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concinnitas ano 10, volume 1, nĂşmero 14, junho 2009


Universidade do Estado do Rio de Janeiro Concinnitas – Revista do Instituto de Artes da UERJ Editora Sheila Cabo Geraldo Coeditor Luiz Cláudio da Costa (número 14) Conselho Executivo Alberto Cipiniuk, Cristina Salgado, Isabela Nascimento Frade, Jorge Luiz Cruz, Luis Andrade, Luiz Felipe Ferreira, Nanci de Freitas, Ricardo Basbaum, Roberto Conduru, Vera Beatriz Siqueira Conselho Editorial Arlindo Machado USP / PUC-SP, São Paulo, Brasil

Michael Asbury Camberwell College of Art, Londres, Reino Unido

Carlos Zilio UFRJ, Rio de Janeiro, Brasil

Milton Machado UFRJ, Rio de Janeiro, Brasil

Christine Mello Faculdade Santa Marcelina, São Paulo, Brasil

Moacir dos Anjos, Fundação Joaquim Nabuco, Pernambuco, Brasil

Eduardo Kac Art Institute of Chicago, Chicago, EUA

Nuno Santos Pinheiro Faculdade de Arquitectura de Lisboa, Lisboa, Portugal

Evandro Salles Artista plástico e crítico de arte, Brasília, Brasil

Paulo Sergio Duarte UCAM, Rio de Janeiro, Brasil

Gilles Tiberghien Paris I, Paris, França

Rafael Cardoso Denis PUC-RJ, Rio de Janeiro, Brasil

Hélio Fervenza UFRGS, Porto Alegre, Brasil

Stéphane Huchet UFMG, Minas Gerais, Brasil

José Thomaz Brum PUC-RJ, Rio de Janeiro, Brasil

Regina Melim, UDESC, Santa Catarina, Brasil

Lorenzo Mammi USP, São Paulo, Brasil

Rodrigo Naves CEBRAP, São Paulo, Brasil

Luciano Migliaccio USP, São Paulo, Brasil

Rogério Luz UFRJ, Rio de Janeiro, Brasil

Maria Beatriz de Medeiros UnB, Brasília, Brasil

Sonia Gomes Pereira UFRJ, Rio de Janeiro, Brasil

Maria de Cáscia Frade FAV-RJ, Rio de Janeiro, Brasil

Valzeli Sampaio UFPA, Pará, Brasil

Maria Luiza Saddi Artista plástica, Rio de Janeiro, Brasil

Vitor Hugo Adler Pereira IL-UERJ, Rio de Janeiro, Brasil

Mario Ramiro USP, São Paulo, Brasil Direção de Arte e Design Lygia Santiago (bolsista Proatec UERJ) Web Design Mariana Maia (bolsista Proatec UERJ) Equipe de Produção Simone Tomé, Marta Egrejas (bolsistas de Estágio Interno Complementar UERJ) e Jovita Santos (bolsista de Extensão) Revisão Maria Helena Torres Capa / Quarta capa Muntadas. On Translation: Cercas, 2008. Fotografia digital pigment print. 45,7 x 76,2cm. Concinnitas é uma publicação semestral do Instituto de Artes/ART, vinculada ao Programa de Pós-Graduação em Arte. Os artigos são de responsabilidade dos autores e não refletem a opinião do conselho editorial.

Catalogação na fonte UERJ/REDE SIRIUS/PROTEC

2009

concinnitas [www.concinnitas.uerj.br]


Sumário | Summary 5

6 9 14 27 34 42 54

60 62

76 86 97 104 120

134 137

142 148 156 161

165 169 170

Apresentação | Foreword Dossiê espaços moventes | Dossier moving spaces Apresentação | Foreword Luiz Cláudio da Costa Por que se expõe o cinema? | Why exhibit cinema? Dominique Païni Notas sobre a (Fotografia das sombras dos ready-mades) | Notes on the (Photography of the shadows of the ready-mades) Livia Flores Dispositivos em evidência na arte contemporânea | “Dispositifs” in evidence in the contemporary art Victa de Carvalho Máquinas de desvios | Detour devices Luiz Cláudio da Costa Três imagens para relatar esculturas impalpáveis | Three images to report impalpable sculptures Susana Dobal Notas à memória de um dado desconhecido. Muntadas | Notes to the memory of a given unknown. Muntadas Anne-Marie Duguet Ensaio Muntadas | Essay Muntadas Apresentação | Foreword Teresa Caldeira Artigos | Articles O sol que tudo vê na tapeçaria de Vénus e Marte | The sun that all sees in the Venus and Mars’ tapestry Luísa de Nazaré Ferreira Identidade, circuito e distância crítica | Indentity, circuit and critical distance Giordani Maia O sagrado na imagem, o ouro na arte | The sacred in image, the gold in the art Luciane Ruschel Nascimento Garcez e Sandra Makowiecky Nazareth Pacheco e o corpo | Nazareth Pacheco and the body Alessandra Monachesi Ribeiro “As bellezas naturaes do nosso paiz” | The Natural beauties of our country Arthur Valle e Camila Dazzi Tradução | Translation Apresentação | Foreword Isabela Frade Transculturalidade, interculturalidade e sincretismo | Transculturality, interculturality and syncretism Massimo Canevacci Resenhas | Digest Sobre Escultura como Imagem, de Cristina Salgado | About Cristina Salgado’s Sculpture as Image Tania Rivera Se você gosta de “arte brasileira”, não leia isto! | If you enjoy “brazilian art”, don’t read this! Felipe Scovino Anos 70: oposições e inserções artísticas | Decade of 1970: artistic oppositions and insertions Priscila Rossinetti Rufinoni Parangolixo Daniel Belion Abstracts Sobre Concinnitas | About Concinnitas Normas para publicação | Publishing rules



Como revista do Instituto de Artes, vinculada ao Programa de PósGraduação em Artes da UERJ (PPGARTES), Concinnitas está sempre procurando estreitar relações com os corpos docentes e discentes dessas duas instâncias acadêmicas. Da mesma maneira, procura o entrosamento entre a academia e o meio artístico e cultural, colaborando para a ampliação do debate nesses campos e, assim, para que a universidade se torne verdadeiramente um lugar público. Como proposta de estreitamento de relações com as pesquisas dos docentes do PPGARTES, o conselho editorial deliberou que, a partir de 2009, os números ímpares (junho) da publicação terão seus dossiês organizados por um professor-pesquisador do programa, que apresentará proposta dentro das condições previamente divulgadas pelo conselho. Assim, em dezembro último, o professor Luiz Cláudio da Costa apresentou o dossiê Espaços moventes, para o qual convidou ensaístas nacionais e estrangeiros, atuando neste número como coeditor. Sua pesquisa no campo interfacial do cinema e das artes visuais certamente vem ao encontro da vontade de ruptura de limites que esta revista tem como meta desde sua criação. É nesse sentido também que publicamos o texto do antropólogo Massimo Canevacci, gentilmente traduzido pela professora Isabela Frade, que o apresenta em texto bastante esclarecedor de sua proposta de transculturalidade, interculturalidade e sincretismo. Na intenção de divulgar as pesquisas desenvolvidas pela comunidade acadêmica e artística em geral, publicamos neste número os artigos recebidos e aprovados por consultores ad hoc. Certos de que esses textos são reflexo das pesquisas no campo da arte, assim como em história, teoria e crítica de arte, acreditamos que sua reprodução seja uma possibilidade concreta para tornar pública a produção acadêmica do meio. Assim, apresentamos os artigos de Luísa de Nazaré Ferreira, Giordani Maia, Luciana Ruschel Nascimento Garcez e Sandra Macowiecky, Alessandra Monachesi Ribeiro, Arthur Valle e Camila Dazzi, a quem agradecemos a colaboração. Como de costume, divulgamos resenhas de publicações e eventos. Para esta edição recebemos a resenha da psicanalista Tania Rivera, que se ocupa da relação entre arte e psicanálise, do pesquisador e crítico Felipe Scovino, que nos apresenta a exposição Abre Alas 5, assim como a de Daniel Belion sobre o Encontro Nacional de Estudantes de Arte, ocorrido em Belém, no Pará, que contou com a presença de vários alunos do Instituto de Artes da UERJ. Coroando este número, apresentamos como ensaio e capa o trabalho On Translation: Cercas, que o artista catalão Muntadas gentilmente nos enviou, precedido pelo texto da pesquisadora Teresa Caldeira, que dialoga com a pesquisa em arte de Muntadas sobre os sistemas de vigilância na cidade de São Paulo, uma forma pan-óptica de relação entre cidadãos, que refreia, ou impede, a ação pública do homem contemporâneo. Agradecemos o interesse e a disponibilidade de Muntadas e de Teresa, assim como a intermediação de Ricardo Basbaum. Muntadas. On Translation: Cercas / (Detalhes), 2008. Fotografia digital pigment print.

Sheila Cabo Geraldo Editora 7


Imagem da exposição Jean Luc Godard. Centre Pompidou, Paris, 2006.


Espaços moventes Luiz Cláudio da Costa

As instalações multimídia têm povoado as galerias e as instituições de arte nos últimos tempos. Podemos citar duas importantes exposições de âmbito internacional ocorridas no Brasil: Movimentos improváveis: o efeito-cinema na arte contemporânea (2003), realizada pelo Centro Cultural Banco do Brasil, sob a curadoria de Phillippe Dubois e, mais recentemente, Cinema Sim – Narrativas e Projeções, idealizada pelo Núcleo de Audiovisual do Itaú Cultural (2008). Além dessas megaexposições internacionais promovidas por instituições privadas, outra, concebida para o MAM-Rio, envolveu dois artistas cariocas, Kátia Maciel e André Parente: Situação Cinema (2007). Apesar de em nenhuma delas a palavra vídeo aparecer no título, todas incluíam a tecnologia cinematográfica, a eletrônica e/ou a numérica. Sem dúvida as instalações multimídia estão, em certa medida, ocupando a cena da arte contemporânea desde os anos 90.

Seria a instalação multimídia uma renovação do conceito de “cinema expandido”? E o que é o cinema de artista, o cinema de atrações, o cinema de exposição, como têm nomeado 1 Recentemente, André Parente editou um dossiê para a revista Poiésis (Programa de PósGraduação em Ciência da Arte, UFF, n. 12, ano 09, novembro, 2008) cuja apresentação tinha o título: Cinema de artista: cinema de atrações, cinema expandido, cinema de exposição.

certos críticos contemporâneos?1 Qual a singularidade da instalação multimídia nas artes heterogêneas da contemporaneidade? O que significa conceber espaços em movimento? Qual o regime de observação envolvido na experiência desses espaços moventes? Grande parte dos teóricos que se dedicam a essa produção é originária da crítica de cinema, como Phillippe Dubois, Raymond Bellour e Dominique Païni que, de 1993 a 2000, foi diretor da Cinemateca Francesa. Outros, porém, se engajaram nos estudos dessa prática a partir das artes plásticas e de sua relação com o cinema desde os anos 70, como AnneMarie Duguet. Muitos dos conceitos constituídos por esses autores envolvem termos ou expressões que se originam ou se inspiram na arte cinematográfica, como “efeito cinema”, de Dubois, e “cinema exposto”, de Païni. Grande parte dessa produção é feita por cineastas – por exemplo, Peter Greenaway, Agnes Varda, Abbas Kiarostami, Chris Marker – que encontram na galeria e no museu o espaço para a exposição de seus trabalhos em filme. Outra parte é feita por artistas, originalmente da instituição Arte, que vêm trabalhando com filme ou vídeo. No Brasil, Livia Flores e Lucas Bambosi são dois nomes proeminentes, entre outros. Muitos historiadores, críticos e teóricos de arte, entretanto, parecendo não saber lidar com algo que é e não é cinema, que é e não é arte, vêm sistematicamente deixando para os historiadores de cinema a prerrogativa dessa reflexão. O que parece ainda pouco avaliado é mesmo essa conjugação de forças anteriormente tão separadas, instituições e discursos até aqui tão claramente distinguidos por interesses particulares sobre linguagens específicas. Urge refletir sobre as mudanças estéticas, mas também práticas, isto é, sobre a transformação institucional que está implicada na

Espaços moventes Luiz Cláudio da Costa

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promoção desses espaços imateriais-temporais. É preciso compreender os sentidos plásticos, discursivos e políticos que envolvem essa produção, como os espaços nômades, a coexistência dos tempos, a virtualidade da obra, a qualidade multíplice do sujeito. Urge a constituição de noções e conceitos que levem em conta os problemas das artes plásticas renovados por essa produção multimídia. Este dossiê, Espaços moventes, pretende colaborar com os esforços que já têm sido feitos no sentido de refletir sobre o lugar das instalações multimídia na arte contemporânea. Os autores convidados para constituir este dossiê pertencem a esse campo híbrido da reflexão teórica e crítica que se formou a partir das instalações com filme, vídeo e imagens numéricas. Organizei-o como desdobramento do trabalho de idealização e coordenação que tenho feito com outros dois professores-pesquisadores, Rubens Machado Jr (USP) e Susana Dobal (UnB) do Seminário temático Cinema como Arte, e Vice-Versa, na Sociedade Brasileira de Estudos de Cinema – Socine. Trata-se de resistir às forças que insistem em inscrever em gêneros artísticos específicos – “cinema de artista”, “arte de filme”, “arte do vídeo” – essa produção heterogênea, aprisionando-a em uma história da arte estigmatizada por sistematizações homogêneas. Poderíamos lembrar a feliz expressão de Douglas Crimp, “ficção museológica” (On the museum’s ruins), para entender essa redutora representação da arte por classificações unificantes. Uma saída possível é a que propõem abordagens inscritas em tradições multidisciplinares, que pensam as dimensões plástica, poética e estética desses espaços moventes em um quadro mais amplo dos saberes e da cultura, afirmando sua condição de campo limítrofe. Por isso, busquei a heterogeneidade na escolha dos autores, incluindo pesquisadores historiadores, críticos e artistas.

Luiz Cláudio da Costa (UERJ, Rio de Janeiro, Brasil) é professor adjunto da graduação e do Mestrado em Artes do Instituto de Artes da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. / l.claudiodacosta@uol.com.br

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Por que se expõe o cinema? Dominique Païni

O cinema é, por excelência, um objeto temporal, uma escrita cujo tempo é o material. A nova experiência dos visitantes dos museus, que contemplam sobre as paredes de exposição as imagens-movimento saídas do cinema ou concebidas pelos artistas que utilizam a vídeo numérica, convida a considerar a projeção, a montagem das imagens e o comportamento do espectador de acordo com outras finalidades, que não aquelas relacionadas às ficções romanescas do cinema industrial. Como definir os efeitos estéticos e antropológicos desse “êxodo” do cinema fora de seu lugar tradicional que foi, durante aproximadamente 100 anos, um espaço teatral? Cinema expandido, figural, objeto temporal. Por que se expõe o cinema quando existem salas feitas para isso? Não Tradução Claudio Serra.

há exposição de arte contemporânea respeitável sem essas projeções de imagens luminosas em movimento… A ponto de irritar e cansar alguns. Isso depende de um efêmero efeito de moda ou de tendência fundada em verdadeiras questões que dizem respeito a novo material e a questões estéticas mais gerais? Acredito que já dissemos quase tudo hoje a propósito da exposição de imagens em movimento. Mas, talvez, não tenhamos insistido suficientemente sobre o fato de que a

1 O cinéma élargi [“cinema expandido”] é, na verdade, noção que se tornou título de um livro de Gene Youngblood no começo dos anos 70, após ter sido inventada por Stan Van Der Beek e retomada e defendida por Jonas Mekas nos anos 60. Encontra-se no livro de Dominique Noguez, Eloge du cinéma expérimental (Ed. Centre G. Pompidou, 1979 / Paris Expérimental, 1999) uma boa descrição das primeiras experiências de cinéma élargi (páginas 299 a 319), “espetáculo que excede ou modifica sob tal ou tal ponto o ritual cinematográfico estritamente definido como a projeção sobre uma tela, diante de espectadores sentados, de uma imagem obtida pelo desenrolar de uma fita de película dentro de um projetor”. Eu expando, por minha vez, essa noção do que ela designava inicialmente... 2 Lembremo-nos do que custa ao Carabinier de Godard querer tocar a tela: ele cai no fosso de orquestra.

introdução do cinema no museu resulta em expandi-lo1 em triplo sentido e de maneira paradoxal. Em primeiro lugar, expandir supõe que telas sejam multiplicadas, combinadas e sincronizadas. Em segundo lugar, a expansão decorre da proximidade da tela em relação ao visitanteespectador. Essa proximidade até o tangível – inconcebível na sala tradicional de cinema2 – engendra um efeito monumental da tela. Efeito paradoxal, posto que o tamanho da tela nesses cubos escurecidos das exposições de arte contemporânea é, às vezes, menor do que a menor tela da menor sala de cinema de arte e de experimento do Quartier Latin. Resumindo, uma expansão de outra natureza se realiza em favor da projeção de imagens em movimento nas paredes de um museu: em favor do cinema exposto. É a expansão da posição de visitante à de espectador. Posições que se adicionam e se conjugam. Há alguns anos, eu retomei o termo flâneur para dizer algo específico a respeito desse visitanteespectador, inédito Janus.

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Diante de projeção instalada em um museu, o visitante não tem a obrigação da visão bloqueada, como a do espectador comum de cinema. Ele se mexe e, movimentando-se, expande sua visão da imagem de acordo com sua maior ou menor proximidade da tela. Verdadeiros travellings para frente ou para trás são operados pelo próprio visitante-espectador e se conjugam com os movimentos internos da imagem projetada. Se o cinema começou sua história dessa maneira – projeções que não permitiam lugares imóveis ao espectador nas exposições universais do começo do século, por exemplo –, ele se rendeu, em revanche, durante quase 80 anos, a um dispositivo teatral. As primeiras salas de cinema, construídas aproximadamente entre 1907 e 1908 após o período das feiras nômades, fase que ainda oferecia relativa instabilidade ao espectador, eram nomeadas teatros cinematográficos. É o que volta depois de quase 20 anos de maneira insistente nos museus e exposições de arte contemporânea: um espectador primitivo reaparece, tendo sobrevivido ao dispositivo opressivo do espetáculo cinematográfico; um espectador móvel, dotado de visão graduável da tela e que está pronto não a se confundir com a existência ficcional de personagens ou a se fundir ilusoriamente no espaço de um cenário, mas a entrar na imagem. Talvez essa liberdade física reconquistada tanto seja uma ilusão quanto corresponda, de certa maneira, a uma época de refluxo das utopias coletivas e de valorização do indivíduo consumidor de publicidade e arte. O cinema é a arte de um século de ditaduras e de coletivismos, máquina de representar a multidão para um público que se constitui da multidão. O cinema mudo foi uma espécie de enigma para o espectador colocado respeitosamente diante da imagem. Em seguida, o cinema sonoro clássico dava a impressão de que havia segredos atrás das imagens. O cinema moderno do pós-guerra empenhou-se em convencer o espectador de que as imagens eram apenas imagens. Enfim, o cinema pós-moderno, publicitário e exposto, emprega procedimentos – velocidade e cortes bruscos na montagem, ilusões de profundidade reinventadas graças à infografia, manipulações do real gravado – que convidam a ir para dentro das imagens. Ainda que marcados ambos pela aspiração dentro das imagens, o cinema exposto, à parte sua finalidade mercantil, distingue-se totalmente do cinema publicitário por sua particularidade de escapar à configuração da sala ou, hoje, da tela da televisão doméstica. Ele rivaliza com a plasticidade pictórica graças à possibilidade, desde então interminável, da projeção em ciclos repetitivos permitida pelo DVD. E não é por acaso que, de certa maneira, o cinema exposto contribui para conservar estatisticamente, na arte contemporânea, a dominante da verticalidade plástica em face de um número crescente de obras horizontais, no chão, deitadas em praticáveis ou vitrinas etc.

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Melhor do que exposto, pode-se qualificar esse cinema, apropriando-se da expressão de Jean François Lyotard, de figural. Quer dizer, um cinema que, ainda segundo Lyotard, não é interpretável, mas só atravessável. Na verdade, a característica do maior número de sequências de imagens em movimento projetadas atualmente no centro do percurso museal, verdadeiros filmes curtos, que poderiam também ser projetadas em salas de cinema tradicionais, depende frequentemente de um encadeamento dramatúrgico singular, de uma lógica representativa desordenada – mininarrações inacabadas, ficções sem fechamento narrativo – que diferenciam, que suspendem a interpretação e a identificação. Ao passo que, paradoxalmente, a instalação dessas imagens favorece preferencialmente a integração, a absorção, a aspiração ambiental do espectador. Algo afronta e, ao mesmo tempo, convida a atravessar as imagens, obviamente obras concebidas em referência ao cinema e a suas convenções, por artistas cujo fascínio pelo universo cinematográfico e seu poder hipnótico e identificador conhecemos. Então, o que convida a atravessar as representações de Salla Tykkä, de Pipilotti Rist ou de Stan Douglas? Roland Barthes, que não conheceu nosso contemporâneo cinema exposto no museu, em 3 Editions complètes. Paris: Ed. du Seuil, 1995.

texto intitulado “En sortant du cinéma”3 [Saindo do cinema], descreveu um espectador utópico dotado de dois corpos em um, espectador que ele sonhava ser e no qual escuto um eco do meu visitante-espectador: “um corpo narcísico que olha, perdido no espelho próximo e um corpo perverso, pronto a tornar fetiche não a imagem, mas precisamente aquilo que a excede: o granulado do som, a sala, a escuridão, a massa obscura dos outros corpos, os traços de luz, a entrada, a saída; enfim, para ir além, avançar, eu complico uma relação por uma situação”. Não é o que dirigem ou o que permitem os cineastas que expõem, ou os artistas plásticos que filmam. Eles complicam uma relação (a interpretação) por uma situação (a travessia), cuja questão seria definitivamente escapar à ficção percebendo-a como presente, objetivada, de certa forma exposta. Não se trataria mais, portanto, de um regime de representação para esse cinema (porque se trata de cinema) se a relação hipnótica é, na verdade, complicada, como diz Barthes, por uma situação crítica do espectador. Tratar-se-ia de um regime de apresentação, de distanciamento, a afirmação da sequência como quadro, mas um quadro feito de duração que passa, feito de tempo. O que, porém, acentua, na instalação dessas imagens móveis expostas, esse efeito mais de apresentação do que de representação? Em primeiro lugar, como eu já disse, a proximidade da tela e das imagens em movimento, expostas para serem atravessadas, já que tão próximas. O desejo do visitante-espectador

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de atravessar as imagens aumenta, cresce. É então, também, que a expressão cinema expandido, expanded cinema, retoma seu sentido. E esse efeito de aspiração revela, permite experimentar o componente pulverizado das imagens em movimento. Que elas sejam fílmicas ou videográficas, é a poeira agitada, febril, de infinitos átomos vibratórios que o fundo da imagem revela quando o visitanteespectador se aproxima. O rosa-carne das imagens em movimento é poeira. Entrar na imagem em movimento é uma ilusão de entrar em uma poeira cintilante cujos reflexos moleculares realizam a metamorfose das linhas, realizam o movimento, “deslocam as linhas” segundo a expressão de Baudelaire. E essa pulverização se sobrepõe à representação e, se convidando a ser atravessada, ela me parece distanciar, suspender a interpretação daquilo que representa. O que predomina na percepção do visitante-espectador é a agitação infinitesimal do fundo da imagem, materializando a duração temporal que passa, o tempo que se cumpre. Provavelmente mais próximo do cinema mudo do que do cinema contemporâneo e mais próximo das projeções de “vistas” dos Lumière em uma exposição universal, a visão de um filme projetado hoje em uma sala de museu torna sensível a natureza fragmentável e instável dessas imagens, seu esmigalhamento, sua atomização, como nunca a sala de cinema e a televisão doméstica permitiram. Talvez, as projeções antigas de filmes de férias amadores em 8mm ou em superoito, nos tenham revelado esses incessantes distanciamentos de grãos, essa floculação hipnótica de quando éramos crianças e tínhamos que assistir à memória filmada de nossas férias em família gravadas por pais modernos, já à frente da fotografia, e quando nos aproximávamos da tela desobedecendo, pestinhas, para fingir de palhaço no clarão luminoso. Tratava-se já, talvez, de um desejo de atravessar as imagens (ou de ser por elas atravessado). Não tínhamos, porém, consciência de que tal aspiração óptica anunciava material que seria revelado por arte futura, abolindo o respeito de invariável distância entre o olho e a tela. Mais do que o cinema, as imagens em movimento expostas desde então nas paredes dos museus apresentam principalmente o que Jean Louis Schefer4 descreve a propósito do cinema mudo primitivo como fenômenos de decomposição do mundo sólido, como imisção de espaços estelares nos corpos,

4 Du monde et du mouvement des images, Ed. Cahiers du cinéma, 1997.

infinito vibrante num quarto fechado. Pode-se, então, criar a hipótese de que o filme exposto penetra, por um lado, a natureza de objeto temporal que qualifica o filme. O que é a natureza de objeto temporal de um filme? Em livro recente, Bernard Stiegler5 sinaliza que, durante a projeção de um filme, o tempo de nossa consciência passa totalmente no tempo das imagens em movimento, ligadas entre elas por barulhos, sons, palavras e vozes. Uma certa duração de nossa vida se passa, assim, fora de nossa vida real,

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5 La technique et le temps, le temps du cinéma et la question du mal être. Paris: Galilée, 2001.


em uma vida ou em vidas de personagens reais ou fictícios, cujo tempo compartilhamos adotando os eventos que lhes acontecem como nossos. O espectador adere ao tempo de desenvolvimento das imagens porque um filme “se constitui temporalmente, ele se trama no fio do tempo – como o que aparece rápido, como o que passa, como o que se manifesta desaparecendo, como fluxo se apagando à medida que se produz. E é o objeto certo para dar conta do tecido temporal do fluxo da própria consciência, porque o fluxo do objeto temporal coincide absolutamente com o fluxo da consciência do qual ele é o objeto. Dar conta da constituição do fluxo do objeto temporal será dar conta da constituição do fluxo da consciência do qual ele é objeto”. A apresentação de imagens em movimento a espectadores móveis, visitantes livres do aprisionamento do teatro cinematográfico, coloca em tensão essa coincidência entre o objeto temporal, que é um filme, e a consciência cuja estrutura é inteiramente cinematográfica, como diz Stiegler, a consciência procedendo igualmente de uma montagem de objetos temporais, quer dizer, de objetos constituídos por seu próprio movimento. Além disso, tenho o sentimento de que esses dois fenômenos – sendo um o resultado e a condição de existência do outro –, quer dizer, a mobilidade do espectador e a revelação da pulverização da imagem dialogam com o caráter de objeto temporal das imagens em movimento. Porque, qualquer que seja a lucidez dos artistas sobre os efeitos de seu meio, a instalação de uma projeção de imagens em movimento é sempre uma tensão, uma dialética de imagens contínuas que tende a compartilhar o fluxo da consciência, fluxo contrariado pela flânerie aleatória do visitante-espectador. Por que dialética? porque se é que se pode escapar naturalmente a essa fusão de dois tempos, é o corpo em movimento que, entretanto, causa essa fusão. Ele tende a separar o fluxo da consciência e o fluxo das imagens, mas reconduz, indiscutivelmente, a essa fusão. Isso explica em grande parte, qualquer que seja sua configuração, por que as instalações de imagens em movimento são, em definitivo, tão interessantes e tão cativantes atualmente, num contexto antropológico de “submissão às imagens” e que elas tenham a preferência de inúmeros artistas contemporâneos para além de um efeito efêmero de moda.

Dominique Païni (Paris, França) é autor de livros de referência no domínio das relações entre o cinema e as outras artes. Sua vida profissional foi essencialmente dedicada à difusão da cultura cinematográfica e à pesquisa estética dessa mídia, a mais representativa do século XX. Sua abertura à história da arte conduziu-o, no final dos anos 80, ao Museu do Louvre. Durante os anos 90 foi convidado para dirigir a Cinémathèque française. Em seguida, o Centre Pompidou o acolheu como diretor. Paralelamente, foi curador, na França e na América do Norte. / dpaini@orange.fr Por que se expõe o cinema? Dominique Païni

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James Turrell. Skyspace, Yorkshire Sculpture Park, 2006.


Notas sobre a (Fotografia das sombras dos ready-mades) Livia Flores

O artigo discute as perturbações ocorridas na arte a partir da entrada em cena do mecânico, procurando extrair da correlação entre os modos de funcionamento do Grande Vidro (Duchamp) e do aparelho fotográfico indicações sobre as condições espaciais de acontecimento do cinema sem filme. Cinema sem filme é aqui tão somente a abreviatura de como fazer cinema sem filme? – uma expressão interlocutória. Fotografia, arte, espectador. No começo do século XIX, Goethe sugere fechar o orifício da camara obscura e observar as cores produzidas pelo próprio olho. Ao descobrir-se parte da fisiologia instável do corpo humano, a visão deixa de ser de fonte do conhecimento para ser investigada por aparelhos ópticos. Adaptadas para o entretenimento, essas invenções contribuem para o surgimento de um novo tipo de observador em que se misturam o espectador clássico, o objeto de pesquisa empírica e o elemento de uma produção meca1 Crary, Jonathan. L´art de l´observateur. Vision et modernité au XIXe siècle. Nîmes: Ed. Jacqueline Chambon, 1994, p. 162. 2 Beaumont Newhall. Apud Manovich, Lev. The Language of New Media. Cambridge/Massachussets/London:The MIT Press, 2001, p. 21.

nizada, operando em contiguidade com a máquina.1 O consumo fermenta o amálgama. “Todo mundo queria registrar a vista de sua janela, e feliz aquele que na primeira tentativa conseguia obter a silhueta dos telhados contra o céu.”2 Em 1839, a invenção do daguerreótipo provoca uma corrida às lojas de aparelhos ópticos. O espectador começa a produzir imagens. Trabalho e lazer iniciam uma aproximação que, um século e pouco depois, os encontra reunidos na tela do computador. Em 1833, The Analytical Engine, de Charles Babbage, já incorpora os principais traços do computador digital. Mas foram necessárias algumas décadas até que o efeito de real obtido através da fotografia se associasse à impressão de movimento provocada por imagens consecutivas. A consumação esperada finalmente aconteceu numa usina francesa, numa tarde ensolarada de final de século, em meio a sorrisos e alegres acenos das moças. O resultado imediato foi o nascimento de uma máquina excepcional.

3 Frampton, Hollis. “Pour une métahistoire du film: notes et hypothèses à partir d´un lieu commun” in L´Ecliptique du savoir. Film photographie vidéo. Paris: Centre Georges Pompidou, 1999, p. 108.

Daí em diante, o fluxo de imagens que habitava a câmera escura em dias luminosos poderia voltar a qualquer hora do dia ou da noite, sempre na sequência desejada. Bastava ligar o projetor para fazer deslizar o filme – “um sistema elegante que permite modular feixes de energia estandartizados”.3

Notas sobre a (Fotografia das sombras ready-mades) Livia Flores

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Segundo Manovich, as histórias da fotografia, do cinema e do computador se entrelaçam através do loop, que preside tanto a fundação do cinema quanto a programação de computadores. A repetição de certos conjuntos de operações, controlada por meio de um loop principal, segue o mesmo princípio da esteira transportadora. O computador revela-se então como outra versão da fábrica fordista. A linha de montagem fraciona o processo de produção em sequências simples de ações repetitivas, semelhante estandartização valendo para as partes a serem trabalhadas: pouco importa se são os punhos de um uniforme ou as imagens de um filme. A invenção do cinema em 1890 requisita a padronização das dimensões da imagem e do intervalo de tempo em que ocorrem. Para Manovich, acontece aí a ruptura decisiva: amostras distintas entre si decupam dados contínuos – o tempo da experiência humana. Um dos resultados disso é que a fotografia e o cinema só podem mostrar eventos passados, como se a imagem técnica – em última instância, sempre uma imagem do tempo – congelasse a existência e lembrasse o esquecimento. “O tempo projetado pelo olhar sobre a imagem é o do eterno retorno”4, observa Flusser. Em contrapartida,

4 Flusser, Vilém. A Filosofia da caixa preta. São Paulo: Hucitec, 1985, p.14.

todo ato científico, artístico e político visa eternizar-se em imagem técnica, visa ser fotografado, filmado, videoteipado. Como a imagem técnica é a meta de todo ato, este deixa de ser histórico, passando a ser um ritual de magia.5

5 Idem, ibidem, p. 24.

Com efeito, o declínio do modernismo trouxe a percepção se não de um privilégio do vetor espacial sobre o temporal, ao menos de uma quebra na hegemonia da narrativa histórica. Globalmente performadas em tempo real, incontáveis micronarrativas acabaram por ter um efeito dilatador sobre o espaço, virtualmente multiplicado a partir da proliferação de informações possibilitada pela digitalização (atribuição de um valor numérico derivado de uma série, a amostras de imagem, som e texto). Ocupamo-nos hoje em processar um mundo infinitamente fletido pelo livro, pelo filme e pela gravação sonora. As perturbações ocorridas na arte a partir da entrada em cena do mecânico se complicam. Flusser encontra uma chave de leitura para o mundo pós-industrial no aparelho fotográfico: “o primeiro, o mais simples e o relativamente mais transparente de todos os aparelhos”6. Seu surgimento assinalaria o ponto mais recente de mutação no desenvolvimento ocidental, a partir do qual nos abrimos para uma aventura, cujo desfecho desconhecemos e não podemos prever. Por analogia, podemos dizer que o Grande Vidro provoca o mesmo com relação à arte e seus parâmetros de vigência. Em outros termos, o Grande Vidro de Duchamp está para o cinema sem filme assim como o aparelho fotográfico está para os demais aparelhos da era pós-industrial. Em geral, o cinema sem filme não se preocupa com o cinema, com seus princípios nem fins. Porém, nutre-se do poder de entranhamento psicossensorial secretado ao longo dos últimos 100 anos pela máquina-cinema. Alimentase de suas virtualidades, bebe na fonte (Fountain). Cinema seria o denominador comum, e o cinema sem filme, uma incógnita.

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6 Idem, ibidem, p. 34


Nas sociedades pós-industriais, a atividade dominante é a gestão de informações, que depende de programação. Flusser concebe aí uma série de loops em looping: o fotógrafo age no sentido do esgotamento das potencialidades inscritas no programa abrangente, porém, finito do aparelho fotográfico. Como jogador de um jogo complexo de permutações simbólicas, “brincando contra o aparelho”, ele se integra perfeitamente enquanto funcionário de um sistema hierárquico aberto para cima, cujo objetivo é programar magicamente a sociedade para propiciar um comportamento favorável ao constante aperfeiçoamento dos aparelhos. A automatização crescente inverte a relação com os homens: conceitos programados deixam de significar intenções humanas e tornam-se autossignificantes; as decisões são meramente funcionais. Cedo ou tarde, todas as possibilidades inscritas no programa do aparelho, desejáveis ou não, necessariamente se cumprirão. O fotógrafo exerce poder sobre quem vê suas fotografias, programando os receptores. O aparelho fotográfico exerce poder sobre o fotógrafo. A in7 Idem, ibidem, p. 33-34.

dústria fotográfica exerce poder sobre o aparelho. E assim ad infinitum.7 Ainda no século XIX, ao contrário dos pintores, os fotógrafos não assinavam as imagens que produziam nem eram considerados artistas. As fotografias, produzidas e comercializadas por grandes empreendimentos, abasteciam bibliotecas públicas, arquivos particulares e divertimentos – aparelhos ávidos por efeitos de real, como os estereoscópios. Rosalind

8 Cf. Krauss, Rosalind. “Os espaços discursivos da fotografia” in Arte&Ensaios 12, Rio de Janeiro: PPGAV/EBA/UFRJ, 2006, p.155-167.

Krauss8 observa que as incongruências apresentadas por essa produção frente a categorias estéticas que apóiam a noção de arte – como obra, autor e gênero – passam a ser escamoteadas a partir do momento em que ela é assimilada pelo sistema da arte. Os 10.000 negativos de Atget – ordenados sob rubricas como paisagens, arredores, Paris pitoresco, Velha França – propõem uma charada cuja solução informa mais sobre a demanda imposta pela paixão arquivista da época do que sobre o projeto e as intenções artísticas do fotógrafo. A natureza técnica da imagem fotográfica, contudo, por si só, não teria bastado para garantir a passagem ao museu de arte. Jacques Rancière afirma que a fotografia e o cinema só começam a ganhar estatuto de arte porque antes o romance realista conferira visibilidade a qualquer um e a qualquer coisa. Destruía-se a ordem de importância dos temas e a hierarquia que subordinava o visível ao discursivo. A palavra começa a sofrer a

9 Rancière, Jacques. A partilha do sensível: estética e política. São Paulo: EXO experimental org., Ed. 34, 2005, p.50.

concorrência inédita da imagem: “O banal torna-se belo como rastro do verdadeiro”.9 Logo o cinema assume o papel narrador da literatura, elevando a possibilidade de ficcionar o real a potência ainda maior. No epicentro dessa revolução estética encontramos Baudelaire, que alça Constantin Guys ao patamar de figura emblemática da modernidade. Isso não significa necessariamente que Baudelaire considere Guys um gênio da pintura; Guys incorpora o gênio moderno que a pintura dos gênios da arte não consegue incorporar – “um gênio para o qual nenhum

10 Baudelaire, Charles. (org.). Coelho, Teixeira. Sobre a Modernidade: o pintor da vida moderna. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996, p. 20.

aspecto da vida é indiferente”.10 A metrópole celebra em suas galerias iluminadas o encontro da massa humana com a massa de mercadorias que dispõe ao consumo. Parale-

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lamente à sedução oferecida ao olhar, impõem-se novos procedimentos de rastreamento visual do indivíduo que se esconde e se perde na multidão. Entre basbaque e detetive amador, o flâneur já não pode mais deixar de incorporar certas estratégias do voyeur. Não estaria aí se delineando o espectador de Duchamp que se deixa hipnotizar pelo Anémic Cinema, procura pistas da Mariée ao mesmo tempo em que se admira em seu reflexo, tropeça no Trébuchet e espreita Étant Données? É ele quem vai fazer a obra. O basbaque, observa Walter Benjamin, não deve ser confundido com o flâneur, sempre em posse de uma individualidade. No basbaque ela desaparece, absorvida pelo mundo exterior. “O basbaque se torna um ser impessoal; já não é um ser humano; é o público, é a multidão.”11 A pressão do mecânico sobre a arte – via fotografia – revela-se bem maior do que inversamente o sistema da arte sobre ela exercera. As categorias atingidas parecem ser as mesmas: gênero, obra e autor. O abalo, percebido por Baudelaire, manifesta-se em

11 Benjamin, Walter. “Paris do Segundo Império” in Charles Baudelaire. Um lírico no auge do capitalismo. Walter Benjamin.Obras Escolhidas III. São Paulo: Brasiliense, 1989, p. 69.

dupla associação: “Se é permitido à fotografia suprir algumas funções da arte, logo ela a suplantará ou corromperá totalmente, graças à aliança natural que fará com a tolice da multidão.”12 G. não gosta de ser chamado de artista, recusa-se a assinar seus desenhos e insiste no

12 Baudelaire, Charles. “Salão de 1859, O público moderno e a fotografia” in Lichtenstein, Jacqueline (org.). A pintura – vol.7: O paralelo das artes. São Paulo: Ed. 34, 2005, p. 112.

anonimato; é “um eu insaciável do não-eu”. Atua como se fosse um dispositivo fotográfico: com velocidade, precisão, capacidade mnemônica. Baudelaire compara-o a um caleidoscópio dotado de consciência e a um espelho tão imenso quanto a multidão na qual mergulha como convalescente. Mas, à diferença de outros convalescentes que lhe são contemporâneos, G. é um “eterno convalescente”.13 Nele, a convalescença é moto contínuo, um estado febril de produção – quase máquina e ainda tão humano – sem menção a crise, passado ou futuro. G. simplesmente afirma a presença de tudo o que se lhe apresenta ao olhar, sem estabelecer hierarquias de significância.

13 Cf. Baudelaire, Charles. “O artista, homem do mundo, homem das multidões e criança”. in Baudelaire (org.), 1996, op. cit., p. 15-24. Os outros convalescentes são o personagem de O Homem das multidões, de Poe, e Zaratustra, de Nietzsche.

O que leva Baudelaire a escolher Guys, que compara a um poetae minor, para incorporar o pintor da vida moderna? Por que não Manet, seu amigo, cuja pintura já anunciava que a planaridade seria um cânone vindouro? Seria possível pensar G. como uma figura estética projetada pelo crítico-poeta, uma espécie de artista conceitual, de forma análoga à que faz de Zaratustra um dos personagens conceituais14 de Nietzsche? Uma expressão duplamente encarnada do repúdio do crítico de arte à fotografia e do impacto das visibilidades sobre o escritor e poeta: G. permite a Baudelaire fazer a ponte com o que a fotografia viria a significar, à diferença do traço manual, a inscrição-rastro que separa o humano do mecânico. Parece-me que é justamente na tensão tão bem expressa por “um eu insaciável do não-eu”, que a figura de G. começa a resplandecer. Não apenas frente ao avanço do mecânico e das massas; mas no próprio campo da literatura, no momento em que esta se percebe ameaçada pela potência do que se mostra e nada diz. A literatura deixa de ser um espaço construído para tornar-se um não lugar, sem intimidade nem interior oculto; espacializa-se, inventa um Fora. É como Blanchot a concebe

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14 Cf. Deleuze, Gilles; Guattari, Felix. “Os personagens conceituais”. O que é a Filosofia? Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992, p. 81-110.


tantas décadas depois: a experiência literária não é mais fundada por um eu, mas por uma terceira pessoa impessoal, um neutro, um outro que não tem nada de próprio ao sujeito que escreve. A linguagem literária se refere a uma não existência que passa a existir pela palavra, como palavra. Pelo processo literário, a obra torna-se “mais livro que os outros e está já fora do livro”, passando a escrever-se sob a atração da ausência 15 Blanchot, Maurice. La ausencia del libro. Nietzsche y la escritura fragmentaria. Buenos Aires: Ediciones Caldén, 1973, p. 28.

de obra.15 Hoje vivemos num mundo em plena dilatação cinemática: dos celulares aos dispositivos de vigilância, dos ícones animados sobre a tela do computador às grandes produções cinematográficas, tudo é ou produz imagem em movimento. Guardadas as diferenças – a autoridade do livro não se deixa comparar ao modo de sedução do filme, por exemplo – mas ainda assim, considerando que a expansão filmica possa ser comparada à operada pelo livro a partir do advento do texto impresso, encontraríamos aí indícios para pensar o cinema sem filme? Ao pensamento crítico, Flusser atribui a tarefa de tornar transparentes os deslizamentos de significado que a fotografia adquire no trânsito entre produção e distribuição – o que implica fazer a distinção entre as intenções do fotógrafo e as do aparelho: o primeiro deseja “eternizar seus conceitos em forma de imagens acessíveis a outros, a fim de se eternizar nos outros”; e o segundo pretende “realizar o seu programa, ou seja, programar

16 Flusser, op. cit., p. 47-48.

os homens para que lhe sirvam de feed-back ao contínuo aperfeiçoamento”.16 Intenção é aqui uma palavra-chave – e as intenções do Grande Vidro não se confundem com as do aparelho fotográfico. Partindo do pressuposto de que ambos sejam máquinas ou aparelhos, a que regimes de produção atendem? Os processos de reprodução analógica se dão sempre em duas etapas: a primeira inverte a forma do objeto a ser reproduzido e a segunda o devolve idêntico ao modelo, até na escala. Na primeira passagem, fabrica-se um duplo, um oco – o molde em negativo – e na segunda, uma cópia. É assim nos processos de moldagem e fundição de objetos tridimensionais, e semelhante nos processos gráficos de reprodução de imagens bidimensionais: decalque, gravura, tipografia. Para que a cópia restabeleça o sentido do original é preciso prever a incongruência que afeta lados não simétricos da figura, fornecendo à matriz, de antemão, o inverso do sentido desejado. É preciso haver contato entre as superfícies – “acasalamento” entre os pares negativo e positivo – para que se produzam cópias. Nos processos fotocinematográficos, esse procedimento é automático. Notemos, porém, que ele não ocorre sem uma perda dimensional. Depois de passar ao negativo e ser restaurado pela cópia, já não temos o objeto em si, mas a imagem do objeto que nosso olhar reconstitui. Uma dimensão espacial é subtraída, para sempre. A incapacidade fílmica de restaurá-la remete a uma perda vital e se confunde com a dor deixada no rastro do tempo – uma dimensão temporal. Eis o lamento trágico de Zaratustra: “Ó vós, rostos e aparições

17 Nietzsche, F. W. “O canto do túmulo” in Assim falou Zaratustra.

da minha juventude! Ó vós todos, olhares do amor, momentos divinos! Como me morrestes tão depressa! Penso em vós hoje como meus mortos.”17

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A máquina inventada por Morel (Bioy-Casares) é capaz de conservar a dimensão espacial perdida gravada no “disco eterno”, mas a vida dos personagens capturados se esvai. No Grande Vidro, ela pode ser restituída, sob duas condições: 1. subtrair-se à cadeia reprodutiva (trata-se d’a máquina celibatária, por excelência); 2. ser refinada pelo olho do espectador, um olho potencialmente n-dimensional – necessariamente anamórfico. Para o caso de que essas duas condições se cumpram, o quadro promete esplêndida dilatação cinemática. Ou seja, a máquina realiza apenas a primeira etapa do processo, que consiste em obter a “parada” do fluxo vital para que um ser ou acontecimento (hipotético e incognoscível) seja capturado numa forma passível de ser reconhecida como idêntica a que se deseja reproduzir. O dispositivo fotográfico é capaz de realizar a captura de modo automático e instantâneo; mas o desenho em perspectiva e o código linguístico também têm essa pretensão: são processos a partir dos quais se poderá obter uma forma na qual o objeto original seja reconhecível. O Grande Vidro requisita todos esses procedimentos, mas fornece apenas o molde, a ser preenchido pelo espectador. Fica a cargo deste realizar a segunda etapa, deslocando-se da posição clássica de espectador para a de usuário ativo de uma máquina produtiva – não sem ironia, é claro. Seu nome é olhador; seu instrumento de trabalho – o olho moldado por todos os aparelhos ópticos que antecedem o Grande Vidro, incluída a máquina-cinema – é peça fundamental para a produção. Pressupõe-se que seja capaz de realizar a conversão da segunda para a terceira dimensão. Embora o aparelho seja concebido para proporcionar a passagem às dimensões seguintes, essa intenção não deixa de ser acompanhada pela pergunta-teste: “Pode-se fazer obras que não sejam ‘de arte’?”18 “(Fotografia das Sombras dos Ready-Mades)”19 é uma das 46 anotações encontradas após a morte de Duchamp num envelope com a inscrição Inframince, que Jean Clair define como

18 Duchamp, Marcel. “A l´infinitif (Boîte blanche)”. Sanouillet, Michel. (org.), Duchamp du signe. Paris: Flammarion, 1994, p. 105. 19 Duchamp, Marcel. “Inframince 1-46”. Notes. Paris: Flammarion, 1999, p. 24.

o grau qualitativo em que o mesmo se transforma em seu contrário, sem que se possa exatamente decidir o que é ainda o mesmo e o que já é o outro. De um ponto de vista puramente geométrico, poder-se-ia dizer que é a noção que faz a passagem intervir no limite (...) Mas de um ponto de vista mais sensível, mais intuitivo, seria possível dizer que o infrafino é a orla infinitamente fina que define um limiar: limiar de audição, limiar de visão, limiar de odor, tudo aquilo que remete ao mais agudo da sensação.20

20 Clair, Jean. Apud Parret, Herman. Prothèses Duchampiennes. www.interact.com.pt #2.

Atuando nos limiares, a noção de infrafino nos permite vincular sensação e dimensão, o que leva a outra ilação possível: arte e quarta dimensão. O limiar da arte pode ser entendido como o limiar da sensação de arte. Se a questão aparente – segundo a lógica de aparência que rege o funcionamento do Vidro – diz respeito à passagem entre as dimensões, e se daí deriva uma prática que coloca à prova o limiar a partir do qual é decidido se uma obra é ou não ‘de arte’, então podemos dizer que a relação entre o ready-made e o Grande

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Vidro é permeada por uma diferença infrafina – o primeiro aparecendo como uma versão instantânea do segundo: uma imagem em três dimensões. Em O Grande Vidro, a pintura não é aplicada sobre o vidro, mas entre vidros. A espessura do material transparente remete a uma separação infrafina entre o olhar e a pintura, demarcando, ao mesmo tempo, o limite físico entre as áreas de competência de quem vê e do que é visto. Fornece assim uma imagem material do coeficiente de arte (relação aritmética entre as intenções do artista, o que ele projeta realizar e o que efetivamente realiza, percebido e refinado pelo espectador). O Grande Vidro torna explícito o fenômeno do olhar posto que se interpõe à realização imediata do desejo de ver. Desse intervalo resulta a distinção entre aparência e aparição. No ready-made, aparição e aparência coincidem exatamente, ou melhor: a diferença entre um objeto fabricado em série e o mesmo objeto como obra ‘de arte’ é infrafina. 21 Duchamp, Marcel. “Le Grand Verre”. Notes, p. 49.

