reavaliação da linguagem cubista conforme diretrizes puristas.10 Peça central nos anos de formação de Tarsila em Paris, o repertório de objetos estilizados de Léger foi por ela apropriado, em seu processo de desenvolvimento de uma linguagem visual brasileira. Por conseguinte, é tentador atribuir um aspecto subversivo a tal estratégia de contaminação da retórica purista. Contudo, os propósitos por trás de tal ação foram mais complexos do que poderiam parecer a princípio. O estabelecimento do modernismo como movimento literário, com várias ressonâncias nas belas artes, ocorreu em momento complexo de reavaliação da cultura nacional brasileira: é revelador que seu momento inaugural, a Semana de Arte Moderna de 1922, em São Paulo, tenha coincidido com as celebrações do Centenário da Independência brasileira. O fato de que tenha acontecido em São Paulo, em vez de se realizar na então capital, Rio de
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Janeiro, também é significativo. Isso pode ser considerado algo sintomático da tentativa de emancipação política, cultural e econômica da cidade com relação ao resto do país. Essa manobra confiante efetuada por uma cidade um tanto provinciana foi o resultado do poderio econômico obtido via a produção cafeeira. Por volta da virada do século, o Brasil tornou-se o maior exportador de café do mundo, provendo 70% da produção global.11 No lugar da capital, Rio de Janeiro, o Estado de São Paulo foi o primeiro beneficiário dessa atividade em particular, pois possuía terras mais apropriadas para seu cultivo.12 O historiador de arte Mário da Silva Brito13 alegou que a arte moderna no Brasil surgiu do
11 Tal porcentagem é extraída de Prado Jr. (1945), e coincide com a fornecida por Sevcenko (2000). Prado Jr. também mencionou que a cifra para o estado de São Paulo era, por si só, da ordem de 60%. Brito, M. S. (1978) sugeriu que a cifra era de 82,5% da produção global de café.
encontro dos campos de café com a Torre Eiffel. Poder-se-ia acrescentar que tal encontro
12 Prado Jr., op. cit., p. 190.
aparentemente incongruente foi organizado com habitualidade pelo serviço diplomático
13 Brito, M. S. História do modernismo brasileiro: antecedentes da Semana de Arte Moderna. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978.
dos dois países e abastecido por interesses econômicos. Os jovens poetas e artistas brasileiros, beneficiários diretos ou indiretos da grande prosperidade advinda do café, graças ao clima econômico favorável puderam participar dos círculos vanguardistas parisienses ao longo da década de 1920.14 E, no centro de tais operações, estava a figura do milionário executivo Paulo Prado (1869-1943). Como negociante de café, mesmo antes da existência de um grupo modernista coerente em São Paulo, Prado já havia planejado engenhoso acordo entre Paul Claudel (1868-1955)
14 Tais indicadores de modernidade têm sido descritos por Sevcenko. De qualquer maneira, se vamos falar de beneficiaries do café, é importante mencionar que aqueles que realmente lucraram foram especuladores europeus e norte-americanos. Cf. Prado Jr., op. cit., pp. 225-35.
— diplomata francês então no Rio de Janeiro — e o diplomata brasileiro em Paris, Graça Aranha (1868-1931). O acordo consistia na exportação de dois milhões de sacas de café para o governo francês, visava encontrar um modo de escoar a produção em meio a restrições de mercado provocadas pela primeira Guerra Mundial e incluía o uso de 300 embarcações alemãs que haviam sido apreendidas na costa brasileira.15 Junto com Prado, Aranha seria mais tarde um dos principais protagonistas nos bastidores da Semana de Arte Moderna ao convidar figuras do modernismo europeu para que também visitassem o Brasil e editassem
15 Calil, C. A. M. Translators of Brazil. In Schwartz, J. (ed.). Brasil: 1920-1950, de la Antropofagia a Brasilia, catálogo de exposição, Valência: IVAM, 2000, p. 565.
uma coleção de manifestos futuristas em português. Quando Paul Claudel foi designado para o serviço diplomático no Rio, trouxe como secretário o jovem compositor Darius Milhaud (1892-1974) que, fascinado com os diversos estilos da música popular brasileira, ao retornar a Paris, compôs várias peças musicais nitidamente influenciadas por sua experiência no Brasil. E assim surgiu, em 1920, a adaptação sinfônica do popular maxixe “Boi no telhado”, que foi literalmente traduzido como Le Boeuf sur le Toit.16 Adaptado para apresentação em
16 Sevcenko, op. cit., pp. 89-90.
cabaré, com a colaboração de Jean Cocteau e Raul Dufy, tornou-se enorme sucesso em Paris, durante o início da década de 20. Posteriormente, Milhaud produziu a partitura para outro musical, A criação do mundo, com palco e figurinos projetados por Fernand Léger, letras de Blaise Cendrars (1887-1961), e encenado pelo Balé Suedois, em outubro de 1923. Naquele mesmo ano, os modernistas brasileiros desembarcaram em massa em Paris, ansiosos por absorver as últimas tendências parisienses, e, muito para sua surpresa, verificaram que Paris já havia descoberto o Brasil.17
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17 Id., ibid.
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18 É dada aqui ênfase a Tarsila do Amaral por sua relação com os manifestos de Oswald de Andrade e sua distinção do modelo de Picasso adotado por outros pintores modernos brasileiros como Di Cavalcanti e Portinari. Cf. Zilio, op. cit., p. 79.
Tarsila,18 que estava em Paris durante a Semana de Arte Moderna de São Paulo, só se inteirou do modernismo ao retornar ao Brasil, e por intermédio da pintora Anita Malfatti (1889-1964), sua amiga. Foi durante seu retorno a Paris, em 1923, com seu novo companheiro, o poeta e ensaísta Oswald de Andrade (1890-1954), que ela alegou ter-se conscientizado do Brasil como possível referência cultural em sua obra. Em carta a sua família, refere-se à descoberta de sua própria pátria: Sinto-me ainda mais brasileira: quero ser a pintora de minha terra. Como sou grata por ter passado toda minha infância na fazenda. As memórias daquele tempo têm se tornado cada vez mais preciosas para mim. Gostaria de ser, na arte, aquela pequena camponesa de São Bernardo, brincando com bonecas em meio à vegetação, assim como em minha mais recente pintura (...) Não penso que esta tendência brasileira é vista com maus olhos por aqui. Ao contrário, necessita-se aqui de que todos tragam contribuições de seus próprios países. Isso explica o sucesso das bailarinas russas, das impressões japonesas e da música
19 Amaral, A. Tarsila sua obra e seu tempo. V. 1 e 2. São Paulo: Editora Perspectiva, 1975, p. 84. Apud Zilio, op. cit., p. 48). Em Amaral V.2, há um catálogo da obra de Tarsila, onde se pode notar claramente como sua obra se ‘tornou’ moderna ao longo de 1923. 20 Herkenhoff, P. Tarsila: deux et unique. In Hedel-Samson, B. e Herkenhoff, P. Tarsila do Amaral, catálogo de exposição. Paris: Maison de l’Amérique Latine, 2005, p. 16. 21 Sendo a primeira a chegada de vários artistas franceses ao Rio, após o convite do príncipe regente português exilado, d. João VI, O que resultou na introdução da educação de arte no Brasil, mediante o estabelecimento da Escola Real de Ciências, Artes e Ofícios, em 1826. Posteriormente, a instituição foi dividida no Museu Nacional de Belas Artes e na Escola de Belas Artes, agora parte da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
negra. Paris está cansada da arte parisiense.19 Contudo, a descoberta de sua identidade cultural durante a estada em Paris pode não ter sido uma ocorrência tão surpreendente. Segundo Paulo Herkenhoff,20 a visita dos modernistas brasileiros a Paris representou uma ‘segunda missão francesa’21 com a intenção de estabelecer “novos parâmetros para a arte e uma inserção audaciosa, embora não tão bem sucedida, no mercado de arte francês”. A permanência em Paris de Oswald e Tarsila, em 1923, consolidou suas ligações com os milionários do café Paulo Prado e Olívia Penteado, que ofereceram ao poeta e à artista acesso sem precedentes aos círculos oficiais. Herkenhoff é bem claro a respeito da abordagem estratégica que tudo isso representou: O projeto parisiense de um Oswald oportunista tinha como objetivo alcançar o sucesso na França por intermédio de duas estratégias: a primeira era consolidar a aliança entre representantes do poder oficial e a burguesia de São Paulo, através do contato com o presidente
22 Mais tarde, Oswald de Andrade seria nomeado por Washington Luís membro do comitê responsável pela construção do Monumento aos Pioneiros, de Victor Brecheret. Cf. Asbury, M. The Bienal de São Paulo: Between nationalism and internationalism. In Curtis, P. e Feeke, S. (eds.). Espaço Aberto/Espaço Fechado: Sites for Sculpture in Modern Brazil, catálogo de exposição. Leeds: The Henry Moore Institute, 2006, p. 78.
Washington Luis e o embaixador Souza Dantas22 (…) A segunda estratégia era a negociação simbólica com o meio artístico utilizando-se de uma moeda muito valiosa na França: primitivismo em arte. Essa estratégia foi complementada por Tarsila e Penteado, que fizeram compras substanciais de obras de arte de Robert Delaunay (1885-1941), Lhote e de Léger, por intermédio do marchand de arte Léonce Rosenberg (1879-1947). A estratégia foi parcialmente bemsucedida, tendo os jovens modernistas brasileiros sido apresentados a seus pares franceses durante almoço oferecido pelo embaixador brasileiro Souza Dantas (1876-1954). Entre os
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presentes estavam Léger, Lhote, Cendrars, Milhaud, Tarsila, Oswald, Sérgio Millet (18981966), Victor Brecheret (1894-1955) e Vicente do Rêgo Monteiro (1899-1970).23 Herkenhoff24 sustenta que a surpreendente atenção que, na época, a obra de Tarsila recebeu na França, quando a artista ainda era estudante, foi de fato resultado de franco interesse comercial. Tanto Oswald quanto Tarsila logo estabeleceram laços de amizade com Cendrars e Prado, posteriormente convidando o poeta francês a visitar o Brasil com a perspectiva de futuras oportunidades de negócios. Durante as negociações para essa visita, Cendras sugeriu que Tarsila expusesse na galeria de Rosenberg. A correspondência de Tarsila com sua família confirma que a sugestão foi transmitida ao marchand, alegando que Rosenberg “ofereceu-me uma exposição, no momento em que estou pronta para tal”. Para Herkenhoff a proposta não foi nada mais do que uma estratégia de negócios. Tarsila já comprara pinturas de Rosenberg, e as discussões dele com Léger, a respeito de como uma abertura no mercado de arte latino-americano poderia ser alcançada por meio da artista brasileira, confirmam esta suposição. Léger é citado por ter mencionado que “ontem jantei com a Sra. Amaral e soube que ela comprou coisas suas. Fico muito feliz em saber disto. Acredito que a propaganda dela, no Brasil, será proveitosa (...). Além disso, com o fim da Alemanha e da Rússia, precisam-se inventar novos mercados”. É verdade que, sob a tutela de Léger, Tarsila produziu, em 1923, a
23 Entre os brasileiros, Sergio Millet – que primeiro relatou o evento na imprensa brasileira – foi uma das figuras centrais da Semana de Arte Moderna. Posteriormente, foi membro do júri da I Bienal de São Paulo, subseqüentemente tornando-se seu diretor. Rêgo Monteiro, outro pioneiro do modernismo brasileiro, foi pintor modernista precursor no Brasil. Em 1930, com Geo Charles, organizou uma grande exposição de arte moderna, viajando a Recife, Rio de Janeiro e São Paulo. Essa exposição incluía artistas como Picasso, Braque, Lhote, Léger, Masson, Gris, Gleizes, Miró, Vlaminck, Severini, de Chirico, Herbin, Campigli, Marie Laurencin, Laurens, Marcoussis e brasileiros, como Tarsila e o próprio Rêgo Monteiro. Cf. Pontual, Roberto. Entre dois séculos. Rio de Janeiro: JB, 1987: 33. Como escultor, Brecheret foi figura central do grupo modernista de São Paulo. À medida que seu trabalho era aceito até mesmo nos círculos conservadores, ele recebia encomendas para produzir monumentos públicos, e posteriormente recebeu o Prêmio Nacional de Escultura na I Bienal de São Paulo. Cf. Asbury, 2006, op. cit. 24 As passagens desse parágrafo são de Herkenhoff, op. cit., p. 19 apud Aracy Amaral, op. cit., p. 101.
pintura icônica A Negra. Apesar do significado dessa obra na história de arte brasileira, Herkenhoff argumenta que seria ingênuo supor que um marchand da estatura de Rosenberg consideraria expor a obra de uma estudante imatura, sem um conjunto substancial de produção, sem que fosse pela perspectiva de uma abertura no mercado de arte brasileiro. A exposição não chegou a acontecer, uma vez que, de acordo com Herkenhoff, no ano seguinte a Alemanha recuperou seu antigo padrão de aquisição de arte. A fascinação parisiense pelo exótico levaria Cendrars a planejar a produção de um balé de estilo semelhante de A criação do mundo (talvez como Les ballets russes, de Diaghilev, cujos projetos foram criados por Picasso), com música de Villa-Lobos (18871959), letras de Oswald e figurino de Tarsila. No entanto, assim como suas pretensões de negócios no Brasil, a idéia de Cendrars para tal balé não foi realizada. Não obstante, ele de fato visitou o Brasil em 1924 e colaborou com Tarsila e estimulou seu trabalho como artista. A experiência de Cendrars de Brasil teve o mérito de revitalizar sua produção poética, consolidando a presença dos modernistas brasileiros nos círculos de vanguarda parisienses e finalmente forjando o caráter nacionalista do modernismo entre 1924 e 1928. Historiadores do modernismo brasileiro deram muita importância à visita de Cendrars ao Brasil, em 1924.25 Apelidada pelos próprios modernistas brasileiros de “viagem da redescoberta”,26 nessa incursão Cendrar foi acompanhado por Oswald, Tarsila, Mário de Andrade (1893-1945) e Paulo Prado, entre outros, ao interior do país, nos estados de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais.
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25 Ver, por exemplo, Amaral, 1975, op. cit. 26 Oswald de Andrade talvez tenha sido pioneiros nesse sentido, em sua ‘dedicação’ a Cendrars, no livro de poemas Pau-Brasil, publicado em 1924 pela própria editora de Cendrars, a Au Sans Pareil.
A pretensão da visita era propiciar a absorção de referências do legado nacional brasileiro como a arquitetura barroca de Minas Gerais e as tradições populares do carnaval e das favelas do Rio de Janeiro, incluindo o repertório dos interesses modernistas brasileiros. A “viagem” ocorreu no mesmo ano do Manifesto Pau-Brasil, de Oswald, em que ele declara a existência de um estilo nacional de poesia moderna, e da EFCB (Estrada de Ferro Central do Brasil), de Tarsila, que mostra uma abordagem dos objetos inspirada em Léger, enquanto descreve cenas de mecanização nos trópicos. O interesse no passado colonial, combinado ao contato superficial com as culturas populares do Brasil, foi a conseqüência direta da “viagem” que, por sua vez, contribuiu na consolidação do modernismo como movimento nacional por sua própria conta, deslocando a ênfase de seu crescimento de suas fontes parisienses, ao estabelecer relação direta entre a produção e o território brasileiro. 27 Calil, op. cit., p. 567.
De fato, Carlos Augusto Machado Calil27 viu fortes semelhanças entre Pau-Brasil, de Oswald e Feuilles de route, de Cendrars, ambas publicadas por Au Sans Pareil (editora de Cendrars), e Oswald dedicou sua publicação “a Blaise Cendrars, pela descoberta do Brasil”, em adição ao prefácio de Paulo Prado. Mais tarde, Cendrars teria papel central na organização da primeira exposição de Tarsila na Galerie Percier, em Paris, em cujo catálogo foi incluído
28 Amaral, T. Blaise Cendrars no Brasil e os modernistas. São Paulo: Livraria Martins Editora, 1970, p.8. Edição revisada: São Paulo: Editora 34 Ltda, 1997. 29 Como na pintura Antropofagia (1929), de Tarsila do Amaral, na qual ela combinou figuras de outras pinturas, como A negra (1923) e O abaporu (1928). 30 A discussão que se segue sobre A negra de Tarsila foi adaptada de uma passagem de Asbury, 2003, op. cit., pp.148-150. 31 Morais, F. Entre la construction et le rêve: l’abîme. In Sayag, A. e Schweisguth, Modernidade: Art Brésilien du 20e Siècle, catálogo de exposição, Paris: Musée d’Art Moderne de la Ville de Paris, 1987, p. 53. 32 A distância que se mantinha entre o círculo modernista e um contexto social brasileiro mais amplo foi expressada por Mário de Andrade ao admitir, durante as celebrações dos 20 anos da Semana de Arte Moderna, que seu círculo geralmente tinha atitude aristocrática. Traduzido para o inglês in Schwartz, J. (ed.) Tupi or not Tupi: The Cry of Literature in Modern Brazil. In Schwartz, J. (ed.). Brasil: 1920-1950, de la Antropofagia a Brasilia, catálogo de exposição, Valência: IVAM, 2000, pp. 593-601. 33 Cf. Amaral, T. Arte Construtiva no Brasil: Coleção Adolpho Leirner. São Paulo: Companhia Melhoramentos/DBA Artes Graphicas, 1998, pp. 32-33.
um poema seu intitulado “Saint Paul”.28 Além disso, Tarsila ilustrou a coleção de poemas de Cendrars, Feuilles de route. Como Cendrars já houvesse colaborado com Sonia Delaunay (1885-1979), na década anterior, em Prose du Transsiberien et de la petite Jehanne de France, era bem natural que a colaboração de Tarsila com o poeta fosse reconhecida como algo que seguisse uma grande linhagem, representando, dessa maneira, importante contribuição dentro de uma história mais ampla da arte moderna. Um esboço de A negra, de Tarsila, de 1923, foi usado na capa frontal do Feuilles de route, de Cendrars. Como já mencionado, essa pintura é freqüentemente citada como obra precursora, exibindo inúmeras questões e temas que emergiriam em sua produção ao longo dos anos 20. Entretanto, ela não detém o sentido de síntese visto em seus trabalhos posteriores, ao longo da década de 1920. Ainda assim, serve como meio adicional para o entendimento do impacto que a viagem com Cendrars teve em sua obra.29 O aspecto formal mais imediato de A negra de Tarsila é sua abordagem distinta da relação entre primeiro e segundo plano.30 O crítico Frederico Morais31 descreveu essa distinção como abismo que separa o primeiro plano, figurativo, do segundo, abstrato, sugerindo a partir daí dicotomia não resolvida entre a representação do nacional e as tendências abstratas da arte moderna européia.32 Uma leitura mais plausível da tímida abstração de A Negra poderia posicioná-la como conseqüência das associações de Tarsila com o ambiente artístico francês, em vez de representar um pressentimento33 do projeto abstrato que apareceria no Brasil durante os anos 40 e 50. Poder-se-ia ver tal abismo como o produto de uma artista recém-chegada a Paris, tentando assimilar as diversas tendências associadas
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ao modernismo no início da década de 1920. Nesse sentido, A negra tem o conflito que afrontou Tarsila durante aqueles primeiros dias em Paris. Por um lado, ela foi exposta ao ideal do retorno à tradição clássica; isso agiria como uma ‘purificação’ do cubismo, livrando-o de suas conotações românticas; por outro, ela também respondeu à fascinação parisiense pelo não europeu, o primitivo, o Outro. A negra se referiu abertamente, em sua relação composicional entre a natureza e o corpo feminino, ao ideal de primitivismo que em Paris vinha sendo algo corrente desde o início do século: a figura de uma mulher negra nua é arraigada ao solo como parte integral da natureza; a folha de bananeira, mais adiante, especifica a localização claramente tropical de tal natureza. Além disso, vindo a artista de uma próspera família proprietária de terras e considerando que a abolição da escravatura no Brasil só foi oficialmente decretada em 1888, amas negras poderiam ainda ser consideradas parte intrínseca da experiência cotidiana da filha de um proprietário de terras. Contudo, é mais possível que a inspiração para A negra tenha relação mais direta com fontes parisienses do que com brasileiras. O historiador e artista Carlos Zilio34 apontou, por exemplo, similaridades com algumas
34 Zilio, op. cit., p. 49.
esculturas de Constantin Brancusi (1876-1957). Tal alegação é perfeitamente aceita, levando-se em conta que o escultor romeno pertenceu ao círculo de amigos parisienses de Tarsila, que lhe visitou o ateliê em 1923. Portanto, é possível declarar que A negra, de Tarsila, demonstra a ‘mulher negra primitiva’ não como representação regionalista do brasileiro, mas como conseqüência da fascinação parisiense pelo exótico. O segundo plano da pintura serve como meio para pôr tal figura de maneira clara, sem ambivalência, como o tema de um artista moderno trabalhando especificamente na tradição francesa. Além disso, uma pintura que antes de tudo reflete a proximidade que a artista tinha com a produção contemporânea de Léger, sobretudo se considerarmos Femme à Genou de 1921, e Deux Femmes dans un Intérieur de 1922. O próprio Léger havia passado por um período de intensa reavaliação de sua produção, consideravelmente afetada pela influência do purismo e pelo ideal do ‘clamor à ordem’. Dessa maneira, as composições tornaram-se muito mais estáticas, e seu imaginário padronizou-se numa forma purista.35 Em oposição ao ambiente fechado de A negra, as pinturas de Tarsila que se seguiram à visita de Cendrars ao Brasil apresentam, predominantemente, espaços abertos. São paisagens nas quais objetos tipicamente modernos se relacionam em cenário tropical. Na pintura EFCB (Central do Brasil), de 1924, sinais de modernidade, elementos de natureza caracteristicamente brasileiros e uma igreja barroca no horizonte formam sua base composicional. No espírito do manifesto Pau-Brasil, de Oswald de Andrade, Tarsila transpôs a estética contemporânea francesa para o contexto brasileiro, passando a ser notável certa padronização de suas formas. A influência de Cendrars durante o período Pau-Brasil começou a enfraquecer-se ao longo do fim gradual de sua amizade com Oswald de Andrade. O Manifesto Antropofágico, de
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35 Golding e Green, op. cit., pp. 61-62.
1928, anunciou relação mais irreverente com a fonte européia. A partir da asserção nacionalista do Pau-Brasil, a ênfase deslocou-se para a negação, em que o europeu tornou-se irreverentemente associado à nutrição. Tal posição é indicadora do próprio deslocamento de Oswald, que sai das premissas nacionalistas do purismo e ruma às propostas mais desagregadoras e não racionais do surrealismo. Tal deslocamento também se reflete nas pinturas de Tarsila, que sugerem um retorno à iconoclastia de A negra, enquanto o segundo plano abstrato é substituído por um espaço mitológico de um Brasil original imaginado. A transição entre 1924 e 28 demonstrou que a relação do modernismo com o caráter nacional partiu das referências concretas rumo às imaginárias. Em outras palavras, a representação de uma nação, de sua geografia e sítios históricos, foi gradualmente abandonada em favor de um conceito idealizado de origem nacional, que poderia ser descrito como uma arcádia pré-cabralina. Hoje em dia, a arte contemporânea do Brasil é freqüentemente apresentada à arena internacional como algo pertencente a uma linha de desenvolvimento independente. Ela é vista como algo que surgiu da canibalização da cultura estrangeira, e essa estratégia de apropriação lhe garantiu a classificação de avant la lettre pós-moderna. Sendo assim, dá-se muito pouco espaço ao reconhecimento da presença de trocas com os círculos modernistas europeus. Trocas como as que ocorreram com Cendrars tiveram função capital nas mudanças ideológicas dos anos 20 e foram resultados de amizade, mas também de puros interesses econômicos. É irônico que os aristocráticos modernistas brasileiros tenham embarcado em um projeto que pressupunha uma grandiosa modernidade cosmopolita em que artistas brasileiros podiam circular livremente no circuito de arte parisiense e que tenha chegado ao paradoxal modernismo, que fabricou seu próprio caráter nacional ao transpor a premissa central subjacente ao purismo. A alegação de que a França era a herdeira de direito da tradição clássica – o que produziu uma seção perversa da arte moderna que invocava abertamente noções de arcádia, embora renovadas pelas pinceladas pós-cubistas – transformou-se, para os brasileiros, no paraíso pré-europeu para os nativos Tupi-Guarani; uma arcádia tropical, baseada em mitos indígenas. Ainda assim, se devemos considerar a fascinação européia concomitante pelo exótico, que além do mais serviu para enfatizar as qualidades distintas da ‘tradição ocidental’, até que ponto o modernismo brasileiro pode ser considerado verdadeiramente nacional?
Michael Asbury é professor-associado (reader) de história e teoria de arte na University of Arts London, onde é membro do Centro de Pesquisas de Arte, Identidade e Nações Transnacionais, na UAL. É diretor da pós-graduação em Teoria e Prática da Arte Transnacional, e está associado à Camberwell College of Arts e à Chelsea College of Art and Design.
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Presença da arte brasileira: história e visibilidade internacional1 Stéphane Huchet
Analisamos as condições de visibilidade cognitiva e pública da arte brasileira a partir da situação da historiografia, mas sobretudo da mediação principal que as exposições realizam tanto no país quanto no exterior. Um breve histórico de algumas delas sugere como a recente projeção internacional da arte brasileira lhe dá mais oportunidades de existir de maneira duradoura do que as importantes pesquisas que lhe são consagradas no âmbito universitário, essas padecendo de prejudicial falta de infra-estruturas para se impor e ser divulgadas. Essas análises colocam a questão da relação e da geopolítica dos intercâmbios entre o Brasil e outros centros, uma reescritura da história global da arte parecendo encontrar hoje contexto mais favorável, mas ainda não concretizado. Arte brasileira, historiografia, geopolítica das exposições. Curiosamente na expressão “história da arte”, a hesitação entre os Rubens Gerchman, Nova Geografia.
dois sentidos do genitivo “de” ilustra admiravelmente a latitude da ação e da situação
Tradução Inês de Araújo.
da história da arte no Brasil, compreendida como história da arte brasileira, ou história
1 Este artigo é a versão traduzida de Présence de l’art brésilien. Histoire et visibilité internationale, 20/21. siècles. Revue art histoire. Cahiers du Centre Pierre Francastel, n. 5-6, Histoire et historiographie. L’art du second XXème siècle, outono 2007, p. 229-246. 2 A grande exposição consagrada a Hélio Oiticica na Galerie Nationale du Jeu de Paume em 1992 é momento marcante da (re?) descoberta da arte contemporânea brasileira (tendo sido a exposição também mostrada em Rotterdam e Barcelona), assim como a exposição de Waltercio Caldas e de Cildo Meireles na IX Documenta no mesmo ano. Os Bichos de Lygia Clark visíveis na exposição L’Informe Mode d’emploi no Centro Pompidou em 1995 também lembram, em seguida, os contatos que Jean Clay e a revista Rhobo tiveram no final dos anos 60 na França com a grande artista de performance brasileira. Deve-se citar a importante exposição organizada por Corine Diserens e Sueli Rolnik no museu de Belas-Artes de Nantes Lygia Clark: de l’oeuvre à l’événement. Nous sommes le moule, à vous de donner le souffle (de 8 de outubro a 31 de dezembro de 2005). O recente colóquio consagrado ao “Demi-siècle de Pierre Restany” no
brasileira da arte. É justamente no antagonismo entre uma produção artística contemporânea de altíssima qualidade e a discreta historiografia da arte que reside um dos aspectos paradoxais da situação brasileira. Quem não vive no Brasil não faz idéia do vigor da criação artística do país. Sua presença em museus ou galerias fora do Brasil, em constante aumento nos últimos 15 anos,2 sua integração aos circuitos expositivos, exemplificados pelas grandes bienais, não podem esconder o fato de que, no plano da pesquisa, contudo, a arte brasileira não atingiu o patamar de participação do espaço historiográfico ao qual ela pode e deveria chegar. Falando de modo pouco diplomático, a história sintética e global da arte, em suas articulações e esquemas internacionais, na globalidade de trocas de saber em que se determina sua visibilidade histórica e cognitiva – história que passa sob oceanos e continentes –, é ainda uma história escrita segundo os esquemas críticos e certa vulgata em vigor no que os brasileiros chamam “o primeiro mundo”, realidade sociocultural que corresponde, grosso modo, aos países do G8. Essa situação gera certa frustração nos meios universitários dos historiadores da arte. Falaremos um pouco a respeito disso, antes de retornar ao campo mais específico e estratégico das exposições de arte, pois essas representam a oportunidade de a arte brasileira – e latino-americana, por extensão – ter começado a existir e confir-
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mado sua entrada na cena internacional. Com efeito, o que se faz, se propõe, se pensa e se mostra nessas exposições constitui um espaço de mediação essencial que permite à arte brasileira, num momento de abertura e de trocas acentuadas, enfim transformar-se num componente incontornável da história da arte. Poderíamos ainda adiantar a idéia de que a imensa dificuldade, neste começo de século XXI, de escrever uma história totalizadora da
Institut national d’histoire de l’art, de 30 de novembro a primeiro de dezembro de 2006, permitiu lembrar os elos estreitos que o crítico de arte francesa teve com a arte brasileira desde os anos 60, ainda que nada indique que esses contatos o tenham levado a trabalhar na França para a promoção da arte que ele lá conheceu.
arte – sobretudo se quisermos escapar aos cânones predeterminados da história formalista – deveria permitir à arte brasileira – arte de um continente em si só, em meio ao continente latino-americano – ver-se atribuir, num tempo de reconfiguração da paisagem histórica da modernidade e da contemporaneidade, um espaço de existência e de afirmação, compartilhando com outros espaços culturais a grande plataforma da arte. Este é sem dúvida o papel de tantas exposições internacionais há quase 20 anos: abrir um caminho. Muitas coisas caracterizam a história da arte institucional brasileira: uma demanda de reconhecimento da parte de um país que se sabe artisticamente significativo (nos últimos 40 anos, os nomes de Hélio Oiticica, Lygia Clark, Lygia Pape, Cildo Meireles, Antonio Dias, Waltercio Caldas, Jac Leirner, Leda Catunda, Rosângela Rennó, Vik Muniz, Ernesto Neto remetem a uma criação artística singular); a frustração de não ver a originalidade dessa arte suficientemente conhecida, assimilada, problematizada e enfim assumida como parte integrante da arte moderna e contemporânea ocidental. A esse respeito, Aracy Amaral sugere em artigo muito recente que os países de rica infra-estrutura institucional começaram a integrar a arte contemporânea brasileira em exposições, mas que estas freqüentemente se baseiam numa relação crítica majoritariamente idiossincrática que não hesita em fazer a economia de um conhecimento histórico das especificidades dessa arte, para projetá-la segundo perspectivas mais pessoais e intuitivas do que solidamente críticas.3 Trata-se pois de uma certa frustração, difusa, suscitada pelo fato de que as exposições no exterior ainda não conseguiram criar para a arte brasileira a existência crítica indiscutível que ela merece nem desencadearam a revisão historiográfica global da história da arte que está em seu po-
3 Amaral, Aracy. História da Arte Moderna na América Latina (1780-1990). In Textos do Trópico de Capricórnio. Artigos e ensaios (1980-2005), vol. 2, Circuitos da arte na América Latina e no Brasil. São Paulo: Editora 34, 2006, p. 128.
der intrínseco suscitar e motivar. Tomemos um exemplo. Pode-se muito bem dizer que toda a história da saída da pintura de sua moldura, de sua espacialização etc. se precipita entre Frank Stella e os minimalistas americanos – como faz uma certa vulgata histórica já solidamente estabelecida –, mas não se pode negar que as formas e as produções experimentais neoconcretas de Lygia Clark e de Hélio Oiticica, entre outros, são igualmente, em elevado grau de conseqüências formais e epistemológicas, contribuições essenciais a essa história. Basta tomar como exemplo os Penetráveis, o Grande Núcleo, os ambientes de Oiticica entre 1960 e 1967, para ver que se trata de contribuições maiores à arte e às correntes internacionais dominantes dos anos 60.4 Reequilibrar-se-á algum dia o Norte pelo Sul? Questão direta, que relembra o mapa carta conceitual que Rubens Gerchman criou em 1970, intercambiando os dois hemisférios, como num sonho, redimindo simbolicamente o pesadelo da exclusão (Americamerica. Homenagem a O. de Andrade). Uma historiografia em fase de constituição Existência expositiva da arte brasileira no exterior em fase de crescimento, mas histo-
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4 O curador geral da XXIII Bienal Internacional de São Paulo, fazendo a avaliação da bienal precedente, de 1994, formulou o desafio desta questão escrevendo no princípio de seu prefácio no catálogo: “Na XXII Bienal, tratouse de pensar a situação universal a partir de uma experiência brasileira”, a de Lygia Clark, Hélio Oiticica e Mira Schendel, notadamente na questão da “gênese da instalação”. Aguilar, Nelson. A era da desmaterialização. In XXIII Bienal de São Paulo, cat. exp. São Paulo: Fundação Bienal, 1996, p.20.
riografia que ainda não conseguiu se apropriar da história cuja tarefa lhe incumbe dar corpo, e fazê-la existir fora das fronteiras, tal é a situação brasileira. O último ponto está estreitamente ligado à fragilidade de um corpus historiográfico que, se estivesse solidamente estabelecido e sustentado por infra-estruturas firmes, seria suscetível de mostrarse e de manifestar-se em primeiro lugar no interior do Brasil, e, por extensão, nos países estrangeiros. Estranha situação. Para a qual muitas coisas concorrem. Qual o estatuto da história da arte no Brasil? Neste imenso país de 170 milhões de habitantes, só existe a graduação em História da Arte no Instituto de Artes da UERJ, no Rio. A história da arte como disciplina universitária é freqüentemente apresentada como “apêndice” das faculdades de história para as quais ela não passa da história de algo mais reduzido do que o vasto campo da história geral... Sem formação de base, existem no entanto, pesquisas no nível de pós-graduação, infelizmente sem grande visibilidade pública extra-universitária USP, Unicamp, UFRJ, PUC-Rio, UFBA, UFRGS, UFMG, UFV, etc. Deparamo-nos, assim, com um problema de método, de ausência de formação epistemológica sobre os embates meta-históricos e conceituais. A identificação de postulados metodológicos que fundam toda prática historiográfica só interessa a uma parte da corporação de historiadores da arte. Muitas vezes, a escolha de uma prática “iconológica” pós-panofskyana – representando por certo uma necessidade profissional de criar as bases documentais de uma futura história da arte mais audaciosa – recusa-se a levar em consideração a multiplicidade de abordagens, questionamentos, problematizações e projeções possíveis – que são sempre uma reconstrução hermenêutica de obras e de imagens. Aos olhos da corrente mais “positivista”, a teoria representa uma provocação, uma exigência marginal. Ainda mais, os historiadores que propõem análises sobre o processo metodo5 Quando apresentamos já há algum tempo (no XXII Colóquio do Comitê Brasileiro de História da Arte, em 2002) as análises de Thierry de Duve feitas em Au nom de l’art (Paris: Minuit, 1989) sobre as diversas abordagens cognitivas e epistemológicas da arte – segundo sejamos antropólogo; historiador da arte como de um patrimônio legado pela posteridade, corpus de estilos e de nomes que formam um consenso; filósofo ou esteta; sociólogo ou semiólogo; historiador das vanguardas, das rupturas, de seu reflexo crítico e da jurisprudência crítica que se estabelece nesses momentos ou, então, historiador de lentidões e ressurgências intempestivas; amador, crítico ou artista, o leque de posições teóricas postas em questão não foi recebido pela maioria dos membros presentes como devendo fazer parte das preocupações de um historiador da arte que se respeite, as metodologias e as posições metadisciplinares não constituindo objeto de interesse do historiador-historiador! 6 Ver, por exemplo, as comunicações de Maria Lúcia Bastos Kern por ocasião dos últimos Colóquios Brasileiros de História da Arte: “A historiografia da arte e o debate sobre a crise da disciplina” (2003), e “Arte contemporânea, historiografia e memória” (2005).
lógico e sobre os postulados teóricos da prática historiográfica possuem muitas vezes o defeito de quase nunca proceder a uma prática efetiva de pesquisa sobre o terreno. “Para que serve a teoria da história se o que eles fazem não é ‘história’?” pensam seus adversários.5 A minoria mais teórica, sem dúvida pouco versada na pesquisa documental de terreno – já que as condições de possibilidade e a configuração do questionamento do objeto e de sua colocação em perspectiva crítica os interessa mais do que o mergulho na matéria histórica de fato –, tem o mérito de provocar os historiadores de arquivo sobre um terreno importante, o da necessidade de interrogar suas práticas e de se perguntar, como historiador, qual idéia e qual conceito eu tenho e posso ter do objeto e da imagem artística, do corpus de objetos e imagens que analiso? As citações de filósofos ou historiadores como Michel Foulcault, Roland Barthes, Georges Didi-Huberman, Carlo Ginzburg ou Hans Belting são uma maneira de tentar acordar a jovem história da arte brasileira daquilo que é um pouco seu sono racional.6 Mas por que pensar em revoluções e em superposições de níveis desconstrutivos quando tudo se constrói ainda de modo frágil? É preciso também sublinhar que a ausência de uma política sistemática de traduções da parte das editoras não facilita as coisas. O diagnóstico, por vezes negativo, que se pode fazer da historiografia ainda se agrava pelo fato de o mercado editorial da história da arte ser fraco, da relativa invisibilidade pública de as publicações gerarem uma situação
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de palimpsesto historiográfico. Quantas boas produções deixam de existir concretamente porque não circulam! Isso é sem dúvida um dos motivos da fraqueza da reflexão conceitual sobre a prática da história da arte. Falta o alimento necessário. Lisbeth Rebollo registra precisamente que: Não existe um repertório bibliográfico suficiente sobre a epistemologia do pensamento cultural latino-americano para orientar a empreitada de ler criticamente a história da arte latino-americana. Até aqui, não existem trabalhos sobre a discussão metodológica no campo de produção de historiografia da arte deste espaço histórico-cultural.7 Muitas vezes a ausência de contemporaneidade não na escolha de temas estudados, mas quanto aos instrumentos conceituais de trabalho, torna a história da arte brasileira ligei-
7 Rebollo, Lisbeth. História da Arte na América Latina: questões epistemológicas e de identidade cultural. In: Anais do XXIII Colóquio Brasileiro de História da Arte. Sônia Gomes Pereira; Roberto Conduru (ed.). Rio de Janeiro: CBHA, UERJ, UFRJ, 2004, p. 239.
ramente deslocada, em especial com relação a uma produção artística viva, uma produção cujo vigor e a cor não deveriam mais deixar indiferentes os historiadores da arte. O país tem a reputação de ser jovem, e sua arte o é; sua historiografia menos. Não se poderia ela perguntar como fazer história da arte quando a arte que se faz ao redor é tão criativa? Não seria preciso que ela colocasse a questão da relação de afinidade e de proporcionalidade entre um campo artístico contemporâneo tanto voltado para o seu solo de aparecimento quanto para os conceitos em circulação no mundo e ela mesma enquanto disciplina que passa para o presente a memória da arte? Lisbeth Rebollo resume bem a situação: Separando-se, na análise, o produto artístico do processo artístico (...) a história da arte latino-americana não consegue encontrar eixos suficientes para a compreensão da produção; deixa de lado, quase sempre, aspectos fundamentais de seu objeto de estudo; não considera a arte como um produto simbólico.8
8 Id., ibid.
Atualmente certas contribuições modificam nitidamente a situação: do ponto de vista editorial, é claro,9 em particular os Anais dos Colóquios do Comitê Brasileiro da História da Arte, cujas temáticas, nos últimos anos, justamente procuraram consolidar a predominância de questões epistemológicas, instituindo portanto uma agenda nova, assim como a participação de historiadores no trabalho de crítica de arte. Do ponto de vista do engajamento crítico, uma oportunidade para que o historiador consiga criar condições mais favoráveis para ser conhecido e lido reside em suas ligações com a prática da crítica de arte. No Brasil sempre existiu historiadores da arte que, graças a contato real e aprofundado com o trabalho de crítica de arte e a produção artística contemporânea, revelaram-se criativos e dinâmicos, produzindo livros complexos e admiráveis. No trabalho dos críticos de arte, uma parte importante das pesquisas ocorre, pesquisa sólida e convincente, sobre o terreno do sentido da arte, indissociável de suas perspectivas históricas. Na própria estrutura universitária, devemos ressaltar o papel desempenhado
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9 Tomemos o exemplo do excelente livro intitulado Imagem e conhecimento. Annateresa Fabris e Maria Lúcia Bastos Kern (orgs.). São Paulo: Edusp, 2006, que tem o objetivo claro de apresentar fontes de pensamento sobre a relação teórica entre as obras e as imagens de arte.
pelas revistas Gávea (PUC-Rio), Concinnitas (UERJ), Arte&Ensaios (EBA/UFRJ), Ars (ECA/ USP), Porto Arte (IA/UFRGS), etc., isto é, as mais consolidadas, mas cuja difusão é desastrosa, o que priva os pesquisadores de excelentes instrumentos de trabalho. Elas publicam artigos de historiadores, de críticos e de artistas, traduções importantes, o trânsito e a interação entre os “status profissionais” fazendo-se do modo mais normal do mundo. É importante sublinhar que a reflexão científica sobre arte e sobre sua história recebe freqüentemente da parte (não apenas dos críticos, mas sobretudo) de artistas contribuições de primeira ordem. É um artista, Ricardo Basbaum – presente na Documenta de 2007 –, que está na origem de uma importante reunião de artigos intitulada Arte Brasileira Contemporânea: texturas, dicções, ficções, estratégias (Rio de Janeiro: Rios Ambiciosos, 2001); são também artistas, Maria Ivone dos Santos, que organizou a reunião de textos Processos fotográficos na arte contemporânea (Porto Alegre: Ed. da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2005), e Patrícia Franca, organizadora do conjunto Concepções contemporâneas da arte (Belo Horizonte: Ed. da Universidade Federal de Minas Gerais, 2006). Do ponto de vista editorial, é indiscutivelmente a produção sobre arte contemporânea que ocupa a melhor parte do mercado, sem dúvida porque, à diferença da história, a crítica trabalha sobre uma produção artística recente, que tem elos com as numerosas estruturas e instituições que formam os artistas. No Brasil, é sobretudo a história do tempo presente que motiva as energias. Situação interessante: se por um lado vê-se que uma parte dos historiadores ainda não se deu muito conta do fato de que é a crítica que, em grande parte, constitui na história uma das matrizes promocionais das obras de arte e que toda história da arte deve também ser uma história da crítica, a crítica de arte, por sua vez, bem sabe que a arte contemporânea não é inteligível sem a existência de uma mínima memória de seus alicerces históricos nacionais e internacionais... Assim, no âmbito museológico, pode-se dizer que, em sua maioria, as exposições que acontecem hoje em dia em São Paulo, por exemplo, são também tomadas de posição histórico-críticas sobre a história da arte do país, sem jamais deixar de sublinhar o diálogo implícito estabelecido 10 A exposição MAM[NA]OCA, arte brasileira do acervo do Museu de Arte Moderna de São Paulo, 2006, seguiu essa linha. O catálogo propunha especialmente um interessante e sintético texto de Tadeu Chiarelli que se situava nessa perspectiva, afirmando justamente que o resgate no Brasil de Lygia Clark e Hélio Oiticica deve muito às exposições desses artistas fora do Brasil (“Arte Traidora”).
entre as obras com certa cena internacional.10 Na verdade, um setor importante da crítica e dos curadores brasileiros sempre sustentou e promoveu a arte contemporânea. No Brasil, o olhar sobre a arte é extremamente produtivo quando se situa na sincronia entre discurso e produção artística. Pensemos em Mário Pedrosa, que, nos anos 60, demonstrava acuidade do olhar que ainda permanece como modelo de reflexão sobre arte. É sempre preciso relê-lo. Pensemos em Walter Zanini, historiador, criador institucional, diretor de museu e curador de bienais, cujo papel para
11 Amaral, Aracy. 2006, op.cit. 12 Ferreira, Glória (ed.). Crítica de Arte no Brasil: Temáticas Contemporâneas, Rio de Janeiro: Funarte, 2006, assim como uma reunião de escritos de artistas internacionais: Ferreira,Glória e Cotrim, Cecília (ed.). Escritos de artistas – anos 60/70, Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006.
a arte moderna e contemporânea no Brasil deveria ser reavaliado. Pensemos em Aracy Amaral, que dos anos 60 à década de 2000, acompanhou de modo perspicaz, criativo, a produção artística do país e do exterior, nos legando três volumes de críticas ao vivo com notáveis intuições e pistas para o trabalho futuro do historiador.11 Pensemos ainda em Ronaldo Brito, em Frederico Morais, e tantos outros, e em nossos dias na reflexão engajada de Glória Ferreira,12 por exemplo. Todos sabem que a arte contemporânea é a
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fina flor de uma história a curto, médio e longo prazo. Isso contrasta imensamente com a historiografia, que ainda não sabe levar a pesquisa contemporânea de ponta ao tecido do passado para criar configurações cintilantes. Mas é sem dúvida sobre o terreno vivo das exposições que o Brasil vê sua arte se beneficiar de uma presença mais notória. À porta da América Latina Para alargar um pouco o contexto, tendo em conta o fato de que o Brasil, se é um continente em si mesmo, também faz parte da entidade complexa e plural chamada América Latina, nos parece salutar partir de algumas exposições que se realizaram sobre “arte latino-americana” – entidade ela mesma terrivelmente genérica e problemática – de 20 anos para cá (sem que seja necessário remontar até a exposição que Alfred H. Barr organizou em 1967 no Moma – Latin American Art 1931-1966 –, que não teve repercussões especiais já que será preciso esperar mais de 20 anos para que a América Latina reencontre um espaço de visibilidade institucional). O ano de 1989 é, nesse sentido, um ano importante. Entre maio e agosto de 1989 realizou-se na galeria Hayward, em Londres, a exposição Art in Latina América: The Modern Era 1820-1980, com catálogo publicado pela Yale University Press. Itinerando em seguida por Estocolmo e Madri, essa exposição confirmava a chegada real da “arte latino-americana” à cena internacional, em se tratando de grandes exemplificações históricas. Aracy Amaral fala a seu respeito de modo bastante objetivo na época:13 a América Latina é tratada em seções iconográficas diversificadas, menos cronológicas do que transversais pelos temas históricos, críticos ou estéticos escolhidos. Trata-se da história, das independências, das academias, dos viajantes, do grafismo popu-
13 Amaral, Aracy. Made in England: uma visão da América Latina. Textos do Trópico do Capricórnio. Artigos e Ensaios (1980-2005), vol. 2, pp. 55-58.
lar, das raízes do modernismo, do muralismo mexicano, do realismo social, e da natureza, das ciências depois de ‘obras particulares’ correspondendo a individualidades marcantes. A exposição foi de algum modo concebida pela historiadora especialista Dawn Ades como um livro aberto. O julgamento de Catherine David em Galeries magazine era mais crítico, sublinhando as lacunas de todas as ordens na seleção, os recortes e as coabitações forçadas e duvidosas: “uma ocasião perdida”.14 Ela enfatizava também o importante capítulo de Guy Brett consagrado no catálogo ao “salto radical” contemporâneo, remetendo a artistas como Fontana, Cruz-Diez, Soto, Sérgio Camargo, Lygia Pape, Mira Schendel e, é claro, em bom lugar, Hélio Oiticica, Lygia Clark, na época ainda quase desconhecidos do público europeu. Não é inútil lembrar que 1989 é também o ano da exposição Les magiciens de la terre, no Centro Pompidou e na Halle de la Villette, organizada por Jean-Hubert Martin –, que representa relevante baliza crítica, histórica e museológica, na medida em que colocou em questão as relações e o olhar do Ocidente sobre as culturas artísticas não ocidentais, o que não deixava de ser potencialmente sem conseqüências para, por exemplo, uma parte da arte produzida no Brasil, sabendo o quanto certos curadores e responsáveis de exposição podiam ainda, na época, valorizar no Novo Mundo as produções que escapavam
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14 David, Catherine. Art in Latin America. Galeries Magazine, n. 33, oct.-nov. 1989, pp. 114-119.
Rubens Gerchman. Americamerica, homenagem a Oswaldo de Andrade), 1969, objeto em madeira e formica com areia e letras, Doação do artista ao Masp.
aos modelos culturais da arte moderna ou contemporânea definidos na Europa ou nos EUA (Cildo Meireles foi exposto, mas também mestre Didi). É até divertido reler o que JeanHubert Martin, tão audacioso em seu empreendimento, dizia apesar de tudo no número de maio da Art Press, afirmando ter procurado na América do Sul artistas não comprometidos com o sistema de arte ocidental e que não via interesse em mostrar artistas que lessem Artforum... Essa abordagem não fazia justiça à significação intrínseca da arte contemporânea produzida longe “de nossos grandes centros”. Ela projetava sobre os artistas da América Latina a recusa do modelo eurocentrista ou americocentrista, quando a interlocução internacional à qual tais artistas têm direito, mas sobretudo à qual a maioria deles procede no interior de suas produções – e à qual a arte, precisamente no país que nos interessa aqui, o Brasil, sempre procedeu – justamente faz desse modelo não necessariamente um valor tabu a seus olhos. Não há nada que golpeie mais um artista dessa região do mundo da arte do que essa dificuldade em receber como tal uma arte cujas motivações e a verdade não residem de modo algum na satisfação das demandas expressas no “primeiro mundo” de uma arte outra; evidentemente, as alegrias do sistema não podem ser privilégio apenas dos artistas “lá de cima”. Voltamos sempre à imensa responsabilidade que representa a exposição de uma arte que foi marginalizada durante tanto tempo... Em 1993, a exposição itinerante (Espanha, França, Alemanha e depois Nova York) organizada pelo Moma Latin American Artists of the Twentieth Century confirmava de certo modo o mecanismo das exposições internacionais viajando de país em país como “pacotes”. Uma parte dessa exposição, apresentada no Centre Pompidou, no final de 1992 e começo de 1993, sob o título Arte da América Latina, 1911-1968, deixava de lado o quarto de século separando 1968 da data da exposição, relegando esses 25 anos ao Hôtel des Arts. Isso demonstrava que a nova visibilidade da arte “latino-americana” se encontrava de fato cindida segundo uma janela histórica significando três coisas: uma certa recusa em fazer o trabalho de exame crítico da produção recente, o que exi-
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giria colocá-la em relação com a arte “histórica” – o Moma, em 1967, expunha a arte produzida até o ano anterior; as incertezas da instituição de recepção em face do que não deveria no entanto ultrapassar as capacidades de análise crítica de um especialista formado e preparado; e sem dúvida a ausência de especialistas, ou seja, novamente a ausência de uma história da arte sólida dessas regiões distantes, ou ainda, em outros termos, a demonstração de que o Norte começava apenas a olhar para o Sul de maneira um pouco mais sistemática, mas que, para tanto, uma distância histórica era necessária para começar daí a se localizar e criar pontos de referência... Justamente na Art Press, o poeta cubano Severo Sarduy apresentava de modo breve a ignorância na qual, a seus olhos, a arte européia e suas imagens mantiveram o Novo Mundo durante séculos e o historiador brasileiro Nelson Aguilar questionava de modo incisivo as escolhas museológicas: América Latina, 1911-1968, no Centro Georges-Pompidou, assim como Américas latinas: Arte Contemporânea, no Hôtel des Arts, são exposições organizadas segundo critérios geopolíticos, de modo algum segundo critérios estéticos (...) Em Sevilha, primeira etapa da exposição itinerante organizada por Waldo Rasmussen, diretor do programa Internacional do Moma de Nova York, os latino-americanos estavam presentes no mesmo edifício, na estação Plaza de Armas. Em Paris, eles passaram pelo desafio de serem divididos, os jovens foram conduzidos para a rue de Berryer, e os veteranos (aqueles que produziram antes de 68) para a Grande Galeria do Centro GeorgesPompidou.15
15 Aguilar, Nelson. Au-delá des limites et des frontiers. Art Press, n. 174, novembre 1992, p. 40.
Aguilar lastimava, com razão, a exclusão, por falta de lugar (!), de artistas tão importantes como Antonio Dias, Cildo Meireles, José Resende, Leda Catunda, Nuno Ramos, presentes em Sevilha. Com efeito, a ausência de tais artistas, retrospectivamente, é inconcebível... Quanto à Art Press, a revista destacava a justeza dos argumentos de Nelson Aguilar, escrevendo: “O que diríamos de uma exposição em que Vasarely, Beuy e os membros do Cobra se avizinhassem sob o único pretexto de ser europeus?”16 Não se pode ler essas linhas sem citar a constatação feita por Catherine David três anos antes em sua
16 Id., ibid., p. 34. Éditorial “L’Amérique Latine”.
análise da exposição londrina organizada por Dawn Ades: Como todas as culturas ‘periféricas’ [a arte da América Latina] foi durante muito tempo percebida sob as formas opostas da mimese, da cópia ou da apropriação dos modelos europeus, ou da alteridade folclórica ou exótica; essa leitura simplista, que se poupava de um estudo atento das histórias e operações culturais complexas articulando contextos e heranças específicas, conduziu à ocultação ou à marginalização de fatos, de pensamentos e de obras maiores produzidas na periferia dos centros tradicionais da modernidade ocidental.17
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17 David, op.cit., p. 114.
