concinnitas ano 10, volume 2, nĂşmero 15, dezembro 2009
Universidade do Estado do Rio de Janeiro Concinnitas – Revista do Instituto de Artes da UERJ Editora Sheila Cabo Geraldo Conselho Executivo Alberto Cipiniuk, Cristina Salgado, Isabela Nascimento Frade, Jorge Luiz Cruz, Luis Andrade, Luiz Felipe Ferreira, Nanci de Freitas, Ricardo Basbaum, Roberto Conduru, Vera Beatriz Siqueira
Conselho Editorial Arlindo Machado USP / PUC-SP, São Paulo, Brasil
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Carlos Zilio UFRJ, Rio de Janeiro, Brasil
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Gilles Tiberghien Paris I, Paris, França
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José Thomaz Brum PUC-RJ, Rio de Janeiro, Brasil
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Maria Luiza Saddi Artista plástica, Rio de Janeiro, Brasil
Vitor Hugo Adler Pereira IL-UERJ, Rio de Janeiro, Brasil
Mario Ramiro USP, São Paulo, Brasil Direção de Arte e Design Lygia Santiago (bolsista Proatec UERJ) Web Design Mariana Maia (bolsista Proatec UERJ) Equipe de Produção Simone Tomé, Marta Egrejas (bolsistas de Estágio Interno Complementar UERJ) e Jovita Santos (bolsista de Extensão) Revisão Maria Helena Torres Capa / Quarta capa Suzana Queiroga. Helio Igneo, 2009. Concinnitas é uma publicação semestral do Instituto de Artes/ART, vinculada ao Programa de Pós-Graduação em Arte. Este volume recebeu apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e do Programa de Pós-Graduação em Arte (PPGARTES). Os artigos são de responsabilidade dos autores e não refletem a opinião do conselho editorial.
Catalogação na fonte UERJ/REDE SIRIUS/PROTEC
2009
concinnitas [www.concinnitas.uerj.br]
Sumário | Summary 5
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96 104 118 133 142
153 172 174
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Apresentação | Foreword Dossiê trajetos e trânsitos: pesquisa em arte | Dossier distances and transits: art research Temporalidades possíveis | Possibles temporalities Nena Balthar Obras de arte enquanto sistemas | Art works as systems Bruno Melo Monteiro Que extravios de naturezas constituem um livro de artista? | What misplaces of natures an artist’s book comprises? Lucenne Cruz Baianas e drags: tramas visuais em Carmen Miranda | Baianas and drags: visual plots in Carmen Miranda Gustavo Borges Corrêa Mário Pedrosa: diálogo contemporâneo | Mário Pedrosa: contemporary dialogues Juana Nunes Odara: comunicação estética da dança no candomblé | Odara: aesthetic communication of dance in the candomblé Kate Lane Costa de Paiva Ensaio Hélio Ígneo | Essay Hélio Ígneo Suzana Queiroga Artigos | Articles Arte e vida: bordas dissolvidas | Art and life: to break borders up Valzeli Sampaio Segurança da vida, uma questão artística? | Safety of life, an artistic problem? Dolores Galindo A arte no espaço urbano | The art in the urban space Lamounier Lucas Em contato: a não execução | On contact: non execution Lela Queiroz A imagem-tempo como potência política do cinema | The time-image as a political power of cinema Rodrigo Guéron Tradução | Translation Uma tradução comentada | A commented translation Bony Braga Schachter Apresentação | Foreword Jorge Menna Barreto A arte de ser testemunha na esfera pública dos tempos de guerra | The art of witness in the wartime public sphere Rosalyn Deutsche Resenhas | Digest Diálogos com os vazios da cidade | Dialogues with the emptinesses of the city Ana Cecília Soares O projeto do renascimento | O projeto do renascimento: a contribution for the classic tradition studies Fernanda Marinho Abstracts Sobre Concinnitas | About Concinnitas Normas para publicação | Publishing rules
Suzana Queiroga. Hélio Ígneo, 2009.
Suzana Queiroga começara a preparar a capa e o ensaio de artista desta edição de Concinnitas, para o que fora meses antes convidada, quando a notícia do incêndio no acervo de Hélio Oiticica lhe chegou aos ouvidos. A perplexidade não a impediu de correr ao local e, com permissão da família Oiticica, capturar em fotografias o que restou do trágico acontecimento. Suzana propôs fazer do ensaio homenagem a Hélio, reproduzindo os escombros do que então pensávamos ser quase a totalidade de sua obra queimada. Assim surgiu Hélio Ígneo: imagens negras, em que aparecem, retorcidas e renitentes, as cores dos Bólides, dos Bilaterais, dos Parangolés e quem sabe do que mais... desenhos, projetos, livros, maquetes, que se podem ver, ainda que em cinzas, primorosamente organizados, como foi, aliás, Hélio. Abraçamos a iniciativa de Suzana e fazemos nossa sua tristeza, embora acreditemos na perenidade das ideias e proposições de Oiticica, que certamente sobrevivem à adversidade. Além dessa homenagem, trazemos a público o dossiê Trajetos e trânsitos: pesquisa em arte, organizado pelo conselho de professores do PPGArtes da UERJ, com base nas pesquisas desenvolvidas pelos alunos e apresentadas neste ano. Indicadas duas dissertações de cada linha de pesquisa – História e crítica da arte, Processos artísticos, e Arte, cognição e cultura –, Juana Nunes, Bruno Melo Monteiro, Nena Balthar, Lucenne Cruz, Gustavo Borges Corrêa e Kate Lane Costa Paiva, seus autores, elaboraram artigos concernentes à trajetória de suas investigações no curso de mestrado; os seis textos têm em comum o fato de transitar no campo da arte, assim como nos atravessamentos entre diferentes campos. Valzeli Sampaio, Dolores Galindo, Lamounier Lucas, Lela Queiroz e Rodrigo Guerón são pesquisadores de diferentes cidades e diversos contextos artísticos que responderam à chamada de artigos, o que nos faz agradecidos. Agradecemos também as traduções de Bony Braga Schachter, do Catálogo classificatório dos pintores antigos de Xie He, e de Jorge Menna Barreto, de A arte de ser testemunha na esfera pública dos tempos de guerra, de Rosalyn Deutsche, textos que certamente contribuirão para diversas pesquisas em arte. Encerrando a edição, como de costume, publicamos resenhas: a de Ana Cecília Soares sobre a exposição Ambulantes em espaços vagos, de Breno Silva e Louise Ganz; e a de Fernanda Marinho do livro O Projeto do Renascimento, de Elisa Byinton.
Sheila Cabo Geraldo Editora
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Camadas, 2008. Vista da instalação. DVD e grafite. Galeria do atelier do Instituto de Arte da UERJ, 2008. Fotos: Lucia Vignoli.
Temporalidades possíveis Nena Balthar
O presente artigo é fragmento de minha dissertação de mestrado intitulada Desenho: uma habitação no tempo. Reflexão sobre tempo e arte, na qual proponho perceber o tempo como demora a partir de uma experiência artística. Um desvio no tempo acelerado que visa à eficácia em detrimento do processo; referência ao que não é excesso, que, para mim, é a ideia de demora. A possibilidade de estimular uma ruptura no cotidiano e poder pertencer a seu tempo. Demorar-se no pertencimento implica atenção ao ritualístico da vida, ao autoconhecimento e ao reconhecimento do outro diferente de nós. Experiência artística, tempo, performance. Virei a própria bailarina, pois faço tantos gestos que até aprendi a costurar com um ritmo que me parece oriental. Parece bobagem mas não é não. O fazer, o tocar o plástico no momento de o formular para mim passa a ser quase um cerimonial...1 Eu desenho: traços e linhas são minha matéria. Realizo gestos repe1 Clark, Lygia; Oiticica, Hélio. Cartas 1964-74. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 1998, p.143. 2 Quando falamos em contemporaneidade frequentemente nos referimos a quantidades enormes de informação, excessos. Luiz Alberto Oliveira observa que “um atributo próprio da nossa época é a aceleração (...) manipular instantaneamente, sem qualquer retardo apreciável, quantidades maciças de informação”. Oliveira, Luiz Alberto. Imagens do Tempo, Tempo dos Tempos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003, p.65.