“Em geral, o quadro é a aparição de uma aparência.”21 O trabalho do artista consiste em extrair de um objeto escolhido suas condições de aparição – “a imagem em n-1 dimensões dos pontos essenciais desse objeto em n dimensões”, luminosidade inclusive (dada pelas “cores nativas”) – para que o espectador restabeleça sua aparência: “conjunto de dados

22 Duchamp, Marcel. “A l´infinitif”. Op. cit., p. 120-121.

sensoriais usuais permitindo ter uma percepção ordinária desse objeto”22. Mas isso não significa que elas devam ser necessariamente coincidentes. Pela perspectiva (ou todo outro meio convencional, cânones...) as linhas, o desenho são ‘forçados’ e perdem o mais ou menos do ‘sempre possível’ [l’à peu près du ‘toujours possible’], além disso, com a ironia de ter escolhido o corpo ou objeto primitivo que devem inevitavelmen-

23 Duchamp, Marcel. “La mariée mise a nu par ses celibataires, même (“La boîte verte”)”. Sanouillet, op. cit., p. 55.

te segundo essa perspectiva (ou outra convenção).23 Ao corpo primitivo não se tem acesso.“O Pendu femelle é a forma em perspectiva ordinária

24 Idem, ibidem, p. 69.

de um Pendu femelle, para a qual poderíamos tentar encontrar a forma verdadeira.”24 A forma verdadeira não diz que é um ser, diz apenas que é a forma de uma forma. Objeto barrado, será preciso inverter o percurso, operar no registro do retard. A simples escolha transforma o corpo primitivo em objeto tipo. O modo de captura perspéctico fixa o objeto numa forma mensurada, em termos duchampianos, a fórmula crônica que determina sua Realidade – “ocasião da repetição ao infinito de imagens, (...) cada uma dessas imagens, em número infinito, submetida à relação constante das três dimen-

25 Duchamp, Marcel. “A l´infinitif”. Op. cit., p. 137.

sões do objeto tipo”.25 Se a mensuração de um objeto é o primeiro passo para o estabelecimento de cópias idênticas, inversamente, a reprodução de um objeto pressupõe sua mensurabilidade. (Mas nem tudo é mensurável: na parte inferior do Vidro, encontramos formas mensuradas e “imperfeitas”; em cima, formas “livres” que são apenas exemplos do mais ou menos do possível, não tendo sofrido nenhum efeito de mensuração nem podendo ser tomadas como mensuradas. A perfeição das formas está relacionada a seu livre

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devir, que a mensuração só imperfeitamente seria capaz de registrar). Logo, a Realidade é a fórmula crônica que eternamente retorna – ou não: é possível inverter essa destinação fazendo com que os olhares sobre o objeto se repitam em vez de fazê-lo retornar como cópia. A cada olhar, a forma inscrita vai-se inflando de novo de um a mais de mais ou menos do ‘sempre possível’ – eterno possível do mais ou menos o mesmo. Sobre o Vidro, assim como no ready-made, o objeto terá sido designado, mas seu sentido permanece fora de expressão: feito pronto, que acaba de ser lançado à fabricação. “Para repouso instantâneo = fazer entrar a expressão exposição extrarrápida”26. Num átimo, o minucioso trabalho do artista desaparece. O modo fotográfico de captura (outro

26 Duchamp, Marcel. “La mariée ...”. Op. cit., p. 43.

meio convencional) não permite distinguir entre repouso instantâneo e exposição extrarrápida. O próprio cinema se define como movimento em regime facultativo. Ou, como explica Kubelka, “o cinema não é movimento; é uma projeção de imagens fixas – o que quer dizer imagens que não mexem – em ritmo muito rápido.”27 A aparência fotográfica, como qualquer outra aparência, não garante nada além de si mesma, nada além da pró-

27 Kubelka, Peter. Cat. ArteCinema Anos 6070. Ferreira, Glória; Canongia, Ligia (orgs). Rio de Janeiro: CCBB, 1997, p.16.

pria forma, que não subsume nem fixa o acontecimento (que não para de acontecer). Seu devir é um devir imagem – devir imagem por meio da imagem que incessantemente se imagina, sem parada nem repouso. Por outro lado, o possível da descrição está no quadro. Por mais excêntrico que seja o movimento, a imagem permanece estática; cabe ao texto demonstrá-lo. Pintura, perspectiva e código linguístico fornecem as condições de aparição da imagem cinefotográfica. O Grande Vidro funciona como um Analythical Engine, fracionando cada passo do processo e disponibilizando à recombinação amostras constitutivas distintas entre si. Entre as intenções do artista consta: “apresentar um Repouso ‘capaz 28 Duchamp, Marcel. “Le Grand Verre”. Notes, p. 51.

das piores excentricidades”28. Tudo o que está inscrito intravidros é da ordem do fabricado e estabelecido numa forma; mas o que está fora dele, num além ou extravidros, é da ordem do acontecer, de um vir a ser cujo registro ou mensuração é impossível. O fundo do quadro é o mundo, qualquer que seja, percebido na multiplicidade de suas formas tridimensionais. O Vidro pode funcionar como uma lente que revela a dimensionalidade crônica do mundo submetido às leis de Cronos e da gravidade (o Peso). Se o reconhecimento da Realidade é determinado pela constância das formas com que se mostra, através do quadro, espelhado nos outros olhadores, cada um tem a oportunidade de se ver vendo, de se reconhecer como objeto tipo celibatário. Máquina celibatária e aparelho celibatário nomeiam a parte inferior do Grande Vidro, podendo estender seu sentido ao funcionamento geral do quadro, que inclui a Mariée, sob qualquer um dos nomes que habitam a região superior: árvore-tipo, Pendu Femelle [Pendurado/Enforcado Fêmea], Guêpe [Vespa], motor, máquina agrícola, esqueleto, virgem. A profusão de nomes díspares é apenas uma breve indicação da insuficiência do código linguístico em descrever o que ali se apresenta, em contraste com a sinonímia que rege a parte inferior. Embaixo impera a metáfora óptica: Gás de iluminação, Testemunhas

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Oculistas, Armadilha das Sombrinhas. Os movimentos são visualizáveis, porque previsíveis, porque repetitivos: conseguimos estabelecer um esboço da circulação – quase diagrama de um circuito quase fechado. O texto torna visível o que é mensurável A provocação é evidente – “Ver Retorno eterno de Nietzsche, forma neurastênica de uma 29 Idem, ibidem, p. 84.

repetição em sucessão ao infinito”29 –, mas não é a única: só há distinção entre aparição e aparência, a falta de acesso ao corpo primitivo invalidando qualquer pretensão à certeza do modelo. Inversamente, não há nenhuma garantia de semelhança entre cópias que saem do mesmo molde. Os termos usados provocam a figuração platônica. Há a cena dos pretendentes: considerando que a Mariée seja o objeto da pretensão, a arte será seu fundamento; mas quem serão os legítimos pretendentes? E os falsos? E o que ou quem dá fundamento à arte? O estabelecimento de hierarquias é o próprio da filosofia platônica,

30 Cf. Deleuze, Gilles. “Platão e o simulacro”. Lógica do sentido. São Paulo: Perspectiva, 1998, p. 259-271.

afirma Deleuze.30 Trata-se de selecionar linhagens de pretendentes e distinguir modos de participação, estabelecendo um possuidor em primeiro lugar e derivando toda uma gradação a partir dele. Em cima, o texto não faz ver o que o quadro não mostra, mal permite que a Mariée seja imaginada por imagens – caso permita; toda imaginação é teórica. O que se lê não é menos esquelético do que o que se vê. O que está no quadro só se deixa apreender por separação pela linguagem da Caixa Verde, uma linguagem de precisão – como a pintura. Porém, a experiência permite ressaltar a cisão entre as duas aparências da expansão cinemática: a primeira, por exposição a nu, é o que se oferece ao leitor-olhador, sob a forma de imagens e de palavras; a segunda, a imaginativa voluntária da mariée, o que se furta absolutamente ao olhar e à leitura, à qual não temos nenhum acesso. “Do acoplamento dessas duas aparências da virgindade pura – de sua colisão depende todo o desabrocha-

31 Duchamp, Marcel. “La mariée...” Op. cit., p. 63.

mento, conjunto superior e coroa do quadro.”31 Só os verdadeiros pretendentes à Mariée conseguirão vislumbrar-lhe a auréola. Em cima, um esqueleto já desencarnado, passado de todo desejo; embaixo, os celibatários, moldes a serem inflados em futuro incerto. “Os celibatários devendo servir como base arquitetônica à mariée, esta se torna uma espécie

32 Idem, ibidem, p. 58.

de apoteose da virgindade.”32 É que teremos passado do modelo gráfico da reprodução mecânica (tipográfico, fotocinematográfico) a um modo cinemático de incessante devir. Olhando o quadro, vemos áreas de cor e traços, sem saber a que corpo ou acontecimento correspondem, nem em que ponto do processo se encontram – se acabados ou inacabados. Somente a broyeuse é claramente reconhecível, sabêmo-la representada conforme as leis da perspectiva; mas sua perfeita simetria não consegue assegurar de que lado do vidro estamos. Nenhuma condição de comparação está dada, nenhum parâmetro, salvo o solo comum sobre o qual nos mantemos de pé, nós e o Vidro, enigmático, hieroglífico. Em vez de ele girar, nós giramos a sua volta, à procura do ângulo que faça o olhar coincidir

33 Duchamp, Marcel. “Le Grand Verre”. Notes, p. 42.

com alguma visão: “Miragem verbal”.33 Vers, verso do plano e da escrita poética é mais um homófono da série: vert, cor da Caixa, verre, vidro. São quatro os naipes do jogo: ver, dizer, ler e ouvir.

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O aparelho não funciona sem o catálogo – a Caixa Verde. O estilo – conjunto de recursos linguísticos empregado nas anotações incluídas na Caixa – contribui para dar ao texto a “aparência de uma demonstração”. Seu objetivo é explicar o quadro linha a linha: Essa tradução justalinear não devendo ter mais intenção hieroglífica (o quadro, ele próprio, é o dado hieroglífico da Mariée posta a nu –), essa tradução não deverá ser à base de palavras e de letras. ou pelo menos o alfabeto empregado será inteiramente novo, i.é., sem nenhuma relação com as letras latinas gregas – alemãs – ele não será mais fonético, mas somente visual; se poderá compreendê-lo com os olhos, mas não se o poderá ler com os olhos ou em voz alta – O princípio do alfabeto assim compreendido será uma estenografia ideal.34

34 Idem, ibidem, p. 47.

A fotografia constrói imagens a partir de pressupostos teóricos, é produto de teorias físico-químicas, matemáticas, perspécticas. Todos os elementos que a constituem e que pretendem ser impressões automáticas do mundo são conceitos que passaram por operações de codificação, observa Flusser. Como a fotografia, também o cinema compreende-se com os olhos e pode ser entendido como um alfabeto puramente visual; ou como “estenografia ideal”: sucessão de inscrições esqueléticas que nossos olhos aprenderam a ler, a automaticamente preencher com a carne ilusória que lhes foi subtraída. Nesse sentido, a relação quadro/caixa talvez possa ser pensada em termos de uma cinematografia que nunca coincide com a do filme, mantendo-se sempre aquém ou além do cinema. Fazer um quadro de dobradiça, um livro “redondo, isto é, sem começo nem fim”35 ou ainda

35 Idem, ibidem, p. 41.

“um quadro ou escultura como se enrola uma bobina de filme-cinema” – a cada volta acrescentando-se uma nova “vista”, ligando a anterior à seguinte, a continuidade entre as vistas podendo se parecer ou não ter nada em comum com a do filme cinematográfico36 – são projetos que se relacionam com a circularidade ideal do quadro e sua temporalidade n-dimensional. A barra que separa a parte superior da inferior do Grande Vidro deve ser considerada tridimensionalmente, ou seja, não é uma linha que divide um plano em dois, mas uma dobradiça, que faz com que um plano se projete virtualmente sobre o outro no espaço tridimensional, produzindo a percepção da quarta dimensão por laminação, por um acúmulo de seções que o Vidro vai absorvendo ao girar sobre si mesmo no espaço: já não há alto nem baixo, tampouco regem os rigores da lei da gravidade quando o quadro se põe nesse estado de transe cinemático. O Vidro promete cinema, mas articula espaços (e discursos) – como, aliás, o próprio cinema. Tendemos a pensá-lo num modo basicamente temporal e planar, minimizando a importância das relações espaciais agenciadas pelo dispositivo cinematográfico: a base arquitetônica da sala de cinema servindo à expansão cinemática do filme. Graças a ela, a aparição bidimensional projetada pode ser fruída em aparência tridimensional, isto é, na plenitude de suas qualidades volumétricas e espaciais. Uma breve definição de Manovich

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36 Duchamp, Marcel. “A l´infinitif”. Op. cit., p. 107.


ressalta justamente o que a disposição arquitetônica da máquina-cinema procura escamotear: “filmes de ficção são filmes de ação ao vivo; isto é, em larga medida, eles consistem 37 Manovich, op. cit., p. 294.

de registros fotográficos diretos de eventos reais que aconteceram no espaço físico real”37 – o que faz com que o filme possa ser entendido como um ready-made assistido. Variam apenas os graus de “assistência” exigidos para que produza o efeito-cinema. Podemos inverter a questão: não seria o ready-made uma espécie de cinema sem filme? Como se dá sua fabricação? “Projetando para um momento por vir (tal dia, tal data, tal

38 Duchamp, Marcel. “La mariée...” Op. cit., p. 49.

minuto) ‘inscrever um ready-made’. O ready-made poderá em seguida ser procurado.”38 O princípio de fabricação é o acaso, mas sua ocorrência está previamente inscrita no sistema. Uma vez encontrado, o objeto é deslocado para um ambiente que sinalize a presença de arte; esse deslocamento produz a aparição do objeto em três dimensões, mas o ambiente de arte pode funcionar como um Grande Vidro. Caso funcione, o objeto será percebido como aparência em quatro dimensões (= arte); se não, permanece em sua ordinária tridimensionalidade, como um objeto qualquer. O espectador pode até ser cego:

39 Duchamp, Marcel. Apud De Duve, Thierry. Resonances du ready-made. Nîmes: Éditions. Jacqueline Chambon, 1989, p. 41.

afinal, o ready-made é “uma coisa que nem se olha”.39 Objeto tipo e cópia coincidem no mesmo objeto, isto é, não há um trabalho suplementar para fazê-lo passar de uma condição à outra, mas sua aparência varia, conforme o ambiente em que se encontra, podendo

40 Duchamp, Marcel. “La mariée...” Op. cit., p. 49.

até desaparecer nele. “Também o lado exemplar do ready-made”40: fazer convergir no mesmo ato as três dimensões articuladas na noção foucaultiana de dispositivo: a tecnológica – dada pelo objeto fabricado em série; a discursiva – inscrição do ready-made; e a arquitetônica – articulação entre espaços promovida pela presença do objeto. Blindman: uma ilustração mostra um cego guiado por seu cãozinho, que passa por um

41 Cf. De Duve, Thierry. “Étant donné le cas Richard Mutt” in op. cit., p. 67-115.

quadro – uma obra de arte –, obviamente sem o ver. Como relata Thierry de Duve,41 essa é a capa de The Blindman, Independents’ number, revista editada por Duchamp e outros, por ocasião do Independents’ Show. Ali, pela primeira vez, é publicada uma imagem fotográfica de Fountain, obra assinada por R. Mutt, vista apenas pelos organizadores, recusada e removida da exposição antes da abertura. Duchamp, também organizador, retira-se da função, mas publica na revista a fotografia do objeto feita por Stieglitz – ao mesmo tempo, prova de existência e legitimação do objeto enquanto obra de arte. A fotografia de Stieglitz seria a primeira aparição pública de Fountain – em duas dimensões. A imagem do objeto atravessa a lente (de vidro) da objetiva. Isso esclarece por que “quadro em vidro se torna retard em vidro – mas retard em vidro não quer dizer quadro sobre vidro”. A expressão retard en verre deve ser usada da mesma forma como se diz

42 Duchamp, Marcel. “La mariée...” Op. cit., p. 41.

“um poema em prosa ou uma escarradeira de prata”.42 Logo, não importa a natureza do processo pelo qual se constitui o retard. A reprodução fotográfica fornece perfeitamente bem os meios para que a aparência do objeto seja percebida na dimensão seguinte – uma dimensão potencial, conforme a capacidade do leitor e o grau de disseminação da imagem do objeto. O olhador assume aqui sua feição ideal: a de objeto tipo grafado, que vê a distância, no tempo e no espaço, sempre uma garantia de retard. Seu olhar-leitor-produtor,

Notas sobre a (Fotografia das sombras ready-mades) Livia Flores

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atravessando várias lentes e sendo determinado por outros olhares e leituras, pode atingir dimensões insuspeitadas: a posteridade. Quase 100 anos depois do ready-made, convivemos com o aleatório em larga escala e com o desabrochamento cinemático do mundo. Muitos procedimentos da máquina celibatária se tornaram digitais. Talvez a pergunta-teste se tenha invertido: Pode-se fazer obras que sejam ‘de arte’? O que pode não ter mais sentido, quando tudo se transforma em dispositivo. Fica ainda a noção de que o cinema sem filme depende basicamente de deslocamentos operados ou percebidos no espaço, podendo acontecer em qualquer lugar ou instante. Então a pergunta continua sendo: como fazer cinema sem filme?

Livia Flores (UFRJ, Rio de Janeiro, Brasil) é artista, doutora em Artes Visuais na área de Linguagens Visuais (PPGAV/EBA/UFRJ) e mestre em Comunicação e Tecnologia da Imagem (ECO/UFRJ). Atualmente desenvolve pesquisa de pós-doutorado junto ao Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais, EBA/UFRJ, com apoio do CNPq. / livflores@gmail.com

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Dispositivos em evidência na arte contemporânea Victa de Carvalho

O objetivo da autora é pensar algumas estratégias da arte contemporânea a partir da noção de dispositivo. Trata-se de expandir essa noção para além de suas dimensões técnicas, tendo em vista a construção de experiências audiovisuais capazes de promover deslocamentos nas relações entre imagem e observador. Dispositivo, arte contemporânea, subjetividade. O crescente uso de dispositivos audiovisuais na arte contemporânea vem colocando em questão algumas premissas fundamentais tanto da produção artística quanto do audiovisual. No contexto das instalações, muitas são as propostas que visam problematizar as lógicas convencionais de funcionamento de dispositivos como a fotografia, o vídeo e o cinema, promovendo importantes deslocamentos em nosso modo de perceber. Obras se espacializam, tempos se multiplicam, e novas dimensões perceptivas se apresentam. Caracterizada como uma arte híbrida, a arte contemporânea é marcada pela miscigenação de práticas e conceitos que apontam para a reestruturação das relações entre observadores e imagens. Com o intuito de dimensionar o impacto dessas propostas no cenário das artes, destacamos as obras que reinventam os papéis dos dispositivos imagéticos caracterizados por modelos de produção e de recepção predefinidos, e historicamente interiorizados pelos observadores. A partir de diferentes proposições, utilizando-se das mais variadas estratégias, os artistas Douglas Gordon, Pipilloti Rist, Eija-Liisa Athila, Douglas Aitken, Jeffrey Shaw, entre outros, vêm criando seus dispositivos a partir desses deslocamentos, traçando linhas de fuga sobre um regime do ver que institucionaliza o olhar. De modo geral, são “obras-dispositivos” concebidas a partir da suavização das fronteiras que separam e definem cada dispositivo (fotografia, cinema, vídeo), assim como seus modos de recepção, delegando ao observador a tarefa de estabelecer seu próprio percurso pela obra. Pensar sobre os dispositivos torna-se, portanto, tarefa fundamental para uma reflexão sobre a experiência artística na atualidade. De diferentes maneiras, os dispositivos são colocados em evidência e passam a funcionar como ativadores de novas experiências. Quando a experiência da obra importa mais do que a obra em si, quando os dispositivos perturbam os modelos conhecidos de observação, novos papéis são atribuídos às imagens e aos observadores. Nota-se que, por um lado, a imagem parece nunca se tornar objeto, nunca se fixar, e, por outro, o sujeito parece estar sempre em processo. Novas subjetividades fluidas, móveis, constituem-se ao longo dessa experiência com a obra.

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Contudo, a complexidade de pensar o papel dos dispositivos na arte contemporânea se apresenta à medida que é preciso definir como a noção de dispositivo pode nos ajudar a problematizar o papel da imagem na contemporaneidade. Que experiências vêm sendo ativadas pelos dispositivos no contexto atual? O que é um dispositivo? e qual o seu papel na produção da subjetividade? Dispositivos: assujeitamentos ou subjetivações? Em entrevista à revista Ornicar? Bulletin périodique du champ freudien,1 Foucault define o dispositivo como um sistema de relações que pode ser estabelecido entre diferentes elementos como leis, discursos, instituições, proposições filosóficas ou científicas. Nessa entrevista, ele enfatiza também a importância da natureza da conexão entre esses ele-

1 Ornicar? Bulletin périodique du champ freudien, n. 10, julho, 1977, p. 62-93. Ver: Kessler, F. “Notes on dispositif”. Disponível em: www.let.uu.nl/~Frank.Kessler/personal/ notes%20on%20dispositif.PDF

mentos, seja ela discursiva ou não, e conclui: (...) compreendo o termo “dispositivo” como um tipo de – devo dizer – de formação que tem como função principal em um dado momento histórico responder a uma necessidade urgente. O dispositivo tem, portanto, uma função estratégica dominante.2 As aplicações mais conhecidas estão em História da Sexualidade,3 em que Foucault faz

2 Foucault. 1980, p. 194-195 (tradução da autora). 3 Foucault. 1998, p.75.

uso explícito do termo dispositivo para se referir a um conjunto de forças diferenciadas, de repressão e de escape, articuladas pelo poder no campo da sexualidade, e em Vigiar e Punir4 em que o dispositivo será determinante nas relações estabelecidas por Foucault entre visibilidade e produção de subjetividade. Nesse contexto, é a prisão o dispositivo que promove o assujeitamento dos corpos e produz subjetividades dominantes de acordo com cada formação histórica. Através do Panóptico, Foucault vai identificar o modo de funcionamento das estratégias de poder, sua interiorização pelos indivíduos sob essa influência, além do modo de constituição dos saberes ligados às normas estabelecidas. De modo geral, podemos dizer que, em Foucault, um dispositivo coloca em jogo elementos heterogêneos e tem sempre uma função estratégica. Suas pesquisas são responsáveis pela expansão do conceito de dispositivo em múltiplas dimensões, todas elas relacionando o dispositivo às estratégias de poder em diferentes momentos históricos. O dispositivo é, sem dúvida, um dos conceitos nodais da obra de Foucault e, apesar de já amplamente estudado e comentado por pesquisadores de diferentes campos do pensamento, merece aqui ser ressaltado por sua concepção conceitual operatória de grande utilidade para pensar também algumas proposições da arte na atualidade, como veremos adiante. Em sua mais recente publicação sobre a atuação dos dispositivos, Giorgio Agamben sugere outro caminho para pensar a noção de dispositivo e seu papel na produção de subjetividade, ao mesmo tempo em que tece significativos pontos de aproximação e de afastamento em relação à tese desenvolvida por Foucault. Para o autor, o dispositivo é a rede que estabelecemos entre os elementos, é uma formação histórica que, em um dado momento,

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4 Foucault. 1997, p. 165.


tem por função responder a uma urgência. Partindo de uma concepção teológica de dispositivo que remete a um conjunto de forças, o qual, na relação com os viventes, produz os sujeitos, Agamben demarca o horizonte de suas preocupações e reflexões. Pensar sobre o dispositivo remonta, para o autor, ao próprio processo de hominização e por isso ressoa 5 A economia torna-se o dispositivo através do qual o dogma da trindade e a ideia do governo divino da providência do mundo se introduzem no cristianismo. A ação não tem nenhum fundamento no ser, essa é a esquizofrenia que a doutrina da economia deixou como herança para o Ocidente.

na própria constituição dualista ocidental do ser.5

6 Agamben, 2007, p. 27 (tradução da autora).

A proposta de Agamben está ancorada na dualidade entre os seres e os dispositivos, ex-

Agamben ressalta a importância do dispositivo como um conceito operatório que funda uma ação de governo sem nenhum fundamento no ser. “É por isso que os dispositivos devem sempre implicar um processo de subjetivação. Eles devem produzir seu sujeito.”6 pandindo sua abordagem das instituições já apontadas por Foucault para onde o poder é menos evidente, como a caneta, a agricultura, o cigarro, os computadores ou os telefones celulares. A tensão em seu pensamento está direcionada para a produção incessante de novos dispositivos na atualidade. Agamben parte do pressuposto de que o estádio atual do capitalismo se difere do capitalismo moderno pelo fato de seus dispositivos já não produzirem sujeitos. Sob essa perspectiva, vivemos um grave e inevitável processo de dessubjetivação, como o operado, segundo o autor, pelo dispositivo televisivo, só capaz de produzir autômatos, corpos inertes. Ainda que Agamben questione os modos de resistência aos dispositivos, seu pensamento parece constatar a impossibilidade de uma reversão. A subjetivação e a dessubjetivação são indiferentes e não formam um novo sujeito. Nesse sentido, a atualidade se configura pelo eclipse da política e o triunfo da economia, na qual vigora uma pura atividade de governo que visa apenas a sua própria reprodução. A proposição de Agamben parece-nos problemática principalmente se pensarmos a noção de dispositivo e a produção de subjetividade no campo das artes plásticas. Sua proposta está marcada pela impossibilidade de desvio nessas relações de poder e de resistência em um dispositivo na contemporaneidade, inviabilizando a reinvenção dos modos de agenciamento que operam saberes e poderes. Nesse âmbito, nada escapa ao jogo de forças dos dispositivos, de modo que o problema do excesso conduz, para Agamben, inevitavelmente, a um vazio, à falta de subjetividade. Sob uma perspectiva absolutamente diferente, a noção de dispositivo é usada por Deleuze. Para o autor, vivemos e agimos sempre em dispositivos atravessados por linhas de diferentes naturezas. Dispositivos não constituem sistemas homogêneos, mas traçam processos em desequilíbrio. Saber, poder e subjetividades não são, portanto, instâncias definidas, e sim cadeias de variáveis, como já havia enunciado Foucault. Um dispositivo é sempre percorrido por curvas de visibilidade e pelas curvas de enunciação, como “máqui-

7 Deleuze. 1996a, p. 84.

nas de fazer ver e de fazer falar”,7 e comporta também linhas de subjetivação que através de agenciamentos podem criar o novo. Enquanto Foucault dirige seus estudos para o modo como a subjetividade é produzida e moldada de acordo com as forças de cada formação histórica, a produção de subjetividade em

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Deleuze é privilegiada à medida que é atravessada por linhas de subjetivação que escapam aos saberes e poderes, como formas de resistências capazes de apontar para novos modos de existência. “Uma linha de subjetivação é um processo, uma produção de subjetividade em um dispositivo”.8 Talvez seja o caso de perguntar se as linhas de subjetivação não seriam os

8 Idem, ibidem, p. 87.

extremos de um dispositivo em que se esboça a passagem de um dispositivo a outro, como linhas de fratura. Se o dispositivo conjuga sempre elementos heterogêneos, esses estão relacionados em uma organização rizomática, acentrada, não hierárquica, que permite ranhuras e brechas em qualquer modo totalizante de poder. Segundo Deleuze,9 dispositivos, sejam eles artísticos, políticos, sociais, filosóficos, são sempre sistemas acentrados que colocam em relação linhas de diversas naturezas, como as linhas de poder e de saber, linhas molares e moleculares, e as linhas de fuga. Partindo de uma concepção de dispositivo que engloba diferentes elementos capazes de estabelecer um sistema de ação concreta sobre os indivíduos, apostamos nas possibilidades de fratura, nas linhas de fuga através das quais novas experiências com os dispositivos imagéticos podem ocorrer. Nossa proposta segue uma investigação sobre o modo como os dispositivos audiovisuais se apresentam na contemporaneidade das artes e sobre as diferentes modalidades de funcionamento que constituem seus processos de subjetivação, sejam esses de controle ou de escape, de assujeitamento ou de fuga. Ou seja, através da reinvenção de dispositivos ou da criação de outros, inúmeras obras se caracterizam por privilegiar os deslocamentos nos modos convencionais de funcionamento dos dispositivos utilizados, fraturando convenções institucionais e perceptivas. Através da expansão das fronteiras da fotografia, do cinema ou do vídeo, ou da criação de novas possibilidades de existência dentro desses campos, muitos artistas, hoje, apresentam dispositivos que permitem múltiplas modalidades de experiências, intensificando o diálogo entre o que pode ser reconhecido e o que deve ser experimentado. Dispositivos na arte contemporânea Tomar o dispositivo como ponto de partida para pensar a arte na contemporaneidade faz com que seja preciso especificar algumas das tensões atuais, tendo em vista a variedade de concepções, muitas vezes contraditórias entre si, com que se vem utilizando o termo dispositivo no campo da imagem, seja como artefato, como tecnologia, como conjunto de práticas ou como instalação. A grande variedade de elementos e interseções entre os dispositivos nos apresenta cenário cada vez mais amplo e diversificado de criações artísticas, em que evidenciamos também a construção de uma multiplicidade de discursos que, por um lado, visam determinar um modo de experiência catastrófico ou otimista para o futuro da arte e que, por outro lado, nos indicam também modalidades de experiência que escapam aos discursos de previsibilidade que os dispositivos propõem. É exatamente nesse deslocamento das funções originais dos dispositivos, na fratura das linhas que estruturam e determinam as experiências em um dispositivo, nessa relação disjuntiva, mas absolutamente fértil entre dispositivo e observador, imagem e linguagem, que incide nossa aposta de que os dispositivos imagéticos podem ser sempre reinventados.

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9 Deleuze. 1996b, p. 83-84.


Inúmeras propostas contemporâneas enfatizam o caráter híbrido dos dispositivos e apresentam ao observador as possibilidades de reinvenção da fotografia, do cinema e do vídeo, problematizando cada vez mais essas fronteiras. “Obras-dispositivos” como 24 Hours Psycho (1993), de Douglas Gordon, Place (1995), de Jeffrey Shaw, ou Sleepwalkers (2007), de Douglas Aitken, renovam os modos já institucionalizados de fazer e de ver imagens. Seja multiplicando ou utilizando formatos pouco convencionais de telas, seja imprimindo novas velocidades muito lentas ou muito rápidas às imagens, ou criando novas temporalidades, suas estratégias de renovação podem ser consideradas linhas de fuga de dispositivos consolidados, solicitando novas reações do observador diante das imagens. São linhas que atravessam os dispositivos imagéticos, problematizam suas funções e criam novas possibilidades de experiência.

Doug Aitken, Sleepwalkers.

A importância da noção de dispositivo é retomada por Anne-Marie Duguet para pensar o que está em jogo na arte eletrônica e numérica: mais do que um princípio explicativo, trata-se para a autora de um conjunto de operações a serem demarcadas. O dispositivo não corresponde apenas a um sistema técnico, ele propõe estratégias, produz efeitos, direciona e estrutura as experiências, apresenta diferentes instâncias enunciativas e fi-

10 Duguet. 2002, p.21.

gurativas e tem múltiplas entradas.10 Duguet propõe uma concepção de dispositivo que se alterna entre o maquínico e a maquinação, tendo sempre como foco a ideia de que todo dispositivo visa à produção de efeitos específicos, estruturando assim nossa experiência sensível. Mais do que uma organização técnica, o dispositivo em Anne-Marie Duguet coloca em jogo diferentes instâncias enunciativas e figurativas, incluindo tanto situações institucionais quanto processos perceptivos.

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Segundo Duguet, uma categoria específica de instalações videográficas teria intensificado alguns desses questionamentos e colocado em jogo os elementos constituintes fundamentais da representação clássica, questionando todos os modelos de construção visual fundados nos perspectivismos, tanto os que se prolongaram na pintura e no desenho através de inúmeros conceitos e técnicas quanto seus procedimentos nas câmeras de modo geral, como reprodutoras dessa lógica nas áreas da fotografia, do cinema e da televisão. Os artistas do vídeo criaram “obras-dispositivos” que se dispuseram a questionar os dispositivos imagéticos originários da caverna platônica à tavoletta de Brunelleschi, da câmera obscura aos sistemas modernos de vigilância. Desse modo, afirma Duguet, o dispositivo pode ser tanto conceito da obra como instrumento de sua realização. Se, por um lado, o dispositivo eletrônico coloca em questão os dispositivos originários de produção de imagem, causando assim curtos-circuitos nos processos perceptivos habituais, por outro lado, há sempre uma predefinição de seus elementos, visando a efeitos específicos que, em certa medida, serão questionados pelas obras. A autora parte do princípio de que as proposições de um dispositivo estão sempre configuradas, as coordenadas estão sempre estabelecidas, e as experiências, ainda que individuais, estão sempre condicionadas ao bom desempenho do dispositivo, ainda que este reapresente problemáticas sobre seus efeitos. Tal concepção desenvolvida por Anne-Marie Duguet é fundamental para pensarmos os deslocamentos em questão em diversas obras contemporâneas. No entanto, se muitas instalações videográficas buscaram, ao longo dos anos 70, desconstruir modelos de arte historicamente sedimentados, é preciso levar em conta as estratégias de oposição empregadas pelas vanguardas modernistas na apresentação de seus dispositivos. Sabemos que a história das resistências não é nova e que muitas dessas questões também não são inéditas na arte contemporânea. As histórias da pintura, da fotografia, do cinema e do vídeo criaram seus próprios híbridos ao longo da Modernidade, permitindo inúmeras formas de escape em relação a um projeto moderno oficial. Se, por um lado, a arte moderna é marcada pela busca de definições puristas e classificações de linguagens, por outro, ela também é responsável pela produção de inúmeros desvios em relação a esses modelos. Sem dúvida, o papel das vanguardas artísticas foi definitivo no enfrentamento desse projeto moderno oficial, alimentando a polarização de discursos e propostas. O que, porém, está em jogo hoje parece ser de outra natureza, diferente daquela do enfrentamento via a oposição ou a desconstrução. Trata-se do privilégio dos híbridos, que deixam de ocupar o lugar das sobras de um programa moderno para se tornar os principais personagens legitimadores de uma arte do contemporâneo. Recentes propostas artísticas oscilam entre os discursos predefinidos de sistemas de representação e suas possibilidades de desvio, e visam à criação de um lugar intermediário que nos permita estar entre a coisa e a representação, entre a crença e a desconfiança, entre a imagem e a linguagem. Não se trata nessas produções de crer nas imagens, mas de compreender quais são as forças atuantes nos dispositivos apresentados, as quais indicam

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novas modalidades de experimentar as imagens. São dispositivos que interrogam diversos outros dispositivos históricos formadores de imagens e criam novos modelos de visibilidade e de subjetividade. São obras que explicitam o trabalho do dispositivo, à medida que ele nos apresenta um percurso, um processo, e não um objeto a ser contemplado. São trabalhos que nos mostram imagens sempre abertas, móveis, incertas, e exigem renovação de nossa experiência visual.

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Victa de Carvalho (Universidade Gama Filho, Rio de Janeiro, Brasil) é doutora em Comunicação e Cultura – linha de pesquisa Tecnologias da comunicação e estética – pela Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro, com estágio de pesquisa na Université Paris 1 – Sorbonne. Publicou diversos artigos, entre eles “Dispositivos em evidência: A imagem como experiência em ambientes imersivos” in Bruno, Fernanda e Fatorelli, Antonio (org.), Limiares da imagem: tecnologia e estética na cultura contemporânea, Rio de Janeiro: Ed. Mauad, 2006. / victa@infolink.com.br

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Cena do filme superoito em que aparece o objeto náufrago. Sem título, Galeria Cândido Portinari, Rio de Janeiro, 1999.


Máquinas de desvios: as instalações com filmes de Livia Flores1 Luiz Cláudio da Costa

Analisando alguns trabalhos da artista plástica Livia Flores, encontra interesse na luz e no movimento. Há nas proposições artísticas de Livia Flores a compreensão de uma lógica conceitual da imagem que distingue dois valores rivais: a aparência das coisas e a aparição das forças. Em suas máquinas celibatárias são as forças invisíveis que se devem tornar visíveis, neutralizando a vontade do idêntico presente em nossa cultura. Livia Flores, instalações multimída, imagem. “A fuga é o engendramento do espaço sem refúgio.” Maurice Blanchot A ideia da “tela” como território do movimento da imagem insiste 1 Este texto resulta dos estudos A exigência do registro na arte contemporânea: dispositivo, tempo e subjetividade, que desenvolvo com a bolsista Pibic Adelaine Evaristo da Silva, no bojo da pesquisa de Prociência Arte e virtualidade: o tempo como matéria plástica.

como prática em duas exposições recentes de Livia Flores – Telas / Como fazer cinema sem filme, Galeria Funarte, 2008 e Livia Flores, Galeria Progetti, 2008/09. As Telas expostas na Galeria Funarte, realizadas com espelhos, reproduziam vestígios do passado retido nos arquivos da artista. Repetiam o formato e o tamanho dos pequenos losangos coloridos do papel de presente das colagens produzidas pela artista nos anos 80. Os trabalhos da Galeria Progetti, por sua vez, utilizavam as próprias colagens, então fixadas sobre telas esticadas em chassis. O padrão do papel estampava a geometria insistente. Coincidindo com o suporte da pintura, as telas da Progetti guardavam distância da ordem pictórica para melhor abordar a linguagem sob a perspectiva conceitual. Pintura e não pintura incidiam no agregado heterogêneo, fazendo emergir a marca material do tempo. Não pelo uso, pois os papéis jamais embrulharam presentes. Eles foram apenas resgatados do acervo particular conservado pela artista. Recolhidas à condição de mero documento do passado, as colagens retornam para mostrar o avesso da pintura. Mas também do tempo. Não é a permanência o que importa, mas a fenda que divide o passado. A matéria envelhecida distingue assim um pensamento plástico e revela o desvio da origem. O grafismo cinético perdeu seu frescor e, se acaso insiste, é como problema. Um tanto puído pelo desgaste, refletindo luz esmaecida, o papel tende à opacidade. Acolhe apenas a luz local, mas não o sujeito que olha. O espectador sente encontrar-se diante do ponto cego de um espelho. Vê uma luz disseminada sobre o suporte refletor sem que se possa ver. Importa nas telas de colagens da Progetti apresentar a condição de possibilidade de toda visibilidade e não a duplicação do visto. Tragicamente, elas se negam a devolver ao sujeito o mundo vivido.

Máquinas de desvios Luiz Cláudio da Costa

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Os trabalhos das duas exposições revelam processo plástico sobrevindo de uma matéria artística arquivada. Insistem sobre o problema da memória pessoal, bem como da história da cultura e da arte. O cinetismo enquanto plasticidade do movimento precede a artista, que reencontra na cadeia repetitiva das séries de losangos a abertura de um problema: duplos não procedem por semelhança, constituem desvios. A capacidade reflexiva dos espelhos das Telas da Galeria Funarte não tinha a severidade opaca do papel puído presente na Progetti. O que no papel era cor prateada, nos espelhos era área sem tinta. As Telas mantinham intacta a potência especular de alguns dos pequenos losangos. O passado do cinetismo inserido no território do presente tinha agora outro funcionamento. O trabalho não impedia a duplicação. Fragmentava o observador e espalhava seu duplo cravado de fraturas. O espectador agora cintilava num fulgor trepidante. As “pré-imagens” – estendendo para as Telas da Funarte a designação proferida por Glória Ferreira em folheto distribuído durante o período da exposição da Galeria Projetti – abrigavam os mundos e seus sujeitos. Mas implicavam outro risco. A mínima demora na busca de perceber o duplo especular evidenciava o tremeluzir perigoso do desvio que fissura. A multiplicidade do visível estava evidenciada. As Telas não zelavam por sentidos ocultos. Não há nada de secreto nos trabalhos de Livia Flores ainda que mundos não visíveis possam emergir. Abordando o lugar do sujeito e o espaço de exposição, as Telas visavam ao campo de saber de suas imagens-irmãs – pintura, cinema, vídeo, memória, desejo, sonho, reflexo. Elas revelavam a reflexividade crítica da arte contemporânea: problematizar não uma linguagem específica e seu sistema formal, mas a condição de possibilidade da imagem da arte e sua potência prática na vida. Focando o olhar sobre as “telas” de ambas as exposições, apura-se o conhecimento sobre o interesse conceitual da artista: a noção-problema “Como fazer cinema sem filme?”.2 O cinetismo presente nas “telas” adota uma variante inesperada: ser uma máquina-cinema sem o dispositivo que lhe é próprio. O termo cinetismo está etimologicamente ligado à ideia de movimento. Mas são díspares as preocupações pertinentes a esse problema no

2 Livia Flores desenvolveu esse problema em sua tese de doutorado Como fazer cinema sem filme? (Flores, 2007a) que resultou no artigo de igual título publicado na revista Arte&Ensaios n. 15 (Flores, 2007b).

modernismo europeu de Lásló Moholy-Nagy, de Alexander Calder e de Marcel Duchamp, no concretismo brasileiro de Abraham Palatinik e de Luiz Sacilotto, na op art do húngaro radicado na França Victor Vasarely ou, ainda, nos trabalhos de Soto e de Lygia Clark. As abordagens mecanicistas de uns distam da experiência fenomenológica de outros, ainda que todos tenham colocado o problema do tempo.3 O cinetismo de Livia Flores pertence ao território trágico da impossibilidade: o que vejo não pode ser duplicado a menos que os duplos sejam múltiplos desvios da origem. Tudo pode ser repetido uma vez que uma potente máquina inverta o lugar das coisas no espaço. Essa é a máquina dos desvios de Livia Flores. E esta é a força de seus trabalhos: fazer variar, neutralizando a vontade do idêntico. Segundo a artista, o problema “Como fazer cinema sem filme?” resulta de trabalhos como Puzzlepólis II (Bienal de São Paulo, 2004). Diagrama do crepúsculo, Puzzlepólis II faz vigorar uma experiência do naufrágio em pleno espaço urbano. Como cartografia do aban-

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3 Afirmando que os artistas neoconcretos estavam distantes das abordagens do movimento mecânico mais aceitas em certas vertentes construtivas, como a op art e o cinetismo, Ronaldo Brito (1999, p. 77) declarou: “A questão do tempo foi determinante para as diversas tendências construtivas a partir dos anos 60.”


dono, eis a que nos obriga Puzzlepólis II: passear por entre ínfimas construções vistas da perspectiva de um espectador elevado em sua vertical solidão. Os intervalos entre os frágeis objetos de luz minguada produzem a firme sensação do malogro da cidade que não 4 Instituição, situada no bairro de Campo Grande, responsável pela oferta de abrigos à população de rua é administrada pela Secretaria de Habitação da cidade do Rio de Janeiro. A Fazenda Modelo abrigava 2.236 internos em março de 1999, número que se mantinha relativamente constante durante os anos em virtude de diversos fatores abordados na tese de Giovanni Marcos Lovisi (2000).

pode absorver o artista e o expulsa para uma Fazenda Modelo.4 Ironia de nosso destino. O modelo não é o ideal, mas uma morada de homens recusados, o real em sua mais cruel manifestação. Apropriando-se dos trabalhos de Clóvis, interno na Fazenda Modelo, Livia opera uma transvaloração do recusado. Afirma o desvio como força da vida. Põe a funcionar uma prática da vigília em plena penumbra. Constitui o espaço da visão como lugar para o pensamento. A noção-problema “Como fazer cinema sem filme?” pode decorrer de Puzzlepólis II porque um programa celibatário já se insinuava nos objetos de luz de Clóvis. Uma força impulsionava a imagem à errância, espalhando afetos em todas direções para que se agenciassem livremente. Um protesto da artista revela sua vontade iconoclasta: “Pergunto-me até que ponto o modo de funcionamento da máquina-cinema não traria em si inscrito um programa celibatário, algo em seu mecanismo que a faz desandar, voltar-se contra o próprio modo

5 Flores, 2007b, p. 29.

de produção, trocando a lógica da imagem por um desejo de não-imagem”.5 Uma força política insinua-se em seus dispositivos contra as aparências produzidas pelas máquinas da imagem. Contra a força unificante do espetáculo, as instalações de Livia propõem o movimento errante do desejo de uma não imagem. É a experiência de um tempo em que já não somos mais o que fomos e ainda não nos tornamos aquilo de que nos acercamos. O que se percebe nas instalações com filmes da artista desde o final dos anos 90 é a compreensão da imagem como dessemelhança radical, o desvio do próprio e do idêntico. Há nas proposições artísticas de Livia Flores a compreensão de uma lógica conceitual da imagem que distingue dois valores rivais: a aparência das coisas e a aparição das forças. Em suas máquinas celibatárias são as forças invisíveis que devem tornar-se visíveis. A artista fez mais de 10 exposições com instalações de filmes. Utilizando vidros, espelhos, projetores, filmes em looping ao redor de salas e espaços variados, as máquinas de desvio de Livia Flores atraíam as imagens na direção de seu avesso. Projeções de imagens (superoito ou DVD) direcionadas ou rebatidas em vidros, espelhos ou telas translúcidas, multiplicavam as ínfimas alterações no visível. Em 1998, a Galeria Cândido Mendes de Ipanema apresentava a exposição da artista em cujo convite aparecia a frase Aqui não tem nada, aqui não falta nada. No release, Livia Flores insistia que esse par de frases não intitulava os trabalhos nem tampouco a exposição, mas que deveria “funcionar antes como imagem sonora a reverberar entre os trabalhos, como uma espécie de eco insistente que se produz num espaço entre a vastidão e a falta de paisagem”. Com um brilho do paradoxo, a artista cartografava o despovoado pleno. Essa primeira instalação com seus filmes continha quatro projeções em superoito simultaneamente projetadas sobre paredes e tela translúcida: um campo de capim ao vento (duas sequências); um carro na curva; um brinquedo oscilante registrado no Parque Terra Encantada. As imagens foram capturadas como ready-mades do olhar e deslocadas de seus contextos para um espaço de arte

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promovendo a rivalidade entre arte e não arte. O par de frases reverberava infinitamente estados rivais exacerbando a amplidão já presente entre os fragmentos de paisagens. Firmavam-se, naquela pequena Galeria, as fronteiras próprias às imagens-valises de Livia Flores.6 Sustentava-se o provisório, ao mesmo tempo em que se protegia a extensão e a demora. O fragmento transitório permanecia e criava vínculos exteriores na interioridade de uma paisagem-reservatório. O escasso, na instalação da Galeria Cândido Mendes, é repleto de haveres. Acolher o passageiro e diagramar os rastros fugidios da vida é fazer desandarem as forças produtoras da sujeição, da ancoragem, das representações fixas, das identificações controladoras. As instalações de Livia Flores não representavam estados nem interpretavam situações: eram máquinas cujo apetite vinculava-se ao desvio. Na exposição que a artista fez no Espaço Agora/Capacete no Rio de Janeiro em 2000 apareciam os espelhos e as lâminas de vidro pela primeira vez. Antes havia apenas a tela de material translúcido. Sem título, a instalação continha cinco sequências rodadas em superoito e eram projetadas simultaneamente sobre as superfícies especulares e as chapas de vidro presentes no espaço. Imagens atravessavam ou eram devolvidas às paredes circundantes, em diferentes recortes e graus de intensidade. Um pequeno editor de superoito permitia que um sexto filme fosse visto na velocidade e com a direção que o próprio espectador determinava, ao manipular as manivelas da pequena máquina. Uma série de seis desenhos sobre papel-carbono fornecia ainda o mapa do trajeto “rodoviária – rua do hotel sem passado – centro”. Outra vez as palavras operando cartografias e desenhando diagramas. Segundo a artista esse mapa de palavras formava um fragmento de sonho vivido e se tornava para ela o fio condutor do trabalho. As imagens eram outra vez registros tomados de situações assignificantes, nem por isso menos vigorosas: uma aterrissagem, o reflexo de um rio morto, formigas, uma travessia na ponte Rio-Niterói, uma fogueira, luzes na linha amarela, uma lacraia, travestis, a Praça XV. Nessa exposição no Agora/Capacete multiplicavam-se as imagens entre os fragmentos dos sonhos e da realidade. Um vasto espaço de não imagens se impunha. O espectador ali também de passagem, experimentava aquela proliferação fantasmagórica, as trajetórias, as inversões e aderia ao fluxo volumoso da instalação. Produzia um si mesmo outro enquanto experimentava tudo se mover em sua companhia. Ele experimentava sua condição temporal e constituía o espaço da visão como lugar do pensamento e da vontade. Ponto de observação em que os objetos tomam a aparência da vida não como semelhantes no mundo, mas antes como objetos vivos que se movem, se agitam, mostram sua força e desaparecem. Nada se fixa nas instalações de Livia Flores, nem o espectador que se torna um passageiro e, muitas vezes, um náufrago. E, entretanto, tudo se revela e se oculta entre as imagens que se dão a ver. Foram muitas as instalações com projetores de filme superoito que Livia Flores produziu entre 1998 e 2004, ano em que fez sua primeira videoinstalação, a última versão de A cadeia alimentar que teve pelo menos cinco versões diferentes: a da Central Elétrica do

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6 Com essa expressão desejo chamar a atenção para as constelações de imagens e os diagramas de palavras com função de imagem no trabalho de Livia Flores que provocam experiências semelhantes à do paradoxo estudado por Gilles Deleuze. A partir do uso frequente das palavras-valise ou portmanteau (fusão de palavras, tradicionalmente conhecidos como neologismos) por Louis Carroll, Gilles Deleuze (1974) estudou o paradoxo constituinte da lógica do sentido.


Freixo, Porto, 2001; a do CAPC / Musée d’Art Contemporain de Bordeaux, França, 2001; a do Hotel Love’s House/Agora, Rio de Janeiro, 2002; a do Midia-Arte: 3o Prêmio Sergio Motta, MIS, São Paulo, 2002; e, finalmente, a do Centre d’Art Santa Mònica, Barcelona, 2004. A instalação do Centre d’Art Santa Mònica, uma videoinstalação, contava com cinco projetores DVD, 11 espelhos e quatro sequências de imagens em movimento: um tigre na sua jaula, a visão de um canil, uma guarita com vidro espelhado, um personagem tomando sopa com um alicate. Este último fragmento era a transcrição de um sonho vivido pela artista. Todas as diferentes versões de A cadeia alimentar utilizaram uma ou mais sequências das quatro apresentadas em Barcelona. Todas usaram as superfícies refletoras dos espelhos e as placas transparentes de vidro. A insistência nos espelhos e nos vidros nas instalações de Livia Flores é uma demanda da máquina celibatária que acolhe o sujeito em seu espaço (a artista e o espectador) como posições múltiplas da engrenagem. O sujeito naqueles espaços em movimento tornava-se um náufrago no mar dos desvios. Foi na instalação feita para a Galeria Cândido Portinari na UERJ em 1999 que essa imagem do náufrago apareceu pela primeira vez nos trabalhos da artista. E surgiria ainda outra vez dois anos mais tarde em Sonhos + Náufrago, instalação apresentada na exposição “A trajetória da Luz na Arte Brasileira”, do Instituto Itaú Cultural em São Paulo, em 2001. Nesta última, o “náufrago” aparecia como um ponto de vista, uma posição do olhar em situação de naufrágio. As imagens de navios na linha do horizonte projetadas na Galeria do Itaú Cultural haviam sido filmadas a partir de um ponto de vista instável, em outro barco. O espectador experimentava a mobilidade em seu lugar de observação. Sobretudo experimentava-se como uma posição, um lugar, um sujeito à deriva. Os sonhos, anotados em papel-carbono para essa instalação do Itaú Cultural, se prolongavam como tema na transcrição do sonho registrado em imagens para A cadeia alimentar (2001-2004). Fantasia e realidade misturavam-se como o atual e o virtual, o passado e o presente, a ponto de constituir um espaço de indiscernibilidade. A instalação sem título de 1999 montada para a galeria Cândido Portinari da UERJ acolhia o espectador com um diagrama de palavras: náufrago, rio morto, terra encantada, distâncias, irmãs, ímãs. O diagrama ainda que fixado sobre a parede branca externa na entrada da galeria parecia flutuar e reverberar por instantes infinitos entre as imagens e seus desvios múltiplos. Constituída de oito projeções em superoito, a instalação da UERJ mostrava imagens de larvas em deslocamento, serpentes dilaceradas sobre o asfalto, uma garrafa solitária abandonada à rua (objeto identificado como o náufrago pela artista), uma montanha-russa, capim ao vento, um grupo de clóvis, um carro em perseguição. As imagens que se proliferam nas instalações de Livia Flores atravessam chapas de vidro, deslocam-se entre superfícies opacas e telas translúcidas, desviam-se ao tocar espelhos. Elas criam trajetos, descrevem percursos, percorrem linhas diversas. Mas não significam nem narram uma situação dada. Sua assignificância, entretanto, produz sentido na constelação em que se encontram. Enquanto imagens não passam de “repertórios mínimos

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de movimentos”, como afirma Miguel von Hafe Perez, no catálogo do Centre d’Art Santa Mònica, de Barcelona, para a apresentação de A cadeia alimentar, em 2004. Enquanto máquinas de movimentos e desvios, essas instalações assemelham-se ao pensamento em sua condição de processo. Formas, gestos, sons, implicam-se e multiplicam-se em outras imagens de modo a constituir imensa máquina fantasmática em eterno devir. Não é somente o fluxo que importa. Afinal a permanência também insiste nessas máquinas, uma insistência em sempre dividir, desviar e fazer tudo entrar em constelações, em diagramas. Trata-se antes do ser do fluxo, um pensamento do tempo. O que interessa nessas máquinas é um pensamento em processo, que agencia imagens, palavras, corpos, sujeitos e coloca-os todos à deriva no lugar em que tudo se encontra. As instalações de Livia Flores, espacializando imagens diagramadas por palavras em constelações fluidas, tomam emprestado do lugar expositivo onde são montadas sua marca, seus limites, sua grafia. Mas confere ali, ao espaço da visão, um lugar para o pensamento. Com Projeto observador, fica explícito o valor que o lugar apresenta nos trabalhos de Livia Flores: as condições específicas do local agenciadas às circunstâncias do projeto. Projeto observador, instalação feita em seu ateliê (Programa de Ateliers da Lada, Porto, Portugal) de artista-residente, para o projeto Squatters/Ocupações do Museu Serralves em 2001, consistia em transformar o ateliê em câmera escura através da privação total da luz no ambiente e da abertura de pequenos orifícios no vinil colado às janelas. A paisagem externa era projetada sobre as paredes internas do espaço do ateliê. A imagem projetada era percebida em tempo real, e os movimentos do exterior, as variações da luz, as mudanças da paisagem eram sentidas no interior. O exterior se refletia no interior de modo invertido. Como o reflexo de um espelho, o trabalho sabotava o princípio de mimese pela inversão. A imagem como seu avesso: uma verdadeira subversão da representação como encarnação de uma substância. O semelhante subvertido pelo dessemelhante: a vontade iconoclasta da imagem como dessemelhança radical. Na sociedade do espetáculo – para usar a expressão tão conhecida de Gui Debord, atualizada por um biopoder que controla os corpos e identifica-os em sua liberdade –, a imagem circula como os sujeitos por força de um poder que os impulsiona. Fazer circular a imagem pertence à força da cultura atual: as repetições criam generalidades consumíveis. As máquinas desviantes de Livia Flores invertem a força da circulação generalizante, impondo diferenciações. Essas máquinas tomam um poder que lhes é próprio: desviar aquilo que circula identificado como o mesmo, permitindo as constelações que abordam os fragmentos do mesmo no movimento em direção a um outro. As máquinas de pré-imagens de Livia Flores exigem a repetição e impõem variações, subversões, inversões, desvios nos circuitos protegidos das galerias de arte, dos institutos culturais, dos produtores de imagens da cultura do capital. Elas insinuam o naufrágio dos sistemas fechados e insuflam o desamparo nos circuitos da imagem. Eis o que proporcionam as máquinas de instalação de Livia Flores: confrontam a imagem em circulação, identificada e controlada em sua força, com a não imagem do desvio, diferença da vontade múltipla como força do pensamento.