Existem práticas e escolhas que falam por si, na medida em que marcam um tratamento diferencial. O fato, por exemplo, de montar exposições que tornam necessária a redução da “arte latino-americana” a um reservatório de imaginário “exótico” ou “alternativo” situa o nível de responsabilidade crítica e histórica que exigem essas exposições. Aí ainda permanece um quê nostálgico do realismo mágico de outrora. É exatamente o que assinala Susan Fischer Sterling na introdução da exposição Ultra Modern. The Art of Contemporary Brazil, no National Museum of Woman in the Arts, em Washington, em 1993, quando ela lembra que Luis Cancel e Mari Carmem Ramírez tinham denunciado na revista Art Journal 51, n. 4, do inverno de 1992, que os curadores norte-americanos haviam até então sempre reduzido a arte da América Latina a uma “arte fantástica de inspiração 18 Fisher Sterling, Susan. UltraModern: the Art of Contemporary Brasil. An Introduction. In: UltraModern: the Art of Contemporary Brazil, cat. exp. Washington, D.C.: The National Museum of Women in the Arts, de 2 de abril a primeiro de agosto de 1993, p.8. 19 Id., ibid., p. 12. S.F. Sterling faz aqui alusão aos comentários sobre a arte latinoamericana que fazem, enquanto editores convidados, Luis Camnitzer e Shifra M. Goldman no mesmo número de Art Journal.
surrealista”.18 Essa introdução bem ressituava os desafios encontrados por essa região do mundo da arte muito freqüentemente abordada através de preconceitos e estereótipos e de um “fluxo de informações em sentido único”, cego à periferia, “a maldição colonial impedindo um fluxo recíproco”.19 E acrescentava com razão que foi apenas com o questionamento pós-moderno “da hegemonia dos antigos centros artísticos” que o olhar sobre a arte brasileira pôde mudar, permitindo por exemplo colocar em destaque na exposição em questão “a tendência urbana e a tonalidade internacional da arte conceitual e abstrata do Brasil”.20 O “transbordamento de criatividade”21 foi apresentado através de 18 artistas,
20 Id., ibid., p. 10.
todas mulheres, constituindo cena e fonte de informação visual verdadeiramente notável,
21 Id., ibid., p. 12.
testemunhando a arte de gerações que se sucederam dos anos 60 aos 90. Várias delas fazem parte atualmente do circuito internacional (no grande catálogo: Fayga Ostrower, Maria Bonomi, Mira Schendel, Lygia Pape, Lygia Clark, Regina Silveira, Ana Bella Geiger, Leda Catunda, Frida Baranek, Éster Grispum, Jac Leirner, Rsângela Rennó, Ana Maria Tavares, Beatriz Milhazes...). Expor o Brasil É indiscutivelmente a exposição Modernidade. Art brésilien du XX siècle, no Musée d’Art
22 De 10 de dezembro 1987 a 14 de fevereiro de 1988.
moderne de la Ville de Paris,22 que inaugura a presença contemporânea da arte brasileira na paisagem de exposições francesas. A exposição tinha por curadores principais, ao lado de Marie Odile Briot, Aracy Amaral, Frederico Morais e Roberto Pontual, que trabalhou em Paris como representante do Jornal do Brasil, do Rio, de 1980 a 1987. As seções cronológicas encontravam seu sentido num catálogo constituído de textos de pesquisadores brasileiros e da tradução de documentos históricos, uma cronologia e uma bibliografia, o conjunto oferecendo uma visão panorâmica já substancial da arte e da crítica brasileira de 1917 a 1985 para quem transformava esse catálogo em material de estudo e de tra-
23 Ver nota 2.
balho. Nos anos 90, as exposições assinaladas23 confirmaram a entrada da arte brasileira na paisagem histórica da arte. Uma circulação internacional entre centros iria mesmo acontecer a partir dos anos 90, a exposição Hélio Oiticica no Jeu de Paume, em Rotterdam e Barcelona, em 1992, sendo “seguida”, durante a XXII Bienal de São Paulo, de 1994, pela exposição das obras de Oiticica, Lygia Clark e Mira Schendel, apresentados como artistas determinantes na questão histórica de ruptura com o meio. Poder-se-ia dizer que essa escolha crítica, a um só tempo, propunha ao mundo da arte uma integração dos artistas
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a uma história da arte global renovada, como o quis sem dúvida Catherine David com Oiticica na exposição do Jeu de Paume. A releitura pelo Brasil de seus próprios fundamentos artísticos contemporâneos foi também “seguida” por outras exposições em que a presença brasileira estava confirmada como valor histórico: assinalamos a exposição L’informe. Mode d’emploi, no Centro Pompidou em 1995, em que de certo modo Lygia Clark renascia na França, um quarto de século após a presença que aí tivera nos anos 70 já entre críticos próximos, Yves-Alain Bois e Jean Clay especialmente. Em 1994 a exposição Inside the Visible, organizada pela Kanaal Art Foundation, em Kortrijk, em Flandres, que foi em seguida apresentada em 1996 no Institute of Contemporary Art of Boston, depois na White Chapel Gallery, em Londres, assim como em Washington e em Perth, na Austrália, dava lugar a Lygia Clark, Mira Schendel e Ana Maria Maiolino. A proposição era interessante, pois, através da temática do in, of, and from the feminine, o que as instituições anglo-saxônicas exibiam nos quatro cantos do mundo era uma amostra histórica internacional em que as artistas citadas receberam lugar merecido.24 Foi muito importante e decisivo ver três artistas brasileiras na vizinhança imediata de Eva Hesse, Louise Bourgeois ou Nancy Spero. Em 1997-98, a Fundação Tàpies de Barcelona e o MAC-galeries contemporaines des Musées de Marseille apresentaram ao público uma retrospectiva de
24 Ver Catherine de Zegher (ed.). Inside de visible. An elliptical traverse of the 20th century of art. In, of and from the feminine, cat. expo., Cambrigde, Massachusetts: The MIT Press, 1996.
Lygia Clark, mostrada também na Fundação Serralves do Porto e no Musée des Beaux Arts de Bruxelles. Nos exemplos imediatamente citados, mais precisamente naquele da atual fortuna póstuma e histórica de Lygia Clark, a inteligência da arte contemporânea foi nessas exposições a aposta primordial. Estendia-se da pesquisa de uma contribuição fragmentar mas fundamental a uma verdadeira reescritura da história, em que as obras e as trajetórias escolhidas, por sua capacidade proposicional, eram capazes de renovar o sentido por vezes enrijecido da aventura artística moderna e contemporânea no nível global, como testemunha o engajamento de um número cada vez maior de instituições de horizonte internacional. Mas está claro que a nova parceria entre esses centros de decisão talvez representasse também uma estratégia necessária. Nela, interesses extra-artísticos podem revelar-se determinantes. É um pouco o caso da exposição Brazil: Body & Soul,25 concebida por Edward Sullivan, cujo enorme catálogo apresentava ao público americano uma síntese global da arte brasileira e de sua história, abrangendo todos os seus aspectos, históricos, antropológicos, estéticos, a pintura, a escultura, a arquitetura, as artes e as manifestações populares. O longo texto de Sullivan sobre a alma e o corpo brasileiros detém-se sobretudo no barroco, sua especialidade, e os dois textos seguintes constituem uma primeira parte significativa do catálogo. Insiste sobre o necessário conhecimento da dimensão histórica e antropológica do país, especialmente no texto de Roberto da Matta sobre “a mensagem dos rituais brasileiros: as celebrações populares e o Carnaval”. Uma vez esse portal crítico instalado, o catálogo entra mais precisamente nos ritmos da história da arte, começando pelo “encontro” entre europeus e indígenas, através das figuras artísticas emblemáticas dos artistas holandeses do século XVII, Albert Eckhout e Franz Post, extraordinários aquarelistas e desenhistas. As 50 páginas em questão dão lugar em seguida às quase 200 páginas consagradas ao barro-
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25 Museu Guggenheim, Nova York, out. 2001jan. 2002; Bilbao, março-setembro de 2002.
co, cenário de escolha, em que intervêm em massa pesquisadores brasileiros como Afonso Ávila ontem e Miriam Ribeiro hoje, antes da seção das “culturas afro-brasileiras”, de 60 páginas. Nas quase 120 páginas seguintes, o “Brasil moderno” assiste à concentração dos historiadores Agnaldo Farias sobre “a arte construtiva”, Maria Icléia Cattani sobre “o lugar do modernismo no Brasil”, Marie-Alice Milliet sobre “o paradoxo concretista”, a arte do artista psicótico Arthur Bispo do Rosário e os ex-votos populares em boa colocação atrás da longa série de artistas modernos reconhecidos, Tarsila do Amaral, Portinari, Di Cavalcanti, Guignard, Volpi, os construtivos e concretistas de São Paulo, nos anos 50, os neoconcretos do Rio nos anos 60, e evidentemente Clark e Oiticica. Os artistas contemporâneos são trabalhados por Aguilar, que destaca Lygia Pape, Regina Silveira, Tunga, Adriana Varejão, de quem ele já falava em seu artigo para Art Press 10 anos antes, enquanto Germano Celant, curador associado da exposição, escreve sobre as estrelas “barrocas” da arte brasileira da década de 2000: Vik Muniz, Miguel Rio Branco, Ernesto Neto, já plenamente consagrados no mercado de Nova York. As escolhas contemporâneas devendo muito à circulação internacional dos artistas expostos, ou seja, correndo um mínimo de risco. Não se pode deixar de mencionar que Celant, encarregado da representação brasileira na Bienal de Veneza de 2001, expôs precisamente Vik Muniz, Ernesto Neto e Tunga. (Finalmente seções consagradas à arquitetura e ao cinema encerram o catálogo.) A exposição de Nova York resultou na verdade do empréstimo ao Guggenheim de uma amostragem da megaexposição Mostra do Redescobrimento. Brasil 500 anos e mais, que aconteceu no Pavilhão da Bienal de São Paulo em 2000, para comemorar a descoberta do 26 Fialho, Ana Letícia. As exposições internacionais da arte brasileira: discursos, práticas e interesses em jogo. Sociedade e Estado, vol. 20, n. 3, set.-dez. 2005, Brasília.
Brasil por Pedro Álvares Cabral. Ana Letícia Fialho26 lembra que essa exposição – a respeito da qual falaremos mais adiante em outro contexto – pode ter servido segundo certos críticos para fazer pressão sobre as autoridades brasileiras a fim de promover a construção de um Museu Guggenheim no Rio de Janeiro, projeto posteriormente abandonado. Na realidade, esse tipo de exposição, por natureza ou por fatalidade, faz emergirem interesses e análises as mais diversificadas, que vão da maldade crítica, por ignorância voluntária ou não, às recepções favoráveis. As citações de críticos feitas na época nos jornais de Nova York mostram que o trabalho de transformação dos preconceitos e dos lugares-comuns pejorativos levará muito tempo, pois a relação entre culturas ricas e culturas chamadas periféricas pelos mesmos constitui dobra tenaz e resistente. Ana Letícia Fialho lembra também que a exposição Hélio Oiticica: Quase-Cinema, no New Museum de Nova York, em 2002, foi uma oportunidade para certos críticos fazerem do artista brasileiro, que ali se exilou em 1970, um subproduto da cena americana da época, o que é bastante incerto, observemos, e que trai uma vontade de hegemonia. O ponto de encontro entre olhares heterogêneos mostra como tal situação é delicada para a obra em questão, a hipótese de uma americanização de Oiticica sendo até mesmo pensada como uma possível passagem desejada visando projetá-lo no ambiente de nações para poder, quem sabe, restituí-lo em seguida a seu justo lugar de artista tanto brasileiro quanto internacional. Poderíamos dizer que tais exposições são ocasiões de deflagrar processos de hiperterapia cultural cujos objetivos e realizações são muito complexos...
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Numerosas reações preferem também o terreno delicado da relação com o “mercado de exposição”.27 Elas são de ordem sociológica, política e econômica, visando nesse tipo de exposição a espécies de capitais móveis investidos na bolsa das instituições culturais com vistas
27 Fervenza, Hélio. O + é deserto. São Paulo: Escrituras, 2003, p. 79.
não exatamente a um rendimento simbólico, mas a dividendos financeiros, mercadológicos e políticos. Como lembra Ana Letícia Fialho, o presidente da Fundação Brasil 500 Anos, articulador do projeto de “transferência” da Mostra do Redescobrimento para o Guggenheim, confessava que os gêneros estavam voluntariamente confundidos, e todo o marketing acionado servia para transformar a imagem do Brasil no exterior e fazê-lo um dos primeiros países a ser citado quando a questão fosse a da arte contemporânea.28 Para algumas pessoas, os dados
28 Fialho, Op.cit.
estão sempre marcados, mas não é sobre esse terreno que nos situaremos, muito menos sobre o das estatísticas de compra e venda de arte brasileira no exterior.29 O papel da Bienal Internacional de São Paulo Não se pode, entretanto, reduzir unilateralmente uma tal exposição aos objetivos unicamente comerciais. Não se pode muito menos inibir as tentativas de “aproximações” no interior do “macro-texto [da] história da arte”,30 sob o pretexto de que elas repousariam sobre motivações em que as relações entre “centro”e “periferia”, entre etnocentrismos diversos fossem culturalmente mal resolvidas ou reenviariam àquilo que Lucy Lippard diz parecer “cooptações” quando se refere a exposições em que, tentando proceder a uma “colagem igualitária” de obras e objetos de origens culturais heterogêneas, o curador tenta contribuir para possibilidade de “algumas vozes serem ouvidas”31 dos outros, de outrem. Está claro que tais operações assinalam a procura de modalidades de integração entre áreas culturais. Pois o desafio é justamente pensar as condições de projeção de uma arte: aqui, para a arte brasileira, uma conquista de visibilidade que faça justiça a sua riqueza, a sua história e a seu dinamismo de sempre. A esse respeito, a Bienal de São Paulo tem vocação, no interior do país e graças ao olhar estrangeiro, de lhe oferecer um espaço notável de projeção nacional e internacional. Parece que a XXIII Bienal, em 1996, já se situava em tal perspectiva, quando seu presidente registrava: o fim do milênio impõe sobretudo às instituições consagradas às artes contemporâneas um balanço de seus procedimentos e atividades. A fundação Bienal de São Paulo não se furtou ao livre exame e propõe pela primeira vez em sua história uma exposição que reflete e inova a própria maneira de mostrar arte (...) Conscientes do fato que o etnocentrismo euro-americano hoje está inteiramente questionado, oferecemos o mesmo espaço dos centros artísticos ditos hegemônicos a continentes ignorados até então pela crítica de arte.32 Para a seção Universalis – entre duas outras constituídas pelas salas especiais e pelas representações nacionais –, sete curadores foram convidados a colaborar para uma exposição “do mundo artístico em sete regiões”. Achille Bonito Oliva para a Europa ocidental, Paul Schimmel para a América do Norte, Tadayasu Sakai para a Ásia, Katalin Néray para a
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29 A arte brasileira contemporânea adquiriu direito à cidadania internacional. Alguns raros exemplos recentes: no Canadá, por exemplo, pudemos ver em agosto de 2004 no Museu de Arte Contemporânea de Montreal uma videoinstalação de Rosângela Rennó, artista perfeitamente integrada aos cicuitos mundiais nos quatro cantos do globo e nas grandes mostras internacionais, Bienal de Veneza (45a, Aperto 93 e 50a), 2a Bienal de Berlim, etc., assim como Rivane Neuenschwander (50a Bienal de Veneza, Palais de Tokyo em 2003), Adriana Varejão (Fundação Cartier em 2005) ou Ernesto Neto no Panthéon de Paris em 2006. Também em 2004, a revista Parachute consagrava um dossiê à cena artística de São Paulo em seu número 116. Na França, se Tunga, por exemplo, foi exposto em 1992, no Jeu de Paume, ele novamente o foi em 2001 na mesma instituição, sem contar sua instalação na Documenta X, em 1997, em que Catherine David não deixou igualmente de levar a Kassel um conjunto significativo de obras de Hélio Oiticica. Este último constituiu o objeto em março de 2007 de uma exposição no Fine Arts Museum de Houston, The Body of Color, cuja curadora foi Mari Carmen Ramírez. Essa exposição, organizada mais especificamente pelo Centre internacional d’art des Amériques, subordinado ao museu (L’ICAA realiza atualmente um conjunto de Documentos latinoamericanos do século XX: Projeto de Arquivo Digital), e ao Projeto Hélio, com base no Rio, corresponde ao momento de concretização do projeto de catálogo comentado do artista, previsto em sete volumes. Essa exposição foi igualmente apresentada em junho de 2007 na Tate Modern. O mesmo Fine Arts Museum de Houston acaba de adquirir a mais importante coleção de arte construtiva brasileira do período 1950-1965, que pertencia a Adolpho Leirner. Lygia Clark, Hélio Oiticica, Volpi, Mira Schendel, Sérgio Camargo, Waldemar Cordeiro e Cícero Dias dela fazem parte. Enfim, a exposição Tropicália: a revolution in Brasilian Culture (curador: Carlos Basualdo), organizada em parceria pelo MoCA de Chicago, onde foi exibida de 22 de outubro de 2005 a 8 de janeiro 2006, e pelo Bronx Museum of the Arts, em Nova York, onde ficou de 14 de outubro de 2006 a 28 de janeiro de 2007; também apresentada na Barbican Art Gallery de Londres,
de 15 de fevereiro a 21 de maio de 2006 e no Centro Cultural de Belém, em Lisboa, de julho a setembro de 2006, confirma a partir de então a existência “histórica” do forte elo da arte brasileira dos anos 60 – sobretudo o do Rio – no espaço expositivo atual, em torno de nomes consagrados e já tantas vezes citados como Clark e Oiticica, aos quais a exposição acrescentava com razão Rubens Gerchman, Lygia Pape, Antônio Dias etc. Ver Edward Leffingwell, Brazilian Improv, Art in America, abril 2007, pp. 44-47. 30 de Souza Martinez, Elisa. Um percurso de pesquisa em curadoria: anotações para uma abordagem metodológica. Anais do 15o Encontro Nacional da Anpap Arte: Limites e Contaminações. Vol 1, Salvador: Anpap, 2007, pp. 383-391. Mencionemos, enfim, a importância dada à arte brasileira contemporânea no Arco 2008, em Madrid, com curadorias de Paulo Sergio Duarte e Moacyr dos Anjos, encontros com críticos e intelectuais brasileiros. 31 Lippard, Lucy. Mixed Blessings: New Art in a Multicultural America, Nova York, Pantheon Books, 1990, p. 10. Apud de Souza Martinez, op. cit., p. 386. 32 Ferreira, Edmar Cid. Refletindo e inovando a maneira de mostrar arte. XXIII Bienal de São Paulo, Universalis, São Paulo: Fundação Bienal, 1996, p. 16. 33 Aguilar, 1996, op.cit., p. 22.
Europa oriental, Agnaldo Farias para o Brasil, Mari Carmem Ramírez para a América Latina (julgando as teses e os parâmetros críticos e históricos da ‘desmaterialização’, segundo foi abordada por Lucy Lippard em seu famoso livro de 1962, Six Years: the Dematerialization of the Art Object – a desmaterialização e suas continuações sendo o tema dessa bienal –, ela defendeu a idéia de uma “rematerialização” operada pela arte latino-americana) e Jean-Hubert Martin para a África e Oceania, este último precisando no catálogo sua visão das modalidades intelectuais da relação que a arte ocidental pode instituir com as artes ou produções estéticas e simbólicas das outras culturas. Em sua introdução ao catálogo da Universalis, N. Aguilar, curador geral da Bienal, fazia expressamente o elogio da exposição Les magiciens de la terre como constituindo um modelo fundador, uma referência em curadoria e crítica estratégica. A exposição de JeanHubert Martin sete anos antes colocava a seus olhos os termos de um reequilíbrio possível e necessário no campo da história da arte, das categorias simbólicas e do diálogo entre culturas heterogêneas, o que o levava a qualificá-la de “primeira ação antietnocentrista dessa magnitude a ocorrer num dos centros da arte contemporânea ocidental [e de] dedução radical da crítica de arte hoje”.33 Isso não o impedia de prosseguir com a idéia de reequilíbrio, acrescentando, não sem ironia: Na XXIII Bienal Internacional de São Paulo, estamos próximos e distantes da exposição do Centro Pompidou. Próximos porque a cena brasileira sempre se soube os Mágicos da Terra de ultramar, distantes por não conseguirmos ver a África do ponto de vista da antropologia visual, por demasiado implicados que estamos. Do Brasil é mais fácil praticar antropologia da Escola de Paris ou estudar a atração de Matisse e Picasso
34 Id., ibid., p. 23.
pela arte negra ou a recepção do jazz no universo cultural francês.34 Na economia museológica, a XXIV Bienal de São Paulo, em 1998, representa excepcional exemplo de integração da história da arte e de uma visão teórica e hermenêutica fecunda e apaixonante, ressaltando criticamente as relações históricas e trans-históricas entre obras e imagens de um ao outro lado do Atlântico. A introdução de Paulo Herkenhoff constituiu verdadeiro manifesto sobre a função da apresentação, pela exposição e toda a máquina crítica que ela movimenta, das possibilidades de pensar sobre uma contribuição séria e rigorosa para a reescritura da história da arte, sendo o conceito brasileiro de antropofagia de certo modo universalizado num “campo ampliado” ou expanded field historiográfico e simbólico bastante estruturado do ponto de vista crítico. A diferença entre o que Aguilar chamava de olhar antropológico externo e dimensão histórica autóctone representava para o curador principal, Paulo Herkenhoff, oportunidade de praticar relações de antropofagia recíprocas, o conceito em questão, verdadeiro modelo simbólico da cultura brasileira, podendo instituir um parâmetro relacional intercultural nada devendo à importação de modelos exteriores. O que permitia a Herkenhoff sustentar a ambição de uma integração conceitual de diferentes perspectivas, internas e externas,
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sobre a categoria em questão, pois a antropofagia é também para ele uma prática universal: pôde, assim, escrever no catálogo do Núcleo Histórico: Antropofagia e histórias e canibalismo – uma das quatro seções museológicas da exposição – que essa bienal tomava verdadeiramente “posição frente à disciplina da história da arte”.35 Esse Núcleo Histórico resultou de uma série de colaborações com historiadores, críticos e curadores responsáveis pelo projeto, no qual, do exterior, participaram nada menos do que Didier
35 Herkenhoff, Paulo. Introdução geral. XXIV Bienal de São Paulo, Núcleo Histórico, antropofagia e histórias de canibalismos, cat. expo., vol. I, São Paulo: Fundação Bienal, 1998, p.22.
Ottinger, Jean-François Chougnet, Régis Michel, Luis Pérez Oramas, Peter Th. Tjabbes, Per Hovdenakk, Veit Görner, Jean-Hubert Martin, cujo texto sobre as difíceis relações antropológicas e ideológicas entre arte contemporânea ocidental e manifestações culturais e artísticas de caráter religioso concluía o grande catálogo. A temática da antropologia foi pensada por Herkenhoff como sendo por essência “simbólica”, o que lhe permitiu propor aos numerosos comissários convidados tratá-la como “questão do corpo fragmentado e de suas relações com a linguagem”36 (uma citação de Rabelais, a reprodução do Radeau de la
36 Id., ibid., p. 24.
Méduse e a lembrança do grande Discours, Figure, de Jean-François Lyotard, constituindo a soleira icônica-crítica do catálogo). Herkenhoff escreve em seu texto de apresentação a propósito do tema da Bienal: incentivamos a emergência de sua vastidão conceitual centrífuga como montagem de um thesaurus [precisando adiante] O Núcleo Histórico desta Bienal significa que, pela primeira vez, uma exposição integra diretamente questões específicas da cultura brasileira integrada numa discussão com a arte ocidental, reunindo o Aleijadinho e Goya, Volpi e Van Gogh, Lygia Clark e Eva Hesse em diálogo. Na arte européia, encontramos um corpus antropofágico que vai de Goya a Géricault (...) A Bienal de São Paulo, por sua complexidade e prazo, não é, como Kassel, a afirmação de um curador, mas um processo para se articular os olhares de uma pequeno exército de curadores.37 Em 2000, para a Bienal dos 500 anos, os curadores foram exclusivamente nacionais, o que se pode compreender por diversos motivos que não apresentaremos aqui (paradoxalmente (?), ainda são olhares estrangeiros que reprojetaram outros olhares estrangeiros, com Jean Galard, do Louvre, e a mostra O olhar distante de viajantes do século XVIII ao XX, e com François Ney, de Louvain, e a arte afro-brasileira). Dois anos mais tarde, a exposição Brazil: Body & Soul, no Guggenheim, recebeu, como falamos, parte significativa dessa Mostra do Redescobrimento. Brasil 500 Anos e mais. A responsabilidade e colocação em perspectiva crítica e histórica por Edward Sullivan não pôde velar que se tratava também do empréstimo de um “pacote” expositivo, com as mesmas seções aí se reencontrando. Muito singularmente, essas grandes exposições não podem esconder o fato de que, fora São Paulo, Rio e, em menor escala, Porto Alegre – desde 1997, com sua Bienal do Mercosul –, e centros emergentes no Norte, as instituições suscetíveis de expor arte contemporânea são pouco numerosas no resto do país. Pode-se ao mesmo tempo observar que essa falta de
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37 Id., ibid.
Rhobo, numero 4, 1968, Paris, editada por Julien Blaine e Jean Clay, p.12 (com início do texto de Jean Clay sobre Lygia Clark).
infra-estrutura fora as duas ou três grandes cidades do país cria em muitos outros lugares uma necessidade de mostrar no calor da ação a produção artística do momento. Muita energia lhe é consagrada, que tem ela mesma a ver com a maior vivacidade da crítica vis-à-vis da historiografia, como sinalizamos. O relativo palimpsesto mnésico gerado pela ausência de museus fora das cidades mencionadas e a existência de exposições e de instituições com vocação para mostrar a produção recente têm uma vantagem: o peso de uma história da arte muito interiorizada não age sobre os artistas. Não há entre os artistas brasileiros um legado pesado – eventualmente inibidor – como pode existir em outros contextos culturais ou históricos, em que o artista é também homem com bagagem a transportar consigo para trabalhar e produzir em função dela. Uma historiografia da arte pouco consolidada e mal difundida, assim como o número limitado de museus, desenha uma situação na qual o artista não se sente tomado pela necessidade excessiva da referência histórica ou historicista. Na realidade, entre os artistas, que evidentemente não ignoram nada da história da arte, a história está presente sob as formas de referência dinâmica que nenhum supereu for-
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malista hipoteca. Nesse sentido, as relações entre a arte brasileira e a arte do resto do mundo são da ordem da troca e da contribuição diferenciada sobre a grande plataforma global da arte. Assim, em 1996, no texto do catálogo Universalis sobre a “re-materialização” que a arte latino-americana teria procedido em continuação às aporias da desmaterialização, Mari Carmen Ramírez defendia a seguinte idéia: muito cientes da tensão produzida pela disparidade de objetivos, muitos artistas latino-americanos aceitaram o desafio proposto pela arte desmaterializada, mas em termos próprios e sob sua perspectiva particular.38 Falando em seguida sobre os artistas que ela selecionou para a Bienal, entre os quais o
38 Ramírez, Mari Carmen. Re-materialização. In: XXIII Bienal de São Paulo, Universalis, cat. exp. São Paulo: Fundação Bienal, 1996, p. 180.
artista e crítico uruguaio estabelecido em Nova York Luis Camnitzer ou o cubano Ricardo Brey, ela acrescenta que, longe de suas obras serem consideradas como apêndices derivativos dos paradigmas oficiais da arte mundial, estão preocupados em sublinhar, no âmago, aquela ‘diferença’ que articula suas diretrizes locais face à comunidade global. Para eles, a rota para uma prática da arte independente traçou-se por meio da apropriação e inversão do conceito original de arte ‘desmaterializada’.39
39 Id., ibid.
A tese da “re-materialização” – “um conceitualismo baseado no objeto” – se situava num contexto em que a arte devia, nos anos 70 e 80, lutar “contra o sistema político local e contra os circuitos institucionalizados pela hegemonia do mainstream artístico”.40 Seria possível hoje em dia pensar nos mesmos termos, de manter a re-
40 Id., ibid., p. 181.
sistência? Quem ainda o deseja verdadeiramente entre os artistas? Se de fato há nos países latino-americanos e particularmente no Brasil a necessidade para certos artistas de garantir, como dizia Carmen Ramírez, “circuitos viáveis para exposição de seus trabalhos”41 – o que explica, nas décadas de 1990-2000, os numerosos coletivos
41 Id., ibid.
autogerenciados de artistas inventando situações e sites para sua arte diante da ausência de estruturas ou diante do peso das megaestruturas existentes –, se há pois especificidades contextuais irredutíveis, a arte ou as práticas artísticas que elas motivam todavia não são muitas vezes sem relação com a arte de outros países, com aquilo que, no plano das implicações, a partir dos contextos apresentando analogias, cria entre eles convergências. A analogia não se pode reduzir unicamente aos aspectos sociopolíticos. A arte brasileira é do mundo, plenamente. As instituições internacionais finalmente compreenderam. Os eixos que destacamos em 2005 num artigo publicado na Art Press,42 quando o ano do Brasil na França estava começando, buscava prová-lo. Vários eixos de trabalho manifestam-se: certa relação crítica com a história da arte, que gera uma atitude de ironia cultural, em face do patrimônio, da memória, do ar-
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42 Huchet, Stéphane. La jeune génération brésilienne. Art Press, n. 309, fev. 2005, pp. 46-52.
quivo e da representação; um privilégio concedido à estrutura cromática, a cor sendo agente de espacialização que suscita expansão disciplinar; uma investigação sobre a espacialidade que integra evidentemente a escultura, mas que se expande em prática hegemônica de instalação e de dispositivos multimídia (sendo esta indissociável das bifurcações em direção a uma estética participativa determinada, em ocorrência, pelo poderoso modelo estrutural e histórico do neoconcretismo e dos ambientes tropicalistas); uma estética do corpo e da presença; uma práxis de ordem conceitual em que os dispositivos são semiologias ativas e diagramas de múltiplos sentidos; uma crítica da circulação do valor arte que se religa ao primeiro ponto, a atitude de ironia cultural perante a história da arte; a invenção de “coletivos” de artistas tentando estabelecer situações alternativas de criação e exposição, no quadro de uma oferta muito reduzida de espaços institucionais acessíveis etc. Não é necessário dizer que esses eixos são lábeis, que eles se cruzam, se recortam e trocam suas valências. Para além do Brasil e da América Latina, eles remetem a questões, a problemáticas e determinações críticas, disciplinares e institucionais genéricas. Sem dúvida, a Bienal de São Paulo concebida por Lisette Lagnado e sua equipe em 2006 buscava, através de seu título, “como viver junto”, explorar as possibilidades de investimento, concreto, simbólico e político do intercâmbio internacional no interior das problemáticas artísticas mundiais. Além da exposição propriamente dita e de suas condições de possibilidade, a série de seminários que aconteceu durante o ano que precedeu a abertura da mostra, sobre os múltiplos desafios da arte contemporânea, representava uma maneira audaciosa de dizer que a arte brasileira não é pensável fora de seus vínculos com as práticas artísticas e críticas das outras regiões do mundo, o diálogo sendo a condição de sua afirmação e de sua visibilidade internacional, a iniciativa vindo de dentro e não mais do exterior... Bem se vê que a questão não é saber se os artistas brasileiros lêem Artforum ou não, mas que eles estão desde sempre, desde muito tempo, no coração da dinâmica artística mundial do interior mesmo de suas produções e em ligação profunda e direta com as questões colocadas pela arte no resto do globo. Parece que daqui em diante muitos já estão convencidos, sem que todavia se possa pensar que a causa esteja definitivamente adquirida.
Stéphane Huchet é professor associado na Escola de Arquitetura da UFMG. Pesquisador do Cnpq. Doutor pela École des Hautes Études en Sciences Sociales, Paris. Membro do Comitê Brasileiro de História da Arte. Lecionou em Paris VIII, entre 1991 e 1995. Professor Visitante na Escola de Comunicação e Artes da USP em 1996 e na Unicamp em 1996-97. Publicou Le Tableau du Monde. Une théorie de l’art des années 1920. Paris: L’Harmattan, 1999. Castaño. Situação da pintura. Belo Horizonte: c/arte, 2006.
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Conheci Carlos Garaicoa na cidade de Madri, quando fui visitar seu estúdio. Na ocasião, o espaço de trabalho e reflexão abrigava uma exposição coletiva que o artista havia organizado com a produção de jovens artistas cubanos, no meio dos quais estava um brasileiro. Em verdade, foi esse brasileiro, Marlon de Azambuja, que me apresentou a Garaicoa. Nesse momento acontecia, também, a feira de arte contemporânea – ARCO’08 – e a cidade estava repleta de artistas, curadores e críticos, que circulavam nos ateliês e nas mostras paralelas. No ateliê de Garaicoa vi o díptico de fotografias de Havana, nas quais o artista interferiu, reconstruindo e refazendo poética e criticamente a memória da cidade. Em uma conversa divertida e amável, combinamos o ensaio para a revista Concinnitas, que posteriormente foi batizado como Notícias Recentes, o título de um de seus trabalhos. Carlos nasceu em Havana, em 1967, onde estudou no Instituto Superior de Arte. A capital cubana foi, por muito tempo, sua referência de ação artístico-poética. Entretanto, nos últimos anos, como em uma espécie de deriva atenta e reflexiva, expande essas ações para cidades tão diversas como Veneza, Nova York, Beijing, Madri e Rio de Janeiro. Através de instalações, fotografias, desenhos arquitetônicos e vídeos, estabelece um diálogo constante com o espaço urbano desses lugares, discutindo as cartografias que o tempo, as culturas e as ordens sociais vão desenhando. O artista havia estado no Rio de Janeiro entre 2006 e 2007 participando do projeto de residência promovido pela Fundação Teixeira de Freitas. Desenvolvera, na ocasião, vários desenhos, que foram a base do ensaio que estamos publicando. Algumas dessas obras fazem parte do projeto de exposição que Garaicoa vai inaugurar em 30 de junho desse ano na Caixa Cultural, no Rio de Janeiro, e que percorrerá várias cidades do Brasil, indo, posteriormente para outros países. Através de fotos de edifícios de Madri atingidos por disparos de armas de fogo, no projeto que deu título ao ensaio, Carlos faz referência ao que lá, como aqui, são as indicações da situação de violência generalizada em que vivemos. Esse sintoma, que gera notícias, quase sempre banalizadas pelos meios de comunicação, também é o que norteia o projeto Livros de Arquitetura Brasileira, Cimento, Balas, em que a aclamada arquitetura brasileira é o imponderável anteparo nas trocas de tiros entre quadrilhas, tão conhecidas de todos que habitam a cidade. A situação de conflito urbano também é o que Garaicoa imprime em Princípios Básicos para Destruir: a cidade-sonho construída de açúcar, mas habitada por formigas, que, necessariamente a destroem. Não sendo nostálgico nem propriamente um utópico, a mirada de Garaicoa para a arquitetura e a cidade, sempre permeada de uma inteligência mordaz, é sua forma de debater as questões da arte, mas principalmente da vida. Sheila Cabo Geraldo Notícias Recentes. 2007 (páginas 67, 72, 73 e 74). Obra em processo, Livros de Arquitetura Brasileira, Cimento, Balas. 2008 (páginas 68 e 69). Princípios Básicos para Destruir. 2007 (foto: Eddy A. Garaicoa) / (páginas 70 e 71). Todas as obras são cortesia do artista e da Galeria Elba Benítez, Espanha.
Acompanhados de um mediador, alunos de um colĂŠgio visitam a 6a Bienal do Mercosul, em Porto Alegre. Foto: Eduardo Seidl/ indicefoto. com (detalhe), 05/12/2007.
A arte como atitude – Entrevista com Luis Camnitzer Cayo Honorato
Nesta entrevista, concedida por e-mail, entre 19 e 30 de outubro de 2007, Camnitzer responde em espanhol a perguntas feitas em português sobre uma possível redefinição do estatuto da mediação educacional, a relação entre a mediação e as práticas artísticas, os limites e as possibilidades dessas atividades diante da lógica corporativa e a partir de um contexto colonial, a formação do artista, entre outras questões. Ainda que ele seja uma referência incontornável, optamos por não fazer perguntas diretamente sobre o projeto pedagógico da 6a Bienal do Mercosul, justamente, para tentar “ir mais adiante”. Mediação educacional, práticas artísticas, lógica corporativa.
Em 2006, Luis Camnitzer foi convidado para ser o curador pedagógico da 6a Bienal do Mercosul, exposição aberta à visitação de setembro a novembro de 2007. Para tanto, concebeu um projeto de ações educativas que seria considerado a plataforma fundamental para que essa Bienal se diferenciasse no panorama das bienais internacionais. Seu projeto “entende a arte como um processo educativo e, por conseqüência, a educação como uma atividade artística e transformadora”. De acordo com esse propósito, expresso na vontade de envolver o público com a exposição de forma criativa e atuante, em vez de seu consumidor passivo, inúmeras estratégias foram definidas: o aprofundamento e a ampliação do tempo de formação dos mediadores; a presença dos mediadores em escolas públicas e privadas do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina, através de encontros de capacitação dos professores, o que também promoveu o contato dos mediadores com o público escolar, desde meses antes de a exposição ser aberta; a disposição de “estações pedagógicas”, no espaço expositivo, para receber e dar visibilidade às sugestões e idéias do público a respeito das obras de arte, na medida em que consideradas solução de um problema; também no espaço expositivo, a reserva de zonas de repouso e convivência, para dar à visita a sensação de passeio, além da oferta de um centro de pesquisa para consulta de materiais diversos, de ateliês para exercícios artísticos e de pequenos auditórios para encontros de vários tipos; a realização de chats pela Internet com artistas e curadores e de um simpósio internacional presencial, também transmitido pela Internet; além, é claro, das visitas agendadas com os mediadores – se isso for tudo. Cayo Honorato: As recentes edições de pelo menos três importantes exposições de arte contemporânea (6a Bienal do Mercosul, Documenta 12 e Manifesta 6) parecem sinalizar
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uma redefinição do estatuto da mediação educacional nessas situações. Nelas, a mediação integra o projeto curatorial desde o seu início, portanto, não mais como um serviço posteriormente agregado à concepção da exposição, tornando-se, em um ou outro caso e de certa maneira, o próprio projeto curatorial. Qual seria o sentido dessa mudança? Luis Camnitzer: No he visto Documenta, y Manifesta nunca llegó a hacerse. Entiendo que Manifesta era un proyecto pedagógico, pero limitado a algunos invitados para discutir problemas de arte y de educación de arte. Creo que la Bienal del Mercosur fue más allá. La Bienal trató de sacar la institución de ser un vehículo que mostra fetiches para convertirse en un lugar de comunicación interactiva con los artistas y de formación creativa – no de consumo – del público. Para esto hay que diseñar la Bienal con este propósito desde un inicio y no adjuntarle un proyecto educacional luego de organizada la exposición. El sentido de estos cambios es de activar al público y mostrarle que el arte es una metodología accesible que sirve para conectar ideas que no se pueden conectar en otras metodologías y que es una forma de expandir el conocimiento. El arte no es un espectáculo para estimular el consumo pasivo. Honorato: Mais do que a promoção da mediação educacional no organograma das exposições e espaços de arte ou a proposta de outros parâmetros expográficos que dêem maior visibilidade e efetividade a esse trabalho, ainda que esses fatores sejam importantes, parece-nos que essa suposta “virada educacional” tende a questionar radicalmente o formato tradicional (design-and-display) das exposições de arte ou mesmo a produção de arte para exposições. Como você avalia essa possibilidade? Camnitzer: Justamente, cuando acepté el trabajo expliqué que solamente me interesaba si la Bienal se convertía en un instituto pedagógico permanente el cual cada dos años hace una muestra de arte de acuerdo a las necesidades pedagógicas identificadas por el instituto. Es un modelo radicalmente distinto al modelo tradicional que consiste en la muestra de productos cerrados en si mismos y comerciables. Creo que no hay que hacer arte para las exposiciones sino para el público que va a las exposiciones. En el mercado actual tendemos, como artistas, a dialogar con el espacio de la exposición, y no con la gente. Honorato: Além disso, essa “virada educacional” nas exposições de arte corresponderia a uma mudança no influxo das práticas artísticas? Ou seja, as práticas artísticas se teriam tornado educacionais? Camnitzer: Sería bueno que fuera así, y hay algunas producciones artísticas que se mueven en esa dirección, particularmente obras colectivas, obras hechas en equipo. Pero no creo que la producción artística hoy haya cambiado mucho. A lo mejor este nuevo modelo ayuda un poco a que se efectúe un cambio. De cualquier modo pienso que la “virada” no es conceptual, que el arte es implícitamente educacional. Creo que son solamente los artistas y los administradores del arte los que no asumimos esa responsabilidad.
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Empresários em visita guiada à 6a Bienal do Mercosul. Foto: Eduardo Seidl/ indicefoto.com (detalhe), 31/10/2007.
Honorato: Por outro lado, você considera que esses parâmetros educacionais possam ser restritivos de um tipo de arte? É possível pensarmos na mediação como crítica da arte? Camnitzer: No creo que sean restrictivos en la parte de creación, quizás afecten la intención de la comunicación y por lo tanto el formato (la forma de envolver la obra que es lo que superficialmente determina los aspectos estilísticos). Pero no significa que el artista limite su libertad de expresión. En cuanto a la mediación, es exáctamente eso y no debiera ser una forma de crítica de arte. La mediación es como ayudarle a alguien entrar en un laberinto que no conoce y evitar que se pierda. Honorato: Um artigo publicado na revista Frieze em setembro de 2006 mostra que, na Inglaterra, os investimentos nos programas educativos têm crescido, enquanto diminuem na aquisição de trabalhos de arte. Combinado aos acréscimos, os programas são informados pelos fins das políticas governamentais. Assim, eles se transformam em tecnologias de inclusão social, sem que a associação da arte com o privilégio socioeconômico seja questionada, ou ainda em suplemento do currículo escolar, funcionalizando a arte no sistema econômico-produtivo e esquecendo-se dela como maneira de se haver com os outros no mundo. Dito isso, não estariam os programas educativos se tornando a própria
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justificativa para o investimento nas exposições de arte? Nesse caso, quais são as implicações desse processo? Camnitzer: Creo que esa es una posibilidad, pero que depende de la ideología que informa el proceso. En la Bienal, al menos los curadores de esta bienal en particular, nos preocupamos menos por el mercado y la relación del arte con la parte de inversión económica, y más por una apertura de los procesos creativos. Generalmente se asume que hay un monopolio de la creación que está en manos de un segmento de la sociedad denominado “artistas” y apoyado por el mercado. En esta bienal tratamos de hablar de creación, más que de arte, como un proceso abierto a todos. En la sociedad capitalista es inevitable que alguien encuentre maneras de sacar provecho económico de esto. (Las compañías farmacéuticas ganan cifras incalculables aprovechando la enfermedad de la gente, pero la fabricación de medicamentos no es algo criticable). Creo que es la ideología de la bienal en conjunción a la nueva estructura lo que puede evitar que esto se comercialice. A la larga quizás el deterioro sea inevitable y entonces habrá que desarrollar un nuevo modelo. Honorato: Os programas de mediação educacional certamente assumiram um lugar destacado na economia das exposições e dos espaços de arte, que tendem a se transformar em corpos pedagógicos ou, por vezes, assistenciais. Porém, ao mesmo tempo em que seriam justificados pela função de ampliar o uso social da produção artístico-cultural, pela partilha de um tipo de experiência que a arte promove, esses programas têm tudo pra ser um instrumento de reprodução da lógica corporativa e das exclusividades que ela determina. A par de sua possível cooptação pela lógica corporativa, como a mediação pode promover o uso efetivamente político da produção artístico-cultural? Camnitzer: La mediación, como todas las mediaciones, afecta tanto como es afectada. Si el mediador realmente funciona como yo quiero, es decir, si especula con el público sobre los orígenes y ramificaciones de la obra, creo que el proceso no puede ser cooptado por la estructura corporativa. Ese tipo de especulación va educando hacia una distancia crítica para el público y en la medida que tiene éxito, desarrolla aun más la distancia crítica del mediador. No sé si los seis meses de entrenamiento del mediador alcanzan. Este lapso de tiempo fue un paso importante ya que antes el entrenamiento se limitaba a seis semanas. Con un período de educación aun más largo creo que los mediadores podrán estar preparados en forma profesional para esta empresa. Yo quisiera que la formación de los mediadores se extienda a todo el tiempo entre bienales, que sean formados durante casi dos años y que la Bienal se convierta en una mini-universidad. Los mediadores saldrían de ese proceso bien formados y equipados también para trabajar profesionalmente en otras situaciones del mercado artístico. Y, obviamente, además solidificarán una posición ética que les permita funcionar en ambientes corporativos sin ser corrompidos por ellos. Honorato: A contradição entre a efetividade política da mediação educacional e sua cooptação parece neutralizada quando a mediação, a título de inclusão ou universalização
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do acesso aos bens culturais, apenas confirma a posição de cada um dos termos que ela relaciona: de um lado, o artista que pensa e produz; de outro, o público que assimila e consome. Como, contrariando essa neutralização, a mediação poderia redistribuir essas posições muito demarcadas no sistema da produção artístico-cultural? Afinal, quando o público e o mediador são artistas, sem que a indiferença entre eles seja decretada? Camnitzer: En la Bienal no redujimos todo el trabajo para que quede en manos del mediador. Fuimos a las escuelas y entregamos problemas creativos para los alumnos y los profesores. En la Bienal misma dimos espacios para la retroalimentación del público a través de las estaciones pedagógicas, donde el espectador puede comentar, sugerir y criticar; dimos espacios para discutir y para trabajar (lugares de reunión, aulas y talleres), y dimos espacio en las paredes para exponer sus resultados. Hemos tratado de convertir al espectador en colega del artista, y no mantenerlo en el consumo hedonistico de las obras. Todo el esfuerzo fue justamente para salir de la relación tradicional “me gusta/no me gusta” o “lo entiendo/no lo entiendo”. El mediador ayuda en este proceso estimulando la especulación. Yo les expliqué a los mediadores que no se trataba de dar conocimientos al público sino de “compartir la ignorancia e ir más allá”. El convertir al público en “colega” obviamente no significa que todo el mundo será un artista (aunque me gustaría y creo que eso es potencialmente cierto), sino que pretende que la forma de relacionarse a la obra de arte cambie de un consumo totalmente pasivo a un diálogo activo. Aun si todo el mundo llegara a ser artista, siempre sobresaldrán algunos como mejores voceros de la comunidad y como contribuyentes de ideas e imágenes que enriquezcan a la comunidad en forma más pronunciada que otros. Honorato: Muito se reclama da falta de acesso aos bens culturais. Você disse, em um dos chats promovidos pela Bienal do Mercosul, que é preciso encontrar mecanismos que nos liberem da presença física da arte como coisas que se acumulam nos centros imperiais, de modo que a experiência da arte seja menos dependente desse monopólio. Você pensa que o trabalho de mediação educacional possa relativizar a arte identificada a coisas ou objetos? De que outra forma a arte poderia se presentificar ao público? Camnitzer: La mejor solución a este problema es crear la obra propia y lograr la independencia. El monopolio de los bienes culturales es utilizado en forma clasista y colonialista. El original se puede ver si se tiene el dinero para viajar. La copia se ve como un paradigma entregado por el centro hegemónico. Eso no quiere decir que hay que ignorar esa producción, negarla o disminuirla. Quiere decir solamente que hay que observarla contextualizada, analizada en términos de lo que significa como síntoma de la distribución de poder, y utilizada como un depósito de recursos donde algunos de ellos pueden ser muy útiles para la tarea cultural local. Estos bienes culturales, como la mayor parte de la información gobal, fluye unidireccionalmente, del centro hegemónico a la periferia. Este concepto de centro/periferia ya no es necesariamente geográfico sino infográfico y en el momento representa el flujo financiero. El trabajo de mediación puede ayudar a
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contextualizar obras que se presentan como objetos y a ayudar al público a identificar los mecanismos cognitivos que pueden ser útiles para introducir una energía creativa en todas las actividades que desarrollen, no solamente las que se llaman “arte”. El arte es una actitud, no una artesanía. Honorato: Em seu texto Arte contemporânea colonial (in Escritos de artistas: anos 60/70; seleção e comentários de Glória Ferreira e Cecília Cotrim. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006, pp. 266-274), você aponta duas saídas para o artista da colônia, interessado em construir sua própria cultura: 1. não produzir produtos culturais, mas informar acerca das condições para uma cultura, e 2. afetar estruturas culturais por meio de estruturas sociais e políticas, aplicando a mesma criatividade normalmente usada para a arte. Em qual dessas posições o curador pedagógico Luis Camnitzer trabalha como artista? Depois de quase 40 anos, qual é a vigência daquelas posições? Camnitzer: Cuand escribí eso, en 1969, pensaba mucho en los aspectos creativos inusuales que tenía la guerrilla uruguaya representada por los Tupamaros (era una época de guerrilla no-violenta y radicalmente opuesta a la guerrila propuesta por Marighela). Pienso que los principios se mantienen culturalmente (fuera del ámbito de la guerrilla). En mis actividades no diferencio entre mi “arte”, mis escritos, mi actividad de profesor, o mi actividad curatorial. Son todos distintos medios aplicados a proyectos concretos. En lugar de limitarme a elegir entre pintura, escultura e instalaciones, amplié el repertorio para incluir todo y poder elegir los medios necesarios para un proyecto en particular. Entonces la pregunta se refiere a como elijo los proyectos, y los proyectos los sigo eligiendo en base a esos dos puntos. Sigo creyendo que hay que informar sobre las condiciones para una cultura y atacar aquellas que son obstáculos (como lo es la colonización), y afectar las estructuras políticas y sociales creativamente. En ese sentido la curadoría pedagógica es una actividad artística para mí. Pero es una actividad artística que no se relaciona a mi ego expresivo sino a mi responsabilidad como ciudadano, como miembro de una comunidad social. Honorato: Ainda no texto Arte contemporânea colonial, você se refere a um processo de transculturalização, expresso na vontade da colônia de ser metrópole, na identificação pela colônia com os hábitos metropolitanos, certamente, incentivadas pela disseminação de uma “cultura” imperialista – talvez pudéssemos nos referir ao desenvolvimento desse processo como globalização. Se o trabalho da mediação educacional se constitui num tipo de tradução cultural, entre a arte e o público, como ele é afetado por aquele processo? Como saber se o artista e o público partilham uma finalidade ou um motivo comum? Camnitzer: El uso de la palabra “globalización” pretende hacer que la palabra “imperialismo” sea anacrónica, pero en realidad globalización es un eufemismo para imperialismo. Mientras que la globlización sea solamente un flujo financiero por un lado y una difusión de información que solamente ocurre en una dirección por otro, seguimos en medio
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de una situación imperialista. Quizás los imperios se turnen o hagan coaliciones, pero siempre queda una periferia oprimida. El día que los flujos sean multidireccionales y sin preferencias, ahí tendremos globalización en el buen sentido de la palabra. Si aceptamos la palabra acríticamente, lo único que hacemos es bajar nuestras defensas. Entonces, la colonización cultural sigue igual que antes y se disfraza en la declaración que el arte es un lenguaje internacional y completamente inteligible en cualquier lado. Yo no creo en un idioma común internacional sino en dialectos locales, que parcialmente se entienden en todos lados, pero no completamente. Sin embargo, esos dialectos pueden estar motivados por problemas que afectan a gente en localidades distintas. Estos problemas más generales son cuestionamientos filosóficos, existenciales o sociales de carácter más general y no dependientes de una localidad. Es en desbrozar estas cosas donde el mediador es importante para evitar las lecturas equivocadas. Pero esas lecturas no se afectan por un acuerdo o desacuerdo entre público y artista. Aunque existan discrepancias ideológicas puede haber una comprensión, y ésta ayuda a fijar las posiciones. Honorato: A situação existencial contemporânea parece determinada pela insegurança, instabilidade e impermanência, pelo esvaziamento da experiência do tempo, abstração de sua qualidade instituinte e, por extensão, pelo desligamento entre o sujeito e suas capacidades, entre o sujeito e a alteridade que o constitui. Imersa nessa situação, ao mesmo tempo em que procura se haver com a incerteza a respeito de uma finalidade partilhada, a mediação educacional se conforma às urgências da realidade. Se as metas de crescimento das instituições estão postas, não há tempo de questionar seus fundamentos. Para serem competentes, os educadores se apressam em dominar conteúdos transmissíveis e aplicar métodos adequados. Quais as possibilidades de a mediação resistir a essa situação? Camnitzer: Una de las funciones del arte, más allá de expandir el conocimiento colectivo y ayudar a desentrañar la realidad, es la de crear una iconografía que sirva de referencia cultural, que funcione como un ancla perceptual para la comunidad. Es allí donde mucho del arte producido no funciona porque se adapta más a las presiones del mercado (que usurpa las presiones que debiera estar ejerciendo el proceso cultural) y por lo tanto va creando y acentuando el proceso de enajenación que describes en la pregunta. Creo que en esto el término “calidad” es secundario ya que es un concepto confuso que muchas veces se desvía exageradamante hacia la habilidad artesanal. No creo que el mediador pueda o deba entrar en una crítica general de la situación artística. Esa crítica muchas veces se referiría a problemas de clase social ajena al público y requeriría una discusión compleja de temas de cultura y de estructura social que condicionan al arte. Si el mediador comienza a entrar en esos temas, nunca llegará a discutir la obra de arte. Me parece importante que el mediador tenga conciencia de la situación y que esa conciencia informe su discusión con el público al darle esto un cariz determinado a lo que va comunicando. El otro problema, aunque importante, escapa no solamente del tiempo disponible sino también de la función (así como el mediador tampoco está para suplir información general que debiera ser impartida en el salón de clase por el profesor correspondiente). Sin
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embargo, los temas que tocas en la pregunta debieran ser importantes para el curador general que diseña la bienal y que escoge artistas y obras. En ese sentido, la selección de obras ya debiera tener un perfil crítico visible en la presentación de la muestra. Si esta posición está presente en la exposición, el mediador puede apoyarse en estos problemas con una mayor facilidad y hacer un uso más eficiente del tiempo. Claro que siempre permanecerá el impedimento de la disponibilidad de tiempo. Yo estoy acostumbrado al proceso socrático de discusión individual con tiempo ilimitado. Es el proceso pedagógico más efectivo. Pero en una bienal que a veces tiene 9.000 visitantes por día esto es un método completamente imposible. Honorato: Parece-nos que as relações entre a arte e a educação nas escolas têm sido desenvolvidas, sob o registro do ensino de artes, sem talvez levar em conta a formação do artista. Sendo assim, as escolas formam no máximo o conhecedor de arte, mas não o artista. Caso isso fosse possível, como formar o artista? Em que consiste a formação de um artista contemporâneo de si mesmo no mundo? A quantas anda seu plano de estudos ou como se expressa sua atitude pedagógica a esse respeito? Camnitzer: En el momento hay una confusión entre arte y artesanía. Se cree que si se enseña a pintar se está enseñando arte y que si se pinta bien se está haciendo buen arte. El artista se forma preparándolo para conectar ideas y cosas que los comportamientos funcionales dictados por la sociedad para su buen funcionamiento (las convenciones) no permiten hacer naturalmente. En ese sentido se debiera estar enseñando la subversión (subvertir las convenciones, por lo menos como un desafío) y no la aceptación. Es allí donde la formulación de problemas y de intenciones, y luego la especulación sobre estrategias e implementaciones, es importante. Con esto en su lugar, se necesitan medios apropiados para formalizar la empresa propuesta. Es en este punto que entran las artesanías, siempre al servicio de la solución del problema. La apreciación correcta de las obras de arte de los otros no se basa en el gusto sino en relacionar el producto con el problema propuesto. Las preguntas son si el problema propuesto es interesante y contribuye al conocimiento, si la solución (la obra) es la mejor solución a ese problema, y luego, si la solución está ejecutada elegantemente, es decir si logra ser imprescindible. El que guste o no guste es un aspecto que se relaciona a la potencial adquisición del objeto, no a la parte cognicitiva. Pero es esta parte la que importa para la formación de lo que luego incompletamente llamamos “artista” y para el desarrollo cultural. Al enfocar en el objeto y su autor estamos mirando a un individuo y no a una cultura colectivamente nuestra. Estamos definiendo al arte como si fuera una expresión individualista sin conexión con su entorno en lugar de entender el proceso subversivo, que lo es tal solamente en relación a lo que trata de contribuir y cambiar en la sociedad.
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Desmontagem da 6a Bienal do Mercosul. Foto: Eduardo Seidl/ indicefoto.com (detalhe), 17/12/2007.
Luis Camnitzer é artista, curador, teórico e professor; nascido na Alemanha, em 1937, foi criado no Uruguai, de onde é cidadão; formou-se em arquitetura e escultura no Uruguai, e estudou escultura e gravura na Alemanha; nos Estados Unidos desde 1964, Camnitzer é professor emérito da Universidade do Estado de Nova York e escreve com freqüência para várias publicações especializadas; desde a década de 1960, participou de numerosas exposições coletivas e individuais nos Estados Unidos, na América Latina e na Europa, entre elas a 1a Bienal do Mercosul.