tidos que materializam o tempo que levei para executá-los (os gestos, os traços-linhas). Risco, risco e novamente risco. São camadas acumuladas, um contraponto aos excessos da contemporaneidade.2 O “fazer linhas” chamo de tarefas, nelas sou como personagem de um processo que revela o tempo que se leva para fazê-las. Relaciono nossos hábitos diários, nossa realidade, à ideia de repetição como tarefa. A tarefa como percepção do tempo, do tempo que se leva para performá-la, o tempo de habitá-la. Procurava um gesto habitual em contraponto aos gestos escolhidos, ao julgamento de cada movimento sobre o papel a ser desenhado. Passei a utilizar como procedimento a queda do lápis (pela força da gravidade) sobre o papel. Das linhas resultantes do embate do lápis grafite ao cair, percebi que a repetição era o que me interessava. Passei a fazer linhas repetidas na superfície do papel com base em algumas regras: prender a folha branca à parede de modo que meus gestos para traçar as linhas fossem meras atividades habituais (levantar e abaixar o braço); e as linhas em cada desenho deveriam ser feitas em tempos diferentes e preestabelecidos. Assim surgiram os desenhos que originaram os trabalhos 24 horas e 365 minutos: riscado e apagado. Aos poucos notei que meus gestos revelam meus movimentos, que podem ser vistos como coreografias de minha ação. Performo os desenhos. A superfície que abriga as linhas,
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nesse momento, passou a ser a parede e a imagem digital captada por uma câmera fotográfica que também filma. Converge para os desenhos a ideia de gestos repetidos como uma coreografia. Essa relação com o movimento próximo de uma concepção da dança me levou à ideia de Tarefa, da coreógrafa Ann Halprin, e ao reconhecimento do procedimento da performance na realização de meus trabalhos. Ann Halprin opunha-se ao discurso artístico da dança moderna que considerava os movimentos do corpo a serviço de uma expressividade dos sentimentos. Em 1955, ela fundou o San Francisco Workshop,3 espaço de experimentação no qual ela afirma “querer encontrar atividades para dançarinos que mudassem seus processos mentais, utilizar uma tarefa e modificar de um modo artístico”.4 Instituiu como procedimento para sua pesquisa a ideia de tarefas cotidianas (everyday tasks) como balançar, andar, cair, engatinhar, varrer, entre outras. Tal pensamento ia ao encontro da efervescência das práticas artísticas híbridas das experiências no campo da arte nas décadas de 1960 e 1970, que utilizaram a noção de tarefa (apesar de não se referir ao termo). Essa noção estava em consonância com o pensamento de arte voltado para uma oposição à ideia de arte relacionada com o emocional e intuitivo ou com o preestabelecido e hierarquizado. Interessando-se por ações cotidianas e simples do corpo, e pela inclusão do acaso, os artistas desse período aproximavam arte e vida. São dessa época, também, as propostas artísticas de Allan Kaprow denominadas Activities, nas quais a ideia de tarefa pode ser reconhecida. Nas Activities ou Atividades (que me parecem ser as tarefas), o artista propunha uma série de ações relacionadas ao
3 Entre seus alunos estavam: Meredith Monk, Trisha Brown, Yvonne Rainer, Simone Forti, Ruth Emmerson, Sally Gross, e alguns se envolveram com o grupo experimental e progressivo Judson Church Group. No espaço criado por Halprin muitos foram os que compartilharam de suas experiências, como os coreógrafos Merce Cunningham, Eiko and Koma e Min Tanaka, os compositores John Cage, Luciano Berio, Terry Riley, LeMonte Young, e Morton Subotnick, os artistas visuais Robert Morris e Robert Whiteman e poetas como Richard Brautigan, James Broughton e Michael McClure. Disponível em: http://www. annahalprin.org/about_bio.html. Acesso em 30.11.2008. 4 O texto em língua estrangeira é: “I wanted to find activities for dancers to do to shift their mental process, to take a task and modify it by shaping it artistically”. Disponível em: http://www.marinij.com/ ci_8454742?source=most_emailed. Acesso em 30.11.2008. Tradução nossa.
cotidiano para serem performadas pelos participantes – individuais ou em grupo, sempre de modo repetitivo e de acordo com a sequência sugerida por Kaprow. Diz ele que o não artista não faz nada que lembre uma obra de arte, mas, sim, o que ele chamou de lifelike art – “arte que nos faz principalmente lembrar de nossas vidas”5 –, ressaltando a natureza esgarçada e fluida do limite entre vida e arte.
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O desenho é uma ação visível7 “Performances afirmam identidades, curvam o tempo, remodelam e adornam corpos, contam histórias. Performances artísticas, rituais ou cotidianas são todas feitas de comportamentos duplamente exercidos, comportamentos restaurados, ações performadas que as pessoas treinam para desempenhar, que têm que repetir e ensaiar”.8 Rosalind Krauss considera os happenings, que utilizavam como procedimento o uso repetitivo de materais ou movimentos, aliados à “dança que se desenvolvia simultaneamente, a partir das coreografias de Merce Cunningham,9 em que se verificava uma crescente insistência na coisificação do movimento”.10 A Nova Dança (ou como ficou conhecida: dança pós-moderna), os happenings, as Activities e as performances preocupavam-se com a ideia de uma arte baseada na exterioridade dos acontecimentos – sua experiência.
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5 Kaprow, Allan. A educação do não artista, Parte II. Concinnitas n. 6. Rio de Janeiro: UERJ, 2004, p.167, nota 2. 6 Allan Kaprow escreveu, em 1971, os textos A educação do não artista I e II pontuando essa relação. 7 Em referência a Roland Barthes, que afirma “O trabalho é uma ação visível” em texto sobre o traço, no livro O óbvio e o obtuso. 8 Schechner, Richard. O que é performance. Disponível em: http://hemi.nyu.edu/courserio/perfconq04/materials/text/OqueePerformance_Schechner.htm. Acesso em 17 de novembro de 2008. 9 Merce Cunningham participou de experiências com Ann Halprin. Compartilhava da mesma necessidade de rejeitar a experssividade emocional exercida na dança moderna. 10 Krauss, Rosalind Caminhos da escultura moderna. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p.282.
Richard Schechner sugere que nossas ações nos são familiares porque as construímos por repetição – ações previamente exercidas. Schechner considera que a redundância das ações possui a “qualidade de ação construída a partir de pedaços de comportamentos, 11 Schechner, Richard. Op. cit. Acesso em 17 de novembro de 2008.
rearranjados e modelados de modo a produzir um efeito determinado”.11 A “coisificação do
12 Penso que essa expressão de Rosalind Krauss é atribuída pela autora a uma herança do minimalismo pelo fato de se interessar pela exterioridade da experiência, em consonância com a exterioridade do objeto minimalista.
repetição e que se dá no ambiente performativo com intenção de gerar nova atenção para
movimento”12 me parece estar relacionada aos rearranjos dos movimentos do corpo pela os movimentos cotidianos e elementares do corpo. Em meus desenhos considero as ações no âmbito da coisificação do movimento e do treino para desempenhar um gesto, que implica ensaiar e repetir. Na tentativa de “coisificar o movimento” opto por gestos simples de meu fazer no ateliê, gestos ligados ao fazer cotidiano. Uma possibilidade de arte, diz Kaprow, lembrando a vida e não sendo ela. Penso que tal proposição se estabeleça em uma tênue fronteira entre arte e vida. Kaprow sugere que esse limite se avizinhe de uma relação ritualística existente na vida comum. Arte–vida–ritual. Richard Schechner aponta essa relação ao escrever que a arte de Kaprow “sublinha e destaca comportamentos ordinários com sutileza — conduzindo a atenção para o modo como uma refeição é preparada, ou observando as pegadas deixadas por alguém ao caminhar no deserto”. E continua: Prestar atenção em ações simples, performadas no momento presente, é desenvolver uma consciência Zen em relação ao que é comum e honrar o que é ordinário. Honrar o que é ordinário é observar quão ritualística é a vida diária, e o quanto esta é constituída de repetições. Não há nenhuma ação humana que possa ser classificada como um
13 Schechner. Op. cit.
comportamento exercido uma única vez.13 Ao ritualístico da vida aproximo a ideia de tempo como demora, como duração – sua “experienciação” –, e o associo (o ritualístico da vida) à ideia de ato e de ação nas práticas artísticas dos anos 60. Segundo Fernando Gerheim, nessas práticas a ideia do ato é “dar à imediaticidade, tão valorizada pela modernidade, o estatuto de uma experiência transfor-
14 Gerheim, Fernando. Linguagens Inventadas palavras imagem objeto: formas de contágio. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008, p.54. 15 Id., ibid., p. 44.
madora, substituindo o choque pela durée”.14 Gerheim continua: “a linguagem reencontra sua materialidade na arte e faz convergir conceito e percepção”.15 Ideia que penso ter ressonância com a presença da relação signo e pensamento no caligrama, apontada por Foucault: “o caligrama aloja os enunciados no espaço da figura, e faz dizer ao texto aquilo que o desenho representa (...) Por astúcia ou impotência, pouco importa, o caligrama não diz e não representa nunca no mesmo momento; essa mesma coisa que se vê e se lê é
16 Foucault, Michel. Isto não é um cachimbo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988, p.22 e 27.
matada na visão, mascarada na leitura.16 Integração da palavra no ato, que transponho para a relação arte–vida–ritual.