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Referência bibliográficas BRITO, Ronaldo. Neoconcretismo: vértice e ruptura do projeto construtivo brasileiro. São Paulo: Cosac & Naify, 2002. DELEUZE, Gilles. Lógica do sentido. São Paulo: Perspectiva, 1974. FLORES, Livia. Como fazer cinema sem filme? Tese de doutorado em Linguagens Visuais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Escola de Belas Artes, Rio de Janeiro, 2007a. ___________. Como fazer cinema sem filme? In Cavalcanti, Ana (org.). Arte&Ensaios, Programa de Pós-Gradação em Artes/Escola de Belas Artes, n. 15, UFRJ, 2007b. LOVISI, Giovanni Marcos. Avaliação de distúrbios mentais em moradores de albergues públicos das cidades do Rio de Janeiro e de Niterói. Tese de doutorado, Fundação Oswaldo Cruz, Escola Nacional de Saúde Pública; 2000. xiv,167 p. http://portalteses.icict.fiocruz. br/transf.php?script=thes_cover&id=000016&lng=pt&nrm=iso

Luiz Cláudio da Costa (UERJ, Rio de Janeiro, Brasil) é professor adjunto da graduação e do Mestrado em Artes do Instituto de Artes da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e tem centrado seu trabalho de pesquisa atualmente sobre o papel da imagem tratada como documento na arte contemporânea, bem como o reprocessamento do registro em operações discursivas que transferem as imagens para outros suportes e ambientes. Graduado pela University of Northern Iowa (1986), tem mestrado (1993) e doutorado em Comunicação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1999), com curto período de pesquisa na New York University (1998). Publicou o livro Cinema brasileiro (anos 70-70), dissimetria, oscilação e simulacro (2000) e, recentemente, tem publicado nos periódicos Sala Preta (USP), Arte&Ensaios (EBA-UFRJ), Revista de Letras da Unesp, Concinnitas (UERJ), Poiéisis (Ciência da Arte-UFF). / l.claudiodacosta@uol.com.br

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Brancusi e Krauss no trem. Foto de Susana Dobal (foto do livro: MusĂŠes Nationaux (France), in Krauss, Rosalind E. Passages of Modern Sculpture. Cambridge, Massachuetts and London: The MIT Press, 1981 [1977]).


Três imagens para relatar esculturas impalpáveis1 Susana Dobal

Por meio de três fotografias, este texto ressalta questões importantes para a obra de Anthony McCall suscitadas pela história mais recente da escultura, mais especificamente, por questões levantadas por artistas como Brancusi e sobretudo Richard Serra. McCall trabalha com filmes e instalações desde a década de 1970. Sua obra mais recente, híbridos de cinema e escultura em instalações que ele chamou de solid light films, explora elementos relevantes para a escultura, como o corpo, o tempo e o movimento. Apesar de a denominação das instalações enfatizar a materialização da luz, elas consistem de esculturas formadas por volumes e massas cambiantes que podem ser atravessados pelo espectador. Um paradoxo permeia os solid light films: eles apelam para a vivência corporal da obra, mas são irremediavelmente impalpáveis, o que é sugestivo para compreender a contemporaneidade da obra e sua relação com o pictórico no cinema, contra o qual a obra reagiria. Implícita no relato sobre a escultura impalpável de McCall, está uma reflexão sobre utilização da fotografia na ilustração de um texto crítico. Partindo não apenas de reproduções objetivas de obras, mas da imersão dessas reproduções em contextos diferentes ao longo da pesquisa, as fotos que acompanham o texto são um estímulo a pensar o sentido das obras comentadas. Anthony McCall, cinema, escultura. Anthony McCall trabalha com um híbrido de cinema e escultura expos1 Essa pesquisa foi produzida com o apoio da Capes em pesquisa de pós-doutorado realizada na França. Agradeço também a Philippe Dubois, em cujo seminário tive o primeiro contato com a obra de Anthony McCall e pude aprofundar aspectos relevantes sobre a fusão contemporânea de cinema e arte.

to em instalações que mais recentemente se desenvolve em uma série do que ele chama

2 O último filme da série dos solid light films realizada nos anos 70 foi Four Projected Movements (1975), e o primeiro a retomar o conceito foi Doubling Back (2004). No intervalo entre eles, McCall participou de obras coletivas em filmes de outra natureza (também questionadores da tradição narrativa porém de conotação política como Argument (1978) e Sigmund Freud’s Dora (1979) e de algumas exposições e projeções, além de trabalhar com designer gráfico.

recentes. Os solid light films foram começados na década de 1970 e, depois de um interva-

de solid light films, formas abstratas e luminosas que se movem em espaço tridimensional o qual o espectador é convidado a percorrer. Embora essa seja a parte mais conhecida de sua obra, McCall tem longo percurso que começa na década de 1970 com instalações, performances e filmes que já colocavam muitas das questões abordadas nas obras mais lo de mais de 20 anos, ganharam nova repercussão, principalmente a partir da exposição realizada no Whitney Museum em 2001-2 (Into the Light: the Projected Image in American Art 1964-1977).2 McCall diz ter retomado essas instalações porque compreendeu que havia elementos que ainda poderiam ser explorados e também porque via na atual presença da imagem projetada em galerias e museus a ausência de questões relevantes como a atitude contrária à passividade do espectador e a ênfase no aspecto físico da obra.3

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Os solid light films consistem basicamente de formas abstratas bidimensionais projetadas em uma sala escura de maneira a chamar a atenção do espectador menos para a superfície em que vemos essas formas em movimento do que para o feixe de luz que ao sair do pro-

3 George Baker, Matthey Buckingham et al., “Round Table: the Projected Image in Contemporary Art”, October 104 (Spring 2003), p. 74.

jetor delineia volumes tridimensionais, cambiantes e impalpáveis ao longo da sala. A obra de McCall é sempre comentada em livros amplamente ilustrados, pois para reproduzir a experiência da galeria em imagens estáticas é necessário dispor dos desenhos, esquemas, roteiros que revelam a cuidadosa estrutura de cada obra. Neste texto optou-se, ao contrário, por três imagens que falam menos da obra de McCall em si, divulgada em publicações diversas,4 do que de um percurso que revela como o artista trouxe para o cinema questões relevantes para a escultura contemporânea. McCall não apenas assimila a escultura no contexto do cinema, mas questiona elementos próprios do cinema reduzindo-o a características mínimas – eliminou a imagem figurativa e a narrativa tradicional e fez com que os espectadores dessem as costas para a tela e se voltassem para o o feixe de luz lançado pelo projetor. Com essas depurações e inversões, McCall estimula uma posição ativa e crítica do espectador e ressalta elementos fundamentais para a escultura: o corpo, o movimento

4 Ver, por exemplo, Eamon, Christopher. Anthony McCall: the Solid Light Films and Related Works. San Francisco: New Art Trust; Evanston: Northwestern University Press, 2005. Legg, Helen (ed.). Anthony McCall: Film Installations. Coventry: Mead Gallery, University of Warwick, 2004. Michelon, Olivier. Anthony McCall: Éléments pour une Rétrospective 1972-1979/2003. Catalogue. Rochechouart: Musée Départamental d’Art Contemporain de Rochechouart e Londres: Serpentine Gallery, 2008. 2ª ed.

e o tempo. As fotografias que acompanham este texto são estímulos para descobrir como esses elementos imiscuíram-se na escultura para reemergir nos solid light films. Ao evitar a reprodução aparantemente neutra de obras de arte, as três fotografias comentadas aqui sugerem por sua vez tema caro para esse encontro de cinema e escultura: o ambiente de fruição da imagem também adquire sentido e faz a obra falar. A escultura na foto de abertura é Musa Adormecida, de Brancusi (1910), e o livro que a transporta e elucida é Caminhos da escultura moderna, de Rosalind Krauss. Entre as questões relevantes exploradas na história da escultura moderna, a autora situa muitos dos elementos com os quais McCall trabalha. No caso específico de Brancusi, interessa a instabilidade com a qual o corpo é representado pois é a contingência que dá sentido ao corpo e não completude prévia a ele. Krauss comenta que o tipo de contemplação que Brancusi reivindica não se faz pela compreensão analítica da estrutura interna do objeto que regia as esculturas produzidas no contexto do Construtivismo, mas pela percepção da maneira como a matéria se insere no mundo, revelando seu ser em seu estado, em seu posicionamento.5 Essa não é apenas uma cabeça, mas uma cabeça que dorme, como se a situação relaxada de estar sobre o travesseiro determinasse a forma alongada, os contornos quase lisos do rosto, as linhas e a forma em repouso. Brancusi ampliaria a instabilidade fazendo variar os pedestais de muitas de suas obras com formas diversas empilhadas, como se não houvesse lógica prévia para sua configuração.6 Mas o que sugere uma extensão da contingência também para o pedestal parecerá ainda conservador em momento posterior. Para o escultor Richard Serra, o maior corte na história da escultura no século XX ocorreu com a remoção do pedestal, o que teria causado deslocamento do espaço memorial do monumento para o espaço da experiência do espectador (viewer). Isso provocou dois caminhos possíveis: a descida ao mundo material do espaço behaviorista ou a subida ao

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5 Krauss, Rosalind E. Passages of Modern Sculpture. Cambridge, Massachuetts and London: The MIT Press, 1981 [1977], p. 87. Trad. Caminhos da escultura moderna. São Paulo: Martins Fontes, 1998. 6 Idem, ibidem, p. 99.


7 Foster, Hal. “The Un/making of Sculpture” In Foster, Hal et al. Richard Serra Sculpture 1985 – 1998. Catalogue. Los Angeles: The Museum of Contemporary Art; Göttigen, Germany, Steidl Verlag, 1998, p. 18.

mundo idealista e essencialista no qual ele localiza a obra de Brancusi.7 As esculturas de Brancusi não pertencem a um contexto específico e preservam a autoridade do objeto cuidadosamente trabalhado, polido à exaustão, enquanto a ênfase na experiência do espectador e o diálogo da obra com o ambiente, seja positiva ou negativamente (crítica à arquitetura em que a obra se insere), seriam questões fundamentais para Richard Serra e para outros artistas pós-minimalistas, como Robert Smithson, Eva Hesse e Bruce Nauman. Serra está interessado em provocar no espectador uma reação física de exploração da escultura e do espaço em volta: “O foco da arte para mim é a experiência de viver através das obras. Essa experiência pode ter pouco a ver com analisar os aspectos físicos do trabalho. Ela está baseada mais em andar e olhar, não apenas entrar, atraves-

8 “The focus of art for me is the experience of living through the pieces. That experience may have very little to do with analyzing the physical facts of the work. It is rather predicated on walking and looking, walking not only into, through, and around each individual piece but walking into and through the space that the installation engenders.” Serra, Richard. “Notes on The Matter of Time” in Foster, Hal et al. Richard Serra: The Matter of Time. Bilbao: Guggenheim Museum of Bilbao; Göttingen: Steidl, 2005, p. 141.

sar ou rodear cada obra, mas entrar e atravessar o espaço que a instalação engendra.”8

9 McCall, Anthony. “Line Describing a Cone and Related Films”. In Legg, Helen (ed.) op. cit., p. 43.

em McCall, pois não há o obstáculo da matéria da escultura, apenas a luminosidade

Estamos bem próximos da proposta de McCall que vê sua obra Line Describing a Cone como um tipo de performance participativa em que os espectadores têm que negociar o espaço da sala caminhando através da projeção ou, para sua surpresa, respeitosamente observando seu desenrolar, atentos ao espaço que os outros ocupam.9 Um dos efeitos mais instigantes dos solid light films é o fato de as pessoas poderem adentrar as superfícies planas ou ondulantes que são projetadas. De fato, a experiência de poder entrar numa escultura, como Serra tanto induziu com suas obras gigantescas, é radicalizada esfumaçada propondo superfícies e volumes impalpáveis. Durante a projeção dos solid light films, muitos estendem a mão para tentar tocar essa matéria etérea, outros caminham através dela, como se para confirmar que isso que parece tão sólido, tão plano, tão ocupado por amplas superfícies pode realmente ser atravessado. A percepção do e em movimento foi intensificada com a era dos aparatos tecnológicos de reprodução da realidade. Embora a surpresa maior com a invenção da fotografia tenha sido a possibilidade de reproduzir fielmente a realidade (ou pelo menos assim pareceu em um primeiro momento), o movimento esteve bastante presente desde o começo da era da reprodutibilidade técnica. Não por acaso o trem teve participação evidente seja no começo da história do cinema, com o famoso L’Arrivé du Train à la Ciotat (1895) dos irmãos Lumière, seja pelas inúmeras viagens documentadas com os primeiros e complicados processos fotográficos. A história da fotografia está povoada também de imagens de construção de ferrovias que atravessaram diversos continentes no século XIX. A mobilidade, então, logo ganhou ênfase seja a movimentação do fotógrafo que explora o mundo, seja a câmera cinematográfica que filma em movimento (ainda que inicialmente isso fosse menos explorado). Não apenas o objeto filmado se move, mas também o olho é um cine-olho dinâmico. Já estava sugerido desde esse início da reprodução técnica que a percepção não poderia estar imóvel, como o espectador idealizado renascentista com o seu ponto de vista regulador da perspectiva do quadro. Embora essa perspectiva fosse dominar a óptica fotográfica, ela seria questionada tanto na história da fotografia como em outros domínios.

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Brancusi, por mais que estivesse ainda preso ao objeto, já apontava para uma mobilidade ao enfatizar o estado e a sensação que lhe permitiram também fragmentar o corpo em apenas cabeça ou apenas tronco reduzidos a uma momentânea inteireza. O corpo inteiro não é mais medida para uma harmônica e estática representação da perspectiva. Não há ponto de vista privilegiado já que o espectador deve reagir e mover-se em volta e através da obra. Richard Serra explica que “o sentido da instalação será ativado e animado pelo ritmo do movimento do espectador. O sentido ocorrerá apenas pelo contínuo movimento, pela antecipação, observação e recordação”.10 McCall, ao comentar sua obra Line Describing a Cone, fará eco às preocupações de Serra, incluindo outro elemento também caro ao escultor, o tempo: “Esse objeto tridimensional, como escultura, pede um espectador móvel e participativo e, como o cinema, demanda tempo. Para ver totalmente a forma emergindo é preciso mover-se em volta e através dela, vê-la de dentro e de fora.”11 Espaço vivido no tempo – esse parece ser um princípio importante para compreender como o movimento já sugerido pela viagem de trem tão insistentemente representada pôde tornar-se a condição para a fruição de uma obra.

Foi apenas em Bilbao que finalmente captei o que Serra queria dizer. Os espaços das galerias nova-yorkinas vistos no passado, embora amplos, pareciam apertados para a sua obra, ou, talvez, como o próprio Serra relata, há obras que precisamos ver mais de uma vez para poder captá-las. Em Bilbao (julho de 2007) havia alguns preparativos: a arquitetura espanhola profusa em detalhes e formas deslizantes e o impactante prédio do Museu Guggenheim de Bilbao ( projetado por Frank Gehry) com suas imensas massas brilhantes e maleáveis focalizam a atenção para a arquitetura, para as formas, para o fato de que elas não estão condenadas aos ângulos retos. A instalação de Richard Serra (The Matter of Time) dentro do museu parecia ser apenas a etapa seguinte desse percurso: enormes e

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10 “The meaning of the installation will be activated and animated by the rhythm of the viewer’s movement. Meaning occurs only through continuous movement, through anticipation, observation, and recollection”. In Serra, op. cit. p. 141. 11 “This three dimensional object, like sculpture, calls for a mobile, participating sepctator, and like film, it takes time. To fully see the emerging form it is necessary to move around and through it, to look at it from the inside and from the outside” In McCall, Anthony. “1000 Words: Anthony McCall talks about his ‘Solid Light’ Films”. Art Forum (Summer 2004). p. 218-219.

Richard Serra e Hal Foster na biblioteca. Foto de Susana Dobal (foto do livro de Stephan Nyffeler In Foster, Hal et al. Richard Serra: The Matter of Time. Bilbao: Guggenheim Museum of Bilbao; Göttingen: Steidl, 2005).


pesadas lâminas de aço formam elipses cujo contorcimento vamos descobrindo enquanto percorremos suas entranhas lisas e escuras. Ainda que às vezes houvesse tensão e suspense no dar-se a esses espaços imprevisíveis e claustrofóbicos, havia também júbilo de ter captado a obra, estar suscetível ao jogo proposto. Em entrevista, Serra comenta que seu interesse é trabalhar com o tempo; não o tempo literal, mas um tempo de sensações tão elástico quanto o percurso que ele propõe ao visitante ( visitante parece melhor do 12 “Richard Serra in Conversation with Hal Foster”. In Foster, 2005, op. cit., p. 38.

que espectador nesse contexto).12 A fotografia no livro visto na Biblioteca na imagem ao lado é da obra Intersection, montada no pátio diante de um teatro em Basel, Suíça. No comentário de Serra, ele afirma que quis tornar circular o espaço incoerente da praça e interromper a linearidade do

13 O comentário está em Foster, 1998. p. 129, e a foto foi reproduzida de Foster, 2005.

percurso do pedestre que o atravessaria até a porta do teatro.13 Nessa foto de Stephan Nyffeler, não vemos a relação com o teatro, mas ela é também fiel à obra, pois reproduz o movimento e o jogo de percursos que ela propõe. Num desses fugazes momentos de mágica coincidência, alguém passa na biblioteca completando a diagonal dos humanos entre as lâminas da escultura. Esse corpo volumoso que passa fora e dentro da foto lembra que o movimento não é só do visitante, mas também da própia escultura. O ângulo escolhido pelo fotógrafo enfatizou o movimento das lâminas e o espaço instável que ele cria. O trem estava em movimento na segunda metade do século XIX, os visitantes do século XXI fruem a obra enquanto andam, mas é também o objeto que se move em sua estrutura maleável. Esse corpo masculino que passa lembra ainda que a sensação diante das esculturas de Serra é também de peso e força, pois as peças são imensas e pesadas. Em entrevista, ele confirma isso, seja pela maneira como descreve o que pretende fazer com o corpo do visitante (provocar a sensação de contorcimento imposta ao aço e ao volume em volta), seja pela escolha do aço como matéria-prima tendo como fonte para isso obras da arquitetura moderna. Richard Serra justifica sua escolha por tratar-se de material caro à era industrial, e Hal Foster faz a reflexão que não quer calar: se o aço foi tão importante para a era industrial, ele indaga o que ocorrerá em nossa época dominada por outra lógica, em que imperam os serviços como atividade econômica e a informática como meio de

14 Foster, 1988, op. cit., p.25.

multiplicar a informação.14 A resposta de Hal Foster é que, mesmo com materiais antigos, Serra pode apontar caminhos críticos e inovadores em domínios diversos. Sobre sua influência no futuro, Serra diz que a arquitetura será marcada pelo enfraquecimento do ângulo reto: “Haverá mais espaços curvilíneos, abertos, que são ágeis, que flutuam, que

15 “this century in architecure will be marked by the demise of the right angle. There will be more curvilenear, more open spaces that are swift, that float, that change velocity or otherwise nuance time.” Foster, 2005. p. 41.

mudam de velocidade ou então criam nuanças com o tempo.”15 Serra prevê que arquitetos, escultores, performers e dançarinos poderão apropriar-se e transformar seu trabalho. Mas quem melhor atualizaria seu legado está inserido demais na transição da era da reprodução técnica que fez parte da era industrial para a era da informática para ser ajustado em uma das categorias artísticas sugeridas por Serra. Podemos dizer que McCall é um performer, ou seria um cineasta, ou ainda um artista que faz instalações? Não apenas a sensibilidade, mas as categorias (e hierarquias) artísticas mudaram com a nova era.

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A previsão para uma obra do futuro feita por Serra parece ser uma descrição da obra de McCall. Há muito ele vem trabalhando com espaços abertos, flutuantes, variações de velocidade e do tempo. Fazer os espaço flutuar já era uma preocupação no curta-metragem Landscapes for White Squares (16mm, 1’30’’, 1972) em que vemos pessoas alinhadas segurando tecidos quadrados brancos enquanto percorrem um imenso espaço aberto.16 As flutuações continuam no ciclo das performances com fogo (1971 a 1974) que seguem estrutura similar de leveza e simetria: espaço aberto, posições simétricas, ciclo de iluminação do fogo segundo roteiro predeterminado, preenchimento do espaço com fumaça em difusão. As variações com a velocidade e com o tempo aparecem na montagem do filme que faz parte da instalação Long Film for Four Projectors em que McCall trabalha com o intercalamento crescente de fotogramas escuros para fazer palpitar a forma projetada e alternar entre momentos calmos e frenéticos, em suas palavras.17 A preocupação com o tempo é também uma constante em sua obra. Destaco Long Film for Ambient Light (1975) em que o filme é eliminado e restam apenas a luz e o tempo. A instalação consiste em uma sala vazia com lâmpada central acesa e janelas vedadas com papel transparente que deixam entrar a luz do dia. Na parede, um texto de McCall, Notes on Duration e um esquema mostrando o percurso da luz na sala durante a período de exposição (24h). A depuração dos elementos do cinema chega aqui à obra mínima: restam apenas a luz e o tempo, porém também o ambiente.

16 Agradeço a cortesia de Anthony McCall e Martine Aboucaya pela possibilidade de ver e rever esse curta-metragem após terminada a exposição e poder verificar a simbiose entre uma estrutura geométrica rígida e a leveza dos lençóis percorrendo o espaço horizontal e vazio. A combinação de estrutura rigorosa e formas voláteis seria uma constante em obras posteriores de McCall, principalmente nos solid light films. 17 Branden, Joseph W. “Sparring with the Spectacle” In Eamon, Christopher (ed.). Anthony McCall: the Solid Light Films and Related Works. San Francisco: New Art Trust; Evanston: Northwestern University Press, 2005. p. 38. Esse texto faz cuidadoso estudo da obra de McCall, expondo as diferentes obras que marcaram seu percurso (instalações, filmes, performances) por meio de ampla documentação (registro fotográfico das obras, mas também desenhos, anotações, esquemas de roteiro, cartas, depoimentos).

Em Room with Altered Window (1973), McCall manipulou a entrada da luz pela janela para que ela passasse apenas por uma fresta diagonal. O resultado é um feixe de luz que atravessa a sala divindo seu volume. No ano seguinte ele faria Long Film for Four Projectors (1974), obra em que usou animação de uma linha para colocar quatro feixes de luz divindo a sala como se fossem etéreas lâminas diagonais varrendo o espaço segundo um percurso curto, mas cuidadosamente planejado. A obra consiste de quatro projetores com rolos de filmes de 35 minutos apontados do centro para as laterais da sala. Eles são recarregados segundo um programa de variações para combinar as possibilidades de inversão do filme que é em seguida projetado de trás para frente e invertido. A imagem é apenas a de uma linha reta inclinada que varre uma área da parede com variações de velocidade. Joseph Branden associa essa obra a Twins, escultura de Richard Serra que consiste de lâminas triangulares que “cortam” o espaço cúbico da galeria, atravessando-a. Long Film for Four Projectors parece a Branden ser uma referência direta a essa obra (exposta em Nova York um ano antes de McCall mudar-se de Londres para lá), e ele comenta brevemente que deve ter sido uma primeira resposta a Serra em diálogo que durou a vida toda.18 Embora Richard Serra não trabalhe de forma tão explícita com a luz, ele se interessa pela maneira como a luz é utilizada para criar volume na arquitetura e conta que em Istambul, ao visitar a Igreja Hagia Sophia, sentiu a fisicalidade da luz no espaço. “Era tão palpável, você poderia quase tocá-la.”19 A experiência se repetiria em Ronchamp, França, na igreja projetada por Le Corbusier. É essa luz palpável que se tornará a matéria-prima para McCall e suas projeções que também dialogam com o espaço cúbico das galerias, como se pode ver na imagem mostrada na tela do computador nesta foto.20

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18 Idem, ibidem, p. 45. O próprio McCall comenta o caráter cinematográfico das elipses retorcidas em espiral de Richard Serra, referindo-se à progressiva descoberta pelo visitante. McCall, op. cit., p. 219. 19 Foster, 2005, p. 35. 20 McCall comenta que para a obra Doubling Back (2004) experimentou primeiro usar paredes pintadas de preto, mas ficou insatisfeito com o resultado: eliminação das paredes do campo visual. Para projeções posteriores voltou à parede branca. Walley, Jonathan. “An interview with Anthony McCall”. In Eamon, op. cit., p. 159.


McCall e B. Joseph no escritório. Foto de Susana Dobal (no computador, foto de S. D. da instalação You and I, Horizontal III, de Anthony McCall na Galeria Martine Aboucaya, Paris e desenho de Anthony McCall preparatório da obra Breath reproduzido In Eamon, Christopher, 2005.

Na primeira vez em que vi uma obra de McCall tive um misto de surpresa e maravilhamento: ele radicalizou Serra: trabalha com volumes amplos, mas tirou-lhe o peso. Logo que comecei a ler sobre McCall vi que a associação não é rara, embora pouco desenvolvida. Até aqui vemos muitas dessas semelhanças: a reação contra o pictórico, a assimilação do ambiente, o esforço em trazer o espectador/visitante para dentro da obra, a ênfase no tempo presente. Uma grande diferença porém se coloca: McCall trabalha com a imaterialidade. Seu percurso vem de performances e do cinema, e desde o início se baseia em um questionamento das prerrogativas do cinema. Ele abandona sua obra no final da década de 1970 por achá-la formalista e passa a trabalhar em obras colaborativas em busca de um cinema que provocasse o espectador para questões mais

21 Ver nota 2.

diretamente ligadas à vida coletiva.21 Retomou seus solid light films quando voltou a vislumbrar neles a possibilidade de desenvolver questões ainda não esgotadas e pouco exploradas no espaço aberto em instituições artísticas para a imagem projetada. Seu contato com a produção de filmes (impossível de ser desenvolvido aqui) foi movido por uma reação contra um cinema associado ao consumo fácil e à identificação acrítica do espectador com a imagem. Essa reação ainda pode ser verificada nos solid light films, seja na busca de um cinema elementar cujos mecanismos fiquem evidentes ao espectador, seja na busca da assimilação do visitante dentro da obra.

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McCall descondiciona a sensibilidade fazendo da projeção um evento. A dificuldade em classificá-lo vem da impossibilidade de chamar o que ele faz de cinema, pois baseia-se justamente no questionamento da instituição do cinema. Instalação também parece termo insuficiente, pois não é apenas o lugar que conta, mas o fato de ser uma projeção e de lidar com massas (luminosas) e com o tempo. O próprio McCall comenta que sua instalação tem que ser simultaneamente vista como escultura e filme para ser inteiramente apreciada.22 Ele fez um desenho que é um esquema de três círculos com um espaço

22 McCall, op. cit., p. 219.

de intersecção entre eles e uma palavra em cada um: escultural, cinemático, pictórico. O escultural foi visto aqui na relação com a obra de Richard Serra. O cinemático está evidente pelo uso da projeção e das diversas formas com que manipula o tempo. Quanto ao pictórico, tanto ele quanto Serra procuraram declaradamente questionar a tradição do pictórico fugindo da ideia de janela para representar a realidade. Ambos querem fazer da obra de arte uma experiência que ocorra com a fruição da obra e não com referência a outro mundo nela representado. McCall explica que se baseia em espaço real, não referencial; baseia-se no tempo presente, não no tempo passado, como no cinema tradicional.23 Essa negação é importante para compreender a ênfase na experiência feita pelos dois artistas, mas a reemergência do pictórico no esquema de McCall é sugestiva, pois se dá tanto na percepção do espaço explorada por Serra e McCall quanto na impossibilidade de

23 McCall, Anthony. “Two Statements”. In Sitney, P. Adams (ed.) The Avant Garde Film: A Reader of Theory and Criticism. Anthology Film Archives Series 3. (New York: New York University Press, 1978) citado por Branden, op. cit, p. 42.

desligarmo-nos do referencial. Richard Serra reagia contra a escultura desconectada do ambiente e a contemplação passiva da obra. No nível do pictórico, porém, e pensando na representação baseada na suspensão do tempo, como a pintura figurativa e a fotografia, o que seria a imagem senão a encenação da relação entre a figura e o fundo, da qual ambos surgem em simbiose? Serra procura fazer com que suas esculturas dialoguem com o local onde são expostas,24 mas pintores como Fra Angelico ou Pierro della Francesca esmeraram-se em mostrar a figura

24 Ver os elucidativos comentários que Serra faz de diversas das suas esculturas-instalações no livro já mencionado de Hal Foster (1998).

em relação com o espaço arquitetônico, e uma das mais pesadas tradições da fotografia documental, o instante decisivo que tem Henri Cartier-Bresson como seu máximo expoente, consiste em paralisar o movimento na fração de segundo em que a figura humana e o espaço em volta estão em surpreendente harmonia. Certamente fórmulas de representação desgastam-se com o tempo, o que torna a sensiblidade amortecida para elas. Serra e McCall foram originais em encontrar estratégias para renovar a experiência da arte, mas a filiação ao pictórico é inegável. Há ainda a questão do referencial e a superação dele reivindicada pelos dois artistas. Quanto a Serra, basta pensarmos em todo o simbolismo presente em uma obra como The Drawned and the Saved, cujas implicações históricas foram realçadas por terem sido expostas em uma sacristia em ruínas e em uma sinagoga.25 Apesar de ser obra abstrata seu posicionamento e sua estrutura apontam para uma interpretação da história, como comenta Hal Foster. McCall, por sua vez, de tanto solicitar a participação física do espectador, está cada vez mais assimilando o corpo em suas obras abstratas – ver os solid light films mais recentes, como Breath (2004) (um desenho da forma projetada nessa instalação

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25 Ver comentário de Richard Serra em Foster, 1998 p. 121 e de Hal Foster na mesma obra, p. 25.


aparece à direita na última foto), que sugere o ritmo de expansão e contração de um corpo que respira, e Tail, cujo nome já sugere seu caráter referencial ou ainda o interesse de 26 Entrevista concedida a Olivier Michelon (op. cit., p. 50) em que declara explicitamente que está interessado em representar o corpo. 27 Baker, George. “Film Beyond its Limits”. In Legg, Helen (ed.), op. cit., p. 6.

McCall em desenvolver a ideia de morte e dissolução em Leaving.26 George Baker aponta para a contradição da obra de McCall, pois, ao refutar a narrativa, dela não se liberta e também questiona se a linha não seria usada em sua obra como um tipo de ator que encenaria o corpo humano27 – isso ficaria mais evidente no desenrolar da obra de McCall, como comprova a entrevista concedida a Olivier Michelon publicada em 2008. Baker, no entanto, recusa veementemente as associações da obra de McCall ao que chamou de plano espiritual ou mítico. Esse tipo de interpretação produziria uma leitura limitada da obra, pois funcionaria por meio de analogias com o que o espectador já conhece, tal qual o pensamento mítico. Baker refuta a associação dos solid light films com o ritual, com o espiritual ou com o mitológico, mas não se poupa de citar entrevista em que o próprio McCall reconhece que sua obra desenvolve um pensamento analítico sobre a estrutura do

28 Idem, ibidem, p. 21-22.

filme, mas tem também uma qualidade espiritual.28 A resistência de Baker deve-se ao fato

29 Idem, ibidem, p. 22.

de o pensamento analógico relacionado aos mitos funcionar pelas associacões analógicas e não pelas “separações racionais exigidas pela lógica da análise”.29 Hal Foster enfrentará a mesma questão ao refletir sobre a obra de Richard Serra, mas sua conclusão é menos restrita. Ele reconhece e aponta para elementos que sugerem

30 Foster, 1998. p. 26-28.

realidade que ora chama de espiritual, ora de psicológica.30 Foster redime essa presença ao justificá-la de duas formas: o psicológico não estaria limitado ao individual, mas à celebração coletiva, e, por outro lado, os artistas dos pós-minimalismo como Eva Hesse, Richard Serra e Robert Smithson não negaram o lado irracional refutado pelo racionalismo dos minimalistas. Foster comenta que esses artistas alimentaram o projeto racional ao enfatizar o processo e desmitificar a produção da escultura, mas não perderam de vista a presença do erotismo nesse processo. Podemos incluir nesse grupo também a obra de McCall. Basta para isso nos debruçarmos sobre seus cuidadosos esquemas reveladores de calculadas estruturas, bem como o fato inegável da associação de algumas das formas projetadas com o corpo ou ainda a existência do ciclo de performances com o fogo em que ele escolhe esse elemento tão repleto de associações “espirituais” para submetê-lo a planejados esquemas simétricos. Refutar uma dimensão psicológica da obra (refiro-me não à projeção subjetiva do artista, mas à recepção da obra) seria privá-la de parte de seu sentido, pois o que McCall procura é uma experiência total, assim como todos os que trabalham com arte e procuram romper a dormência dos sentidos. Por que chamar os filmes de solid light films em vez de destacar o caráter impalpável dessas esculturas etéreas e luminosas? A referência de McCall é principalmente o cinema, um cinema que ele quer tornar anticinema para poder fazê-lo falar novamente. Importou para ele destacar a solidez no contexto de sua obra porque ela dá consistência à projeção, aponta para a experiência da obra pelo visitante e realça o caráter racional do processo de produção das instalações. Porém, o que separa a obra de McCall da de Serra é o fato de serem filmes e de as superfícies serem feitas de luz e fumaça. Em um mundo que não

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é mais o da era industrial, os espaços virtuais imperam e convencem. Anthony McCall começou sua obra fazendo trabalhosas animações que foram bastante facilitadas mais recentemente com o uso do computador para aumentar a liberdade e experimentação na criação de formas.31 A matéria-prima de McCall, isso que estimula o corpo a vivenciar a obra, é a luz e a fumaça. Na última foto vemos a luz saindo do projetor (instalação You

31 Para as implicações do uso do computador ver Walley, Jonathan. “Interview with Anthony McCall”. In Eamon, op. cit., p. 145 a 163.

and I, Horizontal III na Galeria Martine Aboucaya, Paris) enquanto a fumaça se expande em movimento de inclusão do visitante na obra – podemos ver a origem disso nas performances com o fogo em que a fumaça se espalhava em campo aberto. (Baker faz uma instigante associação com a pintura de Turner e sua utilização da luz esfumaçada para tentar incluir o espectador no mundo representado32). É pois antiga a eliminação do objeto por McCall. Por causa disso não podemos falar sobre um objeto ao tratar de sua obra, mas apenas relatar eventos. A ênfase na experiência e na solidez é coerente com a condenação do pictórico, porém, como vimos, não o elimina. A compreensão de uma obra em qualquer nível, mitológico ou racional, não elimina as associações mentais como a que relaciona McCall a Serra ou a Turner. O plano referencial existe em toda obra de arte também por nossa capacidade de associá-la a nossas próprias referências. Assistimos a espetáculos de dança sentados na cadeira, mas isso não nos impede de experimentar a liberdade de ser maleável ao ver o espaço sendo ocupado de maneiras inusitadas – não por acaso, tanto McCall quanto Serra falam da dança como uma influência. Estratégias de representação se desgastam com o tempo e é compreensível também que a mera visão pareça insuficente para um artista sensível às formas; porém ver é ainda uma forma de viver, e a história do cinema, para o bem ou para o mal, apostou nessa possibildade. Uma longa tradição pictórica preparounos para isso. As naturezas-mortas baseavam-se justamente na estimulação dos sentidos, em geral com conotações moralistas. Essas conotações se foram desvanecendo, e desde Cézanne sabemos que facas e maçãs não jazem na mesa impunemente. O que McCall procura com suas instalações, que podem chegar a eliminar o projetor e trabalhar apenas com a luz ambiente submetida ao tempo, é tornar palpáveis a luz e o espaço colocados à mercê do tempo. O corpo é a medida dessa experiência, mas o fato de serem esculturas luminosas e de serem eficazes em seus objetivos ainda assim coloca-as novamente no terreno da virtualidade e da representação. O que não desvaloriza a genialidade de seu pulo do gato.

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32 Baker, op. cit. p. 26 e 27. Podemos perguntar se não seria isso também uma analogia, processo que no contexto do mito foi condenado por Baker por ser uma percepção menos analítica da obra. A analogia em si, porém, faz parte de todo processo de conhecimento.


Referência bibliográficas BAKER, George, BUCKINGHAM Matthey et al. Round Table: the Projected Image in Contemporary Art, October 104 (Spring 2003), p. 71-96. EAMON, Christopher (ed.). Anthony McCall: the Solid Light Films and Related Works. San Francisco: New Art Trust; Evanston: Northwestern University Press, 2005. FOSTER, Hal et al. Richard Serra: Sculpture 1985 – 1998. Catalogue. Los Angeles: The Museum of Contemporary Art; Göttigen, Germany, Steidl Verlag, 1998. ___________. Richard Serra: The Matter of Time. Bilbao: Guggenheim Museum of Bilbao; Göttingen: Steidl, 2005. KRAUSS, Rosalind E. Passages of Modern Sculpture. Cambridge, Massachuetts and London: The MIT Press, 1981 [1977], p. 87. Trad. Caminhos da escultura moderna. São Paulo: Martins Fontes, 1998. LEGG, Helen (ed.), Anthony McCall: Film Installations. Coventry: Mead Gallery, University of Warwick, 2004. MCCALL, Anthony. 1000 Words: Anthony McCall talks about his ‘Solid Light’ Films. Art Forum (Summer 2004), p. 218-219. MICHELON, Olivier. Anthony McCall: Éléments pour une Rétrospective 1972-1979/2003. Catalogue. Rochechouart: Musée Départamental d’Art Contemporain de Rochechouart e Londres: Serpentine Gallery, 2008. 2ª ed.

Susana Dobal (UnB, Brasília, Brasil) é professora na Universidade de Brasília e fotógrafa. Fez doutorado em História da Arte no Graduate Center/Cuny, participou de mais de 30 exposições e tem textos publicados sobre fotografia e cinema. / sdobal@gmail.com

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On Translation: El aplauso. Laboratorio Arte Alameda, Cidade do MĂŠxico, 2004. Foto: Magdalena MartĂ­nez Franco.


Notas à memória de um dado desconhecido Muntadas. Mídia arquitetura. Instalações Anne-Marie Duguet

Apresentando o DVDrom Muntadas. Media arquitecture. Installations da coleção do projeto Anarchive, da Université de Paris 1, o artigo reflete sobre a questão da memória da obra de arte atual, especialmente a reprodução de instalações e intervenções em espaços públicos. O texto investe sobre os quatro níveis de abordagem da obra do artista espanhol Antoni Muntadas presentes no DVDrom e levanta o problema da modalidade singular de exposição e circulação das instalações multimídias e sua resistência aos meios tradicionais de reprodução. Antoni Muntadas, instalações multimídia, arquivo. Constituir a memória de algumas obras, projetos e experiências em Tradução Claudio Serra.

meio aos mais audaciosos – sem serem necessariamente os mais espetaculares – da arte

1 Université Paris 1 (Creca).

atual, eis o projeto da coleção de DVD-ROMs “anarchives”.1 Os arquivos elaborados a partir de documentos os mais diversos que concernem ao conjunto da obra de um artista são postos a percorrer trajetos imaginados por este último. Cada realização é, ao mesmo tempo, criação original e trabalho histórico e crítico. O princípio consiste certamente em juntar as informações existentes (e produzir outras que pareçam necessárias), mas sobretudo fazendo essa “reflexão”, surpreendendo, distorcendo as perspectivas convencionais, propondo disposições insólitas, outras figuras, panorâmicas, anamórficas, fragmentadas e necessariamente incompletas.

2 Cf. Michel Foucault, L’archéologie du savoir, Paris, Gallimard, 1969.

Para retomar a reflexão de Michel Foucault sobre a questão do arquivo2, este não seria considerado simples acúmulo de todos os dados possíveis, uma “totalização indiferente dos documentos”. Se concordarmos com ele que uma obra é somente um fragmento de um vasto conjunto de práticas e de discursos, o esgotamento dos “documentos” existentes verifica-se efetivamente impossível. A exaustividade é, talvez, uma tentação, mas também uma tentativa sem sentido. Um arquivo nunca é nem acabado nem integral. A noção de acumulação eu substituirei pelas de precisão – no detalhe da descrição de obras, por exemplo – e de diferenciação – acessos, avanços e modalidades de associação. Este segundo princípio visa evidenciar um certo número de regras próprias, direcionando as diferentes abordagens artísticas consideradas e as condições nas quais tal obra ou tal conjunto de práticas tornam-se possíveis, existem.

Notas à memória de um dado desconhecido. Muntadas Anne-Marie Duguet

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É o sistema de uma memória que está, então, para ser construída, é uma arquitetura que impõe reparos e a torna utilizável, aplicável, explorável. Media Architecture Installations A obra de Antoni Muntadas, primeiro título deste projeto, é seguramente exemplar entre as pesquisas e reflexões desenvolvidas sobre o campo artístico desde os anos 70, decerto largamente expostas e difundidas (compreendido, aqui, o grande número de críticas e ensaios que fazem parte, de uma certa maneira, da própria natureza dessa abordagem), mas cujo acesso é às vezes difícil, e o conhecimento, necessariamente fragmentado. Muntadas é duplamente um artista das mídias: por um lado, pela crítica que exerce no que concerne aos sistemas de representação/informação: a televisão, a imprensa, o rádio, a publicidade, mas também a arquitetura, aquela dos edifícios públicos e aquela, invisível, das redes atuais de telecomunicações; por outro lado, pelo uso que faz dessas mídias para revertê-las sobre/contra elas mesmas, constituí-las um instrumento privilegiado de sua própria análise. O essencial de sua obra compõe-se de 30 e poucos vídeos realizados desde 1971, aproximadamente 60 instalações, e intervenções em espaços públicos (placas, tapetes, limusines etc.), publicações, serigrafias, assim como outras técnicas e suportes: envios postais, CDs etc. A obra pode existir também sob a simples forma de um projeto. Lendo “nas entrelinhas” para apreender as significações objetivas e subjetivas da linguagem e das imagens, Muntadas trata dos “mecanismos invisíveis” que dão forma à produção e recepção do discurso das mídias de massa. Ele analisa o consumo de informação e o processo pelo qual ela é midiatizada e manipulada. Essa atividade crítica apoia-se sobre estratégias de apropriação, fragmentação, decomposição, isolamento e reenquadramento das imagens e dos textos. Trata-se de criar espaçamentos, do vazio entre os signos, as linhas, os contextos, os sons para apreender as novas relações, de ralentar para ver/ouvir outra coisa. Trata-se, também, procedendo com semelhanças às vezes insólitas, de revelar as relações profundas entre os campos da cultura, da política, da economia, da religião, do esporte. Questionar é a primeira atitude de Muntadas. A retórica de seus trabalhos funda-se sobre uma série de dualidades (arte/vida, emissão/ recepção, visível/invisível, privado/público, subjetividade/objetividade, vídeo/televisão etc.). A elaboração de metáforas, a reinterpretação de arquétipos arquitetônicos, a encenação das mídias, a teatralização dos rituais sociais e políticos são procedimentos fundamentais de uma obra profundamente engajada na realidade social da atualidade. A interface concebida por Muntadas para essa realização multimídia é um “edifício” imaginário, uma superposição de quatro níveis (aeroporto, biblioteca, auditório e observatório) que constitui uma espécie de espaço arquitetônico híbrido posto que combina

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funções e atividades heterogêneas. Esses níveis, compostos eles mesmos de colagens de fotografias, abrem cada um acesso a um nível subterrâneo, aquele da descrição de um número limitado de trabalhos, 12 instalações e intervenções no espaço público, implicando, necessariamente, a arquitetura e as mídias. Assim, o artista convida a furar essa superfície para penetrar a espessura na qual se revelará a complexidade das obras. O nível do aeroporto propõe uma espécie de geografia das exposições de cada trabalho, em que uma séria de trajetos dentro das cidades significa, ao mesmo tempo, a integração do trabalho a um contexto específico e a transição, ideia de deslocamento. Um nomadismo fundamental, aquele do artista e aquele da passagem que liga uma obra à outra, uma obra a um lugar. Na biblioteca, espaço de reflexão, as obras são acessíveis a partir de sete palavras-chave que designam princípios de trabalho ou conceitos maiores caracterizando o conjunto das obras de Muntadas (tais como as noções de arquétipo, contexto, arquivos, mídia, in/visível, projeto...). O auditório é lugar de apresentação, aquele em que o projeto da obra se comunica, em que sua ideia toma forma através de um conjunto de notas e de diagramas, testemunhas do trabalho de concepção e do processo de elaboração de uma obra, com suas falsas pistas e suas constantes, suas renúncias e suas insistências. Enfim, o observatório se abre sobre um espaço que é pura velocidade, aquela da transmissão dos dados na rede da internet, onde Muntadas faz uma nova proposta quanto aos espaços híbridos. Ele inventou o termo “Interom” precisamente para designar tal abertura, a hibridização da memória morta, fechada a 650Mo, e de um processo de circulação, de troca e de transformação permanente de dados. Muntadas imaginou, assim, uma superfície a investigar e, ao mesmo tempo, um ponto de fratura, uma fuga fora da memória “somente” (Read Only Memory). Descrever a instalação Um dos problemas essenciais, com que é confrontado quem deseja descrever e analisar obras como as instalações e intervenções no espaço público, está certamente na falta de informações precisas, na dispersão e, recorrentemente, na má qualidade dos documentos existentes, mas sobretudo na própria natureza de suas obras. Efêmeras, com algumas exceções, elas exigem um espaço tridimensional para se desenrolar, o de uma galeria ou de uma cidade, um espaço praticável pelo visitante. Elas não “se expõem”, portanto, e não “circulam” segundo as modalidades habituais, e seu conhecimento direto fica reservado, cada vez, a uma minoria. É necessário considerar antes de tudo o fato de que as instalações não têm um modo de existência único, mas vários. Na verdade, elas não se disponibilizam, como a pintura ou os objetos, sempre idênticos, à contemplação e à reprodução ou à cópia. Existem primeiramente na proposta que, qual esquema ou partitura, define um conjunto de instruções constituindo sua identidade específica. Assim, pode-se anunciar os traços

Notas à memória de um dado desconhecido. Muntadas Anne-Marie Duguet

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constitutivos, permitindo reconhecer Stadium: uma série de colunas enfileiradas em elipse criando uma zona que o visitante não pode penetrar e no centro da qual é projetada uma imagem de vídeo etc. Tais são as propriedades comuns a todas as obras intituladas Stadium, a todas as ocorrências dessa instalação. Cada uma é um novo exemplo da obra, mas nenhuma é mais autêntica do que a outra. Um segundo modo de existência da instalação é o de sua atualização. Sua apresentação é suscetível de variações importantes, em função de seu contexto arquitetônico, simbólico, histórico ou institucional. Muntadas “adapta” assim quase sistematicamente suas instalações, das quais muda insensivelmente o título ou a que integra elementos de significação específica. Pode-se dizer a propósito de suas obras que a variação depende do prescrito. Assim, só podemos nos dar conta de uma instalação através, ao mesmo tempo, do conjunto de suas prescrições e do conjunto de suas diferentes atualizações. Sua descrição é necessariamente abstrata ou parcial. Enfim, o que o artista inventa, aqui, inclui também as condições da experiência do visitante, certos percursos e atividades que não só constituem uma questão essencial da obra, mas participam de sua própria definição. O volume ideal da instalação A introdução da maquete numérica na Interom de Muntadas oferece nível de análise capaz de explicitar os elementos essenciais de cada instalação e de esclarecer sua disposição no espaço. A partir de diagramas existentes para cada obra é elaborada uma elevação tridimensional em movimento. A maquete emerge assim do desenho, conservando seu caráter indicativo, mantendo-se deliberadamente tão pura quanto uma épura, uma abstração que se adiciona sobre outra. Esse modelo “genérico” produz assim certos índices

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La mesa de negociación. Museu Art Contemporani Barcelona, 2002. Foto: Rocco Ricci.


de inteligibilidade da obra. Ele não pretende se aproximar do que seria sua verdade fundamental, mas oferecer uma das visualizações possíveis da ideia. Na seção “instalação” essa maquete torna-se um motor de navegação, sinal e instrumento de exploração, a partir do qual se afixam documentos fotográficos e videográficos que, através de seu caráter incompleto por definição, testemunham diferentes apresentações da obra. O numérico e o fotográfico, a simulação e as técnicas de reprodução reaparecem em uma trama estreita, se completam e se precisam mutuamente. Pode-se evocar aqui outro tipo de hibridismo. Eu “anarquivo” quando eu me autorizo a criar pseudoverdadeiros documentos. Um “documento sobre uma ideia”. Impulsos e referências Em uma só proposta podendo ser explorada através de diversas mídias, cada uma das instalações e intervenções que se fazem objeto de descrição detalhada é relacionada com um conjunto de outras obras que com ela apresentam afinidades de ordem temática ou formal. Podemos, portanto, nos deslocar de uma obra à outra, “entre elas”, diria Muntadas. E essa velocidade de deslocamento, a desenvoltura dessa mobilidade que o programa informático permite é um fator determinante na elaboração de outras leituras, de outros níveis de apreensão das questões e das condições de uma obra. É necessário considerar também a formidável possibilidade de dissimulação que existe na multimídia interativa. Múltiplas camadas de informação, de blocos de dados podem nunca ser ativados, consultados. Eles são, ao mesmo tempo, acessíveis e ocultos. Longe de ser desencorajadora, essa presença, mascarada de ainda possíveis ligações com territórios a explorar, constitui um parâmetro essencial da memória informática. Ele autoriza o esquecimento, a omissão, ele torna o percurso leve, sem remorso ou arrependimento. Se poderá sempre voltar atrás. O DVDrom, ainda que tal suporte seja hoje temporário e limitado, inaugura a possibilidade de conhecer de outra forma obras que, tais quais as instalações, resistem aos meios tradicio nais de reprodução. Tal projeto pode assemelhar-se tanto com o livro de artista quanto com o documentário de criação.

Anne-Marie Duguet (Université de Paris 1 – Sorbonne, Paris, França) é doutora em sociologia da arte e professora de artes plásticas na Universidade de Paris 1. Dirige o Centre de Recherche d’Esthétique du Cinéma et des Arts Audiovisuels (Creca) e o projeto Anarchive – Digital Archives on Contemporary Art. Publicou, em 1981, um dos primeiros livros na França sobre a arte do vídeo. Como crítica e curadora, foi responsável por várias exposições, incluindo a retrospectiva da obra de Thierry Kuntzel na Galerie do Jeu de Paume, 1993. / duguet@club-internet.fr

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On Translation: Cercas



1 As ideias aqui apresentadas são desenvolvidas em meu livro Cidade de muros: crime, segregação e cidadania em São Paulo. São Paulo: Editora 34, Edusp, 2000.