Cayo Honorato é artista e educador; nascido em Goiânia, em 1979, mora em São Paulo desde 2004; é doutorando em Educação, na linha de Filosofia, pela FE/USP, com pesquisa financiada pela Fapesp a partir de novembro de 2007; mestre em Educação, na linha de Cultura e Processos Educacionais, pela FE/UFG; especialista em Arte Contemporânea e bacharel em Artes Visuais pela FAV/UFG. Foi consultor para a elaboração do Projeto Pedagógico dos bacharelados em Artes Visuais e Arquitetura e Urbanismo, no Centro Universitário Senac (São Paulo/SP); orientador no curso de especialização a distância em Arte, Educação e Tecnologias Contemporâneas da UnB (Brasília/DF); professor substituto na FAV/UFG (Goiânia/GO).
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Fernando José Pereira. Let’s do it again, fotografia (cores), 81,5 x 111,5cm, 2008 (Cortesia Fernando José Pereira, Porto).
Novas da desolação – Notas sobre arte e real Fernando José Pereira
Nas palavras de Zygmunt Bauman a produção “natural” de resíduos operada pelo progresso estende-se agora, na cartografia global, aos humanos. Os resíduos humanos encontram-se nos territórios da alteridade, no exterior das fronteiras e são, acima de tudo, o resultado angustiante de uma perversa combinação de lucro desenfreado e hipocrisia cultural. Na arte contemporânea assistimos a um fenómeno semelhante: à expansão das mega-corporações corresponde aqui a expansão das mega-exposições um pouco por todo o mundo e, com ênfase nos territórios “exteriores”, numa lógica de importexport que muito pouco tem já a ver com os pressupostos iniciais. A reacção a este tipo de situação é possível embora desencantada. A análise realizada por Claire Bishop a partir das premissas teórico-políticas do antagonismo permite a existência de um caminho diferente, aquele que é partilhado pela condição experimental da desanestesia, isto é, o desvendar das fracturas sem condicionantes de atenuação. Ao potenciar a sempre tão ambicionada aproximação ao real afasta-se, naturalmente, da normalização e standartização pragmática da expansibilidade liberal; antes opta descaradamente por uma condição outra: aquela que privilegia o desejo. Globalização, bienais, antagonismo. Num texto relativamente recente, Zygmunt Bauman analisa o processo de globalização de um ponto de vista diferente do habitual. Sobre o lema das vidas desperdiçadas, isto é, os párias que este processo está a fomentar um pouco por todo o planeta, examina as consequências desastrosas do progresso global. Um ponto, importante na sua análise, prende-se com a noção de resíduos. Segundo este autor toda a estratégia de expansão do capitalismo foi efectuada na base da criação de novas possibilidades que mantiveram uma relação dialéctica entre o pólo fomentador de “desenvolvimento” e o desenvolvimento de resíduos. Até agora. Neste momento, ainda segundo Bauman, a criação de resíduos, categoria que contém também os humanos, chegou ao limite de liquidez. Entrou em crise. Referia Rosa Luxemburgo numa visão, então, prospectiva e agora analisada pelo sociólogo: “para se desenvolver o capitalismo necessita um meio ambiente de formações sociais não capitalistas (...) vai avançando em constante troca de matérias com elas e só pode subsistir enquanto dispõe deste meio ambiente (...) Assim quando se afirma que o capitalismo vive de
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formações não capitalistas, para o dizer com mais rigor, deve dizer-se que vive da ruína dessas mesmas formações e, se necessita do ambiente não capitalista para a acumulação, necessita-o como base para realizar essa acumulação absorvendo-o.”1
1 Bauman, Zigmunt. Vidas Desperdiciadas – La modernidad y sus parias. Barcelona: Paidós, 2005.
A análise de Rosa Luxemburgo peca, apenas, na previsão do resultado final de tal operação: a sua auto-liquidação por falta de alimento. Hoje, sabemos que o produto de tal investimento não está finalizado, mas em profunda crise, antes de mais, por absoluta falta de solução para o seu aumento desmesurado e global, obstruído que está nos seus próprios “produtos residuais, que não é capaz de voltar a assimilar nem, tão pouco, de aniquilar”.2
2 Idem.
O problema coloca-se, portanto, no nível das expectativas criadas e, logo, goradas pela construção fronteiriça flutuante que a esfera totalizadora vai erguendo em locais cada vez mais “distantes”. A alteridade da distância mantém-se, contudo, inalterada em termos reais, obviamente, se deixarmos de lado a retórica internética de governantes e negociantes interessados mais em iludir do que resolver o problema. Parece até ser de imenso interesse o investimento telemático de aproximação operado pelo virtual mas, unicamente, para a preservação das premissas do mercado, hoje, estendidas a todos os campos da realidade. A arte incluída. A alteridade do mundo exterior – se falamos de fronteiras falamos, também, de interioridade e exterioridade – para lá do, até agora, aparentemente, inesgotável filão de recursos afirma-se, sobretudo, como um lugar de desolação. Território saqueado pelos mais diversos interesses e com as mais diversificadas estratégias, desde a mais dura exploração física do trabalho e dos recursos à mais suave penetração das noções multiculturais hoje em curso. Afinal, as duas faces da mesma moeda. Como acertadamente refere Slavoj Žižek, o multiculturalismo apresenta-se, hoje, como a face visível de um capitalismo global que abdicou, já, da dualidade constitutiva colonizador/colonizado necessária a sua anterior realidade de estados/nações para se afirmar, antes, segundo a lógica económica das multinacionais que ultrapassaram, há muito tempo, as limitações de tal relacionamento. Refere o filósofo esloveno: “Como culminar deste processo temos o paradoxo de uma colonização na qual já só existam colónias sem países colonizadores: o poder colonizador já não advém do Estado-Nação, mas directamente das empresas globais. Num futuro não muito longínquo não só acabaremos por usar a roupa de uma qualquer República das Bananas como viveremos, também, em repúblicas das bananas.”3 Ultrapassada que se encontra, então, a dualidade inerente à estrutura colonizadora aparece uma outra hipótese teórica de suporte: a insistência no Outro, a suposta alteridade a respeitar, contudo, outra vez, desde um lugar fixo. No já famoso ensaio O artista como etnógrafo, incluído no livro The return of the real, Hal Foster interrogava-se, já, sobre a permanência, no discurso artístico da alteridade, de alguns modelos primários de antropologia medida, logicamente, a partir de Greenwich. E acrescentava o historiador norte-americano: “Aparece então o problema
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3 Žizek, Slavoj e Jameson, Fredric. Estudios Culturales. Reflexiones sobre el multiculturalismo. Buenos Aires: Paidós, 1998.
Thomas Hirschhorn. Foucault Map, Thomas Hirschhorn com Marcus Steinweg, 2003 (Cortesia Stephen Friedman Gallery, Londres). 4 Foster, Hal. The Return of the Real. Massachusetts: October Books, 1996.
político deste exterior-outro. Hoje em dia, na nossa economia global a suposição de uma exterioridade pura é quase impossível.”4 Assim, o multiculturalismo apresenta-se como a forma ideal de ideologia para este capitalismo globalizado e, ainda por cima, imbuído de “bons valores”. Se as colónias deixaram de existir, deixou, também, de haver responsabilidades por parte dos colonizadores. Agora tudo passa pela figura da chamada ajuda humanitária. Em todos os níveis. O “respeito” pelos povos que se encontram para lá de fronteira totalizadora é generalizado e, sobretudo, cínico. Žižek, de novo: “O multiculturalismo é um racismo que esvazia a sua posição de todo e qualquer conteúdo positivo (o multiculturalismo não é directamente racista, não opõe ao Outro os valores particulares da sua própria cultura), mas mantém igualmente esta posição como um privilegiado ponto vazio de universalidade, de onde pode apreciar adequadamente as outras culturas particulares: o respeito multicultural pela especifi-
5 Žizek e Jameson, op.cit.
cidade do Outro é precisamente a forma de reafirmar a sua própria superioridade.”5 É neste ambiente de contínua exploração dos “resíduos exteriores” que se enquadra, também, a expansão planetária, cuidadosamente apelidada de nomádica, das práticas expositivas da arte contemporânea, nomeadamente, da profusão mundial de bienais. A lógica da existência das bienais, um pouco por todo lado, é justificada, uma vez mais, com a noção multicultural e politicamente correcta de encontro com o Outro. Mas será realmente assim? A dúvida que paira no ar tem a ver com o grau de verdade que tais pressupostos contêm. Como componente essencial das discussões teóricas desenvolvidas essencialmente a partir a última década do século XX, a noção de identi-
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dade e, naturalmente, a de diferença têm sido escalpelizadas até ao limite, com toda a parafernália teórica que tal aproximação implica, desde os chamados cultural studies aos mais recentes visual studies passando pelos mais variados e exóticos processos de implicação da diferença. Transformaram-se em temas essenciais para artistas e curators e, como tal, em mercadoria artística import/export. O mundo da arte possui, obviamente, as suas regras para tal intuito. Como afirma Hal Foster, na nova ordem económica mundial a diferença é, também, um objecto de consumo como muito bem sabem as mega-corporações. Gerou-se então, no âmbito da arte, uma situação similar à descrita por Bauman: a existência, em excesso, de curators e artistas determina a sua contínua demanda em exposições e bienais um pouco por todo lado, até o modelo falhar, ou por desgaste ou por uma lógica auto-imunitária, isto é por auto-destruição. Às mega-corporações da economia colocam-se, em paralelo, as mega-produções da arte e os seus mega-intervenientes, tanto artistas como curators. Vejamos, por um lado temos as exposições que privilegiam as representações nacionais e que tendem a uma expansibilidade quantitativa cada vez mais visível. O caso da última Bienal de Veneza é sintomático. Aí encontrámos situações de absoluta artificialidade, como o caso, entre outros, da representação do Afeganistão. Neste pavilhão mostrava-se um conjunto de peças que recorriam a tecnologia sofisticada, como vídeo digital e de aspecto formal completamente integrado nas estéticas oficializantes do artworld. Que estranheza aquela. A normalização das linguagens da arte contemporânea já terá chegado àquele território desolado e devastado pela guerra ou, uma vez mais, estamos aqui em plena situação de simulacro? Tudo se esfuma, contudo, quando percebemos que a artista em causa saiu do país em criança e vive, desde há anos, em Los Angeles. De que identidade estamos a falar, de que tipo de representação? A questão central é, sempre, a das estratégias comunicativas do espectáculo global. Sabemos bem que a bienal é, hoje, uma montra muito mais alargada que a mostra de arte. Poderemos falar, inclusive, em veículo comunicativo da estratégia de “normalização” em curso para o chamado caso afegão através da criação de uma espécie de simulacro de identidade. Com tudo o que tal empresa tem de ofensivo se nos encontrarmos atentos à realidade. Encontramos, neste exemplo, mais uma referência, a juntar a tantas outras, da investida multicultural/pós-colonial no artworld. Talvez o caso mais famoso seja o de Chris Offili e do seu Turner Prize. A defesa da noção de híbrido proposta por Bhabha no seu programa teórico recusa as noções binárias originais do pensamento cartesiano. Noções como past/present ou inside/outside são continuamente recusadas e confirmadas como motores de estabilização da estrutura eurocêntrica. A opção aparentemente correcta não é, contudo, pacífica, no sentido que pode conduzir, facilmente, à existência de equívocos quando se coloca no centro da discussão a questão fundamental da identidade. Nesta perspectiva a identidade nunca se encontra completa, antes se encontra em pleno e contínuo processo de negociação. E se no caso da classe académica as coisas correm bem em
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termos da integração híbrida, para os deserdados das classes mais baixas nada se passa da mesma forma. No caso de Ofili, nascido em Inglaterra, a utilização de elementos originários de uma cultura que lhe é externa (o Zimbabwe) coloca algumas questões pertinentes. A primeira é a apropriação apenas formal de elementos retirando-lhes, assim, todo e qualquer sentido identitário. Ao produzir-se uma transfiguração no sentido do fetiche identitário está, antes de mais, a desestabilizar todos os conceitos envolvidos no processo. Refere Niru Ratman no final de uma violenta crítica ao hibridismo multicultural: “Nem Corrin (crítica e autora do texto da exposição de Ofili) nem Ofili se dão conta daquilo que tomam por politicamente correcto — o anti-imperialismo, o multiculturalismo e o anti-racismo — faz tempo que já não o são. Para o artworld, Ofili apresenta-se como o artista negro ideal e a sua forma de abordar o caso de Lawrence (um dos quadros da exposição do Turner Prize refere-se ao caso do assassinato deste negro), a forma ideal de abordar o racismo, já que, diferentemente do «potencialmente sério» Stephen 6 Ratman, Niru. Chris Ofili y los limites del hibridismo. In New Left Review 1. Madrid: Ediciones Akal, 2000.
Lawrence, Ofili só é verdadeiramente negro entre aspas.”6 Estamos, por certo, no mesmo plano perante o pavilhão do Afeganistão (não está em causa a seriedade da obra), já que a envolvência é de tal modo complexa e ambígua que, potencialmente, todas as “boas intenções” se vêm coarctadas. Um outro caso paradigmático e que experienciei (como interveniente activo não posso, obviamente, colocar-me em situação de exterioridade) prende-se com outra bienal (mais uma), desta feita na América Latina: a Bienal Ibero-Americana de Arte Contemporânea. Aqui estamos, também, no interior do modelo de representações nacionais. Um olhar mais atento revela, contudo, que uma grande maioria dos participantes se encontra há muitos anos fora dos seus países de origem. O problema que perpassa aqui é o da artificialidade da representação. Outra vez a ideia simulacral a impor-se à noção original de confronto verdadeiro entre identidades. Se a questão essencial é a da impossibilidade de tal intuito, então para que manter o modelo? Num texto pequeno mas decisivo Mario Perniola interroga-se sobre a validez da opção nómada (multicultural?) como oposição válida à opção étnica. Conclui que a primeira se encontra em posição inseparável da segunda por ser, simplesmente, o seu inverso. A manutenção de uma identidade pura e não contaminada é para o nómada uma necessidade muito mais essencial que para o sedentário. Acima de tudo, para poder determinar a sua reivindicação de uma essência perdida e procurada, qual terra prometida. Daí o interesse crescente neste tipo de representações. Constituem-se como potenciadoras de uma dupla condição determinante para o êxito do evento expositivo: por um lado, estão perfeitamente integrados no artworld (oriundos de países do
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chamado Terceiro Mundo, vivem e trabalham quase sempre na Europa ou nos Estados Unidos); por outro, representam a matriz Outra que se encontra em causa. Ou seja, permitem a existência de um discurso legitimador para uma realidade identitária a que são na maioria dos casos estranhos, mas que é fomentada como tema até à exaustão. Refere Perniola: “Os problemas da estética são, nos nossos dias, essencialmente questões de transito entre as produções, os géneros, as culturas diferentes. Estas passagens podem ser pensadas de forma hierárquica atribuindo um valor superior a uma produção única, a um género único, a uma cultura única. Ou então podem ser pensadas também de forma reducionista, colocando no mesmo nível todas as produções, todos os géneros, todas as culturas. Estas são soluções falsas. A biologia molecular, justamente por ser uma disciplina de transito entre a química e a biologia, conduznos a um horizonte teórico que não é nem hierárquico nem reducionista: a selecção nasce da replicação e da mutação. Pensar a arte como mutante neutro é voltar a considerá-la sem identidade definitiva: como uma actividade que através das modificações, das movimentações, das localizações mesmo que mínimas, produz um sentido, 7 http://www.synesthesie.com/mobilites/popup/perniola.html
uma qualidade, uma selecção.”7 Mas nem só de bienais constituídas por representações nacionais se compõe este universo. As outras, as comissariadas por um ou vários curators, integram-se na mesma lógica expansiva, contudo, com enunciados diferentes. O Outro apresenta-se como hospitaleiro para a penetração high culture de um grupo mais ou menos fixo de artistas nómadas que percorrem as várias partes do mundo como se de escalas numa viagem interminável se tratasse. Um artigo publicado na revista Wired e intitulado “Around the world in 80 Biennials” é bem sintomático do que vimos afirmando. Oitenta bienais, parece ser o número mágico a que chegou a artworld para expandir o seu modus vivendi a toda a escala planetária: desde Istambul, a Pequim, uma variedade de pacotes de viagens é possível tendo como passagens locais tão distantes como Luanda ou Whitney (New York), Santa Fé ou Berlim, Havana ou Sidney, Busan ou Pontevedra, São Paulo ou Lyon, Fukuoka ou Gwangju... Um caso paradigmático, a Bienal de Singapura anuncia no seu site este magnifico statement: “it will coincide with ‘Singapore 2006: Global City. World of Opportunities’... the annual meetings of the Boards of Governors of the International Monetary Fund and World Bank Group”. Parece pois sobrar razão a Santiago Sierra quando refere que em arte, como no resto, tudo pode ser reduzido ao valor-troca. Não por acaso, nas suas obras, o artista espanhol utiliza sempre performers pagos para representarem tarefas inúteis. A obra de Sierra conduz-nos frontalmente à situação contemporânea do capitalismo e ao, já referido, problema imenso da falta de solução para o excesso de resíduos humanos. Se somos confrontados com uma situação de asfixia, existem proposições teóricas que pretendem lidar com esta realidade. Talvez a mais badalada, o que não quer dizer a
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mais interessante (pelo menos aos meus olhos), prende-se com a já famosa estética relacional elaborada por Nicolas Bourriaud. O curator francês, até há pouco tempo 8 Recentemente soube-se que Jerôme Sans é agora curator de uma “espécie” de exposição permanente em alguns dos hotéis do “club med”.
director do Palais de Tokyo em Paris, juntamente com Jerôme Sans8 comissariou uma série de exposições em que pôs em prática a sua proposta. Coincidentemente, ou talvez não, o grupo de artistas com que trabalha mais regularmente, assim como ele próprio, são figuras destacadas do star system internacional que vimos analisando aqui no caso particular da proliferação das bienais. A estética relacional, tal como Bourriaud a propõe, pretende instaurar na arte um relacionamento interactivo que possibilite o diálogo e a democratização da fruição artística. Para tal, as obras apresentam-se como abertas, isto é, não concluídas sem a participação do público. Os artistas de que falamos são, entre outros, Rirkrit Tiravanijia, Liam Gillik, Pierre Huyghe, Carsten Holler, etc. Contudo, para lá da retórica política que potencia a transformação do centro de arte em laboratório, isto é, em território de experiências, pouco ou nada fica. Mesmo essa rotulação se foi transformando em produto comerciável, de entretenimento e ócio; se não vejamos: ao laboratório, substitui-se o construction site ou o art factory, num paralelismo perfeito com as regras económicas da diversificação. A não ser um conjunto de iniciativas “bem comportadas” por se encontrarem em consenso com as práticas da cultura, acima de tudo, pela reivindicação mútua da noção de diferença. Ou seja, um pouco por todo lado, a lógica “cultural” do capitalismo tardio, aquela que operou a fusão absoluta dos procedimentos artísticos com todos os outros desenvolvimentos efusivos da chamada indústria da cultura festeja a sua magnitude e perserverança numa, mais que conhecida, estratégia de designificação do mundo, como lhe chama Hal Foster, envolvida em sonantes e politicamente correctos enunciados teóricos de defesa da diferença. Não esqueçamos que é o próprio Bourriaud quem defende a ideia de uso por oposição à pretensamente ultrapassada idéia de contemplação. Tomemos, como exemplo, a Bienal de Lyon do ano passado e a declaração de Bourriaud seu curator principal: “Esta bienal de 2005 ambiciona dialogar com o espírito experimental da «contracultura dos 70»”, e continua “O nosso interesse é (...) na experiência hippie como tentativa contracultural, como laboratório de novas formas de viver. Efectivamente esta época de contestação e amplo questionamento do status quo parece conter, de uma forma ainda virulenta, todas as problemáticas deste início de século: feminismo, multiculturalismo, o combate das minorias sexuais, espiritualidade new age, experiência relacional e identitária, ecologia, orientalismo, descolonização, psicodelismo... Mas, acima de tudo, constituem um modelo para a rejeição da sociedade de consumo.” Se pudéssemos, num qualquer exercício de magia, retirar todo o dispositivo comercial, inclusive para o próprio Bourriaud, a uma bienal desta dimensão o que ficaria? Contra-cultura nas obras dos artistas? Problemáticas das realidades do mundo? Estas encontram-se fora do seu domínio, antes de mais, porque não existem como tal no
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mundo consensualizado e burguês da estética relacional, e a contracultura, como todos o sabemos hoje, é apenas uma das faces dessa mesma cultura... O diagnóstico de impossibilidade obstrutiva em que se encontra o mundo, avançado por Bauman, faz aqui também sentido. A sucessão de exposições que, mal encontram o seu apogeu, imediatamente entram em queda abrupta, corporiza a natureza mercantil e capitalista deste artworld globalizado em procura constante e desenfreada de novas possibilidades expansivas. Notemos que o tempo passa e somente as bienais, digamos, inaugurais: Veneza, São Paulo, assim como mais uma ou duas, ficam; todas as outras vão lutando pela sua manutenção. Até entrar em crise e agonia. E nem a manutenção do status quo proposto, entre outros, pelos adeptos da estética relacional que, obviamente, se multiplica velozmente dadas as suas qualidades de adaptabilidade, isto é, poder ser, simultaneamente, adepto da diferença e utilizar essa mesma noção como veículo comercial, consegue inverter a situação, antes de mais, porque esta é uma das regras de ouro da economia de mercado. Contudo, voltemos à noção de resíduo, essa formação exterior que pode corporizar a contaminação e a emancipação. Será aí que devemos concentrar todas as energias no desenvolvimento de bolsas de resistência que se afirmem consequentes e nunca como simulacros folclóricos de uma realidade que mimetizam.
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Santiago Sierra. 586 Horas de Trabajo. Abril 2004, 2004, fotografía (preto-branco), 151 x 227cm (Cortesía Galería Helga de Alvear, Madrid).
O ensaio de Claire Bishop Antagonism and relational Aesthetics, publicado na revista October no final de 2004, apresenta-se como um importante contributo para o que vimos afirmando. Aí a autora opõe duas posições, à partida, teoricamente antagónicas; por um lado, a já referida estratégia da estética relacional; pelo outro, a noção política de antagonismo, ancorando a esta última o trabalho de dois artistas que analisa: Thomas Hirschhorn e Santiago Sierra. Antes, porém, de passarmos em revista os argumentos da crítica britânica devemos entender o significado da noção de antagonismo desenvolvida originalmente por Ernesto Laclau e Chantall Moufe. A possibilidade política de sobrevivência da democracia é, para estes autores, unicamente assegurada pela ideia de antagonismo social. Este encontra-se no âmago das incompletudes e descentramentos vários que existem no sujeito e no social e que procuram, desta forma, a sua necessidade de construção identitária. A indecibilidade de tais pressupostos confirma o conflito como base do pensamento democrático sendo, então, lícito aplicar aqui a noção derridiana de possibilidade da impossibilidade. Esta impossibilidade é o garante do impedimento do fechamento a que o consenso naturalmente conduz e que se apresenta, também, como apologia da dissensão, ou seja, do antagonismo. Deve, no entanto referir-se que, como em todas as teorias políticas também esta não está livre de críticas. O que é, desde logo, bem-vindo pelos seus principais impulsionadores e que nos dá uma indicação do seu carácter evolutivo e aberto. A recusa de uma condição redentora é também outro dado interessante a salientar. Temos assim como principal desenvolvimento teórico, a insistência na ideia de fractura social como garante de um aprofundamento de interacções entre as várias particularidades em jogo com vista à universalização de uma delas e, consequentemente, à hegemonia sendo esta a potenciadora de existência de poder. A questão das particularidades é importante pois está na base da diferença existente com outra teoria política em voga e que defende exactamente a proliferação dos particularismos como meio de atingir objectivos políticos. Esta é a proposta de Toni Negri nos seus volumes Império e Multitude. A grande crítica que lhes é dirigida pelos teóricos do antagonismo é a inconsequência de tal tarefa, que se escusa a universalizar tais particularidades e a mantê-las num mosaico de fragmentos impossível de conduzir a uma ideia de hegemonia. A corporização democrática, vista desde uma premissa radical, só poderá ser alcançada na essência da sua componente agonística, abrindo todas as possibilidades em aberto para a obtenção de um objectivo explícito: a ultrapassagem da vertigem liberal em torno do apagamento do político e da supremacia económica. E apesar da justeza de tais propostas, elas mostram também as suas fragilidades que advêm, sobretudo, da sua incapacidade de lidar com a externalização da fractura agonística e, especialmente, com o resultado final de tal combate. Num diálogo em torno destas ideias
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políticas Slavoj Žižek argumenta que o antagonismo proposto por Laclau se transformaria, depois da revolução vitoriosa, numa sociedade não antagónica e transparente, o que se apresenta sob a forma de paradoxo. Que o próprio Laclau aceita ao fazer notar que o antagonismo tem como consequência o poder e que estas duas entidades se produzem de forma dialéctica, portanto, sem a exigência de anulamento mútuo. Como vemos, o interesse de tais teorias no âmbito da prática artística prende-se com o seu carácter dissidente. Com a sua vontade de tornar visíveis todas as fracturas – distante das micro-utopias dialogantes apresentadas por Bourriaud – como na análise que Claire Bishop faz dos trabalhos de Sierra e Hirschhorn. As práticas artísticas possuem características identitárias suficientemente fortes para permitir a sua distanciação e autonomia relativamente à actividade política. É o próprio Thomas Hirschhorn que afirma: “A minha escolha foi recusar o rótulo de arte política; faço arte de forma politizada.”9 O seu trabalho encontra-se repleto de intencionalidade política, contudo, apesar disso, autonomiza-se de uma iconocidade
9 Thomas Hirschhorn. Striving to be stupid: a conversation with Thomas Hirschhorn, in Art Press n. 239, Paris.
comunicativa que lhe permite ultrapassar, desta forma, a simples demonstração sociológica, que tantas vezes, surge como atributo de alguma arte que responde pelo rótulo de arte política. O envolvimento no que poderemos designar como uma autonomia estratégica, “um mundo fechado e, contudo, aberto ao mundo”10 permite a consolidação da competência da obra de arte poder conviver com a complexidade estrutural que a rodeia, acima
10 Hal Foster. Design and Crime (and other diatribes), Londres: Verso Books, 2002.
de tudo, por instituir-se como um lugar reflexivo. Ao agir no seio desta configuração conceptual está a concentrar toda a sua potencialidade antagonista no seu fazer exclusivo. Como refere Jacques Rancière existe uma estética para a política e, por sua vez, uma política para a estética.11 Esta é uma constatação que parece ser de fundamental importância para o entendimento das actuais possibilidades da arte como veículo de antagonismo. A estetização do político com que hoje nos defrontamos permite a globalização imagética em seu torno, isto é, um fluxo contínuo de produção de imagens que se colocam, a si próprias, na condição de fornecedoras de conteúdos light para uma sociedade que de tal depende. A arte parece, deste modo, ser compul-
11 No seu livro The politics of aesthetics. Londres: (Continuum, 2004) Jacques Ranciére argumenta sobre a noção de arte comprometida e de sua condição in-between entre arte e política. Refere o autor: “O compromisso político não é uma categoria da arte. Isto não significa que a arte é apolítica. Significa que a estética tem uma política própria, ou a sua própria meta-política.”
sivamente envolvida neste ambiente tendo, apesar de tudo e devido à sua pequenez territorial, um papel ainda diminuto no âmbito da espectacularidade cultural. Refere o crítico de arte britânico Julian Stallabrass: “Actualmente a arte contemporânea é uma estrela menor no firmamento da cultura de massas.”12 Esta reduzida estrutura dimensional do território artístico pode apresentar-se como uma hipótese realmente potenciadora do seu descomprometimento com a estética do consenso existente na contemporaneidade. Ao assumir uma condição reflexiva como enunciado constitutivo está, desde logo, a distanciar-se de uma lógica perceptiva, codificada em termos de
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12 Julian Stallabrass. O destino da Young British Art, in Da obra ao texto. Lisboa:CCB, 2002.
velocidade e consumo imediato, tão necessária à totalização do sensível. O que, como vimos, é possível e passível de ser efectivado devido à pouca importância do território em questão. O paradoxo fundacional funciona, também aqui, como uma derridiana possibilidade da impossibilidade. A questão central do antagonismo expande-se, assim, à produção artística que exorta ao risco. Aquelas práticas que, por se posicionarem em posturas de dissensão, invo13 A palavra desanestesia é formada pela junção do prefixo des à palavra anestesia. Esta significa originalmente a negação da beleza aísthesis, mais recentemente viu-se vulgarizada como anulação da dor. A noção de desanestesia tenta corporizar no seu jogo de significações uma aproximação aos dois conceitos anteriores. A colocação do prefixo des contraria, contudo, a direcção significativa a que se propõe, isto é, revela a apologia da crueza, e não o contrário. Uma tentativa de aproximação ao real.
cam a condição experimental da desanestesia.13 O desvendar das fracturas sem qualquer condicionante de atenuação – não nos referimos, obviamente, à chamada arte abjecta – impõe uma relação frontal com a contemporaneidade e, aí, a arte encontra a sua aptidão negativa e crítica. Uma prática que incorpora a competência específica do fazer artístico e que, a partir dele, desenvolve formas de intervenção, ao mesmo tempo, intrínsecas e extrínsecas. Um fazer que, por ambicionar uma aproximação ao real14 agrega no seu saber uma lógica desejante que a afasta da normalização e standartização pragmática da expansividade liberal. Refere Jacques Rancière: “Uma
14 Aqui na significação lacaniana do termo, isto é, na sua impossibilidade simbólica.
arte que se apresente como política deve conter, simultaneamente, a produção de um
15 A palavra não tem tradução para português (continental). À falta de melhor poderá significar estranheza.
ceptivo causado, contrariamente, pelo uncanny,15 pelo que resiste à significação”.16
duplo efeito: a legibilidade de uma significação política e um choque sensível ou per-
16 Rancière, op.cit.
Fernando José Pereira nasceu na cidade do Porto em 1961 onde vive e trabalha. É artista plástico e professor na Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto. Doutorado em Belas Artes na Universidade de Vigo (Espanha). Expõe regularmente em museus e galerias no país e no exterior. Participa de conferências e congressos e tem publicados textos em revistas e livros nacionais e estrangeiros.
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Multiplicidade na poética de Vito Acconci: paisagem e performance e arquitetura
Fabiola do Valle Zonno
Artista de perfil múltiplo, Vito Acconci atua em performances, poesia, instalações, vídeo, arte urbana e, recentemente, arquitetura, e se vê como agente capaz de atuar no espaço público como atua no espaço da galeria, questionando os limites entre público e privado – e assim ampliando a noção de performance para a esfera da cidade ou da paisagem e seus agentes. O artigo analisa algumas de suas obras de performance e instalações, evidenciando a presença de sua poética como abertura ao outro e ao sentido de público, também presentes em seus projetos no espaço da cidade. Podendo ser relacionados tanto à ironia Pop quanto a uma abertura aos processos da realidade social mais ampla, seus projetos problematizam diretamente o campo da arquitetura pelo questionamento de ações estritamente funcionalistas, engessadas a tipologias, institucionalizadas ou restritivas de uma ação livre, que o artista reivindica tanto para a arte como para quem a vivencia. Vito Acconci, performance, arquitetura.
A noção de um campo ampliado após a década de 1960 surge no debate da arte em 1979, quando da publicação do célebre artigo da historiadora Rosalind Krauss A escultura no campo ampliado, que retoma a questão da autonomia dos meios artísticos e sinaliza que o termo “escultura” vinha sendo aplicado de modo muito abrangente e “maleável” na tentativa de rotular obras que não mais poderiam 1 No livro Warped Space, o historiador da arquitetura Anthony Vidler sustenta que se por um lado muitos artistas se apropriaram das questões da arquitetura, buscando criticar os termos tradicionais da escultura, os arquitetos buscaram o experimentalismo dos processos artísticos a fim de escapar dos códigos rígidos do funcionalismo moderno e dos modelos tipológicos. Essa interseção teria gerado, segundo o autor, um tipo de “arte intermediária” – cujos objetos, embora se situassem dentro de determinados meios ou linguagens, requereriam termos interpretativos dos demais meios a ela relacionados. Vidler, Anthony. Warped Space: art, architecture and anxiety in modern culture. 2ed. Cambridge, Mass/Londres: The MIT Press, 2001, p. viii (T.A.).
ser, claramente, assim definidas, mas só a partir de seus limites com a paisagem e com a arquitetura. Obras que estabelecem relação intrínseca com o espaço real, colocando para a escultura problemas com os quais se defronta a arquitetura: o construído e o não construído, o cultural e o natural. Uma abordagem que, como hipótese para nós, poderia conduzir a uma reflexão crítica sobre a própria arquitetura.1 Assim, para Krauss, O campo ampliado é, portanto, gerado pela problematização do conjunto de oposições entre as quais está suspensa a categoria modernista escultura. Quando isto acontece e quando conseguimos nos situar dentro dessa expansão, surgem logicamente, três outras categorias facilmente previstas, todas elas uma condição do campo propria-
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mente dito e nenhuma delas assimilável pela escultura. Pois, como vemos, escultura não é mais apenas um único termo na periferia de um campo que inclui outras possibilidades estruturadas de formas diferentes.2 A noção de rizoma formulada pelo filósofo Gilles Deleuze, como um mapa3 com múltiplas entradas, talvez possa ser aproximada da noção de campo ampliado de Krauss, para se abordar não só a questão da escultura, mas da arte contemporânea em geral, quando pelo experimentalismo se tornam mais flexíveis os limites entre as disciplinas: pintura, escultura, arquitetura, teatro, fotografia, vídeo etc. Um rizoma não começa nem conclui, ele se encontra sempre no meio, entre as coisas, inter-se, intermezzo. A árvore é filiação, mas o rizoma é aliança, unicamente aliança. A árvore impõe o verbo “ser”, mas o rizoma tem como tecido a conjunção “e...e...e”(...) mover-se entre as coisas, instaurar a lógica do E, reverter a ontologia, destituir
2 Krauss, Rosalind. A escultura no campo ampliado (1979) (tradução de Elizabeth Carbone Baez). Gávea: Revista semestral do Curso de Especialização em História da Arte e Arquitetura no Brasil. Rio de Janeiro: PUC-RJ, n. 1, 1984, p. 91. 3 “O mapa é aberto, é conectável em todas as suas dimensões, desmontável, reversível, suscetível de receber modificações constantemente. Ele pode ser rasgado, revertido, adaptar-se a montagens de qualquer natureza, ser preparado por um indivíduo, um grupo, uma formação social (...) Um mapa tem múltiplas entradas contrariamente ao decalque que volta sempre ao mesmo. Um mapa é uma questão de performance, enquanto que o decalque remete sempre a uma presumida ‘competência’”. Deleuze, Gilles e Guattari, Félix. Introdução: Rizoma. In _______. Mil Platôs. V.1. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1995, p. 22.
o fundamento, anular fim e começo (...) o meio não é uma média; ao contrário, é o lugar onde as coisas adquirem velocidade.4 É partindo da compreensão da arte nesse rico campo de entrecruzamentos que buscamos interpretar o trabalho do artista Vito Acconci – cujo perfil não pode ser definido como característico de uma única prática disciplinar. Acconci atua em multiplicidade: performance, poesia, “escultura”, instalações, vídeo e, mais recentemente, arquitetura – tal como um propositor de situações, de experiências, que também imagina como múltiplas. Destacaremos alguns de seus projetos dentro e fora da galeria, em espaços institucionais e públicos, em profundo diálogo com a arquitetura; daí se enfatizar um sentido específico de multiplicidade em seu trabalho. Uma cidade que é evidenciada como multiplicidade de imagens, significados, apropriações e histórias (também ficções). Essa referência é clara em City of Text, um trabalho gráfico de Acconci em que a cidade aparece completamente revestida de páginas escritas em que se podem identificar palavras como “public”, “landscape”, “information”, “body”. Assim, para o artista, edifícios são como textos, e o ato de escrever – também na arquitetura e na paisagem – é colocar algo em movimento, como em um ato performático. Em última análise, a dimensão artística da paisagem contemporânea, no trabalho de Acconci, se realiza como um jogo que se funda na própria dinâmica da realidade, onde o artista atua como partícipe. Em palavras suas: Penso na arte como algo instrumental (...) Quando digo ‘fazer arte’ não me refiro a uma arte em si, mas a uma arte como esse tipo de instrumento no mundo.
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4 Id., ibid., p. 37.
O artista se torna um tipo de guerrilheiro: a galeria é tratada como um terreno a explorar (a galeria é um signo, um modelo da cultura onde está) – Eu programo uma peça de acordo com o terreno (...). Uma vez que a galeria e o espaço do museu são lugares onde pessoas estão juntas, o espaço pode ser utilizado como um lugar de encontro (...) A galeria é utilizada como praça (...) A questão óbvia é: por que 5 Acconci, Vito. Some notes on peopled space (1977). In Luces, cámara, acción (...) Corten! (cat.) IVAM, Centre Julio Gonzalez, Valência. [s.d.]
não fazer o mesmo em uma praça pública real?5 Partiremos dessa questão de Acconci, explorando alguns de seus trabalhos em galeria, além de suas performances, em busca de pontos de contato com a prática arquitetônica. Um dos focos principais é o lugar do artista/arquiteto no processo de concepção e recepção do trabalho. Abordando a reversibilidade entre público e privado, destacamos a atividade/instalação Room Piece, realizada por Acconci, em janeiro de 1970, durante três semanas na Galeria Gain Ground. Semanalmente, o próprio artista expunha em uma sala da galeria os móveis e objetos de um cômodo de sua casa (cozinha, sala de estar, quarto, banheiro e escritório). Sempre que precisava de algo que estivesse na galeria, Acconci se deslocava de um ponto a outro de “seus apartamentos”, distanciados 80 quarteirões, tomava o objeto por empréstimo pelo tempo de uso e o devolvia. Na última semana de “exposição”, algumas das caixas são marcadas com um “x” para informar que poderiam ser levadas por quem quer que as desejasse. Assim, o espaço privado do artista torna-se público, e se questiona a relação de determinação entre as definições espaciais e seu uso específico (casa e museu – lugares do artista). A mesma questão é problematizada na performance que se desenrola em tempo real realizada por Gordon Matta-Clark, registrada no filme Clockshower (1973, 14min): o artista se pendura no relógio do arranha-céu Clocktower, em Nova York, faz a barba e toma banho, tudo isso no alto da agitada Broadway Avenue. Onde o lugar da arte? Aqui, a própria paisagem, a cidade e seus ícones. Acconci também parte para as performances no espaço urbano, mas incorporando à noção de paisagem a presença de outros agentes humanos. Realizada das cinco às seis da tarde do dia 18 de abril de 1969, na esquina das ruas 14, 15 e 16, em Nova York, o artista traduz sua idéia como “performing myself through another agent”, ou seja, atuar, em peopled spaces, por intermédio de outro agente: Uma situação usando ruas, andando, correndo (...) Eu fico de pé na esquina – escolho uma pessoa andando daquela esquina para a próxima – corro até a esquina e a aguardo chegar. Rua: stratus, sternere, para expandir (a esquina como um sumário da rua, uma rua que se expande se torna um ponto) – Eu estou correndo
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à frente de outra pessoa, nós estamos separados (estaremos juntos, em um ponto, na esquina).6
6 Acconci, Vito. Peopled Space – performing myself through another agent. Avalanche Magazine, n.6, inverno 1972, p. 30.
Acconci destaca a referência espacial como fator relacional entre os agentes do espaço. Mais ainda, o artista expõe a situação de um eu que se referencia a partir de um outro; crê em uma postura artística em que o outro é co-partícipe de suas próprias ações, evidenciando-o como fator determinante para que se estabeleça uma relação. Razões para se mover: Mover-se até outra pessoa – mover-se contra outra pessoa – moverse sobre outra pessoa – mover-se dentro de outra pessoa – mover-se cruzando outra pessoa – mover-se por intermédio de outra pessoa – mover-se ao redor de outra pessoa – mover-se passando por outra pessoa. (...) Razões para se mover: Mover-se de acordo com os movimentos de outro agente – mover-se na direção de outro agente.7
7 Id., ibid.
Em seus trabalhos, Acconci explora o caráter dinâmico e contraditório do espaço público, que entende não como um tipo de espaço teatral em que ação e público se separam; ao contrário, apropria-se do urbano como o faz com o espaço da galeria onde realiza suas performances. Uma arte que se dá não em um espaço, mas através do espaço: “background: where the pieces were live”8 – fundo de cena ou, melhor, campo: onde
8 Acconci, Some notes… Op. cit.
peças e personagens estão vivas. O espaço é aberto à apropriação do público em sua performance cotidiana. Assim vemos na instalação-carro Peoplemobile9 (1979): uma caminhonete com altofalantes e uma estrutura de painéis montáveis que configuram diversas “arquiteturas”.
9 Vito Acconci. Peoplemobile, 1979. Holanda. Caminhonete, painéis de aço, vinil, áudio. 24 painéis; dimensão de cada painel: 2”x 5’x 7’.
Acconci ganha as ruas de cidades holandesas, entre elas Amsterdam, e pára em determinado lugar, por um período de três dias, para oferecer aos cidadãos um “endereço público”. É o espaço público que se propõe como privado ou, melhor, como um entre público e privado [Fig. 1]. A disposição em arquibancada permite, ao mesmo tempo, assistir-se ao “espetáculo” da performance urbana e dele participar. Corroborando a sensibilidade de Acconci, Matta-Clark defende atitude alternativa de construir, para além da ‘containerização’ de um espaço a ser utilizado. “Pensamos mais em vazios metafóricos, brechas, sobras de espaço, lugares que não foram desenvolvidos... Por exemplo, os lugares onde se pára para amarrar os cadarços do sapato, lugares que são apenas interrupções em nosso movimento diário”.10 Assumindo a performance e o caráter teatral dos espaços urbanos, Acconci ainda investiga seu limite com a ficção. “Vindo de qualquer lugar, vindo de lugar algum [People-
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10 Gordon Matta-Clark, apud Schulz-Dornburg, Julia. Arte y Arquitectura – nuevas afinidades. Barcelona: Gustavo Gili, 2000, p. 15. Assim como Acconci, Matta-Clark se preocupa em chamar atenção para os espaços cotidianos normalmente negligenciados e para o modo como são apropriados pelo público. Na intervenção Open House, 1972, o artista constrói três corredores com diversas portas transformando o interior de um container industrial, que foi colocado na rua Greene para que os passantes a experimentassem.
mobile], pode fazer um convite aos outros, àqueles que não têm lugar, os que podem 11 “Keep telling yourself: it’s only a dream ... it’s only a novel ... it’s only a movie ... it’s only a video game ... Keep telling yourself: it can happen here, this is a public space”. Vito Acconci, apud Vito Hannibal Acconci Studio. Barcelona: Museu d’Art Contemporani de Barcelona, 2004, p. 10.
querer esconder-se.”11 O áudio produz o som de buzinas e incute um sentido imaginário
12 Acconci, Public Space in a private time. In Vito Hannibal Acconci Studio. 1ed. Barcelona: Museu d’Art Contemporani de Barcelona, 2004, p. 424.
si mesmo: isso pode acontecer aqui, este é um espaço público.”12
ao espaço público, sugerindo um diálogo com terroristas. Para Acconci, trata-se de evocar um sentido irônico, questionando o real, como podemos perceber em sua declaração sobre a natureza do espaço público: “Continue dizendo a si mesmo: isto é só um sonho ... é só um romance ... é só um filme ... é só um videogame. Continue dizendo a
Arte, teatralidade, ações cotidianas, ficção e realidade se misturam em sua poética do espaço. A crítica é instigante: como, dependendo do modo de teatralização, situações urbanas podem engendrar os comportamentos dos agentes. Acconci quer um teatro de ação livre e espontânea, não determinada e coerciva. Em prol de um despertamento da consciência de sua posição e ação no espaço, interpretamos a instalação Middle of the world (1976, Fine Arts Gallery, Ohio). Partindo da apropriação do dispositivo espacial pelos “atores”, Acconci monta uma plataforma quadrada, ligada a quatro escadas de corda, em um vão de mezanino, criando um nível intermediário entre os dois pavimentos da galeria. “Essa posição half-way é ao mesmo tempo estável e instável: os visitantes podem escalá-la a partir dos dois níveis; escalando, balança-se a plataforma; atingindo a plataforma, ele se assenta e a estabiliza”, diz o artista. O áudio, porém, é fator desestabilizador. Quatro alto-falantes, em diferentes posições, emitem o som de perguntas: “O que você sabe? Você sabe o que eles dizem? Você sabe o que eles dizem de você? Você se importa?”. Várias vozes ao mesmo tempo: “Nós sabemos onde nós estamos, nós sabemos onde nós estamos”. Depois de breve
13 Vito Hannibal Acconci Studio, p. 333.
estabilização, uma das vozes fala mais alto: “Corta!”, e as perguntas recomeçam.13 Provocação à participação espacial, também mental. A mesma sensação de participar de uma encenação é explorada na vídeoinstalação Command performance (1974, 50min, Nova York). Acconci usa o espaço da galeria, marcado por três colunas, como referencial espacial para uma “linha de transmissão” de imagens. Na base da primeira coluna, há um monitor de tevê e à sua frente, na segunda coluna, um banco sobre o qual incide um spot de luz – a imagem de quem nele senta é captada por uma câmera de vídeo; na terceira coluna, à entrada da galeria, configurando um espaço de onde se pode apreciar o show (é, aliás, colocado inclusive um tapete), outro monitor mostra a imagem de quem está no banco. Um vídeo com a imagem de Acconci é exibido no primeiro monitor, estabelecendo comunicação com aquele que está sendo
14 Ibid, p. 287-288.
filmado; entre as frases ditas pelo artista, ouvia-se: “você deve ser mais público”.14 Essa abordagem da relação público/privado através da imagem virtual também está presente em um projeto para o ZKM Museu de Arte e Tecnologia de Mídia, Karlsruhe, Alemanha, 1989, do arquiteto Rem Koolhaas. Rompendo os limites entre interior e exterior, uma das fachadas possui fina e transparente superfície metálica, que serve
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como tela de projeção em que poderiam ser expostas imagens do interior do edifício: as atividades nos laboratórios ou na circulação da ala norte, onde as pessoas sobem e descem os vários níveis do museu.15 O próprio museu não seria um espaço público? Há claro questionamento dos limites entre público e privado: a performance de quem está
15 Koolhaas, Rem. Conversa com estudantes. Tradução de Mônica Trindade. Barcelona: Gustavo Gili, 2002, p. 31.
no interior do edifício é vista por aqueles que transitam nas ruas. A atividade cotidiana é exposta em seu caráter de ação, e o espaço público, como também deseja Acconci, como espaço de performance. Além disso, uma fachada que se revela como dinâmica reforça a imagem não fixa do próprio espaço urbano, sugerindo, em última instância, a própria paisagem como espaço de performance, de uma ação que se desenrola e modifica no tempo e em função de seus agentes. E, para Acconci, há espaço na paisagem para a ficção, para o imaginário. Referenciado às novas tecnologias e à proliferação das imagens, muitas vezes explorando um caráter ficcional, o grupo Archigram lança, na década de 1960, uma crítica à noção tradicional de programa arquitetônico ao propor redesenhar a paisagem como um lugar de nomadismo, emancipação social, troca, interação, prazer e diversão. Tal como nas propostas do Archigram, a mistura de ficção e tecnologia está presente no projeto não realizado de Acconci A City that rides the garbage dump, 1999. O trabalho propõe a conversão de um depósito de lixo urbano, de Breda, na Holanda, em uma “cidade de tapetes mágicos”. Alimentada energeticamente a partir do gás metano emitido pelo lixo, a cidade seria um conjunto de tapetes constituídos de semi-esferas, suspensas, deixando livre no nível térreo uma praça pública, na verdade, o depósito de lixo coberto por pedras. Os tapetes, que descem como naves espaciais com o passar do tempo, são de três tipos: tapetes de água, tapetes de verde e tapetes de edifícios. Uma proposta que poderia ser descrita como um entre arquitetura e paisagem. Mais objetivamente, em projetos realizados em parceria com arquitetos ou em “site specifics arquitetônicos”, Acconci procura ligar a experiência da impermanência da paisagem à abertura de fluxos dos atores-agentes de um espaço. Isto em prol de múltiplas possibilidades de apropriação, oferecendo maior liberdade de “ação” e significações espaciais.16 Assim, em Galeria Store-Front (1994, Nova York) [Fig. 2], criada em parceria com o arquiteto Steven Holl, é claro o desejo de questionar os limites do espaço da galeria, uma reivindicação também do lugar da arte na vida, na paisagem. A obra é uma fachada no nível da rua que se desdobra em painéis giratórios criando entre espaços interior e exterior, um convite para que a paisagem da rua fosse incorporada à percepção das obras e que a circulação da rua pudesse converter-se na circulação da galeria, criando uma relação ambígua entre os espaços público e privado. A fachada deixa de proteger o
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16 Na década de 1970, o grupo austríaco Haus-Rucker-Co propôs que a arquitetura cumprisse uma função de apoio e não de protagonista, deixando aos habitantes da cidade, que chamavam de “atores”, a tarefa de definir o uso do objeto construído. Não seria o arquiteto, nem a estrutura do espaço que definiria seu uso. A idéia do grupo claramente expressa uma visão pública da apropriação do espaço, propondo a experimentação também para redefinir os usos da cidade. Essa visão encontra paralelo na visão de Acconci em que a arte surge como um “instrumento” no mundo; questiona-se a importância da definição de uma função para um espaço.
espaço privado da arte, tornando-se permeável. Para o artista, as obras de arte públicas são uma “desculpa para o tempo, tempo para que as pessoas olhem ao redor, tateiem e 17 Acconci, Public Space in a private time, p. 423. (T.A.).
encontrem coisas fora delas mesmas”.17 O fato de os painéis serem “espelhados” reforça esse sentido, evocando a reversibilidade entre um eu e o outro, ambos partícipes vivos de um background. É através da consciência desse caráter teatral que o artista questiona o uso dos espaços públicos (a instituição, a praça, a fachada de um edifício) e sua apropriação pelos que nele não só transitam, mas vivem cotidianamente. Trata-se de projetar e entender os cenários urbanos como palcos de performances que se realizam entre as esferas pública e privada. Cenários cujo apelo é inclusive sensível. Em More Balls for Klapper Hall Plaza (1995, Queens College, EUA) [Fig. 3], a luz é importante elemento atrativo: sete esferas de concreto de tamanhos diferentes e iluminadas de seu interior formam, a partir de recortes de superfície, dispositivos de mobiliário urbano diferenciados para serem utilizados pelos habitantes. O motivo esfera é apropriado de dois elementos preexistentes no entorno edificado. As novas esferas extrapolam a função meramente decorativa para se tornar partícipes da cena urbana, instrumentos das performances cotidianas: ler, comer, namorar etc. O artista/arquiteto intenciona questionar a apropriação dos espaços públicos de praça por seus usuários e, ao mesmo tempo, evidenciar o caráter público da exposição cênica de suas atividades. Indo além, seria um modo de questionar a instalação de equipamentos públicos estritamente funcionais, seriais e sem qualquer diálogo estético com uma situação de paisagem existente. Em Kappler, é possível desvendar e modificar o “jogo das esferas”. Cumpre salientar que, para Acconci, um lugar é público quando: 1) suas formas são públicas, quando são publicamente usáveis, quando se pode nelas sentar, andar, engatinhar, percorrer, viver; 2) seu significado é público, seus significados são publicamente acessíveis, o lugar é constituído de convenções, imagens, sinais, objetos que qualquer um de qualquer cultura possa reconhecer automaticamente, naturalmente; 3) seu efeito é público, seus efeitos são publicamente instrumentais, o lugar forma tanto o público que o utiliza quanto o agente público que o organiza (...) Um espaço é público quando
18 Ibid, p. 421. (T.A.).
mantém a ordem pública ou modifica a ordem pública.18 Assim, lugares públicos podem funcionar tanto como “prisão” – garantindo a ordem – quanto como “fórum” – onde suas convenções, imagens e sinais são invertidos, colidem uns com os outros, são quebrados em partes, de modo que convenções são desestabilizadas e ao mesmo tempo expostas: “o espaço faz-se ocasião para discussão, que se pode
19 Id., ibid.
tornar um argumento, que se pode tornar uma revolução”.19
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É o que se vê ao analisar a intervenção proposta (não realizada) por Acconci para State Court Lawn (1989, Carson City) [Fig. 4]: uma réplica do edifício existente, com metade do tamanho real, enterrada no gramado em frente, cujo telhado seria um pátio de uso público. O “seu” edifício da Suprema Corte funciona como um landscape construído como uma espécie de parque, onde se pode andar e sentar em diferentes níveis da cobertura (algo que se poderia dizer, naquelas circunstâncias, imprevisível). Nas palavras do próprio artista: “O público se concentra em dois tipos de espaço. O primeiro é um espaço que é público, um lugar em que o público se reúne porque tem o direito de estar ali; o segundo é um espaço que se torna público, um lugar em que o público se concentra precisamente porque não tem direito – um lugar que se tornou público à força”.20 Em última instância, é possível identificar uma crítica à própria instituição questionando-a como um espaço público. O arquiteto Robert Venturi identifica na Pop Art um potencial de transformação da relação entre arquitetura e paisagem, que podemos atribuir também ao trabalho de Acconci. Algumas das brilhantes lições da Pop Art, envolvendo contradições de escala e contexto, deveriam ter despertado os arquitetos dos afetados sonhos de ordem pura que, lamentavelmente, são impostos nas fáceis unidades gestaltistas dos projetos de renovação urbana
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20 Id., ibid., p. 419.
da arquitetura moderna institucional, mas que felizmente são, na realidade, impossíveis de realizar em grande escala. E talvez seja na paisagem cotidiana, vulgar e menosprezada, que possamos extrair a ordem complexa e contraditória, que é válida e vital para nossa 21 Venturi, Robert. Complexidade e contradição em arquitetura. 2ed. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 147. 22 Venturi, Robert et al. Aprendendo com Las Vegas – o simbolismo (esquecido) da forma arquitetônica (1977). São Paulo: Cosac-Naif, 2003. Em recente entrevista a Rem Koolhaas, Venturi diferencia Las Vegas de 25 anos atrás, que representava a expansão da iconografia, do signo, da cultura pop, do crescimento urbano, e a Las Vegas atual, que se converteu em Disneylândia, cenográfica e com densa ocupação. Robert Venturi, apud Relearning from Las Vegas (entrevista com Robert Venturi e Denise Scotch Brown). In Content/Amoma/Rem Koolhaas/&&&. Alemanha: Taschen, 2004. p. 150-157.
arquitetura como um todo urbanístico.21 No livro Aprendendo com Las Vegas,22 Venturi ironicamente questiona o status monumental da arquitetura em seu discurso, ora extremamente formalista, ora extremamente enrijecido pelos modelos tipológicos e iconológicos. Foi o que fez Acconci em State Court e o que propõe para City Hall de Las Vegas (1989) [Fig. 5], fixando à frente do edifício uma gigante cruz feita de espelhos, como que descolada da própria fachada em curva, restando somente concreto bruto, do qual se desprendem gotas que caem em espelho d’água. Um eixo monumental é criado como caminho que leva à cruz. O questionamento do caráter público da instituição se dá a partir da ambigüidade instaurada quando a expectativa de acesso ao edifício é frustrada. “O caminho leva à cruz como em direção à entrada do edifício. A entrada é falsa: ela não se abre para o edifício. Em vez disso, ela abre o edifício para o exterior; traz para dentro do edifício as imagens da cidade e das pessoas, refletidas como em uma
23 Acconci, Public Space in a private time, p. 421. (T.A.).
funhouse.”23 Porque faz referência direta à imagem da cruz, a prefeitura pode ser lida como espaço sagrado, que reflete ainda os letreiros dos cassinos do entorno, criando diferentes níveis de significação. Reforçando esse perfil crítico de Acconci, o historiador Anthony Vidler aponta o papel paradigmático de seu trabalho que, a partir da década de 1980, teria desafiado o lugar comum da arquitetura: “Na grande escala da instituição pública, Acconci segue o caminho subversivo, delineado primeiro por Bataille, que entende a monumentalidade arquitetônica como uma cristalização do crescimento do poder e cultura, quase como
24 Vidler, Warped Space… Op. cit. (T.A.).
um fenômeno geológico.”24 Assim, a apropriação do espaço pelo público sugere que os usuários reconheçam como livres o espaço e as possibilidades de agir e pensar, questionando a ordem do real; mais ainda, sugere que leiam e decodifiquem a arquitetura como uma “desordem poética”, como define Lílian Pfaff: Os trabalhos arquitetônicos de Acconci são situações modelo que se poderia descrever metaforicamente como playgrounds, uma vez que são sujeitos a certas regras que permitem que alguém atue como um ator em um palco. É o teatral da Minimal Art que Acconci toma para si e anuncia, seguindo o ‘nascimento do espectador’ de Deitcher, o nascimento do usuário em arquitetura. A oposição entre trabalho e espectador não mais é mantida intacta, ao contrário (...) é compre-
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endida como parte de um continuum espaço-temporal. O que também implica a dissolução das fronteiras entre público e privado.25 A operação do artista sugere uma espécie de jogo, em que a arquitetura surge como
25 Pfaff, Lílian. The Building is a Text. Vito Acconci. In Vito Hannibal Acconci Studio. Barcelona: Museu d’Art Contemporani de Barcelona, 2004, p. 402. (T.A.).
um dos partícipes, instigando seus usuários. O sentido de perform ou play pode ser compreendido amplamente, tanto em seu caráter teatral como lúdico ou irônico, o que o aproximaria mais uma vez do caráter Pop. Podemos buscar mais fios interpretativos do trabalho de Acconci via Pop Art, partindo de sua importância em um processo de crítica do valor da obra de arte e de sua participação no campo da cultura, identificando como comum desejo de “completar uma lacuna entre arte e vida”. Segundo Arthur Danto, A Pop se recusou a permitir a distinção entre requintado e comercial, ou entre artes eruditas e artes populares. Minimalistas fizeram arte de materiais industriais – madeira compensada, lâmina de vidro, pedaços de casas pré-fabricadas, isopor, fórmica. Realistas como George Segal e Claes Oldenburg se emocionaram ao constatar quão extraordinário é o comum: nada feito por um artista poderia conter significados mais profundos que aqueles evocados por roupas do diaa-dia, fast food, partes de carros, placas de trânsito. Cada um destes esforços estava direcionado a trazer a arte para o mundo terreno, transfigurando, por consciência artística, o que todos já sabem.26 A inusitada House of Cars (1983, São Francisco, CA) [Fig. 6] manifesta o modo como Acconci questiona a relação uso-espaço-forma através de uma referência pop ao carro, objeto-mor de consumo da cidade da modernidade, espaço que habitamos grande parte do tempo, aqui transformado em casa. Três conjuntos de carcaças de automóveis – acopladas duas a duas nas partes inferiores – são arranjadas de modo a configurar as áreas fechadas de cozinha, sala e quarto com sanitário, interligadas por duas escadas ao ar livre. Em uma placa, no alto do conjunto, lê-se: Life out of this world. O artista não inventa a forma arquitetônica; literalmente, a recolhe do cotidiano e opera sobre ela, unindo, cortando, acoplando. A ambigüidade com uma residência tradicional “paira no ar”, porque uma estrutura metálica aberta envolve os veículos e as escadas, evocando, ironicamente, o contorno de uma casa com telhado de duas águas. Os carros são interiores privados conec-
26 “A idéia de trazer as Artes Eruditas para o mundo terreno (...) estava baseada integralmente no espírito Dadá, que foi o primeiro dos movimentos do século a produzir uma arte que era contrária às Artes Eruditas de todas as maneiras. O espírito do Dadá era uma recusa à altivez, um encorajamento à burla e à zombaria, e uma rejeição da beleza como forma de consolação. Seu repúdio às Artes Eruditas estava baseado no reconhecimento de que a Europa, que reivindicava sua superioridade cultural em termos de arte com relação ao resto do mundo, tinha sido responsável por um palco de horror sem precedentes, a Grande guerra, na qual milhares e milhares de jovens foram de encontro a suas mortes sem propósito”. Danto, Arthur. O Mundo como Armazém: Fluxus e Filosofia. In O que é Fluxus? O que não é! O porquê (cat.), Brasília: Centro Cultural Banco do Brasil, 2002, p. 25 et. seq.
tados pelas escadas que, por sua vez públicas, expõem o trânsito de uma a outra ala. Trata-se, evidentemente, de uma experimentação arquitetônica que questiona a rigidez das tipologias e de definições formais puramente funcionalistas. Voltando-se mais uma vez para a casa, Acconci realiza uma arquitetura negativa em Sub-Urb27 (1983) [Fig. 7], que reinventa a “condição natural” da arquitetura tal como
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27 Vito Acconci. Sub-Urb, Artpark Lewiston, NY, 1983. Madeira pintada e estrutura de aço e astroturf.
na vizinhança tradicional dos suburbs americanos. A referência do título é intencional: Sub-Urb é uma arquitetura totalmente subterrânea; os acessos ao interior são feitos pelo teto que é composto por placas que deslizam, e nas quais são colocadas as letras do título do trabalho para evidenciar seu caráter irônico. A obra propõe outro modo de morar; mais ainda, questiona o ato de construir como um modo de status no campo visual da paisagem – assim, tangencia uma não-arquitetura no esquema de Krauss. 28 Acconci, Public Space… Op. cit., p. 423.