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Desenhopógrafite é uma série de desenhos acompanhada por um vídeo, no qual coleto o pó de grafite – resíduo de um desenho anterior – que depois será utilizado para imprimir
Desenhopógrafite, 2008. Stills: Luciano Bogado.
marcas de meu corpo na superfície do papel, desenhos e vídeo sendo um só. Gestos que recolhem o que restou de gestos anteriores para depositar no papel o grafite, presentificando o corpo do qual os gestos se originaram. Performance privada. Performo sozinha, acompanhada apenas por quem filma, gestos realizados em uma atmosfera próxima à meditação, à oração. Repetidas ações singelas, envolvendo um cuidar: recolher as sobras, armazená-las, utilizá-las em novas produções. Tentativa de proporcionar outras camadas de percepção do ordinário, outros acessos ao cotidiano através do que Guilherme Bueno identificou como temporalidades dos mínimos ao dizer: Os desenhos de Nena Balthar apropriam-se da fugacidade, surgem da colheita das perdas. Brotam dos resíduos oriundos de desenhos performáticos feitos pela artista, as impressões aqui expostas reinvestem aqueles fantasmas de sua força, como se eles contivessem ainda o calor do atrito outrora havido contra seus predecessores (os desenhos feitos em parede). Trata-se do processo do processo do processo..., criando uma temporalidade dos mínimos.17
17 Bueno, Guilherme. “Eppur si muove”. Catálogo da exposição Desenhopógrafite de Nena Balthar. p.6.
Intervalos – Lugar de intensidades Penso a performance de uma maneira ampliada, relacionada ao processo do processo, a estratos do tempo. Por isso a ideia de desenhos e vídeos como um só trabalho. Regina Mellin, em tentativa de possível definição de performance nas artes visuais, lembra o sentido das etapas que a constitui para além do caráter redutor de simples registros dos procedimentos (fotografias, vídeos, desenhos ou textos) levados em conta nas performances. Essas etapas ou camadas são parte do acontecimento, “tornam-se elementos constitutivos da obra, materialização de um procedimento temporal oferecido à recepção”.18 Lido com camadas, com percepções das “temporalidades dos mínimos”, da duração, do ritualístico da vida, do autoconhecimento – concentração em nós mesmos. Considero o
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18 Melim, Regina. Performance nas artes visuais. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008, p.65.
público determinante e polarizador do espaço, implicando sua percepção. Performar tor19 Schechner sugere que a performance pode ser vista como procedimento para investigação: “Tratar qualquer objeto, obra ou produto como performance – uma pintura, um romance, um sapato, ou qualquer outra coisa – significa investigar o que esta coisa faz, como interage com outros objetos e seres, e como se relaciona com outros objetos e seres. Performances existem apenas como ações, interações e relacionamentos.” Schechner. Op. cit., acesso em 2.12.2008.
nou-se estratégia de investigação19 na proposta de habitar o tempo. Funciona como frestas, intervalos ou aberturas; como outros acessos à realidade. Possibilidades de lidarmos com o caráter dual da cultura ocidental a partir da ideia de complementaridade, pondo em jogo um ponto de torção, um lugar de intensidades entre opostos em vez de os considerar pares estanques, permitindo-nos habitar entre, e não em lados opostos unilaterais. Posso reconhecer correspondência entre a obra de Eva Hesse e a possibilidade de ocupar lugares de intensidades – intervalos. Eva Hesse morreu aos 34 anos. Em sua curta vida, deixou obra grandiosa e comovente.
20 O Minimalismo surgiu na década de 1960 em contraponto ao pensamento de arte como sendo algo pessoal, metafórico e ilusionista.
Observo em seus trabalhos muito do discurso minimalista20 que é relacionado a uma arte esvaziada e ligada a seu exterior, a conceitos de repetição, de ordem serial, de estrutura, de austeridade, de monumentalidade, de literalidade. O que, enfim, é esperado de alguém que considerou, segundo Rosalind Krauss, arte e, consequentemente, sua produção co-
21 Krauss, Rosalind. Bachelors. October, 2000, p.94.
nectadas em alto grau ao discurso estético dos anos 60.21 Tal conexão caracterizou, nas palavras de Krauss, sua obra como paradoxal, posto que ela (a obra) é carregada de uma busca de si, um reconhecimento de si no mundo, impregnando de expressividade sua produção. Aparentemente o oposto do discurso minimalista. Tal expressionismo provém de uma experiência do self (interior), imprimindo sua imagem no coração da matéria
22 Catherine de Zegher afirma que a experiência de vida de Eva Hesse, ligada a um sentimento crescente de abandono, influenciou vários aspectos de sua obra, estruturando-a (a obra) a partir do esquema de um triângulo cujas bases são: processo/conteúdo/materialidade. Zegher, Catherine. Drawing as Binding/ Bandage/Bondage or Eva Hesse caught in the triangle of Process/Content/Materiality. New Haven/London: Yale University Press, New York: The Drawing Center, 2006, p.59 e 60. 23 Krauss. Op. Cit., 2000, p. 92. 24 Contingent é feita de oito peças semelhantes a bandeiras, que pendem do teto do espaço expositivo, feitas de grandes retângulos de tecido (um tipo de gaze) cobertos com látex e fibra de vidro, e montadas paralelas umas às outras e de modo a fazer um ângulo reto com a parede.
(exterioridade).22 Expressionismo manifestado pela experiência da própria matéria. E aí reside um de seus paradoxos. O que Hesse faz me parece ser uma torção conceitual: de a matéria ser apenas o que é (do discurso minimalista) para o que nela reside de expressivo, sem, no entanto, apelar para ilusionismos ou representação de algo que não está ali. Uma torção, uma zona de intensidades no diálogo formalista do Minimalismo através da mensagem do Expressionismo. Rosalind Krauss considera a obra Contingent emblemática da grandiosidade do legado de Hesse, pois tornou pública uma experiência interior – uma declaração para o mundo da arte do poder expressivo da própria matéria.23 Segundo Krauss, um dos fatores de Contingent24 ser grandioso está no fato de a obra se situar entre pintura e escultura, ponto de intensidades entre dois meios. E afirma que a produção de Eva Hesse em geral trata de um jogo de velamento e desvelamento, um eclipse em constante mobilidade, das convenções ou institucionalizações, da pintura e da escultura como distintas modalidades de experiência. Krauss lembra a prática da anamorfose, comum nos séculos XVI e XVII (procedimento com que se obtém resultado semelhante – eclipse do sistema visual) para argumentar sobre a característica de duplicidade de percepção nessa prática e na obra de Hesse. Na anamorfose o espectador só consegue desvelar o elemento velado ao se deslocar da frontalidade da pintura e observá-la por sua extremidade. Em Contingent não se trata de anamorfismo, mas, de certa maneira, da natureza de uma torção (que Rosalind Kraus identificou como dupla perspectiva). Eva Hesse nos oferece uma experiência de percepção em constante troca, permutável. A posição das peças em ângulos de 90° com a parede permite perceber uma fileira de
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planos (por suas bordas) que literalmente ocupam o espaço – experiência de um objeto no espaço em que se encontra o espectador. Porém, à medida que nos movemos, também experimentamos a superfície de seus retângulos, sua cor e sua transparência oferecidas pelo material (látex e fibra de vidro sobre gaze) – uma experiência relacionada ao campo
Eva Hesse. Contingent, 1969. Fibra de vidro, resina e látex sobre gaze. 350 x 100, H: 320 x 94 (cm) National Gallery of Australia, Canberra. Fonte: Disponível em http://www.evahesse. com/home.php. Acesso em 8 janeiro 2009.
da pintura. Pelas características descritas sobre a obra Contigent, percebe-se que não se trata de escultura nem pintura. O trabalho se refere, a meu ver, a bordas: das superfícies e dos meios. Questionando e movendo o discurso estético do qual Hesse dizia depender sua arte – o minimalismo –, sua obra antecipa a hibridização de meios, tão comum atualmente. Atravessa fronteiras, unindo espaço real e espaço da obra. De acordo com Lucy Lippard: “Hesse pega exatamente o que ela precisa da arte a seu redor, a transforma, e a retorna ao mundo da arte”.25
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25 O texto em língua estrangeira é: “As Lucy Lippard wrote, Hesse ‘took exactly what she needed from the art around her, transformed it, and gave it back to the art world’. No site: http://www.tate.org.uk/magazine/issue2/ hesse.htm. Acessado em 03.01.2009.
Contingent refere-se a intervalos, a frestas. O jogo de velamento e desvelamento ao qual a obra de Hesse diz respeito parece ser a possibilidade de habitar entre. Um aprendizado do mundo e o que sua materialidade tem a nos dizer. No pensamento de Hesse interessa-me a ideia de usar o material de acordo com o que a matéria oferece, descobrir significados que lhe sejam intrínsecos. No ensaio Drawing as Binding/Bandage/Bondage or Eva Hesse caught in the triangle of Process/Content/ 26 “Desenho como amarrados/enfaixados/ elos ou Eva Hesse capturada pelo triangulo do Processo/significados/materialidade”. Tradução nossa.