Grades e muros são hoje essenciais na cidade não apenas para segurança e segregação, como também por razões de estética e status. Todos os elementos associados à segurança integram um novo código para expressar distinção que eu denomino ”a estética da segu-

nipresentes no espaço urbano de São Paulo, muros e grades são intervenções particulares que constituem o espaço público como resíduo. Embora justificados pelo medo do crime, de fato oferecem muito mais do que segurança: representam sistemas de distinção e discriminação.1

Teresa Caldeira


rança”. Esse código incorpora a segurança em um discurso sobre o gosto e a transforma em símbolo de status. Na São Paulo contemporânea, muros e grades tornam-se elementos decorativos, expressões de criatividade e invenção; devem ser sofisticados não só para proteger os moradores do crime, mas também para expressar seu status social e garantir sua diferenciação. Muros, desconfiança e ostentação de riqueza geram um cenário de desigualdade social que pode ser considerado ofensivo. As residências das classes altas são transformadas em fortalezas; desaparecem por trás de fachadas fortemente protegidas cujas únicas aberturas, vedadas com vidro temperado, indicam a presença de segurança particular. À medida que as elites se refugiam em suas novas fortalezas, esses espaços transformam-se em modelo máximo daquilo que tem prestígio e confere distinção. É inevitável, portanto, que essa nova linguagem de diferenciação alcance outras áreas da cidade, incluindo a periferia de São Paulo habitada pela população pobre, onde as condições materiais das construções são obviamente mais precárias. Entretanto, como a estética da segurança passa a ser dominante, essa população também


Apesar de muros e grades estarem presentes literalmente em toda a cidade de São Paulo, seu modelo ideal são os enclaves fortificados. Esses espaços privados, isolados por muros e grades, monitorados e articulados por um discurso de segurança destinam-se a moradia, consumo, lazer e trabalho, podendo ser shopping centers, centros empresariais ou condomínios residenciais fechados. Dependem de guardas armados e modernos sistemas de segurança para proteção e também para pôr em prática as normas de exclusão que lhes garantem a exclusividade social. Por serem espaços fechados e de acesso controlado privadamente, ainda que seu uso seja coletivo ou semipúblico, esses enclaves transformam profundamente o caráter do espaço público. Na realidade, eles criam um espaço que contradiz diretamente os ideais de abertura, heterogeneidade, acessibilidade e igualdade que ajudaram a organizar tanto o tipo moderno de espaço público como as democracias modernas. No novo tipo de

altera suas fachadas e adota modelos de muros, grades e portões que lhe permitam distinguir-se em meio a seus vizinhos.


Teresa Caldeira (Universidade da Califórnia, Berkeley, EUA) é antropóloga e professora do Departamento de City and Regional Planning da Universidade da Califórnia, Berkeley, EUA. Autora do livro Cidade de Muros: Crime, Segregação e Cidadania em São Paulo (São Paulo: Editora 34 e Edusp, 2000). / tcaldeira@berkeley.edu

Ainda que os enclaves segreguem, separem e criem distanciamentos, e ainda que sejam construídos como negação do público, o que eles expressam é público – produzem uma linguagem pública e um repertório comum que impregna todo o tecido social. Aquilo que os enclaves expressam e esse código compartilhado permitem a comunicação entre grupos sociais e organizam o cenário urbano de uma maneira específica. Como um código de distinção, eles reproduzem desigualdade e hierarquia não só entre os grupos de elite e os marginalizados, mas também dentro dos mais diversos grupos sociais, incluindo os mais pobres.

espaço público as diferenças não devem ser ignoradas, descuidadas ou consideradas irrelevantes. Tampouco devem ser disfarçadas para dar lugar a ideologias de igualdade universal ou mitos de pluralismo cultural. Nesse contexto, a desigualdade é um valor estruturante.












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O sol que tudo vê na tapeçaria de Vénus e Marte do Museu Nacional Machado de Castro*1 Luísa de Nazaré Ferreira

O tema de Vénus e Marte surpreendidos por Vulcano foi tratado com frequência na arte do Renascimento. Um dos exemplos mais interessantes e belos é uma tapeçaria flamenga, provavelmente fabricada em Bruxelas c. 1530-1540, que integra atualmente as coleções do Museu Nacional Machado de Castro, em Coimbra. Propõe-se neste artigo uma análise da obra que valoriza a representação do sol, um elemento central no mito clássico. Assim, dois aspectos essenciais serão considerados: as fontes literárias e a descrição iconográfica da tapeçaria. Tapeçaria flamenga, fontes clássicas, iconografia. Num fragmento atribuído à chamada “Elegia de Plateias”, no qual se *Artigo recebido em novembro de 2008 e aceito para publicação em fevereiro de 2009.

preservam ecos da atuação valorosa dos Coríntios nas lutas contra os Persas de 480-479

1 Este estudo é um desenvolvimento de comunicação apresentada ao Congresso Internacional “O sol greco-romano”, realizado em 5 e 6 de março de 2007 no âmbito da IX Semana Cultural da Universidade de Coimbra, e foi primeiramente publicado no volume VI da revista Biblos, da Faculdade de Letras de Coimbra (2a série, 2008, p. 103-118). À senhora diretora, prof. doutora Maria de Fátima Sousa e Silva, agradecemos a gentileza de permitir sua reprodução. Gostaríamos também de agradecer a amável colaboração dos técnicos do Museu Nacional Machado de Castro, dr. Pedro Miguel Ferrão e dra. Fernanda Alves, do prof. doutor José Ribeiro Ferreira, que estabeleceu os contactos iniciais e acompanhou a pesquisa, dos nossos colegas doutor José Luís Brandão e dra. Teresa Carvalho, e de Claudio Castro Filho. Dedico este trabalho a Emma Henriques e a Luísa Maria Henriques, a quem devemos o gosto pela tapeçaria flamenga. Qualquer incorreção ou erro é de nossa inteira responsabilidade.

no céu”.2 Com essas palavras, o poeta da ilha de Ceos associava o elogio do esforço daque-

a.C., Simónides evocava o testemunho do sol, o testemunho “do ouro precioso que habita les guerreiros ao do astro luminoso, que desde a mais antiga poesia épica era também o deus que tudo vê e tudo ouve e que, por conseguinte, tudo pode saber. Esses atributos surgem logo em evidência no canto III da Ilíada, quando Agamémnon invoca os deuses como testemunhas dos sacrifícios que antecedem o combate singular entre Menelau e Alexandre.3 A mesma epopeia atesta que Zeus pode facilmente iludir Hélios e evitar que assista à sua união com Hera, no célebre episódio do canto XIV, embora o próprio pai dos deuses reconheça que nenhuma luz vê mais agudamente que a dele.4 A vigília atenta do sol constitui um elemento central do “canto dos amores de Ares e Afrodite”, interpretado pelo aedo Demódoco na corte dos Feaces. Recordamos o início da história, que ocupa os vv. 266 a 366 do canto VIII da Odisseia, na tradução de Frederico Lourenço:5

2 Fr. eleg. 16 West.

Cantou como primeiro fizeram amor em casa de Hefesto às ocultas; e

3 Cf. v. 277.

muitos presentes lhe deu Ares, desonrando o leito nupcial do soberano

4 V. 345. 5 V. 268-273.

Hefesto; porém a este veio dar a notícia o Sol, que os vira na cama, deitados na união do seu amor. Quando Hefesto ouviu a notícia que lhe feriu o coração, foi para a sua forja, remoendo no espírito fundos pensamentos.

O sol que tudo vê na tapeçaria de Vénus e Marte Luísa de Nazaré Ferreira

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Demódoco canta em seguida como os amantes foram apanhados no próprio leito conjugal,

6 V. 275.

graças a um estratagema que só poderia ter sido concebido por um deus: com correntes

7 V. 279-281.

“impossíveis de quebrar ou deslaçar”,6 mas “finas / como teias de aranha” e “enganosas”.7 Durante a ausência fingida de Hefesto, o sol mantivera-se atento e avisara o marido ultrajado.8 O desenlace do episódio provocou reações diversas entre os Olímpicos: o desespero

8 V. 302. 9 V. 305-320.

do deus do fogo, por ter sido desonrado,9 o pudor das deusas, que se mantêm à parte,10 o

10 V. 324.

incómodo de Poséidon, que suplica pela libertação dos amantes,11 mas despertou também

11 V. 344-356.

o riso inextinguível, o célebre “riso homérico”, dos outros deuses,12 um misto de troça e gracejo, espelho da vergonha que se derrama sobre o par adúltero.

13 V. 367-369.

O “canto dos amores de Ares e Afrodite”, que deleita Ulisses e os convivas do banquete oferecido pelo rei Alcínoo, suscita interpretações diversas dos estudiosos da Odisseia e 13

12 V. 326, 343.

14

seduziu Ovídio, que o revisitou na Arte de amar15 e nas Metamorfoses.16 Nas duas obras, o poeta latino tem presente o canto homérico e, em especial, o papel de delator que cabe ao sol. Tal como na Odisseia, na Arte de amar o riso desperta entre os deuses quando Marte e Vénus são apanhados nas enganosas redes de Vulcano, mas há uma diferença fundamental que explica a evocação desse episódio num capítulo sobre as atitudes a adotar perante a traição. No poema de Ovídio, os amantes, que no início eram prudentes e escondiam com cuidado os seus encontros,17 uma vez descobertos perdem a vergonha e o pudor.18 No entanto, na versão das Metamorfoses, mais fiel ao poema homérico, os deuses reagem de modo diverso quando são surpreendidos19 e a vergonha de Vénus leva-a a vingar-se do sol,20 que os havia denunciado.21 Ovídio é um dos principais responsáveis pela permanência dos mitos clássicos na cultura europeia, e a sua influência é notável também no domínio das artes decorativas, em

14 Se alguns helenistas defenderam tratar-se de uma interpolação, registe-se que já em Ateneu se observa que o canto do aedo Demódoco é “uma história temperada de escárnio, que decerto sugere a Ulisses a matança dos pretendentes”. (Banquete dos Sofistas 5. 192d-e). Para a discussão dos diversos sentidos do passo e sua função na Odisseia, vide W. Burkert, “The Song of Ares and Aphrodite: On the Relationship between the Odyssey and the Iliad”, RhM 103 (1960) 130-144 = G. M. Wright and P. V. Jones, Homer: German Scholarship in Translation (Oxford: Clarendon Press, 1997) 249-262; B. K. Braswell, “The Song of Ares and Aphrodite: Theme and Relevance to Odyssey 8”, Hermes 110.2 (1982) 129-139; C. G. Brown, “Ares, Aphrodite, and the Laughter of the Gods”, Phoenix 43 (1989) 283-293; S. D. Olson, “Odyssey 8: Guile, Force and the Subversive Poetics of Desire”, Arethusa 22.2 (1989) 135-145; C. Segal, Singers, Heroes, and Gods in the Odyssey (Ithaca-London: Cornel Univ. Press, 1994) 118-119; M. J. Alden, “The Resonances of the Song of Ares and Aphrodite”, Mnemosyne 50.5 (1997) 513-529.

especial na tapeçaria.22 Referimo-nos a uma peça fabricada habitualmente em lã e seda,

15 2. 561-592.

integrando por vezes fios de ouro e prata, destinada a ornamentar e a tornar mais aco-

16 4. 169-189.

lhedoras as paredes de castelos, palácios, catedrais, igrejas e conventos,24 que começou

17 2. 571-572.

23

por se chamar “pano de armar”, “pano de raz”, ou “pano de Arras”. Essas designações derivam do topónimo Arras, que foi um dos principais e mais antigos centros de produção dessa arte, embora no século XVI viesse a ser suplantado por Bruxelas.

18 2. 589-590. 19 4. 186-187. 20 4. 190-192.

Terá sido fabricada nessa cidade, por volta de 1530-1540, a tapeçaria flamenga que pertence hoje ao Museu Nacional Machado de Castro de Coimbra.25 A origem e a data depreendem-se das semelhanças, de técnica e de estilo, com outras obras criadas em Bruxelas no segundo quartel do século XVI, como a peça intitulada Assuero entrega o anel a Mardoqueu, que se encontra no Museu Nacional de Arte Antiga de Lisboa.26 Ambas foram tecidas em lã e seda, com sete fios de trama por centímetro.27 A cercadura, do tipo “flores e frutos”, típica do estilo de Bruxelas de 1530 a 1550, ostenta folhagens, flores e frutos, dispostos em arranjos florais sobre um tronco de palmeira verde.28 Note-se

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21 4. 171-174. 22 Além da popularidade dos poemas, em especial da Arte de Amar (na Idade Média) e das Metamorfoses (no Renascimento), as edições de Ovídio eram também as mais ilustradas. A primeira edição ilustrada das Metamorfoses surge em Bruges, em 1484, e a seguinte em Veneza, em 1497. Sobre a influência do poeta latino na literatura e nas artes do Ocidente, vide A. Monteverdi, “Ovidio nel Medio Evo”, in F. Arnaldi et alii, Studi Ovidiani (Roma: Instituto di Studi Romani Editore, 1959) 63-78; N. Lascu, “La fortuna di Ovidio dal Rinascimento ai tempi


nostri”, ibidem, p. 79-112; Rand, 1963, p. 108156; S. Viarre, Ovide. Essai de lecture poétique (Paris: Les Belles Lettres, 1976) 117-137. 23 No que respeita à técnica de fabrico da tapeçaria, vide Gabetti, 1989, p. 80-81; Quina, 2005, p. 145-148.

que em cada peça foi usado o mesmo padrão nas barras da esquerda e da direita. Além das aves, a presença dos bambinos, de influência italiana, pode apontar para uma composição mais tardia da tapeçaria do Museu Nacional de Arte Antiga, cuja marca de fabrico pertence ao mercador veneziano Marc Crétif.29

24 A utilização das tapeçarias podia ser muito diversa. Sendo uma manifestação de riqueza e de arte, com grandes afinidades com a pintura, eram muitas vezes guardadas em baús para serem apenas exibidas em ocasiões especiais, como a realização de festas públicas, torneios, cerimónias de assinaturas de tratados, casamentos e batizados. A mobilidade dessas peças prejudicou gravemente a sua preservação, mas também permitia que servissem de presentes e constituíssem parte valiosa dos enxovais dos príncipes. Raramente não integravam os testamentos dos membros da nobreza e do clero. Sobre o uso que foi dado às tapeçarias flamengas adquiridas ou encomendadas no passado por portugueses, vide Huylebrouck, 1986, especialmente p. 5-14.

Nem sempre é possível conhecer a origem dos panos de armar. Na tapeçaria do Museu Na-

25 O Museu Nacional Machado de Castro disponibiliza a imagem da tapeçaria na página http://mnmachadodecastro.imc-ip.pt/pt-PT/ coleccoes/Texteis/ContentDetail.aspx?id=217 (consultada em 21/04/2009).

de execução das tapeçarias. Todavia, uma vez que se perderam os registos das corporações de

26 Vide Matriznet - Colecções do Instituto dos Museus e da Conservação, I.P. no interface http://www.matriznet.imc-ip.pt/. 27 Nas tapeçarias mais antigas, os artesãos empregavam geralmente quatro fios de trama por centímetro. No período barroco, com a influência da pintura a óleo e a necessidade de salientar pormenores e contrastes pictóricos, a gama de cores é alargada, e os tapeceiros passam a utilizar oito fios de trama.

cional Machado de Castro foram tecidas duas marcas na orla lateral direita e uma na orla inferior. Embora sejam desconhecidas e estejam incompletas, a sua presença sugere, pelo menos, uma data de fabrico posterior a 1528, porque a 16 de maio desse ano uma ordem municipal determinou que as manufaturas de Bruxelas fossem obrigadas a tecer nas peças maiores duas marcas: na orla inferior, a sigla da cidade;30 ao fundo da orla direita, a marca do tapeceiro ou do mercador responsável pela encomenda da obra. Essas medidas visavam evitar a concorrência estrangeira e as falsificações, bem como garantir a qualidade e autenticidade do produto.31 A ordem municipal foi confirmada por decreto imperial em maio de 1544, promulgado em Bruxelas em 26 de outubro de 1546, e impunha que cada centro de produção adotasse a marca da sua cidade. Esse decreto passou a regulamentar todo o processo tapeceiros, hoje não é possível identificar todas as marcas de fabrico. No caso da nossa tapeçaria, cujas dimensões se situam entre os 360cm de altura por 405cm de largura, da marca da cidade apenas se preserva um fragmento e, portanto, a origem deduz-se sobretudo, como foi dito da técnica e do estilo de fabrico. As marcas respeitantes ao tapeceiro ou mercador, uma delas incompleta, ainda não foram identificadas, o que é uma situação bastante comum.32 As duas tapeçarias que estamos a comparar distinguem-se especialmente no tema que representam. A do Museu Nacional de Arte Antiga evoca um passo do Livro de Ester.33 A do Museu Nacional Machado de Castro versa sobre o mito clássico que recordámos na abertura deste artigo. Tal como nas restantes artes, também na tapeçaria, desde a mais

28 Cf. D’Hulst, 1960, p. 190; Delmarcel, 1999, p. 115.

primitiva à mais recente, estão amplamente representados os temas do Antigo e Novo

29 Cf. Mendonça, 1983, p. 24-25. A investigadora informa que existe uma réplica dessa tapeçaria na coleção real da Suécia, mas sem marcas.

contemporânea.34

30 Dois B maiúsculos (Brabant-Bruxelles) a ladear um escudo vermelho. Brabant, antigo ducado, é hoje uma região do centro da Bélgica. Registe-se que alguns tapeceiros de Bruxelas já assinavam as suas obras antes de 1528. Cf. M. Crick-Kuntziger, 1936, p. 12-14. 31 As infrações ou omissões eram punidas com elevadas multas. A técnica do retouchage, isto é, a aplicação de tinta ou lápis em pequenas áreas (nos rostos das figuras, por exemplo), é proibida, e todos os pormenores da representação deviam ser tecidos, não podendo ser pintados posteriormente. 32 No que respeita à identificação das marcas e à regulamentação que pretendia acabar com

Testamentos, da tradição hagiográfica, da mitologia greco-romana, da história antiga e

A relação legítima entre Ares e Afrodite estava bem estabelecida na tradição grega a partir de Hesíodo,35 e o canto de Demódoco na Odisseia parece constituir um episódio isolado. Não foi, porém, esquecido. Principalmente graças a Ovídio e às interpretações éticas das suas obras,36 a lenda de Vénus e Marte surpreendidos por Vulcano teve grande fortuna na Idade Média e no Renascimento, tanto na literatura quanto nas artes,37 em parte porque permitia uma leitura moralizadora: a condenação do adultério e o elogio da fidelidade conjugal. É essa mensagem subjacente que explica muitas vezes a aquisição de peças de temática pagã por membros da Igreja. A tapeçaria do Museu Nacional Machado de Castro foi apresentada na “Exposição Retrospectiva de Arte Ornamental Portugueza e Hespanhola”, realizada em Lisboa em 1882,

O sol que tudo vê na tapeçaria de Vénus e Marte Luísa de Nazaré Ferreira

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cujo catálogo informava que a peça pertencia à Sé de Coimbra.38 Pensa-se que terá sido adquirida durante o bispado de D. Jorge de Almeida (1482-1543), que era grande conhecedor das artes da Flandres e deu grande importância ao enriquecimento artístico da diocese e da Sé.39 Não sabemos se a tapeçaria pertence a uma série de panos de armar de tema comum ou se constitui exemplar único, o que era vulgar na Idade Média, mas se tornou cada vez mais raro a partir do século XVI. Segundo o levantamento de J. D. Reid, o tema de Vénus e Marte surpreendidos por Vulcano foi várias vezes tratado na tapeçaria flamenga, pelo menos desde o primeiro quartel do século XVI. A investigadora regista que foi tecida em Bruxelas, c. 1525-1550, uma armação intitulada História de Vénus e Vulcano, constituída por sete tapeçarias, das quais se fizeram réplicas, na manufatura de Mortlake, na primeira metade do século XVII.40 Uma dessas peças encontra-se hoje em Londres, no Victoria & Albert Museum.41 No que respeita aos aspectos temáticos, distingue-se da nossa principalmente por situar as figuras num espaço fechado: a morada dos deuses. No lado esquerdo, vemos as três Graças a chorar. No lado direito, o marido de Vénus surge sentado num trono com ar desolado. No centro da cena, o deus do mar, ao lado do Cupido, retratado como um menino nu com asas, suplica-lhe que liberte os amantes. Estes foram também integrados na composição, no canto superior esquerdo, a serem apanhados pelo deus do fogo. Assim, esse pequeno quadro funciona como uma evocação visual do que já aconteceu e constitui o tema central da tapeçaria. Por conseguinte, essa representação parece seguir as fontes literárias já mencionadas, que situam a emboscada no leito dos amantes.42 O cenário campestre, que se prolonga até um horizonte longínquo, no qual se avistam árvores, um rio, várias habitações e, do lado direito, num ponto mais afastado, um palácio, constitui para nós um dos aspetos mais originais da tapeçaria do Museu Nacional Machado de Castro.43 Nesse fundo de paisagem de tonalidade dourada, onde sobressaem os azuis e vermelhos rosados,44 não há lugar para os espectadores divinos que protagonizam o célebre riso homérico. O nosso olhar detém-se no abraço de Vénus e Marte, que ocupam o centro da representação. Abrigados sob uma colcha de tons azuis suspensa de duas árvores, acabam de se tornar prisioneiros das cadeias de Vulcano, bem visíveis, ao contrário das que são referidas nas fontes clássicas. Marte fita com intensidade os olhos de Vénus e não parece ter ainda dado conta da cilada. O alheamento do deus da guerra é sublinhado pela posição dos seus atributos, a espada e o elmo emplumado, que repousam a seus pés, muito perto aliás do alcance de Vulcano. O olhar da deusa, porém, dirige-se para o marido que acabou de avistar, escondido atrás do carvalho. As mãos de Vénus, com as palmas viradas para cima, sugerem inquietação ou mesmo que se prepara para fazer um apelo. No lado esquerdo da cena, o escudo de Marte acolheu o sono do Cupido, que não deu pela chegada de Vulcano. A figura delicada do deus do amor a dormir, tema recorrente

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abusos dos tapeceiros e mercadores pouco escrupulosos, vide Guimbaud, 1928, p. 5657; Crick-Kuntziger, 1936; Delmarcel, 1999, p. 115-116, 362-370; Campbell, 2002, p. 282-284. 33 “Naquele mesmo dia, o rei Assuero deu à rainha Ester a casa de Haman, o opressor dos judeus; e Mardoqueu apresentou-se diante do rei, porque Ester lhe manifestara o parentesco que a unia a ele. O rei tirou o seu anel, que retirara de Haman, e deu-o a Mardoqueu; e Ester colocou Mardoqueu à frente da casa de Haman.” Tradução de J. A. Ramos, Livro de Ester, 8.1.2, in Bíblia Sagrada. Lisboa-Fátima: Difusora Bíblica, 2001, p. 716. 34 No princípio do século XX, L. Roblot-Delondre elaborou uma classificação cronológica dos temas antigos, mitológicos e históricos, representados na tapeçaria. Embora desatualizado e incompleto, esse estudo continua a ser muito útil. A investigadora concluiu que os temas da mitologia greco-romana, geralmente recolhidos das Metamorfoses de Ovídio, surgem privilegiados na tapeçaria fabricada em Bruxelas no segundo quartel do século XVI (1917, p. 307-308). 35 Cf. Teogonia 933-935; Píndaro, Pítica 4. 87-88. 36 A exegese moral mais célebre foi o Ovide moralisé (Poème du commencement du quatorzième siècle, publié d’après tous les manuscrits connus, 5 vols. Ed. C. de Boer et al., Amesterdão, 1915-1938), um poema anónimo, formado por 72 mil versos, que oferece interpretação alegórica e cristianizada das Metamorfoses. Cf. Rand, 1963, especialmente p. 131-156. 37 Uma das telas mais célebres é Vulcano mostra os seus prisioneiros aos deuses, de Maerten van Heemskerck (1498-1574), pintado em 1536 (Viena, Kunsthistorisches Museum). Jacopo Tintoretto (1518-1594) tratou o tema com humor na obra Marte, Vénus e Vulcano, pintada em 1551-1552 (Munique, Alte Pinakothek). O tema da união legítima entre a deusa do amor e o deus da guerra também não foi ignorado na Idade Média e no Renascimento. Cf. Panofsky, 1995, p. 135-136. Para a análise das representações desses temas nesses períodos, vide Reid, 1993, p. 195-203. 38 Cf. Catalogo illustrado da Exposição Retrospectiva de Arte Ornamental Portugueza e Hespanhola, vol. II. Lisboa: Imprensa Nacional, 1882, p. 344. Mais recentemente, a tapeçaria integrou a “Europália 91” (Lisboa) e foi exibida no Museu de Serralves, durante a Cimeira LusoBrasileira realizada em outubro de 2005. 39 Vide J. P. Paiva, “A diocese de Coimbra durante o reinado de D. Manuel: o governo episcopal de D. Jorge de Almeida (1482-1543)”, Revista Portuguesa de História 36.1 (20022003) 347-366, especialmente p. 351-352; cf.


A. Alarcão, “Construção de um património”, in Alarcão, 2005, p. 28. De acordo com Pedro Dias, 1991, p. 199, a tapeçaria foi oferecida à catedral de Coimbra por D. Jorge de Almeida. Não figura, porém, na extensa lista de doações do bispo, que inclui vários panos de armar, de temática bíblica e mitológica. Cf. Huylebrouck, 1986, p. 10; P. A. Nogueira, Livro das vidas dos bispos da Sé de Coimbra. Coordenação de M. A. Rodrigues, transcrição de M. T. N. Veloso. Coimbra: Arquivo da Universidade/Gráfica de Coimbra, 2003, p. 218-219.

na pintura do Renascimento, é outro aspecto singular dessa composição. Ainda no lado

40 Cf. Reid, 1993, p. 197. Uma armação sobre o mesmo tema, intitulada História de Vulcano e de Vénus, foi tecida na Flandres c. 1546-1556. Das oito ou nove tapeçarias que a formavam, cinco estão expostas no Banquet Hall da Biltmore House (Asheville, Carolina do Norte). As outras estão por localizar, mas conhece-se o paradeiro de algumas réplicas do século XVII.

figura parece mais jovem. Pode ser um servo de Marte, que conduz o cavalo do deus,

esquerdo, um homem tenta acalmar um cavalo que se espantou com o brilho do sol. Um pouco mais acima, quase ofuscado pela folhagem verdejante da árvore, um galo anuncia o nascer do dia. Mas agora é tarde, Marte e Vénus foram descobertos! À primeira vista, poderíamos supor que o homem do cavalo é o próprio Vulcano a ser avisado pelo sol. Os cabelos são semelhantes, bem como a cor (azul) e o modelo da túnica que envergam. Quando prestamos atenção, verificamos que o deus tem barba, e a outra como sugeriu Maria José de Mendonça,44 ou outra personagem que não aparece no poema homérico nem nos versos de Ovídio. A hipótese é sustentada pela presença do galo. Segundo uma versão do mito evocada por Luciano no opúsculo O sonho ou o galo e citada por outros autores mais tardios,46 o deus da guerra pedira a um homem chamado Aléctrion, de quem se tornara amigo, para guardar os seus encontros com Vénus. Quando aquele uma

41 O Victoria & Albert Museum disponibiliza a imagem da tapeçaria na página http:// www.vam.ac.uk/collections/textiles/audio/ vulcan_venus/index.html (consultada em 21/04/2009).

vez adormeceu, o sol logo revelou a Vulcano o local onde se escondiam os deuses, e Marte

42 Odisseia 8. 277; Ovídio, Ars 2. 576, Met. 4. 181.

masculina que segura o cavalo, ela chama a atenção para a representação do sol que se

43 Os edifícios que se erguem na paisagem, altos e estreitos, de telhados recortados, evidenciam as linhas arquitetónicas das habitações típicas da Flandres no século XVI. Cf., por exemplo, as vistas de Bruxelas representadas na célebre armação Partida para a caça (c. 1528-1531), atribuída ao artista flamengo Bernaert van Orley. Cf. Campbell, 2002, p. 329-335. Os quadros de Pieter Bruegel, o Velho (c. 1525-1569), em especial os que tratam paisagens rurais, como A armadilha (1565) e O recenseamento de Belém (1566), corroboram essa ideia. 44 As cores das tapeçarias que se preservaram estão hoje, de um modo geral, apagadas ou têm menos brilho. A tom original pode, nalguns casos, ser apreciado no avesso da peça. Eram sobretudo empregues o amarelo, o vermelho, o verde e o azul, como mostra a tapeçaria do Museu Nacional Machado de Castro. As matérias corantes eram principalmente de origem vegetal e pode ter sido significativo o facto de o solo da Flandres ser especialmente fértil para o cultivo de plantas. O vermelho era obtido da garança e da papoila, mas também da cereja e da romã. No século XIII divulgou-se o fabrico do azul a partir do pastel-dos-tintureiros (Isatis tinctoria), pelo que essa cor passou a ser muito utilizada pelos mestres tapeceiros. Cf. Phillips, 1994, p. 22, 30. 45 1983, p. 94. 46 Cf. e.g. Eustátio (ad Od. 8. 302, p. 1598, 61). Em Diálogo dos deuses 21, Hermes narra

vingou-se do seu ajudante transformando-o em ave. Desde então, Aléctrion, nome que na língua grega significava “galo”, passou a anunciar o nascer do dia, como mostra a peça do Museu Nacional Machado de Castro. Assim, qualquer que seja a identidade da figura avista na linha do horizonte do canto superior esquerdo. Parece-nos que a valorização desse elemento central do mito – a denúncia do sol – motivou a figuração do encontro dos amantes num fundo de paisagem em vez de nos aposentos divinos. Nesse ponto, porém, a tapeçaria afasta-se da tradição clássica, pois no diálogo de Luciano os amantes são descobertos enquanto dormem, confiantes na vigilância de Aléctrion.47 Por conseguinte, segundo essa leitura, o quadro representa em simultâneo três momentos diferentes da lenda: a revelação do sol, a emboscada de Vulcano e a transformação do vigilante em galo. Além do olhar apaixonado de Marte, do cruzar de olhares de Vénus e Vulcano, há outros aspectos que merecem a nossa atenção. Em primeiro lugar, ao contrário de outras obras que retratam as personagens mitológicas como figuras do Renascimento, Vénus e Marte surgem caracterizados como dama e guerreiro romanos, sobressaindo o manto escarlate do deus da guerra, sob o tom azul da colcha.48 O desenho da couraça é pormenorizado e segue o modelo de uma armadura romana que surge representada, por exemplo, no célebre sarcófago de Ludovisi.49 Era formada por pequenas lâminas em bronze, sobrepostas e unidas, cujo aspecto final se assemelhava ao das escamas de peixe. O autor da tapeçaria teve o cuidado de destacar esse pormenor. Na Idade Média, muitos mestres tapeceiros criavam as suas peças a partir das iluminuras de manuscritos e das ilustrações de livros. No Renascimento, porém, será a pintura, em particular de origem italiana, a fornecer os modelos visuais que, por sua vez, se inspiravam nos monumentos clássicos conhecidos.50 Essa ideia pode ser confirmada com uma breve nota sobre a espada e o elmo emplumado de Marte.

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Neste destaca-se a representação da esfinge, a figura enigmática de uma leoa alada com cabeça de mulher, motivo de origem oriental, introduzido muito cedo na mitologia e arte gregas. Como ornamento de um elmo, um dos exemplos mais antigos é a escultura criselefantina da deusa Atena, que Fídias realizou em 438 a.C. para o Pártenon (Athena Parthenos), e da qual podemos ter uma ideia através da réplica romana da Atena de Varvakeion.51 No entanto, para os artistas renascentistas talvez tenha sido mais influente a estátua colossal de Marte Ultor, (Vingador) erguida no Forum de Nerva,52 cujo elmo ostentava igualmente a figura de uma esfinge. Sendo símbolo de poder e inteligência (fora adotada, por exemplo, por Augusto), esse motivo vai permanecer como ornamento de vários deuses, em especial de Minerva e de Marte, mas também de Roma.53 Na tapeçaria do século XVI, a esfinge torna-se recorrente, assim como outras figuras de “grotescos”, por influência dos pintores italianos, em especial de Rafael, que introduziram no seu trabalho as decorações murais da Domus Aurea de Nero, descobertas no final do século XV.54 No cimo de um elmo, a função da esfinge será a de incutir medo no adversário. Todavia, a que aparece na nossa tapeçaria não só perdeu as asas (está amputada, à semelhança de muitas estátuas clássicas), como tem a cauda rebaixada. Os seus olhos arregalados sugerem medo, pelo que nessa imagem parece refletir-se, ironicamente, não a força de Marte, mas a inquietação de Vénus.

a Apolo como o deus do fogo surpreendeu os amores de Afrodite e Ares, mas nesta obra Luciano segue a versão homérica, retomando os vv. 334-342 do canto VIII da Odisseia. 47 O autor da tapeçaria pode ter seguido outras fontes literárias, inspiradas ou não em Luciano. O autor grego foi lido durante a Idade Média, mas foi sobretudo apreciado no Renascimento. A primeira edição de conjunto dos Diálogos, com todas as obras autênticas, é publicada em Veneza, em 1496. Curiosamente, a primeira edição (parcial) de O sonho ou o galo surge em Paris, em 1530, portanto numa data próxima da que é atribuída à nossa tapeçaria. Cf. J. Bompaire, Lucien. Oeuvres, tome I. Paris: Les Belles Lettres, 1993, p. cxxiv, cxl. 48 A representação dos deuses à romana inscreve-se na tendência realista que caracteriza a tapeçaria flamenga do segundo quartel do século XVI e é evidente também na ornamentação pormenorizada da cercadura. Na construção do fundo de paisagem (onde avistamos edifícios flamengos), o artista mostrou a realidade que lhe era familiar. Cf. D’Hulst, 1960, p. 186. 49 C. 251 d.C.; Roma, Museu Nacional Romano.

Quando reparamos na espada do deus, que repousa por terra ao lado do elmo, mais uma vez ficamos com a impressão de que o autor da tapeçaria tinha presente algum modelo visual introduzido talvez pelos pintores italianos. Essa ideia é sustentada pelas semelhanças, por exemplo, com a arma que aparece representada na tapeçaria A conversão de Saul, desenhada por Rafael c. 1516 e tecida em Bruxelas, no ateliê de Pieter van Aelst, c. 1517-1520.55 Nas duas obras, a espada surge caída por terra, muito perto dos pés, guardada numa bainha. O punho é semelhante, e as correias envolvem a bainha de forma mais ornamental do que realista. Curiosamente, as sandálias de Saul, ainda que menos altas, não são muito diferentes das de Marte. No calçado dos deuses da tapeçaria do Museu Nacional Machado de Castro destacam-se os pequenos corações, que acrescentam um pormenor pitoresco à cena, mas não a tornam mais erótica. Neste ponto, a nossa tapeçaria está muito longe da forma ousada como alguns pintores renascentistas trataram o tema dos amores de Vénus e Marte. Note-se que até o pequeno Cupido surge vestido e calçado, o que contrasta com a representação canó-

50 Cf. Phillips, 1994, p. 26, 32. 51 Séculos II-III d.C.; Museu Nacional de Atenas. 52 Roma, Museus do Capitólio. 53 O modelo de Roma personificada, que ostenta um elmo emplumado e decorado com uma esfinge, pode ter sido inspirado pela base da coluna de Antonino Pio, que representava a apoteose de Antonino e de Faustina (c. 161 d.C.; Roma, Museus do Vaticano). 54 Cf. N. Dacos, La découverte de la Domus Aurea et la formation des grotesques à la Renaissance. London-Leiden: Brill, 1969); Gabetti, 1989, p. 26. 55 Essa tapeçaria pertence à armação Atos dos Apóstolos, que foi encomendada pelo Papa Leão X e se destinava a decorar a Capela Sistina. Cf. Campbell, 2002, p. 211-214.

nica do deus do amor: um menino alado, que brinca nu, geralmente com um arco e flechas na mão.56 Essa imagem, que remonta à literatura e à arte da época helenística, continuava a seduzir os artistas do Renascimento. No entanto, na nossa tapeçaria, onde não vemos os atributos do deus, sobressaem a delicadeza dos traços e a combinação cuidada das cores do seu corpo: o azul da túnica destaca-se sobre o vermelho rosado do escudo de Marte; o vermelho mais escuro das asas combina com o mesmo tom das botinhas. Se partirmos do princípio de que a tapeçaria tem subjacente uma mensagem de alcance moralizador, é legítimo supormos que o artista tenha incluído outros elementos que se

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56 Cf. supra.


prestam a uma leitura simbólica. Esses figuravam, muitas vezes, na cercadura que, como dissemos, obedece às convenções estéticas da tapeçaria flamenga do segundo quartel do século XVI. Parece-nos, por isso, discutível que todas as representações botânicas se relacionem simbolicamente com a cena mitológica, uma vez que as encontramos em muitas outras peças fabricadas em Bruxelas na mesma época, em especial naquelas em 57 Cf. as cercaduras das quatro tapeçarias que pertencem à armação História de Édipo, conservada no Museu de Lamego, que terá sido fabricada em Bruxelas por volta de 15251528 (Quina, 2005, p. 15). Essas cercaduras são mais estreitas do que a da tapeçaria do Museu Nacional Machado de Castro, mas têm em comum vários elementos botânicos, como abóboras, cachos de uvas, peras, lírios, além de muitos outros frutos e flores. A palmeira aparece representada apenas nas barras da esquerda e da direita da cercadura.

que os arranjos florais se distribuem sobre um tronco de palmeira.57 É certo, porém, que a ornamentação da cercadura era uma parte fundamental da tapeçaria, conferindo-lhe mais beleza, requinte e até mesmo exotismo. Por outro lado, é evidente que os artistas tinham preferência por alguns motivos e a sua escolha podia, eventualmente, ser determinada pelo valor simbólico que lhes estava associado, que remontava, em muitos casos, à tradição clássica. Na cercadura da tapeçaria do Museu Nacional Machado de Castro distinguimos, entre muitos outros elementos botânicos, a abóbora e a Iris germanica (nos cantos inferiores), cachos de uvas e peras (barra inferior), marmelos, pêssegos e alcachofras (em destaque nas barras da esquerda e da direita), além de rosas e, ao que parece, da murta (barra inferior). Desde a tradição grega que estas duas plantas eram consagradas a Afrodite e símbolos do amor, pelo que a sua figuração se enquadra bem nessa tapeçaria. Em Roma, a murta (ou mirto) era designada por myrtus coniugalis, porque estava associada

58 Cf. Plínio, o Velho, História Natural 15. 122; Panofsky, 1995, p. 135.

à fidelidade conjugal e à fé no matrimónio.58 A Iris germanica, vulgarmente designada como lírio, é uma das espécies mais belas da família das iridáceas e um motivo assíduo nas cercaduras desse período, ocupando habitualmente os cantos inferiores. Para a sua divulgação entre os artistas renascentistas da Flandres pode ter contribuído um célebre

59 Cf. J. A. Levenson, Circa 1492: Art in the Age of Exploration. Washington: Nation Gallery of Art, 1992, p. 297-298.

desenho que Albrecht Dürer (1471-1528) pintou em 1503.59 Na tradição grega, o nome da mensageira dos deuses chama-se Íris, pelo que esta planta foi associada à ligação entre a terra e o céu, entre o mundo dos deuses e o dos homens. Cremos, porém, que a sua função nessa peça é sobretudo ornamental. Já a representação da abóbora, que surge em destaque nos cantos inferiores da cercadura, pode ter em vista a afirmação da importância económica da tapeçaria ou do seu destinatário, uma vez que a planta fora introduzida recentemente na Europa por Cristóvão Colombo e era ainda uma novidade. A abóbora com as pevides à mostra, tal como a laranja e a melancia, é ainda um símbolo de abundância e de fecundidade. Esses sentidos são também expressos pelas uvas e folhas de videira, que evocam uma das culturas mais antigas e importantes da Europa. Talvez os frutos mais relacionados com o tema da tapeçaria sejam o marmelo e a pera. Na poesia grega da época arcaica, o marmelo (ou “maçã da Cidónia”) é geralmente men-

60 Estesícoro, fr. 187 PMG; Íbico, fr. 286 PMG. 61 Na elaboração desse parágrafo seguimos, em geral, os estudos de J. Chevalier et A. Gheerbrant, Dictionnaire des symboles. Paris: Robert Laffont/Jupiter, 1982; H. Baumann, Le bouquet d’Athéna. Les plantes dans la mythologie et l’art grecs. Paris: Flammarion, 1984; L. Impelluso, La naturaleza y sus símbolos. Plantas, flores y animales. Milão: Electa, 2003; Alves e Ferrão, 2005, p. 149.

cionado em contextos eróticos.60 Assim, desde a tradição grega é consagrado a Afrodite, bem como símbolo do amor e da fertilidade do matrimónio. A pera, talvez por causa da doçura e abundância do suco, ou até pelas formas “femininas” do fruto, foi também associada à deusa do amor.61 Por conseguinte, alguns destes motivos botânicos parecem relacionar-se, de facto, com o tema da tapeçaria. Recorde-se ainda que os amantes se acolhem sob a protecção de duas

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árvores que desde a tradição clássica eram consideradas sagradas. O carvalho, consagrado a Zeus e a Júpiter, simboliza força, longevidade, solidez, sabedoria. A árvore representada à esquerda tem sido identificada com uma figueira, mas a folhagem parece ser antes de uma nogueira. Na tradição grega, esta última árvore era associada ao dom da profecia. Em Roma, os noivos recebiam nozes, porque esse fruto era considerado um símbolo da solidez do matrimónio e de fertilidade.62 Caso se confirme essa hipótese, a presença da nogueira sublinhava um dos temas principais do quadro mitológico. Em conclusão, os aspectos em que centrámos a nossa análise corroboram a hipótese de a tapeçaria ter sido fabricada em Bruxelas no segundo quartel do século XVI. Procurámos também mostrar que o seu autor pode ter seguido modelos, como era costume dos mestres tapeceiros, mas criou uma obra original e distinta, que merece uma visita atenta. Fica por fazer a análise comparada com as tapeçarias que, noutras partes do mundo, exibem o mito clássico dos amores de Vénus e Marte.

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62 Cf. Impelluso, ibidem, p. 172-174.


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Luísa de Nazaré Ferreira (Universidade de Coimbra, Coimbra, Portugal) é professora auxiliar do Grupo de Estudos Clássicos da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra e investigadora do Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos da mesma universidade. Doutorou-se em 2005 em estudos clássicos com a tese Mobilidade poética na Grécia Antiga. Uma leitura da obra de Simónides. Tem centrado a investigação nas áreas de literatura grega, cultura clássica e recepção da herança clássica na cultura do Ocidente (“Io e Marpessa – Uma análise dos ditirambos XIX e XX de Baquílides”, Humanitas 60, 2008, p. 57-73; “Temas eróticos na cerâmica ática de figuras negras e vermelhas: alguns exemplos”, in José Augusto Ramos, Maria do Céu Fialho e Nuno Simões Rodrigues (coord.), A sexualidade no mundo antigo, Lisboa: CHUL/CECHUC, 2009, p. 341-350; “O Colosso de Rodes e a sua recepção na cultura ocidental, in José Ribeiro Ferreira e Luísa de Nazaré Ferreira (orgs.), As Sete Maravilhas do mundo antigo. Fontes, fantasias e reconstituições, Lisboa: Edições 70, 2009, p. 93-105). / luisanazare@hotmail.com

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Newton Goto, Desligare, 2006. Descrição: Gráfico – Estatistica de Emissoras de TV mais desligadas.


Identidade, circuito e distância crítica* Giordani Maia

No contexto do panorama artístico atual, a relação entre arte e negociação, tanto no sentido de determinar lugares para ações artísticas como seu desenrolar num entrelaçamento de redes discursivas, parece configurar-se significativamente nas situações de trabalho de vários artistas. Neste artigo, através do conceito de negociação, discutem-se a atuação direta no campo da cultura presente nesses trabalhos e a problemática levantada por Hal Foster em “O artista como etnógrafo”: a analogia entre mapeamento, identidade e distância crítica. Arte contemporânea, circuito, cultura.

Em meados de 1990 a apropriação artística de métodos etnográficos1 – pesquisa de campo e mapeamento de uma comunidade, incluída uma abordagem crítica, *Artigo recebido em dezembro de 2008 e aceito para publicação em março de 2009.

1 Segundo Joseph D. Jamail (professor de antropologia na Rice University – Houston, Texas, EUA), esse atual deslizamento da arte em direção ao campo do outro tem origem nas chamadas críticas de Writing Culture em 1980, que ao fazê-lo incentivou a colaboração interdisciplinar entre arte e antropologia. Informação extraída da internet, disponível em <http://www.scielo.br/scielo.php?> Acesso em 13 de fevereiro de 2005. 2 Em O autor como produtor, Walter Benjamin, sob a influência do teatro épico de Brecht e dos experimentos da fotografia alemã representada pela Nova Objetividade, convoca o artista avançado da época a intervir – como trabalhador revolucionário – nos meios de produção artística, modificar as técnicas dos meios de comunicação tradicionais e transformar o aparato da cultura burguesa. No entanto, isso não se resumia apenas a uma postura politicamente correta, como a de assumir um lugar junto ao proletariado, como benfeitor ou patrono ideológico. Tal postura poderia colocar o trabalhador na posição de um outro passivo – o risco de um clientelismo ou patronato ideológico. Ver Foster, Hal. “El artista como etnógrafo”. In El retorno de lo real. Trad. Alfredo Broton Muños. Madri: Ediciones Akal, 2001, p. 175-209. 3 Foster, op. cit., p. 195.

reveladora do mecanismo textual de produção do conhecimento e da autoridade sobre o outro e sobre as culturas, isto é, a cultura entendida como texto em que se pretende desmascarar e transgredir um regime hegemônico de modos de narração e representação – foi submetida a um comentário crítico por parte de Hal Foster, no qual, com base no texto de Walter Benjamin (O autor como produtor), o autor afirma que o outro cultural ou étnico substituiu a classe operária em cujo nome agora o artista luta. Assim, o que era o local da pesquisa de campo etnográfico tornou-se o lugar de transformação artística – local potencial de transformação política e de subversão da cultura dominante. Nesse deslocamento para o campo do outro, Foster vê o perigo de patronato ideológico para o qual Benjamin já advertira em 1934.2 Boa parte da crítica do autor parece ser baseada no suposto de que nessa política da marginalidade a próxima luta pela cultura não estaria situada em espaços marginais, ou enclaves, mas em um campo de imanência definido pelo capital global multinacional: Hoje o artista como pesquisador de campo pode buscar trabalhar com comunidades estabelecidas com as melhores intenções de engajamento político e transgressão institucional, só em parte, para ter esse trabalho recodificado por seus patrocinadores como proselitismo cultural, desenvolvimento econômico, relações públicas... ou arte.3 Enfim, no quadro dessa política estaria em jogo o risco de idealização do outro cultural – que, no âmbito de uma economia global, dificilmente poderia ser referido como exte-

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rioridade pura – dada pela aproximação demasiada do artista, acarretando um tipo de sobreidentificação que poderia comprometer essa alteridade. Em O artista como etnógrafo vários artistas abordados pelo autor – Renee Green, Adrian Piper, Lothar Baumgartem, Fred Wilson, Clegg & Guttmann, entre outros – são submetidos a um tipo de crítica que situa seus trabalhos na categoria de site-specifics patrocinados para projetos com comunidades, ou seja, que utilizariam esses espaços como sites para arte4 (dos artistas citados anteriormente os dois últimos são, em minha opinião, os que melhor se enquadram nesse caso). Porém, no caso de Green, Piper e Guillermo Gómez-Peña (o terceiro exemplo não é comentado por Foster, mas se enquadraria perfeitamente em sua abordagem), a articulação da diferença, a sobreposição de novas temporalidades (o deslocamento de metanarrativas através de metaperformances), que encenam uma poética de tradução tensionando

4 Nessa problemática o autor também destaca artistas que utilizam o espaço da própria instituição da arte como site. É o caso de Hans Haacke, que através de um mapeamento sociológico de opinião e perfis de visitantes de galerias e museus submete o circuito a críticas explícitas, denunciando grandes corporações patrocinadoras de eventos artísticos e até magnatas do ramo de imóveis de Nova York.

as fronteiras entre centro e periferia, seriam fatores relevantes no sentido de uma intervenção crítica no contexto de articulações entre discursos disciplinares e instituições do saber em outros contextos de cultura. Também no que se refere a um tipo de fantasia primitivista (em que o outro cultural é visto como espaço de subversão)5 presente nessa relação com a

(...) em geral, esta idealização da alteridade tende a seguir uma linha

5 O suposto de uma fantasia primitivista está presente em vários momentos da modernidade, como no simbolismo (destacando a figura de Gauguin), nas primeiras experimentações cubistas e no surrealismo. Estaria também, segundo Foster, nas modernidades produtivistas, ao menos na medida em que o proletariado é visto como primitivo negativamente no sentido de massa como horda original, ou positivamente, como coletivo tribal. Em todos esses casos era tomada como forma de desafiar as convenções do Ocidente (por exemplo, sexuais ou estéticas) ou como forma de acesso a processos psíquicos que estariam vetados ao homem europeu. Na arte quase antropológica essa associação vai-se dar de forma diferente, abordada de forma crítica como no caso dos trabalhos de Renee Green, Guillermo GómezPeña e Adrian Piper.

temporal em que um grupo é privilegiado como novo sujeito da história

6 Foster, op. cit., p. 182.

alteridade, tais trabalhos não deixam de trazer complicações justamente pela forma como tratam o problema: irônica e paródica (no sentido da definição de Lyotard sobre a condição pós-moderna como sendo um estado de incredulidade em relação às metanarrativas). Mesmo quando se dão de forma crítica, porém, tais intervenções são vistas com desconfiança pelo autor: “como perigo de estetização ou fetichização dos significados híbridos e dos espaços fronteiriços”.6 Por intermédio do filósofo italiano Franco Rella7 é exposto o fato de que teóricos tão diversos como Lacan, Foucault, Deleuze e Guattari idealizariam o outro como negação do mesmo, com efeitos deletérios sobre a política cultural:

unicamente para ser deslocado por outro, uma cronologia que pode entrar em colapso não só com várias diferenças (sociais, étnicas ou sexuais), mas também com diferentes posições dentro de cada diferença.8

7 Ver Rella, Franco. The Myth of the Order. Trad. Nelson Moe. Washington: Maisonneuve Press, 1994. 8 Foster, op. cit., p. 182.

A questão é que já nos anos 60 e 70 esse mergulho no campo da cultura começa a se delinear. Parcela significativa do que se tem feito em termos de arte, de lá para cá, em vários países da América Latina, aliás, parece decididamente assumir sua situação de periférico, localizando-se justamente nesses espaços fronteiriços, nessas zonas mistas e dificilmente situados num locus fixo.9 Na instalação intitulada El año del oso blanco (1992) de Guillermo Gómez-Peña – artista mexicano radicado nos Estados Unidos – um sítio arqueológico mostra a justaposição violenta, ainda que cômica, de arte pré-colombiana e colonial, artigos turísticos e arte contemporânea. Ou seja, a premissa do trabalho é assumir um centro fictício e empurrar a cultura anglo-saxônica até as margens, tratá-la como exótica, desfamiliarizá-la, para assim convertê-la em objeto de estudos antropológicos. Trata-se

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9 Sobre essa questão ver Ramirez, Mari Carmen. “Circuito das heliografias: arte conceitual e política na América Latina”. In Arte&Ensaios. Rio de Janeiro: UFRJ. n. 8, 2001. p. 154-163.


de uma antropologia invertida, em que os signos são colocados entre parênteses, e quem assume o papel de explicar aqueles trabalhos é o próprio artista convertido em cronista e antropólogo – não como mexicano vivendo nos Estados Unidos, mas como alguém que estivesse vendo aqueles artefatos pela primeira vez em um futuro fictício. Outro exemplo que pode ser aqui situado é Projeto Camelô (grupo spmb – Eduardo Aquino e Karen Shanski). No trabalho, dispositivos de troca são ativados com o objetivo de captar a instituição artística (Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro) e o público, pensado não apenas como visitante dentro do espaço de exposição, mas também como realidade social dentro do aparato urbano e suas diferentes realidades (nesse caso, comunidades dos morros Babilônia e Chapéu Mangueira e membros da elite carioca). A proposta, inspirada nas atividades ilegais do comércio informal, comum nos centros urbanos brasileiros, tenciona questionar as diferenças entre ricos e pobres através de um comentário crítico sobre a condição urbana da cidade – desdobra-se a ideia de distância mais como fator social do que espacial. No espaço expositivo do MAM um conjunto com 100 maquetes exibidas sobre mesinhas tradicionais de camelô foram oferecidas, por cartas, aos 100 cidadãos mais ricos e influentes da cidade (que, aliás, não demonstraram nenhum interesse em participar do projeto) em troca de um valor monetário. O eventual dinheiro da transação seria revertido na criação de jardins nos conjuntos comunitários das favelas citadas. Nesse entrelaçamento de circuitos, ou curto-circuito entre diferenças, questões relacionadas à institucionalização da arte e seu valor de mercado são discutidas em um sentido mais amplo. Aqui o valor é o próprio processo de negociação que ao se estender para um lugar fronteiriço, de alguma maneira fora de sistemas de significação totalizantes, é capaz de introduzir inquietação. No entanto, note-se que a eficácia do projeto é contingente, aberta, indefinida; não há nada que garanta que as maquetes sejam adquiridas, restando assim o valor do trabalho como valor de arte. Porém, se visto pelo ângulo de um comentário crítico a respeito das diferenças sociais, o trabalho atinge diretamente seu alvo. Sublinha o contraste entre 10 Para mais informações ver Aquino, Eduardo; Shanski, Karen. “Projeto Camelô”. In Item. Rio de Janeiro: Ed. Casa da Palavra. n. 6, 2003, p. 50-57. 11 Essa questão é tomada com base nos comentários de Martin Grossmann a respeito de uma tendência de retorno à ordem, impulsionada pelo mercado de arte durante a década de 1980. É diretamente ligada ao fenômeno de mudança de uma postura experimental, irônica e questionadora (presente nos artistas dos anos 60 e 70), para uma acomodação generalizada reforçada pelo surgimento do que ficou conhecido como Geração 80. Ver Gossmann, Martin. “Arte Contemporânea Brasileira: A Procura de um Contexto”. In Basbaum, Ricardo (org.). Arte Contemporânea Brasileira: texturas, dicções, ficções, estratégias. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2001, p. 350-358 (publicado originalmente em Trilhas, v. 6, n. 1. Campinas, jul/dez, 1997).

essas diferenças no quadro da concentração de riqueza nas mãos de uma minoria e assim questiona seu papel empreendedor (não confundir com caridade) no âmbito social (para não dizer cultural, ou seja, como consumidores de arte).10 Projeto Camelô revela questões que perpassam a proposta inicial. Expõe a incapacidade do aparato institucional em criar condições para que o problema da arte seja introduzido num debate público e, nessa esteira, expõe uma situação de mercado impulsionada por gosto cuja demanda é centrada quase exclusivamente na venda de arte como produto e não como “idéias ou projetos”.11 A visão que se tem é a de que tais artistas articulariam suas estratégias desintegradoras no âmbito de desconstrução e negociação do signo, seja com ênfase num indeterminismo do juízo cultural e político como forma de articulação de diferenças culturais, seja no campo do próprio circuito da arte como forma de entrelaçamento de redes discursivas (interconexão de polos que procederiam em lados opostos e, assim, em lugares de enquadramentos duplos).