Acconci afirma: “a função da arte pública é o de-design”.28 Nesse sentido, sugere que a arquitetura poderia converter-se em toca, caverna ou mesmo em uma cápsula acoplável a uma parede vazia (por exemplo, dando abrigo a pessoas sem acesso ao interior de um edifício). Trata-se de abertura à noção de “projeto” que acolha a imprevisibilidade dos usos e necessidades espaciais e questione a postura de autoria em que o artista/ arquiteto implementa soluções prontas ou até mesmo arbitrárias. É através de uma relação dialógica, como o fazia nas performances, que Acconci interpreta e se aproxima de uma situação espacial, física e cênica, mas também social específica. Félix Guattari defende que a prática do arquiteto deve ter como base o exame das situações em sua singularidade, construindo no real e no possível, aberto a mudanças futuras. Entende a transdisciplinaridade entre urbanismo, arquitetura e ciências sociais,
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humanas e ecológicas como o modo de reorientar e transformar hábitos e mentalidades coletivas no cruzamento de questões econômicas, sociais e culturais.29 Propõe a instauração de uma “cidade subjetiva” diante do que chama de realidade desterritorializada da cidade capitalista. Não se trata, sob pretexto de estética, de naufragar num ecletismo que renunciaria a toda visão social! É o socius em toda a sua complexidade, que exige ser re-singularizado, re-trabalhado, re-experimentado.
29 “A cidade produz o destino da humanidade: suas promoções, assim como suas segregações, a formação de suas elites, o futuro da inovação social, da criação de todos os domínios. Constata-te muito freqüentemente um desconhecimento desse aspecto global das problemáticas urbanas como meio de produção de subjetividade”. Guattari, Felix. Restauração da Cidade Subjetiva. In ____. Caosmose: um novo paradigma estético. São Paulo: Ed.34, 1992, p.173.
O artista polissêmico, polifônico, que o arquiteto e o urbanista devem se tornar, trabalha com a matéria humana que não é universal, com projetos individuais e coletivos que evoluem cada vez mais rápido e cuja singularidade, inclusive estética, deve ser atualizada através de uma verdadeira maiêutica, implicando em particular, procedimentos de análise institucional e de explorações de formações coletivas do inconsciente. Nessas condições, o projeto deve ser considerado em seu movimento, em sua dialética.30
30 Id., ibid., p. 176-177.
Nessa operação, o artista lida com a subjetividade coletiva de modo constitutivo, evocando a participação do público em uma estética que une arte e vida. Lidando com múltiplos fatores de modo flexível e adaptativo – como condições ambientais, tecnológicas e humanas em diversidade – essa postura poderia ser compreendida como uma “abertura” ao real, uma modalidade de “externalidade” – reflexo do entendimento da paisagem como multiplicidade. Eis o que justifica o interesse pelo processo e o resultado crítico da poética de Vito Acconci em sua ênfase na noção de performance que se desdobra como modo relacional entre uma intervenção e seus usuários. No Projeto ArteCidade 200231 [Fig. 8], foi proposta ao artista a reapropriação do Largo do Glicério: um lugar de passagem, um “nó” urbano, espaço intersticial entre grandes estruturas viárias e edificações institucionais – entre elas um esqueleto vazio de propriedade municipal que é incorporado ao projeto, assim como os postes de iluminação. Partindo desse não-lugar, o artista implanta um “dispositivo urbano-arquitetônico” para “abrigar” a população sem domicílio fixo já residente no local, incorporando sua ocupação nômade e transitória. O artista considera que seu ponto de partida de intervenção é o tipo de ocupação desses agentes do espaço público: Os ossos de um prédio ainda por vir, os ossos de um prédio que nunca será: é o que resta no local – é o que agora é usado como base de um povoado, uma “vila” (...) Cada poste contém um “local”, uma “habitação”, um “parque” da vila (...) No topo de cada poste encontra-se
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31 “ArteCidade é um projeto de intervenções urbanas que se realiza em São Paulo desde 1994 (...) Reunindo artistas e arquitetos, internacionais e brasileiros, voltados para situações urbanas complexas, o projeto visa desenvolver repertório – técnico, estético e institucional – para práticas artísticas e urbanísticas não convencionais.” ArteCidade. Disponível em: <http://www.pucsp.br/artecidade> Acesso em: 04/03/2006.
um coletor de água pluvial, no formato parecido a um guarda-chuva virado para baixo. O material usado é policarbonato, fibra de vidro e plástico corrugado. Sua função é colher água para a vila, água para as instalações internas do próprio prédio (...) O prédio também funciona como o setor mais privativo da vila. Unidades sanitárias – cubículos com privadas - são instaladas no primeiro e segundo andar. As unidades são como cápsulas acopladas às bordas de cada andar, estando cada uma pela metade para fora da fachada. Essas cápsulas são feitas de fibra de vidro corrugada translúcida, de modo que é possível notar um vulto dentro dela, mesmo com a porta fechada. No último piso (aberto) há uma canaleta com água corrente para se lavar. Essa água e a dos banheiros são fornecidas pelos coletores de água nos topos dos postes. Canos levam a água ao prédio inacabado. A vila é iluminada pelos postes. A luz atravessa os guarda-chuvas virados de fibra de vidro corrugado e ilumina os anfiteatros e a mesa circular. Dentro do prédio um 32 (Descrição do projeto pela equipe). Ibid.
sistema de espelhos possibilita que a mesma luz ilumine esta área.32 A “vila” que se espalha pelo tecido da cidade e rompe a separação convencional entre arquitetura e espaço urbano, seria um entre uma não-arquitetura e paisagem, isso considerando o edifício, os postes e o viaduto existentes como paisagem construída; ou, então, tomando esses elementos como arquitetônicos, configurando um entre arquitetura e não-arquitetura. Porque as estruturas são semitransparentes e não vedadas, os banheiros, tanques e locais de refeição e lazer são abertos, e o acesso, livre em toda a área, as fronteiras entre público e privado tornam-se praticamente inexistentes. Não há limites convencionais como fachada e espaços compartimentados e confinados. Acconci não tenta esconder a condição de vida dos moradores de rua nem tenta criar para eles uma privacidade que não possuem; o artista evidencia a exposição pública a que estão sujeitos. As práticas precárias dos usuários são referências para a proposição de soluções viáveis e que lhes garantam auto-suficiência, a exemplo do recolhimento da água da chuva feito através de “instalações” nos postes. São as próprias condições da vida nas ruas que geram o programa. Intervenções dessa ordem podem ser descritas por Acconci como “para-sites”, uma alusão à ocupação temporária de lugares com sistemas que se unem aos sítios existentes, sem subverter suas estruturas, apenas se acoplando
33 Pfaff, op. cit., p.397.
e criando usos alternativos.33 Acconci questiona quaisquer esquemas preeestabelecidos e soluções prontas – assim como questionava sua posição como autoridade determinante do trabalho artístico. Agir como um dispositivo aberto e flexível, que busca as demandas de um público que não é visto como estereotipado. No caso da proposta mencionada para os sem domicílio fixo, a necessidade de auto-sustentação e o modo público de viver são constituintes do trabalho de uma estética da precariedade.
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Em projetos dessa ordem, pontuais, assim como em locais sem apelo espetacular, o resultado é uma prática não monumental, que evidencia a realidade fragmentada da cidade. O termo “non-u-mental” (paródia de monumental) define para o grupo “Anarchitecure” de Matta-Clark uma arquitetura adaptável à flutuação da vida urbana, multifuncional e em constante transformação por oposição a uma arquitetura sólida, estática e imutável. Nas palavras do arquiteto Rem Koolhaas, se um novo urbanismo é possível, não se tratará mais da disposição de objetos mais ou menos permanentes, mas da irrigação de territórios”,34 uma ação que busca não a cristalização de novas estruturas, mas sim a aceitação da multiplicidade como parte da condição da dinâmica da cidade em transformação. Isso a partir de intervenções que não se restrinjam à inserção de novos objetos, mas sejam o engendrar de um novo modo de discutir os projetos urbanos como alternativa às soluções programáticas centralizadoras das grandes corporações. Os trabalhos de performance, instalações e experimentações arquitetônicas de Vito Acconci por discutirem os limites entre público e privado, são contribuições à reflexão crítica da arquitetura como propostas não de instaurar projetos a serem difundidos como norma, mas sim de reivindicar uma ação através da cidade, através da paisagem: uma prática artística continuamente estimulante e aberta às mais diversas situações socioespaciais, uma ação artística em multiplicidade.
Fabiola do Valle Zonno é graduada em Arquitetura e Urbanismo pela FAU-UFRJ (2000), especialista em Comunicação e Imagem pela PUC-Rio (2004), mestre em História Social da Cultura da PUC-Rio (2006) onde desenvolveu, na linha de pesquisa de História da Arte e da Arquitetura, a dissertação Arquitetura entre escultura: uma reflexão sobre a dimensão artística da paisagem contemporânea. Desde 2006 é doutoranda desse mesmo programa com o objetivo de ampliar a pesquisa desenvolvida. Atualmente, é professora substituta do Instituto de Artes da Uerj e da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da UFRJ.
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34 ArteCidade. Disponível em: http://www. pucsp.br/artecidade. Koolhaas também participa do mesmo ArteCidade 2002 com uma proposta para o edifício São Vito, zona leste, único edifício modernista da região que sofreu rápida degradação, transformando-se em um grande cortiço vertical, superpovoado localizado em área de intensa circulação viária. Koolhaas não o interpreta como exemplar da arquitetura moderna, mas sim como elemento de verticalização. O arquiteto propõe a instalação de um elevador dotado dos mais avançados recursos técnicos como modo de incrementar a conexão da edificação com a área urbana e facilitar os acessos permitindo o surgimento de outras formas de ocupação da edificação, dando mais oportunidades de seu aproveitamento pelos próprios moradores. O elevador, que não foi instalado, gerou um problema de aceitação na esfera pública. Mas, para Koolhaas, mais importante que a instalação do elevador seria a mobilização de moradores, empresas, poder público, arquitetos e a mídia.
Conversas reguladas – Observações em uma mostra de artes visuais Dorcas Weber
Em setembro de 2007, foi aberta em Porto Alegre, RS a 6a Bienal do Mercosul, edição que a comissão organizadora denominou Bienal Pedagógica. Partindo desse discurso, busco neste texto abordar alguns ensinamentos desenvolvidos a partir de uma visita mediada a escolares, em uma das mostras que compunham essa edição da Bienal, como, por exemplo, o comportamento em uma exposição de arte. Procuro apontar também ações de regulamento que permeiam as ações pedagógicas na referida mostra. Bienal do Mercosul, ações de regulamento, pedagogias culturais.
A cada dois anos acontece em Porto Alegre, RS a Bienal de Artes Visuais do Mercosul. No período de primeiro de setembro a 18 de novembro de 2007 ocorreu sua sexta edição, denominada Bienal Pedagógica e qualificada como uma bienal para a educação. Essa denominação parece ter sido pensada por terem os escolares, nas edições anteriores dessa mostra, composto o maior público visitante e que, nesse sentido, vem também sendo considerado o mais importante pela diretoria da Fundação Bienal do Mer1 Justo Werlang, empresário, colecionador e atual presidente da Fundação Bienal do Mercosul.
cosul, de acordo com Justo Werlang.1 Tal ocorrência teria sido assim determinante para que a 6a Bienal do Mercosul passasse a focalizar suas ações e a colocar em destaque o que seus promotores consideram ser sua programação pedagógica. Proponho-me, neste texto, a levantar algumas considerações sobre tal proposta, buscando
2 Mostra Conversas. Disponível em www.bienalmercosul.art.br Acesso em 30 out 2007.
apontar algumas ações que ocorrem nas visitas de escolares à mostra Conversas,2 uma
3 Projeto Pedagógico: 6a Bienal do Mercosul de 01/09 a 18/2007. S/D (folder) Ver anexo 1.
folder3 de apresentação do Projeto Pedagógico da 6a Bienal do Mercosul e de alguns dados
das seis que integram essa edição da Bienal. Para desenvolver essa análise, vali-me do levantados durante o acompanhamento das visitas. Agendamento A etapa que precede a realização da visita de escolares à 6a Bienal do Mercosul inclui, como se destaca no folder que apresenta seu Projeto Pedagógico, o agendamento feito por telefone, de “segunda a sexta-feira das 9h às 19h”. Ressalto que tal agendamento pôde ser efetivado a partir de 13 de agosto de 2007, portanto, antes da abertura das mostras. Como público esperado foram definidos “estudantes a partir da educação infantil, professores, ONGs, grupos de terceira idade, grupos coorporativos, instituições, projetos socioeducativos, associações, cooperativas, etc.” Tal como definido no folder, os participantes
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sempre fariam a visita em grupos, sendo cada 24 pessoas acompanhadas por um responsável e, designado pela organização do evento, um mediador que estaria disponível para instigar o visitante a refletir sobre as obras ali expostas. Essas visitas em grupos poderiam ocorrer de segunda a sábado, no horário das 9h às 19h30, podendo entrar novo grupo a cada meia hora. O tempo de duração previsto para cada visita seria de uma hora e 20 minutos, obedecendo a roteiro previamente definido. Nos casos de atrasos, foi prevista a redução do tempo da visita, a fim de se evitarem interferências nos agendamentos subseqüentes. Cabe registrar que a Bienal disponibilizou para os grupos de estudantes das escolas públicas situadas em Porto Alegre e na grande Porto Alegre um ônibus gratuito de segunda a sexta-feira, facilitando, desse modo, seu comparecimento à exposição; aos sábados, esse oferecimento foi também estendidos a ONGs, associações, projetos socioeducativos e grupos especiais, cujas especialidades não se encontram especificadas no folder. Sugeria-se que, para facilitar o agendamento, o responsável pelo grupo interessado na visita entrasse em contato com os organizadores da Bienal a fim de conhecer previamente os espaços integrantes da amostra e selecionar um dos roteiros disponibilizados. Saliento que esses roteiros foram elaborados a partir das mostras que compuseram a 6a Bienal do Mercosul e apresentados aos/às professores/as na semana que antecedeu a abertura oficial da mostra, tendo sido permitida a abertura dos espaços expositivos exclusivamente para esse fim. Os roteiros encontram-se no site oficial da mostra. São eles: Roteiro 1 – Mostra monográfica Jorge Macchi – localizada no espaço do Santander Cultural. Roteiro 2 – Mostra monográfica Francisco Matto e Mostra monográfica Öyvind Falström – localizadas no Museu de Arte do Rio Grande do Sul Ado Malgoli – Margs. Roteiro 3 – Mostra Conversas – localizada nos armazéns A3 e A4 do Cais do Porto. Roteiro 4 – Mostra Zona Franca – localizada nos armazéns A5 e A6 do Cais do Porto. Roteiro 5 – Mostra Três Fronteiras – localizada nos armazéns A7 do Cais do Porto. Para realizar o agendamento das visitas o responsável necessitaria ter em mãos os “dados da escola ou instituição que representava: nome, endereço, telefone, fax, e-mail; e os nomes e dados dos responsáveis por cada grupo”. Feito o contato telefônico, a escola ou instituição receberia “ficha de confirmação de agendamento, que deveria ser preenchida e retornada à Central de Agendamento da Bienal, via fax. Em caso de não retorno até 72h antes da visita, a reserva seria cancelada”, como informa o folder. Roteiro 3 Conversas é o título da mostra referente ao Roteiro 3, situada nos armazéns A3 e A4 do Cais do Porto. Segundo o folder:
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Planta baixa dos armazéns A1 e A2. Fonte: www.hagah.com.br
Conversas é uma exposição em que a estrutura é a própria metodologia geradora. A mostra apresenta um novo modelo para falar das interrelações artísticas e culturais entre o Mercosul e o mundo. Consiste em uma exposição em que oito artistas do Mercosul são convidados a escolher dois outros artistas, a curadoria acrescenta mais um, formando uma rede de conexões artísticas que traçam e retratam os diálogos gerados entre as obras de arte. A exposição consiste em 36 obras, organizadas em nove módulos, com quatro obras cada”. Passo a descrever mais detalhadamente os nove módulos referidos no folder, indicando, inicialmente, que esses são espaços fechados localizados dentro de antigos armazéns para estocagem de cargas no porto de Porto Alegre, RS, como se fossem cômodos, feitos de
4 “Medium-density fiberboard é um material derivado de madeira e é internacionalmente conhecido por MDF. Em português a designação correta é placa de fibra de madeira de média densidade.” Disponivel em http:// pt.wikipedia.org/wiki/Medium_Density_Fiberboard Acesso em 05 nov 2007.
material semelhante ao aglomerado de madeira – MDF.4 Para melhor apresentar o espaço expositivo da mostra Conversas, incluo a planta baixa dos chamados armazéns A3 e A4 e imagens fotográficas desse espaço. Depois das perguntas de praxe – Qual a série que cursam? Qual é a idade de vocês? Já fizeram alguma visita a esta edição da Bienal? E nas edições anteriores? O que vocês
5 Programa Curso Mediadores [documento eletrônico]. Documento recebido por dorcasjweber@gmail.com em 31 maio 2007. Os mediadores são profissionais especificamentes formados pela Bienal do Mercosul, para atuar junto ao projeto educativo no atendimento e apoio aos diversos públicos visitantes da Bienal. Conforme consta em documento eletrônico recebido da equipe do projeto pedagógico da bienal, “o mediador é figura imprescindível; é ele o interlocutor entre o contexto da bienal (curadoria, artistas, obras, espaços, contextualização histórica, etc.) e o grande público. Sua atuação não se resume apenas a dar informações ou explicar as obras, mas, principalmente, a fomentar uma
esperam encontrar na Bienal? – o mediador5 a, também, fala introdutória descrevendo a mostra e apresentando o roteiro da visita que fariam. E acrescentam algumas considerações acerca dos cuidados que o grupo deveria ter ao visitar a bienal: não é permitido comer, beber, ou mascar chiclete durante a visita nem entrar sem camisa ou desconcentrar o grupo. Poderiam, no entanto, conversar entre si, fazer perguntas e tirar fotos. Em seguida o mediador conduziu o grupo aos núcleos, onde fez alguns questionamentos e comentários, referentes à autoria das obras mostradas neste núcleo, e relações entre elas.
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Durante essa visita acompanhada, pude perceber que nem todas as obras dos núcleos foram observadas e que nem todos os núcleos foram visitados. E isso ocorreu, ora por estarem alguns núcleos sendo visitados, pois vários grupos faziam o mesmo roteiro, ocupando os espaços e impedindo, de certa forma, a visita dos demais, pois cada em cada núcleo só poderia entrar um grupo de cada vez.6 Nessa visita, apenas cinco dos nove módulos foram visitados, cujas obras, no entanto foram observadas com igual intensidade. Finalizada a visita mediada, o grupo foi encaminhado a um oficineiro,7 encarregado de desenvolver com os visitantes uma atividade, que será relatada adiante, planejada para aquele roteiro. Vale lembrar, porém, que o oficineiro não acompanhara o grupo ao longo da visita e não tinha conhecimento das obras observadas pelo grupo, fato que conforme fala da mediadora da visita, poderia ser prejudicial à compreensão dos visitantes, pois as oficinas eram elaboradas a partir de uma obra ou núcleo, que em alguns casos, não correspondiam às obras enfocadas pelo mediador. A partir desse momento, apesar de permanecer com o grupo, o mediador não fez interferências nas falas do oficineiro que, por sua vez, conduziu o grupo à parte externa8 do Cais do Porto, em frente ao rio Guaíba, onde questionou os alunos: Vocês já haviam vindo à Bienal alguma vez? O que acharam? O que lhes chamou atenção? Que obra? Lembram do nome do artista? A maioria dos alunos não respondeu; apenas alguns mencionaram elementos que compunham obras, como “os fios”, referindo-se à de Waltercio Caldas, “o avião no prédio”, à de Osvaldo Salerno. O oficineiro iniciou a atividade dividindo o grupo em dois e solicitando que os/as participantes se dispusessem em dois círculos. Um integrante de cada grupo recebeu então, um rolo de cordão para passar adiante, devendo, ao mesmo tempo iniciar uma história com apenas duas ou três palavras – ele deveria passar o rolo de cordão ao integrante do outro grupo que estivesse posicionado à sua frente, mantendo para si a ponta do fio. O novo receptor do rolo deveria repetir as palavras que iniciaram a história e inserir mais duas ou três, para continuá-la, e assim deveriam proceder, sucessivamente, todos os integrantes do grupo. Ao final da história, a “teia” criada com o cordão foi então colocada no chão, e o oficineiro solicitou que todos observassem a imagem criada com o cordão. Questionouos, então, sobre a possibilidade de terem visto entre as obras visitadas uma imagem
reflexão a partir do que se vivencia durante a visita.” (Bienal do Mercosul, documento eletrônico recebido em 31 maio 2007). Para tal função foram selecionados estudantes universitários a partir do terceiro semestre de qualquer curso, que receberam treinamento durante os cinco meses anteriores à abertura da mostra. Entre os conteúdos trabalhados nesse período podemos destacar arte contemporânea e latina, expressão corporal e vocal, museografia, além de vivencias (observações) em escolas públicas de Porto Alegre, quando tiveram contato com os alunos de ensino fundamental. Com relação à formação de equipes de mediadores a Bienal se autodefine miniuniversidade, entendendo-se apta a criar plano de estudos capaz de ir além do fornecimento de informações acerca de obras e história. 6 A entrada de apenas pequenos grupos, procedia-se independente da idade dos visitantes, pois quando acompanhei um grupo de 65 professores de arte, integrantes do grupo Arte na Escola (Arte na Escola é instituto que tem por “missão incentivar e qualificar o ensino da arte e como premissa que a arte, enquanto objeto do saber, desenvolve no aluno habilidade perceptiva, capacidade reflexiva e formação de consciência crítica, não se limitando à auto-expressão e à criatividade”. Disponível em www.artenaescola.org.br acesso em 27 nov 2007), e foram divididos em grupos de 20 para entrar nos núcleos; é importante frisar que seguranças posicionadas nas entradas dos núcleos, controlavam esse procedimento. 7 Oficineiro é um profissional do projeto educativo, responsável pela elaboração e desenvolvimento das oficinas oferecidas aos grupos de visitantes que realizavam o agendamento para visitação. Os oficineiros participaram da seleção para atuar como mediadores, no entanto, devido à experiência que na maioria dos casos estava ligada às edições anteriores da bienal, foram designados para essa função. 8 A parte externa do Cais do Porto fica diante do rio Guaíba, considerado espaço de convivências na 6a Bienal do Mercosul. As oficinas podem ocorrer no espaço específico de oficinas ou nesse espaço externo, dando-se a opção pelo local em função do clima, de o espaço de oficina estar vago (existem três oficinas para todas as mostras do Cais do Porto), ou ainda da escolha do oficineiro, de acordo com a atividade a ser proposta.
semelhante à que haviam formado. Ao finalizar a atividade, ele lembrou aos escolares que haviam visitado a mostra intitulada Conversas e que, em sua atividade na oficina, teriam criado uma imagem e uma história a partir de conversas estabelecidas entre eles. Conversas reguladas Ao acompanhar a visita desse grupo, ouvi um comentário de uma professora9 que me intrigou e me fez refletir. Naquele momento, a professora justificava ter gostado da forma
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9 Arte-educadora, atuante em escola particular de Porto Alegre, RS. Na visita relatada, ela acompanhava uma turma de quarta série do ensino fundamental.
Visita de grupos de estudantes em 19/03/07 (imagens dos módulos que compunham a mostra Conversas. Fonte: www.bienaldomercosul.art.br
como a mostra havia sido montada, pois os núcleos, organizados em módulos fechados
10 Alvarez-Uria, Fernando. Microfisica da Escola. Educação & Realidade. Porto Alegre. 21 (2), jul./dez. 1996, p. 36.
Uría,10 apontando que “as formas e os lugares de governo de uns homens sobre outros são
com apenas uma entrada, a auxiliavam a controlar melhor os/as alunos sob sua responsabilidade. A observação da professora destaca alguns controles que permearam as visitações às mostras da 6a Bienal do Mercosul. Vale considerar, então, a discussão de Álvarezmúltiplas: às vezes se sobrepõem, outras se anulam, em muitos casos se reforçam, dando lugar a redes e estratégias sociais”. No caso referido, a professora colocava-se na posição de quem vigia os alunos que levara a visitar a Bienal, ou seja, ela se preocupava bem mais com o controle dos/as estudantes do que com a visita propriamente dita, a ponto de ter permanecido grande parte do tempo junto à entrada dos núcleos observando o comportamento de seus(suas) alunos(as) e recomendando que se mantivessem junto ao grupo e prestassem atenção às proposições do mediador. É importante ressaltar que tanto a instituição visitada estabelecia alguns comportamentos como “padrões” quanto a professora esperava que seus/suas alunos/as assumissem determinados padrões de comportamento, correspondentes a algumas normas sociais definidas como normas de convivência. A observância a tais normas configura-se como atribuição de algumas instituições sociais, ocupando a escola lugar de destaque entre elas, quando se refere à função de enquadramento dos jovens configurados como “normais”. Cabe assim à escola e seus/suas professores/as cobrar o cumprimento dessas regras e, ao mesmo tempo, providenciar sanções para quem não as considere. Na situação que relatei, a professora assumiu tal incumbência de forma até bastante tranqüila, tanto que destacou a disposição da mostra e não a qualidade estética das obras lá expostas. Outras normas específicas a respeito de como se deve agir numa exposição de artes visuais estão reunidas na orientação do mediador ao recepcionar os escolares: “não comer, beber, mascar chiclete, não correr, bem como não entrar sem camisa, podendo, no entanto,
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perguntar e fotografar”, além de ser desejável para observar melhor as obras manter-se em silêncio e delas um pouco distanciado. É importante ressaltar que essas normas e comportamentos não são ações específicas dessa mostra ou dessa bienal; museus e outras instituições culturais, como fundações e
Foto da obra de Waltercio Caldas, intitulada O ar mais próximo. Fonte: www.bienaldomercosul.art.br Foto da obra de Osvaldo Salemo, intitulada As torres gêmeas. Fonte: www.bienaldomercosul. art.br
institutos, também delas fazem uso. Em alguns casos, são elaborados folders ou folhetos para orientar professores, como é o caso da Secretaria de Estado da Cultura do Distrito Federal, DF, que desenvolveu um folheto intitulado “Visitado museus: dicas para professores”, em que estão relacionados 10 itens básicos a respeito do assunto. Ao atentarmos para o fato de que algumas ações de regulação praticadas na visita relatada foram pensadas pelos organizadores Bienal do Mercosul, definida nessa edição como Bienal Pedagógica, pode-se dizer que eles buscaram marcar a existência de um modo ‘correto’ de proceder quando se visita uma exposição de arte; e, também, que se esperou que o público escolar, para quem haviam sido planejadas tais ações, ‘aprendesse’ ali como se comportar nesse tipo de situação. Pode-se pensar que se buscou disciplinar seus corpos de uma determinada forma e, ao mesmo tempo, disciplinar a percepção artística desses sujeitos, intenção que ficou bastante bem externada na atividade realizada com o oficineiro. Conforme Alvarez-Uria, “a disciplina implica uma vigilância hierárquica e uma sanção normalizadoras ininterruptas que afetam mais os processos de atividade do que a seus resultados. A codificação e controle do espaço, do tempo, das atividades, asseguram o submetimento constante dos sujeitos”,11 o que reafirma o entendimento acerca da posição da Bienal frente a ações reguladoras relacionadas aos visitantes. Por sua vez, a instituição Bienal do Mercosul, que a cada dois anos propõe a exposição e que por algum momento
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11 Idem.
exerce suas ações de controle, também se submete a regras definidas por seus patrocinadores, sendo exemplo bem rasteiro a inclusão do nome e logomarca da principal empresa patrocinadora em todos os materiais produzidos pela instituição, como no folder utilizado para esta análise. Cabe indicar que o próprio folder, com suas explicitações e definições, configura-se como uma forma ou estratégia para produzir enquadramentos: ele define, por exemplo, as condições de acesso à exposição, bem como privilegia alguns visitantes, ao indicar o fornecimento de meios para seu deslocamento até a mostra, por exemplo. Além disso, informa quais são as ações consideradas pedagógicas, uma sendo a que orienta a visitação de forma ‘correta’, também sugerida nos roteiros. O folder, bem como outros materiais de divulgação distribuídos na Bienal, também aponta os tempos e espaços mais convenientes para visitação; a visita mediada, aliás, é forma de operar na definição do que merece ou não ser visto e destacado. Ao promover a seleção das obras, bem como ao criar os roteiros, a instituição pauta-se por critérios que lhe permitam selecionar o que é ou não artístico; e, mais, ela também define qual é a arte que merece naquele momento ser apreciada. No caso da escolha do roteiro 3 – Conversas –, 36 obras estavam disponíveis, mesmo que na visita acompanhada nem todas fossem destacadas e indicadas à observação. Minha experiência no campo artístico permite-me dizer que, realmente, durante uma visita mediada seria difícil dar muita atenção a todas as obras que compõem a mostra no tempo de 80 minutos estabelecido para cada grupo. Nesse caso, seria interessante questionar-se acerca de quem determina a escolha das obras e o tempo que deve ser atribuído a sua observação. No caso da visita que acompanhei, dos nove núcleos que compõem a mostra apenas cinco foram visitados, e nem todas as suas obras foram observadas e comentadas. Dessa forma, pode-se pensar que o visitante torna-se muitas vezes passivo frente às obras, sendo levado a admirar apenas o que é possível, não se oferecendo opção de escolha para deter-se no que lhe desperta mais atenção ou interesse. Com relação ao tempo estipulado para a visitação dos grupos, esse também pode ser visto como uma forma de exercer controle sobre o mediador: “o tempo medido e pago deve ser também um tempo sem impureza nem defeito, um tempo de boa qualidade, e durante todo 12 Foucault, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Tradução de Raquel Ramalhete. 30 ed. Petrópolis: Vozes, 1987, p 129.
o seu transcurso o corpo deve ficar aplicado a seu exercício”.12 Os sujeitos que atuaram como mediadores na Bienal dispunham de determinado tempo para atender aos grupos de pessoas, e, conforme indicado no folder, em caso de atraso, esse seria descontado, para que não houvesse interferência na visita posterior. Essa pode ser uma forma de exercer controle sobre o trabalho executado, principalmente se considerarmos a questão da produção do mediador, medida a partir do número total de freqüentadores da Bienal.
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Como se pode ver a partir destes meus comentários bastante introdutórios, ações de vigilância se processam também em uma atividade comumente considerada apenas de formação cultural. Na direção que busquei imprimir à análise, seria possível entender a Bienal do Mercosul como local em que se trama uma “rede de poderes, que captura, divide, classifica”13 os saberes e os sujeitos que nela estão envolvidos, tal como destaca Veiga-Neto, ao discutir os processos de formação do sujeito.
13 Veiga-Neto, Alfredo. Foucault & Educação. 2 ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2005, p. 65.
Nesse sentido, a organização de uma mostra como a Bienal pode ser analisada a partir de aspectos como vigilância e controle, na medida em que: 1) captura os responsáveis pelas instituições que procuram a exposição, com seus elementos disponíveis, tais como, formação, materiais, visita mediada e transporte gratuitos; 2) divide em grupos e em espaços; e 3) classifica-os por instituições, por faixa etária. É importante também apontar o pensamento de Varela,14 quando destaca a relação do controle de conhecimento com a maturação mental, levantando o fato de que “os saberes que são objeto de transmissão nas instituições educacionais sejam sacrificados em favor das destrezas cognitivas”. Da mesma forma, os mediadores questionam os escolares acerca de sua idade e de onde vêm no intuito de saber como lidar e se comunicar com esse público específico – lembro que ‘tipos de público’ foi um dos temas enfocados no curso de formação de mediadores, sendo essa mais uma das ações de controle exercidas pela Bienal do Mercosul. Dessa forma, torna-se instigante pensar na posição dos sujeitos nas ações previstas e possíveis junto à visita mediada na mostra Conversas, bem como nas ações de controle e autocontrole nelas exercidas. É importante destacar, também, que esse é apenas um recorte nas ações desenvolvidas pela Fundação Bienal do Mercosul em suas exposições bineais. Sendo assim, outras mostras podem ser efetivadas abordando outras mostras, outras questões e ações.
Dorcas Weber é graduada em Artes Visuais pela UFU, especialista em Arte, Educação e Tecnologias Contemporâneas pela UnB, especialista em Arte e Educação Física, mestranda em Educação – Estudos Culturais na Ulbra. Tendo experiência em ação educativa em museus, e no ensino de arte no espaço escolar, atualmente desenvolve materiais didáticos para EAD.
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14 Varela, Julia. O estatuto do saber pedagógico. In Silva, Tomaz T. da (org.). O sujeito da educação – estudos foucaultianos. Petrópolis: Vozes, 1994. p. 94.
Patrimônio imaterial, performance e identidade Letícia C. R.Vianna e João Gabriel L. C. Teixeira
Com o desenvolvimento recente das políticas para o patrimônio imaterial no Brasil, temos um campo em que os cientistas sociais são chamados à ação. Este texto, um exercício de reflexão sobre conceitos importantes na orientação dessas políticas, procura ressaltar a correlação entre as idéias de performance, autenticidade e identidade na elaboração de políticas públicas para o patrimônio cultural imaterial. Patrimônio, performance, identidade. Introdução O conceito de patrimônio cultural imaterial aparece em contraposição ao de patrimônio material na Constituição de 1988, como resultado do processo “constituinte”, no qual diferentes segmentos sociais tiveram a oportunidade de discutir e debater. Em 2000, o Decreto 3.551, estabelece legalmente quatro dimensões do patrimônio imaterial: celebrações, saberes, formas de expressão e lugares expressivos das diferentes identidades conformadoras da diversidade cultural do país. E cria instrumentos de identificação, proteção e salvaguarda desse patrimônio imaterial. Nesse contexto, os cientistas sociais ganharam as atribuições de pesquisar, documentar, formular e implementar políticas públicas para comunidades, grupos, povos e segmentos sociais até então à margem das políticas de definição e proteção de patrimônio cultural. Em vista disso, têm-se deparado com muitas questões que vão aparecendo nesse processo e que dizem respeito à definição do objeto cultural patrimonializável, do exercício de patrimonialização, dos objetivos desse exercício. O que é patrimônio cultural imaterial, por quê? Para quem e como devem ser destinadas as políticas de proteção? Ponto passivo é a superação, pelo menos conceitual, de um certo etnocentrismo e afirmação da pluralidade cultural como lócus de interesse e ação. Não só os ícones de uma cultura oficial católica são declarados patrimônio cultural da nação, mas toda uma gama de fatos culturais de diferentes tradições torna-se potencialmente patrimonializável. E nessas definições, os conceitos de autenticidade e de identidade se revelam de suma importância. Assim, no sentido de equacionar os dois termos – autenticidade e identidade – no contexto das políticas públicas para o patrimônio imaterial, considera-se o conceito de performance mais do que apenas operacional. Em sendo conceito elástico, ele se refere a um sentido relativo ao acontecimento, ao ato deliberado de vivenciar e comunicar, ao aqui e
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agora das ações humanas, com toda a sua carga expressiva e singular de identidades, o que é, em última instância, o lócus por excelência dessas políticas: o acontecimento do fato cultural. As políticas culturais no Brasil A idéia de que fatos culturais intangíveis têm valor identitário e, por isso, são passíveis de política de patrimonialização já está presente no Brasil nas formulações oficiais do Estado desde a primeira metade do século XX. O anteprojeto de Mário de Andrade, elaborado em 1936, que fornecia as bases de criação do então Isphan, hoje Iphan, e da institucionalização da idéia de patrimônio histórico e artístico nacional, é um marco nesse processo. Houve, porém, descompasso na regulamentação e prática de políticas patrimoniais para o tangível e o intangível. Tombamento, restauração, conservação e fiscalização do patrimônio material foram práticas bastante desenvolvidas e conhecidas de vários segmentos da sociedade brasileira desde 1937, quando o Instituto foi criado. Tais instrumentos, entretanto, se apresentavam de difícil aplicação para fatos culturais intangíveis, como os folguedos, os credos, os saberes – que então eram documentados pelos pesquisadores e divulgadores do folclore, Mário de Andrade,1 entre eles. E não houve nenhuma legislação especialmente desenvolvida para essa dimensão intangível do patrimônio. Por um lado, os estudiosos do folclore, como Sílvio Romero, Mário de Andrade, Amadeu Amaral, Edison Carneiro, entre outros, desvendavam um Brasil de ricas e variadas tradições; por outro, alardeavam o iminente esquecimento e possibilidade de perda dessas raízes em detrimento de uma colonização cultural unidirecional. No final dos anos 40, um movimento envolvendo artistas, intelectuais, pesquisadores, diplomatas, professores e outros segmentos sociais culmina com a Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro – a qual derivou no que hoje é o Centro Nacional de Cultura Popular. O trabalho desenvolvido não era o de patrimonializar, isto é, o ato jurídico de o Estado declarar patrimônio nacional um fato cultural e passar a tratá-lo como bem cultural de interesse público. Havia, sim, ações para salvaguardar o folclore e os conhecimentos tradicionais através de pesquisa, documentação e apoio ou fomento das práticas culturais. O processo de constituição do campo de estudos de folclore foi, de mais ou menos paternalista e etnocêntrico (com pesquisas e edições superficiais, doações pontuais de roupas, instrumentos, transporte para grupos e lanche...) a uma aproximação mais relativista e pragmática na elaboração de políticas (com pesquisas e edições com fundamento antropológico, ações de fomento voltadas para o modo de vida dos grupos e comunidades no sentido de gerar renda, garantir autonomia e melhorar o bem-estar social de maneira mais ampla) – e não meramente o apoio a esta ou aquela manifestação pontual.
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1 Travassos, Elizabeth. Os mandarins milagrosos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997.
As duas tendências (a de patrimonialização da cultura material e a de defesa do folclore) proporcionaram as bases para a formulação do conceito e da política de patrimônio imaterial, bem como para toda a discussão sobre o assunto nos fóruns internacionais, sobretudo a Unesco. Entre os anos 70 e 80, com as políticas idealizadas e implantadas por Aloisio Magalhães, dá-se intenso amadurecimento institucional para tratar da dimensão intangível da cultura. E assim, como resultado de processo de reflexão e aprimoramento de idéias por parte de quadros do Estado e representantes de segmentos da sociedade brasileira, o conceito de patrimônio imaterial foi apresentado na Constituição de 1988. E desde 1988 até 2000 um grupo trabalhou no âmbito do Estado para detalhamento do conceito no sentido da instituição de políticas na área. Significativa desse processo é a Carta de Fortaleza, de 1997, resultante do Seminário Patrimônio Imaterial: estratégias e formas de proteção, realizado pelo Iphan com a participação da Unesco e de várias instituições. Esse processo de trabalho culminou, então, com o Decreto 3.551, de agosto de 2000 que instituiu o Registro de Bens Culturais Imateriais em Livros específicos criados pelo Iphan (análogos aos livros de tombo) e o Programa Nacional de Patrimônio Imaterial (PNPI). O impacto desse decreto no âmbito das políticas do patrimônio cultural é bem marcante, na medida em que possibilita a inclusão de segmentos sociais e áreas da cultura até então excluídas do escopo das políticas públicas pertinentes. A formulação da idéia de patrimônio imaterial tem clara orientação relativista, no sentido de explicitar, valorizar e oficializar a pluralidade e a diversidade cultural brasileira. Idealmente trata-se de diretriz para política pública potencialmente inclusiva e transformadora, na medida em que objetiva não os produtos culturais em si (materializáveis), mas os seres humanos concretos – os agentes – e as condições e processos objetivos de produção e reprodução dos tais bens culturais patrimonializáveis. Patrimonializar aspectos ou fatos culturais é sempre uma escolha política. Envolve mobilização de segmentos sociais e poderes públicos, definições e justificativas em campo com diferentes interesses em jogo. Para além de políticas orientadas para o patrimônio material que privilegiam certos e poucos pontos de vista (na arquitetura e no urbanismo, na arqueologia e nas belas artes), criou-se, então, um campo para o “intangível” que abarca os processos de produção de cultura, as performances, os saberes e os modos de os transmitir. Um campo em que os cientistas sociais são chamados a trabalhar. E assim, diferentes expressões e tradições das culturas populares, até então visíveis aos folcloristas, mas preteridas e invisíveis nas políticas de patrimonialização em curso, passam a ser lugares privilegiados para o Estado e a sociedade civil lançarem um olhar sensível e desenvolverem projetos de salvaguarda. Trata-se de campo novo, com vários conceitos, orientações e procedimentos metodológicos em desenvolvimento, até agora com muitos acertos e equívocos. Não se tomba o patrimônio
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imaterial para não congelar uma forma conjuntural específica como referência – como se faz com uma obra de arte ou edificação ou um sítio arqueológico. O instrumento é o registro, que pressupõe dinâmica e variedade de formas e significados. A pesquisa acadêmica e documental para garantir a possibilidade de reconstrução futura da expressão é apenas um lado da política de salvaguarda do patrimônio imaterial. O foco está, sobretudo, na valorização e garantia objetiva das condições concretas para a realização dos processos de produção, e não nos produtos culturais propriamente; na garantia das condições e motivações de “performar”, no aqui e agora específico do ato concreto de (re) criação, expressão e comunicação – performance, ação fugaz, autêntica porque única, não obstante ter referências em matrizes e sistemas simbólicos definidos que são, naquele ato, reproduzidos ou questionados. Sobre o conceito de performance Uma exegese do conceito socioantropológico de performance ou performance cultural já foi desenvolvido em outro momento,2 cabendo ressaltar aqui apenas alguns de seus aspectos mais relevantes para os efeitos desta reflexão, sobretudo no que se refere à questão da identidade. Schechner3 num de seus poucos textos publicados no Brasil admite a formulação de sete funções para as performances; uma delas é o reforço da identidade social de 4
um determinado grupo social ou sociedade específica. No sentido dessa afirmação, é importantíssima a compreensão dos conceitos de performatividade e de materialização performática, no que referem a realização das performances culturais expressas nas manifestações constitutivas do patrimônio intangível ou imaterial de determinada cultura local. Ora, isso acontece porque o conceito de performatividade “desloca a ênfase na identidade como descrição, como aquilo que é... para a idéia de ´tornar-se`, para uma concepção da identidade como movimento e transformação”.5 Assim, esse conceito não se limita a descrever como as ações expressivas humanas acontecem, mas denota, sobretudo, as representações e proposições que fazem com que elas (as performances culturais) aconteçam. Performances culturais seriam, então, por exemplo, uma cerimônia de casamento, a promessa de pagamento de uma dívida ou a inauguração de um monumento. Cada uma dessas performances envolveria o estabelecimento ou reafirmação de representação ou proposição, denominadas inicialmente por Austin6 como performatividades. Essas confabulariam, por conseguinte, as elocuções que informariam o significado que cada performance cultural procura preservar e fazer permanecer no tempo.7 É preciso lembrar que em sua longa história o conceito de representação assumiu vários significados e que, na modernidade, está ligado à busca de presentificar o “real” através de sua revivência. Resulta da necessidade humana de performatizar a cultura e de
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2 Teixeira, João Gabriel L. C. História, teatro e performance. Texto apresentado ao XXI Simpósio Nacional de História, ANPUH, Unisinos, São Leopoldo, julho de 2007.
3 Schechner, Richard. O que é performance? In O percevejo. Revista de Teatro Crítica e Estética. Estudos da Performance. Ano 11, n.12, 2003. 4 Após relembrar que uma das mais inclusivas proposições sobre essas funções é a do sábio indiano Bahara Muci (século II aC) que “sentiu que a performance é um importante repositório de conhecimentos e um veículo poderoso para expressão das emoções”, Schechner (op.cit.: 45) nomeia as seguintes sete funções para a performance: “entreter; fazer alguma coisa que é bela; marcar ou mudar a identidade; fazer ou estimular uma comunidade; curar; ensinar, persuadir ou convencer; lidar com o sagrado e com o demoníaco”. 5 Silva, Rubens Alves da. Entre ´Artes´ e ´Ciências’: A Noção de Performance e Drama no campo das Ciências Sociais. In Horizontes Antropológicos. Porto Alegre: PPGAS/UFRGS, 2005. Cita como exemplos dessas proposições performativas: “eu vos declaro marido e mulher”, “prometo que te pagarei no fim do mês” e “declaro inaugurado este monumento”. 6 Austin, J. L. How to do things with words. 2 ed., Cambridge: Harvard University Press, 1975. 7 Butler, Judith. Bodies that matter. Nova York: Routledge, 1994. Segundo a autora, a produção da identidade é uma questão de performatividade.
torná-la mais assimilável para as diversas comunidades. De apresentar, reapresentar e representar suas manifestações mais singelas e candentes, em recorrente processo de escolha e de repetição. 8 Schechner, op. cit., p. 48.
Schechner8 também alerta para o fato de que no começo do século XXI certas distinções clássicas, tais como a freqüentemente estabelecida entre eventos que podem ser vistos como performance e aqueles que são performances indubitáveis, se estão tornando mais tênues, cabendo, conseqüentemente, ao estudioso atentar para as formas como esses eventos são controlados, distribuídos, recebidos e avaliados. Tais idéias trazem implicações para as políticas públicas voltadas para preservação do patrimônio material, no que dizem respeito aos objetivos dos novos materiais de registro e divulgação que são criados no que eles incidem sobre os desejos e interesses específicos de cada comunidade implicada. No limite, essa incidência pode mesmo resultar na transformação da função social do evento para essa mesma comunidade, esmaecendo a diferença entre o que era antes uma manifestação e o que podia ser visto “como se fosse performance” e passa a constituir uma performance artística propriamente dita, materializada, mediatizada e comercializada. Nesse momento, pode ocorrer que a performance em questão tenha passado por um processo de perda de capital simbólico, ainda que, mesmo assim, possa contribuir, paradoxalmente, para seu reconhecimento e consolidação. Todos esses processos contribuiriam, a seu modo, para reforçar a idéia de resiliência na teoria da performance, exigindo sua contínua reatualização. Conclui-se, a título de contribuição, que é exatamente essa resiliência que se torna uma das principais contribuições da teoria performática para o estudo das culturas do patrimônio intangível num contexto social marcado por globalização, correntes migratórias, desemprego e precarização do trabalho. Performance e autenticidade A dimensão imaterial da cultura é inapreensível a não ser na fugacidade de seu acontecimento. Para a teoria da performance, a idéia de autenticidade está fincada no aqui e agora de cada performance realizada, em condições sociais, econômicas e históricas concretas, conforme a intencionalidade de cada realização. Nesse sentido, pode-se afirmar que o autêntico, desse ponto de vista, é aquilo que é real e que se concretiza e materializa num dado momento. Aduz-se que seu registro (sonoro, visual, literário) não é o fato cultural em si, mas sua mera reprodução técnica – nos termos de Walter Benjamin – e que pode servir como referência para outras performances culturais, igual e necessariamente únicas, mesmo que parecidas e pertencentes a uma mesma tradição. As tradições culturais, por sua vez, são entendidas como invenções transmitidas e rein-
9 Hobsbawn, Eric e Ranger, T. A invenção das tradições. São Paulo: Paz e Terra, 1994.
ventadas, como tratou Hobsbawn.9 Elas são conformadas através de preceitos e performances que se desenrolam com base na idiossincrasia e liberdade individual em um campo
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de possibilidades simbólicas de uma cultura, circunscrita socialmente, a qual é também dinâmica e se transforma. Nesse sentido, cabe retornar ao conceito benjaminiano de autenticidade, relacionado ao que acontece aqui e agora, algo fugaz, intangível e irreproduzível, que só existe em ações humanas, ou seja, só seres humanos “performam” fatos culturais. Desse modo, respeita-se o princípio dinâmico dos processos sociais, ao tempo em que se rejeita a noção de autenticidade enquanto indicativa de algo plantado em algum lugar do passado ou do espaço, passível de reificação e, assim, dotado de autoridade para servir de modelo e referência para sempre (“quanto mais ancestral mais autêntico”10). Não se trata mais de estabelecer um “valor de ancianidade” baseado na estetização do passado em que o que é mais tradicional é o mais antigo.11 Nem de ignorar que a materialização de uma performance cultural implica processos sensoriais e emocionais que ocorrem para/nos seus observadores (não existe performance sem público, ou seja, sem audiência que lhe assiste e a legitima). Isso acontece porque a tradição tem a capacidade de fundir o desejo com a emoção. Desejo do sujeito de experimentar, em seu corpo, sua
10 Barroso, Oswald. Incorporação e memória do ator brincante. In Teixeira, J.G.L.C., Garcia, M.V.C. e Gusmão, R. Patrimônio imaterial, performance cultura e re-tradicionalização. Brasília: Transe/Ceam, Universidade de Brasília, 2003. 11 Londres, Cecília. Patrimônio e performance: uma relação interessante. In Teixeira, J.G.L.C., Garcia, M.V.C. e Gusmão, R. Patrimônio imaterial, performance cultura e re-tradicionalização. Brasília: Transe/Ceam, Universidade de Brasília, 2003.
sensibilidade e seu raciocínio. Dessa forma, ela se insere em terreno fértil fronteiriço entre a arte e a magia, e por isso mesmo é uma forma de arte ao vivo (body art) como bem entenderam os formuladores de sua arte (arte da performance ou performance art) na contemporaneidade. John Dawsey,12 a seu modo, também rejeita essa noção cristalizada de autenticidade ao chamar a atenção para um conjunto de afinidades entre a antropologia da performance de Turner13 e o pensamento benjaminiano14 sobre as grandes tradições narrativas, em que ambos os autores efetuam uma espécie de arqueologia da experiência humana, mostrando o estilhaçamento da tradição e o empobrecimento da experiência liminar, seu nãoacabamento essencial e suas múltiplas possibilidades. Assim, tem-se sempre uma descrição tensa e densa sobre os elementos imateriais da cultura passíveis de patrimonialização, uma vez que se lança mão, preferencialmente, da etnografia. Geertz15 define etnografia como uma descrição densa – para além do aparente que busca a lógica simbólica subjacente. Ao partir do conceito benjaminiano de imagem dialética, Dawsey16 afirma em sua tese que o ato etnográfico resulta da busca dessa descrição, carregada de tensões, capaz de produzir “nos leitores, num fechar e abrir de olhos, uma espécie de assombro diante de um quotidiano agora estranhado, um despertar”. Nesse sentido, é importante lembrar que o termo performance deriva do termo francês antigo parfournir, que significa exatamente completar ou expressar de modo total uma experiência. Por isso, é necessário ao etnógrafo atentar para as particularidades, detalhes
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12 Dawsey, John C. Turner. Benjamin e antropologia da performance: o lugar olhado (e ouvido) das coisas. In Medeiros, M.B. de, Monteiro, M.F.M. e Matsumoto, R.K. Tempo e performance. Brasília: Editora da Pós-Graduação em Arte da Universidade de Brasília, 2007. 13 Turner, Victor. The anthropology of performance. Performing Arts Journal. Nova York, 1987. 14 Benjamin, Walter. Sobre alguns temas em Baudelaire. In Benjamin, W. Obras Escolhidas III: Charles Baudelaire. Um Lírico no Auge do Capitalismo. São Paulo: Brasiliense, 1999. 15 Geertz, Clifford. A interpretação das culturas, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985. 16 Dawsey, John C. Turner. Do que riem os bóias frias? Walter Benjamin e o teatro épico de Brecht em carrocerias de caminhões. Tese de livre-docência. PPGAS/FFLCH, Universidade de São Paulo, 1999, p. 64.
e ruídos sonoros, suprimidos ou não, dessas experiências, abrindo as possibilidades de 17 Dawsey, 2007, op. cit.
mergulhar no inconsciente das paisagens e passagens culturais.17 Em suma, embora o fato cultural nominado patrimônio imaterial possa ser entendido enquanto sistema de práticas tradicionais reconhecidas e transmitidas de geração em geração, ao longo de um tempo, caracterizando identidades coletivas, sua autenticidade não está em origem bem localizada ou apenas conjetural; mas em cada recriação singular e expressiva de um aqui e agora vivido pelo cidadão – em cada performance. Caberia, assim, aos poderes públicos, nas políticas de salvaguarda do patrimônio imaterial, garantir a liberdade e as condições para que essas exigências sejam realizadas e permaneçam enquanto práticas de interesse público e dos que as performam. Identidade e patrimônio
18 Wooward, Kathryn. Identidade e diferença: uma introdução teórica e conceitual. In Silva, T.T. da, Hall, S. e Woodward, K. (orgs.). Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis: Editora Vozes, 2000.