Materiality”,26 Catherine de Zegher refere-se à obra de Hesse vinculada ao território do desenho. Hesse se diz confortável ao desenhar. São áreas que vão do linear a complexas aguadas ou colagens, nada muito simplista. Não interessa, diz a artista, levar esses desenhos para a tela ou transferi-los para escalas maiores. Em sua opinião essa operação não é natural, e ela pensa em transpô-los de outro modo. Passa a utilizar cordas de espessuras e comprimentos variados, associadas a materiais macios. Uma postura de investigação e experimentação que a levará a perceber questões de cor e transparência vindas da própria matéria e permitir que a matéria tome forma – o que Zegher considerou procedimento
27 Zegher. Op. Cit., p.88.
semelhante ao do discurso do Expressionismo abstrato.27 Um dos paradoxos de Hesse: jogo de aparecimento e desaparecimento entre o discurso estético minimalista e o do Expressionismo abstrato. Volto à questão da fresta, do intervalo, da torção para pensar nos opostos não como pares estanques, mas como campos de entrefluxos, continuidades e intensidades. Experimentação do mundo com base em sua complementaridade. Nesse sentido (o da complementaridade) utilizo o resíduo como material e o aproximo do procedimento de Eva Hesse de considerar o que a própria matéria tem de expressivo – aquilo que Rosalind Krauss diz sobre Contingent:
28 Krauss. Op. Cit., 2000, p.92.
“uma declaração para o mundo da arte do poder expressivo da própria matéria”.28 Poder escutar o material, aguardar o tempo suficiente para gestar um trabalho, de certa maneira “permitir que a matéria tome forma”. Na repetição de gestos, na coleta do pó de grafite – este sendo só pó, só grafite – ou no armazenar das fitas-crepes e rebarbas da borracha, aguardo, me deixo observar e observo o que o material – sua materialidade – tem a me dizer. Roberto Corrêa dos Santos transpôs em palavras o que parece ser meu embate com a matéria: “Neste ofício, natural e humano, como em todo rigoroso rito, é pulsional o gesto de recolher as sobras, de guardá-las respeitosamente, de esperar de maneira tranquila e como se distraídos todos, o tempo de reativar naqueles diminutos
29 Santos, Roberto Corrêa dos. Desenhopógrafite de Nena Balthar, catálogo da exposição Desenhopógrafite de Nena Balthar. p.2.
materiais restantes sua ardência sagrada, sua tarefa de religar”.29 Habitar entre Considero a obra Respiração uma metáfora da ideia de me colocar entre o que é a obra e o que poderá vir a ser obra. Resíduos de produções anteriores. Foi durante o curso do mestrado “Cartas de artista: perspectivas sobre processos de criação”, com a professora Malu Fatorelli, que realizei o trabalho Respiração. O curso teve
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como norte textos de artistas e propostas de trabalho – problem sets.30 As propostas eram apresentadas a cada 15 dias, intercaladas aos escritos dos artistas, que se tornaram o meio pelo qual pensávamos e trabalhávamos.
30 Expressão usada por Rosalind Krauss em texto sobre a produção da artista americana Francesca Woodman, em Bachelors. Krauss. Op. cit.
Na proposta “Frestas Intervalos e Espaçamentos”, encontrei ressonância com o pensamento sobre lugares de passagem, de trânsito, de outras temporalidades que impulsionam minha prática artística. A eles (os lugares de passagem, de trânsitos e outras temporalidades) relaciono o coro grego31 (entre acontecimento de arte e acontecimento da realidade) e meus gestos que se repetem, sempre começando outra vez. Coro e gestos repetidos transitam entre um lugar e outro, entre uma percepção e outra. Estimulam o habitar um entre espaço-tempo, por uma ponte, porta, túnel ou imaginação. Passar de um dentro para um fora, voltar para o dentro e sair novamente; ou pertencer a territórios desiguais mantendo fluidez no pertencimento. Inspirar, expirar, inspirar, expirar: respiração. Minha história tem forte relação com os pulmões (estive, por duas vezes, com eles expostos em uma sala de cirurgia e hoje carrego
31 O filósofo Friedrich Nietzsche diz que os gregos construíram para o coro um lugar/ espaço “fingidamente natural” e nele colocaram seres, também “fingidamente naturais”, ficando assim desobrigados de “efetuar uma penosa retratação servil da realidade”. “A introdução do coro é o passo decisivo pelo qual se declara aberta e lealmente guerra a todo e qualquer naturalismo na arte”, ele acrescenta. Reconheço nesse fim “ao naturalismo na arte” a que se refere Nietzche uma aproximação com a vida sem ser ela. Nietzche, Friedrich. O nascimento da tragédia. São Paulo, Companhias das Letras, 2006, p.54.
no lóbulo esquerdo dois “grampos”). A respiração, entrada e saída de ar em um constante ir e vir, tem relação com marcações e ritmo, sonoridade.32 Uma ação específica após a seguinte: respirar. O ar ocupa ambos os espaços – interior e exterior – em cadência inin-
32 No meu trabalho incorporo o som e o ritmo como parte dos movimentos repetidos. São camadas constituintes do trabalho.
terrupta e involuntária. Ele habita entre espaços-tempos. O imperceptível, o invisível – o intervalo – norteiam minha pesquisa. É sabido que toda a produção de algo implica o que não é a coisa produzida. Utilizo as sobras, o que é resíduo, resto e consequentemente o que não serve mais, o que não se vê. Considero a sobra material para novas produções. A força do resíduo gera a memória que invento. As fitascrepes utilizadas para fixar o papel que desenhei foram coletadas e armazenadas. Elas me observavam, tinham algo a me dizer. Nas fitas havia, em grafite, a presença dos gestos do desenho que não estão nelas. Metáfora das frestas, dos intervalos e dos espaçamentos. Ao montar o trabalho no ateliê, uma frágil sequência de fitas presas por tachinhas (quase “grampos”) na parede, mais um elemento foi incorporado ao trabalho. O vento, que delicadamente transitava entre as fitas. Das temporalidades “Devario laborioso e empobrecedor o de compor vastos livros; o de explanar em 500 páginas uma idéia cuja exposição oral cabe em poucos minutos. Melhor procedimento é simular que estes livros já existem e apresentar um resumo, um comentário”.33
33 Borges, Jorge Luis. Ficções. São Paulo: Ed. Abril, 1972. Prólogo.
“A técnica de narração oral na tradição popular obedece a critérios de funcionalidade: negligencia os detalhes inúteis mas insiste nas repetições (...)”.34 A ideia de resumo ou comentário em Borges e a de repetição em Calvino parecem referirse ao que não é excesso, que, para mim, é a ideia de uma demora, de um pertencimento
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34 Calvino, Ítalo. Rapidez. Seis propostas para o próximo milênio. São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p.49.
ao tempo que se vive. A reflexão sobre o tempo me faz lembrar o conto O Jardim de caminhos que se bifurcam, de Jorge Luis Borges. O autor nos surpreende com a ideia de um invisível labirinto do tempo escondido dentro do romance – um labirinto de signos – que conhecemos através das palavras do personagem Albert quando se refere ao pensamento de Ts`ui Pen: “Acreditava em infinitas séries de tempos, numa rede crescente e vertiginosa de tempos divergentes, convergentes e paralelos. Essa trama de tempos que se aproximam, se bifurcam, se cortam ou que secularmente se ignoram, abrange todas as 35 Borges. Op. cit., p.107 e 108.
possibilidades”.35 Argumentar a proposta de demora como possíveis experiências espaço-temporais, de demora como o contrário do excesso, implica um mundo disposto em fragmentos, fluxo de ideias, memórias, acontecimentos simultâneos, copresenças temporais e coleção de saberes em que signo e pensamento se intercomunicam. A arte proporciona essa intercomunicação, e penso existir, em algumas propostas artísticas, a possibilidade de experimentar diferentes temporalidades. Noto nas propostas artísticas de Lygia Clark interesse em proporcionar ao espectador uma experiência espaço-temporal; que reconheço como experiências de pertencimento a seu tempo. A artista considerou o espectador parte constituinte de sua obra, principalmente suas ações (participação). Penso no trabalho Caminhando como a síntese de suas proposições. Nele Clark propõe ao espectador-participante fazer com uma faixa de papel branca
36 A fita de Moebius é um objeto da matemática, estudado no século XIX pelo matemático August Ferdinand Möbius. A importância desse estudo na época (1858) está relacionada a conceitos de orientabilidade. Informação disponível em: http://conceitoaronaldo. blogspot.com/2009/01/o-que-uma-fita-demoebius.html. Acesso em 16.01.2009. 37 Clark, Lygia. Catálogo da exposição Lygia Clark na Fundação Antoni Tàpies de Barcelona. 1997. p.151
uma fita de Moebius36 para, de acordo com a largura da fita, cortá-la sempre seguindo o sentido do comprimento. “O Caminhando tem todas as possibilidades ligadas à ação em si: ele permite a escolha, o imprevisível, a transformação de uma virtualidade em um empreendimento concreto”.37 Lygia Clark atribui importância absoluta ao ato realizado pelo participante ao cortar a fita. A obra é o ato em si. “Essa noção de escolha é decisiva e nela reside o único sentido dessa experiência.”38
38 Id., ibid.
O labirinto de signos do conto de Borges, como o escritor sugere, faz entrar em jogo “todas as possibilidades” temporais, que identifico estar em jogo também em Caminhando. Clark escolhe a fita de Moebius para essa proposição, por causa de suas características: ela não tem lado de dentro nem lado de fora, nem início nem fim; “(...) ela quebra nossos 39 Id., ibid., p.151. 40 Na acepção da palavra ensaio de Márcio Tavares d’Amaral, o autor diz que o ensaio está relacionado à ideia de repetição, presente na preparação (ensaio) de uma peça teatral ou num experimento científico, e, ainda, é a forma livre, inconclusiva de uma tese em forma de ensaio. Lembrando que o pensamento também é de natureza ensaística. 41 Borges. Op. cit., p.105.
hábitos espaciais: direita esquerda, anverso reverso, etc. Ela nos faz viver a experiência de um tempo sem limite e de um espaço contínuo”.39 Atribuo a essa experiência o sentido de inconclusividade, sentido da natureza ensaística do pensamento.40 Borges nos sugere escolhas nos caminhos bifurcados concretizados no corpo do texto do conto. Vivemos as experiências por intermédio dos personagens do romance do sábio chinês Ts`ui Pen. Experimentamos com eles “um tempo sem limites e um espaço contínuo” a partir da ideia de que “(...) todos os desfechos ocorrem; cada um é o ponto de partida de outras bifurcações”,41 indicando continuidade sem fim.