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Como sublinhado na astuta observação de Hal Foster, uma política de marginalidade se faz problemática em um campo de imanência definido pelo capital global: (...) Assim, se celebrarmos o hibridismo e a heterogeneidade, devemos recordar que são termos privilegiados do capitalismo avançado, que o multiculturalismo social coexiste com o multiculturalismo econômico. Na nova ordem mundial a diferença também é um objeto de consumo, como bem sabem megacorporações como Coca-Cola (Somos o mundo) e Benetton (Cores unidas).12

12 Foster, Hal. “Y qué pasó con la posmodernidad?” In El retorno de lo real, op. cit., 2001. p. 216.

Não creio que tais problemas não sejam levados em conta nesses trabalhos; pelo contrário, o que vejo desdobrar-se seria exatamente a recusa de uma posição marcada, um tipo de traição (aquela do tipo deleuziano) em que o gesto dos múltiplos convive e insiste em se cruzar, não sem dúvidas e acertos, erros ou desequilíbrios. A discussão de tais trabalhos, no âmbito da negociação, poderia ser localizada nas fronteiras, pensando-se em desenrolamentos mais do que em limites, e nesse sentido a questão é mais espacial do que temporal, pois aí se dariam não uma, mas várias temporalidades. Circuitos de identidades O problema da identidade colocado por Foster no contexto desses trabalhos parece situarse justamente na problemática relação entre tempo e espaço. Em primeiro lugar, quanto ao problema de localizar o esquema de representação desse exterior-outro numa posição espacial e temporal em que a visibilidade representacional é a localização do primitivo como espaço de subversão da cultura dominante e, como bem comenta, “Hoje em dia, em nossa economia global, o suposto de um exterior-outro é quase impossível”.13 E em segundo lugar, o perigo de uma política que corre o risco de colocar em colapso uma linha temporal que poderia consumir esses sujeitos históricos antes que se tornem historicamente eficazes. Observa-se nos dois casos predomínio do espaço sobre o tempo, questão diretamente ligada aos conceitos de Paralaxe e Ação Diferida, pontos-chave que norteiam toda a discussão de Return of the real. Tais conceitos podem rer resumidos da seguinte forma: 1) O eixo paralático é definido em dois vetores: um vertical (temporal) e outro horizontal (espacial). No que se refere ao eixo vertical este estaria relacionado às condições materiais da arte (condições do meio); o eixo horizontal está ligado diretamente à cultura. Na arte quase etnográfica haveria uma descontinuidade entre esses eixos, com um deslocamento maior em relação ao horizontal. 2) A noção de paralaxe diz que a construção do passado depende de nossa posição no presente; consequentemente, esta é redefinida por essa construção do passado numa mutabilidade interminável. A reflexividade do espectador envolta nessa noção se antecipa também em outra fundamental: a de Ação Diferida. Em Freud, um acontecimento se registra como traumático unicamente se há um acontecimento posterior que o recodifica, retroativamente, em ação diferida. Com base nessa tese o autor propõe que a significação

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13 Foster, Hal. “El Artista como etnógrafo”. Op. cit., p. 182.


dos acontecimentos de vanguarda se produz de modo análogo, mediante a alternância de antecipação e reconstrução, ou seja, os atos de ruptura ou fundacionais apenas o são 14 São momentos de trauma, de compulsão à repetição que se dá mediante uma complexa alternância de futuros antecipados e passados reconstruídos.

quando confirmados uma segunda vez.14 O minimalismo pode ser visto como síntese das questões acima; para o autor ele é ponto crucial em que uma ação diferida opera um trauma. Em um movimento retroativo de releitura o minimalismo alcança o ápice da modernidade ao mesmo tempo em que, em movimento contrário a este, rompe com ela: aspectos da especificidade modernista são levados

15 Pense nos ataques de críticos da época como Greenberg e, principalmente, Michael Fried. Ver Fried, Michael. “Art and Objecthood”. In Art and objecthood: essays and reviews. Chicago: University of Chicago Press, 1998. Texto publicado originalmente em Artforum, n. 5 (junho de 1967).

a extremos, ao mesmo tempo em que ocorre uma ruptura com seu essencialismo idealista.15 Por exemplo, ao romper com a base da escultura, a obra é lançada diretamente no espaço de ação do observador, e a experiência fenomenológica (sujeito/objeto) permeada por uma pureza de concepção da percepção de um corpo em espaço e tempo particulares é ameaçada. A conexão física com o mundo real em tensão, com o espaço mental de concepção idealista acaba por enfatizar a natureza do significado e o status do sujeito, coisas tidas como públicas e não privadas. Tais experimentos darão sequência a uma série de investigações que perpassam os constituintes materiais do meio artístico, suas concepções materiais e de percepção e, finalmente, as bases corpóreas de percepção: “(...) com tais experimentos a instituição da arte prontamente deixou de ser descrita em termos unicamente espaciais (estúdio, galeria ou museu), tornando-se gradualmente uma rede discursiva de diferentes

16 Ver Foster, Hal. “El Artista Como Etnógrafo”, op. cit., p. 188-189.

práticas e instituições, outras subjetividades e comunidades (...)”.16 Vale lembrar que para o autor a minimal ainda apresenta uma fenomenologia residual, a relação com o espaço, ainda que problematizada, é imanente, ou seja, destituída de um reconhecimento social daquele espaço. Digamos que, embora tensionados, os eixos vertical e horizontal ainda eram operantes. O problema (para Foster) é que à medida que esse transbordamento em direção à cultura se intensifica, vários artistas trabalharão cada vez mais horizontalmente em movimento sincrônico com tais questões (passando de tema em tema: a fome, a doença, a política, o outro cultural...), o que significa um comprometimento diacrônico com as formas disciplinares do meio da arte (os modos verticais de se operar). Entre-espaços, esquizofrenia e negociação Antes de continuar com esse assunto tomo a liberdade de fazer algumas observações a respeito da abordagem de Frederic Jameson sobre a condição do sujeito pós-moderno, pois nelas vejo algumas analogias em relação à descontinuidade entre espaço e tempo que permeia a crítica de Foster. O pós-modernismo para Jameson é termo duplamente escrito; como nomeação de um

17 Ver Jameson, Frederic. Pós-modernismo, a lógica cultural do capitalismo tardio. São Paulo: Ed. Ática, 1997. 18 Ver Bhabha, Homi. “Como o novo entra no mundo: o espaço pós-moderno, os tempos pós-coloniais e as provações da tradução cultural”. In O local da cultura. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2002, p.295.

acontecimento histórico – o capitalismo tardio multinacional –, a pós-modernidade oferece a narrativa periodizante das transformações globais do capital.17 Segundo Homi Bhabha, ao elaborar uma genealogia do sujeito fragmentado no quadro cultural pós-moderno, Jameson usa da linguagem psicanalítica – “o colapso da cadeia significante na psicose” – em que é o sujeito esquizoide ou “cindido” que articula com mais intensidade a disjunção entre tempo e ser que caracteriza a sintaxe social da condição pós-moderna.18 Ou seja,

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no esforço de entender a condição pós-moderna Jameson analisa os artefatos culturais como portadores de elementos ideológicos, e que portanto servirão para a efetivação de processos necessários à presente fase do capitalismo – mas também contendo elementos utópicos, embora na forma inconsciente, amiúde distorcida e recalcada, que refletem nosso imaginário mais profundo sobre a maneira como vivemos em sociedade e a respeito de como deveríamos organizar a vida social. O desafio de Jameson está em como transformar essa “disjunção esquizofrênica” em um espaço discursivo politicamente eficaz. Segundo Bhabha, em Jameson, a temporalidade psicanalítica, eu própria, confere valor cultural e político à enunciação do ‘presente’ – seus tempos deslocados, suas ansiedades afetivas. Colocado no roteiro do inconsciente o presente não é nem um signo mimético da contemporaneidade histórica (a imediatidade da experiência), nem o marco final visível do passado histórico (a teleologia da tradição).19

19 Idem, ibidem, p. 296.

Note-se que essa disjunção retórica e temporal é afim à Ação Diferida (base da tese de Foster sobre o retorno das vanguardas), e a tentativa de conter esse espaço disjuntivo é linear ao problema que aponta como uma das principais preocupações de The return of the real: a coordenação dos eixos vertical (temporal) e horizontal (espacial) na teoria da arte. A releitura que Bhabha faz de Jameson é significativamente instrutiva no sentido da discussão em pauta. Se em Jameson vislumbra-se a ansiedade de unir o global e o local, o dilema de projetar um espaço internacional sobre os vestígios de um sujeito descentrado, fragmentado, aqui a globalização é figurada nos entre-lugares de enquadramentos duplos: “sua originalidade histórica, marcada por uma obscuridade cognitiva; seu ‘sujeito’ descentrado, significado na temporalidade nervosa do transnacional ou na emergência provisória do ‘presente’”.20 O autor sustenta que, esteja em questão a emergência de novos

20 Idem, ibidem, p.297.

sujeitos históricos ou, um pouco mais tarde, o novo espaço internacional, a argumentação se move intrigantemente para além do escopo da descrição teórica do signo do presente.21 Assim, o que deve ser mapeado é justamente o problema de significar essas passagens intersticiais e os processos de diferença cultural que são inscritos nos entre-lugares, na dissolução temporal que tece o texto global. É, ironicamente, o momento, ou mesmo o movimento desintegrador da enunciação – aquela disjunção repentina do presente – que torna possível a expressão do alcance global da cultura. E, paradoxalmente, é apenas através de uma estrutura de cisão e deslocamento – ‘o deslocamento fragmentado e esquizofrênico do eu’ – que a arquitetura do novo sujeito histórico emerge nos próprios limites da representação, ‘para permitir uma representação situacional por parte do indivíduo daquela

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21 Idem, ibidem, p. 298.


totalidade mais vasta e irrepresentável, que é o conjunto das estruturas 22 Idem; grifo meu.

da sociedade como um todo”.22 É justamente nas lacunas – no presente histórico de uma narrativa desintegradora – que poderiam ser situados vários desses trabalhos, dentro mesmo de uma investigação desta totalidade vasta do irrepresentável: as renomeações fantásticas dos sujeitos da diferença cultural. Mais do que simplesmente assumir o papel de porta-voz de uma determinada comunidade, o que parece estar em questão aqui é o espaço-tempo não sincrônico da troca, seja através do espaço da instalação ou do tempo transitivo do corpo em performance. Isso é bem nítido em trabalhos como Inserções em circuitos ideológicos (1970), de Cildo Meireles, Sites of genealogy, de Renée Green, Poema (1999), de Marssares, Projeto Cão Mulato, de Edson Barrus, Fiteiro cultural, de Fabiana de Barros, Vazadores, de Rubens Mano (apresentado na XXV Bienal de São Paulo, 2002), e, de forma mais discreta, nas NBP, de Ricardo Basbaum (citando alguns exemplos). Igualmente significativas são as curadorias de artistas, como na mostra Circuitos Compartilhados, de Newton Goto, cuja proposta é o mapeamento e exibição de registros de ações artísticas em circuitos autodependentes, ou seja, pesquisa e registro de trabalhos de cunho experimental, político ou ativista que dificilmente circulariam em espaços

23 Muito mais do que mostra é um trabalho de pesquisa do artista que resultou numa coleção de vídeos e filmes, ao todo 35 DVDs com 225 títulos de ações artísticas autodependentes ocorridas no Brasil desde os anos 70 até a atualidade. Complementando a ação política do projeto, o acervo está sendo compartilhado, através de copiagem de material, entre 150 destinatários no Brasil, artistas participantes, museus, instituições culturais e pesquisadores (informação fornecida pelo próprio artista).

comerciais como galerias de arte ou instituições oficias como museus e espaços culturais.23 Fica claro que Foster reconhece todos esses espaços e signos intersticiais e disjuntivos; no entanto, ao localizá-los, olha com desconfiança a temporalidade de deslocamento que é o principal meio de comunicação desses trabalhos – para o autor o deslocamento horizontal necessita ser contido num eixo vertical. Seguindo a discussão instigada por esses trabalhos, estudiosos como Néstor Garcia Canclíni e Mari Carmen Ramírez (entre outros) irão abordar a questão da identidade como articulação ambulante, ambivalente. Tal articulação está relacionada à problemática da crise do sujeito em que, se a nação, como diz Bhabha, é a medida da liminaridade da modernidade cultural, na pós-modernidade ela deixa de ser paradigma. Fragilizadas as fronteiras, desfaz-se o projeto narrativo de um povo com identidade única, para que a diferença seja encenada: Os próprios conceitos de culturas nacionais homogêneas, a transmissão consensual ou contígua de tradições históricas, ou comunidades étnicas ‘orgânicas’ – enquanto base do comparativismo cultural – estão em

24 Bhabha, op. cit., p. 24. 25 Ramírez, Mari Carmen. “Identidad o legitimacion. Apuntes sobre la globalizacion y arte em América Latina”. In Resende, Beatriz; Hollanda, Heloisa Buarque (orgs.). ArteLatina. Rio de Janeiro: Ed. Aeroplano, sd. Também disponível em http://acd.ufrj.br/pacc/artelatina/mari.html.

profundo processo de definição.24 Por exemplo, Mari Carmen Ramírez,25 ao abordar a crescente participação de artistas latinoamericanos no processo de globalização e seus contextos artísticos, afirma que esta resulta numa rearticulação de margens tanto econômicas como culturais, em que esses artistas deixam de se apoiar em metadiscurssos de cunho nacionalista ou narrativas folcloristas, mostrando mais do que nunca sua capacidade para responder – boa parcela de forma crítica – aos estímulos globalizantes da cultura contemporânea. Ao mesmo tempo em que há um

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diálogo com o legado das correntes vanguardistas históricas e as experiências fundamentais dos anos 60 – desde o conceitualismo e a arte objetual com raízes em Marcel Duchamp –, também ocorre um reajuste e transformação desses legados através da colocação em cena de questões e problemas locais: “Este deslocamento seria como uma zona de negociação e renegociação do legado da tradição artística de nosso século”.26 É nessa zona de tensão que

26 Idem.

novos problemas são colocados, e, no que tange à identidade, esta implica uma rearticulação de territórios e fronteiras (econômicas e políticas). Também para a autora o problema não está em uma afirmação da identidade e sim em sua negociação, cujo resultado é de legitimação no panorama global: “no âmbito da arte e seus circuitos de legitimação”.27

27 Idem.

Talvez o conceito de antropofagia, embora datado, possa situar tais trabalhos tanto no contexto das complicações apontadas por Foster como no âmbito de perplexidade histórica sustentada por Bhabha. Sobre isso, algumas questões discutidas por Eduardo Subirats28 se fazem pertinentes. O autor esboça uma crítica da sociedade capitalista tardia a partir de um

28 Subirats, Eduardo. A penúltima visão do paraíso. São Paulo: Studio Nobel, 2001.

olhar ético e estético, partindo do drama latino-americano (de certo modo ibero-americano) cujo atraso – incluído o próprio genérico de Terceiro Mundo – não é abordado como problema periférico da civilização capitalista. Pelo contrário, é dado como aspecto constituinte do conceito de modernidade como momento central dos grandes discursos epistemológicos, histórico-filosóficos, políticos e morais das metrópoles europeias. Em outras palavras, trata-se de uma crítica da modernidade a partir da situação latino-americana, ponto em comum com o quadro de contramodernidade articulado por Bhabha.29 O olhar ético e estético é pautado por uma crítica (entre outras preocupações) na esteira dos vários momentos das vanguardas artísticas da América Latina, especialmente o Movimento Antropofágico. A radicalidade do Movimento Antropofágico reside em sua inversão da dialética racionalização/destruição da memória, que distingue o papel

29 “(...) Além disto, no entanto, a crítica pós-colonial dá testemunho desses países e comunidades – no norte e no sul, urbanos e rurais – constituídos, se me permitem forjar a expressão, ‘de outro modo que não a modernidade’. Tais culturas de ‘contramodernidade’ pós-colonial podem ser contingentes à modernidade, descontínuas ou em desacordo com ela (...)” (Bhabha,op. cit. p. 26).

globalizador das vanguardas ao longo do século XX. A antropofagia brasileira invertia o discurso das vanguardas européias e da definição da modernidade como um modelo externo, uma nova figura de colonização estética e política. Mais que nenhuma outra corrente artística do século XX, na América ou na Europa, ela formulou, além disso, um projeto original de civilização não redutível às categorias do progresso capitalista ou tecnológico industrial.30 É marcante a forma como busca localizar tais questões no panorama atual pois, se a antropofagia cultural empreendida pelos modernistas da década de 1920 de certa forma garantiria identidade nacional e cultural, hoje, esse ato, se identificado nas artes ou na literatura, já não tem essa intenção, tanto que o termo antropofagia é substituído por canibalismo. Segundo o autor, o que seria praticado na “pós-modernidade” é uma espécie de canibalização desconstrucionista ou hibridista, não mais aquela pleiteada por Oswald de Andrade, que objetivava assimilar a experiência estrangeira e reinventá-la em termos de Brasil. Assim, se a antropofagia foi articulada como o desejo de imprimir nossa modernidade, o canibalismo

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30 Subirats, op. cit., Introdução.


Marssares. Poema, 1999. Computador e caixas de som instaladas na carroceria de um “burrosem-rabo”. Caminhada de Copacabana até a passarela subterrânea no Aterro do Flamengo (imagem de frame do vídeo).

– não significando comer ou devorar o outro, mas sim se multiplicar a partir do outro – é vontade de questionar fronteiras e limites, ato de interpenetração. Enfim, enquanto a modernidade brasileira desejava consolidar uma visão de mundo legítima, na pós-modernidade essa certeza é substituída pela dúvida, em que, não há espaço para verdades, origem ou hierarquias. Se por um lado canibalismo vai de encontro ao hibridismo de Bhabha, ele também perpassa as preocupações de Foster – principalmente no sentido de multiplicação a partir do

31 No contexto da argumentação de Subirats, esse fenômeno também está ligado aos problemas detonados pela globalização: “No Brasil dos últimos anos a antropofagia foi interpretada num sentido muito similar: a Antropofagia como boca grande que come tudo; antropofagia como expressão de uma civilização pós-moderna que se devora a si mesma até os limites da guerra total contra o ambiente, contra as culturas históricas residuais do Terceiro Mundo, do extermínio biológico, e de uma globalização progressiva do espetáculo de uma violência ressacralizada pela mídia (...)” (Subirats, op. cit., p. 12).

outro. Multiplicação como apropriação do corpo do outro sem seu consentimento.31 No entanto, aqui a questão poderia ser invertida, o outro não mais seria a vítima periférica da qual o artista assume o papel de porta-voz (ou não se reduziria a isso apenas), ela, a vítima, também pode ser a própria estrutura discursiva dos centros hegemônicos. O ato canibal, pensado dessa forma, não representaria apenas a apropriação dos valores do outro, mas igualmente a tentativa de desapropriação desse outro através de uma relação com o não determinado. Esse ponto de interrogação é o devir que se desdobra não mais como ponto de distinção, e esse momento é flagrado pela experiência artística como experiência que se predispõe a negociar e renegociar a identidade de acordo com sua própria experiência e com eixos que permitem questionar certos modelos que conduzem a uma visão mitificada de tradição.

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Giordani Maia (UFRJ, Rio de Janeiro, Brasil) é artista, graduado no curso de Licenciatura em Historia da arte (UERJ); Mestre em Linguagens Visuais (PPGAV – EBA/UFRJ). / giordanimaia@gmail.com

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O sagrado na imagem, o ouro na arte: montagem, atravessamento e perda* Luciane Ruschel Nascimento Garcez e Sandra Makowiecky

O artigo estabelece conexão entre Casulos (1980-2008), peças em ouro de Hubert Duprat (1957) – obra de arte contemporânea de um artista francês que vem produzindo e mostrando esse trabalho há mais de duas décadas –, e os sarcófagos egípcios – obras de mais de três mil anos que contêm grande carga simbólica e ritualística. Sarcófago de ouro de Tutankhamon. Fonte: Lambelet, Edouard. Egyptian Museum Cairo – Illustrated guide of the Egyptian Museum. 4th edition. Cairo, Egypt: Nubar Printing House, 1989.

Casulos, sarcófagos, arte contemporânea. Será possível descrever com palavras a sensação de estar diante de um sarcófago1 egípcio? Como contar um sentimento, uma sensação, um sonho? Ou é

*Artigo recebido em janeiro de 2009 e aceito para publicação em fevereiro de 2009.

1 Existem sarcófagos que foram feitos há mais de 3.000 anos; confeccionados em madeira e cobertos com folhas de ouro, algumas vezes tinham pequenos e finos barretes de ouro ao longo da peça, formando desenhos que eram preenchidos com vidro colorido e pedras preciosas, outros eram desenhados e coloridos com a técnica da esmaltação, muito utilizada na ourivesaria. Foram encontrados também em algumas tumbas, minissarcófagos, confeccionados de maneira equivalente e igual acabamento, e que serviam para guardar as vísceras do faraó. 2 Essa palavra é usada no sentido de que o espectador tem a sensação frente à imagem; esta lhe causa um sentimento que o preenche, de certa maneira, mas isso é uma experiência interior, sua, não há garantias de que outra pessoa sinta o mesmo frente àquela imagem. 3 Essas larvas estão no planeta há milhões de anos. São conhecidas por construir casulos com o dejeto dos rios em que se encontram, em atividade mimética. Ao transportar essas larvas para aquários, Duprat modifica sua referência, constroem suas crisálidas com o material que o artista e elas deposita ali.

algo tão grande, tão privado,2 que não pode ser traduzido em palavras? O sarcófago não foi feito para ser traduzido em palavras. Foi feito sim com um fim ritualístico, sagrado, um casulo que deveria levar a alma da pessoa para sua vida eterna, para o além-túmulo. Provavelmente os artistas que produziram essas obras tão grandiosas jamais imaginaram que seriam profanadas por olhos humanos nem que haveria tentativas de traduzi-las em palavras, vãs tentativas de alcançar sua magnitude com a fala. Sarcófagos são exemplos de uma arte que não mais existe, peças milenares que continuam estarrecendo o espectador, exemplos de imagens em que o sagrado encontra abrigo, por sua função, por seu processo, pela finalidade com que foram produzidos. Arte tumular, feita para o olhar dos deuses, não dos humanos. Estar diante de um sarcófago é estar diante do proibido. Hubert Duprat (1957), artista francês, trabalha com o que há de mais precioso na natureza: ouro, diamantes, pérolas, turquesas, corais, rubis, esmeraldas. Ele disponibiliza esse material em aquários previamente preparados para que com ele larvas tricópteras3 teçam seus casulos. Duprat apresenta esses casulos como se fossem jóias, também mostra filmes que exibem várias fases do processo de feitura dos casulos. Mas a obra não é perene; como o artista não interfere no resultado final e as pepitas e pedras ficam conectadas por uma secreção que a larva expele formando sua crisálida, o casulo tem tempo limitado de vida. Quando essa seda, que é o elemento que mantém as peças unidas, seca, o material se desprende, dando fim ao casulo, que já não é mais necessário à larva, uma vez que ela se transforma em mariposa (ver figura página seguinte à esquerda).

O sagrado na imagem, o ouro na arte Luciane Ruschel Nascimento Garcez e Sandra Makowiecky

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Essa obra fala de paradoxos: o artista trabalha com um metal dos mais duráveis que existem, pedras que, sem a ação do homem, não têm tempo de vida determinado, e ainda assim sua obra não dura muito. O artista fala do efêmero na arte e na vida, fala da instabilidade e da fragilidade do que nos rodeia, de coisas a relações. Ao não interferir no

Hubert Duprat. Larvas aquáticas Tricópteras com casulo, 1980-2006. Ouro, turquesas / Ouro, pérolas, dimensões variáveis de dois a 3cm. Foto: Jean-Luc Fournier. Fonte: Imagem cedida pelo artista.

produto final, Hubert Duprat prioriza o processo de criação da obra, o conceito que gerou esse trabalho. Ao reaproveitar os materiais, e uma vez que ele vem fazendo esse trabalho desde 1980, os Casulos de ouro tornam-se série, reproduções sem original, cópias sem matriz (ver figura acima à direita). Ao utilizar ouro como matéria em seus casulos, o artista está, contudo, trazendo uma simbologia milenar para essas peças frágeis e impactantes, o que faz com que essa obra tenha forte referência na arte tumular egípcia; o que são seus Casulos de ouro senão pequenos sarcófagos que dão abrigo à larva durante sua passagem à condição de mariposa? Não é essa a função do sarcófago? Abrigar o espírito humano durante sua passagem para o outro mundo? Os Casulos invocam o caráter de sagrado em sua imagem devido ao material de que são constituídos: o ouro, material de alta carga simbólica e que também era usado nos sarcófagos e em diversos artefatos ritualísticos, aliás, não só no Egito antigo, mas ao longo da história; exemplo disso é o uso que a Igreja católica vem fazendo dele há diversos séculos. A respeito de matéria e simbologia, abrem-se outras janelas para explorar o assunto. Quando se começa a refletir sobre a matéria, impressiona a carência da causa material na filosofia estética. Perguntava Bachelard: “Não haverá uma individualidade em profundidade que faz com que a matéria seja, em suas menores parcelas, sempre uma totalidade?”4 Sobre esse aspecto, salienta que não se trata de impor à matéria conceitos já estabelecidos, pois ela possui seu próprio ser. Ela será sempre poética para a intencionalidade do “olhar” do artista que busca suas imagens. O autor fala da ressonância e da repercussão.

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4 1998, p. 3.


Na repercussão sente-se um poder poético e após ser tocado pela obra, entende-se a ressonância como sendo os sentimentos e recordações. Acredita Bachelard que “uma doutrina filosófica da imaginação deve antes de tudo estudar as relações da causalidade material 5 Idem, ibidem, p. 3.

com a causalidade formal (...). As imagens poéticas têm, também elas, uma matéria”.5 A matéria se transforma então em símbolo que, segundo Gadamer, são pedaços de recordação, um fragmento vital em que ocorre a comunicação e aparece o próprio ser da obra. A experiência do simbólico significa que este algo único, este algo especial representa-se como um pedaço do ser que promete completar o algo a ele correspondente, a fim de sanar os efeitos da quebra, curálo, de integrá-lo, ou ainda, que o que completa o todo, o outro pedaço

6 1985, p. 51.

quebrado, sempre procurado, torna-se nosso fragmento visível.6 Merleau-Ponty, em Fenomenologia da percepção, diz que não se deve apenas olhar a obra com os olhos, mas percebê-la, fazê-la existir, apreendê-la, vivenciá-la, deve-se “entranhar-se nela”. Carl Jung defende a ideia de que o símbolo está baseado em uma crença e é utilizado para representar conceitos que não se consegue definir ou compreender integralmente. Os símbolos são resultantes da associação do homem e aparecem quando há necessidade de expressar algo que não se logrou de outra forma. A relação entre o homem e a matéria também se apoia em questões simbólicas por não ter conseguido até o momento dar conta de sua complexidade. Ao se relacionar essa questão com a estética há que concordar com Weitz: A teoria estética é uma vã intenção de definir o que não pode ser definível, de determinar as propriedades necessárias e suficientes daquilo que não tem propriedades necessárias e suficientes, de conceber um conceito fechado de arte, quando seu mesmo uso revela e exige sua

7 Apud Silva, 1995, p. 110.

abertura.7 Com essa citação, traz-se a possibilidade de leitura dessas obras, e a filosofia auxilia essa abertura, auxilia possíveis olhares, para melhor compreensão e apreensão da obra. Nesse sentido, é o “que não pode ser definível” de que Weitz está falando que traz os simbolismos ao ouro, que traduz e sacraliza as imagens em questão. Então, ao mesmo tempo em que esses casulos invocam sacralidade, eles também são exemplos de profanação, pois quando se está diante de um casulo que em vez de proteger a larva, tornando-a invisível em seu meio, faz dela o centro das atenções, objeto de desejo e admiração, essa palavra vem à mente. Não seria essa uma profanação da imagem, como o sarcófago egípcio levado a público?

O sagrado na imagem, o ouro na arte Luciane Ruschel Nascimento Garcez e Sandra Makowiecky

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Ambas as obras falam do efêmero e do imortal, do profano e do sagrado; o paradoxo faz com que o espectador mergulhe em sua imagem para despertar modificado, como se retornando depois de transitar entre dois mundos. Ambas falam do mistério da imagem que toca todos os sentidos. Nesta reflexão pensa-se a imagem como montagem, como atravessamento e como perda. Colocam-se lâminas que permitam outras possíveis reflexões e relações acerca da obra. Montagem no sentido de que à imagem se agregam diferentes conceitos e olhares, essas camadas vão formando a imagem. Atravessamento porque no momento em que se está diante da imagem, e ela olha o espectador, é como se diversas temporalidades a atravessassem, diversas imagens, muitas outras referências, tudo se conflui para a imagem em questão, e nesse momento ela fica contaminada; contaminada pelo olhar do espectador. Daí vem a perda, quando a imagem passa a ser outra coisa, recheada de outros conceitos, significações, temporalidades, com outros olhares a lhe darem forma. O que está em questão na imagem não é o visual, é o que constitui a imagem, aquilo de que ela é formada; a questão é o que se vê quando se vê uma imagem. Assim pensam-se os sarcófagos e os Casulos, imagens que representam muito mais do que dão a ver. O diálogo é muito mais extenso e complexo do que se supõe à primeira vista. Quando uma imagem se contrapõe à outra, várias cintilações acontecem, o que enriquece esse diálogo. Os sarcófagos também pressupõem a imagem como crença, de acordo com Didi-Huberman: O homem da crença prefere esvaziar os túmulos de suas carnes putrescentes, desesperadamente informes, para enchê-los de imagens corporais sublimes, depuradas, feitas para confortar e informar – ou seja, fixar – nossas memórias, nossos temores e nossos desejos.8

8 1998, p. 48.

Em um parágrafo no qual Didi-Huberman fala sobre tumbas cristãs – mas a ideia pode ser facilmente transposta para os sarcófagos egípcios –, ele observa que, imaginando o túmulo como um algo mais, as tumbas deveriam esvaziar-se de seus corpos para se encher de algo “que não é somente uma promessa – a da ressurreição -, mas também uma dialética muito ambígua de astúcias e punições, de esperanças dadas e ameaças brandidas”; e, continua, afirmando que essa estrutura de crença só vale pelo “jogo estratégico de polaridades, pois a toda imagem mítica é preciso uma contra-imagem investida dos poderes da convertibilidade”.9

9 1998, p. 43.

O sarcófago presentifica a alma do ser que se foi, assim como o casulo presentifica a larva; ambos falam da experiência da perda, da memória, da vida que tenta ser retida e da qual o que resta é sua marca, a impressão de um corpo que um dia esteve ali; são “volumes dotados de vazio”; é um jogo de próximo e distante, de aparecimento e desaparecimento.

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Estar diante dessas obras é suspender o tempo, é o momento em que tudo conflui para essa imagem, e suas temporalidades falam, criam voz e tocam o espectador. Mais do que só uma imagem, é diante da história de um povo que o espectador se encontra. Diante de um sarcófago, só em silêncio é que se pode apreendê-lo; as palavras profanam sua sacralidade e não alcançam seu teor de eternidade, de além-mundo. O sarcófago, parafraseando Didi-Huberman, é um objeto visual que mostra a perda, a destruição, o desaparecimento dos objetos ou dos corpos. Estar diante de um sarcófago é uma experiência de cisão, porque ao mesmo tempo em que se está diante de um túmulo, diante de uma obra de arte feita por mãos humanas, se está diante de um corpo em decomposição, um ser que nunca mais será visto com vida por olhos humanos. É experiência que fala da perda do ser amado e também do futuro de cada ser humano, da morte certa e inquestionável, do lugar em que todos se encontrarão um dia; trata-se da “imagem impossível de ver” daquilo que “me” fará o igual e o semelhante desse corpo. Sobre esta experiência Georges Didi-Huberman comenta: Por um lado, há aquilo que vejo do túmulo, ou seja, a evidência de um volume (...) Por outro lado, há aquilo, direi novamente, que me olha: e o que me olha em tal situação não tem mais nada de evidente, uma vez que se trata ao contrário de uma espécie de esvaziamento. Um esvaziamento que de modo nenhum concerne mais ao mundo do artefato ou do simulacro, um esvaziamento que aí, diante de mim, diz respeito ao inevitável por excelência, a saber: o destino do corpo semelhante ao meu, esvaziado de sua vida, de sua fala, de seus movimentos, esvaziado de seu poder de levantar os olhos para mim. E que no entanto me olha num certo sentido – o sentido inelutável da perda posto aqui 10 1998, p. 37.

a trabalhar.10 Por outro lado, o espectador pode tentar – imaginariamente e em vão – suturar sua angústia diante da tumba, pode querer tentar ultrapassar essa questão, querer dirigir-se para “além da cisão aberta pelo que nos olha no que vemos”. Querer superar “tanto o que vemos quanto o que nos olha”. Essa atitude supõe uma denegação do cheio, um certo horror sagrado. Mas pensar que o sarcófago é somente um meio de transição para a outra vida, o lugar no qual o corpo jaz enquanto faz a passagem para o além-mundo, ameniza esse horror, sacraliza o objeto, a imagem. “O homem de crença verá sempre alguma outra

11 Didi-Huberman, 1998, p. 49.

coisa além do que vê, quando se encontra face a face com uma tumba”.11 Não só nos sarcófagos o ouro foi usado em abundância, no que se refere a artefatos reais;

12 Essa máscara é feita em ouro maciço, cravejada de barrotes de lápis-lazúli; foi encontrada na cabeça da múmia, e é o artefato mais famoso da tumba desse faraó; acredita-se que ela represente de fato as feições do rei.

encontram-se também as joias, chinelos, cadeiras, altares, ou mesmo a famosa máscara de ouro maciço da tumba de Tutankhamon (18a dinastia).12 Grande parte das peças colocadas nas tumbas reais usava ouro, seja em sua confecção ou sua decoração, por seu caráter simbólico e para legitimar o fato de ser para poucos, nesse caso para a família

O sagrado na imagem, o ouro na arte Luciane Ruschel Nascimento Garcez e Sandra Makowiecky

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real. Uma cadeira encontrada em uma dessas tumbas, feita de cedro, além do ouro em sua decoração, tem no centro a figura do deus da Eternidade entalhado, representado na clássica pose, ajoelhado sobre o hieróglifo que significa “ouro”, com um cetro em cada mão e o sinal de “infinidade”, simbolizando que o rei deveria viver um milhão de anos. O trono do faraó Tutankhamon é completamente revestido em ouro, decorado com prata e pedras preciosas.13 Essas obras evidenciam a maneira como o ouro agregava caráter sagrado a uma peça

13 Lambelet, Edouard. Egyptian Museum Cairo – Illustrated guide of the Egyptian Museum. 4th edition. Cairo, Egypt: Nubar Printing House, 1989.

comum, de uso diário, que passava a ser algo especial, suntuoso, que o ser humano comum não deveria sequer tocar. Pode-se pensar em um conceito do teórico da psicanálise Jacques Lacan referente à anamorfose, à mancha, ao “nada” que é constituído a partir do olhar do outro. É possível relacionar esse conceito ao ouro, pois é pertinente dizer que sua carga sagrada está ali, agregada a ele, por todos os olhares de veneração que o formaram e compuseram como tal. Talvez, se houvesse um olhar puro, inocente, desprovido de quaisquer referências anteriores, o ouro não tivesse muito o que falar nesse sentido, mas diante do olhar impuro, atravessado, no momento em que se está diante dele, especialmente em uma obra de arte, todos esses olhares anteriores vêm à tona, com seus significados pulsantes, remetendo a imagem a outros momentos e recuperando suas simbologias com toda a força. Segundo Didi-Huberman: a mais simples imagem nunca é simples, nem sossegada como dizemos irrefletidamente das imagens. A mais simples imagem (...) não dá a perceber algo que se esgotaria no que é visto, e mesmo no que diria que é visto. Talvez só haja imagem a pensar radicalmente para além da oposição canônica do visível e do legível.14

14 1998, p. 95.

Tanto os Casulos como os sarcófagos operam na ordem do mistério, na ordem do insondável, do inumano. Mas os Casulos falam da experiência do movimento, da obra que tem um início, um meio e um fim, que tem um ritmo e um tempo de vida definidos. O oposto dos sarcófagos, que eram feitos para a eternidade, estão em nosso mundo há alguns milhares de anos e não pretendem esvair-se. Ambos falam da invenção de um lugar para a ausência, um jogo de vazios, em que o volume se torna mistério. Citando Didi-Huberman, em O que vemos, o que nos olha, é “quando o que vemos é suportado por uma obra de perda, e quando disto alguma coisa resta”.15 Esses casulos, porém, apesar de serem de ouro, completam seu movimento no momento que as peças de ouro e as pedras se soltam, para aí reiniciar mais uma vez o processo. É um movimento cíclico e infinito. É morte e renascimento. Como o sarcófago, mas diferente dele.

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15 1998, p. 80.


Referências bibliográficas BACHELARD, Gaston. A água e os sonhos: ensaio sobre a imaginação da matéria. São Paulo: Martins Fontes, 1998. BESSON, Christian (org.). Hubert Duprat Theatrum – Guide imaginaire des collections. Collection reConnaître. Paris: Musée départemental (Digne), Philippe Grand, Antenne Éditoriale de Lyon, 2002. DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos o que nos olha. São Paulo: Ed. 34, 1998. GADAMER, Hans George. A atualidade do belo. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1985. JUNG, Carl G. O homem e seus símbolos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1964. LACAN, Jacques. O Seminário. Livro 11 – os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998. LAMBELET, Edouard. Egyptian Museum Cairo – Illustrated guide of the Egyptian Museum. 4th edition. Cairo, Egypt: Nubar Printing House, 1989. MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da percepção. São Paulo: Martins Fontes, 1994. SILVA, Úrsula Rosa da. Elementos de estética. Pelotas: Educat, 1995.

Luciane Ruschel Nascimento Garcez (UDESC, Santa Catarina, Brasil) é graduada em artes plásticas pela Universidade do Estado de Santa Catarina – Udesc. Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais, Ceart/Udesc, sob orientação da professora doutora Sandra Makowiecky. Desenvolve a maioria de suas pesquisas na área de arte contemporânea, história e filosofia da arte. Membro do Grupo de Estudos de Percepções e Sensibilidades (cadastrado no CNPq); atualmente desenvolve pesquisa intitulada: Academicismo e modernismo em Santa Catarina. / lucianegarcez@terra.com.br

Sandra Makowiecky (UDESC, Santa Catarina, Brasil) é doutora em ciências humanas. Professora de estética e história da arte da Universidade do Estado de Santa Catarina – Udesc e de seu programa de mestrado em artes visuais. Desenvolve a maioria de suas pesquisas na área de história da arte, patrimônio histórico, memória, imagem e representação. É membro da Associação Internacional de Críticos de Arte – Seção Brasil Aica – Unesco e foi vice-presidente da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas – Anpap, eleita para o biênio 2007-2008. / sandra.makowiecky@terra.com.br

O sagrado na imagem, o ouro na arte Luciane Ruschel Nascimento Garcez e Sandra Makowiecky

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Nazareth Pacheco e o corpo Alessandra Monachesi Ribeiro

Abordagem do percurso da obra da artista Nazareth Pacheco pelo viés psicanalítico, que coloca em cena a questão do olhar. Seus objetos sedutores e aprisionantes cativam o espectador e o imobilizam, criando um jogo entre assepsia e sedução que recoloca o corpo no foco da obra de arte, a partir da dor causada ou imaginada sobre esse corpo. Reflexão a respeito de como a produção da artista permite ao psicanalista pensar sobre um corpo que se presentifica pela dor, desdobrando-o em questões pertinentes à subjetividade contemporânea. Nazareth Pacheco, psicanálise, corpo. Quando faz seus trabalhos com miçangas, cristais, contas, giletes, agu*Artigo recebido em fevereiro de 2009 e aceito para publicação em março de 2009.

lhas, Nazareth Pacheco se corta. Recentemente, decidiu dar algum destino ao sangue que sai de suas mãos e foi então que ele virou obra: fotografias de gotas de sangue, o vermelho vivo contra uma textura suave e branca de papel ou tecido que lhe serve de base. Ou então vidros pequenos, de farmacêutico, encontrados em antiquários, cheios de sangue, expostos em uma redoma de acrílico como jóias em vitrina de joalheria. Vidros fotografados, além das gotas, do fio por onde passa o sangue e, até mesmo, de um conta-gotas sujo do mesmo, que nos relembra, em relação à série inteira, que a repulsa não ficou ausente dos trabalhos de Nazareth, ainda essa vez. Repulsa e atração: tal é a polaridade com que a artista parece brincar e nos seduzir para seus objetos tão lindos, tão limpos, tão perfeitos e, ao mesmo tempo, tão inacessíveis. Não me toque, eles parecem dizer. Mas, se quiser arriscar... Que perigos jazem na superfície ou na intimidade desses objetos com os quais Nazareth nos presenteia e nos desafia? O acrílico transparente brilha e é, para ela, a marca do desejo. Desejo que tem a ver com brilhos, ofuscamentos, atração daquilo que se revela no que se esconde. O brilho revela o objeto e esconde seu perigo, minimiza-o, ao mesmo tempo em que o coloca ainda mais em evidência. Trata-se de um jogo de presença e ausência? Ou de presença e presença? A cadeira de acrílico transparente brilha e quase disfarça seu desconforto com tal ofuscamento. Mas uma das marcas dos objetos de Nazareth Pacheco é justamente o olhar – único sentido que ainda pode circular com alguma segurança por suas obras – antecipar algum perigo: uma cadeira com saliências em seu assento, ainda que permita o sentar,

Gotas, 2007. Metacrilato. Foto: Nazareth Pacheco e Rômulo Fialdini.

não nos provê qualquer conforto. Melhor mantermo-nos afastados ou nos arriscarmos em seu contato?

Nazareth Pacheco e o corpo Alessandra Monachesi Ribeiro

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Que só tenha restado o olhar, não é sem alguma ironia, se lembrarmos que se trata aqui de uma obra de arte, para cuja história o olhar foi sempre convocado e, algumas vezes, desprezado. Que se retorne ao olhar, parece-me digno de nota. Ainda mais se lembrarmos que Nazareth cria, no começo de seu percurso, aquilo que Tadeu Chiarelli denominou, em 1991, ‘objetos dependentes’. De quê? Do toque, da manipulação do espectador, do espaço circundante, enfim, um objeto cuja existência dependeria da relação que pudesse manter com o outro. Nessa época, objetos de borracha, sempre com pontas e saliências, que fariam lembrar objetos de tortura, talvez, criando uma estranha sensação de hostilidade. Objetos a serem manipulados, mas não acolhedores, nem simpáticos, nem convidativos. Lembro-me de ler, em algum dos textos da graduação em Psicologia, a tal experiência da mãe de arame e da mãe de pano. Apresentavam-se a um macaco filhote duas bonecasmães, uma de arame e uma de pano, sendo que a de arame, desconfortável, fria e pouco convidativa, era aquela à qual ficava acoplada uma mamadeira, com alimento para o filhote. Adivinhe a qual mãe ele ia se abraçar? No período da faculdade, tal história servia para provar algo como o condicionamento operante e justificar que animais e pessoas pudessem optar pelo pior, desde que fosse o melhor, ou, ainda, que ratinhos de laboratório pudessem aprender e executar ações que o levassem a tomar um choque, desde que ao mesmo sobreviesse seu alimento ou água. Mas e os objetos dependentes, de que eles nos proveem para escolhermos manipulá-los? A resposta, a meu ver, se indicaria a posteriori, a partir da maneira com que Nazareth Pacheco dá seguimento a suas construções artísticas. Pois que, a eles, se seguem os ‘objetos sedutores’, os vestidos e colares de cristal e agulhas ou lâminas. Eis aqui a mãe de pano, mas agora repleta de surpresas e perigos. Que alguém ouse aproximar-se, e que consiga até mesmo vestir um desses objetos tão convidativos, como se poderá despir sem se esfacelar todo? Era melhor ter abraçado os emborrachados dependentes pois, depois deles, pouca chance restará para que tamanha proximidade com os objetos de Nazareth ainda possa ter lugar. Vestidos e colares são adornos femininos e é ao corpo e ao desejo feminino que eles apelam. Impossível deparar-se com vitrina tão sedutora e não sentir a tentação de aproximar-se, tocar, experimentar. Mas, frente às lâminas, ai! Quem dera ter coragem! O corpo se dói por antecedência enquanto o olhar fica prisioneiro daquilo que cobiça e que não pode ter, ainda que não possa mais deixá-lo. Os ‘objetos sedutores’ de Nazareth parecem prender seu espectador do lado de fora, refugiando-se em redomas inacessíveis, mas, também, do lado de dentro, uma vez que o olhar fica cativo de seus brilhos, de seus perigos, da sedução e da repulsa. Tendo-os visto, difícil é afastar-se. E não que atraiam apenas o desejo feminino, uma vez que, se os homens não necessariamente se enchem de júbilo frente a uma vitrina repleta de adornos – e aqui falo por meio

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de clichês sobre homens e mulheres, mas sustento que seja assim, uma vez que é de certo imaginário comum que a artista parece fazer uso e crítica – certamente haverá entre eles aqueles que se sentirão fortemente afetados pela constatação de que, na impossibilidade de se adornar que as obras apresentam, a mulher está desnudada, enquanto outros se regozijarão ainda mais com a ideia de que, em se tendo adornado, as mulheres estarão todas retalhadas. Desejo ou vingança, que elas paguem por sua cobiça da mesma maneira que eles pagam pela impossibilidade de acessar aquele corpo que estava ali, convidando, e que agora só dá notícias por sua ausência. A assepsia das obras de Nazareth é a manobra que parece relacionar o desejo, a sedução e o aprisionamento do olhar. E como ao psicanalista nunca antes ocorrera a inflexão de ser o desejo asséptico? Como eu não havia pensado nisso antes? É a pergunta-chave do paciente em análise, que põe o inconsciente em cena para que ele diga. A perfeição, a limpeza, a pureza da transparência do desejo, do acrílico duro e frio, do brilho asséptico de um diamante, das poucas cores, do preto, do branco e do vermelho, das vitrinas, do que aparece em linhas simples, claras, da forma bem feita. Não parece tão absurda tal associação, se nos lembrarmos de que, durante longo período na história da arte, aquilo que se considerava obra de arte tinha uma relação intrínseca com o Belo que, por sua vez, remetia a uma perfeição da representação, da mimese, das formas, em que a obra servia como janela para o mundo e deveria, por isso, apagar-se enquanto coisa feita. A boa obra era a que passava despercebida enquanto tal. A pincelada se apagava, não havia rastros do trabalho do artista. Massas de cores deveriam ser convincentes em se apresentar como aquilo que retratavam. E nesse retrato, algo que se destacava com constância enquanto imagem da perfeição e representação do Belo era, justamente, o corpo da mulher. O corpo da mulher como imagem da perfeição, da beleza e da sedução justamente em sua assepsia, em sua inocuidade, em sua correspondência tácita com o ocultamento da pincelada, do gesto, do traço do artista. O que esse corpo oculta quando se presta a ser imagem revelada no ocultamento de sua fatura? 1 1927.

Podemos nos remeter a Freud1 e ao objeto-fetiche, aquele em que o olhar se fixa, seu último ponto de atração e parada antes que ele se depare com a castração. E temos, assim, o olhar, o corpo, a castração e o feminino colocados em relação e em jogo em uma obra de arte. O corpo da mulher se apresenta belo, asséptico e intocado, imagem passiva dada ao olhar ativo, intocada pela falta. O que traz o olhar?

2 1991.

Começo com Jean-Pierre Vernant2 e seu A morte nos olhos – figurações do outro na Grécia Antiga: Ártemis e Gorgó, em que ele aborda o mito de Perseu, no qual o herói decapita Medusa cuja cabeça toma para si. O autor enfatiza o papel do olho, do olhar, do ver e do ser visto nessa narrativa, já que Medusa não pode ser olhada de frente, sob pena de transformar aquele a quem olha em pedra. E Perseu, quando a decapita, olha para o outro lado ou, noutras versões, para seu reflexo no espelho, evitando, com isso, cruzar seu olhar petrificante.

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Salto, em seguida, para Tania Rivera3 e seu Arte e psicanálise, quando ela aborda a es-

3 2002.

tranheza do olhar a partir da obra de Marcel Duchamp. Pois foi Duchamp quem propôs uma arte ‘não retiniana’ que mostrasse outra dimensão do olhar, o que aparece em sua crítica mordaz à fetichização da obra de arte através dos ready-mades. E, principalmente, em sua obra póstuma, os Étant donnés, na qual a figuração serve para desconstruir a função do olhar. Nessa instalação, por entre os furos em uma porta de madeira, vemos um corpo nu de mulher deitada sobre a grama, de pernas abertas e segurando, em uma das mãos, uma luz. A genitália feminina cruamente à mostra faz o mesmo efeito que L’origine du monde, de Gustave Courbet: o segredo, espiado por detrás de uma cortina ou de um buraco em uma porta, se revela brutalmente e... nos olha. Aí se encontra a desconstrução do olhar na obra duchampiana. Parafraseando Georges Didi-Huberman, o que vemos nos olha. A respeito disso também dizia Lacan4 em “A es-

4 1964.

quize do olho e do olhar”, quando afirma que ao olhar preexiste o ser olhado, posto que só se pode ver de um ponto de vista, enquanto se é olhado de toda parte. Estaríamos, então, submetidos ao ver. A esquize do olhar não diz respeito ao trânsito entre visível e invisível, mas a uma elisão inevitável, calcada na ideia da consciência que se dobra sobre si mesma, do vendo-se ver-se que escamoteia a função do olhar. Somos olhados. O que olhamos nos faz olhados. E isso que olha mostra, para Lacan, a “falta constitutiva da angústia de castração”.5

5 1964, p. 74.