Woodward18 ressalta certos aspectos da teoria da identidade que são de especial relevância para a condução desta reflexão. O primeiro deles diz respeito ao caráter relacional da identidade que, para se constituir, depende da existência de algo que se afirma fora dela, mesmo que esse algo se tenha afirmado no passado. Assim, muitas vezes a busca de uma determinada identidade exige a redescoberta de seu passado, que pode caracterizar-se por estar constituída de conflito, contestação e crise. Novamente, a situação pode revestir-se de certa tensão, que se reflete na discordância entre as visões essencialista e não essencialista de identidade, a primeira atribuindo conjunto cristalino, autêntico, transparente de características a uma determinada identidade, e a segunda reconhecendo as características compartilhadas e as diferenças em relação a outros modos de identidade. Na gênese desse caráter relacional da identidade, está o conceito de identificação, tal como foi desenvolvido pela psicanálise. De forma resumida, esse conceito descreve os motivos por que nos identificamos (principalmente na fase edipiana do desenvolvimento da psique humana) com alguns outros e não com outros, a depender da consciência das
19 Id., ibid., p. 18.
diferenças e separações ou por consideração a supostas semelhanças e similaridades19 com esses outros. A identificação ocorre, desse ponto de vista, quando não é mais possível ao sujeito realizar sua unidade primordial com a mãe e começa a se identificar com figuras mitogênicas poderosas que passam a existir fora de si, o que significa, na cultura. De acordo com essa perspectiva, a linguagem representa papel importante nesses processos, pois determina o curso do desenvolvimento das identificações realizadas pelo sujeito, moldando sua identidade e orientando-o externamente, como um efeito do significante e da articulação dos desejos que o sujeito manifesta. Em relação ao universo das políticas de patrimônio cultural, as identidades que estão sob foco são as identidades coletivas, ou seja, de pequenos grupos, segmentos sociais, comunidades, povos ou nações que se definem em relação a outros, tendo como base suas experiências e expressões sui generis.
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Considerações finais Lebrando Zumthor,20 é preciso reconhecer que nem tudo pode ser estabelecido a partir de como o fenômeno performático é recebido, pois a recepção representa apenas uma parte desse processo. O que está em jogo é o empenho do corpo, ou seja, o investimento corporal que é efetuado no momento de sua materialização e que é gestionado em momentos anteriores da história individual de cada sujeito que ”performa”. Nesse sentido é relevante a incorporação do conceito de performance na orientação das políticas de patrimônio imaterial, entendendo-se performance como acontecimento, ato deliberado de vivenciar e comunicar, o aqui e agora das ações humanas, com toda a sua carga expressiva e singular. Uma das principais ilações realizadas a partir desses processos inconscientes é que, muitas vezes, identidade e subjetividade são utilizadas alternadamente, uma vez que esta última implica termos pormenorizada compreensão de nosso eu e, portanto, de nossas identificações que levam os sujeitos a adotar posições particulares de agentes sociais. Pondera-se assim ser a variável do inconsciente, enquanto dimensão psíquica que funciona de acordo com suas próprias leis e processos, interessante de levar em conta, pois é uma baliza na teoria da identidade. Essas subjetividades e identidades emergem em determinadas “comunidades imaginadas”, portadoras de seus “mitos fundadores” e submersas em processos constantes de hibridização e de desterritorialização culturais. Nas decisões políticas sobre como e quais performances culturais intangíveis salvaguardar, esses aspectos devem ser levados em consideração, tendo em vista o reconhecimento da dinâmica cultural contemporânea. Acrescente-se que essas políticas não devem, colocando a questão de forma mais prosaica, chegar ao extremo de validar desejos inconscientes de desrespeito e destruição, posto que a utopia é a paz. E também não devem se ater aos impulsos obsessivos regressivos de desejar falar com, ou de chorar os mortos, pois a atualização e valorização do passado é apenas uma dimensão da construção das identidades. Nas políticas para o patrimônio cultural a preservação do passado é tão importante quanto a preservação do desejo e possibilidade de criação de experiência existencial e coletiva aqui e agora. Salvaguardar o patrimônio imaterial é, no limite, garantir condições de praticar e transmitir com liberdade (liberdade de criação é um direito e, no fundo, o maior patrimônio da humanidade). Os beneficiários das políticas devem ser, então, os agentes-produtores diretos do bem cultural, os performers. E não os produtores culturais – mediadores entre os primeiros e o mercado ou o Estado. E o que se deve preservar são as condições para a performance, e não tanto os produtos da performance. O processo está em curso, e o campo, em construção. Um fato é a dificuldade em estabelecer parâmetros para as jurisprudências e políticas concretas – pois patrimonializar é
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20 Zumthor, Paul. Performance, recepção, leitura. São Paulo: Cosac Naify, 2007.
ato político e jurídico. São feitas escolhas e alianças em campos em que se dão disputas de interesses vários. Observa-se, ainda, que o diálogo, o entendimento e busca de consenso na execução das políticas entre os segmentos sociais e o Estado estão comprometidos e dificultados também por incapacidade do próprio Estado em compreender e se adaptar aos códigos, condições e processos dos segmentos populares. Além dos percalços surreais que o Estado cria para si próprio na execução de suas políticas – os mecanismos estruturais de autosabotagem que agigantam as dificuldades em proporcionar cidadania plena e eqüidade socioeconômica a todos os segmentos. Esse, porém, é outro lado dessa história.
Letícia C. R. Vianna é doutora em Antropologia pelo Museu Nacional/UFRJ (1998), pesquisadora e professora universitária, tem livro e artigos publicados sobre cultura popular e patrimônio imaterial. Atualmente é pesquisadora colaboradora do Departamento de Antropologia da Universidade de Brasília e Técnica em Antropologia no Departamento de Patrimônio Imaterial do Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional - Iphan.
João Gabriel L. C. Teixeira é doutor em Sociologia pela University of Sussex (1984). Atualmente é professor-associado I da Universidade de Brasília, com pós-doutorados na New School for Social Research da cidade de Nova York e na Maison des Sciences de l´Homme, Paris Nord. Dedica-se à sociologia da arte, com ênfase em teoria e prática da performance, atuando principalmente nos seguintes temas: performance, cultura, arte, teatro e ensino.
Patrimônio imaterial, performance e identidade Letícia C. R.Vianna e João Gabriel L. C. Teixeira
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Cassaro. Perro Bioconcreto CinocĂŠfalo Cassaro, 2008. Youtube: http://www.youtube.com/watch?v= TiJbAVsWJbY Blog: http://biobildung.blogspot.com/
Questões para a arte hoje Janice Caiafa
Discutindo alguns problemas que se colocam para a arte no contexto das sociedades contemporâneas, argumentamos que uma nova configuração de poder impôs certos imperativos que caberia à arte em alguma medida desafiar. Mostramos como é um tipo especial de engajamento que é construído, tentando distinguir as qualidades ou intensidades da criação artística que se afirmam nesse confronto. Arte, poderes, tecnologia. Este texto é uma reelaboração da palestra apresentada na abertura da II Semana de Pesquisa e Arte do Instituto de Artes da UERJ. Era meu desejo registrar por escrito o momento para mim tão interessante e bem-vindo em que entrei em diálogo com colegas, alunos 1 Agradeço muito a Luiz Claudio da Costa, professor do Insituto de Artes da UERJ, o convite para proferir essa palestra. As partes 1 e 3, e os trechos finais da parte 4 são baseados em indicações que fiz no livro Nosso século XXI: notas sobre arte, técnica e poderes (Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2000).
e funcionários do Instituto.1 Gostaria que as pessoas presentes – que ficaram em minha memória pela atitude hospitaleira e pelas intervenções inteligentes – pudessem ter acesso também a algo mais tangível, assim como as que lá não estiveram e que são os leitores desta publicação. Com este título bem simples quis apenas indicar que abordaria questões que poderíamos levantar para a arte no contexto de nossas sociedades, no nosso presente marcado por determinados imperativos. Vivemos um momento de aceleração dos acontecimentos, em que as inovações técnicas se sucedem cada vez mais rapidamente, gerando atitudes, visões de mundo, decretando por vezes liquidações e superações. É uma época de imensos recursos, materiais e imateriais (de enormes possibilidades), e, simultaneamente, de ampla destruição – de animais, de plantas, do ar que se respira, de populações inteiras – e de experiências de toda sorte que, paradoxalmente, a própria multiplicação de recursos pode tender a obstar. Por outro lado, é importante ouvir o alerta de Foucault de que tendemos a supervalorizar a nossa época. Tendemos a exagerar a importância do tempo em que vivemos, como se ele fosse um momento especial e decisivo na história. Tendo no horizonte essa ressalva, é meu objetivo aqui distinguir algumas questões que dizem respeito, acredito, à arte neste nosso tempo tão cheio de possibilidades e de problemas. Tempo que não é, de fato, tão especial. Contudo, se nos guardamos dessa pompa de pensá-lo como único na história – e, sobriamente, o aceitamos como um momento com suas especificidades e sua importância, assim como outro qualquer –, podemos nos preocupar com ele, com nossa vida agora e com as possíveis perspectivas. Duração Para a arte e o pensamento é preciso um tempo de ressonâncias. Um poema pode produzir seus efeitos anos depois de lido porque sua ação não se esgota e não sacia no momento da
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leitura. De fato, a rigor, a leitura, a audição, a observação de uma obra de arte implicam abrigar as repercussões que a poética vai provocar. O poema volta como uma dádiva num lapso de tempo que pode cobrir toda uma vida. O pensamento também precisa de um tempo de elaboração que se inscreve na experiência do autor e do leitor. A figura da empresa na universidade trabalha contra isso. O imediatismo ditado pelo mercado e a exigência do aspecto “aplicado” para o saber vai contra o processo de criação na arte e no pensamento. Não que obras de arte não possam ser também mercadorias compráveis – enquanto livros, discos ou telas –, mas elas viverão sempre de outra coisa que não se inscreverá nesse circuito e mesmo trabalhará contra ele. Não é na relação de consumo que a arte chega a seu destinatário. O que é consumido como uma mercadoria se esgota no momento, mesmo que possa satisfazer. O problema é mesmo o fato de que satisfaz. Walter Benjamin observa que, diante de uma pintura, o olhar “não consegue saciar-se”. Ora, é a saciedade que põe fim ao desejo. Mas a obra de arte satisfaz o desejo com “alguma coisa que alimenta continuamente esse desejo”.2 A arte e o pensamento, acredito, inscrevem-se nesse tempo em que os efeitos não se esgotam no momento da sede, mas vão repercutir mais além e em seguida, muito depois,
2 Benjamin, Walter. Sobre alguns temas em Baudelaire. In Charles Baudelaire, um lírico no auge do capitalismo. Obras escolhidas III. Trad. José Carlos Martins Barbosa e Hemerson Alves Baptista. São Paulo: Brasiliense, 1995, p. 139.
num lapso que é o próprio domínio da criação. Walter Benjamin apontou como as técnicas de reprodução atingem em cheio esse lugar da experiência ao “trazer para perto” a obra, ao multiplicá-la, torná-la acessível e até disponível em excesso, ao oferecê-la até a saciedade. Esse processo, porém, não se dá de uma vez por todas e sem nuanças. O próprio Benjamin assinalou uma dimensão criativa no cinema e na vida urbana, duas figuras emblemáticas dessas mudanças. Se, por um lado, a inovação técnica favorece a relação de consumo, a fotografia e o cinema, por exemplo, conseguiram construir, por seus próprios meios e de diversas maneiras, uma singularidade que não se esgota nessa relação precária e que se apóia nas repercussões que é capaz de provocar. Referindo-se à fotografia, Barthes chama de punctum um recanto da imagem que vai exercer um fascínio justamente por não se colar a nenhuma explicação imediata – vai prender o observador numa relação duradoura de fruição.3 Serge Daney assinala que um filme pode produzir um souvenir-écran, o momento em que ele é forte porque produz uma imagem desafiadora da estética dominante e que vai ser a marca “inesquecível” daquele filme.4 São poéticas na fotografia e no cinema que vão perdurar na relação com as obras e necessariamente subtraí-las, nesses momentos, do circuito da saciedade e do esgotamento. De fato, todas as artes hoje têm que se haver com esse problema – as imposições que a técnica, em processo acelerado, estipula e, no mesmo golpe, os usos que contrariam tais imposições em nome de novas singularidades. O que se instaura com essas inovações e outras mais recentes, portanto, não é um destino da técnica, mas precisamente um novo problema que caberá doravante à arte e ao pensamento revolver, deslocar.
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3 Barthes, Roland. A câmara clara. Lisboa: Edições 70, 1981. 4 Daney, Serge. Devant la recrudescence des vols de sacs à main. Lyon: Aleas Éditeur, 1991, p. 60.
Há outra referência importante de Benjamin a essa duração que é a condição da arte e do pensamento. Trata-se da noção de pós-vida da obra de arte, desenvolvida em A tarefa do tradutor. A obra tem florescimento que vai além de seu tempo e, enquanto dura, ela muda, “tendências imanentes” se desenvolvem. A tradução ocorre nesse processo de maturação, ela provém do pós-vida do original. Por isso a questão para a tradução não é refletir o original numa relação de semelhança, mas ativar essas tendências fazendo a obra florescer. Assim, a rigor não poderia haver tradução de um texto informativo, porque a informação se esgota quando consumida. Haveria a transposição de uma língua para outra, mas não a tradução como modalidade, como Benjamin a descreve, que participaria dessa sobrevivência criadora da obra. De todos os estilos literários, a tradução é o que mais cuidaria de dar conta desse processo de maturação da obra – ela é um episódio da duração da obra e viria ativar precisamente suas repercussões. Em alguma medida, o original já aguardaria esse desdobramento da tradução, uma vez que as línguas manteriam entre si uma relação de “mútua suplementação”. Há entre elas parentesco que não envolve semelhança nem se define por identidade de origem. Vem de que elas se suplementam em seus “modos de intenção”, que são diferentes. Elas como que se impulsionam para fora na direção das outras, poderíamos dizer, por sua diferença. O sentido emergiria apenas aí, nessa suplementação mútua, estando em cada língua em estado de fluxo. A tradução ocorre nesse processo, lidando sempre com o estado de fluxo e a possibilidade de fazer o sentido emergir, às voltas com os estrangeirismos na linguagem. Ela se insere nessa relação de suplementação ao desenvolver o original em sua pós-vida. São ressonâncias da obra que a tradução atualiza. Benjamin diz que a idéia de vida ou 5 Benjamin, Walter. The task of the translator. Trad. Harry Zohn. In Illuminations. Nova York: Schoken Books, [1955], p. 71.
pós-vida da obra de arte deve ser tomada “com absoluta objetividade não metafórica”.5 É o tempo da arte e do pensamento: a distância na cronologia e na experiência é o solo para a relação criativa com a obra. Saciar-se é interromper esses processos. A criação é sempre uma tarefa de conservar, de salvar o instante do consumo imediato. É nesse sentido que entendo quando Serge Daney em Ciné-Journal diz que o cinema conserva. No prefácio a essa obra, Deleuze retraça a história do cinema segundo Daney até chegar ao confronto com a televisão, que é o que vivemos
6 Deleuze, Gilles. Lettre à Serge Daney: optimisme, pessimisme et voyage. Prefácio a Serge Daney, Ciné-Journal 1981-1986, reeditado em Pourparlers e na tradução brasileira Conversações (Rio de Janeiro: Editora 34, 2000).
agora.6 Esse confronto é a segunda morte do cinema. A primeira foi a guerra e culminou com o fascismo. A segunda morte do cinema passa pela televisão porque ela “é a forma sob a qual os novos poderes de ‘controle’ se tornam imediatos e diretos”. A televisão não herda a história do cinema – as “aventuras da percepção” que o cinema arriscou desde os primeiros momentos –, mas cresce dobrando-se a imperativos comerciais que vão obstar toda criação. Ela admira a técnica e se cola à ordem social; é “o social-técnico em estado puro”, segundo Deleuze. Esses comentários não procuram definir nenhuma vocação do meio cinema ou do meio televisão. Deleuze enfatiza que Daney quer fixar dois fatos: a televisão, que certamente poderia ou pode desenvolver por seus meios uma “função estética”, acabou por substituíla por “uma função social, função de controle ou de poder”. O cinema – esse é o segundo
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fato – apesar de ter-se aliado a poderes e mesmo os instaurado, conservou uma “função estética ou noética”, uma dimensão de arte e pensamento. Diferente do tratamento dado à imagem no tumulto da informação, a “aventura da percepção” é um trabalho com a alteridade e ultrapassa o mero recurso visual. Daney mostra como “a arte de inventar distâncias”, que é a questão do cinema, se reduz a uma ginástica visual na televisão, quando o zoom vem substituir o travelling.7 Não se vê ou não se entende mais a arte das distâncias nesse exercício de admiração da técnica. Por vezes os
7 Daney, Serge. Ciné-Journal 1981-1986. Paris: Cahiers du Cinéma, 1986, p. 213.
vídeos — em vez de se aliar ao cinema contra o funcionamento tevê – optam pela solução quantitativa de acumular cortes e movimentos, inflando essa ginástica visual, produzindo não imagem (se a entendermos como criação), mas informação. Disponibilidade Nossa época é marcada por valorização da disponibilidade, e isso afeta diretamente a arte e o pensamento. A figura do banco de dados é exemplar desse processo. As redes de informática costumam ser enaltecidas por esse aspecto quantitativo, pela imensidão dos recursos e pela profusão de informação que provocam. A palavra “disponível” tornou-se comum em nosso vocabulário. É interessante observar como a disponibilidade virou um fim em si mesma. Por exemplo, quando se acredita que se concluiu um trabalho, quando se “achou” o que se buscava na rede. O mero acesso pode substituir a leitura ou a escritura. Em conexão com isso, e para retomar o problema da arte, é notável como, paradoxalmente, os recursos mais exíguos podem favorecer a criação. Esse ponto evoca o que afirmam Deleuze e Guattari a respeito da literatura criadora ou revolucionária — que eles chamam de “menor” e que vem a ser, de fato, “as condições revolucionárias de toda literatura no seio daquela que chamamos de grande (ou estabelecida)”.8 Ela é pobre, faz com pouco e é assim que desenvolve a “sobriedade” adequada à criação. Não que devêssemos simples-
8 Deleuze, Gilles e Guattari, Félix. Kafka: por uma literatura menor. Trad. Júlio Castañon Guimarães. Rio de Janeiro: Imago, 1977, p. 28.
mente dispensar os novos recursos que a rede oferece, mas enamorar-se da profusão é equívoco que arremessa em celebração tola e obediente. Será sempre contra as dimensões do universal que se conseguirá traçar a linha singular da arte e do pensamento. O capitalismo vive muito de provocar grandes disponibilidades, seus investimentos serão cada vez mais do porte do universal. Interessa também que os vínculos sejam os mais precários, que se aposte no excesso, que a saciedade impeça a duração. Se conseguirmos estabelecer aí, nesses novos circuitos, outras relações, será certamente contra a crença fácil de que a disponibilidade é em si mesma generosa. A disponibilidade é, para mim, figura importante do poder contemporâneo. Podemos fazer outros usos dessas imposições, mas me parece que servem antes de tudo a exigências da época, no contexto das novas mutações do capitalismo. O poder moderno, descrito por Foucault, está cedendo lugar em parte a essas novas estratégias de dominação. Deleuze chamou esse novo poder de “controle”, em contraste com o poder disciplinar.9
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9 Deleuze, Gilles. Post-scriptum sur les societés de contrôle. Pourparlers. Paris: Les Éditions de Minuit, 1990.
Foucault mostrou como – no que ele chamou de sociedades disciplinares – era preciso 10 Foucault, Michel. Vigiar e Punir. Petrópolis: Vozes, 1995.
controlar o tempo e o corpo dos indivíduos.10 Tratava-se de uma vigilância permanente que demandava o confinamento ou, como precisa melhor em seguida, o seqüestro. As instiutições de seqüestro – a prisão (o grande modelo), a escola, o hospital, a fábrica, o quartel – realizam melhor esse poder, que de fato atravessa todo o tecido social. Ele mostra também que o poder desenvolve tais mecanismos de controle porque eles
11 Foucault, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro: Nau Editora, 2003 [1973].
permitem a proteção de uma nova forma material de riqueza.11 A riqueza no século XVIII investe-se em outra materialidade que não mais a monetária – são agora mercadorias, máquinas, matérias-primas, estoques que estão sob risco de depredação por parte de uma população que entra em contato físico com ela. No campo muda, na época, o regime de propriedade de terras, com a multiplicação da pequena propriedade, que precisa ser protegida da pilhagem camponesa. Os controles sociais do século XVIII surgem assim – para atender a uma nova forma de materialização da riqueza – e se institucionalizam. Vivemos hoje fortemente e a partir da Segunda Guerra Mundial o ocaso do confinamento. O poder não precisa mais seqüestrar para controlar. Os internatos foram em algum grau questionados e entraram em regime aberto ou semi-aberto – graças às lutas contra as disciplinas, mas em nome de novas estratégias de dominação, do desenvolvimento de outros mencanismos de controle mais eficazes. Agora o poder tem que trabalhar com a abertura. Há novidade também na forma material da riqueza. Não é mais tão importante vigiar as instalações das fábricas. O capital financeiro gera riqueza em operações abstratas de transformação de dinheiro em dinheiro, sem passar pela materialidade física. Essas operações precisam ser gerenciadas com instrumentos de longo alcance, reunindo imaterialidade e instantaneidade. A tecnologia da informática tem-nos servido para outras coisas, mas certamente vem em socorro dessa necessidade. Esse gerenciamento deve garantir a normalidade, o quotidiano dessas operações no terreno acidentado e quase vivo das emoções do mercado, e, ao mesmo tempo, as operações mais sombrias, chamadas ilegais e que fazem parte do sistema. Outra característica dessa nova situação estratégica é que não é preciso preocupar-se tanto com a produção, que foi em grande parte enviada ao Terceiro Mundo e se encontra garantida pela pauperização extrema desses trabalhadores e pela desassistencialização da população em geral, o que os torna todos dependentes do emprego e muito mais vulneráveis às manobras dos capitalistas. O poder vai então ocupar-se, antes de tudo, de garantir o consumo. Com todas essas mudanças, são novos instrumentos de controle que se desenvolvem. É preciso gerenciar e garantir as operações financeiras, ao mesmo tempo que inscrever de alguma forma sem confinar, ocupar o tempo das pessoas nesse regime de liberdade relativa. O tratamento aparentemente mais suave que as empresas desenvolvem em contraste com as manobras pesadas da fábrica é um desses instrumentos. Premiam, oferecem participação em troca de adesão.
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A comunicação por computador também veio em auxílio desses novos imperativos – de resto tem sido assim com a inovação técnica no capitalismo. Há uma dispersão que exige um poder igualmente dispersivo – mais fragmentado, mais molecularizado. Em contraste com as disiciplinas, a extensão da superfície de inscrição é enormemente ampliada. Os repertórios virtuais consistem num espaço sempre disponível, que se materializa a qualquer momento e que tem imenso alcance. O poder contemporâneo nos conclama a nos inscrever constantemente em seus repertórios, cuja forma exemplar é o banco de dados. E, ao fazê-lo, parece antes de tudo proporcionar, oferecer – diferentemente das disciplinas. Faz com que tudo isso não aparente ser exigências, mas oportunidades. Somos constantemente chamados a nos apresentar para uma exposição de fato muito mais ágil que as velhas fichas disciplinares da escola ou do hospital – em vista de sua amplitude, sua penetração e acessibilidade, além desse aspecto de oferecimento que conquista a adesão das pessoas às próprias condições de sua localização e controle. É uma estranha e nova forma de inclusão. Assim, respondemos a uma enquete on line ou televisiva, compramos com cartão ou pela internet, opinamos constantemente, reenviamos e-mails através de correntes, participamos de chats, de bancos de dados de todos os tipos, ou conversamos sobre qualquer coisa ou nada. Podemos fazê-lo por imposição de nosso trabalho por vezes, ou só pela ambição de alcançar algumas notoriedade, tornar nossa vida revelante por contá-la sem cessar em seus mínimos e desinteressantes detalhes. Sem precisar seqüestrar, o poder localiza e avalia. Essa é a nova forma de fixar as pessoas num aparelho de produção – produção de produção e produção de consumo, produção material e imaterial. Surge aí também nova ênfase que caracteriza o tipo de avaliação que se realiza nesses circuitos. O poder está menos preocupado com a forma de o indivíduo se conduzir, se comportar (como na normalização das disciplinas), e mais com sua colocação na superfície do consumo. Uma das metas desse método de inscrição é justamente evidenciar onde e como ele se coloca ali e induzi-lo a colocar-se. Não é mais o tipo psicológico, mas o perfil do consumidor. Cada vez mais as empresas aproveitam os arquivos gigantes e detalhados que se geram para detectar os desejos das pessoas e tranformá-las em clientes. Aproveitam também esses recursos poderosos de penetração para garantir a exploração do trabalho. O empregado é localizado a qualquer momento: durante as férias, na pausa obrigatória por lei (mas que a mesma legalidade revoga), às três da manhã. Todo o resto começa, afinal, a funcionar como empresa (escola, família) e essas atitudes perversas se tornam mais disseminadas ainda. Impõe-se à gestão pública que funcione cada vez mais como privada e que enverede por essas artimanhas de localização e controle. Os repertórios de inscrição começam a servir também para esvaziar as discussões corpo a corpo que faziam circular o poder. A celebração e a imposição das consultas por e-mail e as conversas por lista são as armas disfarçadas dos novos tiranos. Não só as idéias e as posições divergentes ficam mais fáceis de neutralizar, mas o problema bem objetivo das reivindicações trabalhistas recebe agora encaminhamento sumário que não é nada menos do que a imposição da vontade do patrão. Muitas pessoas que dependem de seu trabalho
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para viver já conheceram esse truque de que o poder hoje pode lançar mão. Só a pressão firme e concertada pode fazer pender a balança para o lado dos mais fracos. E essa pressão só vinga no espaço do confronto e da solidariedade, e em que não se está, por um momento que seja, na mira do patrão. Na superfície de supercomunicação a distância gera-se ao mesmo tempo a ilusão de que se interferiu em algo e a impossibilidade de construir o enfrentamento. Gabriel Tarde escreveu que a conversação é instrumento poderoso, temido 12 Tarde, Gabriel. A opinião e as massas. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
pelos déspotas, em que é possível “remastigar os atos do poder”.12 Pois os novos circuitos tem-nos impedido precisamente essa remastigação – e de forma perversa, já que fazem parecer que somos instigados a ingressar ali para justamente participar de alguma decisão ou dividir o poder. Todas essas artimanhas – a captura do desejo para o consumo, o esvaziamento das discussões e a neutralização das divergências – são tanto mais fáceis pelo aspecto soft desses circuitos. Trata-se de “colocações flexíveis”. O indivíduo sempre poderá deslocar-se, reconsiderar e realocar-se, desde que se inscreva. Ele existe ali como disponibilidade, justamente, como todo o resto (textos, imagens, etc.). A disponibilidade é o regime das novas inscrições do poder. Poder permissivo – as interseções possíveis com os deslocamentos são flutuantes mas, é verdade, “centralizáveis” no contexto dos imperativos desse novo controle. É certo que as pessoas encontram aí também alguma forma de expressão criadora ou contestadora. Aliás, nós aprendemos a desviar em certos momentos as disciplinas de seus terríveis objetivos e aproveitar alguma vantagem. Um dia usamos isso contra elas, obrigando a recuo. A exposição obrigatória dos novos circuitos pode servir e eventualmente serve a outros fins. É inegável também que o maior acesso à informação tem potencialidades criadoras. Mas, novamente, a profusão em si não garante esse resultado e pode mesmo obstá-lo. Há os que vêem nesses novos poderes dispersivos apenas dominação – são raros, mesmo passado o primeiro momento de tolo elogio dessas tecnologias –, outros vêem a liberdade. Evitando os dois extremos, calcados na lógica do tudo ou nada, é preciso notar que a abertura que se produz aí gera desde o primeiro instante efeitos de dominação. Tem uma primeira função de ampliar a superfície de inscrição para a grande contabilidade. Gera um novo tipo de vigilância ao mobilizar tanto as pessoas que produzem esses textos/sites/ imagens quanto as que os lêem/observam/consomem. O investimento na profusão produz efeito também muito característico dessas novas estratégias de poder. Há o preenchimento do tempo com loquacidade vazia que ocupa lugar significativo na vida das pessoas. É preciso estar constantemente opinando, registrando, interferindo – em chats, e-mails, respostas a enquetes, etc. A própria televisão hoje recorre também a esse modelo, ocupando as pessoas com perguntas e querendo, ela também, mostrar que proporciona participação em seus circuitos. Na situação de acesso imediato e de amplo alcance da internet se é facilmente atraído para esse reinado da opinião sobre tudo. E a primeira baixa nesse reinado da opinião é sem dúvida o pensamento. Deleuze
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diz que a filosofia luta contra a besteira (bêtise). Acho que precisamente a bobagem é muito investida nesses novos circuitos, embora haja outras coisas. Tudo precisa oferecerse como disponibilidade para ser consumido e, portanto, misturar-se à bobagem, entrar em seu circuito. A loquacidade vazia impede que algo importante seja dito. Para poder explorar as possibilidades criativas que essas inovações oferecem, seria preciso subtrair-se ao imperativo da loquacidade, creio, ao regime aparentemente generoso mas impositivo e limitador da disponibilidade. Interação A resposta muitas vezes ao emudecimento que algumas mídias podem provocar, como a televisão por exemplo, é a “interação”. Isso vai atingir em cheio a arte. A bandeira da interação nos chegou principamente e se impôs com a organização comunicativa que as redes de informática implicam. Esse seria o tipo de relação a se estabelecer com a informação – e, por extensão, com imagens, sons e textos encontrados nos livros, nas telas e outros lugares. Supõe-se, por exemplo, que o tempo que se despende nos circuitos da rede seria qualitativamente diferente do tempo de assistir à televisão porque ali o usuário interage com a máquina. Essa valorização da interação faz com que ela se torne um “modo”, um “desenlace” que vai afetar até a literatura e outras narrativas, e a arte em geral. A interação começou entre nós no programa televisivo Você decide, ainda de forma precária. Eram grandes telas nas praças de diversas cidades brasileiras com multidões se empurrando para decidir qual seria o final da pequena novela a que acabavam de assitir. Havia também os telefonemas de casa. Esse recurso de fazer o telespecatador telefonar para responder a uma pergunta ou dar uma opinião tornou-se hoje muito comum. E, muitas vezes, essas ligações são pagas e caras, sinalizando para parcerias bem-sucedidas entre as companhias telefônicas e as redes de televisão. Os e-mails são também bastante explorados. A televisão captura um recurso de outra tecnologia e o coloca a seu serviço, preconizando, aliás, a convergência multimídia tão propalada. Desenvolve-se a crença de que, se respondemos a uma mídia – e por extensão a uma obra –, necessariamente saímos da passividade, interferimos. O título Você decide, cuja diretividade algo ingênua ficou um pouco no passado, é à sua maneira bastante loquaz ao enunciar até hoje o resultado esperado com a interação. O que se passa, contudo, tanto na televisão quanto nos circuitos mais sofisticados da internet, nos mostra que de fato não decidimos nada. Enquanto estamos ocupados respondendo a algo que formularam para nós, aderimos de fato aos pressupostos dessas mídias. A única decisão seria recusar a pergunta ou dar resposta a outra pergunta. Mas parece que entre nós se impôs mesmo essa crença de que algo de importante se cria quando há interação, mesmo que no outro lado esteja um programa televisivo de claro apelo comercial ou um site irrelevante na internet.
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Há ainda entradas mais arriscadas desse novo modo que afetam diretamente a arte. Os livros infantis interativos são exemplo. Neles a criança é chamada a completar a história, e se acredita nas virtudes pedagógicas disso. Em vez de receber a história pronta, ela a criaria. O role playing game guarda o mesmo aspecto interativo. Trata-se de um jogo em que se incorporam personagens e vai-se criando a história a partir de indicações já estipuladas, mas sempre em interação. Com variações, são todos exemplos da mesma postura diante do que é criar e fazer criar. Vai-se produzindo a crença de que a literatura deveria abrir-se finalmente para esse modo da interação ou que as artes visuais deveriam fazer disso sua principal qualidade, resgatando o leitor/observador de sua passividade. Será, então, que estamos sendo passivos quando não “completamos” uma história, quando não retrucamos, por exemplo, a Dostoievsky? As grandes obras são necessariamente incompletas, mas não porque falte um final que seria preciso lhes fornecer. É por não se esgotarem no momento de sua aparição, por não se darem nunca de uma vez por todas, que elas perduram e continuam provocando ressonâncias. Completar é saciar-se (em alguns casos, “decidir” uma banalidade), e o processo ali se esgota. É quando a relação que estabelecemos com textos, sons e imagens, ao envolver a disponibilidade e a saciedade, pode ser, em plena profusão, empobrecedora. Em O narrador, Benjamin diz que a narração envolve sempre a vontade de recontar a his13 Benjamin, Walter. O narrador. Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In Magia e técnica, arte e política. Obras escolhidas. São Paulo: Brasiliense, 1993.
tória.13 Cada história não se completa no momento em que é contada, porque o ouvinte vai querer recontá-la, fazendo-a perdurar. A literatura assume esse aspecto da narração que aparece na tradição oral. Ao contrário do ponto final, a narração vive de um desejo de Sheerazade. Em As mil e uma noites as histórias se enlaçam, sempre remetendo a outra história. Aqui podemos pensar também a arte de ouvir, de ler ou de ver. O grande narrador conseguirá provocar esse desejo de recontar no ouvinte-leitor-obsevador, inclinação a que ele cederá “irresistivelmente”. Da parte do ouvinte, a atitude será de “esquecer-se de si”, ou seja, ouvir para recontar – para participar das ressonâncias da obra, para criar – implica entregar-se, ingressar na duração da obra sem a esgotar. O contrário, portanto, de consumir. Criar com a obra é experimentar com ela esse processo de ressonâncias. Não é o truque técnico de completá-la. Pôr um ponto final é tudo o que uma grande obra não precisa para repercutir na vida-obra do leitor. Trata-se de um equívoco assumir que a atitude de responder a uma história no livro, a uma imagem ou a uma configuração numa obra ou numa relação com a máquina em si mesma provoque a criação, mesmo que a dimensão dessa conversa seja imensa ou que as ligações sejam múltiplas e diretas. Essa multiplicação, aliás, pode estar apenas participando do elogio da disponibilidade e não produzir de fato multiplicidade. Tudo vai depender da qualidade dessas relações. Possibilitar uma relação ativa com uma obra – fazer criar – é impulsionar no processo de duração e ressonâncias. Seria preciso conseguir ensejar isso com a interação – o que pode ser possível, mas não está garantido.
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Campo criador Guattari utiliza a expressão “máquinas estéticas” ao falar da arte. A questão não é o artista como personalidade, como indivíduo privilegiado que pode mudar o mundo. Escreve: Não se trata de fazer dos artistas os novos heróis da revolução, as novas alavancas da história! A arte aqui não é somente a existência de artistas patenteados mas também de toda uma criatividade subjetiva que atravessa os povos e as gerações oprimidas, os guetos, as minorias...14
14 Guattari, Félix. Caosmose. Um novo paradigma estético. Rio de Janeiro: Editora 34, 1992, p. 115.
Podemos dizer que a arte é vista como um campo criador. O artista dele participa não como identidade, mas como singularidade, junto com outros componentes. E a arte participa de circuitos mais amplos, não é um setor fechado em sua especialidade, mantém relação com a exterioridade – não só com outras linguagens, mas também com alguma coisa que não é linguagem, como outras lutas, outros acontecimentos. É a arte como um fluxo a combinar-se com outros. São dois pontos que vemos surgir aqui e que são importantes para os confrontos que assaltam o domínio da criação hoje. O primeiro é que arte não se esgota na questão autoral. O segundo é que ela se combina sempre com outros fluxos. Está presente na concepção da arte como campo criador e não nas malhas da dimensão autoral a idéia de enunciação coletiva. Deleuze e Guattari criam e desenvolvem essa noção, ressoando também indicações de Bakhtin e Volochínov.15 A enunciação é uma construção coletiva, a subjetivação na linguagem não é individuada. Deleuze e Guattari entendem “enunciação coletiva” não só indicando que falamos mergulhados no diálogo, ou seja, com outros, mas também, mais radicalmente,
15 Deleuze, Gilles e Guattari, Félix. 20 novembre 1923 – Postulats de la linguistique. In Mille Plateaux. Capitalisme et schizophrénie. Paris: Les Éditions de Minuit, 1980.
na medida em que em nossas próprias palavras, naquilo que dizemos em nosso nome, há sempre um pouco das palavras de outrem. Daí a autoria não ser jamais plena e as vozes se organizarem em agenciamentos ou arranjos, que eles chamam de agenciamentos coletivos de enunciação. Bakhtin e Volochínov também indicam esse aspecto coletivo da enunciação ao explorar as diversas modalidades de relato do discurso de outrem.16 Descrevem-nas e buscam sua ocorrência em documentos históricos e sobretudo no textos literários, em especial nas literaturas francesa e russa. Estão convencidos da centralidade das atividades de apreensão e transmissão do discurso de outrem no exercício da linguagem. No limite, eles também indicam que as palavras de outrem nunca se dissolvem completamente nas nossas. Elas insistem aí como componentes ativos, integrando nossa enunciação. Na arte, o caráter coletivo da enunciação é especialmente forte. Tomar o autor como grande gênio, fonte única e plena de um obra obscurece o trabalho arriscado com a expressão que é questão na arte e que invoca tantas outras vozes na voz do artista, tantos estrangeirismos e linguagens diversas. Se a enunciação coletiva é aspecto central da linguagem, no caso da arte essa multiplicidade de vozes que afeta a todos nós é potenciada, e é por aí que a arte consegue força contestatória e engajamento – na media em que se exerce e se concebe como campo criador.
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16 Bakhtin, Michail e Volochínov, Valentin. Marxismo e Filosofia da Linguagem. São Paulo: Editora Hucitec, Annablume, 2002 [19291930].
É particularmente importante, contudo, distinguir essa característica da arte – de explorar em especial a enunciação como coletiva ao realizar-se num campo criador – do gesto simples de não assinar uma obra. Essa confusão produz ainda mais equívocos na apreciação dos recursos de nossa época, ao celebrar, por exemplo, o anonimato de textos e imagens na internet. Gostaria de distinguir cuidadosamente o desafio à autoria na arte desse truque muitas vezes inócuo. No espaço virtual da rede não é difícil que conteúdos transitem sem autor. E, ainda, seja em nome de uma liberdade que tantos anunciam com estrondo, seja mesmo impensadamente, muitos há que tomam esses conteúdos para si, autorizando-se a copiá-los. Literalmente autorizando-se, pois passam a ser seus autores. Esse problema vem afetando, até mesmo a sala de aula. Ora, interessa ao capitalismo fazer também da produção escrita e visual disponibilidade. No trânsito de textos sem autor à mercê de qualquer apropriação – situação que de fato ainda não se impôs, mas existe e faz sentido no contexto da rede –, a princípio só é possível ver a mistura indiferenciada. A escritura é tratada como informação. Ela é trazida imediatamente para perto (no sentido de Benjamin) e, portanto, prontamente obstada em sua duração. Será apropriada e ali se esgotará, e a tendência é a colagem substituir a criação. Trazer para perto ou tornar disponível é eliminar a distância de que a obra necessita. A arte não habita o banco de dados que tem, poderíamos dizer, forte aspecto de choque. Seu circuito é o de incitar à criação, como quando se quer recontar uma narrativa – e não apropriar-se dela ou completá-la. A narrativa também vive da distância – ver, ouvir e ler como gestos criativos implicam sempre a constituição da alteridade, que não pode vir do excesso de proximidade, em que não se possa divisar o narrador e em que a narrativa seja apropriável e não recontável. Sou contagiado pelo processo de criação quando sou chamado a criar a partir da obra e não a dela dispor como de uma informação. Porque ela já fez um percurso, e de um modo que só ela poderia fazer – é sua singularidade. Só me resta agora fazê-la durar, produzindo um caminho também singular. É toda uma outra coisa que apontam Deleuze, Guattari e Foucault quando problematizam 17 Cf. sobretudo: Foucault, Michel. O que é um autor? (Lisboa: Editora Passagens, 1992) e A ordem do discurso (São Paulo: Edições Loyola, 1996); Deleuze, Gilles. Critique et Clinique (Paris: Les Éditons de Minuit, 1996); Deleuze e Guattari. Kafka: por uma literatura menor (Rio de Janeiro: Imago, 1976) e Introduction: Rhizome, in Mille Plateaux, op.cit.
a autoria.17 Foucault questiona os limites tênues que configuram uma obra e seu vínculo sempre precário com a marca autoral. Reivindica mesmo para si próprio a heteronímia e o anonimato, e aponta que um autor não pode ser chamado a ser coerente com seu livro anterior, até porque o processo da escritura o transforma. O tornar-se outro através da obra não é de fato incomum na literatura. Fernando Pessoa produz estilos diferentes com seus heterônimos, a alteridade aparece diretamente na poesia, o texto ingressa no devir – Fernando Pessoa ele mesmo vira um heterônimo. O pseudônimo pode ser também um recurso para driblar a autoria, e vários escritores o utilizaram. Os recursos do anonimato, contudo, só são criadores quando produzem ressonâncias na própria obra (em qualquer forma de arte); eles são antes figura de um trabalho mais amplo com a expressão – esse sim a marca criadora em qualquer texto, seja ele de autor consagrado ou de um homem “infame”, de um anônimo.
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Deleuze e Guattari mostram como Kafka fez recuar o lugar do sujeito da enunciação e criou uma literatura da enunciação coletiva, dando precedência ao trabalho com a expressão de várias maneiras: ao introduzir intensidades como a música desterritorializada que não se presta a ser pólo de uma relação estrutural simples; ao produzir personagens desterritorializados na narrativa; ao utilizar o alemão “menor” de Praga, etc. O autor recua para dar lugar a um trabalho sempre arriscado com a expressão. Questionar a dimensão autoral não é escrever uma banalidade e não a assinar. O que não quer dizer que um autor de nome obscuro não possa produzir uma literatura revolucionária. Ao contrário, foi tornando-se de certa forma obscuro que Kafka produziu sua obra. Digamos antes tornando-se “menor”, na acepção de Deleuze e Guattari, que já abordamos. Tratase antes de tudo de uma posição que se atinge, ou de um devir em que os autores mais modestos poderiam ingressar.18 Essa posição não é obtida com o mero gesto de não assinar um texto. É conquista cuja recompensa é a criação – que vai contagiar outros, ser dádiva para outros, produzir alhures devires. Vemos nesse processo a marca da singularidade, e não da identidade. Não nos interessa ter textos de Kafka, Emily Dickinson ou Rimbaud disponíveis e anônimos. A atitude criadora
18 Para Deleuze e Guattari, “devir” é uma comunicação transversal com um heterogêneo. Embora sejamos definidos por categorias identitárias e dicotomias (homem x mulher, negro x branco), os devires sem cessar nos colocam em contato com outras intensidades (por exemplo, outro sexo, outra época ou espécie) e desterritorializam essas representações.
advinda de uma singularidade nos toca quando a deixamos ressoar e nos incitar à criação, num exercício também singular. Que pode ter o nosso nome: um nome é um efeito, uma figura provisória e tênue. A expressão deveria ser vigorosa o suficiente para empunhá-lo dessa maneira, como pura singularidade. Dessa forma, ele poderia até servir para poupar a escritura de ingressar no tumulto da disponibilidade. É até imaginável que o nome enquanto efeito ou singularidade pudesse ser um protetor da obra, mais uma palavra no exercício criador da escritura. Engajameto O segundo ponto, a relação com outros fluxos, nos leva ao quinto e último movimento, o engajamento na arte. A arte combina-se com outros fluxos. Está presente aqui também uma forma particular de conceber a linguagem. Acredito que muitas vezes para fugir de concepções simplistas da linguagem como não mediada, de um empirismo ingênuo, tendeu-se a autonomizar os fatos da linguagem, desligá-los de sua relação com o não linguageiro ou, como diz Deleuze, com um “estado de coisas”. Essa posição pode aparecer na lingüística, na filosofia, na antropologia, na crítica de arte, na teoria da comunicação, e produz efeitos de poder tangíveis. Na antropologia, acho que se manifesta mais claramente no que se chamou de “antropologia interpretativa”, como desenvolvo no ensaio A pesquisa etnográfica.19 A interpretação, aliás, é uma figura central dessa concepção de linguagem. De forma geral, podemos dizer que a perspectiva da interpretação – que diz, por exemplo, que as culturas são textos a ser interpretados – dá muito poder ao decifrador. Aquele a quem cabe apontar e decifrar essa mediação adquire muita autoridade, e as culturas ficam nas mãos dele. As implicações da atitude interpretativa para a etnografia têm sido exploradas por alguns autores,20 e no ensaio mencionado retomo e desenvolvo essa problemática.
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19 Caiafa, Janice. Aventura das cidades: ensaios e etnografias. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2007. 20 Cf. sobretudo: Clifford, James e Marcus, George (orgs.). Writing Culture: The Poetics and the Politics of Ethnography. Berkeley / Los Angeles / London: Universisty of California Press 1986. Clifford, James. A Experiência Etnográfica. Antropologia e Literatura no Século XX. Gonçalves, José Reginaldo Santos (org.). Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2002.
Para a arte, a autonomização dos fatos da linguagem pode trazer, por exemplo, a hipertrofia da dimensão autoral, a celebração, portanto, do artista ou do crítico como privilegiado ou autoridade, perdendo-se ou fazendo recuarem todos esses aspectos potentes de que falamos. Conceber a linguagem autonomizada, sem vínculo com uma exterioridade não linguageira fecha a obra e a entrega a seu autor ou decifrador. Ao contrário, seria interessante perceber que tantos outros participam da obra, incluindo alguns que não escrevem, compõem ou pintam. A arte como campo criador e não como linguagem autonomizada é um fluxo entre outros, com suas características singulares. E é precisamente quando a arte não se fecha a esses outros fluxos que desenvolve sua singularidade ou especificidade. É um tipo de “engajamento”. Certamente não se trata de arte engajada no sentido mais comum, partidário, que tomaria o social como objeto. O engajamento aqui é a relação com todos esses fluxos. Assumir o fluxo da arte como único ou autônomo é de alguma forma furtar-se ao grande impulso da arte e do pensamento: investir em conteúdos sociais transformadores por meio da própria expressão criadora. Criação entendida não apenas ou sobretudo como inovação num certo campo, produto pessoal de um certo autor. Num sentido forte, a criação começa quando há resistência. A literatura como processo, escrevem Deleuze e Guattari, invoca sempre uma raça 21 Deleuze e Guattari, 1977, op.cit.
bastarda oprimida, um povo que resiste e que se produz com a própria escritura.21 É somente se o fluxo da arte não se autonomiza que a criação nesse sentido forte se torna possível. A arte ocorre sempre com outros fluxos. Engajar-se é acolhê-los. Dizendo de modo mais simples, a arte não pode ignorar as imposições do presente e as lutas e os desafios que se colocam. Até porque a afetam diretamente, afetam diretamente o trabalho com a expressão, o próprio fazer da arte. Hoje não se cessa de declarar a morte da literatura, do cinema, da filosofia, da pintura, e, parece, até a falência da sala de aula. Os decretos de morte baseiam-se na lógica simplista da “superação” – estão em consonância com as imposições do capital, que precisa declarar a obsolescência de tudo que poderia contrariá-lo. A arte se engaja justamente porque precisa se afirmar para além desses comandos, ou aquém, onde não a possam capturar. Para a arte e o pensamento é fundamental não passar totalmente para o presente, não se atualizar totalmente. A arte não pode coincidir com o atual, no sentido de se colar ao consenso que predomina num certo momento. Ela é o contrário da moda e da publicidade, que captam o que já está e o fazem circular. A arte não se inscreve nessa idéia rasa de presente, mas traz o passado e o futuro para abrir o consenso dominante. É assim que se engaja, é assim que fica atenta aos desafios de seu tempo, às possibilidades que se abrem tanto quanto às imposições que é preciso desafiar.
Janice Caiafa é doutora em antropologia pela Universidade de Cornell, EUA. É poetisa, professora da Escola de Comunicação da UFRJ e pesquisadora do CNPq. Publicou, entre outros, Aventura das cidades: ensaios e etnografias e Jornadas Urbanas (Editora FGV) e Cinco Ventos e Ouro (7Letras). Questões para a arte hoje Janice Caiafa
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Phil Collins. They shoot horses, 2004. Vídeoprojeção em dois canais sincronizados, a cores, com áudio, 2 x 420min. Cortesia do artista.
A virada social: colaboração e seus desgostos Claire Bishop
Claire Bishop lança-se à tarefa de discutir, analisar e comparar criticamente, enquanto arte, os projetos de colaboração, que se têm multiplicado nos últimos anos. Por um lado porque essas práticas, que se desenvolvem como eventos sociais, publicações, oficinas e performances não se distanciam muito das práticas políticas de inclusão social. Por outro, diz Bishop, porque a crítica de arte, na falta de critérios, os tem julgado a partir da ética. Entretanto, diz ainda, os melhores exemplos de arte baseada na colaboração social tentam pensar o estético e o sociopolítico juntos, sem os submeter à ética. Apoiada em Jacques Rancière, defende o regime estético enquanto habilidade para pensar a contradição, ou seja, a relação sempre confusa entre autonomia e heteronomia. Arte colaborativa, projetos relacionais, ações criativas. O canal de tevê na internet para idosos envolvidos em um projeto de Tradução Jason Campelo. Revisão técnica Gisele Ribeiro.
moradias em Liverpool (Tenantspin, 1999) do Superflex; Annika Eriksson convidando pessoas a comunicar suas idéias e habilidades na Feira de Arte Frieze (Do you want an audience? 2003); A Parada Social, para mais de 20 organizações sociais em San Sebastián (Social Parade, 2004) de Jeremy Deller; Lincoln Tobier treinando moradores de Aubervilliers, a nordeste de Paris, para produzir programas de rádio de meia hora (Radio Ld’A, 2002); uma clínica de aborto flutuante, A-Portable, do Ateliê Van Lieshout (2001); o projeto de Jeanne van Heeswijk, que visa transformar um shopping center condenado em centro cultural para os moradores de Vlaardingen, em Roterdã (De Strip, 2001–2004); as oficinas de Lucy Orta em Joanesburgo (e em outros lugares) que ensinam novas habilidades de costura e moda a desempregados e discutem solidariedade coletiva (Nexus Architecture, 1995–); um espaço para a vizinhança improvisado em um terreno vazio em Echo Park, Los Angeles (Construction Site, 2005) do coletivo Temporary Services; Pawel Althamer tirando um grupo de adolescentes “difíceis” de seus lares, no distrito operário de Bródno, em Varsóvia, (inclusive seus próprios dois filhos) e os levando para passear em sua exposição retrospectiva, em Maastricht (Bad Kids, 2004); Jens Haaning, produzindo um calendário que apresenta retratos em preto-e-branco de refugiados na Finlândia que aguardam o resultado de seus pedidos de asilo (The Refugee Calendar, 2002). Esse catálogo de projetos é apenas uma amostra da recente onda de interesse artístico na coletividade, colaboração e no compromisso direto com grupos sociais específicos.