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Camadas é um desenho performático. Adentro o espaço expositivo e utilizo o procedimento de riscar na parede escolhida, com gestos repetidos, as linhas em grafite que constituirão o desenho. Este tem minha estatura como referência, risco erguendo os braços e abaixando-me energicamente, risco em direção ao canto direito para voltar riscando em direção ao canto esquerdo da sala. Coreografia horizontal a partir de gestos verticais realizada sucessivamente. Permaneço longas horas riscando linhas suficientes para gerar uma camada espessa de grafite na superfície da parede. Suor, cansaço, fadiga muscular: lesões por esforço repetitivo. O corpo, afetado pelo desenho, sofre – desenhar dói. Tais movimentos são capturados pela filmadora para serem projetados sobre o desenho feito na parede com pequeno deslocamento. A superposição de gestos, linhas e imagens reverbera temporalidades. A coreografia surgida da realização das linhas, o som provindo do bastão de grafite ao golpear a parede são elementos constituintes da obra. Um fazer e fazer sem fim, atualizando a atitude inaugural de riscar a parede. Camadas promove uma percepção de continuidade, de processo, de temporalidades; um jogo de velar e desvelar entre realidade (o desenho na parede) e virtualidade (a projeção das imagens dos movimentos e gestos que geraram o desenho na parede), no qual o som do bastão de grafite ao riscar a parede, junto às imagens, preenche o espaço envolvendo o espectador. O recurso do vídeo em meu trabalho opera agenciamentos temporais: diferentes camadas entram em contato e geram outras relações, que conecto à ideia deleuziana de “imagem-tempo”. Deleuze se refere a dois regimes da imagem: o orgânico, que é a imagem em movimento e se constitui de uma organização com cortes racionais que obedecem a um encadeamento, “e que projeta ele mesmo um modelo de verdade”,42 um modelo de totalidade e unicidade; e o cristalino, que ele chama de “imagem-tempo”,
42 Deleuze, Gilles. Dúvidas sobre o imaginário. Conversações. São Paulo: Editora 34, 2004, p.86.
constituído por organizações irracionais em que só ocorrem reencadeamentos “e [que] substitui o modelo de verdade pela potência do falso como devir”.43 Esse modelo des-
43 Id., Ibid., p.86.
carta a totalidade e unicidade porque, segundo Deleuze, na imagem-tempo “o tempo já não decorre do movimento para medi-lo”.44 As imagens são apresentadas não mais
44 Id., ibid., p 82.
em relação ao movimento, mas em relação ao tempo, entendido não como sucessão, “porque a sucessão diz respeito apenas às coisas e aos movimentos que estão no tempo (...) Ele é a forma de tudo o que muda e se move, mas é uma forma imutável e que não muda. Não uma forma eterna, mas justamente a forma do que não é eterno, a forma imutável da mudança e do movimento”.45
45 Deleuze apud Machado, Roberto. Deleuze e a Filosofia. Rio de Janeiro: Graal, 1990, p.104.
O falso como devir põe em jogo possibilidades de realização de acontecimentos, num agenciamento de tempos. “É uma potência do falso que substitui e destrona a forma do verdadeiro, pois ela afirma a simultaneidade de presentes incompossíveis, ou a coexistência de passados não necessariamente verdadeiros.”46
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46 Deleuze, Gilles. Imagem-Tempo. São Paulo: Editora Brasiliense, 2005, p.161.
47 Balthar, Nena. Desenho: uma habitação no tempo. Dissertação (mestrado em Arte e Cultura Contemporânea). Rio de Janeiro: Instituto de Artes, UERJ, 2009.
É do espaço exterior que trato ao propor Desenho: uma habitação no tempo.47 Possibilidade de nos constituirmos pelo que está do lado de fora, nossa exterioridade, nossa relação com o que é intrínseco à experiência. Implicando um reconhecimento do homem com base no que é o outro: sua diferença. Reflexão sobre minha prática e como a arte proporciona mudanças de nossa percepção do tempo. Reconhecimento do ritualístico da vida em oposição à eficácia atual. O saber como forma de demora, lentidão. A repetição como a lentidão-abertura para esse outro saber. Sedução pelo suspense e possibilidade de revelação.
Nena Balthar (Rio de Janeiro, Brasil) é artista visual, mestre em artes na linha de pesquisa Processos Artísticos Contemporâneos (IA/ UERJ - 2009), sob orientação de Malu Fatorelli; graduada em gravura pela EBA/ UFRJ (1988). Foi uma das idealizadoras do projeto de restauração de imagens litográficas “Memória da Litografia Comercial” e bolsista da UFRJ para sua execução (1989/1990). Fez parte da equipe do serviço de Educação do MAM - Rio de Janeiro (1999/2006), sob coordenação de Maria Tornaghi. Atua principalmente nos seguintes temas: artes visuais, instalação, desenho e ensino da arte. Desde 1992 é professora da Escola de Artes Visuais do Parque Lage. / nbalthar@gmail.com
Temporalidades possíveis Nena Balthar
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Entre 1958 e 1962, Willys de Castro se dedicou a extensa pesquisa plástica que resultou em séries de obras como Estudos para pintura e Objetos ativos. O artigo se desenvolve sob a perspectiva da abordagem dessas obras em análoga reflexão com o pensamento sistêmico que se fez presente nas ciências exatas e humanas a partir da primeira metade do século passado. Willys de Castro, objetos ativos, sistemas. Em 1958 Willys de Castro produziu os exemplares inaugurais da série Estudo para pintura (1958-1960). Óleo sobre tela. 17,5 x 8,5cm. Conduru, Roberto. Willys de Castro. São Paulo: Cosac Naify, 2005, p. 11.
Estudos para pintura, pequenas telas pintadas a óleo que o artista concebera visando a uma pesquisa que, em 1959, convergiria para a criação do primeiro Objeto ativo. Se os estudos iniciais se limitavam à bidimensionalidade prescrita no trabalho em superfícies com volume desprezível, o artista adotaria o estatuto de objetos para aqueles nos quais a projeção no espaço viria mesmo a questionar a frontalidade das pinturas iniciais. Contudo, no que pesem as diferenças estruturais de suporte nessas distintas séries, a recorrência de uma forma de composição cromática, que parece se inaugurar com os primeiros Estudos para pintura, indica temática ou até método sobre o qual se desenrolaria todo o trajeto que compreende os trabalhos realizados pelo artista entre 1958 e 1962. Esse leitmotiv, identificado por técnica de composição que faz supor um quadrado figurativo como fragmento de um plano de fundo segundo o esquema do positivonegativo, torna-se traço fundamental desse período, atribuindo inequívoca dimensão autoral à obra de Willys − denotando através do método que “a regularidade revela uma preocupação com a conquista de uma expressão decidida e controlada associada à busca
1 Botallo, Marilúcia. Willys de Castro: Uma vida pluri e ativa. In Conduru, Roberto. Willys de Castro. São Paulo: Cosac Naify, 2005.
pela originalidade1.” Expressão e método são, aqui, a conciliação premente das partes com o todo, demandando o esforço particular da observação direta de cada obra, como também a localização abstrata em que cada uma delas se conecta à ideia que Willys de Castro tem de pesquisa artística. A tela dividida em duas, três ou quatro áreas de cores diferentes – procedimento cogente na série Estudos para pintura – é a base da operação pela qual se definem os planos com base no contraste das cores. Em uma dessas telas, o vermelho primário é empregado em oposição a um púrpura-claro, que se dispõe na metade inferior do quadro. Apesar da aparente regularidade dessa divisão, porém, uma descontinuidade no plano púrpura anuncia o tratamento dado pela reentrância, na forma de um pequeno
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quadrado de cor vermelha, na parte superior da superfície inferior, sugerindo assim a invasão do plano superior vermelho no plano púrpura. Em análoga morfologia, um pequeno quadrado de cor púrpura − de dimensões idênticas às daquela reentrância − foi inserido na parte central do plano vermelho superior. O procedimento, que se repete em todas as telas da série, é, ainda, recorrente em séries posteriores, como Soma entre planos e, medidas as diferenças2 inerentes ao próprio suporte, em alguns casos de Objetos ativos. Esse fato torna-se determinante para pensarmos esse processo em termos