Talvez se trate de olhar algo no lugar do que não se vê, do que falta, da castração, como afirmará Rivera a respeito de Duchamp, apoiada por Lacan e por Freud (aos quais retornarei adiante). Mas a desconstrução, aqui, parece-me localizada precisamente na inversão do olhar/ser olhado, no movimento do olhar, não em seu objeto ou falta, afirmação que Lacan também apoia, da maneira que acabo de mencionar. Cito Lyotard e seu Les transformateurs Duchamp sobre a obra do artista: Você põe seus olhos nos buracos da porta espanhola, você vê uma vulva iluminada ao ar livre por uma lâmpada de 150watts, sem pêlos, e você acredita ver tudo que quer ver. O que você queria mesmo ver pelos buracos da porta? Justamente, após tê-lo visto, este buraco de mulher, você não sabe mais. Isto e não-isto. Buracos sobre buraco (...). O que há a ver em um buraco? Um buraco, diz Madame Rose, é feito para ver, não para ser visto.6

6 Apud Rivera, p. 56-57.

O buraco da mulher como o buraco do olho. O buraco que se vê como o buraco que olha. O buraco de Duchamp nos olha, arrancando o espectador de sua obra da posição de voyeur. Exatamente como ocorre, parece-me, nas obras de Nazareth Pacheco.

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Com Nazareth não há portas ou buracos, mas a armadilha do olhar posta às claras. Seus objetos de arte brilhantes, sedutores, raramente se escondem detrás de cortinas, portas ou buracos como segredos revelados. Sua estratégia é outra: seduzir e aprisionar por meio do olhar. 7 1927.

O voyeur é cativo de seu objeto-fetiche. Para Freud, no texto “Fetichismo”,7 tal objeto é um substituto para o pênis da mãe que o sujeito insiste em preservar como existente, não reconhecendo, assim, a castração. Essa recusa funciona porque perceber a mãe como castrada implicaria a assunção dessa condição para o próprio sujeito e, posto que seja justamente a isso que se procura fazer face – quer nas neuroses, nas psicoses ou nas perversões – como condição para o desenrolar da organização do psiquismo, a saída fetichista se posta como recusa/evitação da percepção da mulher enquanto castrada. O voyeur é cativo do objeto-fetiche uma vez que é o mesmo que esconde, evita, detém o olhar um átimo antes da borda, do buraco, da constatação da castração. O objeto é seu triunfo e sua proteção contra o buraco. O que Nazareth Pacheco parece fazer com suas obras é, justamente, aprisionar seu espectador no objeto-fetiche não para o desviar do buraco mas, ao contrário, para ali arremessá-lo irremediavelmente. Os objetos-fetiche de Nazareth são como a cabeça da Medusa, colocando o buraco em cena naquilo que deveria evitá-lo. Não é sem inteligência e ironia que tal manobra se dá. Os objetos de Nazareth Pacheco são de enorme apelo retiniano. Daí sua fascinação, seu poder de encantamento, sua sedução. A beleza e o brilho de contas de cristal transparente povoam os vestidos, os colares, os balanços, as cadeiras... Tudo transparece brilho, em uma beleza deslumbrante e asséptica que parece não ter fim.

8 1964.

O olhar, para Lacan,8 de maneira coerente com o que Freud anuncia com seu texto sobre o fetichismo, é um apaziguador. É possível perder-se nele e, com isso, perder-se da falta que o olhar disfarça. Na reciprocidade entre o olhar e o ser olhado o sujeito encontra um álibi, passando despercebida sua queda. Ou seja, ele permanece na ignorância do que há para além da aparência. O olhar escamoteia, e as obras sedutoras de Nazareth Pacheco tiram todo proveito dessa sedução que envolve o olhar. Curioso, porém, é que, com isso, ela confina seu espectador em algo que ali mesmo se revela e o interpela, como se aquele voyeur fosse o personagem do filme Laranja mecânica, de Kubrick: uma vez cativado pelos olhos, está pego por sua armadilha de giletes, pregos, bisturis e toda espécie de objetos cortantes que compõem – em harmonia com o brilho dos cristais – vestidos, colares, balanços, redes, cortinas, bancos... O objeto-fetiche de Nazareth Pacheco atrai o olhar e, antes mesmo que se aperceba, torna-o prisioneiro de um mundo de objetos perigosos que não podem ser tocados, mas

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que não deixam desviar-se. O olhar prende, e só se pode olhar. O personagem de Kubrick novamente, cativo que só pode olhar. Sem desvio, sem evitação e sem o encontro com o objeto. Como no mito de Perseu, voyeurs transformados em pedra. Volto a Vernant, para quem a cabeça da Medusa comporta traços de insólito e estranheza. Ali se embaralham masculino e feminino, belo e feio, humano e bestial, o de dentro e o de fora. Mas tal mistura inquietante traz a marca do horror e da morte. Estamos no campo do monstruoso, do terrificante e do grotesco. Freud nos pode auxiliar novamente, com seu texto “O estranho”,9 no qual também o olhar

9 1919.

possui importante papel na definição do que seja o unheimlich causa de horror. O estranho familiar inquieta por seu paradoxo, através do qual recoloca a questão do olhar em sua relação com a castração. Estranho como categoria do assustador que remete ao que é conhecido, familiar. Coincidindo com seu oposto, o familiar remete ao estranho. Abordando o conto de E.T. Hoffmann “O homem da areia”, que rouba os olhos das crianças, Freud relaciona o temor de perder os olhos com o medo da castração, estando o olho no lugar do órgão sexual masculino. O estranho estaria ligado a um modo de apresentação, a algo que se dá a ver quando deveria permanecer oculto, trazendo para a estranheza uma associação com o olhar e com o que se dá a ver, gerando horror e familiaridade. Em Freud, a visão da genitália feminina é o que acorre aos olhos, remetendo à castração e à inquietação causada por sua constatação. Ou, então, à sua negação, como vimos que ele propõe no texto sobre o fetichismo. O fetiche é constituído por objetos ou órgãos que substituam o falo ausente na mulher mas, ainda mais importante, de uma maneira que o processo decorrente da interrupção da constatação da castração seja também considerado. Nas palavras de Freud:10 “(...) o interesse do indivíduo se interrompe a meio caminho, por assim dizer; é como se a última impressão antes da estranha e traumática fosse retida como fetiche.” Os sapatos, as peles, as lingeries... o que quer que tenha consistido no último momento em que a mulher podia ser considerada como fálica frente ao olhar da criança. Mas como não se trata apenas de negação e recusa, de não ver, a escolha do objeto-fetiche traz, ainda, a constatação da castração, saber e não saber, a interrupção do olhar a meio caminho e o que é visto. Nas obras de Nazareth Pacheco, essa ambiguidade do que se dá a ver e não é visto também parece presente, de maneira a permitir-me afirmar seus objetos como fetiches. O brilho dos cristais que ofusca os olhos desvia – e aí está seu poder de sedução – do também brilho – metálico e frio – daquilo que fere e mutila. Os objetos cortantes não passam, contudo, despercebidos em meio à trama atraente tecida pelas mãos da artista. São notados – daí seu poder de aprisionamento. O que se dava a ver foi visto, o olhar acolhido pelas luzes da obra, em busca de repouso, assentou-se sobre facas, pontas, lâminas e se

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10 1927, p. 157.


cortou. E, por ser olhar, não pode mais fugir do que o enganou que, ao se revelar, não mais o liberta posto que não o pacifica. 11 1964.

Retorno, então, a Lacan11 naquilo que fala sobre a pacificação do olhar, mostrando que o ver-se vendo-se é manobra do olhar que afirma que o que é percebido pertence ao indivíduo, extraindo daí o vidente que se torna apenas um olho. Há uma escotomização que advém da consciência, posto que o sujeito busca acomodar-se ao olhar e, com isso, confunde-se com ele. Ao olhar, escotomiza-se o olho de quem me olha como objeto, e, ao ver esse olho, é o olhar que desaparece. Ao discorrer sobre o quadro Os embaixadores, de Hans Holbein, Lacan afirma que “(...) esse quadro não é nada mais do que é todo quadro, uma armadilha de olhar. Em qualquer quadro que seja, é precisamente ao procurar o olhar em cada um de seus pontos que vocês

12 1964, p. 88.

o verão desaparecer”.12 No quadro de Holbein é o objeto flutuando em primeiro plano que pega aquele que olha em sua armadilha. Na obra e Nazareth Pacheco, é a conjunção entre os brilhos de cristais e os brilhos metálicos. É o próprio Lacan quem vai afirmar que o objeto nos olha no nível do ponto luminoso. O olhar como jogo da luz com a opacidade. É através dele que o sujeito se faz quadro. O quadro, para ele, manifesta algo do olhar. O que o artista faz ao produzir sua obra é a seleção de um modo de olhar. E, àquele que olha, o que apresenta reflete-se no que segue: “Queres olhar? Pois bem, veja então isso! Ele oferece algo como pastagem para o olho, mas convida aquele a quem o quadro é apresentado a depor ali seu olhar, como se depõem as armas. Aí está o efeito pacificador, apolíneo, da pintura. Algo é dado não tanto ao olhar

13 1964, p. 99.

quanto ao olho, algo que comporta abandono, deposição, do olhar”.13 Mais além da aparência não há coisa em si, mas o olhar. A relação do olhar com o que se quer ver é uma relação de logro, afirmará Lacan e, da mesma forma, o sujeito se apresenta como o que ele não é e o que se dá a ver não é o que ele quer ver. O que se vê na obra de Nazareth Pacheco é aquilo que se pretendia haver visto? Parafraseando Lyotard ao falar sobre os Étant donnés de Duchamp, após encontrarmo-nos com os brilhos e rasgos de seus objetos, já não sabemos. Quando o sujeito conta sua história, age nele aquilo que o comanda, o seu núcleo de real. Há o acidente que se repete e a verdadeira realidade, o sentido velado que remete à pulsão. Por isso, Lacan dirá que no encontro há a esquize do sujeito fundada pela repetição. E pergunta: “(...) como fazer alguma vez juntar-se essa duplicata, em

14 1964, p. 73.

que se tornava então a representação, com o que se supõe que ela deva cobrir?”14 Como fazer haver o encontro entre sujeito e o real que o determina e escapa? É nesse sentido que Lacan examinará o olhar e o olho, a função escópica em sua relação com a repetição.

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O quadro pacifica o olhar, então. Mas o próprio Lacan, ao falar sobre a pintura expressionista, aventará ainda um algo mais, certa satisfação – como na satisfação da pulsão – que também é conferida pelo quadro ao que é pedido pelo olhar. Assim, a função do olho não esgota o caráter do órgão, não resume a pulsão a um movimento de apaziguamento. A ideia do olhar que se pacifica naquilo que encontra como obra, o que coloca a pulsão escópica como engodo da castração parece deixar de lado algo que a produção de Nazareth Pacheco vem constantemente reafirmar: que o olhar que se apazigua é, também, perturbado e aprisionado nesse jogo de sedução com o objeto-fetiche que, por sua vez, não se omite em revelar suas garras, facas, agulhas para realizar seu efeito de sedução/repulsa. Voltemos a Nazareth e vejamos aonde ela nos leva com sua reflexão. No início de sua dissertação de mestrado, em que busca mapear pensamentos e interesses que a conduziram a tal percurso artístico, Nazareth Pacheco15 já nos apresenta suas obras aproximando-as de objetos de tortura e aprisionamento, o que ela julga ser o fio condutor de suas diversas produções. Haverá uma ênfase na qualidade de serem objetos – dependentes, aprisionados, evasivos, aprisionantes, sedutores e afins – bem como em sua função de tortura e aprisionamento, o que cria uma conversa com as ideias por mim apresentadas de objeto-fetiche e de aprisionamento do olhar como pontos de partida para a reflexão sobre seu trabalho. A artista, logo a princípio, toma para si a fatura de suas obras de borracha e pontas que se vão colocar, como objetos tridimensionais, no mesmo espaço ocupado por seu corpo. Da parede ao chão, adquirem uma mobilidade que permite a manipulação e interação com aqueles que a observam. É dessa interação que a própria obra nasce, como se ela fosse esse contato, essa intervenção, essa marca de uma ação em que o outro – o espectador – está implicado: por isso os ‘primeiros’ objetos de Nazareth são dependentes, como nomeados por Tadeu Chiarelli. Eles dependem do espectador para existir enquanto objetos 16

de arte de tal ou qual maneira, à mercê de suas explorações.

Sem título, 2003. Cristal, miçanga e gilete. Foto: Nazareth Pacheco e Rômulo Fialdini. 15 2002. 16 1997.

Se esses primeiros objetos dependem, eles, ao mesmo tempo, remetem, por seu aspecto pontiagudo, a objetos de tortura ou àqueles utilizados nos jogos sadomasoquistas, o que não parece ser uma aproximação casual. Comparecem a dor, a morte e a sexualidade, num jogo ambíguo que, mais tarde no percurso da artista, vai-se explicitar cada vez mais como um jogo de sedução e repulsa em que o sexual e o mortífero se encontram igualmente implicados. Ao uso da borracha vulcanizada nesses objetos dependentes e torturantes, segue-se o uso da borracha natural, que Nazareth torce e retorce com o auxílio de uma brida de chumbo, transformando-a em verdadeiros nós, que ela diz ‘estrangulados’ em uma batalha corpo a corpo entre a borracha, o metal e o próprio corpo da artista. Trata-se do estrangulamento de um corpo por outro corpo, com o auxílio de um terceiro. Novamente a tortura em cena,

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bem como o jogo de atritos entre corpos, a força, os toques, a resistência e a cessão. O sexual comparece nesse ato brutal com mais violência do que o que ocorrera nas peças anteriores, cujas formas aludiam também a objetos de tortura a sedução sem, no entanto, remeter à ação desses mesmos objetos como se encontra nesses que a artista chama de ‘pele de borracha natural’, nos quais o ato violento e sedutor transparece, para além da forma representada, nas marcas impregnadas nas obras. Essas se tornam, então, um decalque do movimento exercido nesse estrangulamento, um registro da ação, um odor, uma transpiração. As peles tornam-se fios trançados, cordas emendadas, um nó composto e uma materialidade repulsiva. Dos dependentes à pele e aos aprisionados, Nazareth Pacheco confina uma série de objetos pessoais em caixas de madeiras fechadas, vitrinas de uma trajetória fragmentária que parece iluminar momentos relativos ao seu corpo inserido e manipulado pelo discurso e pelas ações médicas. Um corpo alquebrado, torturado, tornado objeto da intervenção da medicina, corpo despossuído de si, alheio a seus sentidos. Tratamentos médicos e cirúrgicos, tratamentos de beleza, tratamentos como tortura em face da dor e da sedução. Tratamento como lugar em que dor e sedução se juntam como seus objetivos últimos: expulsar a dor, inserir artifícios de sedução. O objeto aprisionado de Nazareth parece retratar o exato momento em que tortura e sedução se aliam num amálgama complexo que dotará, dali para frente, seus objetos-obras de uma profunda ambiguidade: sedutores e repulsivos, experiências da dor e do deleite. Nazareth escreve: Em 1994, na exposição “O corpo como destino”, no Gabinete de Arte Raquel Arnaud, apresentei esta série de trabalhos relacionados ao meu corpo. A partir do momento em que estes trabalhos foram expostos em uma galeria, dei-me conta de que a minha vida íntima acabaria por se tornar pública. Eu não tinha a menor intenção de ilustrar a minha vida por meio da minha obra. Arte não é reflexo de vida e nem terapia. Concordo com que questões ligadas à vida podem ser perceptíveis na interpretação da 17 2002, p. 30.

obra, mas é necessário separar arte e vida. Eu não sou a obra.17 Para a artista, o trabalho revela questões sobre o próprio trabalho. É a obra que está em jogo quando entra em cena, e não a vida, que não pode ser por ela interpretada. Não há como analisar o autor pela obra, pois ela não se erige em sua representante. Frente à obra, se há interpretação possível, esta se resume à própria obra. Assim, quando a vida de Nazareth Pacheco se infiltra em sua obra, o que se tem como resultante é uma virada em sua produção, a partir da qual suas questões não se modificam, nem se pessoalizam, mas se esclarecem e se aprofundam ainda mais em torno dos temas da dor e da sedução, conquistando, com isso, uma amplitude que a trará, no momento mais recente, a falar sobre o sangue enquanto vida e morte.

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Mas, para chegar ao sangue, a artista desliza dos objetos aprisionados autobiográficos para os objetos femininos, ou melhor, objetos usados no corpo da mulher. Espéculos, saca-miomas, DIUs: uma parafernália ainda relativa à incidência da ação médica sobre o corpo – e não apenas o corpo da artista, mas qualquer corpo de mulher – faz emergir das entranhas desse corpo para os espaços de exposição objetos de tratamento alinhados e questionados em sua condição de tortura. Objetos comuns, cotidianos, de uso privado e íntimo, que jazem na escuridão dos mais recônditos buracos do corpo feminino, aparecem, subitamente, iluminados e seriados na sua mais inócua e inocente aparência de objetos de composição. Mas, em sua repetição harmoniosa, há sempre algo que destoa, e retorna aquilo que parecia pacificado ao seu aspecto de maior horror: um único espéculo de metal em meio a uma parede inteira de espéculos de acrílico, centenas de DIUs jogados em uma bacia de alumínio, como a grande quantidade de espermatozoides com que se confrontam com resistência e morte, um saca-miomas entre saca-rolhas, suscitando a ação feita no interior do corpo da mulher, uma extração. Extração, extirpação, invasão e morte: Nazareth Pacheco parece tentar arrancar dos objetos comuns sua aparente inocência e sua condição apaziguadora. No mesmo movimento em que cria repetições e séries tranquilizantes, perturba aquele que contempla sua obra com um cutucão, um porém, uma dissonância que cria brecha para que a dor e a repulsa voltem a instaurar-se. Daí para os objetos sedutores, basta um passo: colares e vestidos com suas contas e pontas, aprisionados em vitrinas, inacessíveis ao toque, convidativos, proibitivos, doloridos e irresistíveis. Sua assepsia herdada dos tratamentos e objetos cirúrgicos já não lembra em nada a borracha marcada pela luta com o corpo, trazendo para o campo de uma perfeição quase perversa a tensão que a artista cria entre sedução e repulsa. O objeto sedutor/ objeto-fetiche parece conjurar precisamente essa marca do corpo, do humano, dos traços de mulher postos nas obras anteriores que, agora, são limpas e límpidas como se pretendem as ações médicas. Um feminino retirado de suas excrescências como o fetiche retira os sinais da castração. Lâminas, agulhas, anzóis, giletes, cristais, miçangas e a mão da artista envolvida pelo fazer. Uma costura, uma renda, um bordado: a beleza ofusca de tanto brilho, que quase engana sobre os perigos de cortes e furos. Os cortes e furos no corpo da artista – que viraram obra – ameaçam o corpo do espectador, refém do fascínio e da dor antecipada. Uma coleção de jóias que brilham, seduzem, despertam desejos ao mesmo tempo em que provocam ferimentos. Se, por um lado, questionam padrões de beleza, por outro não medem esforços para alcançar o corpo ideal. É a saúde física brigando com a saúde mental. Não importa a dor, o que importa é o prazer. A hora é de brilhar, e cabe a cada um estabelecer o próprio limite entre o prazer e a dor. Um prazer mental que nem sempre depende da imagem exterior.18

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18 Pacheco, 2002, p. 45.


Os vestidos têm a medida do corpo da artista, um corpo sempre presente em sua ausência, que se presentifica por não estar ali, justamente como o objeto que, para sê-lo, tem que se constituir ao desaparecer. O vestido torna-se a marca da existência de um corpo que ali esteve, de um combate entre o corpo e o material, entre a mão e as miçangas, entre o sangue e as giletes. O vestido remete à ação que lhe deu origem, ao corpo, ao atrito, à fricção, à dor e ao prazer: o que antes era pele de borracha brigada, suada e estrangulada tornou-se pele de brilhos e cortes, não combatida porque impossível, proibida desse embate corporal, limpa, cristalina, fria, transparente. Nazareth passa a se utilizar do acrílico cristal e, com ele, não apenas ela distancia suas mãos de sua obra – que ela projeta, mas manda executar em uma fábrica especializada no manejo desse material – como torna distância e aprisionamento termos ainda mais fortes de sua produção, por meio da confecção de objetos que serviriam para acomodar tornados objetos de repelir, tal como o balanço de acrílico com agulhas fixadas em seu assento, o berço de acrílico e aço com gilete, ou ainda o banco de acrílico preto, também com agulhas no assento, que a artista relaciona com um divã e com as medidas de seu corpo. Lembranças de infância, de berços e de balanços espetadas por giletes e agulhas de costura tornando impossível instalar-se no conforto da felicidade infantil como tempo perdido. Algemas e mordaças de cristal, seduções sadomasoquistas ou objetos de tortura? A pergunta não se responde, como não se respondeu nos objetos de borracha vulcanizada do início, deixando a ambiguidade ainda uma vez viva e pulsante. Nazareth entende seus objetos como ‘facas de dois gumes’, posto que seduzem e oferecem riscos à integridade do corpo. Objetos de aprisionamento, a artista os coloca em cena como provocações à nossa condição de servidão voluntária. Não se trata apenas da mulher submetida aos métodos e padrões de embelezamento, às torturas cotidianas e comezinhas de seus tratamentos de saúde ou estéticos, mas de um tempo em que o ser humano escolhe colocar-se em uma posição servil e assujeitada, tal é a crítica da artista à contemporaneidade. O olhar que se pacifica e pasta nas obras de arte é aquele que Nazareth Pacheco fere e atormenta, provocando-o a ser pulsante. O homem servil, mais por tédio e resignação do que por dor, é o contrário daquilo a que ela parece se propor com suas obras, em um esforço de superação da vida pela produção artística, um esforço de transcendência. 19 1991.

Vernant19 traz, ainda, algumas apreciações valiosas para nos interrogar acerca dessa outra possibilidade do olhar, à qual a obra de Nazareth Pacheco remete e que é sua relação com a repetição, com a pulsão e com a morte. A facialidade da Górgona, ou seja, o fato de ela ser uma das poucas personagens a ser representada de frente, encarando o espectador, mostra que o monstruoso só pode ser abordado de face, num confronto direto. Olhar Medusa nos olhos é entrar no campo de seu olhar, tornar-se morte igual a ela, transformar-se em pedra. Fascinado, o homem não pode desviar os olhos, que se perdem nos olhos da

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Górgona que o olha, só podendo olhar aquilo que ela olha, tornando-se seu olhar. Trata-se de identificação ou, nas palavras do autor: Na face de Gorgó, opera-se como que um efeito de desdobramento. Pelo jogo da fascinação, o voyeur é arrancado a si mesmo, destituído de seu próprio olhar, investido e como que invadido pelo da figura que o encara e, pelo terror que seus traços e seu olho mobilizam, apodera-se dele e o possui.20

20 P. 103-104.

Nessa identificação, o sujeito aparta-se de si mesmo, projetando-se em uma alteridade radical. A Medusa, que diz dessa alteridade extrema, possui face que é máscara e que, ao olhar nos olhos, torna o outro também essa máscara, uma máscara da morte. Sua face é, nas palavras de Vernant, o Outro, o duplo, o estranho, a reciprocidade de nosso rosto devolvido em espelho de maneira aterrorizante: em vez de refletir apenas a aparência desse rosto, a máscara da Górgona reflete ainda essa face monstruosa, petrificada, do olhar que se esvai. No olhar de Medusa revela-se a verdade de nosso próprio rosto: a máscara da morte. O que se descortina no olhar aprisionado pela obra de Nazareth Pacheco? A meu ver, que a assepsia é necessária à sedução e que a dor é a condição de transformar pacificação em tormenta, desfazendo o engodo do encantamento limpo ao sujá-lo de sangue e de ferida, recolocando o corpo – agora pulsante – no âmbito da obra. Psicanalistas como Joel Birman21 mostram que, na contemporaneidade, vivemos sob o

21 2003, 2006.

primado da dor, que se substituiu ao sofrimento na geração de novos mal-estares e novas patologias. O que antes se centrava no conflito psíquico, agora se registra no corpo, na ação e no sentimento. Para Birman, a subjetividade atual não consegue mais transformar dor em sofrimento, sendo a dor uma experiência do indivíduo fechado sobre si, solipsista e narcísico, enquanto o sofrimento seria uma experiência que considera a alteridade. Contudo, é de outra possibilidade para se pensar a dor – ou de outra possibilidade que traz a dor para o pensar – que trato aqui, ao dialogar com a obra de Nazareth Pacheco. Se há dor como decorrente da impossibilidade de mediação, e certamente isso está presente, talvez a dor traga em si a possibilidade de construir mediações outras, insuspeitas, presentes na sua crueza e na sua corporalidade. Jean Pontalis,22 em seu texto “Sobre a dor (psíquica)”, refaz o percurso feito por Freud

22 2005.

em suas obras em que a dor foi considerada, como no Projeto para uma psicologia

23 1895.

científica,23 em “Inibição, sintoma e angústia”,24 ou nos textos em que discorre sobre o narcisismo, o trauma, o masoquismo, a pulsão de morte e, até, a reação terapêutica negativa.

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24 1926.


Nesse trajeto, Freud constrói uma oposição entre a vivência de satisfação, pautada pelo par prazer/desprazer, e a vivência de dor. Nesse dualismo, satisfação e dor estariam inscritas no corpo, sendo a dor totalmente distinta do desprazer e não assimilável a ele. Ela se caracterizaria por um fenômeno de ruptura de barreiras, seguida por uma descarga no corpo. Trata-se, assim, da dor como violação, como implosão dos limites do corpo e do eu. Trata-se, com isso, de um furo que é excesso, ou de um cheio demais que cria um vazio. 25 1920.

A dor retorna, na obra freudiana, em “Além do princípio de prazer”.25 O que está além do prazer/desprazer é a dor. A vivência de dor se dá no interior do “eu-corpo” e, diferentemente do que ocorre na vivência de satisfação: “(...) aqui não há metáfora, ou seja, criação de sentido, mas analogia, transferência direta de um registro para o outro: são utilizadas as mesmas palavras, são invocados os mesmos mecanismos. Como se, com a dor,

26 Pontalis, 2005, p. 271.

o corpo se transformasse em psique e a psique em corpo”.26 Enquanto o que Pontalis denomina angústia (e que Birman nomeia sofrimento) é algo que pode ser comunicado, representado, descarregado, a dor é fechada em si. O sofrimento pode até surgir como anteparo a ela, metodologia de sua evacuação. Assim, a dor está nos confins, na junção entre psique e corpo, morte e vida. Ou seja, ela traz o campo do pulsional, das bordas e daquilo que só ali se pode dar. Como se a dor fosse o que pudesse dar ao sujeito a percepção de estar vivo, contraponto necessário à sedução imaginária na qual se inscreve por meio do olhar e do que lhe é dado a ver.

27 1995.

Se tomarmos em consideração o que escreve Bernard Marcadé27 para o catálogo da exposição Féminimasculin – Le sexe de l’art, podemos pensar que a assepsia da sedução está posta na história da arte de maneira a conectar o belo, o feminino e o que é olhado. O feminino passivamente se dá a ver pela atividade que lhe está posta fora, no olhar de que é objeto. E é esse feminino olhado que se entrega como engodo, como máscara ou como objeto-fetiche: daí seu apelo de sedução. Trata-se mais daquilo que ele esconde no que revela o que seduz na obra de arte. A sedução feminina dos objetos de Nazareth Pacheco traz para a cena o escancaramento dessa assepsia sedutora, contrapondo-a a todas as excrescências e feridas que ali se presentificam – mesmo que ausentes – pela lembrança dos objetos cortantes e das feridas que provocam nos corpos, fazendo-os sangrarem. O que aproxima os trabalhos da artista daquilo que Marcadé aponta em relação, novamente, a Courbet e seu L’origine Du monde: “Aquilo que vemos é bem um sexo de mulher que nos olha. Não é mais, como em Olympia, o olhar de uma mulher que nos encara, mas o sexo

28 1995, p. 24.

de uma mulher (acéfala) que nos vê”.28 E como, então, Nazareth Pacheco desmascara esse feminino limpo e sedutor em que se afiguram seus objetos-fetiches? Como os devolve a um real que nos conforma? A meu ver, articulando seus objetos à dor que causam no corpo.

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Para ela é a passagem pelo feminino, através de seus vestidos de contas e giletes, ou de seus colares e outros objetos brilhantes, atrativos e perigosos, que é feita para falar do corpo e dele enquanto objeto-fetiche, lugar de sedução e de dor. O corpo, lugar no qual incide diretamente o mandato da ausência de obra, construindo-se em palco para a subjetividade tornada doença, bem como para as intervenções sobre a mesma, é também o lugar no qual a artista encena uma rebelião contra esse estabelecimento de um corpo despossuído de si. O corpo mutilado, manipulado, interferido de suas obras críticas, também, dos lugares de controle, tratamento e embelezamento a que esse corpo é submetido pelos dispositivos de saúde e estética na nossa contemporaneidade, ensaia seu levante ao se tornar corpo ausente, objeto perdido, ainda que convocado pelos mesmos objetos que se afiguram como memórias de sua presença. O corpo ausente se presentifica por meio das obras e, através delas, convoca o corpo do outro a se aproximar sem poder tocar, num jogo de sedução perigoso, que acarreta sofrimento e dor ou, mais ainda, aprisionamento desse outro corpo na dor e no fascínio do olhar – único sentido ao qual sobra poder circular pelas obras, transitar sem se apaziguar, tornando-se cativo de um jogo de sedução. O corpo como ausente, ao qual se substitui o objeto-fetiche, não é lugar do apaziguamento do olhar na negação da castração mais do que denúncia desse mesmo lugar enquanto farsa, engodo, embuste de supor que ao objeto perdido suceda um substituto que lhe propicie um espetáculo de gozo do qual o sofrimento estaria ausente. O que Nazareth Pacheco nos noticia, com suas obras de contas, cristais, acrílico, facas, giletes, lâminas e agulhas é que a ferida, o rasgo, não se desvencilha tão facilmente do belo, guardando em cada objeto fascinante seus potenciais de dor. Mas o que se mostra, também, com as obras da artista, é a maneira asséptica como tal sedução se dá, trazendo para o campo do belo o limpo, o lindo, o brilhante, o ofuscante e o perfeito. O limpo como necessário ao belo e, consequentemente, à sedução contrasta com o sujo dos fluidos e excrescências potencialmente presentes nos encontros entre os corpos, lembrando-nos de Freud29 em seu comentário sobre a assunção pelo homem da postura ereta que deixa de lado odores e visões, mostrando-nos que depende dessa ausência de corporeidade, de substancialidade para que o corpo possa ser propagado como lugar da sedução. Um corpo despossuído de si e de sua corporeidade é a manobra que a sedução faz para surtir efeito. E tal corporeidade só se reencontra na dor, no sangue das mãos da artista cortadas na fatura das obras, naquilo que não se desmente nem se denega. A dor sendo, então, o contraponto necessário à sedução para devolver ao corpo sua condição de presença em ausência e, consequentemente, de marca.

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29 1930.


Referências bibliográficas BIRMAN, Joel. “Dor e Sofrimento num Mundo sem Mediação”. In BIRMAN, J. (org.). Cultura. Petrópolis: Editora Vozes, 2003, v. 95, p. 25-29. ____________. Arquivos do mal-estar e da resistência. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006. CHIARELLI, Tadeu. Uma realidade... dilacerante: a produção de Nazareth Pacheco. In Nazareth Pacheco. Catálogo de exposição de Nazareth Pacheco na Galeria Valu Oria em junho de 1997, São Paulo, 1997. FREUD, Sigmund: Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, volumes I-XXIV. Rio de Janeiro: Imago editora, 1996 (tradução dirigida por Jayme Salomão). [Os volumes relacionados abaixo referem-se a esta edição] ______________. “Projeto para uma psicologia científica”. In ESB, vol. III, 1895. ______________. “O estranho”. In: ESB, vol.XVII, 1919. ______________. “Além do princípio de prazer”. In ESB, vol. XVIII, p. 13-78, 1920. ______________. “Inibição, sintoma e angústia”. In ESB, vol. XX, 1926. ______________. “Fetichismo”. In ESB, vol. XXI, 1927. ______________. “O mal-estar na civilização”. In ESB, vol. XXI, p.67-150, 1930. LACAN, Jacques: O Seminário: livro 11 – Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. (1964). Rio de Janeiro: Jorge Zahar editor, 1998. MARCADÉ, Bernard. Féminimasculin – Le sexe de l’art. Catálogo de exposição ocorrida no Centre Georges Pompidou em 1995, Paris, Gallimard – Electa, 1995. PACHECO E SILVA, Nazareth. Objetos Sedutores, dissertação de mestrado, Departamento de Artes da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2002. PONTALIS, Jean-Bertrand. Sobre a dor psíquica. In Entre o sonho e a dor. São Paulo: Idéias & Letras, 2005. RIVERA, Tania. Arte e psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar editor, 2002. VERNANT, Jean-Pierre. A morte nos olhos – figuração do Outro na Grécia Antiga: Ártemis e Gorgó. Rio de Janeiro: Jorge Zahar editor, 1991.

Alessandra Monachesi Ribeiro (UFRJ, Rio de Janeiro, Brasil) é psicanalista, doutoranda em arte e psicanálise pelo Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica da UFRJ, em que recebe uma bolsa da Capes, mestre em Psicologia Clínica pela PUC-SP, membro do Espaço Brasileiro de Estudos Psicanalíticos de São Paulo e do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, autora de livros e artigos na área. / alemonachesi@gmail.com

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JosĂŠ Maria de Medeiros. Iracema, 1884. Ă“leo sobre tela, 167,5 x 250,2cm. Rio de Janeiro, Museu Nacional de Belas Artes.


“As bellezas naturaes do nosso paiz”: o lugar da paisagem na arte brasileira, do Império à República Arthur Valle e Camila Dazzi

Considerações a respeito de como se estabeleceram as relações entre paisagem e nacionalismo na cena artística brasileira, quando da passagem do Império à República e em seus primeiros anos. Tendo como base as apreciações críticas publicadas em periódicos e as declarações dos próprios artistas, podemos verificar que a paisagem, posto que representava a natureza brasileira em sua especificidade – com suas formas, sua cor, sua luz local – foi vista como motivo privilegiado para plasmar uma há muito ansiada “Escola Brasileira” de arte. Para os críticos e para os artistas, as representações da paisagem se encontravam então estreitamente vinculadas àquilo que o escritor e filósofo francês Ernest Renan chamara “a alma nacional”, estando carregadas de um potencial capaz de constituir, por si só, um novo imaginário para o regime político que se instaurava. Pintura de paisagem, artes decorativas, brasilidade. Embora nos centremos aqui nas agitações artísticas que ocorreram *Artigo recebido em dezembro de 2008 e aceito para publicação em fevereiro de 2009.

a partir da década de 1880, é importante frisar que a associação entre paisagem e brasilidade não era então propriamente uma novidade: já nos primeiros estatutos da Academia Imperial das Belas Artes, redigidos em 1820, o gênero era louvado justamente por isso, assim como era frisado o quanto as próprias condições físicas do território brasileiro convinham e mesmo exigiam o amplo desenvolvimento da

1 “Este genero de pintura [paisagem] é um dos mais agradáveis da arte e o vastissimo terreno do Brasil offerece vantagens aos Artistas que viajarem pelas Províncias, fizerem uma collecção de Vistas locaes terrestres como maritimas”. In Estatutos da Imperial Academia e Escola das Belas Artes, estabelecida no Rio de Janeiro por Decreto de 23 de Novembro de 1820. Uma transcrição desse documento, feita pelo Prof. Alberto Cipiniuk, pode ser encontrada no site DezenoveVinte: http://www.dezenovevinte.net/documentos/ estatutos_1820.htm

pintura paisagística.1 Durante todo o período imperial, ao lado de uma cadeira dedicada à pintura histórica, houve sempre na Academia fluminense outra dedicada explicitamente ao estudo da pintura de paisagem, flores e animais. Analogamente, na política de unificação nacional e cultural proposta na década de 1860 pelo segundo monarca brasileiro, d. Pedro II, as figurações da natureza brasileira, aí incluída de maneira destacada a pintura paisagística, cumpriram relevante papel nos esforços de construção de uma identidade nacional, bem como na configuração da imagem da nação e do próprio imperador, que, em muitas representações, aparecia cercado de palmeiras, abacaxis e outras frutas tropicais, destacando-se ao fundo a exuberância

2 Conferir Schwarcz, Lilian. As barbas do imperador – um monarca nos trópicos. São Paulo: Companhia da Letras, 1999.

de uma natureza sem igual.2 Todavia, já em finais da década de 1870, mudanças políticas, sociais e culturais que anunciavam o republicanismo demandavam um novo tipo de arte, que atendesse às

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exigências de gosto de uma elite burguesa, avessa ao monarquismo, ligada ao plantio do café e aos novos investimentos que surgiam na então capital do Império. Se tornava, assim, necessário reformular a iconografia da pintura de paisagem brasileira. Sintomáticos desse desejo de renovação eram já certos aspectos do debate crítico que eclodira quando da Exposição Geral de 1879, momento no qual a proposta da Academia do que seria a “Escola Brasileira” de pintura – “uma produção idealizada, voltada para a valorização da tradição acadêmica mesclada por valores atenuados do romantismo e do realismo”3 – foi alvo de virulentos ataques. Escritores como Félix Ferreira, Gonzaga Duque, Oscar Guanabarino e França Jr. opuseram à proposta da Academia uma alternativa que valorizava a produção dos paisagistas brasileiros, em

3 Chiarelli, Tadeu. “Gonzaga-Duque: a moldura e o quadro da arte brasileira”. In Duque Estrada, Luiz Gonzaga. A Arte Brasileira. São Paulo: Mercado de Letras, 1995, p. 18-19.

registro realista/naturalista. Defendia-se a ideia de que a pintura de paisagem devia capturar o “característico” da natureza brasileira, sobretudo no que dizia respeito à sua luminosidade e às suas cores típicas. Essa ideia se distanciava decisivamente do partido usual até então, que subordinava a paisagem à história, e no qual o primeiro gênero se constituía essencialmente como pintura de ateliê, como pode ser verificado em obras de pintores ilustres com Victor Meirelles ou José Maria de Medeiros. Em meados da década de 1880, vários fatores testemunham a afirmação dessa nova concepção de pintura de paisagem. Tomemos como exemplo a seguinte passagem de Bellas Artes: Estudos e Apreciações, de Felix Ferreira, que comenta a Exposição Geral de 1884: Notamos com prazer que nesta exposição predomina a paisagem; que os nossos pintores voltam-se para a natureza e começam a compreendê-la e admirá-la. (...) É da natureza que os nossos pintores têm de haurir todo o nosso engrandecimento artístico futuro; é na contemplação e no estudo desses primores que o Criador derramou a mãos pródigas por esta terra em que nascemos, que o artista encontrará os elementos da verdadeira Escola Brasileira. Artistas como J. G. Grimm, paisagista bávaro radicado no Brasil entre 1882 e 1887, passam a encarnar o tipo ideal de artista “moderno”, modelado de acordo com as críticas europeias da década de 1870, que, pintando diretamente do natural, era capaz de capturar o típico da paisagem e de romper com os supostamente enrijecidos padrões acadêmicos.4 Um trecho de crítica publicada na Gazeta de Notícias do Rio de Janeiro, datada de setembro de 1884 e assinada com o pseudônimo L. S., se referia da seguinte maneira à produção de Grimm: O sr. George Grimm, professor de paisagem na Academia, bom professor e bom paizagista, expôs quatro quadros. O maior é uma vista

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4 A idéia do pintor moderno como “sinônimo” de pintor de paisagem é recorrente na crítica de arte francesa já no início da década de 1870. Em um comentário às pinturas de gênero expostas no Salon parisiense de 1870, Théodore Duret, faz a seguinte consideração: “Se, na escola moderna, os pintores naturalistas representam sobretudo a criação individual, os pintores de gênero personificam o pastiche e a imitação. Nossos paisagistas percorrem o campo, e lá, face a face com a natureza, procuram a interpretar livremente. Entre os pintores de gênero, ao contrário, a invenção e a originalidade são raras (...) e quando um descobre um filão original, logo lhe seguem os copistas e os imitadores”. Tal concepção reverbera pela década de 1880 afora, como atesta um texto de Charles Ephrussi, dedicado à Exposição dos Artistas Independentes, publicado em 1880 na Gazette des Beaux-Arts, e no qual o autor postulava l’idéal de la nouvelle école: “Compor seu quadro não no ateliê, mas na natureza; em presença do assunto tratado se desembaraçar de toda convenção; se colocar face a face com a natureza e a interpretar sinceramente, sem se preocupar com a maneira oficial de ver; traduzir escrupulosamente a impressão, a sensação, cruamente, por mais estranha que ela possa parecer”.


Antonio Parreiras. Sertanejas (Teresópolis, RJ), 1896. Óleo sobre tela, 273 x 472cm. Rio de Janeiro, Museu Nacional de Belas Artes.

de parte da cidade do Rio de Janeiro, tomada do casario de Santa Thereza. O pintor escolheu um dia de chuva, desprezando exatamente o que constitui a belleza natural do nosso paiz: a limpidez da atmosfera, os dias brilhantes e luminosos (...) Em compensação é bem alegre e bem serena, e bem da nossa natureza, a Vista do Cavallão, com seu portão arruinado, os pilares de tijolos, a sua areia luzidia (...). Foi nesse quadro que o sr. Grimm espaljou a mãos cheias o ar e a luz. A gente sente-os entre as arvores, respira-o e aquece-se. É neste quadro que mais fielmente o Sr. Grimm reproduz

5 Gazeta de Notícias, sábado, 27 de setembro de 1884. Autor: L. S.

a nossa natureza.5 No entanto, um artista como Grimm possuía séria desvantagem com relação às expectativas dos nossos críticos: simplesmente, ele não era brasileiro. Na citada crítica de L. S. não faltam os indícios de uma parcial desaprovação às suas escolhas, como quando, por exemplo, se faz referência a sua eleição de um dia chuvoso, com a qual o artista desprezava justamente aquilo que constituía “a belleza natural do nosso paiz”: o brilho e a luminosidade atmosféricas. Foram então os novos nomes da pintura brasileira, como Antonio Parreiras e Giovanni Battista Castagneto – discípulos de Grimm – ou Henrique Bernardelli, surgidos em meados da década de 1880, que encarnaram os anseios e esperanças dos críticos, não somente pelo tratamento “moderno”, vitalizado pela pintura ao ar livre, que davam as suas obras, mas, principalmente, por revelar, o potencial para representar uma suposta natureza tipicamente brasileira.

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A necessária complementação artística europeia desses artistas deveria, ela própria, se moldar em função de tais prerrogativas. É o que nos deixa compreender, por exemplo, a recepção extremamente positiva aos quadros enviados da Itália por Henrique Bernardelli, em 1886, os quais, apesar de não retratarem a natureza brasileira, indicavam uma afinidade com o nosso cenário natural e apontavam um caminho a ser seguido pelos novos paisagistas. A escolha de outros artistas brasileiros, como Antonio Parreiras, de aperfeiçoar seus conhecimentos artísticos na Itália, seria elogiada justamente por permitir o contato com uma natureza que, no entendimento dos críticos, em muito se parecia com a brasileira. Nesse sentido, em artigo publicado na Gazeta de Notícias, em fevereiro de 1888, Gonzaga Duque afirmava: É digna de louvor a escolha que fez Antonio Parreiras da Itália como sede de seus estudos (...) O estudo de paisagem em França, onde encontram-se mestres de uma reputação universal, como Harpignies e Zuber, tem um pequeno inconveniente para os artistas brasileiros, sempre dispostos a imitação servil do que aprendem no estrangeiro. Sob esse ponto de vista a Itália apresenta grandes vantagens, e entre muitas acha-se a de uma certa semelhança com o nosso paiz, mormente pela persistência do tom e a immutalidade da luz. Aqui, como no sul da Itália, pode um paisagista voltar duas ou três vezes a um mesmo ponto de estudo que, empregando uma frase de Taine, encontrará o tom posto há um mez sobre a palheta (...) ora, habituando-se o pintor a estudar ao ar livre a isolada natureza italiana, com a maior destreza e facilidade produzirá a nossa paisagem (...) No meu modo de ver, para quem dispõe de poucos annos de aprendizagem, a Itália é o único paiz em que um paisagista brazileiro póde se aperfeiçoar.6

6 Gazeta de Notícias, fevereiro de 1888. Autor: Gonzaga Duque.

Em finais de 1889, o “golpe” de Estado republicano que extinguiu o regime monárquico no Brasil não abalou em nada o prestígio crescente que o gênero da pintura de paisagem gozava já há anos. Na verdade, poderíamos mesmo afirmar que sua importância se tornou ainda maior, uma vez que o gênero servia igualmente bem tanto aos antigos anseios da criação de imagens-síntese da nação brasileira – com a República, mais difundidos do que nunca – quanto como locus privilegiado para a manifestação das exigências modernas de individualidade e originalidade dos artistas. A proclamação da República assistiu igualmente a uma mudança de rumos na tradicional Academia das Belas-Artes fluminense. Ainda em 1889, o recém-formado Governo Provisório elegeu uma comissão composta por, entre outros, o escultor Rodolpho Bernardelli e o pintor Rodolpho Amoêdo, com a incumbência de elaborar um projeto de reforma da instituição. Depois de inúmeras querelas,7 com um decreto promulga-

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7 Conferir Cavalcanti, Ana Maria Tavares. “Os embates no meio artístico carioca em 1890 – antecedentes da Reforma da Academia das Belas Artes”, 1920, Volume II, n. 2, abril de 2007. Texto disponível no site DezenoveVinte: http://www.dezenovevinte.net/criticas/embate_1890.htm


8 Decreto n. 983 – de 8 de novembro de 1890, deferido pelo chefe do governo provisório, o general Deodoro da Fonseca, e assinado por Benjamin Constant, ministro dos Negócios da Instrução Pública, Correios e Telégrafos. Fac-símile disponível no site DezenoveVinte: http://www.dezenovevinte.net/documentos/ docs_primeira_republica.htm

do em novembro de 1890,8 foram aprovados os novos estatutos da instituição, que passou a se chamar Escola Nacional das Belas Artes (Enba); Rodolpho Bernardelli foi nomeado, ainda nesse mesmo mês de novembro, como o primeiro diretor da Academia reformada, cargo no qual se manteria por quase 25 anos. Nos novos estatutos da Enba, deixava de constar nominalmente a tradicional cadeira destinada à pintura de paisagem. Mas esse fato não significava, em absoluto, que a prática do gênero tivesse sido abolida do curriculum da instituição: pelo contrário, esta então se encontrava mais firmemente do que nunca estabelecida na rotina pedagógica dos alunos do curso de pintura da Enba, como comprova a análise de alguns programas de curso posteriores à Reforma de 1890. Já em 1891,

9 Acervo arquivístico do Museu Dom João VI EBA/UFRJ. Notação 4996: Programa para aula de Pintura, do professor Henrique Bernardelli. Transcrição disponível no site DezenoveVinte: http://www.dezenovevinte.net/documentos/ programas_enba.html 10 Acervo arquivístico do Museu Dom João VI EBA/UFRJ. Notação 4750: Programa da aula de pintura, do professor Rodolpho Amoêdo. Transcrição disponível no site DezenoveVinte: http://www.dezenovevinte.net/documentos/ programas_enba.html 11 Acervo arquivístico do Museu Dom João VI EBA/UFRJ. Notação 4996: Programa para aula de Pintura, do professor Henrique Bernardelli. Transcrição disponível no site DezenoveVinte: http://www.dezenovevinte.net/documentos/ programas_enba.html 12 Luciano Migliaccio mencionou como essa corrosão dos gêneros era já perceptível em obras pintados da década de 1880, como as de Amôedo. Cf. Migliaccio, Luciano. “Rodolfo Amoedo. O mestre, deveríamos acrescentar”. In Marques, Luiz (org.). 30 Mestres da Pintura no Brasil. São Paulo/Rio de Janeiro: Masp/ MNBA, 2001 (Catálogo de exposição). Uma versão desse artigo se encontra disponível no site DezenoveVinte: http://www.dezenovevinte.net/artistas/ra_migliaccio.htm 13 Modesto Brocos passou boa parte dos anos 1870 no Brasil, tendo frequentado, a Academia Imperial, antes de se estabelecer definitivamente no Rio de Janeiro, no início da década de 1890, convidado para lecionar na reformada Enba pelos irmãos Bernardelli, dos quais se tornara amigo, quando da sua temporada de estudos na Itália. Portanto, diferente da de outros artistas estrangeiros como Grimm, a experiência brasileira de Brocos não foi temporária; ele aqui se radicou até sua morte, em 1936. 14 “Artes e Artistas/Escola Nacional de BellasArtes/Exposição Geral”, O Paiz, n. 3653, 1 de outubro de 1894, p. 2. Autor: Oscar Gaunabarino.

por exemplo, Henrique Bernardelli, um dos renovadores da pintura de paisagem na década anterior, prescrevia como estudos de segundo ano nas aulas de pintura por ele ministradas a realização de “cabeças de modelo vivo em luz de interno e ao ar livre e estudos de paysagem bem apurados”. 9 Em 1896, Rodolpho Amoêdo estipulava de forma análoga, como exercício de “2º anno”, o “estudo de paisagem simplesmente e com figuras”, 10 sendo muito provável que tais exercícios fizessem parte das aulas propostas por Amoêdo desde que reassumiu o cargo de professor, logo após a Reforma de 1890. Outro aspecto interessante com relação aos referidos programas de Bernardelli e Amoêdo diz respeito especificamente ao fato de que tanto um quanto o outro prescreviam propostas de trabalho que fundiam a pintura de figura e a de paisagem. A afirmação feita por Bernardelli de que “para o estudo da figura humana é necessário contemporaneamente todos os estudos, especialmente a paysagem com a figura e a figura com a paysagem”11 é um indicativo dessa orientação, marcada não só pela valorização da pintura paisagística, tida na mais alta estima, como também por hibridismo explícito dos gêneros tradicionais.12 Outro professor da Escola, Modesto Brocos y Gomez, que assume cadeiras como as de desenho figurado e modelo vivo a partir de 1893, foi por sua vez elogiado por Oscar Guanabarino, justamente pela ligação entre paisagem e brasilidade que suas telas apresentavam. O pintor, embora de origem espanhola, estava então, nos dizeres de Guanabarino, “perfeitamente identificado com a nossa natureza”13 e procurava “nacionalisar a arte”, sobretudo através da fixação em suas paisagens da “côr do nosso ambiente, tão difficil de ser apanhada pela inconstancia da luz”.14 A atuação desses professores teve reflexos claros na produção dos alunos que frequentaram a Escola Nacional de Belas Artes na década de 1890, e que passaram a atuar com maior presença no meio artístico carioca após seus retornos da Europa, já nos primeiros anos do século XX. Alguns desses pintores deram continuidade às concepções sobre pintura de paisagem formuladas no século anterior, sobretudo no que se

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refere à tentativa de criação de uma identidade cultural nacional, que por vezes se impregnava de traços marcadamente regionalistas. Evidências da grande difusão que a prática a pintura de paisagem conheceu nos anos iniciais da República podem ser fornecidas se analisarmos o movimento de obras nas exposições do período, muito particularmente nas Exposições Gerais de Belas Artes, que continuavam a ser, como no período imperial, os principais certames artísticos brasileiros. Novamente, os textos críticos, como os do indefectível Gonzaga Duque, nos aproximam de um entendimento do quadro que então se configurava. Quando, por exemplo, logo na primeira página da sua resenha sobre a Exposição Geral de 1904, Gonzaga Duque afirmava, algo desapontado, que “nesta exposição como nos anteriores Salões, só encontro pintores de figuras e paizagistas”,15 não deixava de indicar, de maneira inequívoca, que o gênero da paisagem era um dos mais frequentes no evento.