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Apesar de tais práticas terem obtido, na maior parte das vezes, perfil relativamente fraco no mundo da arte comercial – projetos coletivos são de comercialização mais difícil do que obras de artista individuais e também estão menos propensos a ser “obras” do que eventos sociais, publicações, oficinas ou performances –, ocupam presença crescentemente conspícua no setor público. A expansão sem precedentes das bienais é fator que certamente contribuiu para essa mudança (foram estabelecidas 33 novas bienais, só nos últimos 10 anos, a maioria em países até recentemente considerados periféricos ao mundo da arte internacional), assim como o novo modelo de agências gerenciadoras de encomendas, dedicadas à produção de arte experimental comprometida com o domínio público (Artangel em Londres, Skor na Holanda e a Nouveau Commanditaires na França são apenas algumas delas que me vêm à mente). Miwon Kwon, em sua história crítica One Place After Another: Site-Specific Art and Locational Identity (2002), argumenta que a obra direcionada a comunidades específicas assume as críticas à arte pública heavy metal como ponto de partida para tratar esses sites como algo cujo enquadramento é social, e não formal ou fenomenológico. O espaço intersubjetivo constituído através desses projetos torna-se o foco – e meio – da investigação artística. Esse domínio expandido de práticas relacionais atualmente é conhecido por uma grande variedade de nomes: arte socialmente engajada, arte baseada em comunidades, comunidades experimentais, arte dialógica, arte litoral, participatória, intervencionista, arte baseada em pesquisas ou colaborativa. Tais práticas estão menos interessadas em uma estética relacional do que nas recompensas criativas de uma atividade colaborativa – seja trabalhando com comunidades preexistentes, seja estabelecendo sua própria rede interdisciplinar. Datar o surgimento dessas práticas do início dos anos 90 é tentador;
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Phil Collins. They shoot horses, 2004. Vídeoprojeção em dois canais sincronizados, a cores, com áudio, 2 x 420 min. Cortesia do artista.
foi nessa época que a queda do comunismo privou a esquerda dos últimos vestígios de uma revolução que outrora vinculara o radicalismo político e o estético. Muitos artistas agora não fazem mais distinção entre sua obra dentro ou fora da galeria. E mesmo figuras bem consolidadas e comercialmente bem-sucedidas, como Francis Alÿs, Pierre Huyghe, Matthew Barney e Thomas Hirschhorn, todos se voltaram rumo à colaboração social como extensão de sua prática conceitual ou escultural. Apesar de os objetivos e produções desses vários artistas e grupos variarem enormemente, todos eles estão ligados pela crença na criatividade da ação coletiva e nas idéias compartilhadas como forma de tomada de poder. Tal heterogêneo panorama de obras socialmente colaborativas forma a princípio o que temos de avant-garde nos dias de hoje: artistas que usam situações sociais para produzir projetos desmaterializados, antimercadológicos, e politicamente engajados, que levam adiante o apelo modernista de mesclar a arte à vida. Para Nicolas Bourriaud, em Relational Aesthetics (1998), texto crucial acerca da prática relacional, “a arte é o lugar que produz uma sociabilidade específica”, mais precisamente porque ela “estreita o espaço das relações, ao contrário da tevê”. Para Grant H. Kester, em outro texto relevante, Conversation pieces: community and communication in Modern Art (2004), a arte é colocada, unicamente, para contra-atacar um mundo em que “estamos reduzidos a uma pseudocomunidade atomizada de consumidores, com as sensibilidades entorpecidas pelo espetáculo e pela repetição”. Para esses e outros defensores da arte socialmente engajada, a energia criativa de práticas participativas re-humaniza – ou pelo menos desaliena — uma sociedade entorpecida e fragmentada pela instrumentalidade repressiva do capitalismo. Mas a urgência desta tarefa política levou a uma situação na qual tais práticas colaborativas são automaticamente percebidas como gestos artísticos de resistência igualmente importantes: não há possibilidades de haver obras de arte colaborativa fracassadas, malsucedidas, não resolvidas ou entediantes porque todas são igualmente essenciais à tarefa de fortalecer os elos sociais. Na mesma medida em que sou largamente solidária a tal ambição, também sustento que é crucial discutir, analisar e comparar tais trabalhos como arte, criticamente. Essa tarefa crítica 1 New Labour refere-se à “renovação” do partido dos trabalhadores britânico, Labour Party, segundo seu Manifesto defendido por Tony Blair durante as eleições gerais de 1997. (N.R.T.)
é particularmente urgente na Grã-Bretanha, onde o movimento do New Labour1 usa de retórica quase idêntica para dirigir políticas de inclusão social. Ao reduzir à arte a informação estatística acerca de públicos-alvos e “indicadores de performance”, o governo prioriza o efeito social em detrimento das considerações a respeito da qualidade artística. A aparição de critérios pelos quais julgar práticas sociais não é auxiliada pelo impasse atual entre os descrentes (estetas que rejeitam essas obras, por considerá-las marginais, desencaminhadas e carentes de qualquer tipo de interesse artístico) e os crentes (ativistas que rejeitam as questões estéticas, por considerá-las sinônimos de hierarquia cultural e de mercado). Aqueles primeiros, em sua versão mais extrema, condenar-nos-iam a um mundo de pinturas e esculturas irrelevantes, enquanto estes últimos têm a tendência à
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automarginalização; a ponto de inadvertidamente reforçar a autonomia da arte, impedindo, desse modo, qualquer reaproximação produtiva entre arte e vida. Haverá alguma situação em que esses dois lados possam se coadunar? A crítica mais séria que surgiu em relação à arte socialmente colaborativa foi organizada de maneira particular: a virada social na arte contemporânea incitou uma virada ética na crítica da arte. Isso é evidenciado na atenção intensificada no modo como a colaboração é empreendida. Em outras palavras, os artistas estão sendo crescentemente julgados por seus processos de trabalho – o grau em que eles suprem bons ou maus modelos de colaboração – e criticados por qualquer sinal de possível exploração que falhe em representar “completamente” seus temas, como se isso fosse possível. Tal ênfase no processo em detrimento do produto (ou seja, meios sobre fins) é justificada por sua oposição à predileção do capitalismo pelo contrário. O ultraje indignado direcionado a Santiago Sierra é exemplo proeminente dessa tendência. Porém, tem sido desanimador ler a crítica, também baseada nessa equação, direcionada a outros artistas: acusações de superioridade e egocentrismo são dirigidas a artistas que, trabalhando com participantes para concretizar um projeto, não permitem que tal projeto surja por meio da colaboração consensual. Os escritos em torno do coletivo de artistas turcas Oda Projesi dão claro exemplo de como julgamentos estéticos têm sido suplantados por critérios éticos. Oda Projesi é um grupo de três artistas que desde 1997 têm baseado suas atividades em um apartamento de três cômodos no distrito de Gálata, em Istambul (Oda Projesi significa “Projeto Cômodo”2 em turco). O apartamento fornece a plataforma para projetos gerados pelo coletivo em cooperação com seus vizinhos, como a oficina para crianças com o pintor turco Komet; ou um piquenique comunitário com o escultor Erik Göngrich; ou uma parada para crianças, organizada pelo grupo de teatro Tem Yapin. As integrantes do Oda Projesi alegam querer proporcionar um contexto para a possibilidade de intercâmbio e diálogo, motivadas pelo desejo de integrar-se com as redondezas. Elas insistem em afirmar que não estão se empenhando em melhorar ou sanar uma situação – um dos folhetos do projeto contém o slogan “permutar não mudar” – apesar de perceber claramente que seu trabalho é uma oposição gentil. Ao trabalhar diretamente com seus vizinhos, organizando oficinas e eventos, elas querem, evidentemente, produzir um tecido social mais criativo e participativo. Falam em criar “espaços em branco” e “buracos” frente a uma sociedade superorganizada e burocrática, e em ser “mediadores” de grupos de pessoas que normalmente não têm contato uns com os outros. Já que muito do trabalho do Oda Projesi existe no nível da educação artística e de eventos comunitários, podemos ver suas integrantes como membros dinâmicos de uma comunidade que levam arte a um público mais amplo. É importante que estejam abrindo espaço para um tipo de prática não-baseada-em-objetos na Turquia, um país cujas academias e mercado de arte ainda estão, em sua maioria, voltados para a pintura e escultura. E pode-se ficar muito satisfeito – como eu fiquei – que tenham sido três mulheres que
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2 Segundo a autora, em inglês, “Room project”. (N.R.T.)
se incumbiram dessa tarefa. Porém, seu gesto conceitual de reduzir o status autoral ao mínimo possível em última instância acaba tornando-o inseparável da tradição de arte da comunidade. Mesmo quando transposto para a Suécia, Alemanha e outros países em que o Oda Projesi foi exposto, não há quase nada que o diferencie de outras práticas socialmente engajadas, as quais acabam girando em torno de fórmulas previsíveis, como oficinas, discussões, refeições, exibições de filmes e caminhadas. Talvez o motivo disso seja o fato de o valor estético não ser válido para o Oda Projesi. Quando entrevistei o grupo para a revista Untitled (primavera de 2005), perguntei em que critérios elas baseavam seu trabalho. Responderam-me que julgavam suas ações a partir das decisões que tomavam acerca de onde e com quem iriam colaborar: eram as relações dinâmicas e sustentadas que lhes forneciam suas metas de sucesso, e não considerações estéticas. De fato, por sua prática ser baseada em colaboração, o Oda Projesi considera a estética uma “palavra perigosa” que não deveria ser trazida à discussão. Isto me pareceu uma resposta curiosa: se a estética é perigosa, esse não seria mais um motivo para que ela fosse interrogada? A abordagem ética do Oda Projesi é adotada pela curadora sueca Maria Lind em artigo recente acerca do trabalho. Lind é uma das defensoras de práticas políticas e relacionais mais articuladas, e ela empreende seu trabalho curatorial com agudo compromisso com o social. Em seu artigo a respeito do Oda Projesi, publicado na obra de Claire Doherty’s From Studio to Situations: Contemporary Art and the Question of Context (2004), ela nota que o grupo não está interessado em exibir ou mostrar arte, mas em “usar a arte como meio para criar e recriar novas relações entre pessoas”. E segue debatendo o projeto do coletivo em Riem, perto de Munique, no qual colaboraram com a comunidade turca local e organizaram um grande chá; visitas guiadas conduzidas pelos moradores; cortes de cabelo e reuniões de Tupperware; além de um comprido rolo de papel, no qual as pessoas escreviam e desenhavam, a fim de estimular conversas. Lind compara esse esforço ao Bataille Monument, de Hirschhorn, em 2002, sua famosa colaboração com uma comunidade predominantemente turca em Kassel (esse sofisticado projeto incluía um estúdio de tevê, uma instalação sobre Bataille, e uma biblioteca temática, com os interesses do surrealista dissidente). Lind observa que, contrariamente a Hirschhorn, as artistas do Oda Projesi são melhores, por causa do status igualitário que atribuem a seus colaboradores: “Seu objetivo [de Hirschhorn] é criar arte. Para o Bataille Monument ele já havia preparado e, em parte, também executado um plano para o qual precisava de ajuda em sua implementação. Seus participantes foram pagos para trabalhar e agiram como executores, não como co-criadores.” Lind segue argumentando que a obra de Hirschhorn, ao usar participantes para criticar o Monumento como gênero artístico, foi justificadamente censurada por “expor” e tornar exóticos grupos marginalizados, contribuindo, portanto, para uma forma de pornografia social. Ao contrário, escreve ela, o Oda Projesi “trabalha com grupos de pessoas em seus próprios arredores imediatos e permite que exerçam grande influência no projeto”. Vale a pena olhar com atenção os critérios de Lind. Sua avaliação é baseada na ética da renúncia autoral: a obra do Oda Projesi é melhor do que a de Hirschhorn porque exemplifica
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um modelo superior de prática colaborativa. A densidade conceitual e a significância artística dos respectivos projetos são deixadas de lado, em favor da avaliação da relação do artista com seus colaboradores. A relação (supostamente) de exploração em Hirschhorn é comparada negativamente à generosidade inclusiva do Oda Projesi. Em outras palavras, Lind desvaloriza o que poderia ser interessante no trabalho do Oda Projesi como arte – o possível logro de se fazer do diálogo um meio, ou a importância de se desmaterializar um projeto tornando-o um processo social. Ao contrário, sua crítica é dominada por julgamentos éticos a respeito do procedimento de trabalho e da intencionalidade. Exemplos semelhantes podem ser encontrados no que se escreve acerca do Superflex, Eriksson, van Heeswijk, Orta e muitos outros artistas que trabalham na tradição da melhoria social. Tal imperativo ético encontra apoio na maioria dos escritos teóricos sobre a arte que colabora com pessoas “reais” (ou seja, aqueles que não são amigos do artista ou outros artistas). A curadora e crítica Lucy R. Lippard, ao concluir seu livro The lure of the local: senses of place in a multicentered society (1997), uma discussão a respeito da arte site-specific a partir de uma perspectiva ecológica/pós-colonial, apresenta um “lugar ético” com oito tópicos, para artistas que trabalham com comunidades. Conversation Pieces, de Kester, enquanto articula lucidamente muitos dos problemas associados com tais práticas, defende, contudo, uma arte de intervenções concretas, na qual o artista não ocupa posição de maestria pedagógica ou criativa. Em Good intentions: judging the art of encounter (2005), o crítico holandês Erik Hagoort sustenta que não devemos evitar julgamentos morais acerca de tal arte, mas que precisamos pesar a apresentação e representação das boas intenções do artista. Em cada um desses exemplos, a intencionalidade autoral (ou sua humilde falta) é privilegiada, em detrimento da discussão acerca da significância conceitual da obra como forma social e estética. Paradoxalmente, isso leva à situação na qual não só coletividades como também artistas individuais são louvados por sua renúncia autoral. E isto pode explicar, em algum grau, por que a arte socialmente engajada se libertou muito da crítica artística. A ênfase é deslocada da especificidade desagregadora de uma dada obra para um conjunto generalizado de preceitos morais. Em Conversation Pieces Kester argumenta que a arte de consulta e “dialógica” necessita de uma mudança em nosso entendimento do que seja arte – distante do visual e sensório (que são experiências individuais) e rumo à “troca e negociação discursiva”. Ele nos desafia a tratar a comunicação como uma forma estética, mas, em última instância, fracassa em defender tal argumento e parece contentar-se perfeitamente em permitir que um projeto de arte socialmente colaborativo possa ser julgado como bem-sucedido se funcionar no nível da intervenção social, apesar de ser posto a pique no nível da arte. Na ausência do comprometimento com o estético, a posição de Kester se junta ao sumário familiar de tendências intelectuais inauguradas pelas políticas de identidade: respeito pelo outro, reconhecimento da diferença, proteção das liberdades fundamentais e um modo de correção política inflexível. Como tal, também se constitui em rejeição a qualquer arte que possa ofender ou aborrecer seu público – mais claramente a vanguarda histórica, em cuja
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Phil Collins. They shoot horses, 2004. Vídeoprojeção em dois canais sincronizados, a cores, com áudio, 2 x 420min. Cortesia do artista.
estirpe Kester deseja, não obstante, situar o engajamento social como sendo uma prática radical. Ele critica o Dadá e o Surrealismo, que buscavam “chocar” os espectadores para que fossem mais sensíveis e receptivos ao mundo, por presumir que o artista era portador privilegiado de insights. Eu argumentaria que tais desconforto e frustração – juntamente ao absurdo, à excentricidade, dúvida ou puro prazer –, podem, ao contrário, ser elementos cruciais para o impacto estético de uma obra e são essenciais para a abertura de novas perspectivas em nossa condição. Os melhores exemplos de arte baseada na colaboração social produzem esses efeitos – e muitos outros – que precisam ser lidos paralelamente a intenções mais legíveis, como a recuperação de um vínculo social fantasmático ou o sacrifício da autoria em nome de colaboração “verdadeira” e respeitosa. Alguns desses projetos são bem conhecidos: o Musée Précaire Albinet e o 24h Foucault (ambos de 2004), de Hirschhorn; Cinema for the unemployed, 1998, de Aleksandra Mir; When faith moves mountains, 2002, de Alÿs. Em vez, de se posicionarem em linhagem ativista, na qual a arte é guiada para efetuar transformações sociais, esses artistas têm estreita relação com o teatro de vanguarda, performance, e com a teoria arquitetônica. Talvez como conseqüência, eles tentam pensar o estético e o sociopolítico juntos, em vez de os submeter, ambos, à ética. O artista britânico Phil Collins, por exemplo, integra totalmente essas duas preocupações em seu trabalho. Convidado a se hospedar em Jerusalém, ele decidiu organizar uma maratona de disco-dancing para adolescentes em Ramallah, registrada por ele para produzir uma instalação de vídeo de dois canais chamada They shoot horses, em 2004. Collins pagou a nove adolescentes para que dançassem continuamente durante oito horas, durante dois dias consecutivos, em frente a um muro cor-de-rosa choque, ao som de uma brega
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coletânea de grandes sucessos da música pop das últimas quatro décadas. Os adolescentes são cativantes e irresistíveis, enquanto passam da animação exuberante ao tédio e, finalmente, à exaustão. As letras banais das músicas, que falam de êxtase amoroso e rejeição, adquirem conotações pungentes tendo em vista sua resistência frenética à maratona e à interminável crise política, às quais estão presos. Segue-se sem dizer que They shoot horses é uma representação perversa do site para o qual o artista foi convidado e ao qual responde: os territórios ocupados nunca são explicitamente mostrados, mas estão onipresentes como moldura. Tal uso do hors cadre tem propósito político: a decisão de Collins de apresentar os participantes como sendo adolescentes globalizados e genéricos torna-se evidente quando consideramos as confusas indagações freqüentemente ouvidas quando se assiste ao vídeo em público: como pode os palestinos conhecerem a Beyoncé? Como pode eles calçarem Nike? Ao esvaziar a obra da narrativa política direta, Collins demonstra o quão rapidamente esse espaço é preenchido por fantasias geradas pela produção e disseminação seletivas de imagens do Oriente Médio por parte da mídia (uma vez que o espectador ocidental típico parece estar condenado a ver jovens árabes seja como vítimas, seja como fundamentalistas medievais). Além disso, ao usar música pop tão familiar aos palestinos quanto aos ocidentais, Collins também nos dá um comentário acerca da globalização que é notavelmente mais matizado do que a maior parte da arte política orientada ao ativismo. They shoot horses joga com as convenções da benevolente prática socialmente colaborativa (cria uma nova narrativa para seus participantes e reforça o vínculo social) mas as combina com convenções visuais e conceituais do reality show televisivo. A apresentação da obra em uma instalação de duas telas, que dura uma jornada de trabalho de oito horas, subverte os dois gêneros, no seu uso enfático da sedução por um lado, e na duração extenuante por outro. A obra do artista polonês Artur Zmijewski, assim como a de Collins, freqüentemente gira em torno da criação e registro de situações difíceis – e às vezes torturantes. No vídeo de Zmijewski intitulado de The Singing Lesson I, de 2001, um grupo de estudantes surdos é filmado cantando o “Kyrie” da Missa Polonesa, de Jan Maklakiewicz, de 1944, numa igreja de Varsóvia. A cena de abertura é assombrosamente difícil: uma imagem do interior da igreja, em toda a sua elegância simétrica neoclássica, é compensada pela voz cacofônica e distorcida de uma jovem. Ela é rodeada pelos colegas de classe que, incapazes de ouvir seus esforços, conversam uns com os outros em linguagem de sinais. A edição de Zmijewski chama constantemente atenção para o contraste entre o coro e seu ambiente, sugerindo que os paradigmas religiosos de perfeição continuam a informar nossas idéias de belo. Uma segunda versão de The Singing Lesson foi filmada em Leipzig em 2002. Dessa vez, os estudantes surdos entoam uma cantata de Bach, junto com um membro do coro profissional e acompanhados pela orquestra de câmara barroca na Igreja de Saint Thomas, onde Bach, que lá está enterrado, trabalhara como diretor de coro. A versão alemã foi editada para revelar um lado mais brincalhão do experimento. Alguns estudantes assumem a tarefa de interpretar seriamente a música; outros desabam em gargalhadas. Seus gestos em linguagem de sinais, durante o ensaio,
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são replicados pelos do maestro: duas linguagens visuais que servem para equiparar dois tipos de música produzidos pelo experimento de Zmijewski – as harmonias da orquestra e o berrar forçado do coro. A edição do artista, combinada à minha inabilidade em entender linguagem de sinais, parece ser fundamental para o entendimento da posição do filme: só poderemos ter acesso limitado às experiências emocionais e sociais do outro, e a opacidade de tal conhecimento obstrui qualquer análise fundada em tais suposições. Em vez disso, somos convidados a ler o que nos é apresentado – uma montagem perversa de maestro, músicos e coro surdo que produzem algo mais complexo, perturbador e matizado que liberação de uma criatividade individual. Protestar-se-á com o argumento de que tanto Collins quanto Zmijewski produzem vídeos para consumo em uma galeria, como se o espaço fora dela fosse, automaticamente, mais autêntico – lógica essa que tem sido desenredada em definitivo por Kwon em One place 3 Esse termo refere-se ao texto La communauté désoeuvrée (em inglês, The inoperative community), de Jean-Luc Nancy, discutido por Miwon Kwon em seu livro. (N.R.T.)
after another. Sua defesa da arte que “inopera”3 uma comunidade pode ser proveitosamente aplicada à prática do artista britânico Jeremy Deller. Em 2001, ele organizou a reencenação de um evento-chave para a greve de mineiros ingleses de 1984 – um confronto violento entre mineiros e a polícia na vila de Orgreave, em Yorkshire. The Battle of Orgreave foi a reencenação desse confronto em um dia, realizada pelos antigos mineiros e policiais, em conjunto com inúmeras sociedades de reencenação histórica. Apesar de a obra parecer conter duplo elemento terapêutico (tanto os mineiros quanto os policiais envolvidos participaram, alguns deles trocando papéis), The Battle of Orgreave não parecia curar uma ferida, mas reabri-la. O evento de Deller foi tanto politicamente legível quanto absolutamente sem sentido: evocou a potência vivencial de demonstrações políticas, mas só para expor um mal ocorrido, com 17 anos de atraso. A ocasião reuniu as pessoas para relembrar e recontar um evento desastroso, mas tal relembrança ocorreu em circunstâncias mais similares a uma quermesse, com banda de metais, barracas de salgados e crianças correndo de um lado para outro. Esse contraste é particularmente evidente no documentário feito da The Battle of Orgreave, que faz parte de um filme de uma hora de duração de Mike Figgis, cineasta de esquerda que usa o trabalho explicitamente como veículo de acusação ao governo Thatcher. Trechos do evento de Deller são mostrados entre comoventes entrevistas com os ex-mineiros, e o choque entre tons é desconcertante. The Battle of Orgreave encena uma ofensa policial, mas a maneja em clave diferente, já que a ação de Deller ao mesmo tempo foi e não foi um encontro violento. O envolvimento das sociedades de reencenação histórica é fundamental nessa ambigüidade, uma vez que sua participação elevou de modo simbólico os eventos relativamente recentes de Orgreave ao status de história inglesa, ao mesmo tempo em que chama atenção para esse lazer excêntrico, no qual batalhas sangrentas são replicadas entusiasticamente, como diversão social e estética. O evento como um todo poderia ser entendido como uma pintura histórica contemporânea que demole tanto a representação quanto a realidade. Operando em nível simbólico menos carregado, o projeto The Baudouin experiment: a deliberate, non-fatalistic, large-scale group experiment in deviation, de Carsten Höller, reali-
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zado em 2001, é, em comparação, surpreendentemente neutro. O evento tomou como seu ponto de partida um incidente de 1991, quando o antigo rei Bauduíno da Bélgica abdicou de seu trono por um dia, para permitir que uma lei de aborto, a qual ele não aprovava, passasse. Höller trouxe um grupo de 100 pessoas, fez com que elas se sentassem sobre as bolas prateadas do Atomium, em Bruxelas, por 24 horas e abandonassem sua vida normal por um dia. Providenciaram-se provisões básicas (móveis, comida, banheiros), mas fora isso não havia qualquer meio de contato com o mundo exterior. Apesar de conter alguma semelhança com reality shows como Big Brother, a ação social não foi registrada. Essa recusa em documentar o projeto foi uma extensão do interesse progressivo de Höller pela categoria da “dúvida”. The Baudouin Experiment forma sua reflexão mais aprofundada dessa idéia até o momento. Sem a documentação de tal projeto anônimo, poderíamos crer que essa obra existiu? Em retrospecto, a ilusão do evento de Höller é similar à incerteza que podemos sentir diante da documentação de uma arte socialmente engajada que nos pede para aceitar suas alegações de diálogo e tomada de poder político significativos com base na confiança. Nesse contexto, o Baudouin Experiment foi um evento de inação profunda, ou de “ativismo passivo” – uma recusa à produtividade do dia-a-dia, assim como recusa a instrumentalizar a arte, como forma de compensação por alguma falha social percebida. Deller, Collins, Zmijewski e Höller não oferecem a escolha ética “correta”, não abraçam o ideal cristão do auto-sacrifício; ao contrário, agem em seu desejo sem as restrições incapacitantes da culpa. Dessa maneira, seu trabalho junta-se à tradição de situações altamente autorais que fundem a realidade social a artifícios cuidadosamente calculados. Essa tradição necessita ser escrita; talvez começando com a Dada-Season,4 na primavera de 1921, em que uma série de manifestações buscava envolver o público parisiense. O evento mais destacado de todos foi uma “excursão” (organizada por André Breton, Tristan Tzara, Louis Aragon, entre outros) à Igreja de Saint Julien le Pauvre, que levou mais de 100 pessoas, apesar da chuva pesada. O tempo inclemente abreviou a excursão e impediu que um “leilão de abstrações” fosse realizado. Nessa excursão dadá, assim como nos exemplos acima, as relações intersubjetivas não eram fins em si mesmas, mas serviam para desdobrar um nó mais complexo de preocupações acerca do prazer, visibilidade, engajamento e das convenções da interação social. Os critérios discursivos da arte socialmetne engajada são, no presente, tirados de uma analogia tácita entre o anticapitalismo e a “boa alma” cristã. Nesse esquema, o autosacrifício é triunfante: o artista deve renunciar à presença autoral em prol da concessão aos participantes, para que falem por seu intermédio. Tal auto-sacrifício é acompanhado pela idéia de que a arte deve retirar-se do domínio estético e fundir-se à práxis social. Conforme observou o filósofo francês Jacques Rancière, essa denegação da estética ignora o fato de que o sistema de arte tal como o conhecemos no Ocidente – o “regime estético da arte”, inaugurado por Friedrich Schiller e pelos românticos, e ainda operativo até a atualidade – é precisamente fundado sobre uma confusão entre a autonomia da arte (sua
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4 Em francês, Grande Saison Dada. (N.R.T.)
posição removida da racionalidade instrumental) e sua heteronomia (a indistinção entre arte e vida). Desatar esse nó – ou ignorá-lo ao buscar fins mais concretos para a arte – é perder o fio da meada, uma vez que o estético é, de acordo com Rancière, a habilidade de pensar a contradição: a contradição produtiva do relacionamento da arte com a transformação social, caracterizada de maneira precisa por aquela tensão entre a fé na autonomia da arte e a crença na arte como algo inextricavelmente atado à promessa de um mundo melhor por vir. Para Rancière, a estética não precisa ser sacrificada no altar da transformação social, já que ela contém inerentemente tal melhoria como promessa. As implicações auto-obliteradoras da posição do artista/ativista trazem à mente a personagem Grace de Dogville, a provocação de 2003 de Lars von Trier: seu desejo em servir a comunidade local é inseparável da culpa por sua posição privilegiada, e seus gestos exemplares provocam, de maneira perturbadora, um mal apenas erradicável por outro mal ulterior. O filme de Von Trier não apresenta moral direta, simples, mas articula – por meio de um reductio ad absurdum – a aterrorizante implicação provocada pela posição de auto-sacrifício. Alguns considerarão Dogville uma delimitação perversa através da qual se expressam reservas acerca da prática ativista, mas boas intenções não devem conferir imunidade à análise crítica. A melhor arte consegue (assim como Dogville) cumprir a promessa da antinomia, que Schiller considerava a própria raiz da experiência estética, e não se rende a gestos exemplares (porém relativamente ineficazes). As melhores práticas colaborativas dos últimos 10 anos tratam dessa força contraditória entre a autonomia e a intervenção social, e refletem sobre esta antinomia em ambas, na estrutura da obra e nas condições de sua recepção. É na direção dessa arte – apesar do quão desconfortável, exploratória ou confusa possa parecer à primeira vista – que devemos nos virar na busca de alternativa aos sermões bem-intencionados que hoje em dia se disfarçam de discurso crítico sobre a colaboração social. Tais sermões nos empurram, sem querer, na direção de um regime platônico, no qual a arte é valorada por sua verdade e eficácia educacional, em vez de nos convidar – como Dogville fez – a confrontar considerações mais obscuras, dolorosas e complicadas sobre nossa condição.
Claire Bishop atualmente é professora-assistente do Departamento de História da Arte da Universidade Warwick, Reino Unido. Entre 2001 e 2006, foi professora e tutora de Teoria Crítica no Curating Contemporary Art do Royal College of Art, Londres. Também ministrou cursos na Universidade de Essex e na Tate Modern, além de ter lecionado em cursos de curta duração na Cidade do México e em Havana. Foi crítica de arte do jornal Evening Standard, de Londres, entre 2000 e 2002. Contribui regularmente para revistas e periódicos de arte, tais como Artforum, October e Tate Etc. Além disso, publicou recentemente Installation Art: A Critical History (Londres: Tate, 2005) e Participation (Londres: Whitechapel/ MIT Press, 2006), este último uma antologia de textos fundamentais sobre a idéia de participação social na arte, desde os anos 50 até hoje.
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Uma crítica sem plumas – A propósito de Negerplastik de Carl Einstein Roberto Conduru
Em torno de Negerplastik, livro publicado em 1915, o texto apresenta brevemente Carl Einstein (1885-1940), intelectual e ativista políticocultural que atuou como poeta, escritor, historiador e crítico de arte, editor e tradutor. Ao fim, lança questões sobre a pertinência da edição do texto em português, no Brasil, hoje. Carl Einstein, modernismo, história da história da arte. Carl Einstein nasceu em Neuwied, na Alemanha, em 1885. De família Máscara. Artista suku. República Democrática do Congo, madeira e fibras. / Máscara antropomorfa. Artista shira, punu ou lumbo. Gabão, madeira. / Máscara antropomorfa. Artista de um grupo étnico não identificado (“Dan”). África, madeira, 23 cm. / Figura antropomorfa. Artista ejagham, clã bakor. Nigéria, basalto, 75 cm. / Máscara antropomorfa. Artista shira, punu ou lumbo. Gabão, madeira. / Máscara facial. Artista baulé ou yohuré. Costa do Marfim, madeira, 29 cm. / Máscara antropomorfa. Artista baulé. Costa do Marfim, madeira. / Máscara facial. Artista senufo. Mali ou Costa do Marfim, madeira, 31 cm. / Máscara antropomorfa. Artista kuba. República Democrática do Congo, madeira. / Máscara humana. Artista pende. República Democrática do Congo, madeira. / Máscara antropomorfa. Artista baulé. Costa do Marfim, madeira. / Máscara antropomorfa. Artista baulé. Costa do Marfim,madeira, 36 cm. / Máscara antropomorfa. Artista de um grupo étnico não identificado. Norte da República Democrática do Congo, madeira. / Máscara. Artista Yoruba. Nigéria, madeira, 31 cm. / Máscara. Artista baulé. Costa do Marfim, madeira. As referências das imagens aqui publicadas foram pesquisadas por Ezio Bazoni e Jean-Louis Paudrat, em 1990. BAZONI, Ezio; PAUDRAT, Jean-Louis. “Liste des oeuvres illustrant Negerplastik (édition de 1915)”. In: EINSTEIN, Carl. La sculpture nègre. (ed. Liliane Meffre) Paris: L’Harmattan, 1998, pp. 109-118. 1 Einstein, Carl. Negerplastik. Leipzig: Verlag der Weissen Bücher, 1915. A palavra negerplastik já foi traduzida como “escultura negra”, em francês e em espanhol, e como “escultura africana”, em inglês. Einstein, Carl. La Sculpture nègre (Negerplastik). In Méditations, outono de 1961, pp. 93-114; –. Negerplastik (La sculpture nègre). In Qu’est-ce que la sculpture moderne? Paris: Centre Georges
judia, foi criado em Karlsruhe e, depois, passou a viver em Berlim, onde freqüentou a Universidade de Berlim, estudando filosofia, filologia, história e história da arte, que cursou, de modo irregular, com Heinrich Wölfflin, Kurt Breysig e Georg Simmel, entre outros. No período compreendido entre a segunda metade da década de 1900 e o final dos anos 20, viveu entre a Alemanha e a França, com um breve interregno na Bélgica (1916-18), até se estabelecer em Paris, a partir de 1928. Foi casado com Maria Ramm, entre 1913 e 1920, e com Lyda Guévrekian, a partir de 1932. Além de se ter dedicado à crítica e à história da arte, tem obra literária composta de poemas, romance, peça teatral, roteiro cinematográfico.
Além de Negerplastik,1 publicou outros estudos sobre arte da África, especialmente Afrikanische plastik (Plástica africana ou Escultura africana), de 1921, e À propos de l’exposition à la galerie Pigalle (A propósito da exposição na galeria Pigalle), de 1930.2 Entre as obras de Einstein sobre arte moderna, devem ser destacados dois livros. Die Kunst des 20 (A arte do século XX) foi publicado em 19263 e reeditado em 1928, 1931 e 1988, sendo uma das primeiras histórias da arte moderna, uma “obra-prima de síntese histórica” na avaliação de Georges Didi-Huberman;4 uma breve sentença desse texto deixa ver como arte e política andavam pari passu em suas reflexões: “A velocidade futurista é precursora da energia fascista.”5 O outro livro é Georges Braque, de 1934,6 sobre seu artista preferido, obra com a qual, como anunciou em carta de 1922 dirigida a DanielHenry Kahnweiller, ele pretendia dar fim “a esses malditos textos sobre arte”, externando seu cansaço com a crítica.7 O que acabou se confirmando, pois é sua última obra sobre arte publicada em vida. De sua relação tensa com o campo da história da arte também é significativo o fato de ter recusado o convite para ocupar a cadeira de história da arte na Bauhaus, em 1924, que recebeu apesar de não ter doutorado.8 Entre suas realizações literárias, podem ser destacados: o romance Bebuquin oder die Dilettanten des Wunders (Bebuquin ou os diletantes do milagre), de 1912,9 considerado
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a primeira obra literária cubista; a peça teatral Die Schlimme Botschaft (A má notícia), de 1921,10 uma versão contemporânea da Paixão de Cristo que lhe rendeu ataques antisemitas e um processo por blasfêmia na República de Weimar; o livro de poemas Entwurf einer Landschaft (Esboço de uma paisagem), de 1930,11 editado por Kahnweiler com litografias de Gaston-Louis Roux. Einstein foi co-autor do roteiro de Toni, filme de Jean Renoir rodado nos anos 30, do qual também foi responsável pela direção artística. Colaborador de diversas publicações (Die Opale, Hyperion, Pan, Die weissen Blätter, Die Aktion), teve intensa atuação como editor: em 1912, com a revista Neue Blätter, apresentou obras literárias francesas; em 1919, editou com Georg Grosz o hebdomadário políticosatírico Der blutige Ernst; em 1925, com Paul Westheim, o Europa-Almanach, reunindo contribuições de artistas dos domínios da pintura, arquitetura, literatura, música, teatro, cinema, moda. E participou de outra experiência crucial no campo artístico europeu: com Georges Bataille, Georges Wildenstein, George-Henri Rivière e Michel Leiris, em 1929 fundou, a revista Documents – Doctrines – Archéologie – Beaux-Arts – Ethnographie, para a qual contribuiu com textos e indicou a colaboração de etnólogos alemães. Foi, ainda, tradutor, vertendo ao alemão desde contos e lendas da África às cartas de Van Gogh a seu irmão Theo, obras de Paul Valéry e sobre Henri de Toulouse-Lautrec e Maurice Utrillo. Ou seja, além de escritor de vanguarda e intelectual atuante em múltiplos campos, Einstein foi um mediador cultural, um verdadeiro ativista. A de Einstein é, em muitos sentidos, uma crítica entre guerras. Em paralelo à atuação como escritor, empreendeu intensa ação política, tendo participado do “Conselho dos Soldados”, em Bruxelas, durante a Primeira Guerra Mundial, e se alistado à coluna Durruti, na Espanha, em 1936, ao lado dos anarco-sindicalistas (CNT-FAI), participando de muitas batalhas. De volta a Paris, em 1939, foi detido pelos nazistas, enviado a um campo em Bordeaux e liberado devido a sua idade avançada. Impossibilitado de retornar a Paris, de emigrar para algum país anglo-saxão e de escapar pela Espanha, Einstein cometeu suicídio jogando-se no rio Gave de Pau, perto de Lestelle-Bétharram, na França, em 1940. *
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Negerplastik foi escrito no início de 1914 e publicado em 1915, em Leipzig, quando Einstein estava internado em um hospital militar, cuidando de ferimentos na cabeça decorrentes de sua participação como soldado na Primeira Guerra Mundial. O texto foi acompanhado de um álbum com 119 ilustrações de obras majoritariamente provenientes da África e de algumas da Oceania, cujas imagens foram publicadas sem referências (proveniência, data, material, tamanho, técnica, coleção etc.), talvez porque seu autor não pudesse completar a obra e acompanhar sua edição. Segundo Liliane Meffre:
Pompidou, 1986, pp. 344-353; –. La sculpture nègre. In –. La sculpture nègre. (Liliane Meffre ed.). Paris: L’Harmattan, 1998, pp. 15-48; –. La escultura negra. In –. La escultura negra y otros escritos. (Liliane Meffre ed.). Barcelona: Gustavo Gili, 2002, pp. 27-59; –. African sculpture. In Flam, Jack, Deutch, Miriam (eds.). Primitivism and Twentieth-Century Art: a Documentary History. Berkeley; Los Angeles: University of California Press, 2003, pp. 7791. Optamos por publicar o título original de modo a manter a amplitude da designação forjada pelo autor quando justapôs os termos neger e plastik. O primeiro se refere à negritude de modo genérico, tal como era empregado à época; o segundo termo significa tanto escultura, especificamente, quanto plástica, indicando a realidade concreta e objetiva da forma. Cabe observar que a terceira das cinco seções nas quais o texto é dividido tem como título “Religion und afrikanische Kunst” (Religião e arte africana) e que, seis anos depois, Carl Einstein publicou outra obra sobre o tema com o título Afrikanische plastik (Plástica africana ou Escultura africana). No texto de 1915, ele explora as diferenças entre Neger e Afrikanische e entre Plastik e Kunst, respectivamente, no jogo entre título e entretítulo; no título do livro de 1915 prefere a designação genérica, enquanto no entretítulo dessa obra e no título do livro de 1921 opta por se referir especificamente à África. Einstein, Carl. Negerplastik. Leipzig: Verlag der Weissen Bücher, 1915; –. Afrikanische Plastik. Berlin: Wasmuth, 1921. 2 Einstein, Carl. Afrikanische plastik. Berlin: Wasmuth, 1921; –. A propos de l’exposition de la galerie Pigalle. Documents, n. 2, 1930. 3 Einstein, Carl. Die Kunst des 20. Berlin: Propylaen, 1926. 4 Didi-Huberman, Georges. O anacronismo fabrica a história: a inatualidade de Carl Einstein. In Zielinsky, Mônica (org.). Fronteiras: arte, crítica e outros ensaios. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2003, pp. 34-35. 5 Apud Meffre, Liliane. Carl Einstein et la problematique des avant-gardes dans les arts plastiques. Berne: Peter Lang, 1989, p.68. 6 Einstein, Carl. Georges Braque. Paris: Editions des Chroniques du Jour, 1934. (M. E. Zipruth trad.) 7 Apud Wolf, Sabine. Quelques repères à propos de Carl Einstein (1885-1940). In Einstein, Carl. Bebuquin oder die Dilettanten des Wunders. Berlin-Wilmersdorf: Verlag Die Aktion, 1912, p. 127. 8 Apud Didi-Huberman, Georges. Op. cit., p. 23, n. 11.
Naquela época, a distinção entre as diferentes artes primitivas não era muito estrita e tampouco muito essencial, como bem explica
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9 Einstein, Carl. Bebuquin oder die Dilettanten des Wunders. Op. cit.
10 Einstein, Carl. Die Schlimme Botschaft. Rowohlt, 1921.
Kahnweiller (em suas Conféssions Esthétiques, de 1963): ‘Negerplastik
11 Einstein, Carl. Entwurf einer Landschaft. Paris: Galerie Simon, 1960.
censurá-lo por isto. Se tratava da descoberta plástica destas artes, não
12 Meffre, Liliane. Escritos de Carl Einstein sobre arte africano. In Einstein, Carl. La escultura negra y otros escritos. (Liliane Meffre ed.) Barcelona: Gustavo Gili, 2002, p. 20, 130. 13 Idem. Negerplastik. Munchen: Kurt Wolff, 1920. 14 A esse respeito, ver Meffre, Liliane. Escritos de Carl Einstein sobre arte africano. Op. cit., p. 20.
de Einstein (...) não distingue arte da África e da Oceania. Não se deve de etnografia. Sua classificação podia esperar’.12 Entretanto, quando da reedição do livro, em 1920,13 feita já com a supervisão de Einstein, foram incluídas 116 imagens, embora ainda sem legendas14 – o que sugere a decisão consciente do autor de não intervir muito nessa obra, talvez por não ter sido o responsável pelas imagens na edição original e porque já estivesse elaborando Afrikanische plastik, que publicou no ano seguinte e é um livro no qual há descrições de algumas obras e trechos de lendas africanas. Com efeito, a partir dessa obra, percebe-se “uma virada em direção à etnologia”, como observou Liliane Meffre, pois, contrariamente ao que ele afirma em Negerplastik, passou a defender que “a colaboração de etnólogos e historiadores da arte
15 Apud idem, ibidem, pp. 23-24.
é indispensável”.15 A esse respeito, cabe lembrar que, em 1930, se tornou, junto com Paul Rivet e Michel Leiris, um dos primeiros titulares da Sociedade de Africanistas de Paris. Em 1990, Ezio Bazoni e Jean-Louis Paudrat publicaram, como resultado de minuciosa pes-
16 Ver Bazoni, Ezio; Paudrat, Jean-Louis. Liste des oeuvres illustrant Negerplastik (édition de 1915). In Einstein, Carl. La sculpture nègre. (Liliane Meffre ed.) Paris: L’Harmattan, 1998, pp. 109-118. 17 Bazoni, Ezio; Paudrat, Jean-Louis. Note sur ‘un torse’. In Einstein, Carl. La sculpture nègre. Op. cit., p.64. 18 Idem, ibidem, pp. 64-65.
quisa, uma lista propondo referências para as imagens do álbum,16 que entendem como o “primeiro álbum consagrado a ela (arte africana) na qualidade de arte”.17 Segundo eles, nesse álbum “surpreende a exígua presença das coleções públicas européias (...). Essa restrição tem sua explicação: a iconografia da obra parece ter sido extraída quase exclusivamente da fototeca do marchand József Brummer, que patrocinou a obra”.18 Reconstituindo percursos das obras ilustradas em coleções e seus ecos em outras obras – de marchands, artistas e colecionadores como József Brummer, Charles Vinnier, Sergei I. Schukin, Frank Burty Haviland, Maurice de Vlaminck, Vladimir Markov, Jacob Epstein, Fernand Léger e Henry Moore – Bazoni e Paudrat oferecem traços da influência que Negerplastik exerceu
19 Idem, ibidem, p. 69.
“na imaginação dos criadores ‘modernos’”.19 Com efeito, Negerplastik é o primeiro livro a apresentar de modo livre de preconceitos racistas artefatos provenientes da África como obras de arte. Einstein recusa, logo de saída, a visão preconceituosa dos africanos como seres inferiores e o “falso conceito de primitivismo”, pois os entende como frutos da ignorância e álibis para a opressão injusta, compreendendo que “o juízo até então atribuído ao negro e a sua arte caracterizou muito mais quem emitia tal juízo do que o seu objeto”. Para Liliane Meffre, é uma das “obras matrizes do século XX. Com análise formal audaciosa e inovadora, essa obra conferiu aos
20 Meffre, Liliane. Introduction. In Einstein, Carl. La sculpture nègre, op. cit., p. 7.
objetos artísticos africanos o status definitivo de obras de arte”.20 Entretanto, Negerplastik é mais do que um livro de história da arte africana. Para analisar o valor da arte da África, Einstein a situa em relação à arte ocidental, conectando-a com obras modernas, o gótico, o estilo romano-bizantino, entendendo-a em sentido universal. Discute questões relativas à visão e percepção, criação e recepção artística, escultura, colecionismo, psicologia, história, crítica, teoria. Assim, Negerplastik é simultaneamente um livro de história, crítica e teoria; livro de arte da África, de arte moderna, de arte.
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São evidentes os vínculos da obra com a modernidade artística: seja com a teoria, seja com a produção artística moderna. O livro é mais um indício do interesse por objetos trazidos da África que se observa, desde o início do século XX, entre artistas ditos fauvistas e cubistas, marchands, colecionadores e pensadores, que provocou outros olhares e reflexões; como ele disse: “Certos problemas que se colocam para a arte moderna provocaram uma abordagem mais escrupulosa da arte dos povos africanos.” Com frases curtas, deixa ver como pensa de um só golpe a arte da África, a dinâmica historiográfica, a contemporaneidade da arte e sua história: “Como sempre (...) um processo artístico atual criou sua história”; “o que assume importância histórica é sempre função do presente imediato”. Dinâmica crítica que, no seu caso, vinha de par com o movimento inverso. Einstein aproxima, sem igualar, arte da África e moderna; diferencia, por exemplo, o papel da abstração e do realismo nas esculturas africanas e em obras modernas. Nas obras de Auguste Rodin e dos futuristas, não vê a plasticidade real, sem as “plumas do realismo”, que percebe e analisa no poderoso realismo da forma, tanto na arte negra quanto na arte moderna que, nesse texto, defende implicitamente. Embora não cite Pablo Picasso e Georges Braque, são as obras cubistas desses artistas as referências com as quais pensa a escultura da África e quando diz: Faz alguns anos, vivemos na França uma crise decisiva. Graças a um prodigioso esforço de consciência, percebeu-se o caráter contestável desse procedimento. Alguns pintores tiveram suficiente força para desviar-se de um métier feito mecanicamente; uma vez desligados dos procedimentos habituais, eles examinaram os elementos da visão do espaço para encontrar o que bem poderia engendrá-la e determiná-la. Os resultados desse importante esforço são bem conhecidos. Naquele momento descobriu-se a escultura negra e reconheceu-se que, em seu isolamento, ela havia cultivado formas plásticas puras.” Negerplastik também pode ser visto como um livro de teoria: tanto de teoria das artes (em especial, da escultura) e da arte (particularmente, da questão da forma na arte), quanto de teoria da crítica e da história da arte. Especialmente em sua segunda parte – O pictórico – discute, direta e explicitamente, as teorias da visão, da forma, do espaço e da escultura expostas por Adolf von Hildebrand em Das Problem der Form in der bildenen Kunst (O problema da forma nas artes plásticas), de 1893,21 na qual Einstein vê “o equilíbrio perfeito entre o pictórico e o plástico”. Insere-se, assim, em uma tradição de longo alcance, delineada pelas contribuições germânicas à estética, teoria e história da arte, a qual, das obras de Wölfflin e Hildebrand, alcança as reflexões de Conrad Fiedler e Immanuel Kant, entre outros – linhagem na qual Einstein não se acomoda facilmente. Na parte inicial do texto – Observações sobre o método – ele também deixa claro que recusa “utilizar a arte para fins antropológicos ou etnográficos”, que partirá “de fatos e
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21 Hildebrand, Adolf von. D as P roble m de r F orm i n de r bi lde n e n Ku n st . Stras b o u rg : Heitz & Mü ndel , 1 8 9 3 .
não de sucedâneos (...): as esculturas africanas”. E que as analisará como criações. Contudo, não afasta do horizonte questões socioculturais. O terceiro tópico do texto é justo “Religião e arte africana”, no qual, como disse Didi-Huberman, “a religião não é mais pensada como um ‘conteúdo’ que a escultura africana teria por tarefa ‘representar’; ela é em si mesma essa dinâmica da forma que permite a Carl Einstein visualizá-la ‘destacando22 Didi-Huberman, Georges. Op. cit., p. 45.
se inteiramente do correlativo metafísico’”.22
23 Apud Qu’est-ce que la sculpture moderne?. Paris: Centre Georges Pompidou, 1986, p. 344.
É preciso destacar ainda a dimensão literária de sua crítica de arte. “Homme des lettres”,23 Carl Einstein foi um historiador cujo engajamento estético não se podia dar sem um engajamento relativo ao texto, gerando uma escrita diferenciada, de “perfeita estranheza”,
24 Didi-Huberman, Georges. Op. cit., p. 20.
no dizer de Didi-Huberman,24 que é intrínseca a suas reflexões histórico-crítico-teóricas. De acordo com disse Liliane Meffre: Seguir Carl Einstein em suas elucubrações e assimilar seu pensamento não é sempre fácil. Por um lado, se nutre das teorias e da prática da Kunstwissenchaft germânica especializada (...). Por outro lado, como é costume dele, Carl Einstein procede por contrações de seu próprio discurso intelectual, a saltos, com sínteses rápidas, por atalhos fulgu-
25 Meffre, Liliane. Introduction. Op. cit., p. 22-23.
rantes, com um estilo e uma terminologia muito pessoais.25 Na última seção do texto, Einstein analisa máscaras e a prática da tatuagem. Em relação à última, sobressai a diferença radical entre a visão de Carl Einstein e o célebre texto de Adolf Loos sobre o tema, publicado em 1908. Loos pensa a tatuagem na perspectiva evolucionista e teleológica do historicismo – “O ímpeto de ornamentar seu rosto e tudo o que está a seu alcance é a mais remota origem das artes plásticas. É o balbucio da pintura” –, aceitando sua existência exótica, nos povos tidos como primitivos, e condenando a sua persistência contemporânea no Ocidente – “O homem moderno que se tatua é um criminoso ou um
26 Loos, Adolf. Ornamento e crime. Qfwfq, Rio de Janeiro, UERJ, v. 2, n. 1, 1996, p. 170. (tradução Heloisa B. S. Rocha e Thereza C. V. Vianna)
degenerado”.26 Einstein entende que tatuar-se “não deixa de ser a tomada de consciência que representa conceber seu próprio corpo como obra inacabada que transformamos prontamente”; para ele, “Se tatuar supõe uma consciência de si imediata e uma consciência não menos forte da prática objetiva da forma”, “A tatuagem não passa de uma parte da objetivação de si mesmo que consiste em exercer uma influência sobre a totalidade de seu corpo, em produzi-lo conscientemente em público”. As máscaras, cuja rigidez “nada mais é do que o último grau de intensidade da expressão, liberada de qualquer origem psicológica”, lhe permitem abordar a questão da forma “nas artes de forte dominância religiosa” – “apenas a forma na arte está à altura do ser dos deuses” – e sintetizar suas reflexões ao longo do texto: “o africano condensa as forças plásticas em resultantes visíveis.” *
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Negerplastik foi publicado em francês, parcialmente, em 1921, e, integralmente, apenas em 1961, tendo reedições em 1976, 1986 e 1998, que foram acompanhadas de estudos
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sobre a obra e a figura de Carl Einstein. O mesmo aconteceu com versões recentes do texto publicadas em espanhol, em 2002, e em inglês, em 2003. O que demonstra crescentes 27
interesse e reconhecimento do valor do livro e de seu autor. Obra-chave da história da arte moderna, o texto de Carl Einstein ainda não havia sido traduzido em português. Qual é o sentido de publicar esse autor inatual e sua obra-prima no Brasil, em 2008, quando, no campo da arte, domina um sentimento contrário à forma e, na sociedade de modo geral, persiste a falta de vontade, se não uma velada aversão, por quase tudo referente à África e à afrodescendência no país? Sobre o autor e sua obra, encontra-se publicado em português um texto de Georges DidiHuberman – “O anacronismo fabrica a história: a inatualidade de Carl Einstein”28 – no qual afirma que “Relê-lo hoje é reencontrar, para além de toda pacificação acadêmica, algo como um contato direto com uma parte maldita da história da arte, esta parte na qual o exercício do historiador libera seus próprios questionamentos, suas próprias exposições ao perigo”.29 Além de ampliar, tensionando, as bases do campo da história da arte no país, o texto pode auxiliar na reversão do preconceito inculto que grassa contra a forma e sua importância na arte, adensando o debate, oferecendo elementos à campanha
Detalhe de estátua com função mágica. Artista vili. República Democrática do Congo, madeira, 52 cm. / Copa cefalomorfa. Artista kuba. República Democrática do Congo, madeira, 16 cm. / Cabeça de mono. Artista de um grupo étnico não identificado. África central, madeira, 22 cm. / Cabeça. Artista vuvi. (W. Fagg [informação pessoal]), Tsogho, Gabão, madeira. / Máscara. Artista de um grupo étnico não identificado. República Democrática do Congo, madeira, 23 cm. 27 Einstein, Carl. Negerplastik (La sculpture nègre). In Qu’est-ce que la sculpture moderne?. Paris: Centre Georges Pompidou, 1986, pp. 344-353; –. La sculpture nègre. In –. La sculpture nègre. Paris: L’Harmattan, 1998, pp. 15-48; –. La escultura negra. In –. La escultura negra y otros escritos. Barcelona: Gustavo Gili, 2002, pp. 27-59; –. African sculpture. In Flam, Jack, Deutch, Miriam (eds.). Primitivism and Twentieth-Century Art: a Documentary History. Berkeley; Los Angeles: University of California Press, 2003, pp. 77-91. 28 Didi-Huberman, Georges. Op. cit., pp. 19-53. 29 Idem, ibidem, p. 22.
insistente, porém pouco municiada e quase monocórdia, contra o formalismo e – quem sabe? – permitindo um entendimento mais complexo da forma na arte. Pode, também, em sentido mais específico, oferecer subsídios para análises de esculturas utilizadas nas religiões afrodescendentes no Brasil, e esculturas como as de Louco30 e seus discípulos, produzidas em Cachoeira, na Bahia, as quais têm óbvias conexões com questões analisadas por Einstein. Pode, assim, ajudar a arrefecer, minimamente que seja, o preconceito em relação à África e ao que a ela se refere no Brasil, aos afrodescendentes, suas práticas culturais e realizações em arte.
Roberto Conduru é professor e atual diretor do Instituto de Artes da UERJ. É membro e atual presidente do Comitê Brasileiro de História da Arte.
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30 Sobre Louco, Boaventura da Silva Filho (Cachoeira, BA, 1932-1992), ver Frota, Lélia Coelho. Pequeno Dicionário da Arte do Povo Brasileiro. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2005, p. 277-281.
Negerplastik1 Carl Einstein2
Analisando artefatos provenientes da África como obras de arte (esculturas, máscaras, tatuagem), os relacionando às tradições socioculturais das quais provêm e ao devir da arte em sentido universal, são discutidas questões referentes à percepção e criação artística, forma e espaço, corpo e sociedade, bem como à história, crítica e teoria da arte. Arte da África, escultura, arte moderna. Observações sobre o método Não há, talvez, nenhuma outra arte que o europeu encare com tanta Tradução Inês de Araújo. Revisão Roberto Conduru. Consultoria Leila Danziger. 1 Ver nota 1 do texto de Roberto Conduru, Uma crítica sem plumas – A propósito de Negerplastik de Carl Einstein, na página 155 desta edição de Concinnitas. 2 Ver o texto aqui referido de Roberto Conduru, nas páginas 155 a 160.
desconfiança quanto a arte africana. Seu primeiro movimento é negar a própria realidade de “arte” e exprimir a distância que separa essas criações do estado de espírito europeu por desprezo tal que chega a produzir terminologia depreciativa. Essa distância e os preconceitos decorrentes tornam difícil – e mesmo impossível – qualquer juízo estético, pois tal juízo supõe, em primeiro lugar, certa familiaridade. O negro, entretanto, sempre foi considerado ser inferior que podia ser discriminado, e tudo por ele proposto era imediatamente condenado como insuficiente. Para enquadrá-lo recorre-se a hipóteses evolucionistas bem vagas. Algumas delas se serviram do falso conceito de primitivismo, outras adornaram esse objeto indefeso com frases falsas e persuasivas, falavam de povos vindos do final dos tempos, além de tantas outras coisas. Esperava-se colher por intermédio do negro um testemunho das origens, de um estado que jamais havia evoluído. A maior parte das opiniões expostas sobre os africanos repousa sobre tais preconceitos construídos para justificar uma teoria cômoda. Em seus juízos sobre os negros o europeu reivindica um postulado, o de uma superioridade absoluta, de fato exagerada. Finalmente, nossa ausência de consideração pelo negro corresponde apenas à ausência de conhecimento a seu respeito, o que só serve para oprimi-lo injustamente.