2 Diferenças que parecem ser decisivas para uma leitura inteiramente diversa nesses casos.
da derivação de um motivo artístico concebido através da lógica do positivo-negativo: um “motivo positivo-negativo”. A exatidão dos planos é, assim, quebrada pelo motivo, ou seja, o procedimento baseado naquela descontinuidade evita que se tenha a percepção das áreas com cores distintas em sua forma mais óbvia. Isso acontece porque, segundo o princípio da pregnância definido pela teoria da Gestalt, o olho se dispõe a certa inclinação para perceber a área em sua forma mais simples (um quadrilátero nesse caso), sugerindo, por isso, uma tendência a deslizar o pequeno quadrado até o ponto de onde ele parece ter saído. Pode-se entender dessa forma que o pequeno quadrado foi retirado de seu plano de origem sendo colocado no plano vizinho, caracterizado pelo contraste de cores entre os planos e pela identidade dos supostos fragmentos com as cores de seu plano de “origem”. Essa percepção – de que algo não está no lugar em que deveria estar – concede à obra uma constante tensão que faz deslocar a visão mais superficial, favorecendo a operação de levar o motivo a seu suposto ponto de partida. Em outra visada,3 poderíamos nos referir à teoria da cibernética, de Norbert Wiener, em que se encontram os conceitos de retroalimentação (feedback) e circularidade.4 Rompendo com o princípio da causalidade linear, a teoria de Wiener introduz a ideia de círculo causal, demonstrando a existência de mútuas interações entre efeito e causa. “A”, portanto, exerce influência sobre “B”, e “B”, em retorno, influi sobre “A”. Essa recursividade perene – da constante ação da causa sobre o efeito e do efeito sobre a causa − tem dois aspectos principais: um regulador, denominado feedback negativo, que impede que os desvios destruam os sistemas; e outro amplificador, chamado de feedback positivo, que os faz evoluírem. Pode-se, assim, determinar os procedimentos de “retirada” e “colocação” sugeridos pelo motivo como o uso de forças vetoriais (verticais e horizontais) e cromáticas com intuito de retesar a forma final, introduzindo na obra a “instabilidade constante” da ordem do equilíbrio. O pequeno quadrado púrpura que flutua na região vermelha do quadro insere-se em lógica de composição na qual é, ele mesmo, a materialização de forma geométrica perfeita que o sistema constituído pela obra tenta reiteradamente afirmar – seja na suposição da ausência implícita na descontinuidade da divisão entre os planos vermelho e púrpura, seja na própria regularidade das dimensões concedidas aos planos, ainda que nenhum deles seja perfeitamente quadrado. O pequeno quadrado atua quase que como
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3 Que se poderia chamar, aqui, de metafórica, dadas as condições de abstração da analogia. 4 Wiener, Norbert. Cibernética e Sociedade: o uso humano de seres humanos. São Paulo: Cultrix, 1958.
5 O termo fractal foi utilizado, pela primeira vez, pelo matemático francês Benoît Mandelbrot, referindo-se a uma geometria particular em que os padrões característicos de uma forma são reproduções constantes em escala descendente, de modo que suas partes, são, em escala, semelhantes ao formato do todo. Ver Capra, Fritjof. A teia da vida. São Paulo: Editora Cultrix, 2000, p. 118. 6 Conduru. Op. cit., p. 25.
um fractal,5 evidenciando, também, como aponta Roberto Conduru, a “compreensão do fato de a percepção de uma forma estar associada ao seu campo de aparecimento”.6 A suposição dessa relação mútua entre os planos de Estudos para pintura sugere que cada um desses planos – constituídos por distintas cores – assuma uma função orgânica (e não apenas uma posição restrita) no processo de acomodação visual do todo. Desse modo, a instabilidade instaurada pelo anexo positivo desse sistema constituído justifica sua contrapartida reguladora (negativa). A operação criada a partir dessa oposição
7 Em Soma entre planos esse dispositivo também aparece. A soma, no entanto, deve ser lida menos como a síntese unificadora dos planos do que como unidade dividida de uma superfície material base.
mantém a tensão como amálgama dos planos, caracterizando uma suposta soma7 e se afirmando em sua simultaneidade como superfície (em que a dicótoma figura-fundo assume função passiva na ordenação ou mesmo se desfaz) com a presença de um elemento fundamental de um no outro. De modo que não é possível o entendimento dos planos como figura ou fundo, a não ser por esforço arbitrário do observador em atribuir a um e outro essa forma particular de ordenamento. A recursividade que se manifesta, apesar dos planos constituídos pela homogeneidade da forma dentro da cor, subordina-se, aí, a um regime de latência em que a parte se sujeita sempre ao balanceamento necessário ao equilíbrio do todo. Em Estudos para pintura a imagem oferecida ao observador é a da atualidade desse todo em detrimento da aparente sequencialidade dos planos. O ritmo, dessa forma, manifesta-se num tempo seguro da visualidade não sequencial em que as cores cumprem o fundamento da ordem. O todo chega aos olhos antes de suas partes, e, quando se tenta subtrair dessa amálgama o limite definido pelas partes, fica patente a impossibilidade (ou, antes, a inutilidade) desse esforço analítico. E se de um lado o esquema positivo-negativo utilizado sugere a consequente dualidade dessa operação, de outro, pode nos remeter à irônica evasiva desse processo de divisão.
8 Palavra tão impregnada por certo idealismo hegeliano.
A perspectiva de síntese8 é a sucessão vazia de um processo dialético que se define tautologicamente no simples embate dos opostos. Seguindo os preceitos de uma inteligência complexa, “o problema é, pois, unir as noções antagônicas para pensar os processos
9 Morin, Edgar; Le Moigne, Jean-Louis. A inteligência da complexidade. São Paulo: Petrópolis, 2000, p. 204.
organizadores, produtivos e criadores (...)”.9 Dando como resposta a pergunta e como pergunta a resposta, a permanência é o próprio estado de instabilidade do acaso fenomenológico de um devir entre o tudo e o nada − presença total ou ausência absoluta. O problema da forma nesses trabalhos se apresenta fundamentalmente como o problema da cor. Já há alguns anos o artista se havia desfeito das linhas de traçado que indicavam a presença do desenho, supondo, com efeito, a delimitação da forma como a própria homogeneidade do campo de impregnação de uma cor. Também aqui cor e forma se associam, como declaração dessa geometria da afirmação pela exclusão. Pois se a forma se apresenta na inexpugnável homogeneidade de seu conteúdo, de outro modo, também o conteúdo se pode diferir pela aparente independência da forma. Vê-se, assim, apesar da associação daquela reentrância − atestada pelo fundamento da cor − com o plano
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superior, uma afinidade evidente com a forma do quadrado, referenciada pelo suposto fragmento que corre acima, na parte central da superfície vermelha. A forma que se observa no pequeno quadrilátero que espreita no meio do plano vermelho é o correspondente ao especulativo de uma forma supostamente ausente10 naquele justo ponto em que a reentrância se conecta ao plano superior por uma afinidade cromática. Ora, também o cromatismo é a representação de dualidade circunscrita pelo fato de a
10 Cabe a consideração de que a ausência, aí, significa estado de correspondência negativo, revelando mais a expectativa frustrada da forma que não existe do que a forma que se apresenta de fato.
cor que nos chega aos olhos não ser apenas uma propriedade material da tinta, mas o equilíbrio entre essa cor do pigmento − obtida por subtração, em que a superfície reflete com mais constância determinado comprimento de onda por uma característica própria do material − e uma cor aditiva determinada pela própria emissão da fonte que ilumina o objeto e que nos chega aos olhos. Luz e matéria aparecem, então, como termos propostos de uma substancialidade inerente ao suporte, opondo-se de maneira análoga ao contraste realizado no quadro com a oposição entre o claro e o escuro.11 Apesar do empenho do artista em abluir a fase material do suporte com o tratamento límpido e preciso, é certo que ele conhecia muito bem as limitações sensíveis da técnica material12 que utilizara, parecendo, desse modo, apropriar-se também dessas limitações em vista do estabelecimento de um equilíbrio entre o ideal e o possível. Com efeito, presença e ausência são formas de correspondência de um mesmo problema ontológico, assim como luz e matéria − em oposição uma à outra − não se podem declarar entes distintos no contexto da percepção. O presente artigo é fruto de pesquisa materializada na dissertação intitulada Do equilíbrio instável entre a pureza da forma e a brutalidade da matéria: por uma análise sistêmica dos Objetos ativos de Willys de Castro.13 E o esforço repetido em abordar a obra desse artista segundo o pano de fundo do chamado pensamento sistêmico encontra-se justificado na presença nessas obras de elementos significativos que vêm, sobretudo, reafirmar a complexidade como qualidade inexorável não apenas dos referidos objetos artísticos, mas, nomeadamente, como fundamento de uma ideia de arte que o artista conservava em cada pequeno gesto na direção da realização de seu trabalho. A abordagem da oposição positivo-negativo é um desses elementos na obra de Willys em que o pensamento sistêmico aparece quase como sintomática das decisões do artista. Num modo de pensar mecanicista, nada obstante, a oposição não poderia senão estabelecer uma polarização no sentido dicotômico, em que uma parte se cumpriria simplesmente por negar a outra; o resultado postulado, então, se reduziria a uma dupla negação. É em propósito dessa mudança de pensamento nas primeiras décadas do século XX que Capra observou o que para ele constitui decisiva quebra de paradigma: Na mudança do pensamento mecanicista para o pensamento sistêmico, a relação entre as partes e o todo foi invertida. A ciência cartesia-
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11 A tradição da pintura, com base na ideia de representação e das condições materiais históricas desse suporte, coloca-nos o branco como certo princípio de ausência sobre a qual o artista interviria através da adição da cor para fundar os primeiros aspectos da representação e da expressão. Se a claridade é a qualidade mais característica do branco, a analogia recai sobre esse aspecto particular, concedendo certa disposição à materialidade – em contraponto a ausência representada pelo branco – à cor mais escura. 12 Cabe lembrar que, entre 1958 e 1962, Willys usara óleo sobre tela na maior parte de suas obras, e, ainda que tenha utilizado em menor escala tintas sintéticas, como a acrílico-vinílica, não parece existir variação significativa na forma como o artista utilizava tintas sintéticas ou naturais. 13 Desenvolvido precisamente tendo como base o capítulo terceiro, que se intitula Uma teoria sistêmica para a obra de Willys de Castro.