15 “Salão de 1904”, Kósmos, ano 1, n. 9, setembro de 1904, p. 18. Autor: Gonzaga Duque. Texto disponível no site DezenoveVinte: http://www.dezenovevinte.net/artigos_imprensa/saloes_gd_arquivos/saloes_gd_1904. htm

As resenhas de Gonzaga Duque sobre as Exposições Gerais evidenciam claramente que os laços entre paisagem e brasilidade continuavam atados na primeira década do século XX. São bastante reveladoras, nesse sentido, as referências elogiosas que o crítico constantemente tece à pintura de paisagem de João Baptista da Costa, artista que se destacara na cena artística fluminense ainda na década de 1890, tendo sido laureado com o Prêmio de Viagem ao Estrangeiro, na segunda Exposição Geral republicana, a de 1894.16 No quadro então agraciado com o prêmio, chamado Em repouso, Baptista da Costa já prefigurava o seu interesse pelos aspectos pitorescos do Brasil, ao figurar,

16 A primeira Exposição Geral republicana ocorrera em 1890.

em registro inspirado na estatuária antiga, mas – significativamente – contra uma paisagem ensolarada, nada mais nada menos do que um caipira, o célebre motivo “inaugurado” não muitos anos antes pelo pintor ituense J. F. de Almeida Júnior. Nos trechos de seus “Salões” que se referem às obras de Baptista da Costa, Gonzaga Duque repete sem cessar o topos crítico que equaciona a qualidade de uma paisagem ao fato de ela ser uma figuração fiel da natureza brasileira. “Esta conseguida qualidade, já notável, de reter na tela a feição da nossa pittoresca paisagem (a do Rio, São Paulo e Minas)”17 estava presente, segundo Gonzaga Duque, em todas as paisagens expostas por Baptista da Costa em 1904. Ao aprofundar sua análise da tela Fim de Jornada, exposta nessa mesma mostra de 1904, o crítico procurava descrever, em uma longa écfrase, a fisiognomia da paisagem brasileira, como especificada nos panoramas fluminenses: A caracterização da nossa paizagem, a que elle [Baptista da Costa] nos acostumou e que seus pinceis dia a dia vão conseguindo fixar da maneira mais impressionante, esse inconfundível, por ser hybrido, sentimento de força e de melancolia que resumbra da natureza, por elle interpretada e ao de mais o brio, a luminosidade de suas tintas

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17 “O Salão de 1904”, Kósmos, ano 1, n. 9, setembro de 1904, p. 21. Autor: Gonzaga Duque.


Baptista da Costa. Fim de Jornada (Cantagalo, RJ), 1904. Óleo sobre tela, 110,5 x 183cm. Rio de Janeiro, Coleção Particular.

fundem-se nesse quadro, e delle fazem uma bella obra de verdade e de arte (...) Sobre este mérito ella reproduz bem approximadamente o caracter da paizagem fluminense – a roça – que não é o bravio sertão nem a matta virgem, mas um meio termo entre o villarejo e a floresta, intermédio á cultura de uma civilização meã e á rusticidade fecunda

18 Idem, ibidem, p. 21. 19 “Salão de 1905”, Kósmos, ano 2, n. 9, setembro de 1905, p. 40-41. Autor: Gonzaga Duque. Texto disponível no site DezenoveVinte: http://www.dezenovevinte.net/artigos_imprensa/saloes_gd_arquivos/saloes_gd_1905.htm 20 “Salão de 1906”, Kósmos, ano 3, n. 10, outubro de 1906, p.53. Autor: Gonzaga Duque. Texto disponível no site DezenoveVinte: http://www.dezenovevinte.net/artigos_imprensa/saloes_gd_arquivos/saloes_gd_1906.htm 21 Duque Estrada, Luiz Gonzaga. “O Salão de 1907”. In Contemporâneos – Pintores e esculptores. Rio de Janeiro: Typ. Benedicto de Souza, 1929, p. 154. Texto disponível no site DezenoveVinte: http://www.dezenovevinte. net/artigos_imprensa/saloes_gd_arquivos/ saloes_gd_1907.htm

da natureza livre.18 Em 1905, Baptista da Costa expunha mais “oito admiráveis trechos desta nossa brilhante natureza por elle surprehendida com o segredo da sua arte”, das quais o crítico destacava A Prisioneira e uma Paizagem de Poços do Caldas, louváveis especialmente por conseguir capturar a intensidade da luz brasileira, “num verde que é caracteristicamente o verde da nossa natureza”.19 Analogamente, em 1906, Gonzaga Duque punha na boca de seu interlocutor, Polycarpo, a exclamação “Olha aquilo, olha a nossa luz n’aquelle quadrinho”, referindo-se à uma paisagem do Baptista da Costa, novamente celebrado por ter descoberto “o segredo de reter na téla a cor, a luz, o contorno pittoresco da nossa natureza”.20 Por fim, na última resenha, referente ao “Salão” de 1907, não poderia deixar de faltar a referência às “bellas paizagens” de Baptista da Costa, justamente por serem elas, literalmente, “pedaços destacados da nossa formosa terra”.21

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Mesmo quando fazia suas considerações a respeito das paisagens de Roberto Rowley Mendes, pintor de índole bastante diversa da de Baptista da Costa, em cujas obras Gonzaga Duque louvava não o realismo, mas sim o pendor simbólico e “espiritualista” de um autêntico “discípulo de Ruskin”,22 o crítico não conseguia se furtar ao elogio de qualidades que decorriam justamente da fidelidade da obra ao que havia de irre-

22 “O Salão de 1905”, Kósmos, ano 2, n. 9, setembro de 1905. Autor: Gonzaga Duque.

dutível na paisagem brasileira. Assim comentando Estudo de mangueiras, de Mendes, Gonzaga Duque louvava a fixação do “verde” nacional, “o verde caracteristicamente nosso, que embaraça e cança os paizagistas não familiarisados com a nossa vegetação e, tantas vezes, escapa ou compromette aos nossos próprios artistas”.23

23 Idem, ibidem, p. 151.

Pelo contrário, quando percebia a ausência da nota brasileira em uma paisagem, Gonzaga Duque não poupava a sua ironia mordaz, como ao comentar um quadro de Belmiro de Almeida exposto em 1907, uma “paisagem de Theresopolis”, que deixava o crítico na dúvida “se o meu velho amigo Belmiro fel-o do alto de uma aeronave Santos Dumont, nas proximidades da Torre Eifel ...”.24

24 Idem, ibidem, p. 153.

Sem dúvida, se encontra ausente, mesmo nas críticas elogiosas de Gonzaga Duque às interpretações supostamente bem-sucedidas dos panoramas naturais brasileiros, um certo tom ufanista que fora usual nos textos da década de 1880: ao que tudo indica, cerca de 15 anos após o 15 de novembro de 1889, a consolidação de um modelo oligárquico de República, controlado por poderosos grupos estaduais e que mantinha qualquer oposição afastada das decisões legislativas, bem como o seu correlato estético – as novas ortodoxias estabelecidas na direção dos rumos da Escola Nacional de Belas Artes25 –, havia feito murxarem os entusiasmos renovadores que outrora derrubaram o poder imperial e os seus porta-vozes artísticos. Simultaneamente, é certo que os interesses dos pintores paisagistas progressivamente se alteravam, deixando de lado a preocupação com a pura e simples caracterização de aspectos pitorescos para se concentrar em questões que poderíamos designar como mais especificamente pictóricas. Seguindo uma via prenunciada já nas últimas pinturas de Castagneto, afirmava-se claramente na pintura de paisagem brasileira, a partir da primeira década do século XX, uma tendência lírica, que muitas vezes chegava às raias da abstração e para a qual os elementos naturais, observados en plein air na paisagem, pouco mais eram do que um pretexto para que o artista executasse um exercício pictural pessoal e dos mais livres: neste, as próprias delineações essenciais do motivo frequentemente se encontravam dissolvidas, e eram exaltadas, em troca, as propriedades materiais e de fatura da própria técnica pictórica empregada. Nesse contexto, é significativo que o interesse pela paisagem como um motivo privilegiado na consolidação da identidade cultural brasileira renovasse suas forças em um campo que julgar-se-ia inesperado, o das chamadas artes aplicadas ou decorativas. No espírito dos mais diversos artistas envolvidos durante as primeiras décadas da

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25 Ao menos é o que deixa entrever outro dos textos de Gonzaga Duque, o famoso “o Aranheiro da Escola”, escrito em 1906; cf. Duque Estrada, Luiz Gonzaga. Contemporâneos – Pintores e esculptores. Rio de Janeiro: Typ. Benedicto de Souza, 1929, p. 215-225.


26 As variadas designações que as artes aplicadas conheceram, especialmente a partir do século XIX, são um indicativo eloquente de seu status ambíguo no quadro geral das artes ocidentais: na França oitocentista, por exemplo, a designação artes industriais foi a mais comum até 1863, quando passou a ser empregada outra, mais lisonjeira, belas artes aplicadas à indústria; por volta de meados da década de 1870, um novo adjetivo – decorativa – passaria a ser frequentemente associado às artes aplicadas. (cf. Brunhammer, Y. Le beau dans l’utile: un musée pour les arts décoratifs. Paris: Gallimard, 1992, p. 18 e 32). No Brasil, estes diversos termos – utilitária, industrial, decorativa, ou ainda, menor – eram empregados simultaneamente e, por vezes, de maneira indiscriminada para se referir ao mesmo segmento de atividades artísticas. 27 John Ruskin, crítico da distinção hierárquica entre artista-intelectual vs artista-artesão, foi defensor emblemático dessa visão que unia ornamento e natureza, equacionando a concordância desta última à beleza: à medida que os objetos se distanciavam da alusão à natureza, dela discordando, eles estariam fadados a ser feios (cf. Heskett, John. Industrial design. London: Thames and Hudson, 1980, p. 85); já Owen Jones, arquiteto e desenhista, na sua The Grammar of ornament, apresentava a história do ornamento com objetivo declarado de educar o artista para que este pudesse plasmar suas próprias soluções ornamentais a partir do natural. 28 Cf., por exemplo, algumas das premonitórias teses lançadas por Manoel de Araújo Porto-Alegre ainda em 1855: “28. - Nas formas especiais das nossas plantas, flores e frutas não terá a arte cerâmica, principalmente a Mitecnia um manancial fecundo para novas inspirações? / 29. - A ornamentação e decoração dos edifícios, principalmente a executada pela pintura, deverá substituir os protescos e arabescos pelos objetos da nossa natureza americana; e qual tem sido a causa por que este caminho novo, apenas encetado por Sr. Debret e Francisco Pedro do Amaral, nos seus últimos dias, ainda não tomou o sen necessário e útil desenvolvimento?” Galvão, Alfredo. “Manuel de Araújo Pôrto-Alegre – Sua influência na Academia Imperial das Belas Artes e no meio artístico do Rio de Janeiro”, Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Rio de Janeiro, n.14, 1959, p. 57-61; existe uma versão disponível no site DezenoveVinte: http://www.dezenovevinte.net/txt_artistas/mapa_teses.htm 29 Conferir nesse sentido o recente Catálogo Exposição “Eliseu Visconti – Arte e Design”. De 27 de agosto a 30 de setembro de 2007. Caixa Cultural Rio de Janeiro. 30 Duque Estrada, Luiz Gonzaga. “Elyseu Visconti”. In Contemporâneos – Pintores e esculptores. Rio de Janeiro: Typ. Benedicto de Souza, 1929, p. 19-26.

República com esse segmento artístico de designação equívoca,26 é possível perceber um verdadeiro renascimento da antiga aspiração à criação de uma “Escola Brasileira”, entrelaçada com a fixação das belezas naturais do país. Seguindo de perto as concepções de teóricos e artistas oitocentistas, como John Ruskin e Owen Jones,27 se acirrou no Brasil da aurora do século XX o debate moderno sobre o ornamento. Era polemizada a apropriação historicista dos motivos decorativos de estilos e épocas heterogêneos que fora até então muito comum, em favor de uma inspiração obtida diretamente da natureza – no caso, como não poderia deixar de ser, de uma natureza tipicamente brasileira. Em certa medida, esse debate reatava com ideias esboçadas no meio artístico nacional ainda em meados do século XIX:28 a “Escola Brasileira” deveria surgir na esteira da difusão, em todas as esferas sociais, do ornamento inspirado na nossa flora e fauna, bem como – postulou-se posteriormente – em algumas de nossas manifestações culturais autóctones, como a cerâmica marajoara. Novamente, podemos perceber a mídia impressa como um campo de debates privilegiado dessa campanha pela nacionalização da arte brasileira. Durante as primeiras décadas do século XX, escritores e articulistas como o citado Gonzaga Duque, Manoel Campello, Plínio Cavalcanti, Flávio Brandt e Flexa Ribeiro, além dos próprios artistas, defendiam em artigos de jornais e de revistas a relação – supostamente necessária – entre a tão desejada criação de uma “Escola Brasileira” e o desenvolvimento de uma arte decorativa baseada em motivos nacionais. Vários artistas se engajaram nesse projeto. Provavelmente, o esforço mais conhecido foi aquele empreendido por Eliseu Visconti: desde os primeiros anos do século XX, após seu retorno da Europa, onde estagiara na condição de pensionista da Enba e estudara com o mestre Art Nouveau Eugène Grasset, Visconti já se dedicava à execução de obras calcadas em motivos da paisagem nacional, estilizando elementos da flora como a flor do maracujá e do cajueiro, a samambaia, entre outros.29 Esse era o caso de alguns de seus trabalhos mostrados no Rio de Janeiro em 1901, em uma exposição cuja fria recepção foi comentada à época por Gonzaga Duque30 e rememorada, um tanto amargamente, pelo próprio Visconti em entrevista, quase 30 anos depois, a Angyone Costa.31 Logo, porém, em um vigoroso crescendo que atingiria seu ápice nos anos 20, o desejo de criar uma arte decorativa nacional ecoaria muito além da capital federal: do norte ao sul do país podemos encontrá-lo, mais ou menos matizado por traços regionalistas. Cremos que dois artistas bastam aqui para ilustrar a amplitude do fenômeno. O primeiro é o paraense Theodoro Braga, aluno em Recife do famoso paisagista Telles Junior, e que depois cursou com destaque a Enba, conquistando o Prêmio de Viagem em 1899. Braga teve na Europa uma trajetória de estudos semelhante à de Visconti e, quando de sua

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volta ao Brasil, em 1905, teria concluído seu interessantíssimo repertório ornamental, intitulado A planta brazileira (copiada do natural) applicada à ornamentação, hoje na Seção de Obras Raras da Biblioteca Mário de Andrade, em São Paulo.32 Nas 18 pranchas de A planta brazileira... dedicadas exclusivamente à nossa flora, sucedem-se estudos de diversas espécies – feitos a partir da observação do natural e tratados em registro estilístico que remete à objetividade das ilustrações botânicas – com sugestões de composições ornamentais, feitas a partir da estilização dos motivos originais e pensadas para diversas técnicas “industriais”. Nas décadas seguintes, apesar de não ter conseguido concretizar em grande escala seus projetos, Theodoro Braga continuaria divulgando suas concepções, tanto através da atuação como professor, quanto em palestras avulsas e publicações. Quase no extremo oposto do país, o paranaense João Turim desenvolveria, a partir de inícios dos anos 20, logo após o retorno de uma estada na Europa, esforços afinizados com os de Theodoro Braga no sentido de criar um estilo decorativo baseado em elementos da paisagem natural paranaense, como o café, a erva-mate, as frutas silvestres

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Theodoro Braga. Capa e uma das páginas de A planta brazileira (copiada do natural) applicada á ornamentação, repertório ornamental datado de 1905; à direita, sugestões decorativas a partir do cacaueiro. São Paulo, Biblioteca Mário de Andrade. 31 Costa, Angyone. A inquietação das abelhas – O que dizem nossos pintores, escultores, arquitetos e gravadores, sobre as artes plásticas no Brasil. Rio de Janeiro: Pimenta de Mello & Cia, 1927, p. 82. Texto disponível no site DezenoveVinte: http://www.dezenovevinte.net/artigos_imprensa/artigos_ac.htm 32 Godoy, Patrícia B. “O nacionalismo na arte decorativa brasileira – de Eliseu Visconti a Theodoro Braga”. In Cardoso, R.; Dazzi, C.; Miyoshi, A. (orgs.). Revisão historiográfica: o estado da questão. Atas do I Encontro de História da Arte do IFCH – Unicamp. Campinas: Unicamp/IFCH, v.3, 2005, p.80; cf. também, da mesma autora, “Arte decorativa brasileira: Theodoro Braga e a planta brazileira (copiada do natural) applicada á ornamentação”, Revista de história da arte e arqueologia. Campinas, vol. 5, 2005.


e, especialmente, o pinheiro local.33 Juntamente com artistas como Lange de Morretes 33 Conferir Turim, Elisabete. A Arte de João Turim. Campo Largo: Ingra, 1998.

e João Ghelfi, Turim desenvolveria projetos naquilo que denominou “estilo paranista” – próximo das manifestações Art Déco – para modalidades artísticas tão díspares como indumentária, baixo-relevo, ilustração gráfica, decoração de interiores, mobiliário urbano e arquitetura. Alguns dos prédios concebidos por Turim foram efetivamente construídos, como, por exemplo, a residência do dr. Bernardo Leinig, hoje demolida, na qual era possível apreciar as colunas inspiradas no pinheiro, verdadeiros ícones do “estilo paranista”, com seu capitéis decorados com grimpas, pinhas e pinhões. A transcrição dos aspectos da natureza brasileira encontrada nas obras decorativas de artistas como Visconti, Braga, Turim e outros mais certamente possuía contornos diversos daquela encontrada nas pinturas de paisagem como as de Parreiras, Castagneto ou Baptista da Costa, com as quais iniciamos o presente texto. Ao interesse pela sugestão de envolventes efeitos de atmosfera e pela transcrição fidedigna da natureza brasileira, se substituía um fazer artístico eminentemente analítico e intelectual, com ênfase na fragmentação e na estilização depurada de seus motivos. Todavia, por trás de todas essas manifestações, cremos ser possível reconhecer único e mesmo impulso: o de elaborar, através da representação das belezas naturais do país, uma arte genuinamente brasileira, na qual a essência da pátria pudesse ser vislumbrada.

Referências bibliográficas BRUNHAMMER, Y. Le beau dans l’utile: un musée pour les arts décoratifs. Paris: Gallimard, 1992. CAVALCANTI, Ana Maria Tavares. “Os embates no meio artístico carioca em 1890 – antecedentes da Reforma da Academia das Belas Artes”, 19&20, volume II, n. 2, abril de 2007. CHIARELLI, Tadeu. “Gonzaga-Duque: a moldura e o quadro da arte brasileira”. In DUQUE ESTRADA, Luiz Gonzaga. A Arte Brasileira. São Paulo: Mercado de Letras, 1995. COSTA, Angyone. A inquietação das abelhas - O que dizem nossos pintores, escultores, arquitetos e gravadores, sobre as artes plásticas no Brasil. Rio de Janeiro: Pimenta de Mello & Cia, 1927. DUQUE ESTRADA, Luiz Gonzaga. Contemporâneos - Pintores e esculptores. Rio de Janeiro: Typ. Benedicto de Souza, 1929. EXPOSIÇÃO “ELISEU VISCONTI – ARTE E DESIGN”. De 27 de agosto a 30 de setembro de 2007. Rio de Janeiro: Caixa Cultural (Catálogo de Exposição). GALVÃO, Alfredo. “Manuel de Araújo Pôrto-Alegre – Sua influência na Academia Imperial das Belas Artes e no meio artístico do Rio de Janeiro”, Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Rio de Janeiro, n.14, 1959. GODOY, Patrícia B. “O nacionalismo na arte decorativa brasileira – de Eliseu Visconti a

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Theodoro Braga”. In CARDOSO, R.; DAZZI, C.; MIYOSHI, A. (org.). Revisão historiográfica: o estado da questão. Atas do I Encontro de História da Arte do IFCH – Unicamp. Campinas: Unicamp/IFCH, v.3, 2005. ________________. “Arte Decorativa Brasileira: Theodoro Braga e A planta brazileira (copiada do natural) applicada à ornamentação”, Revista de história da arte e arqueologia, Campinas, vol. 5, 2005. HESKETT, John. Industrial design. London: Thames and Hudson,1980. MIGLIACCIO, Luciano. “Rodolfo Amoedo. O mestre, deveríamos acrescentar”. In MARQUES, Luiz (org.). 30 Mestres da Pintura no Brasil. São Paulo/Rio de Janeiro: Masp/ MNBA, 2001 (Catálogo de exposição). SCHWARCZ, Lilia. As barbas do imperador – um monarca nos trópicos. São Paulo: Companhia da Letras, 1999. TURIM, Elisabete. A Arte de João Turim. Campo Largo: Ingra, 1998. Fontes primárias / Artigos em periódicos “Artes e Artistas/Escola Nacional de Bellas-Artes/Exposição Geral”, O Paiz, n. 3653, 1 de outubro de 1894, p. 2. Autor: Oscar Guanabarino. Gazeta de Notícias, sábado, 27 de setembro de 1884. Autor: L. S. Gazeta de Notícias, fevereiro de 1888. Autor: Gonzaga Duque. “Salão de 1904”, Kósmos, ano 1, n. 8, setembro de 1904. Autor: Gonzaga Duque. “Salão de 1905”, Kósmos, ano 2, n. 9, setembro de 1905. Autor: Gonzaga Duque. “Salão de 1906”, Kósmos, ano 3, n. 10, outubro de 1906. Autor: Gonzaga Duque. Documentos Acervo arquivístico do Museu Dom João VI EBA/UFRJ. Notação 4750: Programa da aula de Pintura, do professor Rodolpho Amoêdo. Acervo arquivístico do Museu Dom João VI EBA/UFRJ. Notação 4996: Programa para aula de Pintura, do professor Henrique Bernardelli. Decreto n. 983, de 08 de novembro de 1890, deferido pelo chefe do governo provisório, o general Deodoro da Fonseca e assinado por Benjamin Constant, ministro dos Negócios da Instrução Pública, Correios e Telégrafos. Estatutos da Imperial Academia e Escola das Belas Artes, estabelecida no Rio de Janeiro por decreto de 23 de novembro de 1820.

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Arthur Valle (Faetec, Rio de Janeiro, Brasil) é graduado em pintura (1998), mestre (2002) e doutor (2007) em Artes Visuais pela Escola de Belas Artes da UFRJ. Pósdoutorando em história na UFF, onde desenvolve pesquisa sobre as Exposições Gerais de Belas Artes durante a Primeira República. Atua como pesquisador e professor, lecionando no Instituto Superior de Educação da Faetec. Temas de pesquisa principais: pintura na Primeira República; história, teoria e crítica de arte dos séculos XIX e XX. / artus_agv@yahoo.com.br

Camila Dazzi (Cefet-UnED, Rio de Janeiro, Brasil) é graduada em artes plásticas (2003) pela EBA/UFRJ e mestre (2006) pelo IFCH/Unicamp. Doutoranda em história da arte pelo PPGAV/EBA da UFRJ, onde desenvolve pesquisa sobre a Reforma de 1890 da Academia de Belas Artes e sua posterior implementação, atua como professora, lecionando nos cursos de graduação e pós-graduação do Cefet-UnED – Nova Friburgo. Temas de pesquisa principais: arte brasileira do século XIX; ensino artístico oitocentista, crítica de arte do século XIX. / camiladazzi@yahoo.com.br

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Foto gentilmente cedida por Maria LĂşcia GalvĂŁo, professora do Instituto de Artes da UERJ que acompanhou e registrou a palestra-performance Fetichismos Visuais de Canevacci (UERJ, 2008).


Das misturas e das transformações, o sincretismo como método Isabela Frade

Desde suas primeiras publicações na década de 1980, em que se destacou no meio acadêmico brasileiro com o livro Antropologia da Comunicação Visual, Massimo Canevacci vem formando um vasto e diferenciado público, marcadamente nas áreas de antropologia e sociologia urbanas e comunicação social. Sua inserção na área de artes é rarefeita, fato que esta publicação visa minorar. Suas mais recentes publicações, Culturas eXtremas e Fetichismos visuais, são obras de grande vigor intelectual e se aprofundam nas questões das novas ordens (ou desordens?) visuais produzidas pelas camadas juvenis, as artes marginais (ainda? Talvez melhor fosse tratá-las como artes insurgentes...) inscritas nos corpos urbanos e de seus surroundings – músicas techno, veículos de propaganda, as celebrações rave, fetiches transexuais e muitas outras formas de sua expressão estética. Da mistura de corpos eróticos e das novas formas de comunicação midiáticas, por Canevacci emerge uma nova teoria da imagem no contemporâneo. É essa que nos interessa tocar aqui, especialmente relacionando-a com o texto da tradução que se segue. Desenvolvo essas reflexões tendo em mente sobretudo aqueles estudiosos das artes que (ingênua ou maliciosamente?) ainda buscam manter o rigoroso traçado das fronteiras epistemológicas de um campo mal desenhado e numa versão quixotesca se esmeram nos ferinos ditames restritivos que rotulam o “isso não é arte” ou “aquilo não pode ser tratado como pesquisa em arte” e tantas outras fórmulas decadentes, mas certamente operantes nos territórios universitários. Desde sempre envolvida pelo ar mais fresco que circula nos âmbitos mais amplos do pensamento, paisagens arejadas e campo profícuo para as discussões democráticas – que nascem nas praças e morrem nas celas e nos calabouços –, mantenho contato com a obra desse autor, acompanhando o seu crescimento vertiginoso de intelectual que atinge esferas internacionais nas discussões sobre os vetores mais potentes das imagens produzidas nas arenas contemporâneas. O que mais me encanta (e me deixa estupefata, para usar seu próprio termo) é que, em sua maturidade plena, Canevacci corajosamente se abre a múltiplos experimentos e inovações metodológicas, sempre em busca do contato direto com seu objeto de estudo em grande-angular – o comportamento humano. Advertência que obtemos dos grandes intelectuais (destes e de outros tempos) é que é preciso também pensar-se, e olhar-se em seu próprio exercício do pensamento. Essa qualidade de saberse comprometido, abrindo mão dos elogios fáceis e dos cômodos circuitos do criticismo moralizante, é uma das forças de seu trabalho. Correndo riscos ao expor até seus íntimos devaneios, colocando-se como alvo fácil das análises superficiais e apressadas, Canevacci retira daí sua energia para novas investidas. Recentemente, em uma das suas apresentações públicas, ele pacientemente explicava a autoexigência em inovar seu repertório e criar novas condições de diálogo nos recintos acadêmicos. “É preciso pensar nas transformações e senti-las... é preciso um novo discurso, um novo modo de tratálas e de apresentá-las.” O pequeno e instigante texto Transculturalidade, Interculturalidade e Sincre-

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tismo, ainda inédito na própria Itália, lugar explicitado de seu destino, cabe aqui como uma provocação, uma autoexegese do pensador de uma antropologia das novas configurações metropolitanas. Canevacci explora esses lugares que brotam com energia das comunicações mais restritas aos coletivos juvenis e que se estendem e envolvem, em múltiplos circuitos e em última instância, toda a rede planetária. Um pensamento mutante, uma postura aberta, um comportamento arriscado, mas nem por isso menos denso ou pouco potente, concentrado em seu propósito de capturar as misturas e transgressões, de pensá-las com vigor. Para tanto, Massimo vem desenvolvendo um glossário com possibilidades de intercessão e de confluência – cada qual se origina de um mesmo movimento – de abertura para a polifonia dissonante das manifestações em trânsito, para as interfaces entre seres e coisas, entre máquinas e sujeitos, entre cultura e mercado. Há esperança de que esse texto sirva como um antídoto para os entraves teóricos do pensamento instituído e refratário a contingências e alternâncias, ao movimento dos corpos eróticos e das novas formas de inscrições das subjetividades coletivas que permanecem inaudíveis (ainda que gritem) e invisíveis (ainda que choquem) – por isso ele cede em leves gotas na delicada composição que se destaca de sua forma direta e contundente. Neste temos o Massimo em sua conversação mais suave e calma, didaticamente controlada. Mais um convite ao salto para além dos entraves do rigor acadêmico – força que resiste ao que distorce e asfixia os seres-coisas do mundo no exercício em seu poder compressor para alocar seus objetos em estreitas grades teóricas – longe de sua costumeira impaciência e antipatia que por eles nutre. Vejo aqui um convite para um passeio baudelairiano pela urbe do século XXI, o que já pregava em sua antropologia da comunicação visual: flanar, perder-se. Adentrar outros espaços sem o pré-juízo, ser capaz de assimilar as diferenças por uma atitude metodológica espontânea e criativa. Ser capaz de esquecer e abarcar as novas formações visuais em seus interstícios, os comportamentos juvenis em suas concentrações espaciais – por isso o destaque à arquitetura e aos modos de inserção em seus espaços híbridizados. Ainda que não concorde com o descarte do termo multicultural que, para mim, ao contrário, se ajusta organicamente com o seu conceito do multivíduo – para o multisujeito, muitas culturas –, percebo que essa é apenas uma estratégia para a crítica da motivação instrumental que possui e que se desloca, de modo mais sofisticado, para o modelo transcultural. Muito além do discurso científico corrente, exacerbado em seus projetos restritivos pela orientação ao carreirismo universitário, adaptado e articulado com as demandas de uma produtividade alienante, Canevacci é um pesquisador ativo que se mescla aos sujeitos em sua pesquisa, trabalhando com empatia, não por distanciamento.

Isabela Frade (UERJ, Rio de Janeiro, Brasil) é educadora, artista e pequisadora. Coordena a linha Arte, Cognição e Cultura do Programa de Pós-Graduação em Artes da UERJ e é líder do GP-CNPq Observatório de Comunicação Estética. Mantém contato com a obra de Canevacci desde 1989, quando o conheceu em Roma. / isabelafrade@gmail.com 138

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Transculturalidade, interculturalidade e sincretismo Massimo Canevacci

Analisa a crise da perspectiva multicultural comentando sua formação nas ciências sociais norte-americanas no começo do século XX, refletindo sobre sua progressiva repercussão e explicando sua afirmação tardia na Itália. A multiculturalidade e seus subsequentes desdobramentos – a interculturalidade e transculturalidade –, irradiam a cultura hegemônica através de regras estáveis e unificadas, agora colocadas em xeque pelas novas formas de sociabilidade geradas nas metrópoles comunicacionais do mundo contemporâneo. Comunicação estética, antropologia visual, cultura metropolitana. Nos processos culturais que estão atravessando o mundo inteiro, a ItáTradução Isabela Frade.

lia tem assumido papel atípico que deve ser observado, interpretado e possivelmente transformado com sensibilidade que conjugue capacidades etnográficas de levantamento e escolhas de valorização das mutações. O debate parte da crise da perspectiva multicultural. Na primeira parte do século passado, para fazer frente aos fluxos migratórios, afirmou-se nos Estados Unidos uma visão plural da cultura em seu significado antropológico clássico (modo de vida, valores, comportamentos, estilos, crenças, etc.), enquanto entre nós a cultura esteve presente em seu sentido “humanístico”, baseado na origem-pureza-autenticidade, ignorando ou contestando desde há muito qualquer perspectiva multicultural. Não só: quando essa visão se afirmava nos Estados Unidos, na Itália eram promulgadas as leis raciais. Depois de quase meio século, o problema da imigração começou a apresentar-se não apenas em nossa periferia, mas atingindo os centros urbanos, e agora se importa o tal conceito já obsoleto. De fato, aquele tipo de antropologia progressista, aplicada para resolver a coexistência dos tratos culturais diversos, havia realizado um modelo divergente daquele previsto: uma multiplicidade de culturas diferentes, cada qual encerrada em seu próprio recinto cultural, com seus próprios etnocentrismos bem cultivados, e com tendência a imaginar os países de origem em seus cânones mais marginais, reproduzindo atrasos e estereótipos nos países hospedeiros. E no centro desse estranho multiverso irradia-se “a” cultura hegemônica estadunidense através de regras estáveis e unificadas. O multiculturalismo, assim, torna-se um slogan que atesta o indiscutível controle na valorização de uma mesma cultura – aquela wasp – e a marginalização de todas as outras, mais ou menos exotizadas, em mútua competição para serem reconhecidas e convidadas a se sentarem na última fila do teatro social.

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Dois filmes – que parecem diferentes – definem este ambíguo processo multicultural: primeiro West Side Story, que transforma a oposição familiar ao amor trágico de Shakespeare em oposição racial nos balés “progressistas” de Jerome Robbins. Depois Blade Runner que aparentemente elogia o mix multiétnico, enquanto de fato todo aquele agito dentro do cadinho de uma LA “futurista” não é mais do que a legitimação do modelo multicultural: as regras que determinam sempre os brancos na versão humana (o herói), na pós-humana (o clone), e naquela semidivina (o criador). O arco histórico-cultural que atravessa esses anos de Nova York a Los Angeles (não só no cinema) simboliza o domínio imodificável dessa visão multicultural que centraliza o branco-wasp e que torna periférico todo o resto. E também sua crise... A consequente crise de tal modelo levou muitos mediadores culturais a abandonar o termo e a propor a interculturalidade. A diferença aparece subitamente evidente: a passagem do multi ao inter vai afirmar uma perspectiva de entrelaçamento na qual o nexo entre as diversas culturas – vistas todas como mais ou menos paritárias – deixa de ser um problema nacional e se torna uma relação global. A interculturalidade, de fato, é uma tentativa de traduzir outra terminologia que está assumindo leadership formativa: crosscultural communication. A inovação não é de agora, mas de quando se insere a dimensão comunicacional como substantivo fundante do atravessamento cultural. Só que a modulação especializada que rapidamente se afirmou tornou-se um prontuário funcionalista sobre como fazer frente a simples problemas expressos em linguagens diversas, espécie de caráter gerencial, deixando num fundo objetivado ou neutro o contexto global. Em suma, comunicação entre pessoas diferentes, para trabalharem melhor sob determinadas condições. De novo a matriz antropológica da cultura vem sendo utilizada politicamente para refinar as contradições estridentes e tornar funcionais as diferenças “étnicas” em recíproca tolerância produtiva para uma gestão dos recursos humanos eficiente, higiênica e já claramente transnacional. Aceno somente para o fato de que tal conceito de cultura permanece aquele clássico, unificado e homogêneo para cada grupo humano, enquanto há muito as vertentes mais interessantes da pesquisa antropológica já sublinharam a importância de posicionar as culturas sobre um trato plural, descentrado, fluido, sempre em movimento. O multiculturalismo é endogâmico, voltando-se para o interior de um estado-nação próprio; a interculturalidade é exogâmica, se estendendo globalmente a outros confins. Ora, o vetor intercultural parece tornar-se um treinamento para gerir e resolver os riscos de incompreensões linguísticas e, obviamente, culturais entre os diferentes. E em tal conceito do diverso permanece uma centralidade “étnica” que segue embutida nas discussões com a mesma força valorativa com que seu antecedente – a “raça” – foi confinada aos horrores linguísticos e políticos da humanidade. Não existe nenhum motivo científico

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para selecionar, ainda que apenas implicitamente, tal indicador étnico ou racial diante de uma miríade de variáveis como território, gênero, renda, trabalho, área geográfica, preferências alimentares ou gostos eróticos, escolhas políticas, musicais, estéticas e assim por diante. Ao contrário, é hora de declarar obsoleto o neocolonialismo no vínculo intercultura-etnicidade. Pessoalmente sempre preferi a expressão sincretismo cultural e ainda estou convencido disso. Com tal perspectiva, de fato, a questão deve ser posta segundo as diversas diagonais que aceitam irregularidades, conflitos, tensões, renunciando ao funcionalismo asséptico. Minha perspectiva se baseia em alguns conceitos-chave: - Transurbanismo ou metrópoles comunicacionais: a cidade industrial se dissolve no ar, em um ar de pixels que desenha uma nova metrópole baseada mais na comunicação do que sobre o conceito oitocentista de sociedade. Em tal novo contexto, atravessamentos, enxertos, mutações, cruzamentos, hibridações fazem parte constitutiva da experiência cotidiana. A experience-design desenha então não apenas objetos, mas coisas-seres – materiais e imateriais, orgânicas e inorgânicas – que solicitam e mobilizam a experiência emocional do sujeito. Ao lado das novas arquiteturas e de uma arte que se expandem nos setores quotidianos e públicos, a expressão das emoções liquefeitas na experiência da metrópole comunicacional define os trânsitos urbanos e culturais denotando com extrema felicidade a morte do conceito de cultura como qualquer coisa de unificado, compacto, geral. - Hibridentidades: as identidades são o território mais difícil e conflituoso para tais trânsitos. Desde muito o conceito de identidade tem sido reivindicado como fundado sobre raízes precisas e estáticas: a identidade conectada a um trabalho fixo por toda a vida, a um matrimônio indissolúvel, a um território conhecido, a uma sexualidade definida, a uma classe etária exata. Trabalho-amor-território-geração enquadravam a identidade em moldura estável. Ora, tudo isso se dilui em constante mutação identitária que favorece, especialmente em alguns sujeitos, a inédita possibilidade de viver uma multiplicidade identitária (laboral, sexual, espacial, geracional). O multivíduo – um sujeito que coabita com uma pluralidade inquieta de “s” – entra em cena e conflito com os esquemas tradicionais que se revelam resistentes (fundamentalismos). - Tecnossincretismos: o sincretismo se desvincula de sua matriz cultural tradicional (religiosa ou popular) para atingir o coração da lógica e da política clássica, em particular a dialética com os seus dualismos e a síntese. Os sincretismos fluidificam e desregulam qualquer hipótese de feliz solução universal ou dicotômica. Com essa finalidade se entrelaçam com a tecnologia digital em cujo corpo mutante (body-corpse) desafia-se a racionalidade tradicional, exalta-se o mix entre corpos e códigos irreconciliáveis, afirmam-se conceitos sensoriais. Coexistem o incongruente, a aporia, o temporal, o fragmentário, o híbrido, que deslizantes se mesclam e às vezes espontaneamente se tornam potencialida-

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de de trânsito pelas constelações cognitivas dos significados móveis, como a identidade e a tecnologia. O digital exalta o sincretismo e não a síntese. É, assim, evidente: basta pôr em escuta a publicidade e perder de vista alguns filósofos. - Polifonias dissonantes: a dissonância é constituída de tais processos diagonais, disparatados, irredutíveis a modelos harmônicos. A harmonia musical e a social se esgotaram nos instrumentos dos estados-nações autoritários ou nas igrejas monoteístas. As vozes, os rumores, os sons – tudo soundscape metropolitano e digital – dissonam o sujeito multivíduo, liberando-o das imaginadas utopias que acalmavam e enrijeciam cada mutação. O estridor acústico é parte constitutiva da experiência emocional compositiva que se distende em multiplicidade polifônica para além das harmonias estanques. Bela, belíssima, mas inaudível. Por isto as polifonias desafiam as monoescrituras lineares e cada discurso monológico. Conjugam e atravessam linguagens profundamente diversas, que sempre mais somos habituados a decifrar simultaneamente em uma homepage, e cuja composição é bem diversa da primeira página dos jornais impressos (front-page). - Arte, design, arquitetura, publicidade: todo o multiverso da comunicação digital aplicado às novas formas expressivas impulsiona para além da perspectiva pictórica e lógica como se afirmava do Renascimento em diante. As culturas fragmentadas e sincréticas, moduladas no digital liberam tais potencialidades, não obstante estarem as universidades - tantas universidades - ainda constitutivamente analógicas. Emoção e experiência não são termos naturalísticos que tais artes descobriram, nem estão aderidas às suas matrizes filológicas ou filosóficas. Nessas se exprime a potencialidade de que lógicas inéditas possam compartilhar os espaços metropolitanos e digitais dos multivíduos para praticar aquilo que poderia ser, para liberar o que ainda-não-é bloqueado pela estética oito-novecentista. Ambos são compenetrados pelas multissensorialidades e multissequencialidades que se distendem em torno de um sujeito sempre menos social e cada vez mais comunicacional. Segundo tais perspectivas pós-euclidianas, termos como interculturalidade, transculturalidade ou multiculturalidade são deslocados de suas matrizes raciais ou étnicas que só reproduzem domínios mais ou menos superados; os sincretismos culturais ultrapassam um problema epistemológico e político que a ciência ocidental não poderá jamais resolver segundo aquela tradição: definir a identidade étnica como se deu entre os brasileiros, por exemplo, com base em um formulário objetivo e obsoleto, que terminou por produzir resultados desastrosos e inúteis: agora se solicita a cada pessoa que defina a própria identidade cromática. Desse modo diversas tipologias são omitidas (brancos, amarelos, mulatos, negros) e a estatística se faz imprecisa e multiforme, o que tornará mais inútil tentar fixar a raça ou a etnicidade de uma pessoa. Entretanto o paradoxo é que cada multivíduo terá a sua prória etnicidade, tornando obsoleto tal termo colonial, assim como o design contemporâneo pós-industrial é individual oriented e o target publicitário coincide com a atmosfera de um único cliente. Que seja transculturalidade a definição adotada torna-se,

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assim, coisa substancialmente inútil ou indiferente: o importante é que as relações se baseiam sobre constelações móveis feitas de tecnossincretismos transurbanos, hibridentidades polifônicas e dissonantes, mix emocionais de arte e design. Talvez seja mesmo um extenso design emocional que resolva e dissolva a interculturalidade...

Massimo Canevacci (Sapienza – Università di Roma, Roma, Itália) é docente de antropologia cultural e arte e cultura digital junto à Facoltà di Scienze della Comunicazione dell’Università degli Studi di Roma “La Sapienza”. Ensina e faz pesquisa regularmente também no Brasil. Entre suas publicações: Comunicação visual. São Paulo: Ed. Brasiliense, 2009; La linea di polvere. I miei tropici tra mutamento e auto-rappresentazione. Roma, 2007; Fetichismos visuais. São Paulo: Atelier, 2008; Culturas extremas. Rio de Janeiro: DpA, 2005; Sincretismos. São Paulo: Studio Nobel, 1996; A cidade polifônica. São Paulo: Studio Nobel, 1997. / maxx.canevacci@gmail.com

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Sobre Escultura como Imagem, de Cristina Salgado Tania Rivera

Trata-se de ensaio crítico da exposição Escultura como imagem, de Cristina Salgado. Explora a proposição conceitual desse trabalho, que põe em oscilação as tradicionais concepções de imagem e escultura, denunciando seu caráter convencional. Em vigorosa reflexão sobre a imagem que não se contenta com a oposição figurativo, não figurativo, o trabalho de Cristina é analisado em sua característica de manter a tensão entre forma e informe, matéria e representação, desenho e cor, na busca de uma essência da imagem que iria além do visível, pois seria a presença do sujeito em seu gozo. Imagem, escultura, sujeito. “Quanto mais uma imagem recua, mais cresce.” Paul Nougé Escultura como imagem é a resposta de Cristina Salgado à proposta de André Breton de que “a beleza será convulsiva ou não será”. Esse enigmático título sustenta uma proposição conceitual que põe em oscilação nossas tradicionais concepções de imagem e escultura. Ele denuncia o caráter convencional de tais definições e sua permanência após mais de um século de questionamento modernista. Forjada ao lado, ou melhor, imbricada ao trabalho de doutorado de Cristina na EBA-UFRJ (sob orientação de Glória Ferreira), a principal peça apresentada no Paço Imperial se constrói como superposição e dobra de longas faixas, cortadas a estilete, de carpete vermelho, branco e preto. Ela pousa firmemente no chão e, a partir dele, ganha altura. Dispensa pinos, em montagem efêmera que deve ser inteiramente desfeita para seu transporte. Ela tem estranha organicidade, em sua disposição de camadas reduplicadas. Encarnação barroca domada e inumanizada para melhor trazer as vísceras – aquelas que estão fora, e nos põem entre suas camadas, em seus buracos que atravessam o espaço e desmentem a superfície reduplicada. A imagem não deixa de ser aí afirmada, porém sofre uma torção fundamental. A escultura se propõe como imagem no espaço, dispensando a presença do suporte que a definiria como imagem. A imagem brota do chão, do inorgânico, do industrial. Brotaria talvez do

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nada, assim como um vaso se faz pelo vazio que o esculpe de dentro, no exemplo que Lacan retoma de Heidegger. Escultura como imagem desdenha o plano no qual poderia se afirmar como representação, para apresentar-se em sua força de matéria. Ela não chega a dispensar o plano, a superfície, mas o retorce e dobra sucessivamente, com determinação, até torná-lo diretamente matéria apresentada, volume no espaço. Entre as dobras do grosso tecido desenham-se fendas, abertas aqui e ali por rodelas de tubos de borracha que facilitam a passagem do olhar para o outro lado e integram a composição no espaço, incluindo-o definitivamente. Buracos-olhos? A imagem se desenha diretamente no espaço, como corte da superfície que, dobrada e justaposta, toma corpo e se torna fato escultórico – fazendo da matéria algo inerente à imagem. Retomando a passagem originária do invisível para o visível, ela se condensa como invisibilidade guardada em suas dobras, autocrítica de seu caráter visível. Ela negocia uma sutil economia entre visível e invisível, querendo-se imagem capaz de recuperar uma força de apresentação transcendente. Por sua estrutura espacial, o trabalho é arquitetônico – aliás, como fez ver a crítica Luíza Interlenghi à artista, o carpete é um elemento da arquitetura. Indo além dessa constatação, Escultura como imagem quer ser arquitetura no sentido mais pleno – ela pretende ligar-se a uma construção originária do espaço, que realça seu vazio, o vazio da morada do homem, como nas catedrais góticas. A peça ganha, então, monumentalidade, dominando o espaço de exposição, transformando-o, e nele transformando nosso olhar, convulsionando nossos olhos. Ela também é arqui-textura, com sua densa pele de fibra de PVC e resina sintética. Essa textura está em continuidade com a exposição anterior da artista, em 2006, na Galeria Anna Maria Niemeyer, no que se refere ao uso das camadas de carpete, às vezes combinados a tecidos emborrachados de cores orgânicas, formando peças em escala humana de aspecto antropomórfico. Marias Convulsionadas e Rostos (2006-2007) eram explicitamente antropomórficos, enquanto peças maiores evocavam mais vagamente corpos convulsionados, porém firmes em sua amarração sustentada por grossos pinos de metal que lhes permitiam a posição vertical sobre as paredes da galeria. De lá para cá, porém, algo aconteceu. A figura humana é desantropomorfizada, ou melhor, transformada de modo a dela restar apenas algum traçado acessório, quase apêndice. Da figura à imagemescultura, a alteração fundamental está na própria estrutura das peças. Retesadas graças a grossos pinos de metal, as mais antigas podiam ser pousadas no chão, mas pareciam destinadas à parede, numa espécie de colagem tridimesional na superfície da tela. Agora, a própria obra desconstrói o suporte representativo e se espalha languidamente pelo chão, pelo espaço, não sem marcar, com seu peso, uma presença surgida como de debaixo do chão, de um magma abissal.

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Completando o movimento de expansão dessa coisa no espaço arquitetônico, há pinos que pregam na parede da sala do Paço Imperial algumas das camadas de carpete, formando uma dobra que deixa pendidos os únicos elementos antropomórficos que aí restaram: um perfil estilizado e o contorno de um pé. Eles não são vitoriosos sobreviventes de uma catástrofe, propriamente, mas são como os ex-votos com que Cristina também trabalhou extensivamente, nos anos 90. Fora do corpo, representando-o como dom ao outro. Exdesejos. Fora do desejo, dentro do desejo. Volteios do desejo que se apresentam como objetos parciais, segundo a noção psicanalítica cara à artista. Partes do corpo que estão entre o eu e o outro, demarcando zonas de prazer e dor. Gozo tão presente nos drapeados e nos êxtases barrocos, e que em Escultura como imagem tornam-se lânguidos desmaios, elegantes convulsões. Refazendo o sofrido caminho de abandono da mímesis por sua própria conta e risco, Cristina quer, como o personagem Freinhofer, de Balzac, acariciar o contorno da figura até liberá-la “do desenho e dos meios artificiais”, para atingir uma verdade que talvez seja uma bela leitura atual do que Breton chamava de “modelo interior”. Como na tela da famosa “Obra-prima desconhecida”, surge de repente, sob camadas superpostas de cores, “um pé vivo”, como um fragmento que teria escapado de uma incrível, uma lenta e progressiva destruição. Como o torso de uma Vênus de mármore surgiria entre os escombros de uma cidade incendiada. A súbita descoberta desse pé faz um personagem do conto exclamar, surpreso: “Há uma mulher aí embaixo!”

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Nos jogos escultórios surrealistas da série significativamente intitulada humanoinumano (1995), a figura humana era subvertida, mas sem que jamais fosse abandonada a figuração, em peças maciças de ferro que articulavam elementos díspares, como um enorme torso com esquálido membros, ou trazendo uma face de anjo de cujos olhos brotavam, pungentes mãos infantis (Olhomão). A partir daí, a tensão entre figura e informe tornase uma tônica na trajetória de Cristina. Às vezes ela toma um partido mais claro a favor do informe, mas para fazer dele surgirem notícias da figura: de massas amorfas, porém cuidadosamente lixadas, brota um dedo, por exemplo, na série Instantâneos (2002). Aí, o informe é tornado forma, apesar de, na luta entre figuração e matéria, a primeira parecer sair vitoriosa. Já em Esculturacomoimagem, a resposta figurativa é nuançada e se autocritica, numa vigorosa reflexão sobre a imagem que não se contenta com a oposição entre figurativo e não figurativo, mas mantém a tensão entre forma e informe, matéria e representação, desenho e cor, na busca corajosa de uma essência da imagem que iria além do visível, pois seria a presença do sujeito em seu gozo. Cristina se confessa iconófila e quer compartilhar sua paixão pela imagem. Com a imagem, ela quer ressucitar o poder quase mágico, místico, de evocação direta de algo que transcende a imagem. Como nos ícones religiosos, trata-se aí de forjar uma presença direta – não de Deus, mas do sujeito. Parece ter sido superado o vocabulário imagético

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autorrefenciado que costumava dar o tom do trabalho da artista, em geral com torções surrealistas – como em sua cama pendurada no teto no belo Menina rezando em sua cama, de 2001. Mas isso se dá em prol de autoindexação mais sutil, em uma negociação entre presença e ausência que deixa entreaberta uma porta para o sujeito. Para isso, talvez seja necessário, como diz ainda Breton, trocar a terceira pessoa pela primeira. “Limite-se apenas a deixar suas memórias”, diz ele a um escritor, “dê-me os nomes reais, prove-me que você não detém o poder total sobre seus heróis”. E conclui: “só me interesso por livros deixados entreabertos, como portas”. Na brecha da porta, na dobra entreaberta da matéria, perfila-se a possibilidade de um profundo reconhecimento. Cristina nos entreabre algo que nos levaria, é certo, para fora de nós, trazendo notícias de um corpo. Ela busca tornar sensível o que chama de “epiderme dos objetos”. Em contraponto à grande peça, temos na exposição no Paço Imperial, pendurada no teto, uma peça bem menor, no formato aproximado de punho terminando em inúmeras dobras: Vermelho. A epiderme da cor, num floreio pungente porém delicado. Quase uma flor. Brincando de reproduzir essa imagem escultórica, quatro fotos fazem com ela um jogo cruzado. Esse jogo sutil tenta capturar algo de nós que não é propriamente nosso, mas reconstrói, surpreendente, algo profundamente íntimo. Como dizia Bellmer de sua Boneca, “uma garota artificial com múltiplas possibilidades anatômicas” seria capaz de “refisiologizar as vertigens da paixão até inventar desejos”.