3 Trata-se das 119 reproduções de estátuas e máscaras contidas na primeira edição de 1915 (Verlag der Weissen Bücher, Leipzig). A reedição de 1920 (Kurt Wolff Verlag, München) conta apenas com 116 reproduções. Tais objetos são de origens diversas: África, e, em menor medida, Madagascar, Oceania. Entretanto, no seu texto, Carl Einstein jamais se refere de modo preciso a essas obras de arte. (N.T.)
Poderíamos tirar a seguinte conclusão das fotos apresentadas nesta obra:3 o negro não é um ser não evoluído; uma cultura africana importante desapareceu; o negro atual corresponde a um possível tipo “antigo” como, talvez, o fellah para o egípcio antigo. Certos problemas que se colocam para a arte moderna provocaram abordagem mais escrupulosa da arte dos povos africanos. Como sempre, aí também, um processo artístico atual criou sua história: em seu centro elevou-se a arte africana. O que antes parecia desprovido de sentido encontrou sua significação nos mais recentes esforços dos artistas plásticos. Descobriu-se que, raramente, salvo na arte negra, haviam sido postos com tanta clareza problemas precisos de
Negerplastik Carl Einstein
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espaço e formulada uma maneira própria de criação artística. Resultado: o juízo até então atribuído ao negro e a sua arte caracterizou muito mais quem emitia tal juízo do que seu objeto. A esse novo tipo de relação respondeu sem demora uma nova paixão: colecionou-se a arte negra como arte: com paixão, ou seja, a partir de uma atividade perfeitamente justificável, constituiu-se, recorrendo a antigos materiais, um objeto provido de nova significação. Esta breve descrição da arte africana não poderá subtrair-se das experiências feitas pela arte contemporânea, até porque o que assume importância histórica é sempre função do presente imediato. Contudo, desenvolveremos tais relações mais tarde a fim de tratar um tema de cada vez e para não confundir o leitor com comparações. Os conhecimentos que existem sobre a arte africana são, no conjunto, parcos e imprecisos: deixando-se de lado certas obras do Benim, nada está datado; vários tipos de obras foram designados a partir do lugar em que foram encontradas, mas não acredito que isso seja de alguma utilidade. Na África, as tribos migraram e se atacaram; além disso, supõese que ali, como em outros lugares, as tribos combateram por fetiches e que o vencedor se apropriou dos deuses do vencido para assegurar-se de sua força e proteção. Estilos completamente diferentes são provenientes muitas vezes de uma mesma região; logo, há várias explicações plausíveis, sem que seja possível decidir qual a melhor; neste caso supõe-se que se trate de arte antiga ou recente, até de dois estilos que coexistiram ou, então, que outra forma de arte tenha sido importada. Em nenhum caso, nem os conhecimentos históricos nem os conhecimentos geográficos autorizam, no momento, oferecer a menor precisão sobre tal arte. Poderíamos objetar que é possível estabelecer uma sucessão cronológica analisando o estilo e progredindo do mais simples ao mais complexo. Considerar-se-ia assim que não passa de ilusão o fato de serem o simples e o original eventualmente idênticos; é bem agradável adotar a idéia de que o ponto de partida e o método do pensamento justificariam também a origem e a natureza do evento, embora todo começo (através do qual, no entanto, percebo um início individual e relativo – pois não há como efetivamente constatar nada além disso) seja extremamente complexo, já que o homem, mesmo em cada objeto, gostaria de exprimir muita coisa, coisa demais. Em conseqüência, parece em vão tentar dizer seja lá o que for sobre a escultura africana. Tanto mais que a maioria exige ainda que se prove que essa escultura é verdadeiramente arte. Logo, é preciso desconfiar de quem continuar fazendo descrição puramente externa que jamais chegará a outro resultado senão dizer que um pente é um pente, que nunca alcançará uma conclusão geral, a saber, a qual conjunto pertencem todos esses pentes e todas essas bocas carnudas (utilizar a arte para fins antropológicos ou etnográficos é a meu ver procedimento duvidoso, pois a representação artística não exprime praticamente nada dos fatos aos quais se prende um tal conhecimento científico). Apesar de tudo, partiremos de fatos e não de sucedâneos, de algo que se revela mais certo do que todo conhecimento possível de ordem etnográfica ou outra: as esculturas africanas!
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Excluiremos tudo que for objeto, eventualmente os objetos que procedem de uma relação com o ambiente, e analisaremos tais figuras apenas como criações. Procuraremos ver se das características formais das esculturas resulta uma representação geral da forma análoga àquela que se tem habitualmente das formas artísticas. Dois imperativos absolutos, entretanto, um a respeitar, outro a evitar: é preciso ater-se à visão e progredir no registro de suas leis específicas. Sem, em nenhum momento, substituir a visão ou a criação pesquisada pela estrutura de suas próprias reflexões: abstenhamo-nos de deduzir teorias evolucionistas cômodas e de equiparar o processo de pensamento com a criação artística. É preciso desfazer-se do preconceito de supor que os processos psíquicos podem ser afetados por signos contrários e que a reflexão sobre arte é oposta à que se refere à criação artística. Essa reflexão, muito pelo contrário, indica um processo geral diferente que ultrapassa justamente a forma e seu universo para integrar a obra de arte num amplo devir. A descrição das esculturas como construções formais, contudo, tem por resultado algo muito mais importante do que a descrição dos próprios objetos; a discriminação objetiva ultrapassa uma criação dada, desviando-a de seu uso para considerá-la não criação, mas reveladora de uma prática fora de seu domínio. A análise das formas, ao contrário, reside no campo do dado imediato, pois não há mais do que poucas formas comuns a pressupor. Essas, no entanto, como objetos particulares, valem mais para a compreensão, já que, como formas, exprimem tanto os modos de ver quanto as leis da visão, impondo justamente um saber que permanece dentro da esfera do dado imediato. A possibilidade de fazer uma análise formal apoiando-se sobre certos elementos específicos da criação do espaço e da visão, englobando-os, prova implicitamente que as criações dadas são artísticas. Arriscamos talvez a objeção que uma tendência à generalização e uma vontade preestabelecida ditaram de modo secreto tal conclusão. É falso, pois a forma particular investe os elementos válidos da visão, justamente os representa, já que esses elementos não podem ser apresentados senão como forma. O caso particular, ao contrário, nem sequer toca a própria essência do conceito; de forma mais exata, eles mantêm um com o outro relações de dualidade. É precisamente o acordo essencial entre a percepção universal e a realização particular o que produz de fato uma obra de arte. Além disso, pensemos que a criação artística é tão “arbitrária” quanto a tendência, contudo necessária, a ligar num circuito de leis as formas particulares da visão, porque nos dois casos visamos a um sistema organizado e o alcançamos. O pictórico 4 Adolf von Hildebrand, Das Problem der Form in der bildenden Kunst, Strasburg, 1893. Liliane Meffre explica que em sua análise morfológica Carl Einstein se fundamentada em duas noções centrais dessa obra: “das Malerische” (o pictórico) e “das Plastische” (o plástico). Referência em Einstein, Carl La sculpture nègre, trad. Liliane Maffre, Paris, ed.Harmattan 1998. p.23. (N.T.)
A incompreensão habitual do europeu pela arte africana está à altura da força estilística desta última: essa arte, entretanto, não representaria um caso notável da visão plástica? Pode-se afirmar que a escultura continental é fortemente tecida de sucedâneos pictóricos. Na obra de Hildebrand “Problema da forma”4 encontramos o equilíbrio perfeito entre o pictórico e o plástico; uma arte tão marcante como a plástica francesa parece, até Rodin,
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esforçar-se justamente em fazer desaparecer a plasticidade. Mesmo a frontalidade, na qual se vê em geral clarificação estrita e “primitiva” da forma, deve ser considerada preensão pictórica do volume,5 porque aí a tridimensionalidade está concentrada em alguns planos que reduzem o volume; enfatizam-se, assim, as partes mais próximas do espectador, ordenando-as na superfície, considerando que as partes posteriores são modulações acessórias da superfície anterior, que é enfraquecida em sua dinâmica. Reiteram-se os temas dos objetos posicionados à frente. Em outros casos, substituiu-se o volume por equivalente concreto do movimento ou então se escamoteou, por um movimento da forma, desenhada ou modelada, o essencial, a expressão imediata da terceira dimensão. Mesmo as experiências de perspectiva prejudicaram a visão plástica. Compreende-se, pois, com facilidade que, desde o Renascimento, os limites indispensáveis e precisos entre escultura livre e o relevo sejam cada vez mais apagados e que a emoção pictórica que nasce em torno apenas de um volume material (a massa) invada toda estruturação tridimensional da forma. Conseqüência lógica: foram os pintores e não os escultores que levantaram as questões decisivas sobre a tridimensionalidade. O que explica com clareza que nossa arte, com tais tendências formais, tenha atravessado um período de confusão total entre o pictórico e o plástico (o barroco) e que tal procedimento só tenha terminado com a derrota da escultura, que precisou, para conservar ao menos o estado emocional do criador e comunicá-lo ao espectador, recorrer a meios inteiramente impressionistas e pictóricos. A carga emocional abolia a tridimensionalidade; a escritura pessoal a dominava. Essa história da forma esteve necessariamente ligada a um devir psíquico. As convenções artísticas passavam por paradoxos: o arranjo consistia em ter um criador no ápice de sua afetividade diante de um espectador no auge da emoção; a dinâmica dos processos individuais dominava; estes ditavam lei e se fixavam com particular insistência. O essencial encontrava-se, portanto, no que precedia ou se seguia, reduzindo-se a obra cada vez mais ao papel de transmissor de emoções psicológicas; o que está em movimento no indivíduo, o ato de criação e seu objeto, tomou formas fixas. Tais esculturas foram antes manifestações de uma genética do que de formas objetivadas, antes um contato fulgurante entre dois indivíduos; na maior parte das vezes, era ao caráter dramático do julgamento sobre as obras de arte mais do que a elas mesmas que se atribuía maior importância. Isso representou uma necessidade de dissolver qualquer cânone significativo da forma e da visão. Procurou-se um desenvolvimento cada vez maior da plasticidade, uma explosão e uma multiplicação de meios. Contra a ausência real de plasticidade, a fábula do modelo “tateado”, ornado das plumas do realismo, era impotente; muito pelo contrário, era ela justamente que confirmava a ausência de uma concepção aprofundada e homogênea do espaço. Tal procedimento destrói a distância em relação aos objetos e só atribui importância à função que eles conservam para o indivíduo. Essa espécie de arte significa a acumulação potencial do maior efeito funcional possível.
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5 Liliane Maffre, tradutora da versão francesa de Negerplastik, na qual esta tradução se baseou, explica que traduziu por “volume”, “em três dimensões” e “tridimensional” os termos em alemão “Kubisch” e “das Kubische”. Ela observa que esses termos são empregados por Carl Einstein para definir um espaço novo em três dimensões e correspondem a uma nova apreensão do espaço. Eles não podem ser traduzidos literalmente pela palavra “cúbico”. Id.,ibid., p. 23. (N.T.)
Vimos que este fator potencial, o espectador, fez-se virtual e aparente em algumas tentativas modernas. São raros os estilos surgidos na Europa que dele se descartaram, em particular o estilo romano-bizantino: todavia sua origem oriental está demonstrada e conhece-se igualmente sua passagem bastante rápida à mobilidade (o gótico). O espectador foi integrado à escultura da qual se tornou, a partir de então, função inseparável (por exemplo, para a escultura fundada sobre a perspectiva); tomando parte ativa na reviravolta dos valores, de ordem essencialmente psicológica da pessoa do criador, quando não a contestava em seus julgamentos. A escultura era objeto de diálogo entre duas pessoas. O que deveria antes de tudo interessar a um escultor com tal orientação era determinar com antecedência o efeito e o espectador; para antecipar o efeito e o testar, ele foi levado a se identificar com o espectador (como o fez a escultura futurista), e as esculturas deveriam ser consideradas perífrases do efeito produzido. O fator psicotemporal dominava completamente a determinação do espaço. Para atingir o objetivo (na maior parte das vezes, aliás, inconscientemente buscado), fabricou-se a identidade do espectador e do criador, pois só assim seria possível um efeito ilimitado. É significativo desse estado de coisas que se considere geralmente o efeito produzido sobre o espectador, mesmo que ele tenha fraca intensidade, reviravolta do processo criativo. O escultor submetia-se à maioria dos processos psíquicos e se transformava em espectador. No curso de seu trabalho, ele tomava continuamente determinada distância de sua obra, que seria aquela do espectador, e modelava o efeito em conseqüência; ele deslocava o centro de gravidade para o dispor dentro da atividade visual do espectador e modelava por toques, para que só o espectador constituísse a forma verdadeira. A construção do espaço foi relegada a procedimento secundário, até estranho a esse domínio, ou seja, o da matéria; o precedente a toda escultura, o espaço em três dimensões, foi esquecido. Há alguns anos, vivemos na França uma crise decisiva. Graças a um prodigioso esforço da consciência, percebeu-se o caráter contestável desse procedimento. Alguns pintores tiveram suficiente força para se desviar de um métier feito mecanicamente; uma vez desligados dos procedimentos habituais, eles examinaram os elementos da visão do espaço para encontrar o que bem a poderia engendrar e determinar. Os resultados desse importante esforço são bastante conhecidos. Naquele momento descobriu-se a escultura negra e reconheceu-se que, em seu isolamento, ela havia cultivado as formas plásticas puras. Costuma-se qualificar como abstração o esforço desses pintores; impossível, no entanto, negar que uma crítica radical de desvios e perífrases seja o único meio de aproximar-se de uma apreensão imediata do espaço. Isso, entretanto, é essencial e distingue fortemente a escultura negra de uma arte que a tomou como referência e adquiriu consciência semelhante à sua; o que aqui desempenha o papel de abstração lá é dado como natureza imediata. A escultura negra revela-se do ponto de vista formal como poderoso realismo.
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O artista atual não conduz sua ação apenas sobre a forma pura, ele a ressente ainda como oposição a sua história anterior e agrega a seus esforços reações excessivas; a crítica que ele faz necessariamente reforça o caráter analítico de sua arte. Religião e arte africana A arte negra é antes de tudo determinada pela religião. As obras esculpidas são veneradas tal como o foram por todos os povos da Antigüidade. O executante realiza sua obra como se ela fosse a divindade ou seu guardião, isto é, desde o início ele preserva uma distância da obra que é o deus ou seu receptáculo. Seu trabalho é adoração a distância, e, desse modo, a obra é a priori algo independente, mais poderosa do que o executante; ainda mais porque ele emprega toda a sua energia em sua obra e a ela (ele, o inferior) se sacrifica. Por meio de seu trabalho ele cumpre uma função religiosa. A obra, como a divindade, é livre e destacada de tudo; o artesão, como o adorador, encontra-se a uma distância infinita. Ela jamais se mistura ao destino humano e, se o fizesse, seria como soberana e, mais uma vez, guardando suas distâncias. A transcendência da obra é determinada e pressuposta pela religião. A obra é criada na adoração, no temor a deus, e provoca efeitos iguais. Artesão e adorador são, a priori, psiquicamente idênticos, em sua própria essência; o efeito não reside na obra de arte, mas em seu caráter divino posto como hipótese e incontestado. O artista não terá a pretensão de medir-se com deus e de visar produzir um efeito – que é dado com certeza e predeterminado. A obra, como busca de um efeito, perde, em conseqüência, todo sentido, ainda mais porque os ídolos são na maior parte das vezes adorados na obscuridade. A obra, fruto do trabalho do artista, permanece independente, transcendente e desprendida de qualquer ligação. A essa transcendência corresponde uma visão do espaço que exclui toda função do espectador; é preciso oferecer e garantir um espaço do qual se esgotem todos os recursos, um espaço total e não fragmentado. O espaço fechado e autônomo não significa aqui abstração, mas sensação imediata. Esse fechamento só é garantido quando o volume estiver plenamente realizado, quando nada mais for possível acrescentar. A atividade do espectador não é levada em consideração. (Quando se trata de pintura religiosa, esta última se limita inteiramente à superfície da imagem para alcançar igual objetivo. Não se pode aceder a tal pintura nem pelo viés decorativo nem pelo ornamental, que são suas conseqüências secundárias.) Eu disse que a tridimensionalidade deve ser expressa perfeitamente e sem restrição, que a visão é predeterminada pela religião e reforçada pelos cânones religiosos. Essa determinação de olhar produz um estilo que não é submetido à arbitrariedade do indivíduo. Muito pelo contrário, esse estilo é fixado por cânones, e apenas as reviravoltas de ordem religiosa podem modificá-los. O fiel adora, com freqüência, os objetos na obscuridade; ele é, em suas devoções, completamente absorvido por seu deus e a ele entregue, a tal ponto, que não terá quase nenhuma influência sobre a natureza da obra de arte, na qual ele nem mesmo presta atenção. Isso também ocorre quando se representa um rei ou um chefe de
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tribo; igualmente na efígie do homem do povo vê-se um princípio divino, que se venera; aqui ainda é ele que determinará a obra. Numa tal arte não há lugar para o modelo individual e o retrato, quando muito como arte profana e acessória, que praticamente não se pode afastar da prática artística religiosa ou então que com ela contrasta, por ser domínio sem importância, pouco considerado. A obra é erigida como tipo da potência adorada. O que caracteriza as esculturas negras é uma forte autonomia das partes; o que é também fixado por regra religiosa. A orientação dessas partes é fixada não em função do espectador, mas em função delas mesmas; elas são ressentidas a partir da massa compacta, e não de um recuo, o que as enfraqueceria. É assim que elas mesmas e seus limites vêem-se reforçados. Outro fato extraordinário: a maioria dessas obras não tem base nem acessórios expositivos semelhantes. Isso poderia nos surpreender, pois em nosso espírito as estátuas são altamente decorativas. No entanto, o deus jamais é representado de outro modo senão como um ser autônomo que não precisa de nenhuma ajuda. Mãos piedosas e respeitosas não lhe faltam quando ele é carregado em procissão por seus fiéis. Tal arte raramente materializará o aspecto metafísico, já que para ela trata-se de evidente precedente. Ela precisa revelar-se inteiramente na perfeição da forma e nela concentrar-se com surpreendente intensidade, ou seja, a forma será elaborada até que seja perfeitamente fechada sobre si mesma. Um poderoso realismo da forma vai aparecer, pois só assim entram em ação as forças que não chegam à forma por vias abstratas ou da reação polêmica, mas que são imediatamente forma. (O caráter metafísico dos pintores atuais continua revelando a crítica, anterior, da pintura e entra numa descrição como essência concreta e formal, através da qual o caráter absoluto da religião e da arte, sua correlação rigorosamente circunscrita, apaga-se em destrutiva confusão.) Num realismo formal – que não entendemos como realismo de imitação – a transcendência existe; porque foi excluída a imitação; quem, entretanto, um deus poderia imitar, a quem poderia ele se submeter? Segue-se daí um realismo lógico da forma transcendente. A obra de arte não será percebida como criação arbitrária e superficial, mas, ao contrário, como realidade mítica que ultrapassa em força a realidade natural. A obra de arte é real graças a sua forma fechada; sendo autônoma e superpoderosa, o sentimento de distância impele a uma arte de prodigiosa intensidade. Enquanto a arte européia é submetida à interpretação pelos sentimentos e até pela forma, na medida em que o espectador é levado a cumprir uma função óptica ativa, a obra de arte negra, por razões formais e também religiosas, só tem uma interpretação possível. Ela nada significa e não é um símbolo; ela é o deus que conserva sua realidade mítica fechada, na qual ele inclui o adorador, transformando-o também em ser mítico e abolindo Máscara antropomorfa. Artista pende. República Democrática do Congo, madeira e fibras. / Cabeça de relicário. Artista fang betsi. Gabão, madeira, 23,2 cm. / Estatueta. Artista kunyi. República Democrática do Congo, madeira e vidro, 19 cm.
sua existência humana. Os aspectos finito e fechado da forma e da religião se correspondem, tanto quanto o realismo formal e religioso. A obra de arte européia tornou-se justamente a metáfora
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do efeito, que incita o espectador a indolente liberdade. A obra de arte negra religiosa é categórica e possui essência penetrante que exclui toda limitação. Para ressaltar a presença da obra de arte, é preciso excluir toda função temporal, ou seja, impedir-se de girar em torno da obra, de tateá-la. O deus não possui devir; o que seria contestar a natureza de sua existência definitiva. Foi preciso encontrar forma de representação que se exprimisse imediatamente no material sólido, sem o modelado que trai a mão ímpia, que insulta pessoalmente o deus. A visão do espaço que se manifesta em tal obra de arte deve absorver completamente o espaço em três dimensões e exprimir sua unidade; a perspectiva ou a habitual frontalidade são aqui proscritas; elas seriam heréticas. A obra de arte deve oferecer a equação geral do espaço, pois só quando exclui qualquer interpretação temporal fundada sobre as representações do movimento ela se torna intemporal. Ela absorve o tempo, integrando em sua própria forma o que nós vivemos como movimento. Visão do espaço em três dimensões Trata-se de um fato: toda análise abstrata, seja qual for o lugar que ela conceda à visão, faz prova de independência e, em virtude de sua estrutura específica, não exprime todas as divergências do devir artístico. Em primeiro lugar, trata-se de examinar qual é a natureza formal da visão que está na base da escultura africana. Podemos então descartar inteiramente o correlato metafísico, já que mostramos que ele era um elemento constitutivo da obra de arte e já que sabemos que é precisamente da religião que ela tira sua forma absoluta. Assim, cabe-nos a tarefa de esclarecer do ponto de vista formal a visão que se manifesta nessa arte. Evitaremos o erro de mutilar a arte negra supondo que ela seja lembrança inconsciente de uma forma artística européia qualquer, já que, por razões formais, a arte africana constitui a nossos olhos domínio bem delimitado. A escultura negra representa clara fixação da visão plástica pura. Para olhos ingênuos, a escultura, cuja tarefa é restituir a tridimensionalidade, aparece como algo óbvio, pois ela trabalha a massa, propriamente definida pelas três dimensões. De saída essa tarefa revela-se difícil, quase insolúvel; basta pensar que se deve fornecer, por meio da forma, não um espaço qualquer, mas um espaço em três dimensões. Quando refletimos, somos tomados por emoção indescritível; essas três dimensões, que não se podem captar de um só lance, será preciso figurar não por vaga sugestão óptica, mas, sobretudo, oferecendo expressão acabada e real. As soluções européias que, confrontadas à estatuária africana, contam principalmente pelos inúmeros expedientes, são familiares a nossos olhos, convencem de modo mecânico e por hábito. A frontalidade, os pontos de vista múltiplos, o modelado bem retocado e a silhueta escultural são seus meios usuais.
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A frontalidade escamoteia quase todo volume aos olhos do espectador e concentra toda força expressiva em apenas um dos lados do trabalho. Ela organiza as partes que estão à frente do objeto segundo um ponto de fuga e lhes confere certa plasticidade. A perspectiva naturalista mais simples é a escolhida, e o lado mais próximo do espectador, aquele que normalmente é o primeiro a orientá-lo na vida concreta e no domínio psicológico. Os outros aspectos, secundários, sugerem, por ruptura de ritmo, a sensação que corresponde às representações do movimento na tridimensionalidade. Desses movimentos abruptos, essencialmente ligados entre si pelo objeto, nasce uma idéia de homogeneidade do espaço que não se justifica sobre o plano formal. O mesmo ocorre para o espectador no que concerne à silhueta, que, auxiliada de todas as maneiras possíveis pelos truques da perspectiva, permite pressentir o volume. Se olharmos mais de perto, veremos que foi tomada emprestada ao desenho, que nunca é um elemento plástico. Em todos esses casos encontra-se algum procedimento de pintura e desenho; a profundidade é sugerida, mas raramente dada de modo imediato como forma. Tais procedimentos repousam sobre o preconceito de que o volume em três dimensões seria mais ou menos garantido pela massa material, que uma emoção interior, ao percorrê-la, ou uma indicação parcial de forma, bastariam para fazer existir o volume como forma. Tais métodos querem, sobretudo, sugerir e significar a plasticidade em vez de tirar suas conseqüências lógicas. Desse modo, entretanto, dificilmente será possível, já que aqui o volume é representado como massa e não diretamente como forma. A massa, todavia, não é idêntica à forma, pois a massa, na verdade, não pode ser percebida em seu conjunto; a esses procedimentos estão sempre ligados movimentos psicológicos que decompõem a forma em gênese e a anulam completamente. É o começo das dificuldades: fixar a terceira dimensão num só ato de representação visual e percebê-la como totalidade, de tal forma que ela seja apreendida como um só ato de integração. Mas o que é forma no volume? Obviamente ela precisa ser apreendida de uma só vez, embora não como sugestão emanando da matéria; o que é movimento deve ser fixado no absoluto. Os elementos situados nas três dimensões precisam ser representados de modo simultâneo, quer dizer, o espaço dispersivo tem que estar integrado num só campo visual. A tridimensionalidade não pode simplesmente ser nem sugerida, nem expressa pela massa. É preciso, ao contrário, que ela seja concentrada numa presença definida, enquanto o que engendra a visão da tridimensionalidade, e que ressentimos habitualmente e de modo naturalista como movimento, seja expresso por forma imóvel. Cada ponto de interseção das três dimensões na massa pode ser infinitamente interpretado – o que de saída parece opor dificuldades insolúveis a qualquer interpretação unívoca e tornar impossível qualquer esforço de totalização. Mesmo a continuidade das relações do ponto com a massa torna ainda mais difícil qualquer esperança de solução precisa,
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ainda que tenhamos sido bem-sucedidos em sugerir ao espectador uma impressão homogênea precisa numa função que se introduz gradativa e lentamente; nem a ordenação rítmica, nem a relação com o desenho, nem a multiplicação do movimento, por mais ricas que sejam, não conseguem nos convencer de que o volume aí esteja concentrado numa forma imediata e completa. O negro parece ter encontrado solução clara e válida para esse problema. Encontrou, por paradoxal que seja, uma dimensão formal. A representação do volume como forma – só com ela, e não com a massa material, deve a escultura trabalhar – tem por resultado, de imediato, determinar o que constitui a forma; são as partes não visíveis simultaneamente; elas devem ser reunidas com as partes visíveis numa forma total, que o espectador determina num só ato visual, e corresponder a uma visão tridimensional estabelecida, a fim de que o volume, para não ser irracional, prove ser visível e ter forma. O naturalismo óptico da arte ocidental não trata da imitação da natureza exterior; a natureza, aqui passivamente imitada, é dada segundo o ponto de vista do espectador. Compreende-se assim o processo genético, terrivelmente relativo, que se agrega à maior parte de nossa arte. Esse se conformou ao espectador (frontalidade, imagem a distância), e cada vez mais a criação da forma visual definitiva foi confiada a um espectador ativo e cooperativo. A forma é uma equação como nossa representação; essa equação possui valor estético se compreendida sem relação com elementos estrangeiros e de modo absoluto. Pois a forma significa essa identidade perfeita da visão e da realização particular, as quais, em virtude de sua estrutura, coincidem perfeitamente e não possuem o tipo de relação que há entre o conceito e o fato particular. A visão engloba certamente vários casos de realização. Não possui, entretanto, um nível de qualidade na realidade a eles superior. Está claro que a arte representa um caso particular de intensidade absoluta e que deve engendrar a qualidade em toda a sua integridade. A missão da escultura é formar uma equação que absorva totalmente as sensações naturalistas do movimento, e também a massa, como transpõem para a ordem formal suas diversidade e sucessão. Esse equivalente deve ser total para que a obra de arte não seja mais ressentida como resultante de tendências humanas opostas, mas antes como algo independente, absoluto e fechado. As dimensões do espaço habitual são três, embora a terceira, do movimento, seja apenas discriminada e não analisada em sua essência. Dado que a obra de arte oferece um extrato simples da natureza, a terceira dimensão conhece uma repartição. O movimento é representado por um continuum que compreende o espaço em suas modulações. Como a arte plástica fixa, essa unidade é cindida, quer dizer, percebida em duas direções opostas e contém, desse modo, duas direções completamente diferentes sem valor no espaço in-
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finito do matemático, por exemplo. A profundidade e a tendência à frontalidade são, na escultura, dois modos totalmente distintos de engendrar o espaço; elas não são diferentes sobre o plano linear, mas significam, sobretudo, diferenças entre formas fundamentais, quando não são fundidas de modo impressionista, quer dizer, novamente sob influência de representações naturalistas do movimento. Desse conhecimento resulta que a escultura seja em certo sentido descontínua, ainda mais porque não podemos abrir mão do meio fundamental que representam os contrastes para criar o espaço em sua totalidade. O volume não deve ser ocultado como modelado sugestivo de segunda ordem nem introduzido como relação materializada, mas antes ser destacado como algo essencial. Aquele que observa uma escultura é levado a crer que sua impressão se compõe da visão e, além disso, da representação que ele faz das partes dispostas mais em profundidade; um tal efeito, por sua ambigüidade, não teria relação com a arte. Como ressaltamos, a escultura nada tem a ver com a massa naturalista, mas só com a clarificação da forma. Trata-se, pois, de figurar sobre as partes visíveis as invisíveis em sua função formal, como forma; o volume, o coeficiente de profundidade, como eu gostaria de nomeá-lo, como forma; ele só é verdadeiro como forma, sem mistura do concreto, a massa. As partes não devem ser figuradas de modo material e pictórico, mas, principalmente, de tal sorte, que a forma, que as torna plásticas e que é dada pelo movimento naturalista, esteja fixada e simultaneamente visível. Cada parte deve encontrar sua autonomia plástica e ser deformada de modo a absorver a profundidade, enquanto a representação, como se o verso aparecesse, é integrada do lado frontal, que possui, entretanto, função tridimensional. Assim, cada parte é um resultado da representação formal que cria o espaço como totalidade e como identidade perfeita entre uma óptica individual e a visão, e que rejeita a escapatória do sucedâneo que enfraquece o espaço trazendo-o à massa. Tal escultura é fortemente centrada sobre uma face, dado que ela oferece, sem o deformar, o volume em seu conjunto, como resultante, enquanto a frontalidade acumula tudo sobre o primeiro plano. Essa integração do elemento plástico engendra centros funcionais a partir 6 Points centrals: em francês no original. (N.T.)
dos quais ela se ordena; é em torno desses points centrals6 [sic] do volume que se organiza naturalmente uma necessária e forte repartição que se pode qualificar de poderosa ascensão à autonomia das partes. É compreensível, justamente pelo fato de a massa naturalista não desempenhar nenhum papel, que a célebre massa compacta e integral das obrasprimas do passado perca importância; por outro lado, a figura aqui é apreendida não como efeito, mas imediatamente em sua existência espacial. O corpo do deus se subtrai – é ele o mestre – às mãos diligentes do artesão; o corpo é concebido a partir de sua função própria. Censuram-se repetidamente nas estátuas negras os supostos erros de proporção.
Casal sentado. Artista de um grupo étnico não identificado. Zâmbia (H. van Geluwe), Angola meridional, (W. Fagg [informação pessoal]), madeira. / Casal. Artista de Ilhas Marquesas. Polinésia, madeira, 43 cm. / Tamborete sustentado por cariátide. Artista luba. República Democrática do Congo, madeira e fibras.
Compreendendo-se que a descontinuidade óptica do espaço se traduz em clarificação da forma, em ordenação das partes – que são, já que se trata de plasticidade, diversamente valorizadas segundo sua expressão plástica –, não é seu tamanho que é determinante, mas muito mais a expressão do volume que lhes cabe figurar sem concessão. Todavia, há algo que o negro rejeita e em direção ao qual o europeu se deixa levar, pelo compromisso
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que ele aceita: fazer da modelagem, por interpolação, um elemento fundamental, pois esse procedimento puramente plástico tem a exata necessidade de distribuição rigorosa do volume. As faces são de algum modo funções subalternas, já que a forma deve ser destacada, concentrada e intensificada, para ser verdadeiramente forma, pois o volume é representado de fato independente da massa como resultante e expressão. Apenas isso seria admissível; pois a arte que depende da qualidade envolve uma questão de intensidade; o volume deve manifestar-se na subordinação das imagens como intensidade arquitetada. Este é o momento de abordar o conceito de monumentalidade. Essa concepção é certamente a das épocas que, carecendo de qualquer visão, se mediam os trabalhos aos palmos. Como a arte é uma questão de intensidade, a monumentalidade como grandeza desaparece. Há ainda outra coisa a eliminar. Jamais será permitido abordar tais ordenações plásticas por meio de interpolações lineares; essa démarche revela uma faculdade visual enfraquecida por lembranças conceituais e nada mais. Mas compreenderemos o realismo rigoroso do negro se aprendermos a olhar examinando como o espaço delimitado da obra de arte pode ser imediatamente fixado. A função da profundidade justamente não se expressa por medidas, mas pela resultante das orientações contrastantes do espaço, soldadas e não adicionadas umas às outras. Essa resultante nunca poderá ser apreendida de modo global na representação do movimento oferecida pela massa; pois o volume não repousa em partes separadas, diferentemente situadas, mas, sobretudo, em sua resultante tridimensional, sempre percebida na totalidade, o que não tem nada a ver com a massa ou com a linha geométrica. Ela descreve a existência do volume como uma resultante absoluta, sem genética, já que absorve o movimento. Depois dessa investigação da concentração plástica, torna-se fácil explicar as conseqüências. Objetou-se com freqüência que as estátuas negras careciam do sentido das proporções; outros, pelo contrário, queriam ler nelas a estrutura anatômica de diferentes tribos. As duas coisas resolvem-se por si, pois o elemento orgânico não tem nenhum sentido particular em arte, uma vez que ele apenas mostra a possibilidade efetiva do movimento. Igualando-se reflexão sobre arte e crítica artística, ainda que se invertendo a ordem, construíram-se teorias com conceitos sem nuanças como se de algum modo a arte decorresse de um modelo do que fosse dedutível. A condição prévia de tal processo já seria arte; no curso de uma análise, jamais se deve abandonar o plano de seu objeto, senão falaremos de tudo menos do objeto em questão. Abstrato e orgânico são critérios (conceituais ou naturalistas) estranhos à arte e, por essa razão, completamente exteriores a ela. Também se devem abandonar as explicações vitais ou mecanicistas a propósito das formas artísticas. Pés largos, por exemplo, não são largos porque possuem a função de carregar, mas porque o olhar inclinado para baixo tende, às vezes, a alargá-los ou porque procuramos, por contraste, um equilíbrio com a bacia. Posto que a forma não está ligada nem ao elemento orgânico nem à massa, a maioria das estátuas negras não possuem base (o orgânico necessita ora aqui e ora ali de uma base para produzir contraste de geometria e de densidade); quando há uma base, ela é acentuada plasticamente por asperezas e outros meios.
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Retornemos, entretanto, à questão das proporções. Elas dependem da força segundo a qual a profundidade pode exprimir-se a partir do coeficiente de profundidade pelo qual compreendo a resultante plástica. A relação das partes entre si depende exclusivamente do valor de sua função no volume. As partes importantes exigem apropriada resultante tridimensional. É assim que se devem compreender as pretensas articulações torcidas e as proporções dos membros das estátuas negras; essa contorção descreve de maneira visível e concentrada em que consiste o volume engendrado por duas direções contrastantes além de bruscamente interrompidas; as partes distanciadas, que adivinhamos apenas, tornam-se ativas e funcionais em meio a uma expressão concentrada e unificada, e assim se convertem em forma, sendo absolutamente necessárias à representação imediata do volume. A essas partes integradas, é preciso subordinar os outros lados segundo uma rara coerência. Eles não permaneceram, entretanto, material sugestivo e não trabalhado; mas tomaram parte ativamente na forma. Por outro lado, a profundidade torna-se visível na totalidade. Essa forma, que é idêntica à visão unificada, se exprime em constantes e em contrastes que, entretanto, não podem mais ser interpretados infinitamente. Ao contrário, o duplo sentido da profundidade, ou seja, o movimento para frente e o movimento para trás, está entrelaçado na própria expressão tridimensional. Cada ponto do volume em três dimensões pode ser determinado por duas direções; ele é aqui integrado e fixado dentro da resultante tridimensional e, portanto, contém em si e não como relação intercalada os dois contrastes que produzem a profundidade. Pode-se, talvez, observar que na escultura negra, como em outras artes ditas primitivas, algumas esculturas são singularmente longas e magras: suas resultantes tridimensionais não são bastante acentuadas. Exprime-se aqui, quem sabe, a vontade irredutível de apreender nessa forma delgada o volume em três dimensões de modo completamente despojado. A impressão que se tem é de que não há, em razão do espaço ao seu redor, nenhum meio de acesso a essas formas delgadas, comprimidas e simples. Sobre as estátuas de grupo, acrescentarei apenas algumas linhas. Manifestadamente, elas confirmam a opinião exposta: o volume se exprime não pela massa, mas pela forma; senão essas estátuas seriam, como toda estátua perfurada, um paradoxo e uma monstruosidade. Esse tipo de estátua representa o caso extremo que gostaria de nomear como efeito plástico a distância; duas partes de um grupo não se comportam, olhando de perto, de maneira diferente da que o fazem duas partes distanciadas de uma mesma estátua. Sua unidade exprime-se na subordinação a uma integração plástica, supondo-se que não haja simplesmente repetição do tema formal seja com efeito de contraste, seja com efeito adicional. O contraste apresenta o interesse de inverter o valor das coordenadas, e por isso mesmo também a justificação da orientação plástica. A justaposição, ao contrário, mostra num só campo visual a variação de um sistema plástico. Os dois procedimentos são percebidos na totalidade, visto que se trata de sistema único. Máscaras e práticas similares Um povo para o qual a arte, o elemento religioso e a moral possuem poder imediato, domi-
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nado e circunscrito por seus poderes, os fará visíveis sobre si mesmo. Tatuar-se é converter seu corpo no meio e na finalidade de uma visão. O negro sacrifica seu corpo e lhe oferece nova intensidade; seu corpo de maneira visível entrega-se ao grande Todo, e essa entrega reveste-se de uma forma sensível, caracterizando uma religião despótica que reina sem paralelo e um culto poderoso à humanidade, a ponto de ver homem e mulher transformarem pela tatuagem seus corpos individuais em corpo coletivo; e desse modo intensificar a força do erotismo. Qual não deixa de ser a tomada de consciência que representa conceber seu próprio corpo como obra inacabada que transformamos prontamente! Para além do corpo natural, a forma é esboçada pela natureza que tatuar reforça, e a tatuagem alcança sua perfeição quando nega a forma natural e a substitui por uma forma imaginária superior. Nesse caso, o corpo é, no máximo, tela e argila; ele se torna mesmo obstáculo que pode provocar o máximo de criação de forma. Tatuar-se supõe imediata consciência de si e consciência não menos forte da prática objetiva da forma. Aqui se reencontra o que qualifiquei de sentimento de distância, um dom prodigioso de criação objetiva. A tatuagem não passa de uma parte da objetivação de si mesmo, que consiste em exercer influência sobre a totalidade de seu corpo, a produzi-lo de modo consciente em público não unicamente na dança, por exemplo, expressão imediata do movimento, ou no penteado, expressão imóvel do movimento. O negro define seu tipo com tanta força, que o transforma. Esse tipo intervém em todos os lugares assinando uma expressão que não se poderá falsificar. Compreende-se que o homem que se sente gato, rio, condição climática se transforma; ele é aquilo que sente e assume as conseqüências sobre seu corpo demasiado unívoco. É a propósito da máscara que o europeu, versado na psicologia e na arte do teatro, melhor compreende esse sentimento. O ser humano sempre se transforma um pouco, esforçando-se, entretanto, em conservar certa continuidade, sua identidade. O europeu faz precisamente desse sentimento o objeto de um culto quase hipertrofiado; o negro, que é menos prisioneiro do eu subjetivo e venera potências objetivas, deve, para se afirmar ao lado delas, converter-se nessas potências, justamente quando as festeja de maneira mais fervorosa. Mediante essa metamorfose, ele estabelece um equilíbrio com a adoração que arrisca aniquilá-lo; ele reza para deus, ele dança pela tribo em êxtase e se transforma, por meio da máscara, nessa tribo e nesse deus. Essa metamorfose lhe permite apreender radicalmente o que é exterior a ele; ele o encarna em si mesmo, e faz-se essa objetividade que reduz ao nada todo evento individual. Por isso a máscara só faz sentido se for inumana, impessoal, quando se trata de construção purificada de qualquer experiência individual; é possível que o negro venere a máscara como divindade quando ele não a traja. Gostaria de dizer que a máscara é o êxtase imóvel, e talvez também o fantástico estimulante sempre pronto para despertar o êxtase, já que traz fixada em si a fisionomia da potência ou do animal adorado.
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Poderíamos surpreender-nos de descobrir que justamente as artes de forte dominância religiosa prendem-se muitas vezes à figura humana. Isso me parece fácil de conceber, uma vez que a existência mítica independente da aparência já é convencional. O deus já está inventado, e sua existência é indestrutível, seja qual for a aparência que ele tome. Seria quase como contradizer esse sentimento artístico tão radical sobre o plano da forma, esgotar-se no nível dos conteúdos concretos e não consagrar todas as suas forças a adorar a forma – a própria existência do deus. Pois apenas a forma na arte está à altura do ser dos deuses. Talvez o fiel queira prender o deus ao homem ao representá-lo como tal, e talvez assim o faça por piedade; porque ninguém é mais egoísta do que o fiel que tudo oferece ao deus, mas, sem o saber de fato, o faz homem. Cabe agora explicar também a expressão singularmente solidificada dos rostos. Essa rigidez nada mais é do que o último grau de intensidade da expressão, liberada de qualquer origem psicológica; ao mesmo tempo, ela permite, sobretudo, a elaboração de uma estrutura clarificada. 7 Cf. nota 1. (N.T.)
Apresentei uma série de máscaras7 que vai da arquitetônica à simplesmente humana para ilustrar a diversidade de aptidões da alma desse povo. Por vezes é quase impossível determinar o tipo de expressão que representa a obra de arte negra: nela se exprime ou se provoca o terror? Constatamos aqui um belo exemplo de ambigüidade da expressão de sentimentos. Nossa própria experiência nos ensina que duas sensações opostas muitas vezes envolvem expressão idêntica. As máscaras de animais me impressionam profundamente quando penso que o negro toma o aspecto do animal que, em outras circunstâncias, ele mata. O deus reside também no animal morto, e talvez o negro tenha aí o sentimento de sacrificar-se ele próprio quando, colocando a máscara do animal, paga seu tributo à criatura abatida, e, graças a ela, faz-se próximo do deus; nela vê a potência que o extrapola: sua tribo. Talvez, metamorfoseandose no animal morto, escape da vingança que de outro modo o perseguiria. Entre a máscara humana e a animal, há a que é detentora do poder de autometamorfose. Abordamos aqui formas mistas que, apesar de seu conteúdo fantástico ou grotesco, mostram o equilíbrio tipicamente africano. É do fervor religioso ao qual não basta o mundo visível, que se engendra um mundo intermediário; e no grotesco afirma-se, ameaçadoramente, a disparidade entre os deuses e a criatura. Não me deterei em interpretações estilísticas da máscara negra. Vimos como o africano
Mãe e filho. Artista yombe. República Democrática do Congo, madeira. / Estátua. Artista de um grupo étnico não identificado. República Democrática do Congo, madeira, 67 cm. / Prisioneiro. Artista kanyok. República Democrática do Congo, madeira, 38,5 cm.
condensa as forças plásticas em resultantes visíveis. Ainda nas máscaras exprime-se a força da visão em três dimensões que faz afrontarem-se as superfícies, que condensa todo sentido da parte anterior da face em algumas formas plásticas e que elabora em resultantes os menores aspectos capazes de expressar o espaço em três dimensões.
Negerplastik Carl Einstein
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Espaço da galeria Novembro Arte Contemporânea (RJ) na representação do Brasil na ARCO 2008. Na parede, ao centro, trabalho de Matheus Rocha Pitta, artista que ganhou o Premio illy, oferecido pela empresa italiana illycaffè a jovens artistas brasileiros.
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Haverá sempre algo de incompleto no encontro de culturas distintas. Diferenças, porém, não equivalem à impossibilidade de comunicação e sim determinam a necessidade de construir pontes, ligações, entre territórios distantes. A compreensão da arte de um país estrangeiro é possível, em um primeiro momento, por meio de empatia (espontânea ou provocada) com a cultura desse país. É preciso vencer a distância cultural para além dessa primeira aproximação. Por que levantar essas considerações, quando se trata de comentar a participação do Brasil como convidado especial da ARCO 2008? Em primeiro lugar, porque um encontro dessa natureza está em jogo quando as obras de 108 artistas brasileiros são apresentadas 1 Para resumo dos critérios de escolha de artistas e galerias participantes ver http:// www.cultura.gov.br/ (abril 2008).
na Feira Internacional de Arte Contemporânea em Madri.1 E, ainda, porque a condição de país homenageado implica tanto a suposição de que há valores compartilhados como o reconhecimento das diferenças. Uma possível empatia encontra logo seus limites. E, então, é necessário elaborar um trabalho de aproximação, abrir trilhas que permitam atingir conteúdos menos evidentes na produção cultural apresentada. É justamente nesse campo que a curadoria da representação brasileira, compartilhada por Moacir dos Anjos e Paulo Sergio Duarte e, em etapa complementar e indireta, por 34 galerias brasileiras que representaram os artistas por eles
2 Ambos foram publicamente apresentados em 2007 durante a visita da diretora da ARCO08, Lourdes Fernandez, em que se anunciou a escolha do Brasil como país homenageado.
selecionados, adquire especial importância.2 Cabe aos curadores mediar as diferenças e ir além da receptividade momentânea à cultura brasileira. Será, portanto, com base nesse campo que poderemos refletir sobre a presença brasileira na ARCO 2008. Não há dúvida de que é importante afirmar a arte brasileira, torná-la conhecida e valorizada não apenas do ponto de vista do mercado de arte. Participar da ARCO é como ter voz ou ocupar temporariamente uma cadeira em um fórum internacional da arte. O que se deseja é uma cadeira cativa. O Brasil terá saído culturalmente fortalecido com sua representação na ARCO? A feira, que completou 27 edições e procura recuperar o fôlego, repercute nas principais instituições culturais da Espanha e tem ressonância internacional. Além do interesse espanhol em aproximação cultural com o Brasil, a homenagem veio ao encontro de um projeto do Ministério da Cultura, organizador da representação, que desde 2007 vem apoiando a participação de galerias brasileiras em feiras internacionais
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de arte contemporânea.3 Esse programa é uma conquista objetiva no âmbito da difusão da arte contemporânea brasileira e clara referência da mudança nas políticas públicas de governo para as artes visuais.
3 O Programa Setorial Integrado de Promoção às Exportações da Arte Contemporânea Brasileira foi criado em dezembro de 2006 e é gerido pela Fundação Bienal de São Paulo.
A polêmica antiga, em que se contrapõem o nacional (identificado com o regionalismo e valorizado como autêntico) e o internacional ou global (criticado como cópia de modismos estrangeiros), felizmente, parece ter perdido terreno no âmbito das diretrizes governamentais para as artes visuais. Embora não signifique a superação definitiva desse antagonismo, a mudança está associada a renovado entendimento da diversidade da arte brasileira. É possível, então, observar as complexas relações entre a tradição e o novo, cuja tensão mantém vivo o processo experimental da arte. É fundamental abandonar visões simplistas do “nacional” que investem na fácil circulação no mercado de produtos exóticos. No artigo Economia e arte visual contemporânea, o ministro Gil sintetiza as relações entre arte e mercado de modo esclarecedor e preciso. Assumindo o pressuposto de que a arte se afirma no presente (na história), o artigo identifica algo em comum entre a arte contemporânea e a economia: o modo de circulação da arte e o caráter imaterial da economia; ambas têm como base valores simbólicos em rápida transformação.4 Dadas as bases conceituais, como estabelecer, na prática, estratégias de ação que operem esses fundamentos tanto no mercado como na cultura? A presença brasileira na ARCO é bom exemplo para um debate nesse campo, já que reuniu ações coordenadas com esse objetivo. A programação ampliada da representação brasileira incluiu eventos paralelos e outros não oficiais, listados na publicação distribuída na feira. Os curadores Moacir dos Anjos e Paulo Sergio Duarte pertencem a gerações subseqüentes de críticos com forte experiência institucional. Ambos têm atuação em publicações, comissões de seleção e premiação de artistas em diversas instâncias institucionais públicas e privadas e se inscrevem no grupo de formadores de opinião mais atuante no país. A acertada decisão de evitar olhar curatorial único permitiu a abrangência nacional da representação brasileira e foi respaldada na experiência dos dois curadores, para além de suas bases originais de trabalho. Fosse tomada de modo mais decidido, a tática de descentralizar poderia ter levado a recortes analíticos mais definidos e contundentes, aptos a se inscrever não apenas no mercado, mas no debate crítico que anima as disputas, as afirmações de identidade ou sua negação no debate que marca o encontro das diferentes tendências da arte – essa arte a que o ministro sabiamente se refere como valor imaterial, simbolicamente determinado. A participação de mais de uma centena de artistas brasileiros mostra como a diversidade e a força da produção supera conceitualmente os limites de atuação de dois curadores
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4 “Economia e arte visual contemporânea”, artigo do ministro da Cultura, Gilberto Gil, foi publicado no jornal O Estado de São Paulo – São Paulo, 11/02/2008 no catálogo geral da ARCO08 e em Brasil Arte Contemporânea, edição bilíngüe (espanhol e inglês) com 64 páginas, incluindo textos dos curadores e de críticos que participaram do Fórum de Especialistas. A revista contém referências para o acesso à informação sobre a arte brasileira e a programação completa de eventos brasileiros.
para a condução de um projeto dessa ordem. Um aspecto positivo foi a de não recaírem na polarização entre duas posturas curatoriais. Transpareceu neutralidade conceitual que parece ter sido desejada, quando Paulo Sergio considera a hipótese de que há um esgotamento do modelo de curadoria iniciado nos anos 80 e de “seus projetos temáticos apoiados em frágeis teorias”. Essa mesma neutralidade aparece na entrevista concedida por Moacir à revista Brasil Arte Contemporânea. Os dois posicionamentos curatoriais se apoiaram em atitudes semelhantes. No caso de Paulo Sergio, questionando o próprio lugar do curador e de suas “frágeis teorias” e no de Moacir por se pautar em duas considerações: a recusa da idéia de que a arte brasileira seria apenas aquela “feita no Brasil” segundo um conjunto de códigos elaborados nas regiões hegemônicas do mundo e a rejeição de quaisquer “concepções fundamentalistas de expressão identitária, as quais defendem associações imediatas e perenes entre cultura e território”. Pouco pôde ser observado pelo visitante da ARCO quanto às genealogias que se misturam no hibridismo cultural brasileiro referido por Moacir. Esse debate aconteceu no âmbito dos eventos do Fórum Paralelo de Especialistas organizados pelo Brasil: “O que é, afinal, a arte brasileira?”, com Moacir dos Anjos (PE), Luiz Camillo Osório (RJ) e Agnaldo Farias (SP), e “O caráter ambíguo da modernidade tardia”, com Paulo Sergio Duarte (RJ), Marisa Mokarsel (PA) e Laymert Garcia dos Santos (SP). Os participantes publicaram na revista Brasil Arte Contemporânea breves textos introdutórios ao fórum. Agnaldo Farias retoma a polêmica entre concretos e neoconcretos, e evoca a rivalidade entre os principais centros culturais do país. E, assim como artistas e galerias disputam a atenção e os recursos dos investidores estrangeiros que visitam os galpões do centro de convenções de Madrid, disputa-se lugar de relevo na história da arte brasileira quando esta consolida sua inserção na história da arte e no mercado internacional. Ao explorar a indagação “O que é, afinal, arte brasileira?”, o crítico Luiz Camillo Osório compartilha com a curadoria o questionamento à “definição de brasilidade” ou a um “signo-Brasil”. Investiga, então, nas obras de alguns artistas, especificidades ou sintomas de uma poética “concebida a partir do Brasil”. A participação de Marisa Mokarsel no fórum, com a conferência “Entre modernidades: as relações e os extremos”, exemplifica os desafios de um projeto de difusão internacional da arte brasileira, quando enfrentamos, internamente, a demanda pela inserção de poéticas locais, surgidas na periferia dos principais centros culturais do país. Abordando a obra de artistas do Pará, onde vive, propôs uma análise do que considera as tensas relações entre extremos na cultura brasileira. O artista, afirma Marisa, “mesmo em situações adversas, assume riscos e elabora sua poética”.