na acreditava que em qualquer sistema complexo o comportamento do todo podia ser analisado em termos das propriedades de suas partes. A ciência sistêmica mostra que os sistemas vivos não podem ser compreendidos por meio de análise. As propriedades das partes não são propriedades intrínsecas, mas só podem ser entendidas dentro do contexto do todo maior. Desse modo, o pensamento sistêmico é pensamento “contextual”; e, uma vez que explicar coisas considerando o seu contexto significa explicá-las considerando o seu meio ambiente; também podemos dizer que todo pensamento sistêmico é pensamento 14 Capra. Op. cit., p.46.
ambientalista.14 No caso da série Estudos para pintura, seu meio ambiente é a tela de cavalete, e o sistema é constituído pelos elementos que se instituem no espaço bidimensional da tela. A inversão na relação entre o todo e as partes, porém, não é a única mudança importante dessa quebra de paradigma. Há que considerar fundamentalmente que o estudo da substância cedeu lugar a um estudo do padrão no centro desse novo pensamento. Desde o século VI a.C., os questionamentos acerca da realidade eram feitos sempre tendo em vista preceitos sustentados na constituição material do mundo, com base na ideia de substância para chegar a conhecimento invariavelmente redutível à noção de quantidade − como aquela
15 Teoria a partir da qual os elementos químicos modernos foram modelados. Ver Capra. Op. cit., p.76.
a que se chegou em razão dos quatro elementos fundamentais: terra, ar, água e fogo.15 Para o estudo da substância o objeto de análise é observado sempre em vista de termos como medir ou pesar. Os padrões, por outro lado, não podem ser nem medidos, nem pesados. Para entender um padrão é necessário mapear uma configuração de relações, e isso envolve a noção de qualidade. Com base no novo paradigma, desse modo, percebeuse que para se compreender os sistemas complexos é essencial o estudo do padrão, pois as propriedades sistêmicas surgem de uma configuração de padrões ordenados e não das condições substanciais a que as partes do sistema estão submetidas.
16 Termo sob o qual poderíamos conter tanto a noção de matéria quanto a de luz.
Na obra desse artista, portanto, a substância16 é sempre elemento subordinado a um perfil de configurações características. A sugestão da forma do quadrado em Estudos para pintura, por exemplo, não é aferida considerando simplesmente as dimensões e o perímetro de cada plano − mesmo porque a única forma perfeitamente quadrada em todo quadro é o pequeno quadrilátero púrpura que parece ter-se destacado do plano inferior −, mas uma forma sugerida pela condição dos padrões observados em cada tela e em todas elas. Não se trata apenas da pertinência da analogia traçada entre a ideia de arte de Willys de Castro e a teoria cibernética de Norbert Wiener, mas da real suposição de que a obra desse artista pode, à perfeição, ser lida como a sustentação de um modelo de pensamento essencialmente sistêmico. Os Objetos ativos e a extensão da obra no tempo No contexto dessa pesquisa, os Objetos ativos se apresentam como o redimensionamento do quadro em direção ao estatuto de coisa. Com a projeção da tela – ganhando real pro-
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fundidade − a pintura assume o espaço do mundo, e o artista sente, então, a necessidade de afirmar suas obras enquanto objetos. A planaridade obviamente concebida em Estudos para pintura, aqui se desfaz de uma maneira não tão óbvia quanto uma leitura superficial propõe, cabendo considerar como parte desse processo obras como Soma entre planos I e Planos interpostos,17 nas quais a planaridade é ainda predominante, mas onde o artista já mostrava uma preocupação decisiva com a terceira dimensão – o quadro se projeta sutilmente a partir da parede, mas essa ínfima dimensão já se apresenta descrita escru-
17 O primeiro Objeto ativo também se caracterizava pela frontalidade acentuada e profundidade mínima do quadro. Também nele a terceira dimensão aparece descrita na legenda da obra.
pulosamente nas legendas das obras. Nas palavras do crítico José Leôncio: “convencionamos chamar de quadro a um objeto de arte em cujas dimensões físicas há um predomínio da largura e da altura (superfície frontal) em relação à profundidade (espessura lateral) ordinariamente desprezada.”18 Em geral, a forma desses objetos é a de um sarrafo de madeira pendurado à altura dos olhos,
18 Leoncio, José. Uma nova obra. Folha da Tarde. São Paulo, 16 de maio de 1960.
como sugestão a determinada leitura. Mas as dimensões da obra vêm, de certo modo, de encontro a essa sugestão por tratar-se de um objeto significativamente tridimensional. O que nos leva a considerá-lo sob novo ponto de vista. Como resultado dessas modificações o objeto se despoja manifestamente do pressuposto da observação frontal, apreendendo o espaço real de forma a dar-se como corpo proeminente. A bidimensionalidade referendada em séries anteriores parece querer, aqui, dissolver-se. Os vértices passam de coadjuvantes a protagonistas e as superfícies mostram-se subordinadas a ele. As superfícies, porém, ainda exercem a função de superestrutura, e se, por um lado, a bidimensionalidade parece relegada à visão parcial e incompleta do observador estático, por outro, essa sujeição do plano ao volume não é definitiva, pois o objeto virá reafirmar sua planaridade em momento posterior, já que as condições da percepção da obra são dinâmicas. A obra Objeto ativo, de 1960, é pintada com tinta branca e preta em tela colocada sobre o sarrafo de madeira. A parte frontal é pintada de preto, com a inserção de um quadrado branco, interrompendo sua continuidade. Essa seção é deslocada para o lado na figura oposta de um quadrado preto sobre uma superfície predominantemente branca, quando assume o contraste a partir de sua relação com o plano frontal, trazendo novamente o motivo positivo-negativo à percepção do observador. De acordo com Ferreira Gullar, “Willys de Castro apresenta objetos ativos com que procura eliminar a superfície básica da pintura reduzindo o plano frontal da obra ao fio da superfície, e sua espessura. A cor que ocupa de alto a baixo esse exíguo plano rompe-se, de repente, em determinado ponto e o fragmento de cor que faltava desliza para o plano lateral, indicando uma continuidade da superfície fora do plano”.19
19 Gullar, Ferreira. Diversificação da Experiência Neoconcreta. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 04 de dezembro de 1960.
O entendimento do detalhe como um deslocamento retoma as perspectivas de Estudos para pintura, dando como origem de tal fragmento o plano frontal da obra. O motivo, agora, entretanto, apresenta-se em outro contexto, já que o elemento “positivo” e o “negativo” estão separados também pelas superfícies ortogonais do objeto, tendo-se transgredido a bidimensionalidade proposta anteriormente na série Estudos para pintura. O
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motivo, dessa forma, se apresenta num contexto de maior complexidade, mesmo porque, com a aquisição da profundidade real, a obra ganhou novos pontos de observação; assim, a caracterização imediata do motivo torna-se menos contundente. Com novos pontos 20 Deve-se ter sempre ao alcance o fato de que a condição de observador não é dada a priori, podendo-se prever inúmeras formas de dinâmica na relação obra/observador, e mesmo considerar as formas imprevistas. 21 É muito provável que o autor se tenha enganado na transcrição do título da obra já que se trata, visivelmente, de um Objeto ativo e não de Pintura 1959/60. 22 Leoncio. Op. cit.