Tania Rivera (UnB, Brasília, Brasil) é psicanalista, professora da Universidade de Brasília e pesquisadora bolsista do CNPq. Doutora em Psicologia pela Université Catholique de Louvain, Bélgica, com pós-doutorado na Escola de Belas-Artes da UFRJ. Autora de Cinema, imagem e psicanálise (2008), Guimarães Rosa e a psicanálise. Ensaios entre imagem e escrita (2005) e Arte e psicanálise (2002), todos por Jorge Zahar Editor, e coorganizadora de Sobre arte e psicanálise (Escuta, 2006). / taniarivera@uol.com.br

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Resenha sobre a exposição Abre Alas 5, realizada nas galerias A Gentil Carioca, Barracão Maravilha e Espaço LCD entre 24 de janeiro e 28 de fevereiro de 2009. A resenha disserta sobre a exposição Abre Alas 5 que contou com a participação de artistas emergentes do Brasil, Chile, França e Inglaterra. Aborda como os temas de identidade, contemporaneidade e transnacionalidade são negociados pela geração mais recente de artistas. Crítica de arte, arte contemporânea brasileira, identidade. Nos últimos tempos tenho-me perguntado o que caracterizaria uma “arte brasileira”. Seria uma arte marginal identificada com a bandeira “da adversidade vivemos” de Oiticica como a crítica internacional teima em nos associar? Ou uma arte que explora os limites do corpo, com base fundamentalmente em nosso legado de país que possui arraigado em sua cultura a ginga, a malandragem e o carnaval? Ou seria ainda uma arte que privilegia o exótico, visto que já fomos taxados de construtivos sensíveis, conceituais marginais e minimalistas dos trópicos? Maneira estranha de conhecer uma resenha tendo mais perguntas do que afirmações... Apesar do título ambíguo e carnavalizante da exposição, essa iniciativa da galeria A Gentil Carioca tem-se mostrado cada vez mais madura com o passar das edições e, mais do que isso, tem proporcionado a seus visitantes clara noção de que arte é efetivamente um fenômeno transnacional e não vinculado a um contexto específico e local. As obras dessa exposição não estavam, portanto, dialogando com uma brasilidade ou com um contexto local, mas se inserindo num diálogo abolidor de fronteiras e cada vez mais empenhado em se tornar mediador de experiências que retratam a diversidade em que vivemos. A precisa escolha das obras e o atravessamento de poéticas proporcionaram ao visitante desses espaços a oportunidade de descobrir um panorama sintético e encorajador das novas produções. Contando com artistas do Brasil, Chile, França e Inglaterra, essa edição do Abre Alas não se quis tornar plataforma dos jovens artistas brasileiros; pelo contrário, foi profícua a aproximação e o diálogo travado entre produções de diferentes países. O conjunto de trabalhos operou com a diferença. Não estou falando apenas em multiElisa Castro. Qual o seu medo? 2009. Instalação. Dimensões variáveis. (Coleção da artista). Foto: Paulo Innocêncio.

plicidade de suportes ou mesmo criação de novos gêneros artísticos. Aqui a diferença é entendida como geração de invenção, desvio de expectativas ou prática experimen-

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tal para uma percepção de um mundo onde as questões de agora são como se fazer entender, como não ser neutralizado; como não ser capturado dentro de um sistema que tudo assimila, em que você pode fazer tudo. Hoje, portanto, lutamos contra a neutralização das linguagens. A questão que essas obras colocam é como se fazer ouvir, como mostrar que a experiência que o artista propõe é veemente ou importante. Nesse assombro de informações inúteis, velocidades instantâneas de informação e conhecimentos vastos disseminados numa rede que busca o universal, Brenda Valansi em A viagem de D. Elza (2008) lança uma fina ironia numa viagem entorpecida por ácido e visões alucinógenas. Em meio a uma edição frenética simulando uma imersão na lisergia, palavra e imagem encontram simbiose perfeita no acúmulo de percepções que esse transbordamento imagético provoca em nosso cotidiano. As conversas entre as obras dessa exposição foram estabelecidas por afinidades eletivas. Nessas mediações (de diferenças), as obras de Bianca Bernardo e Elisa Castro mostram-se competentes em localizar o vazio que atravessa as nossas vidas. Não há nenhum laço com uma arte identitária de nação, mas com experiências demasiadamente humanas. Bernardo mesmo localizando uma situação de violência pela qual passam as prostitutas da província argentina de Rosario, não investiga um tema particular mas essencialmente mundano. Violência contra as mulheres, exploração sexual, banalidade e preconceito são evidências de um comportamento que não respeita as particularidades de um determinado local, mas infelizmente tornaram-se prática global. Nesse devir nômade que move o artista, ele se transforma num coletor de informações e receptáculo de denúncias; nessa coleta de vestígios, urge a sua força poética. Somos brasileiros, talvez pelo fato de termos nascido neste país; a nossa produção em artes visuais alimenta-se de particularidades e de ressonâncias pelos cantos nos quais o artista transita, mas estamos longe de sermos um antropófago. Não regurgitamos mais o que vem de fora, mas lançamos uma diarréia sem fim, como manifestou Hélio Oiticica. Nessa conversa mundana, Elisa Castro captou as ondas de Bernardo. Na tentativa de se comunicar com as diferenças, de paralisar um instante de tempo para que o passante observe o seu entorno e se dê conta da sua própria existência, a artista pichou pelos muros da cidade e escreveu no toldo do bar que fica na rua da galeria A Gentil Carioca a frase “Qual é o seu medo?” (mesmo título de seu trabalho, realizado em 2008) e o número de um telefone. Ao discar, o transeunte desejoso de dividir a sua angústia, ouvia a fatídica pergunta. Esse trabalho entrerriscos para a artista (entre o risco de ser presa ou sofrer alguma violência quando estivesse pichando e ao gravar seu medo na caixa postal da secretária eletrônica) permanece como experiência mediadora de subjetivação. Numa sociedade cercada e mergulhada em imagens, orkuts, MSNs, facebooks e fotologs, trocamos uma quantidade inimaginável de informações; em alguns casos vemos até o rosto de nosso parceiro, mas paradoxalmente o toque (e não o contato visual) está cada vez mais disfarçado, longe, desconfiado. A possibilidade de dividirmos as angústias é colocada visceralmente nas paredes da cidade, mas nossos medos se tornam afligentes, e nesse momento o que mais desperta em nós é

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Deborah Engel. Passantes, 2005/2008, 71 x 80 cm. Fotografia digital. (Coleção da artista). Foto: Paulo Innocêncio.

o silêncio. Nessa espera do chamado, surge o segundo momento da obra. Uma imensa trama de fios de cobre desce pelo teto da galeria e permanece ao lado da secretária eletrônica e do aparelho de telefone. O tempo passa a ser materializado enquanto o trabalho espera a possibilidade de ativar um espaço comunicacional como potencial troca de diálogo. A arte como sistema de trocas, não exclusivamente econômicas mas essencialmente sociais, atinge um grau de abertura que fica entre a utopia, o romantismo e a reflexão. Nessas paisagens urbanas, o mapa de subjetividades da exposição se desloca para a obra Passantes (2005/08) de Deborah Engel. Em cinco composições preenchidas por registros fotográficos de pessoas sentadas guardando/observando/utilizando/protegendo/lendo seus pertences em situações passageiras, decodificamos como lugares públicos evidenciam as relações práticas do homem com seu exterior. É bem provável que aquele gesto (transitório transformado em permanente) da fotografia não imprima a personalidade daquele sujeito mas indique o quão estamos absorvidos em nossas particularidades. No contato com o mundo, não buscamos o diálogo com o outro, mas o retorno a nós mesmos. Absurdos e estranhamentos são jogados e dilacerados à nossa frente por Paisagens vermelhas (2008), de Evandro Machado, e Andar na água ou voar (2009), de Andrei Muller. A obra de Machado consiste em vídeo realizado em

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stop-motion que mescla técnicas de pintura às novas tecnologias de edição e criação de efeitos visuais, criando um caleidoscópio imagético configurado por símbolos que dialogam com medos pessoais, paisagens caóticas e transbordamentos de vermelho. Machado não está usando o vermelho como símbolo de violência, mas enquanto passagem, renovação e/ou transformação de lugares, situações e corpos. Na videoprojeção de Muller uma sucessão de paisagens sonoras e visuais, entrecortadas por atuações delirantes de seu autor, parece nos perguntar qual é o lugar e a função da imagem. Num discurso quase invisível e repleto de minúcias, o artista expõe a precariedade e vulgaridade dessa massa produtora de imagens (supérfluas) em que se transformou a vida moderna. No capitalismo contemporâneo, da comunicação, da informação, as imagens são apropriadas, tornam-se processos midiáticos a serviço da indústria e, portanto, são patenteadas e comercializadas na figura de objetos. Estamos absorvidos por uma crise em que refletimos sobre o que é a arte contemporânea e mesmo a figura do artista e do crítico, já que elas se multiplicam de tal maneira, que se relativizam. De que maneira o discurso crítico se coloca não como propulsor de carreiras ou negócios, mas como mediador de experiências? Essas situações são apropriadas pelo trabalho de Fernando Peres. O artista transformou uma das paredes da galeria num misto de ateliê, reunião de suas obras e, ao indicar a lápis os valores assim como comentários a respeito de cada objeto exposto, transferiu para si todo o tipo de agenciamento que

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Bianca Bernardo. No soy crimen, 2008. Lençol bordado, rosas, meia-calça, faca de cozinha, textos reunidos a partir do Archivo de Crimenes contra Trabajadoras Sexuales da AMMAR e fotografia. Dimensões variáveis. (Col. da artista). Foto: Paulo Innocêncio.


cerca o mercado de arte. Para falar sobre os trabalhos desse artista é necessário estar de posse de um olhar desprendido, pois qualquer tentativa de enquadramento recairia em situação estranha a seus procedimentos. Lidamos, portanto, com registros. Seus desenhos, por mais dionisíacos que possam aparentar, contam uma história: há sempre um antes e um depois que não se apagam no tempo. Nesse sentido, como dar idéia de sua obra, de sua “linearidade”, se ela privilegia os processos criativos? Difícil questão, que Peres responde na conversa com o espaço. As figuras e suas histórias são maiores do que o espaço comprimido do papel; buscam uma vitalidade e permanência que está aquém do bidimensional. Não são trabalhos “autorais”, mas essencialmente preenchidos de “mundo”. O que fica no tempo, na maioria dessas imagens/devaneios/obras de Peres são indícios. Com eles vem a obra, na sua precária e fragmentária permanência. Sua ironia transparece no título da obra (T.C.M. Club do Ursinho satanista, 1972/2009), num boneco gigantesco e perturbador aludindo ao nome da obra, na ocupação caótica da parede por seus desenhos, assemblages e objetos, e nas três carteiras de identidade de diferentes ex-namoradas: em todas elas o número do RG começava com a sequência “666”. Seria muito fácil e permissivo, “encaixar” sua obra como surrealista ou doutrinária de sonhos e ilusões. Vários poderiam cair nesse abismo. Talvez ele até se ache assim, mas eu desconfio. Suspeito que é uma armadilha que ele nos arma. Prefiro tomar outro rumo e encontrar um caminho que se abre em vários sentidos e é preenchido essencialmente por subjetividades transitórias. A obra de Peres possui um norte, apesar de o primeiro olhar nos enganar a respeito. Fragilidade, precariedade e ações momentâneas que estabelecem compromisso com a atemporalidade são os temas que aproximam Crista Campinho e Vanessa Vásquez Grimaldi. Na série de trabalhos de Campinho lidando com a inclusão de materiais orgânicos (folhas, sementes e pequenos vegetais) sobre papel, há um diálogo com as monotipias: é conferido caráter de exclusividade à obra de arte que ao gravar sua impressão de mundo, incorpora os possíveis erros e imperfeições. Na coleta dessas diferenças, frágeis e coerentes, sua produção está impregnada de vida. Nessa concepção de arte transnacional, Abre Alas nos ofereceu o trabalho de Grimaldi. Numa sequência de ações desenhadas a caneta e montada com a junção de recortes de papéis de qualidades e tamanhos distintos, presos à parede, fica visível a debilidade do suporte e a instabilidade da permanência. Grimaldi relata através de procedimentos próprios do nosso cotidiano, o quão ordinária, patética e frágil é grande parte do tempo que dedicamos à nossa presença no mundo. Quer algo mais humano do que isso? A polaridade e o antagonismo são a própria riqueza e densidade dessas obras. Melhor seria tentar situar a obra das duas artistas num território de passagem, numa situação de trânsito, entre-espaços, no intervalo em que o devir se faz mais importante que o passado ou o próprio aqui-agora. Talvez fosse melhor pensar num estado de flutuação, numa constelação de plurais expressivos por meio dos fluxos, em que a linguagem visceral e expressiva oscila entre o excesso e a escassez, em que a vivência, desenvolvida a partir de um movimento pendular, afirma a experiência de algo que é instável, em que

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o todo não é apreensível mas a noção de fragmento passa a ser o próprio todo. Pino e Nino Cais, respeitando as suas mediações particulares, operam no âmbito do procedimento. Pino é o nome de um empreendimento fictício. Suas proposições abarcam investigações que circunscrevem o cotidiano. Operações de representação que visam, através de procedimentos vinculados aos processos industriais de fabricação, transporte, distribuição e comercialização de mercadorias, evidenciar características particulares de objetos ou contextos aos quais os trabalhos se referem. Em Caixa para transporte 2 (2008), nos deparamos com uma caixa tipicamente confeccionada para o transporte de obras de arte. Na parede, a presença de um diagrama com ilustrações aludindo à mobilidade da caixa e a presença de rodas em sua base. Sem mais descrições, esse objeto sem utilidade provoca um estranhamento ao espectador que o confronta. O campo da economia encontra seu par na linguagem e na escritura: a oposição entre significante e significado não é outra coisa senão “cisão” entre valor de uso e valor de troca. Valor e meio circulante são operações econômicas envolvidas nessa produção de arte. Nessa obra de Pino, o valor não está no que poderemos encontrar ao abrir as caixas, porque elas são conteúdos de nada, mas no exterior: o próprio caixote é o valor. Física, economia e política não têm hierarquia no trabalho de Pino; todas agem em contraditória sintonia, como se isso fosse possível. Relações duvidosas entre massa, peso e volume são postas diante de nossos olhos, como uma construção alegórica de nossas fragilidades, do meio em que vivemos, da sociedade que construímos. A economia é a esfera da produção em massa, do poder, da circulação de valores, de um mundo em constante movimento que não pode parar em momento algum, senão corremos o risco de falhar. Mas a “falha” pode estar presente nesse mesmo movimento ininterrupto. A caixa se constitui em microdesordens numa estrutura planejada para não assumir riscos, para não ter erros. No trabalho sem título de Nino Cais, o procedimento é da ordem da gambiarra: soluções temporárias que acabam se tornando definitivas. Reveladoras de precariedade e de criatividade, as gambiarras de Cais espelham um mundo provisório, esperando que alguém cuidadoso venha colocar a vassoura certa que estabiliza o banco de plástico, que por sua vez com um furo em seu assento fixa a lixeira que serve como suporte para o vaso, usado finalmente como receptáculo para as plantas. Gosto de pensar o momento em que a gambiarra é feita: olhamos o mundo dando uma dimensão para os objetos que nada têm a ver com as suas realidades funcionais. A gambiarra é uma necessidade ou procedimento que dá vida à contingência dos objetos. Nessa colagem de remendos, a torre de Cais permite que nosso olhar se distancie da funcionalidade das coisas para ver o mundo que se faz presente em cada objeto que nos cerca. Os desejos, anúncios e possibilidades visuais e poéticas que foram apresentados nessa exposição revestem-se de um campo de comunicação em que os espectadores captam e percebem a urgência de mundo presente neles, estabelecendo relações de afinidade e participando de perspectivas que lhes são comuns e que, fundamentalmente, os vincu-

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lam com a contemporaneidade. São nessas camadas e sobreposições de histórias que nos reconhecemos. Não há nada de ambíguo ou estranho nos trabalhos do Abre Alas, nem substancialmente uma brasililidade, mas essencialmente potência, imersão e acúmulo de diferenças. Três unidades sintetizadas que transformam esses trabalhos em transparência radical do lugar que ocupamos no mundo.

Felipe Scovino (UFRJ, Rio de Janeiro, Brasil) é crítico de arte e pós-doutorando com bolsa do CNPq pelo Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais (EBA/UFRJ), onde também atua como professor colaborador. / felipescovino@yahoo.com.br

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Anna Bella Geiger. Os dois brasis, 24 x 25cm. 1976. Foto: Nina Geiger Cole.


Anos 70: oposições e inserções artísticas Priscila Rossinetti Rufinoni

Resenha ao livro de Dária Jaremtchuk, Anna Bella Geiger: Passagens Conceituais. Brochura, 180 páginas, 15,5 x 22,5cm, il. cor. ISBN: 97885-7654-043-4. Belo Horizonte: C/Arte, 2008. Partindo da análise do livro de Dária Jaremtchuk, Anna Bella Geiger: passagens conceituais, esta resenha examina algumas leituras sobre os anos 70 propostas pela historiografia brasileira. Ditadura, conceitualismo, experimentalismo. Os anos 70 no Brasil – que se iniciam na verdade em 1968 –, o experimentalismo e os demais não ismos sempre foram vistos em bloco, como momento de crítica à ditadura e aos “sistemas” todos. Tal visão chapada vem merecendo novos estudos que dão outros relevos ao terreno. Das revisões, uma se antecipa: o livro de Flora Sussekind, Literatura e Vida literária. Polêmicas, Diários & Retratos, no qual a autora investiga as estratégias várias dessa “oposição” sistemática, focando sua análise na produção textual, na literatura confessional ou jornalística, na apropriação das teorias estruturalistas com seu formalismo anistórico tão conveniente e, sobretudo, na mimese 1 Literatura e Vida literária. Polêmicas, Diários & Retratos. Rio de Janeiro: Zahar, 1985. 2 Como bem observa Annateresa Fabris em seu livro Portinari: Pintor Social, São Paulo: Perspectiva, 1990, p. 31-32. 3 Estamos pensando, sobretudo, em textos como o de Roberto Schwarz, “Cultura e política, 1964-69”, in O Pai de Família e outros estudos. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978; além do livro da própria Flora Sussekind já citado. 4 Como nos informa a autora: “ Inaugurada em 1975, a Global expôs Antonio Manuel, Marcelo Nitsche, Regina Vater, Antonio Dias, Maria do Carmo Secco, Nelson Leirner, Ivald Granato, Lygia Pape, Tomoshige Kusuno. Anna Bella expôs em 1976 Situações-Limites, anteriormente realizada na Sala Experimental. As mostras eram normalmente acompanhadas de chamadas publicitárias na televisão, pois a galeria pertencia ao conglomerado da Rede Globo. Imagens dos trabalhos e depoimentos dos artistas iam ao ar nos horários comerciais. Anna Bella criou uma propaganda com desenho de um saci e voz infantilizada ao fundo que quase não foi ao ar pelo formato inusitado. O canal, após algumas discussões e ameaças de censura, aceitou exibi-la somente após o horário nobre.”, p. 67.

da violência e da afasia que inverte, com as mesmas armas, o ataque do “inimigo”.1 Nas artes plásticas não houve repressão acirrada e visível como em outras áreas, aliás, retomando as estratégias getulistas.2 Estratégias que aliam à “musa censura”, o “amigo estatal”, via prêmios, incentivos e empregos públicos. Ambas as companhias, censura e cooptação, parecem pouco presentes nas artes visuais dos anos pós-64, a ponto de nenhum dos textos gerais sobre o período citar, mesmo em um panorama, instituições artísticas ou museus em meio aos mecanismos de difusão cultural da época.3 Artes plásticas não eram o alvo, da esquerda ou da direita, pois sua “popularidade” nunca foi a mesma da música ou do teatro, forma popular à época, não hoje, evidentemente. Ao contrário, os anos 70 parecem até convenientes às artes plásticas, com a chegada do tal “mercado”, como tiveram lá sua conveniência para o cinema, com a Embrafilmes, e para as editoras, marcadas por um boom, seguido de atenção maior da censura a partir de 1975. Como entender esse momento em que, ao mesmo tempo, institucionalizam-se o “modernismo” e algum possível sistema das artes, e fecham-se as portas à livre expressão? Momento em que a mesma rede Globo que mantinha seus laços estreitos com (qualquer) poder, abria, também, espaço para a experimentação na Galeria Global?4 Quem pensaria em uma ambiguidade dessas – a rede Globo possuindo uma gelaria de arte! – mesmo atualmente, em tempos de liberdade? Os meandros da “cooptação” deixam rastos discretos, que só

Anos 70: oposições e inserções artísticas Priscila Rossinetti Rufinoni

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uma apurada pesquisa pode evidenciar. Assim, não é à toa que o livro Anna Bella Geiger: passagens conceituais inicia-se mapeando alguns “espaços” culturais (e institucionais), como o MAM do Rio de Janeiro e o MAC da USP, que, em meio ao estreitamento político, abriam-se à experimentação. E o primeiro capítulo do livro intitula-se exatamente “Circuito artístico experimental”. No Brasil, avalia a autora, pode-se perceber outra estratégia diversa daquela iniciada em finais dos anos 60 na Europa, menos destrutiva para com o tal sistema das artes. Afinal, destruir o quê? Que sistema? Construir alicerces sistêmicos, com palestras e publicações, parece ser caminho mais fecundo, tomado por Anna Bella e por outros artistas da época. Essa avaliação do “meio”, baseada em vasta documentação de época, muitas vezes apresentada a seco, para julgamento do leitor, abre a arena na qual o trabalho da artista, objeto do livro, pôde desenvolver-se. Claro que a autora narra as idas e vindas dos artistas às voltas com a polícia, com os boicotes à Bienal (em 1969), com o mercado da “boa forma” e do “bom acabamento”. Mas as oposições não são a tônica, as inserções – para tomar de empréstimo um título de Cildo Meireles, obra comentada no livro – parecem mais fortes e mais estratégicas. No Capítulo 2, Dária Jaremtchuk analisa Circumambulatio, que é um bom exemplo dessas “inserções”. Trata-se ou de obra coletiva aberta e em processo, ou de curso de arte experimental ministrado por Anna Bella, ou de experimentação com os mitos junguianos, as classificações não importam. O que é mais interessante nesse processo que incluiu estadas na praia, projeção de slides e entrevistas é que ele aconteceu dentro do MAM do Rio de Janeiro, como o próprio nome mostra: CircuMAMbulatio. Do núcleo institucional parece brotar a possibilidade de romper com uma “instituição arte” congelada, embora ainda pouco fixada no meio brasileiro. Paradoxo das pesquisas brasileiras, para as quais o livro abre um novo espaço na rede de classificações do que poderia ser dito “arte conceitual” ou “conceitualismo” nos anos 70? O livro apenas sugere esse caminho, já que seria preciso analisar relações entre artistas experimentais e instituições em outros contextos. Mas a autora deixa claro que, se a dita arte conceitual em sua origem é um discurso autorreferente, no caso brasileiro, a autorreferência dissolve-se nas mediações políticas, institucionais, críticas a que os artistas se lançam. Essa característica talvez explique – digo talvez, pois análises pontuais precisariam ser feitas – o interesse sempre institucional, e agora bem mais congelado, que as artes parecem despertar no Brasil, daí sua invisibilidade para os panoramas críticos dos anos 70. No mesmo Capítulo 2, e nos demais, a autora trata especificamente dos expedientes e suportes utilizados pela artista Anna Bella. No tópico sobre sua experiência de gravadora, Dária Jaremtchuk chega mais perto de um dos núcleos delimitados por Sussekind: a exploração, às vezes confessional e mesmo “ornamental”, da violência. A autora mostra como Anna Bella deixa pouco a pouco a experimentação plástica com os expedientes próprios à cozinha da gravura, para se dedicar a recortes nas chapas nos quais prefigura formas viscerais. As vísceras seccionadas, soltas no suporte, não são, entretanto, explicitamente violentas, pois fazem referência à limpeza dos desenhos de manuais de anatomia, tais como os volumes de ciência popularizada, Medicina e Saúde, vendidos em bancas de jornais nos anos 70. Essas transições sutis, do formalismo à violência formali-

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zada, da violência real à científica, da ciência à popularização e à banalização, que Dária capta nas gravações de Anna Bella são uma contribuição para repensar as estratégias oposicionistas. Não só o polo arte/ditadura, mas também outras polarizações, arte/banalização, formalismo artístico/estereotipia publicitária nuançam o cenário. No capítulo intermediário, “Anna Bella: de gravurista abstrata a artista conceitual”, a autora reúne a experiência de gravadora e a experiência didática de Anna Bella em uma terceira experiência: a dos livros de artista. Em forma de cadernos escolares, constituídos de fotocópias malfeitas, rabiscadas, de decalques de banca de jornal rasurados, nesse livros Anna Bella revê tanto a boa forma das gravuras, como a boa educação artística ou escolar dos anos 70. E ainda rebate uma na outra, em cadernos como Alguns dados sobre o artista brasileiro. O último capítulo trata dos “outros” suportes – vídeo, fotografia, instalação. Novamente, um bom histórico da questão abre o debate, propondo possíveis novos caminhos para a historiografia desses meios no Brasil. Se o enfoque procura pensar a artista no universo da ditadura, as várias relações traçadas pela autora configuram um debate muito mais pluralista que aquele apenas pautado na “política” em seu sentido estrito. As questões dos trabalhos fotográficos, por exemplo, não são as de uma “fotógrafa”, como bem explicita Dária, mas as de uma artista que quer escavar na imagem suas camadas ideológicas depositadas, escavar questões identitárias, históricas e sociais. O que ressalta do texto é essa configuração do meio artístico e ideológico. A autora enfatiza, sempre, a atuação e inserção política dos artistas, o que era bem mais fácil de se delinear nos anos de chumbo. Mas, mesmo partindo dessa premissa, multiplica as vertentes, as imbricações discursivas entre arte e meio. As delimitações de Sussekind ganham, assim, outras formas de inserção e de oposição, que não apenas aquelas que se afastam do (ou mimetizam o) inimigo. Pelas novas mediações propostas por Dária Jaremtchuk, a obra de Anna Bella não precisa ser parasitária de seu oponente. Embora a autora não avance além dos anos de ditadura, a carreira da artista, por essa interpretação, não será presa das aporias de muitas propostas dos anos 70 quando não há mais uma política em claro-escuro; propostas que se perdem, então, em polêmicas estéreis, já latentes mesmo durante o período de maior engajamento político das artes. Um recorte de uma dessas polêmicas, comentário apresentado sem comentários pela autora, põe em pauta este outro desenho, bem mais contemporâneo, da imbricação artista/ instituição, lugar-comum para as décadas seguintes, com o arrefecimento do potencial discursivo evidentemente “político”. Termino, também sem mais comentários, com o referido trecho de Roberto Pontual: quando aprovei a entrada de seus [de Barrio] trabalhos no Salão quis contribuir para que o público pudesse julgá-los por si mesmo e comparar os muitos modos de contestação, até chegar, pelo uso do racio-

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cínio, a visualizar os úteis e os inúteis. Mas Barrio – a concluir por suas declarações à praça – queria ao mesmo tempo ser aceito e ser cortado do Salão, de forma que o júri, em qualquer das circunstâncias, lhe viesse a servir de massa de manobra. Nem todas as sutilezas, no entanto, lhe pertencem: com um farelo de calma se verá que o júri soube ser mais sutil e prático, contestando, por incorporação, uma contestação que nada contestava realmente. E contestando sem excluí-la da vista e da análise de qualquer pessoa. De minha parte, proponho para os trabalhos de Barrio uma nova categoria: a das coisas que, ao mesmo tempo, estão e não estão, dependendo do desejo do autor. Isto lhe arrefecia a veemência.5

Priscila Rossinetti Rufinoni (UnB, Brasília, Brasil) é doutora em filosofia pela USP, professora de filosofia na Universidade de Brasília – UnB. / rufinoni@unb.br

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5 Apud Jaremtchuk, 2007, p. 44.


Parangolixo Daniel Belion

Uma experiência transnacional, em nosso de grandes territoriais proporções país, é sem dúvida, engrandecedora. Ter contato com universitários e o povo de vários estados é também parte dessa façanha multicultural. E é desse contado com o cotidiano local e com a “gente do bairro”, aparentemente, extraoficial ou extracurricular, que se pode, muitas vezes, realmente participar de um material cultural “verdadeiro”, digno das questões mais comuns – como a pobreza e a violência – assim como a apatia das instituições universitárias e da arte diante delas. A Universidade Federal “de Belém” do Pará tem seu campus margeado, de um lado, pela imponente grandeza sublime do rio Guamá, marcado pela navegação e pela pororoca. Pelo outro lado, a UFPA, tem como vizinhos, cerca de 250 mil habitantes. Marcado pela pobreza e pela violência sem controle, o Guamá é considerado o bairro mais populoso e mais perigoso de Belém. É inevitável não começar por esse tema, pois tirando a viagem de dois dias e meio de ônibus (que também é uma história à parte), foi assim que começou nosso contato com o Enearte, pois, logo que chegamos nas proximidades do campus, era explícita a situação arquitetural característica dos guetos... Muitas construções ainda usando madeiras; a um palmo de altura da porta: um valão, que segue por toda a extensão de quilômetros de uma via principal; palafitas, grades, muitas grades, cadeados e correntes... e pessoas... muitas pessoas... e lixo... muito lixo. Arte, educação, cotidiano.

E chegamos na universidade... O guarda da guarita abriu o portão para o ônibus entrar e fomos conduzidos por um carro da segurança, espécie de escolta, até o Instituto de Artes... Lá fomos recebidos, e o clima, como não poderia deixar de ser ( já que em geral é o que ocorre em congressos, fóruns e seminários nacionais) é sempre de festa... Discussões, práticas e decisões, atreladas a relacionamentos com semelhantes de profissão, campos de interesse ou níveis sociais; uma delícia...

Outro clima é de vapor e calor constante, indicando possivelmente as proximidades da linha do equador e da “grande floresta” ou, como se constatou, da “chapa quente” que rodeava...

Parangolixo Daniel Belion

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No primeiro informe geral, no local de refeições do evento, foi-nos comunicado que era extremamente perigoso sair das instalações da universidade para os locais adjacentes, como também não se deveria “facilitar” com algumas embarcações que margeavam a universidade, pois já tinham ocorrido alguns delitos praticados por indivíduos seus usuários; outra questão dizia respeito a não correr à noite dentro do campus, pois os seguranças seriam autorizados a utilizar armas de fogo contra possíveis invasores que porventura saíssem correndo. E não eram exagerados os avisos, pois eu poderia aqui relatar três exemplos, um deles diz respeito a um grupo de alunos do Rio Grande do Norte, que chegou antes das outras delegações, tendo decidido sair em busca de um bar nas proximidades; a própria dona do estabelecimento pediu que eles se retirassem devido aos perigos do bairro, já que por suas características exóticas seriam facilmente alvo de delitos; ofereceu até carona, para que eles não fossem sozinhos, posto que começava a entardecer... ..... As oficinas e experiências desenvolvidas no evento foram as mais diversas: música, teatro, performance, moda, educação, cultura... A oficina que apresentei tinha como tema: “Objeto Artístico e Inserção em Circuitos Ideológicos”; utilizamos o texto de Cildo Meirelles como ponto deflagrador, que, somado à experiência de cada participante e área de atuação, desenvolvia um trabalho para ser realizado, ou pensado, individulamente ou com ajuda do grupo. Foram 30 participantes, desenvolvidas 10 ideias e seis delas realizadas. Igualmente foram trabalhadas questões já discutidas por outros artistas; os “Palindromos” de Luis Andrade, carimbados em alguns locais da universidade, foi um dos trabalhos apresentados; ou as frases, siglas e palavras colocadas nas quentinhas e frutas que recebíamos diariamente durante os sete dias de nossas refeições coletivas. ..... Durante a semana as ideias foram se desenvolvendo, algumas já sendo executadas, mas foi no último dia da oficina que aconteceu a apoteose das questões tratadas. Um dos participantes tinha como trabalho uma proposta muito “simples”– coletar lixo e prender ao seu corpo; providenciamos barbantes e fitas e saímos, em direção ao mercado popular, do bairro do Guamá. O “lugar perigoso”. No começo tudo parecia “normal e sob controle”, o lixo foi-se acumulando, e o sujeito, objeto de trabalho, homem lixo, parangolixo, foi-se estruturando, indivíduo arquitetura. Como alguns de nós estávamos participando, ajudando, colocando os “materiais lixo” sobre ele, ou filmando o ato, o contato com os possíveis “fruidores ou espectadores” se dava já por uma intermediação de “espetáculo cultural”, ou seja, as pessoas já sabiam que “aquilo” possivelmente se tratava de uma “coisa de artista”, ou algo assim. Porém o mais forte momento, o devir espontâneo e inesperado que legitimizou a performance em sua ação fora de conduta, ainda estaria por vir.

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Foto: Daniel Lopes

Quando já estávamos dando por encerrados os trabalhos do “homem lixo”, voltando algumas quadras, nos encontramos diante de uma Unidade de Atendimento ao Cidadão – um órgão da prefeitura – instintivamente foi para lá que se conduziu o “parangolixo”, perguntando aos atendentes, diante das fileiras de caderias lotadas por cidadãos do bairro do Guamá, se alguém poderia recebê-lo e o ajudar dizendo onde deveria jogar todo aquele lixo. Ficou um silêncio, meio mal-estar... ao mesmo tempo, levemente engraçado, pois já assimilado pelo caráter espetacular causado possivelmente pela atenção de algumas câmeras e caras burguesas, mas não menos desconfortante e tenso; pudesse ele estar sozinho, mas se assim fosse não poderíamos registrar o momento (particularmente penso que valeria a pena perder o registro e ter um aspecto ainda mais forte do volátil e etéreo fator performático). Fomos tirando o lixo do corpo do cidadão e colocando nas lixeiras das salas de atendimento e de espera, saímos e retornamos à universidade. ..... Em nosso espaço “carioca”, também é comum notar as proximidades e distanciamentos, das instituições de ensino, das “favelas”. Afinal, existem comunidades em todo o nosso

Parangolixo Daniel Belion

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território, próximas de tudo, não só das universidades, de qualquer lugar, integradas à sociedade, quer queiram, quer não queiram. Pensando em termos de uma cidade já “Partida”, está tudo a nossa volta, ao nosso lado e parece que acreditamos que os trabalhos que estamos fazendo dentro da universidade, algum dia serão úteis para a melhoria, bom, do bem-estar social e da comunidade. Nos convencemos de que estamos agindo por uma causa nobre, grupal, fazendo a nossa parte? Ou só queremos mesmo saber de nós mesmos? ..... Nossa universidade, com sua política de cotas, executa, ainda que sem unanimidade de pensamentos e muito ainda a se discutir, o pragmatismo necessário para sair de uma inércia social e isso fiz questão de atentar, sutilmente, na plenária de abertura, já que em determinado momento, de uma maneira logicamente impossível, estávamos ali, 14 graduandos de artes da UERJ, representando os estudantes de arte do estado do Rio de Janeiro. Mas atentamos também que representávamos nós mesmos, não cremos mais em uma representação eleitoreira, intitulada política democrática, em que se elegem vereadores e deputados, acreditando que estamos sendo representados em nossos ideais. Sobre como andam as coisas no Rio? (Uma outra pergunta da mesa.) Basta ligar a televisão, alguma novela da Globo informará. ..... Já chegando na Cidade Maravilhosa novamente, mais ainda no ônibus, nos deparamos com as viaturas da polícia carioca, embaixo de viadutos e protegidas por suas colunas de concreto... uma verdadeira instalação... VIVA A POLÍCIA CARIOCA!!! Gritei... VIVAAAA!... inesperadamente responderam...

Daniel Belion (UERJ, Rio de Janeiro, Brasil) é artista plástico, músico, guia de turismo, técnico em marketing cultural e produção de eventos ESPM/RJ e graduando em bacharelado e licenciatura em artes plásticas do Instituto de Artes da UERJ. / danielbelion@hotmail.com

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Abstracts Why exhibit cinema?

Cinema is, above all, a temporal object, a writing process in which time is the matter. The new

Dominique Païni

experience of spectators in museums, gazing on exibition walls the moving images made for

Pages 9-13

film theatres or by artists with digital video, invites to consider the projection, editing and the spectator behavior according to other ends than those related to romanesque fiction of industrial cinema. How to define the esthetic and anthropological effects of such « exodus» of cinema from its traditional place, the theatre, after aproximately a hundred years? Expanded cinema, figural, temporal object.

Notes on the

The article discusses the disturbances which occurred in art after the entrance of the

(Photography of the Shadows

mechanical on the scene, looking to extract from the correlation between the functioning

of the ready-mades)

modes of The Grand Verre and the photographic camera, some indications of the spatial

Livia Flores

conditions of cinema without film. Cinema without film here is only an abbreviation of how

Pages 14-26

to make cinema without film? – a provocative way to ask about artmaking. Photography, art, spectator.

“Dispositifs” in evidence in the

This article aims to ponder on some strategies of contemporary art by using the notion of

contemporary art

dispositif. Thereto, it becomes necessary to expand the notion of dispositif beyond its

Victa de Carvalho

technical dimensions, taking into consideration the construction of audiovisual experiences

Pages 27-33

able to promote dislodgements in the relations between image and observer. Dispositif, contemporary art, subjectivity.

Detour devices:

The article analyses some works made by the artist Livia Flores and finds her interest in light

Livia Flores’ film installations

and movement. Her artistic propositions lenas towards a conceptual logic of the image and

Luiz Cláudio da Costa

distinguishes two rival values: the appearance of things and the apparition of forces. It is

Pages 34-41

the invisible forces that turn visible with her celibatary machines and neutralizes the drive for identity so present in our culture. Livia Flores, multimedia installations, image.

Three images to report

This article, which focuses on three photographs, deals with important issues of Anthony

impalpable sculptures

McCall’s work that were raised over the course of sculpture’s recent history, more specifically

Susana Dobal

exploring elements pointed out by Brancusi and especially by Richard Serra. McCall works

Pages 42-53

with films and installations since the 1970s. His most recent pieces are hybrids of cinema and sculpture transformed into installations that he calls solid light films and that deal with issues important to sculpture, such as the body, time and movement. Although the name chosen for the installations emphasizes the materialization of light, they consist of sculptures formed by changing volumes and masses through which the visitor can walk. A paradox appears in the solid light films: they call for a physical experience of the work but are nevertheless irrevocably impalpable, which attest to their contemporaneity and their relationship with cinema’s pictorial aspects, against which McCall’s work reacted. An underlying current of this account of McCall’s impalpable sculptures is a reflection about photography as a means of illustrating a critical text. The photographs sidestep 167


the objective reproduction of works and instead immerse these reproductions in different contexts throughout the study. As a result, the photographs that accompany the text instigate a reflection about the commented works. Anthony McCall, cinema, sculpture. Notes to the memory of a given

The article presents the DVDrom Muntadas. Media arquitecture. Installations from the

unknown. Muntadas. Media

collection produced by Anarchive, an art media Project based at the University of Paris 1.

architecture. Installations

It ponders on the memory of the work of art nowadays, with special attention on the cases

Anne-Marie Duguet

of reproductions of installations and interventions in public spaces. It also invests on four

Pages 54-59

levels of analysis on Muntadas artwork displayed in the DVDrom and raises the problem of modes of exhibition and circulation of multimedia installations as well as their resistence to traditonal means of reproduction. Muntadas, multimedia installations, archive.

The Sun that all sees in the

Venus and Mars surprised by Vulcan was a subject commonly treated in the Renaissance

Venus and Mars’ tapestry from

arts. One of the most interesting and beautiful examples is a Flemish tapestry, probably

The National Museum

woven at Brussels, ca. 1530-1540, nowadays exhibited at the National Museum Machado de

Machado de Castro

Castro (Coimbra). This paper proposes an analysis of this piece of art that pays attention

Luísa de Nazaré Ferreira

to the representation of the Sun, a central element in the classical myth. So, two mains

Pages 76-85

aspects will be considered: the literary sources, and the description and iconography of the tapestry. Mithology, tapestry, flemish arts.

Indentity, circuit and

In the present artistic panorama context, the relation between art and negotiation, both for

critical distance

determining places (venues) for artistic performances and for developing the interlacing of

Giordani Maia

the discursive nets, seems to set significantly in the working situations of many artists. In

Pages 86-96

this article, through the concept of negotiation, we intend to discuss the analogy among the maping, the identity and the critical distance, as well as the straight performance in the field of the present culture in the works and problem solving evidences raised by Hal Foster in “The artist as Ethnographer “. Contemporary art, circuit, culture.

The sacred in image, the gold in the

The present article intends to make a connection of the Hubert Duprat’s (1957)

art: assembly, crossing and loss

gold Cases (1980 – 2008), contemporary masterpiece of a French artist whom has

Luciane Ruschel Nascimento Garcez

been producing and showing this work for more than two decades with the Egyptian

and Sandra Makowiecky

sarcophagus, masterpieces that have more than three thousand years and carry great

Pages 97-103

symbolic and ritualistic load. Cases, sarcophagus, contemporary art.

Nazareth Pacheco and the body

The present article is focused on the trajectory of the artist Nazareth Pacheco’s works of

Alessandra Monachesi Ribeiro

art within a psychoanalytical approach that brings to the stage the question of the regard.

Pages 104-119

Her seductive and imprisoning objects captivate the viewer and immobilize him, creating a game between asepsis and seduction that replaces the body in the work of art focus,

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concinnitas ano 10, volume 1, número 14, junho 2009


departing from the pain caused or imagined to be caused on this body. The article reflects as well on how the artist’s production allows the psychoanalyst to think on a body that is presentified by pain, unfolding it into questions on the contemporary subjectivity. Nazareth Pacheco, psychoanalysis, body. The Natural beauties of our

This paper presents a series of considerations about the relationships established between

country: The Landscape in the

Landscape and Nationalism in the Brazilian artistic millieu during the political shift from

Brazilian art,

Empire to Republic, in 1889, and in the years immediately following. In the critical

from Empire to Republic

appreciations then published in journals and magazines or in the statements of the artists,

Arthur Valle and Camila Dazzi

we can verify that the Landscape, in the measure it represented the Brazilian nature with

Pages 120-133

its specificities – its forms, its color, its local light – was perceived as a privileged theme to shape the “Brazilian School” of art. For the critics and the artists, the representations of the Landscape were imbued of a potential capable to constitute a new imaginary for the new politic regimen then instaured. Landscape painting, decorative arts, brazility.

Transculturality, interculturality

The text presents the analysis of the multicultural perspective crisis mentioning its

and syncretism

formation in North American social sciences in the beginning of the XX century, reflecting

Massimo Canevacci

on its progressive repercussion and its delayed affirmation in Italy. The multicultural

Pages 137-141

and its unfoldings – the intercultural and transcultural – irradiate the hegemonic culture through steady and unified rules, which have now been placed in check by the new forms of sociability generated at the communicational metropolises in the contemporary world. Aesthetics communication, visual anthropology, metropolitan culture.

About Cristina Salgado’s

This is a critical essay about Cristina Salgado’s exhibition Sculpture as Image. It explores

Sculpture as Image

the conceptual proposition of this work, which places an oscillation between the traditional

Tania Rivera

concepts about what is image and about what is sculpture, denouncing their conventional

Pages 142-147

character. From a strong reflection about image, which doesn’t refers exclusively to an opposition between figurativeness and abstraction, Cristina’s work is analysed as a tension between form and formless, matter and representation, drawing and colour, in search of image’s essence, which would reach beyond visibility, since it would be the presence of the subject and his pleasure. Image, sculpture, subject.

If you enjoy “Brazilian art”,

The review analyses the exhibition Abre Alas 5 produced in 2009 and held at A Gentil Ca-

don’t read this!

rioca, Centro de Artes Hélio Oiticica and Barracão Maravilha (all places situated in Rio de

Felipe Scovino

Janeiro). This exhibition had young artists from Brazil, Chile, France and England. They’re

Pages 148-155

commented how the topics of identity, contemporaneity and transnationality are negotiated by young generation of artists. Art critic, brazilian contemporary art, identity.

169


Decade of 1970: artistic

Starting from the analysis of the book’s Dária Jaremtchuk, Anna Bella Geiger: passages

oppositions and insertions

conceptual, this article examines the readings of the decade of 1970 in the Brasilian his-

Priscila Rossinetti Rufinoni

toriography.

Pages 156-160

Dictatorship, experimentalism, conceptualism.

Parangolixo

A transnational experience, in our large country territorial proportions, is undoubtedly amazing.

Daniel Belion

Have contact with students and people from several states is also part of this multicultural

Pages 161-165

feat. And this is the daily contact with local and with the people of the neighborhood, apparently, unofficial or extra curricular, which can often actually participate in a cultural material “true”, worthy of the most common – as the poverty and violence – and the apathy of the academic and art in front of them. Belém’s University has its campus margin, on the one hand, by imposing grandeur of the sublime Rio Guamá, marked by navigation and “Pororoca”. On the other hand, the UFPA has as neighbors, about 250 thousand inhabitants. Marked by poverty and violence out of control, the Guamá is considered the most populous district of Belém and more dangerous. It is inevitable not start with this issue, because taking the trip of two days and a half by bus (which is also a story to share), was started so that our contact with the ENEARTE, as soon as we arrived near the campus, the situation was explicitly architectural feature of the ghettos... Many buildings still using wood, a foot in height of the door: a Walloon, which is extension of kilometers across a main road; stilts, bars, many bars, padlocks and chains... and people... many people... and garbage... much garbage. Arts, education, life.

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concinnitas ano 10, volume 1, número 14, junho 2009


Sobre Concinnitas A revista Concinnitas é publicação semestral do Instituto de Artes da UERJ, criada em 1996 e, a partir de 2005, vinculada ao Programa de Pós-Graduação em Artes (PPGARTES). O termo Concinnitas, extraído dos tratados de Leon Battista Alberti, refere-se a uma teoria arquitetônica baseada no equilíbrio, refletindo política editorial de independência acadêmica e rigor científico, mas também disponibilidade para novas proposições artísticas e debates teóricos. O objetivo de difundir conhecimento faz da revista um espaço de incentivo à pesquisa e à produção no campo da criação, da fruição e da reflexão sobre arte e cultura. Assim, Concinnitas pretende responder à necessidade de formação de artistas, docentes e pesquisadores, bem como do público em geral, atendendo à demanda crescente de profissionalização, aperfeiçoamento e especialização, e contribuindo para melhorar qualitativamente a produção, a pesquisa e o ensino. Como objetivo da revista consta ainda a criação de conexões estreitas entre pesquisa, extensão e ensino universitários não só pelo estímulo à produção e à pesquisa discente, mas, sobretudo, por meio de seu processo de produção. Desde 2003 a publicação passou a Projeto de Extensão, constituindo um laboratório editorial, do qual participaram, até 2005, alunos de graduação, mas que, com a vinculação ao Mestrado, conta também com alunos de pós-graduação. Concinnitas tem seu conteúdo acessado livremente no site: www.concinnitas.uerj.br

Estrutura 1) Dossiê – Todos os números ímpares (junho) de Concinnitas têm seus dossiês organizados por um professor-pesquisador do PPGARTES, que convida ensaístas de âmbito nacional e internacional e apresenta proposta a ser avaliada pelo conselho editorial. Os números pares (dezembro), têm seus dossiês organizados a partir da indicação do colegiado do PPGARTES, que seleciona seis dissertações dentre as defendidas no último ano. 2) Ensaio – Um artista é convidado pelo conselho editorial, e seu trabalho é encartado no miolo da edição. 3) Artigos – São recebidos da comunidade acadêmica e artística e avaliados pelo conselho editorial (peer review), composto por pesquisadores das áreas de artes plásticas e visuais. 4) Entrevistas – De iniciativa dos editores, mas também enviadas por colaboradores, as entrevistas podem ser com artistas, críticos, historiadores e teóricos da área de arte e cultura; 5) Traduções – Indicadas pelo conselho editorial, devem ser artigos de referência para a comunidade acadêmica e artística. 6) Resenhas – Críticas de livros publicados e de exposições ou eventos na área de arte e cultura, além de revisões de artigos relevantes.

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Normas para publicação Concinnitas recebe artigos, entrevistas e resenhas: 1. O texto deve ser inédito (nas línguas portuguesa ou espanhola). 2. O texto será submetido à avalição de um consultor membro do conselho editorial ou de um consultor ad hoc (peer review). 3. O autor é responsável pelo conteúdo do texto e deve garantir exclusividade até o recebimento do parecer do conselho editorial. 4. O autor de texto publicado deve cumprir período de dois anos para nova submissão de proposta. 5. O autor deve transferir os direitos autorais do texto para a revista Concinnitas imediatamente após a aprovação. 6. O texto aprovado e publicado não poderá ser republicado em período de até dois anos. 7. O texto aprovado será divulgado no site (www.concinnitas.uerj.br > arquivo > artigos em espera). Aqueles não publicados imediatamente após aprovação poderão ser publicados na edição seguinte, conforme autorização do autor. 8. A seleção dos textos de cada publicação será feita pelo conselho editorial, baseando-se na aprovação e na data de recebimento. 9. Somente os textos que cumprirem as normas de publicação serão avaliados. 10. Os artigos e entrevistas devem ter até 40.000 caracteres sem espaço, editados em word, sem hifenação, sem tabulação de parágrafo e com entrelinha dupla. 11. As resenhas devem ter até 10.000 caracteres sem espaço, editadas em word, sem hifenação, sem tabulação de parágrafo e com entrelinha dupla. 12. O texto deve ser enviado por e-mail (concinni@gmail.com). 13. A folha de rosto deve conter: - nome do autor com a vinculação profissional e/ou universitária - e-mail e endereço pessoal e/ou profissional - título em português e inglês (até seis palavras) - resumo em português e inglês (até 500 caracteres sem espaço) - três palavras-chave em português e inglês 14. Currículo resumido em forma de texto (até 500 caracteres sem espaço). 15. As notas devem vir no final do texto, numeradas em algarismos arábicos. 16. O texto deve conter bibliografia seguindo as normas da ABNT. 17. Devem ser enviadas até três imagens, com legendas e não devem ser inseridas no corpo do texto (embora seja desejável a indicação de seu posicionamento). As imagens devem ser digitalizadas e enviadas por e-mail (concinni@gmail.com) em formato jpg, colorida, 300dpi, tamanho mínimo 12 x 18cm.

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Universidade do Estado do Rio de Janeiro Reitor Ricardo Vieiralves de Castro Vice-Reitora Maria Christina Maioli Sub-Reitora de Graduação Lená Medeiros de Menezes Sub-Reitora de Pós-Graduação e Pesquisa Mônica Heilbron Sub-Reitora de Extensão e Cultura Regina Lúcia Monteiro Henriques Diretor do Centro de Educação e Humanidades Glauber Almeida de Lemos Instituto de Artes Diretor Roberto Conduru Vice-Diretora Vera Beatriz Siqueira Coordenadora de Pós-Graduação e Pesquisa Vera Beatriz Siqueira Mestrado em Artes Coordenadores do Programa de Pós-Graduação em Artes Luiz Felipe Ferreira e Leila Danziger Área de Concentração Arte e Cultura Contemporânea Linhas de Pesquisa Teoria e História da Arte; Processos Artísticos Contemporâneos; Arte, Cognição e Cultura Corpo Docente Aldo Victorio, Isabela Frade, Jorge Luiz Cruz, Leila Danziger, Luiz Cláudio da Costa, Luiz Felipe Ferreira, Marcus Alexandre Motta, Maria Berbara, Maria Luiza Fatorelli, Ricardo Basbaum, Ricardo Gomes Lima, Roberto Conduru, Roberto Corrêa dos Santos, Rogério Luz, Sheila Cabo Geraldo, Vera Beatriz Siqueira Coordenador de Graduação Marcelo Campos Cursos Bacharelado em Artes Visuais; Bacharelado em História da Arte; Licenciatura em Artes Visuais Corpo Docente Alberto Cipiniuk, Aldo Victorio, Alexandre Vogler, Cristina Pape, Cristina Salgado, Denise Espírito Santo, Ericson Pires, Isabela Frade, Jorge Luiz Cruz, Leila Danziger, Luis Andrade, Luiz Cláudio da Costa, Luiz Felipe Ferreira, Marcelo Campos, Maria Berbara, Maria Luiza Fatorelli, Maria Lúcia Galvão, Miguel Proença, Nanci de Freitas, Regina de Paula, Ricardo Basbaum, Ricardo Gomes Lima, Roberto Conduru, Roberto Corrêa dos Santos, Rodrigo Gueron, Rogério Luz, Sheila Cabo Geraldo, Vera Beatriz Siqueira Coordenador de Extensão e Cultura Denise Espirito Santo

Agradecimentos Alberto Cipiniuk, Cristina Salgado, Dária Jaremtchuk, Leila Danziger, Luiz Felipe Ferreira, Maria Luiza Saddi, Ricardo Basbaum, Sonia Gomes Pereira

Revista Concinnitas Universidade do Estado do Rio de Janeiro Instituto de Artes Rua São Francisco Xavier 524, Pavilhão João Lyra Filho, 11o andar, bloco E, sala 11.007 Maracanã, Rio de Janeiro, RJ, 20550-013, Brasil Telefone: (55-21) 2587 7985 www.concinnitas.uerj.br / concinni@gmail.com

Os textos (8/13), títulos (12/13), notas e legendas (6/8) desta revista foram compostos em ITC Officina Sans e ITC Officina Serif. Papel offset 90g/m2 (miolo) e cartão supremo alta alvura alcalino 250g/m2 (capa)




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