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Já “O sistema de arte e a exigência dos novos tempos”, de Laymert Garcia dos Santos, aponta aspectos cruciais para um debate mais amplo, que abrange as diversas formas de expressão da cultura brasileira: a especificidade das relações entre nossa produção cultural e a formação social brasileira. O tema é pertinente quando se trata de reflexão voltada para o conjunto da produção cultural do país em sua singularidade, em face das diferentes expressões culturais surgidas em economias mais fortes do que a brasileira. Em suas perguntas, Laymert indica a necessidade de pensarmos historicamente essa produção, de refletirmos se “o sistema de arte que temos no Brasil é o que precisamos, e se temos potencial para implementar algo mais ousado, que nos ponha no mapa do circuito internacional de arte em novas bases e em condições mais favoráveis”. Embora, como afirma Laymert, o país se tenha afastado do desenvolvimento por espasmos – entre a preguiça de Macunaíma e o êxtase da Cosmococa – que caracterizou seu atraso e isolamento cultural, “tudo se passa como se as elites daqui ainda não tivessem acordado para o papel estético, social, econômico e culturalmente relevante que a arte tem e deve ter num mundo em aceleradíssima transformação”. Isso, mesmo que já tenhamos no Brasil um fluxo contínuo de criação de qualidade, museus e galerias nas principais capitais e o mercado de arte relativamente organizado. Como essas propostas, apresentadas para o debate no Fórum de Especialistas, de certo modo, apresentam as bases do pensamento crítico que articula uma possível representação da arte brasileira, percebemos que há, ainda, extensa tarefa a ser enfrentada para que a participação do Brasil no debate internacional sobre a arte contemporânea se torne densa. Analisadas as questões relativas às estratégias de inserção da arte brasileira no mercado e a seu encaminhamento prático na ARCO, é necessário refletir sobre o que é particular nas poéticas dos artistas brasileiros apresentados na feira. Como suas obras se inscrevem no campo das poéticas surgidas nas culturas que definem os discursos dominantes na arte contemporânea? Conhecemos relativamente bem seus extremos, o que as idéias de Mokarzel parecem indiretamente reforçar. De um lado, a excessiva valorização da forma no modernismo, algo que o caráter histórico da arte, já suficientemente afirmado, nos permite afastar; de outro, os estereótipos do exótico e do primitivo, que imagens da antropofagia tentam retomar para subverter. O que haverá entre eles? A simples observação das obras dispostas nos espaços desenhados por Marta Borgéa, no segundo andar do pavilhão 14, foco principal da representação brasileira, revela o problema com que se deparam curadores e representantes institucionais, cujas idéias estão apontadas em Arte Contemporânea Brasileira: o de valorizar a diversidade cultural brasileira mesmo que seu mapeamento esteja ainda por se desenrolar. Em espaços compartilhados e abertos, como se fossem corredores secundários transversais às passagens principais, as galerias dispunham de paredes com aproximação lateral
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de visitantes. Essa estrutura de espaço interligado pretendeu mediar a necessidade das galerias de individualização e a proposta curatorial de suspender a distinção entre elas, para valorizar a totalidade das obras. O esforço de conciliação espacial, por um lado, superou o indesejável predomínio de uma obra ou de um grupo de obras sobre o conjunto, por outro, limitou excessivamente a visão simultânea de grupos de obras. Forçou uma aproximação fragmentada, nem sempre produtiva para galerias ou artistas, mas atendeu, em parte, à demanda curatorial. Como todas as galerias foram concentradas no espaço disponibilizado pela feira, o conjunto das obras, mesmo que observado em partes, provocou impacto positivo nos observadores. Ao percorrer os corredores principais da representação do Brasil, o visitante entrava em um território ativado pelo pulso poético de suas obras – uma experiência expressa por sua vitalidade, mais que por conceitos apresentados por seus organizadores. Essas são questões que interessa discutir, mais do que lhes responder de modo pragmático. A convocação feita pela ARCO 2008 para uma representação nacional constitui situação exemplar para nos lembrar de que a questão “O que é, afinal, a arte brasileira?” não terá, provavelmente um final, mas está presente a cada movimento da relação entre curador, artista, instituição e mercado, tanto no Brasil como em países estrangeiros. É tema amplo, mas que permite aproximações iniciais e, portanto, parcialmente apresentadas. O exotismo, atributo que é freqüentemente conferido à cultura brasileira, é resquício do colonialismo. Seus valores resultam de passivo contraste das diferenças; não nos interessam. É necessário um mapeamento dos valores compartilhados e das singularidades que possam contribuir ativamente para o debate ético e estético em um fórum internacional da arte contemporânea. Seria um campo imaginário, em que os valores se alteram, circulam rapidamente e correm no fluxo da história, transformados por vozes que, por um instante, lhes conferem sentido. E se transformam porque há sempre algo incompleto no encontro de culturas distintas.
Luiza Interlenghi é mestre em Curatorial Studies, Bard College, NY, EUA (2002), e História Social da Cultura, PUC-RJ. É diretora da Escola de Artes Visuais do Parque Lage e professora da Universidade Candido Mendes. Na Funarte implantou o Projeto Macunaíma (1987) e atuou como curadora e crítica. Diretora e curadora do MAC-CE, Dragão do Mar, curou a série de exposições Experimental (2003-04).
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A absolvição do “gânsgter da sensibilidade”:1 Yves Klein. Corpo, cor, imaterial Fernanda Lopes Torres
Yves Klein. Corps, couleur, immatériel. Paris: Éditions du Centre Pompidou, 2006. A inauguração da exposição retrospectiva das obras de Yves Klein, realiKlein e relevo-esponja azul, V. Döhne. 1 Expressão empregada por Yves Klein em Klein, Raysse, Arman: des nouveaux realistes. In Yves Klein (cat. expo). Paris: Centre Georges Pompidou, 2006, p. 264. 2 A tese intitula-se Yves Klein, Andy Warhol, Joseph Beuys: lugares de melancolia e foi apresentada ao Departamento de História da PUC-Rio em dezembro de 2006. 3 “Yves Klein Blue”, azul criado e patenteado pelo artista, junto aos proprietários de uma loja de pigmentos puros, Klein desenvolveu pesquisa a fim de identificar substância capaz de fixar o pigmento no suporte sem alterar sua granulagem. Misturou ao puro pigmento 95% de álcool etílico, também chamado álcool industrial, e acetato de etil, em que se diluiu previamente M-Rhodopas, uma resina transparente.
zada de 5 de outubro de 2006 a 5 de fevereiro de 2007, no Centro Nacional de Arte e Cultura Georges Pompidou, coincide com a conclusão de minha tese de doutoramento, na qual trato da obra do artista.2 O ineditismo dessa segunda retrospectiva na instituição francesa (a primeira foi ali realizada em 1983) reitera o reconhecimento público de Klein como o artista francês do pós-guerra. No difícil período de conclusão do trabalho, não tive a oportunidade de ver a exposição. Com o tempo e o orçamento esgotados, resisti ao impulso inicial de adquirir o catálogo e, só agora, quase um ano após a defesa da tese, peguei o livro de capa dura dourada, em que se inscreve – em azul-IKB,3 evidentemente – o nome do artista. Mais do que asseverar minha convicção acerca do lugar da obra de Klein na história da arte, a realização da mostra no momento de conclusão do trabalho coincidiu com uma espécie de reconciliação com sua arte. Acabei por reapaixonar-me pelo seu azul. É que, inicialmente arrebatada pela cor no máximo de sua saturação, ao longo do trabalho, em vários momentos, dela duvidei – hesitei entre a crença e a dúvida acerca da legitimidade de sua arte. Conforme a pesquisa prosseguia, no entanto, ficava cada vez mais difícil evitar um espontâneo sorriso diante de cada uma de suas propostas irreverentes ou absurdas. A assinatura do céu em Nice ou a exposição de monocromos idênticos vendidos a preços distintos em Milão, a iluminação do Obelisco em Paris ou os “gritos azuis”, a carta dirigida à conferência internacional da detecção das explosões atômicas, quando, com toda humildade e toda consciência
4 Ao final da carta, Klein indica a remessa de cópias para o dalaï Lama, o papa Pio XII, o presidente da Liga dos Direitos do Homem, o diretor do Comitê Internacional da Paz, o secretário-geral da ONU, o secretário-geral da Unesco, o presidente da Federação Internacional de Judô, o redator-chefe do Christian Science Monitor, Bertrand Russel, e doutor Albert Schweiter. Klein, Yves. Explosions bleues. Lettre à la Conférence Internationale de la Détection des Explosions Atomiques. In Le dépassement de la problématique de l’art et autres écrits. Marie-Anne Sichère; Didier Semin (org.). Paris: École Supérieure des Beaux-Arts, 2005, pp. 60-61.
de artista, Klein propõe nada menos do que pintar em azul as bombas A e H.4 Sem a certeza pela presença plena da obra de arte, uma verdade da arte é como que perseguida – por nós e também pelo artista –, na constante renovação daquela espécie de sorriso. Compreendi então ser essa a “manutenção” de sua arte, vivificada na iminência da manifestação da cor em meio à contingência radical da arte naqueles anos 60. Assim foi que ao fim do trabalho me convenci de meu sentimento inicial e pude experimentar a intensidade desse sentimento como a intensidade do próprio azul-kleiniano. Quando soube da retrospectiva a ser realizada no Beaubourg, veio-me então mais um “sorriso”, de outra espécie, definitivamente impossível de ser contido. Na apresentação do catálogo, a curadora Camille Morineau reconhece em Klein o cultivo de uma “arte do paradoxo”, que equivale ao que identificamos como seu trânsito por
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entre os pólos da crença e da dúvida radicais acerca da arte. Onipresente nos artigos do catálogo como um diagnóstico preciso, esse aspecto paradoxal5 é ali mais exposto em seus sintomas do que investigado em suas causas. A coincidência entre o (decisivo) período final da tese e a segunda retrospectiva de Klein evidencia o difícil limite entre trabalho acadêmico e aproximação cultural. Por certo a qualidade do envolvimento com a obra do artista numa tese não se compara à sua experiência in loco na atual realidade burocrática da arte, da qual, aliás, faz parte o catálogo. Ao experimentar “na pele” a arte do paradoxo de Klein, no entanto, fica difícil deixar de
5 Observamos que o reconhecimento do aspecto paradoxal da obra de Klein não é inédito. Nesse sentido, vale destacar minuciosa análise da historiadora da arte Nan Rosenthal no catálogo da primeira retrospectiva de Klein no Pompidou, La lévitation assistée. Para Rosenthal, a obra de Klein hesitaria entre pesquisas utópicas ou transcendentais e manifestações as mais fraudulentas. Sua pintura age entre a pura emergência da forma do místico/ idealista Malevich e a não-forma do cético/ irônico Duchamp.
notar o caráter instrumental da maior parte dos textos. Eles se concentram em vários dados/informações que, por sua vez, ao convergir para o sensato diagnóstico do paradoxo, não se expandem em uma dimensão crítica fértil. Assim, na tentativa de superar o equívoco da redução da obra kleiniana a atitudes escandalosas, a mostra, tal como registrada no catálogo6 – acaba por se converter no perigo de eliminar a própria arte, submetendo o artisticamente excitante a um conceito cultural.
6 Afinal, vale lembrar essas são observações sobre o catálogo, e não sobre a mostra, à qual estive presente.
A começar pelo reconhecimento do artista como “um dos emblemas da radicalidade artística que conduziu à definição da arte contemporânea”, capaz de anteceder seus homólogos americanos e europeus no “vocabulário, na gramática e na declinação dos tipos de registro dos restos possíveis” (Morineau). Ora, como seria possível a um “emblema de radicalidade artística” anteceder alguém sem perder justo seu caráter radical? Pois, “na ordem poética e artística, o revelador raramente tem um precursor”.7 O argumento de um “Klein precursor” não se presta à “legitimação” da arte – transgressiva por natureza – do
7 Charles Baudelaire. A Exposição Universal de 1855. In A Modernidade de Baudelaire. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988, p. 37.
“gângster da sensibilidade”. Klein compartilha com o experimentalismo artístico contemporâneo o foco na potência poética – reconhecido pela curadora como “um não-fazer que também seria artístico” –, transfigurada em atitudes escandalosas. Provocações, menos inconseqüentes do que produtivas, elas incorporam a contingência própria da arte contemporânea, com destaque para uma inflacionada subjetividade artística.8 Após os prefácios,9 o catálogo se estrutura em três seções: “Corpo, cor, imaterial”; “Klein em seu século”, que marca a presença da obra do artista francês nos Estados Unidos, no Japão e na Europa (França, Alemanha, Itália, Áustria e países do leste europeu); e “Klein e sua imagem”, que trata da auto-elaboração de sua imagem pública. Abrindo a primeira seção, Denis Ryout (Impregnações: cenários e cenografias) liga a ambigüidade da obra kleiniana à sua capacidade de alternar presença e ausência. O autor entende a expressão exaustivamente empregada pelo artista – “sensibilidade pictórica” – como uma especificidade ontológica regida pela noção-chave de “impregnação”. Produção imediata de presença, pintar equivale a impregnar o espaço e o espectador, o que significa anular sua distância em relação à obra. Nesse sentido, Ryout atenta para os “parâmetros
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8 Na última seção do catálogo, somos informados do repertório documental do artista, que conta com mais de 2.000 clichês, desde realizações de antropometrias e cosmogonias a seu casamento com Rotraut Uecker, passando pela confecção das pinturas de fogo, pelo registro da venda das zonas de imaterialidade sensível, em plena luta (judô), etc. 9 Ao todo são cinco prefácios: o da curadora – que, como elegante anfitriã, apresenta seus textos após os de seus “convidados” –, o do presidente do Pompidou, o do diretor do Musée National d’Art Moderne e o do diretor do Museum Moderner Kunst Stilfung Ludwig Wien, para onde segue a mostra. Vale observar que a exposição e o catálogo têm o apoio de LVMH (Möet Hennessy-Louis Vuitton), cujo logotipo, logo abaixo daquele do Centre Pompidou, se destaca em corpo maior. Ao presidente da empresa, Bernard Arnault, também é dada a palavra em texto no qual afirma “que a radical modernidade de Yves Klein inspira hoje os talentos do grupo LVMH”.
técnicos por muito tempo negligenciados”. Afinal, o encanto do monocromo reside em sua qualidade pictórica. A matéria trabalhada “forte e seriamente” deixa visíveis a cor em todo o seu esplendor e a pintura, “epiderme viva à medida que o pintor pinta”. Mais do que se oferecer presente, a obra deve, sobretudo, “impor-se a nós para introduzirse em nosso espírito e, definitivamente ausente, continuar a nutrir nosso imaginário”. Para falar com Klein, “da conversa muda que se estabelece entre o estado das coisas e 10 Yves Klein. L’aventure monochrome. In Le dépassement de la problématique de l’art et autres écrits. Op. cit., p. 227. 11 “Je me suis dit cent fois que la peinture, c’est-à-dire la peinture matérielle, n’était que le pretexte, que le pont entre l’esprit du peintre et celui du spectateur.” Eugène Delacroix. Journal. Paris: Librairie Plon, 1996, pp. 252/253.
mim nasce uma afinidade impalpável, ‘indefinível’, como diria Delacroix”,10 para quem a pintura é mero “pretexto material”.11 Sem se conformar em quadros, a obra impregna o espaço, demonstra o pintor com o vazio. Afinal, a arte não precisa provar para dar corpo a suas ficções, observa Ryout. Basta o gesto, contanto que ele seja justo, isto é, apropriado e executado com maestria. A presença do artista em pessoa conclui o ciclo pintar = impregnar, que, por sua vez, equivale à presença e à ausência. Para estar presente in abstentia, Klein teria previsto e organizado o registro visual de seus atos mais notáveis. Vide a célebre fotografia O pintor do espaço se lança no vazio!, capaz de sintetizar o caráter cenográfico de sua obra. Publicada no jornal Dimanche, definido pelo artista como apresentação teatral de 24h, a foto revela o ato do pintor como coincidência entre sua finitude e o infinito/vazio. Trata-se, aliás, de uma montagem fotográfica do “cidadão honesto do espaço incomensurável da
12 Yves Klein. Le dépassement de la problématique de l’art. In Le dépassement de la problématique de l’art. Op. cit., p. 103.
sensibilidade”,12 que, como tal, deve colocar-se de fato no espaço a fim de pintá-lo. Tal é a encenação do pintor no teatro do vazio, que sai de si mesmo para, afinal, coincidir com esse espaço – vide os artigos do jornal, “projetos cênicos nos quais o artista se apaga” (Ryout). Ótima síntese da arte de Klein, o texto de Ryout introduz o leitor à “aventura monocromo” num ritmo fluido, abruptamente interrompido, no entanto, pela conclusão vaga de sua obra como “um todo poeticamente coerente capaz de fazer aparecer o ‘maravilhoso’”. Yve-Alain Bois toma como mote as observações de Adorno sobre a música de Wagner para
13 Assim como “das resistências de Benjamin Buchloh, para quem Klein é o artista por excelência do capitalismo avançado”, prossegue Bois. Para o crítico alemão radicado nos EUA, ao rematar a apoteose da indústria cultural, Klein “seria o artista da Europa do pós-guerra que inaugurou uma estética não só da contingência institucional e lingüística, mas também da espetacularização absoluta”. Benjamin Buchloh apud Yve-Alain Bois. L’actualité de Klein. In Yves Klein: corps, couleur, immatériel. Paris: Éditions du Centre Pompidou, 2006, p. 75. Vale notar a visão semelhante do crítico belga Thierry de Duve que, segundo a concepção marxista de trabalho, identifica Klein, em Cousus de fil d’or (Art Édition, 1990), com o capitalista, o marchand, o proprietário dos meios de produção.
afirmar a atualidade de Klein. O pensador alemão reitera a natureza espiritual e, simultaneamente, o caráter inacabado das obras de arte, para reconhecer: “o que mudou em Wagner não foi só sua incidência, mas também ela mesma”. Por sua vez, o crítico francês hoje identifica um Klein distinto daquele dos anos 60. Própria de nossa relação com obras de arte, essa atitude ambivalente presente na fala de Adorno teria conduzido o crítico francês “ao seio de suas resistências à obra de Klein e seus entornos” – principalmente seus escritos e os de Pierre Restany, que detinha o monopólio crítico quase exclusivo sobre sua obra até pelo menos 1983. Seguir as notas de Adorno sobre Wagner permitiria a Bois “entrever o nó não só de [suas] próprias resistências a certos aspectos de sua obra e mais ainda de seus”.13 E então Bois acaba por se render à “farsa” do pintor: de Yves Peintures, obra (ausente da exposição) que anuncia a natureza dúbia do procedimento kleiniano no mundo institucional da arte, ao seu azul indubitavelmente maravilhoso.
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Yves Peintures constitui uma espécie de catálogo, como aqueles de artistas consagrados por instituições artísticas e pela crítica especializada. As “obras” consistem em retângulos coloridos, abaixo dos quais se encontram, à esquerda, o nome do artista e, à direita, o título da “obra” (cidades com as quais ele tem alguma relação, como Paris, onde vive, Nice, onde nasceu, Tóquio, onde estuda judô, Londres, para onde viaja, etc.), seguido por suas medidas. Supostamente referentes às pinturas originais, elas correspondem à altura e à largura dos próprios papéis ali colados. O pintor, porém, não nos engana, observa Bois, que reconhece no livro procedimento recorrente do artista, capaz de entrelaçar verdadeiro e falso (tal como Wagner, para quem “o grandioso não se separa do duvidoso”). Os monocromos de formato idêntico em Milão, a notória mitomania de Klein, a venda de “quadros imateriais”: na busca do reconhecimento do “valor real do quadro” se encontra o aspecto paradoxal da obra do pintor francês. Trata-se, enfim, de uma das “condições essenciais da arte moderna”, bem observa Bois, que reconhece nas atitudes escandalosas de Klein a assunção de “o risco do falso (...) o risco de se ver caçoado e dizer que o imperador está nu, mas também o dever que tem toda obra de confrontar esse risco”. A relação paradoxal entre presença e ausência, aliás, pode ser identificada no que logo de saída nos seduz: a cor. O crítico observa que a obsessiva busca do verdadeiro por Klein tocaria uma herança do pensamento wagneriano da cultura francesa em finais do século XIX: o simbolismo. Semelhante aos textos de Gustave Moreau, Charles Morice ou mesmo de Gauguin, a escrita de Klein, sob uma forma mal digerida da Cosmogonia, de Heindel, acaba por acessar indiretamente sua base comum “tingida de neoplatonismo”.14 A aspiração do artista estaria próxima da “própria idéia de ‘visão inteligível’ cara ao pensador neoplatônico”. Visão que suprime “a distância que separa os objetos da visão sensível” e que abole “a distância que separa o sujeito que vê do objeto visto”. Tal teor simbolista/neoplatônico daria, por assim dizer, o tom do azul-IKB – “cor no máximo de sua intensidade por meio de uma lógica mística” –, pois exigência simultânea de imanência e transcendência no constante apelo à “presença, admiração pelo efêmero”. A ligar dialeticamente os dois, a concepção da obra de arte: “registro material de uma força vital cujo brilho é por demais potente para ser captado, mas também muito difuso para ser figurado”. O crítico termina então por se render àquela cor única, “profundidade colorida” não atingida por nenhum pintor antes dele “sem as muletas do contraste”. Klein consegue nos fazer chegar à cor no máximo de sua intensidade “por meio de uma lógica mística em tudo oposta à afirmação da cor, de um constituinte não mimético da prática pictórica”. O “palco” desse jogo entre imanência e transcendência é o meio da arte dos anos 60, em que ele nos mostra “como esvaziar o espetáculo da indústria cultural por uma fanfarrice ainda maior”. Seguem dois (fracos) textos da curadora da exposição, que destaca a materialidade (“encarnação”) na obra de Klein a partir do uso do rosa e do ouro – além do azul, até então protagonista de sua obra. Morineau mais anuncia relações (como aquela entre o monopink
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14 “Lorsqu’il écrit ‘l’esprit ne se sustente pas, il n’absorbe rien, et ne donne rien non plus, il ne repousse pas, il comprend toute chose, vibre de vie”, Klein paraphrase (sans le savoir) Plotin sur l’Un. De même, lorsqu’il parle d’émanation, d’atmosphère enveloppante, de rayonnement invisible, d’enthousiasme, d’extase, d’abolition du mouvement, de vaporisation du moi, de l’au-delà du pensable, d’unité absolue: ce vocabulaire néoplatonicien est très exactement calqué sur celui des Symbolistes.” Yve-Alain Bois. L’actualité de Klein. Op. cit., p. 79.
de Klein e a matière rose de Duchamp) do que as desenvolve, ficando aquém da ambição dos títulos dos textos – “Da impregnação à impressão, do artista ao modelo, da cor à sua encarnação” e “O azul, o ouro e o rosa: como apropriação rima com sublimação”. No segundo bloco de textos, Kaira Marie Cabanas relaciona “a lógica paradoxal” de Klein à espacialidade contemporânea a partir do contato do artista com os letristas franceses, especialmente Guy Débord. Ambos rejeitariam “um espaço reduzido ao traçado e à descrição empirista de sua forma física”, em prol do que o artista se refere como ambiência. Marion Guibert praticamente nada apresenta de novo em relação à presença de Klein na 15 A exposição que inaugura a galeria Alfred Schmela em 1957, as relações com o grupo Zero (1957-61), a decoração do teatro de Gelsenkirchen e a retrospectiva em Krefeld, em 1961, são eventos discutidos desde o catálogo da primeira retrospectiva de Klein no Pompidou. Mais recentemente, vale destacar o texto Yves Klein: Stations in Germany, de Ingrid Pfeiffer, publicado em Olivier Berggruen; Max Hollein; Ingrid Pfeiffer (eds.). Yves Klein. Ostfildern-Ruit: Hatje Cantz Verlag, 2004. 16 From the Myth of Objecthood to the Order of Space: Yves Klein’s Adventures in the Void, publicado no catálogo de 2004, capaz de situar a obra de Klein no contexto francês de modo muito mais produtivo do que o do catálogo em questão. 17 “Essa rivalidade com Rauschenberg, que não pode ser claramente estabelecida, parece ter por origem a convicção de Rauschenberg de que Klein lhe teria roubado algumas de suas idéias mais radicais. Klein data seus primeiros monocromos de 1947-1948, mas é bem provável que eles não tenham surgido antes de 1954-1955. Rauschenberg, em contrapartida, pintou suas White Paintings em 1951, e prosseguiu nesse mesmo ano com pinturas negras, depois, em 1953-1954, com pinturas vermelhas e com folha de ouro. Nessa mesma época, em 1951, ele produzia, com Susan Weil, fotogramas que prefiguravam as séries “antropométricas” de Klein em mais de sete anos.” Nuit Banaï. Dangereuse abstraction: Yves Klein à New York, 1961-1967. In Yves Klein: Corps, couleur, immatériel. Op. cit., p. 204.
Alemanha,15 onde sua obra ganha mais atenção do que na França. Já na Itália, o meio milanês é destacado por Marco Meneguzzo como o único a manter contatos estreitos com a França, oferecendo a inúmeros de seus artistas abertura dificilmente encontrada em seu país de origem. Nessa seção vale destacar o texto de Nuit Banaï,16 que credita a recepção negativa de Klein na Nova York de 1961 a 1967, o que ele compreende como “abstração perigosa”, expressão que intitula seu artigo. A partir de declarações acerca do fracasso da mostra do pintor na galeria de Leo Castelli em 1961, o autor considera o monocromo a “muito francês” ou “muito elegante” para a apreciação do público norte-americano. O mote para tal consideração: a noção de “decoração”, que “funda a rivalidade estética e pessoal entre Klein e Rauschenberg”17 e se encontra relacionada ao termo corny. Para Banaï, o perigo dos monocromos residiria numa reversão crítica transgressiva do termo em relação ao kitsch, capaz de “assustar os artistas nova-iorquinos sob a influência ideológica de Clement Greenberg”. Afinal, prossegue o autor, “o monocromo corresponde, em diversos aspectos, à definição que Greenberg dá do kitsch, como reciclagem de uma forma vanguardista no contexto do consumo de massa e do capitalismo avançado”. Plenamente consciente do fato de que a “cultura do espetáculo perverteu todos os aspectos da vida e da produção artística”, Klein integra o kitsch a seu dicionário pessoal ao procurar reverter seu sentido greenbergiano. Apropria-se assim do termo corny: “o ritualiza e o torna produtivo [como] um meio de dominar a força potencial do kitsch para infiltrar a vida cotidiana”, a fim de superar a submissão à cultura do espetáculo. Já a retrospectiva póstuma no Jewish Museum em 1967 mitifica um Klein “romântico” e “visionário” (Kynaston McShine), cuja obra é reconhecida pela imprensa como um divertimento leve. A terminologia muda, mas permanece o teor negativo da recepção nova-iorquina à sua arte. Klein resistiria ao trabalhar com mais eficácia a ligação entre arte e os mecanismos do espetáculo do que a própria indústria cultural ou qualquer
18 “A radicalidade do monocromo de Klein se deve ao fato de que ele é ao mesmo tempo completamente condicionado por seu ambiente, pelas alterações fenomenológicas do corpo e é também uma coisa absoluta em si.” Nuit Banaï. Op. cit., p. 206.
outro artista nova-iorquino de então. E assim, de certo modo, irritaria essa indústria, afirma Banaï, para quem o monocromo se aproximaria da pureza perfeita – “equilíbrio perfeito entre as flutuações e variações da temporalidade contingente e da estabilidade do objeto finito”.18
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O pintor encontra mais tolerância em Los Angeles, onde ocupa lugar à parte no imaginário de artistas como John Baldessari ou Chris Burden. Já em Viena, para onde segue a mostra, a pintura de Klein é relacionada ao “acionismo” de artistas locais (pouco expressivos na história da arte). Marcando presença também nos países eslavos e no Japão, a obra do artista nos é apresentada fundamentalmente a partir de dados pontuais, que, à exceção do texto de Banaï, dão a tônica dessa seção. Terceira seção do catálogo, “Klein e sua imagem” abre com a reprodução de artigos publicados sobre o artista e sua obra na imprensa de vários países. Em “A imagem escrita” lemos sobre o rumor público suscitado por sua obra assim como sobre suas desavenças com Restany acerca da posição do Novo Realismo em relação ao Dadá e a Duchamp. À construção da imagem de Klein com a palavra segue sua (auto)construção pela fotografia e pelo cinema, em “A imagem fotossensível”. Consciente da nova força da mídia, o artista escolhe o que fixar para a posteridade e propositalmente confunde o registro fotográfico (e cinematográfico) de sua obra – “documentação das várias manifestações do momento pictórico sensível” – com a elaboração pública de sua persona. Já “A câmera saberia ser a testemunha do irrepresentável?” comporta as incursões cinematográficas experimentais do artista, como os filmes de película colorida e as esponjas em azul-IKB filmadas em planos amplos, ou o filme de Klein e Rotraut nus no terraço em Saint-Tropez, “evoluindo num universo em alumínio refletindo o azul do céu”. Em seguida, “Yves Klein visto pelo cinema” traça uma relação entre a obra de Klein e o cinema de arte da época. Em “A imagem redefinida do artista”, lemos sobre a já conhecida relação do artista com o judô, o trabalho realizado em colaboração com outros artistas e a dimensão política (francesa) concernente ao vazio.19 Os textos acompanham com eficiência os instrumentos que o próprio Klein nos fornece acerca da “realidade complexa” (Morineau) de sua obra. Próprio intervalo em que a obra funciona – no qual ficamos suspensos, sem passagem para além dela –, tal realidade acaba “ocupada”, no catálogo em questão, pelo cumprimento burocrático da tarefa de situar a obra do artista no contexto internacional. Os textos mais respondem a perguntas pontuais do que suscitam questões – bem ao contrário de Yves Peintures (1954), catálogo criado/simulado por Klein (que dificilmente se poderia imaginar com uma publicação como a produzida pelo Georges Pompidou, com apoio da Louis Vuitton), que nos remete a obras originais, dali ausentes. Ao fazer a leitura de Yves Peintures, porém, nós nos damos conta de que as medidas das supostas obras são as dos pedaços de papel coloridos ali presentes. Somos nós que pressupomos a existência de originais. Nós não somos enganados por Klein. Assim como a ausência não implica o falso, a presença não garante o verdadeiro – ou vice-versa. E a legitimidade da obra com a qual Klein ingressa publicamente no meio de arte jamais é assegurada de modo satisfatório. O procedimento prossegue ao longo de toda a sua traje-
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19 Em relação à discussão de Klein e o judô e do contexto político na França, os textos do catálogo da mostra exibida em Schirn Kunsthalle Frankfurt e Guggenheim Museum Bilbao são superiores. São eles, The Dissolution of the Ritual into the Void, de Olivier Berggruen, e o texto de Nuit Banaï, aqui citado respectivamente.
Klein, Niki de Saint-Phalle, François Dufrêne e Villeglé retirando quadros das paredes do Musée d’Art Moderne de la Ville de Paris (sem crédito/publicado no catálogo resenhado).
tória. Sem perder a “compostura”, ele assume enfaticamente o risco de cair no ridículo.
20 Klein levanta aspectos relativos à legitimação da pintura através de uma espécie de farsa, à qual devemos aderir para que sua arte aconteça. O pintor recorre a um gênero teatral popular, de comicidade exagerada e ação irreverente, com elementos de comédia de costumes. Faz uso de objetos de cena do meio de arte, sejam aqueles “concretos”, como convites ou salas de exposições, sejam aqueles mais “abstratos”, como o autêntico valor imaterial da obra de arte (negociado como zonas de sensibilidade pictórica imaterial). Sem a intenção de nos enganar, o artista se apresenta de modo simpático a fim de encorajar a audiência a identificar-se com ele e esperar seu sucesso. A começar por “estruturas de sensibilidade” para enfrentar o conformismo estético reinante, pequenas ações deliciosamente ridículas, como a distribuição de um líquido azul para a audiência da exposição na Collette Allendy, seguidas por investidas mais ambiciosas, como a climatização de Paris a partir do Obelisco ou a Revolução Azul, proposta em carta a Eisenhower. O tom de seus discursos é sempre exclamativo, e seu humor concreto, próximo das comédias-pastelão, como fica evidente nos gritos azuis, em que o artista simula reações exaltadas de Antonin Artaud, de François Dufrêne e do crítico de arte francês Charles Estienne (que atuava junto aos abstracionistas franceses), diante da visão de suas obras.
consiste numa espécie de farsa20 de pintura. Pois, como afirma Yve-Alain Bois, ele bem
Busca ininterrupta do inesperado – salto ou queda, morte temporária ao mundo de todo dia seguida por renascimento –, a aventura monocromo, supostamente inconseqüente, sabe que “num mundo onde tudo se tornou mito e espetáculo, só a espetacularização do mito e do espetáculo pode conter uma parcela de verdade, assim como sua acusação”. O eficiente diagnóstico de uma “arte paradoxal” tende, no entanto, a converter essa farsa numa espécie de épico. Registros ou “objetos de cena” por ele realizados ou encomendados são apropriados pela curadoria/instituição conforme seus interesses/demandas. E sem direito à defesa, que corresponderia de fato a uma acusação, o gângster da sensibilidade acaba por ser completamente absolvido.
Fernanda Lopes Torres é doutora em História Social da Cultura pela PUC-Rio e professora substituta do Instituto de Artes da UERJ.
A absolvição do “gânsgter da sensibilidade”: Yves Klein. Corpo, cor, imaterial Fernanda Lopes Torres
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Ludograma 3, La Casa Encendida, Madri, junho de 2007.
Laboratório relacional Ludotek
[Convidados à Documenta 12 para participar do ciclo Lunch Lectures, Tradução Gisele Ribeiro.
coordenado pelo Departamento de Arte e Mediação] Trata-se do lugar. de jogar com o lugar e lugar o jogar. lugarizá-lo jogando-o e jogá-lo lugarizando-o. não tentamos definir o lugar. não sabemos que coisa é o lugar. quem são o lugar. mas, sim, sabemos que o lugar é uma realidade cronotópica em que se manifestam e inter-relacionam atividades muito distintas e diversas. em que se produzem conexões. interseções. influências. movimentos. algo acontece ou não acontece. uma aproximação dialógica que aborda seu excitante caráter poroso. não se trata de criar novas babilônias, nem de desenvolver projetos de formas possíveis e solidárias com o jogo. não sabemos quem determina os espaços, nem quem projeta seus usos. mas ao jogar o lugar e ao lugar o jogar perverte-se a vontade de submissão. ocupa-se o vazio. no empreendimento de renovação das atividades contemporâneas todas as ferramentas já se encontram aqui. tudo já se encontra aqui. nada tem que ser inventado para nos posicionarmos de supetão, de súbito, na autonomia definitiva.
Trata-se do jogo. sempre se tratou disso. não é uma teoria sobre o jogo. mas uma prática sobre o jogar. não é um discurso que se desdobra em outro. não se trata aqui de utilizar o jogo para exemplificar um discurso. nem se trata de discursivizar o jogo. trata-se de jogo mesmo como exemplo. sem discursividade nenhuma, salvo a ação sobre o espaço e o tempo lúdicos. nada de renovações espirituais. unicamente a apresentação de um sistema de ações simples, sob as quais pulsa intensa atividade simbólica. um sistema laboral que deve reproduzir no âmbito sígnico algo tão simples (e aparentemente complexo) quanto a sociabilidade humana. a vida começando e acabando. seu permanente movimento. as interações sociocronotópicas sem outro fim além de si mesmas. Trata-se da desordem. o desórgão, a desarticulação. o centrifugado. deve-se estabele1 Segundo a tradução para o português brasileiro do livro O que é a filosofia? de Deleuze e Guattari, a palavra “afecto” é mantida em sua grafia com “c”, diferindo de “afeto”, ou do verbo “afetar”. Sendo essa discriminação inexistente em espanhol, mantivemos a palavra “afeto” e “afetar”, embora valha a pena ter em mente também o termo utilizado no capítulo “Percepto, Afecto e Conceito”. In Deleuze, Gilles; Guattari, Félix. O que é a filosofia? Trad. Bento Prado Jr. e Alberto Alonso Muñoz. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1997. (N.T.)
cer a desordem geral. o desórgão permanente. desligar-se do corpo abstrato da cidade, de seus quadros urbanos ideais, para recompor um corpo que deve necessariamente ver, tocar, ouvir e cheirar de outro modo, porque afeta1 e deixa-se afetar de modo dialógico e disperso. a realidade rasgou-se em pedaços. as formas de poder moderno têm-se ocupado em reconstruí-la e torná-la assim muito mais suportável. nada de realidades novas. nada de órgãos novos. nada de ordens novas. nada de projetos novos. desrealizar o real. desorganizar o órgão. desordenar a ordem. desprojetar o projeto. a realidade é suficiente. vida longa ao realismo.
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Trata-se de crianças. sua maneira de construir universos regidos por suas próprias leis. seus sistemas efêmeros de relações. suas constelações simbólicas. o mundo adulto olha com nostalgia a doce irracionalidade da infância. sintoma de nosso tempo que acabou convertendo-se em um tipo de enfermidade cultural. por trás da vontade contemporânea de seguirmos sendo crianças podemos reconhecer uma perda referencial do mundo adulto como modelo. a maturidade é um inferno. a imaturidade estende-se radicalmente em nosso tempo. somos incapazes de considerar o desastre algo lúdico. e isso é fatal. trata-se de nos aproximarmos dessa infância temporalmente autóctone para refletir sobre nossa infância temporalmente alóctone. Trata-se da arquitetura imaterial. não são desejáveis inovações espirituais. tampouco são desejáveis inovações técnicas. não é desejável o desejo em nenhum caso. acabar com a promessa das formas emancipadoras. sabotar toda instância da representação. abolir as assembléias da matéria fantasmal. acabar com o fantasma. a força que se torna imaterial jamais pode ser derrubada. modular o afeto. afeto relacional. sempre em movimento. imaterializar, então, as forças. multiplicar as possibilidades. ensaiar o movimento sociofísico. ensaiar o projeto contra-escópico. projetar a folha em branco. dar vez à vida. a uma riqueza que torne possível a autonomia referencial e que permita a construção real da vida mediante o restabelecimento relacional entre os indivíduos e seu mundo.
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Ludotek + C. A. S. I. T. A. Komando transparente, Matadero-Intermediae, Madri, junho de 2007.
Trata-se do apoderamento. ser soberanos sobre o tempo e o espaço. autoconfiança. capacidade para lutar pelos próprios direitos. independência. aumentar o poder coletivo sobre os recursos e decisões que afetam nossas vidas. a vida social é uma questão de prática. todos os mistérios que deslocam a teoria em direção ao misticismo encontram solução na prática humana e na compreensão dessa prática. a opinião desmobiliza. apoderar-se é viver super-já, agora mesmo. agora já. aqui já. nunca super-nunca. a força se acumula em nós. centrifugamo-la. por isso parecemos tão feios e sujos, porque nasce em nós a revolta e em nós acumula-se a força de erupção. acabaremos transformando tudo. incluindo a você que nos quer derrubar. Trata-se da vida. de sublinhar a vida. lançar-se ao mundo. as novas tribos afetivas devem desdobrar seus novos rituais vivificadores a fim de fazer do tempo algo usual e do espaço algo cultual. deixar-se viver é permanecer sempre no seio que nos carrega. fazer desaparecer a insegurança. que todo o universo se torne cronotopia íntima na qual não seja possível sentir-se fora. lançar-se ao mundo e celebrar a colisão. tudo deve arder. nada deve queimar. O que busca ser todo colo. O que busca estar sempre dentro. O que não teme ser vulnerável diante das feras. O que joga o jogo. O que põe ainda mais em perigo seu trabalho. O que despreza a vitória. O que não observa nem examina, mas com presença de espírito mantém sua disponibilidade para os signos. O que se deixa comover. O que mostra seus olhos. O que empurra pela frente. O que acena para os outros. O que decide só quando está entusiasmado. O que fracassa tranqüilo. O que toma seu tempo e que sobretudo dá voltas, rodeia. O que se deixa levar por caminhos que não pretendia passar. O que não opina. O que sai de férias. O que se move com o vento. O que despreza a desgraça. O que destrói com riso o conflito. O que se move em direção ao movimento até que o sussurro de sua voz, já fora de si, seja todo amor. O que vai atrás de você. O que nasceu da insurreição por vir.
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Ludotek propõe materiais que permitam realizar uma exploração crítica da atividade lúdica do indivíduo contemporâneo. Entendemos que a arte é uma (des)organização partilhada entre objetos, imagens e gente. Ludotek é portanto um laboratório de formas vivas, sempre em movimento. Decididamente instalado na esfera intersticial e no materialismo do encontro, Ludotek não produz imagens a ser consumidas, mas experiências a ser agenciadas. Os trabalhos que propomos são ensaios videográficos, ludogramas, documentos testemunhais, arquivos de afetos, pequenos exercícios de crítica, que têm como fim abordar distintas problemáticas relacionais. Trata-se do jogo, mas não queremos jogar, queremos trabalhar. As ferramentas e a tecnologia já estão dadas. Nenhuma forma nos vai liberar. Nenhum projeto logrará emanciparnos. Basta a disposição de (des)organizar os trabalhadores do símbolo e a realidade para que sejam capazes de gerar uma nova riqueza imaterial, emancipada da tirania do consumo, apreensiva com o presente, resistente à aceleração, capaz de derrubar a reificação generalizada produzindo situações imanentes e dialógicas. Uma nova riqueza que torne possível a autonomia referencial e que permita a construção real da vida mediante o restabelecimento relacional entre os condivíduos e seu mundo.
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Sindicato del juego, Liquidación Total, Madri, março de 2007.
Projetos 2007 - Hurling oneself into the world / Lunch Lecture. Documenta 12. Kassel / http:// www.documenta12.de/fileadmin/lunch_mp3/lunch_lecture_-_folge_91.mp3 2007 - Ludograma 3 / La Casa Encendida / http://ludotek.net/pag/LUDOGRAMA3.html 2007 - Komando transparente / Matadero-Intermediae / www.ganarselavida.net 2007 - Sindicato del juego / Liquidación Total / www.liquidaciontotal.org 2007 - Clashmadrid / Freshforward. Coam / www.freshforward.net 2006 - Refugio contra-escópico / Bilboquet# 6 Albino / www.bilboquet.es 2006 - Ludograma 1 / UAH / Aula de Danza Estrella Casero / LCE / http://tinyurl. com/22h7p6 2006 - Ludograma extra-escénico / Esfera Pública 2005-2006 - Puer-atelier / http://ludotek.net/pag/PUERatelier/indice.htm 2005 - Puericultura psicogeográfica / http://tinyurl.com/2dqe4x 2005 - Espumas / Europan 8 / www.freshforward.net
Ludotek são Rafael Sánchez-Mateos Paniagua, Susana Velasco e Jordi Carmona Hurtado / + Amigos. [www.ludotek.net] Rafael Sánchez-Mateos Paniagua é dramatólogo, artista e pesquisador UCLM. Profesor de Análises de Formas-Arquitetura Upsam. Diretor www.bilboquet.es Susana Velasco é arquiteta, artista e pesquisadora Etsam. Profesora de Análises de Formas-Arquitetura Upsam. Jordi Carmona Hurtado é filósofo e pesquisador em Paris VIII. Coordenador www.bilboquet.es
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Abstracts Extradisciplinary investigations –
According to the old modernist tropism, art designates itself first of all, making self-reflexivity its identifying feature.
Towards a new critique of institution
This text describes a new tropism and a new reflexivity, involving artists as well as theorists and activists in a passage
Brian Holmes
beyond the traditional limits. The word tropism conveys a desire to turn towards an exterior field, while the notion of
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reflexivity now indicates a critical return to the initial discipline. This transformative spiral is the operative principle of the extradisciplinary investigations. Institutional critique, immanent critique, extradisciplinary.
The body’s contagious memory
A large part of the work of Lygia Clark (consists in propositions that involve the body in its sensible capacity to be affected
Suely Rolnik
by the other. The work, here, ceases to be limited to the object to realise itself as event of the poetic relation between its
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receivers and the world. It is impossible to present such works exclusively by exhibiting the objects used in the actions they implied or the documentation of said actions, as that reduces them to a fetish emptied of its critical vitality. How to convey this kind of work? Memory, micropolitics, macropolitics.
Fragments for other history of modern art
Starting from the precept that the historical narrations are historical constructions and with the purpose of rethink
Diana B. Wechsler
about the canonical topics of the history of modern art, this essay will test the possibility to reflect about this stories
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considering different sources. The main hypothesis is that this documents offer other names, actors, problems, etc. and because of that, admit other narrations and with them, “other” modern art story. Modern art, cultural metropolis, Latin America.
Parisians in Brazil, Brazilians in Paris:
This article is based on a paper presented at the ‘Imagined Modernities: Travel, Literature, Illustration and the Nation State
travel accounts and national modernism
in Asia and the Americas 1850-1950’ conference at the Department of Anthropology, Universidade de Coimbra, Portugal
Michael Asbury
February 2004. The essay traces the exchanges between modernists in Brazil and in France during the 1920s arguing that
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such encounters generated moments of cultural contamination for both parties. Modernism, purism, hybridism.
Presence of brazilian art:
The situation of historiography, and especially of the main mediation that the exhibitions realize in and out of Brazil
history and international visibility
determine the conditions of cognitive and public visibility of brazilian art. A short walk through some of them suggests
Stéphane Huchet
how the recent international projection of brazilian art gives it more oportunities to exist in some lasting way than do
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the research realized in academic spaces, those one suffering a prejudicial lack of infrastructures to be recognized and divulgated. This analysis sets the issue of the relations and geopolitics of exchanges between Brazil and others centers, the rewriting of global history of art seeming find nowadays a more favourable context, unless not yet concretized. Brazilian art, historiography, geopolitics of exhibitions.
Art as attitude –
In the following interview, given by e-mail, between October 19th and 30th, in 2007, Camnitzer answers in Spanish to
Interview with Luis Camnitzer
questions made in Portuguese about a possible redefinition of the educational mediation status, the relationship between
Cayo Honorato
mediation and artistic practices, the limits and the possibilities of those activities facing the corporative logic and since a
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colonial context, the education of the artist, among other questions. Yet this is an inevitable reference, we choose not to make questions straight about the pedagogical project of 6th Mercosul Biennial, exactly, in order to try “to go further”. Educational mediation, artistic practices, corporative logic.
News of the desolation –
In Zygmunt Bauman’s own words the “natural” production of waste brought about by progress is now extending to human
Notes on art and real
beings in global cartography. Man-made waste is in otherness territories, outside the borders, and above all it is the
Fernando José Pereira
distressing result of a perverse combination between uncontrolled profit and cultural hypocrisy. We can see a similar
Pages 86-97
phenomenon in contemporary art: the expansion of mega-corporations matches the expansion of mega-exhibitions a bit everywhere around the world, and particularly in the “outside” territories, within an import-export logic that has not much to do with its primary assumptions. The reaction to this kind of situation is possible albeit disenchanted. The analysis carried out by Claire Bishop from the theoretical and political premises of such antagonism allows for the existence of a different way, the one that is shared by the experimental condition of desanaesthesia, that is, unveiling fractures with no relief restrictions. While it strengthens the ever desired approach to the real, it naturally moves away from the pragmatic normalization and standardization of liberal expansibility and it openly chooses a diverse condition instead: the one favouring desire. Globalization, biennials, antagonism.
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Fabiola do Valle Zonno
Vito Acconci is a multiple profile artist. Working on performances, poetry, installations, video, urban art and, recently,
Multiplicity in Vito Acconci´s poetics:
architecture, Acconci sees himself as an agent capable of acting at public spaces as he does at the gallery: questioning
landscape and performance and architecture
the limits between public and private, as well as expanding the notion of performance to the city space and its agents.
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The article analyses some of his works on performance trying to link them to his city designs and proposals. Connected to Pop Art irony and opened to the social processes of a dynamic reality, Acconci´s works directly question the architectural field, arguing about actions strictly functionalists, or attached to typologies and instutionalized schemes or any kind of restrictions to a free appropriation of space - which are in the artist’s poetics point of departure not only for the art itself but mainly to those who “live” it. Vito Acconci, performance, architecture.
Conversations Reguladas –
In September of 2007, was opened in Porto Alegre / RS the 6th Biennial of Mercosur, which was called by organizing com-
Comments in a display of visual arts
mittee of Pedagogical Biennial. With this speech, I will present in this text, some lessons were developed from a mediated
Dorcas Weber
visit to the school during one of the shows that formed this edition of the Biennial, such as the behavior in an exhibition
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of art. Look for also indicate actions of regulation that permeate the actions in the educational shows. Biennial of Mercosur, regulation Aactions, cultural pedagogies.
Immaterial patrimony,
We have a field of knowledge in Brazil in which social scientists are called to act upon, as the recent development of
performance and identity
policies for the “immaterial” patrimony occurs. This article is an academic attempt to discuss about important concepts
Letícia C. R. Vianna e João Gabriel L. C. Teixeira
which are present in the orientations of these policies. The correlation between the ideas of performance, authenticity and
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identity in the elaboration of these policies are underlined here. Patrimony, performance, identity.
A few issues corcerning art today
In this text we discuss a few issues that concern art in the context of contemporary societies. We explore how a new
Janice Caiafa
configuration of power established certain imperatives and argue that it is by developing a special type of engagement
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that art would be able to challenge them. We thus try to individualize qualities or intensities of artistic creation that would work as effective forces in this confrontation. Art, power, technology.
The social turn:
Claire Bishop engages on the task of critically discussing, analyzing and comparing, as art, collaboration projects which
collaboration and its discontents
in the late years have been appearing more frequently. At one hand, those practices do not get too far from practical
Claire Bishop
policies of social inclusion. On the other hand, as Bishop says, the art criticism, while suffering from lack of criteria, has
Pages 144-155
been judging them from an ethical point of view. Nevertheless, she says that the best examples of art based on social collaboration tend to think aesthetic and social-politics altogether, without thinking of submitting them to the ethics. Based on Jacques Rancière, she defends the aesthetic regimen as an ability to think about the contradiction. Or, In other words, the always confusing relationship between autonomy and heteronomy. Collaborative art, relational projects, creative actions.
A critic without ornaments –
Due to Carl Einstein’s Negerplastik, book published in 1915, the text briefly presents Carl Einstein (1885-1940), an intel-
Due to Carl Einstein’s Negerplastik
lectual and cultural activist who was also art critic, historiographer, editor, translator and a multiple writer. In the end,
Roberto Conduru Pages 156-162
questions about the Portuguese text’s edition pertinence in Brazil in the actual days are formulated. Carl Einstein, modernism, history of the art history.
Negerplastik
While analyzing artifacts deriving from Africa as works of art (sculptures, masks, tattoos), and relating them to socio-
Carl Einstein
cultural traditions from which they come and to the art’s “could-be” in an universal sense, questions referring to artistic
Pages 163-177
perception and creation, form and space, body and society, are discussed. African art, sculpture, modern art.
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concinnitas ano 9, volume 1, número 12, julho 2008
Sobre Concinnitas A revista Concinnitas é uma publicação semestral do Instituto de Artes da UERJ, criada em 1996 e, a partir de 2005, vinculada ao Mestrado em Artes da instituição. O termo concinnitas, extraído do tratado de pintura de Leon Battista Alberti, refere-se a um “juízo de gosto para além das opiniões”, refletindo a exigência editorial de independência acadêmica e rigor científico. O periódico tem como objetivo primeiro produzir e difundir saberes, a fim de proporcionar melhor compreensão dos problemas relacionados à criação, fruição e reflexão no campo da arte e da cultura. Deseja, portanto, constituir-se como lugar de pesquisa tanto no campo da produção artística como naquele dos discursos teóricos, historiográficos e críticos da arte, ou seja, dos processos de construção de sentidos, reunindo saberes de maneira a adensar os estudos e experimentos de arte e cultura. Assim, pretende responder à necessidade de formação de artistas, docentes e pesquisadores, bem como do público em geral, atendendo à demanda crescente de profissionalização, aperfeiçoamento e especialização do campo da arte e da cultura, e contribuindo para melhorar qualitativamente a produção, a pesquisa e o ensino. Como objetivo da revista consta ainda a criação de conexões estreitas entre pesquisa, extensão e ensino universitários não só pelo estímulo à produção e à pesquisa discente, mas, sobretudo, por meio de seu processo produção. Desde 2002 a publicação passou a Projeto de Extensão universitário, constituindo um laboratório editorial, do qual participaram, até 2005, alunos de graduação, mas que, com a vinculação ao Mestrado, pretende contar também com alunos de pós-graduação.
Normas para publicação Concinnitas adotou uma estrutura de pauta que segue a seguinte ordem: um dossiê reunindo artigos sobre tema definido pelo conselho editorial, para o qual são convidados ensaístas nacionais e estrangeiros, que possam contribuir significativamente para o debate que o dossiê pretende levantar; um portifólio ou um ensaio de artista convidado, cujo trabalho é encartado no miolo da edição; artigos livres recebidos da comunidade acadêmica e artística e que sejam aprovados pelo conselho consultivo da revista, composto por pesquisadores das áreas de artes plásticas e visuais, história, historiografia, teoria e crítica de arte, cinema, vídeo, webart, teatro, dança, música e literatura, que compõem o campo da arte e da cultura na contemporaneidade. Faz parte, ainda, da estrutura de pauta a publicação de entrevistas com artistas, críticos, historiadores e teóricos da área de arte e cultura, que tanto pode ser de iniciativa dos editores, como enviadas por colaboradores. A revista Concinnitas aceita também resenhas críticas de obras publicadas e de exposições ou eventos na área de arte e cultura, além de revisões e/ou traduções de artigos relevantes. Os textos, que podem ser enviados em qualquer época do ano, devem ser inétidos e serão submetidos ao conselho editorial, que emitirá parecer. 1. Os textos devem ter até 40.000 caracteres (sem espaço) editados em word, estilo normal, sem hifenação e sem tabulação de parágrafo, com entrelinha dupla. O texto pode ser enviado anexado a e-mail para concinni@uerj.br, em disquete ou em CD-ROM para Revista Concinnitas. 2. A folha de rosto deve conter título, resumo e três palavras-chave em português e inglês, nome(s) do(s) autor(es), endereço eletrônico e físico. 3. A bibliografia deve seguir as normas da ABNT. 4. As notas devem estar numeradas seqüencialmente, em pé de página. 5. Poderão ser enviadas até três imagens, com legendas e não inseridas no texto, mas com indicação de posicionamento. As imagens digitalizadas deverão ser gravadas em formato tiff, em 300dpi, tamanho mínimo 12 x 18cm.
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Universidade do Estado do Rio de Janeiro Reitor Ricardo Vieiralves de Castro Vice-Reitora Maria Christina Maioli Sub-Reitora de Graduação Lená Medeiros de Menezes Sub-Reitora de Pós-Graduação e Pesquisa Mônica Heilbron Sub-Reitora de Extensão e Cultura Regina Lúcia Monteiro Henriques Diretor do Centro de Educação e Humanidades Glauber Almeida de Lemos Instituto de Artes Diretor Roberto Conduru Vice-Diretora Vera Beatriz Siqueira Coordenador de Graduação Marcelo Campos Cursos Bacharelado em Artes Visuais; Bacharelado em História da Arte; Licenciatura em Artes Visuais Corpo Docente Alberto Cipiniuk, Aldo Victorio, Alexandre Vogler, Cristina Pape, Cristina Salgado, Denise Espírito Santo, Ericson Pires, Isabela Frade, Jorge Luiz Cruz, Leila Danziger, Luis Andrade, Luiz Cláudio da Costa, Luiz Felipe Ferreira, Marcelo Campos, Maria Berbara, Maria Luiza Fatorelli, Maria Lúcia Galvão, Miguel Proença, Nanci de Freitas, Regina de Paula, Ricardo Basbaum, Ricardo Gomes Lima, Roberto Conduru, Roberto Corrêa dos Santos, Rodrigo Gueron, Rogério Luz, Sheila Cabo Geraldo, Vera Beatriz Siqueira Coordenadora de Pós-Graduação e Pesquisa Vera Beatriz Siqueira Mestrado em Artes Coordenadores do Programa de Pós-Graduação em Artes Luiz Felipe Ferreira e Leila Danziger Área de Concentração Arte e Cultura Contemporânea Linhas de Pesquisa Teoria e História da Arte; Processos Artísticos Contemporâneos; Arte, Cognição e Cultura Corpo Docente Aldo Victorio, Isabela Frade, Jorge Luiz Cruz, Leila Danziger, Luiz Cláudio da Costa, Luiz Felipe Ferreira, Marcus Alexandre Motta, Maria Berbara, Maria Luiza Fatorelli, Ricardo Gomes Lima, Roberto Conduru, Roberto Corrêa dos Santos, Rogério Luz, Sheila Cabo Geraldo, Vera Beatriz Siqueira Coordenador de Extensão e Cultura Denise Espirito Santo
Agradecimentos Aldo Vitório, Christine Mello, Claudia Valadão de Mattos, Claudio da Costa, Cristina Salgado, Daria Jaremtchuk, Fátima Morethy, Gisele Riberio, Isabela Frade, Leila Danziger, Luciano Migliaccio, Maria Beatriz de Medeiros, Maria Luiza Fatorelli, Nanci de Freitas, Ricardo Lima, Roberto Conduru, Roberto Corrêa dos Santos, Rogério Luz
Revista Concinnitas Instituto de Artes da Universidade do Estado do Rio de Janeiro Rua São Francisco Xavier 524, Pavilhão João Lyra Filho, 11o andar, bloco E, sala 11.007 Maracanã, Rio de Janeiro, RJ, 20.550-013, Brasil Telefones: (55-21) 2587-7491 (r: 6) www.concinnitas.uerj.br concinni@uerj.br / concinni@gmail.com
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