de visão, ele passa a ser um detalhe oculto que só se revela aos olhos, supostamente,20 a certa altura da trajetória do observador, assim como sugere Leôncio: “Na série novos trabalhos e principalmente na sua Pintura 1959/60,21 Willys de Castro consegue, diminuindo a largura e aumentando a profundidade, realizar um original objeto de arte com características inteiramente novas. Com isso, o quadro, que normalmente é observado ou reproduzido para contemplação passiva, passa a exigir do observador um percurso ladofrente-lado para que se possam coligir os dados necessários à compreensão da mensagem ali contida.”22 Esse percurso “lado-frente-lado” caracteriza uma teórica semicircularidade da obra em termos de observação, ou seja, a trajetória do observador passa agora ao entorno da obra, num semicírculo que vai de uma lateral a outra. O espectador é obrigado a circular em volta da obra para ter a noção exata do objeto que tenta entender. O tempo, com efeito, torna-se elemento decisivo na percepção do objeto. Rosalind Krauss, em análise sobre Desenvolvimento de uma garrafa no espaço, de Umberto Boccioni, recorre ao expediente de uma ideia de escultura moderna, vinculando-a diretamente a sua relação fundamental com o tempo. Relação essa que, na escultura de Boccioni, poder-se-ia traduzir na condição mecânica de sua investida: o movimento. Referindo-
23 Krauss, Rosalind. Caminhos da Escultura Moderna. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p.52.
se aos usos conceituais do próprio Boccioni, Krauss faz alusão ao “movimento absoluto”23 teorizado pelo artista, que trazia em sua concepção a densidade estrutural e material do objeto (ideia de substância). De outro lado, Boccioni cunhou a expressão “movimento
24 Id., ibid.
relativo”, em que indicava a “existência contingente do objeto no espaço real”24 à medida que o observador mudava de posição em relação ao objeto. Também na esteira da ideia de “movimento relativo” referia-se a mudanças de dimensões e forma (ideia de padrão) que ocorriam quando a figura em repouso fosse precipitada em movimento. A despeito do eco produzido pelos conceitos de Boccioni nas obras de Willys, a analogia, aqui, se parece fundar especialmente naquilo que as obras de Willys vêm negar a propósito da teoria de Boccioni. A relação de síntese entre os movimentos “absoluto” e “relativo” de Umberto Boccioni coloca ao observador uma dualidade concebida entre o olhar e a consciência, representada quando, diante do plano frontal de Desenvolvimento de uma garrafa no espaço, essa oposição se declara ao observador: “A oposição entre um
25 Id., ibid., p.55.
centro estático, oco, e a representação de um exterior em movimento ou cambiante.”25 No Objeto ativo, entrementes, essa síntese não se faz determinante ou faz-se de outro modo. Esse espaço isótropo de que fala Boccioni só é possível, como aponta Merleau-Ponty, tal que “o sujeito abandone seu lugar, seu ponto vista sobre o mundo, e se pense em uma
26 Merleau-Ponty, Maurice. Fenomenologia da Percepção. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p.344.
espécie de ubiquidade”,26 como está implícita na própria concepção de Boccioni sobre um movimento relativo, ou seja, da existência latente de todos os pontos de vista possíveis
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ao redor do objeto. Para Willys, entretanto, o movimento relativo que podemos supor é de natureza um tanto diversa. O que se pode determinar ali por “movimento relativo”, enquanto domínio específico de uma representação da ideia de padrão, é justo aquela organização da consciência do objeto em que ambos (o objeto e a percepção do objeto) são da “ordem dos coexistentes”.27 O objeto só é tomado como visível na relação direta
27 Id., ibid., p.357.
que trava com o observador. Isso significa dizer que a síntese não é aquela que permite que duas posições distintas no espaço possam se conectar a uma mesma representação do objeto, íntegra e indivisível. E “se ainda quisermos falar de síntese, ela será, como diz Husserl, uma ‘síntese de transição’, que não liga perspectivas discretas mas que efetua a ‘passagem’ de uma à outra”,28 enquanto Boccioni se refere a um centro que, em contra-
28 Id., ibid., p.358.
posição às figuras recortadas da garrafa descritas por seu “movimento relativo”, funciona como “uma forma ideal que parece garantir a integridade do objeto”.29 O conhecimento de
29 Krauss. Op. cit., p.56.
um objeto para Boccioni se apresenta então dessa forma intelectiva em que a “pobreza da percepção bruta” não pode ultrapassar os limites impostos pelo espaço e tempo ao conhecimento pleno do objeto. “Conhecer a garrafa deve ser – em termos da visão idealista personificada pela escultura – a função de um tipo de visão sintética a integrar todos os ângulos de visão parciais e ininteligíveis em si.”30 Ora, no Objeto ativo essa ideia de
30 Id., ibid.
abranger a totalidade do objeto em um ponto fixo no espaço – no qual a consciência se encontra diametralmente com a ideia de objeto – é desmitificada pela própria natureza refratária da obra que, através do esvaziamento da massa no interior do objeto na articulação objetiva dos planos, se desfaz da ideia de um centro estrutural em favor da “atualidade da experiência”,31 relativizando toda percepção do movimento em torno do objeto
31 Conduru. Op. cit., p.51.
e rejeitando o conteúdo sobremaneira idealista de uma ideia de síntese dos movimentos absoluto e relativo. E se, mais uma vez, se quiser falar em síntese,32 deve ser como propõe Capra a respeito do estudo dos sistemas complexos, em que o estudo da estrutura se vê 33
32 Se essa palavra puder ainda sobreviver a usos tão díspares. 33 Capra. Op. cit., p.133.
assim subordinado a um estudo do padrão. Deve-se, contudo, ater à ordem prescrita pelo material – ao qual Willys dedicava intensa pesquisa – e, por isso, não se pode rejeitar de todo o conteúdo substancialista de uma ideia de estrutura tal como Boccioni propõe em seu “movimento absoluto”. O Objeto ativo não pode ser lido como habitando um espaço de todo em relatividade tal qual não se pudesse tê-lo conforme à objetividade que o nomeia. Merleau-Ponty sugere que “precisamos de um absoluto no relativo, de um espaço que não escorregue nas aparências, que se ancore a elas e se faça solidário a elas, mas que, todavia não seja dado com elas à maneira realista e possa (...) sobreviver à subversão das aparências”.34 Há que considerar, no que diz respeito a esses objetos, esse “absoluto no relativo”, mas que em última instância não seja dado com as aparências “à maneira realista”. Seja ele a matéria, porquanto a ela toda aparência possa convergir. A matéria enquanto suporte real para a determinação de um objeto (substancial, portanto) deve, então, ter seu lugar de direito nesse complexo sistema que é o Objeto ativo de Willys de Castro e, analogamente ao motivo “positivo-negativo”, poderia ser sustentado pela teoria ciberné-
28
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34 Merleau-Ponty. Op. cit., p.334.
tica de Norbert Wiener. Nas palavras de Willys de Castro, “a supressão da fase material dentro do artístico ronda a pretensão idealista, utópica de criar a pura obra de arte sem criar vestígios do objeto. Pois, da condição de coisa, sempre se entreveem a forma e a 35 Castro, Willys de. Objeto ativo. In Conduru. Op. cit., p.154.
matéria do suporte intercambiando propriedades com a ideia geradora da primeira.35 A fase material seria, dessa forma, responsável pelo que Wiener chama de feedback positivo, pois atua no exercício da instabilidade que se instaura no sistema artístico, instigando a obra ao retorno a um estado de desordem característico de qualquer sistema fechado, assim como descrito pela segunda lei da termodinâmica (entropia): “A reversibilidade fatal, entrópica da fase elaborada de obra para a fase material bruta
36 Id., ibid.
equaciona a instabilidade perene em que se encontra toda obra de arte”.36 É, portanto, a materialidade do objeto que, de certo modo, tenta-se “amenizar” quando, na articulação austera dos planos, o artista se vale da ablução condicionada pela pintura precisa e homogênea para esvaziar o objeto de massa e apresentá-lo como o esforço constante da técnica em direção àquele momento de translucidez da observação, que para Willys parece definir o fundamento artístico. Pois “são os requisitos técnicos da execução duradoura e límpida da ideia geradora” que correspondem ao feedback negativo, no qual os desvios ou instabilidades são constrangidos nesse constante embate da obra entre a natureza caótica e disforme da substância e a definição de uma ordem de razão artística, um padrão. Logo, são esses requisitos que “garantem o estado artístico da obra e, cada vez mais, impedem o seu retorno à
37 Id., ibid.
primitiva brutalidade da matéria”.37 O erro comum em creditar, à invasão do objeto artístico no espaço tridimensional, a razão da superação da fase imaterial do objeto em nome de sua presença no espaço não idealizado do mundo tem base no mesmo processo cartesiano de negação na oposição. Ora, aqui, Willys de Castro utiliza a terceira dimensão sem, contudo, negar todo conhecimento possível que se pode dar apenas em duas. Ao contrário, o que a obra parece propor é que bidimensionalidade e tridimensionalidade se apresentam de fato como termos complementares. E “essa presença simultânea a experiências que, todavia, se excluem, essa implicação de uma na outra, essa contração em um único ato perceptivo de todo um processo possível” fazem, seguindo as palavras
38 Merleau-Ponty. Op. cit., p.357.
do filósofo, “a originalidade da profundidade”.38 A terceira dimensão é, então, aquela de acordo com a qual os elementos do objeto se implicam uns aos outros, “en-
39 Castro. Op. cit., p.154.
quanto a largura e a altura são as dimensões segundo as quais eles se justapõem”.39 Na opinião de Roberto Conduru, “A evolução do plano pictórico à condição tridimensional do plano e do volume ativos significa a superação da virtualidade, características da tela de cavalete e também da estatuária tradicional, em favor da atualidade da
40 Conduru. Op. cit., p.49-51.
experiência”.40
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A condição da superação dessa virtualidade, no entanto, não significa a negação daquele espaço inscrito também na virtualidade. Com efeito, a virtualidade não é senão um mecanismo circunstancial da própria atualidade da experiência. E o pressuposto de uma fase imaterial, que não se dá antes da invasão do objeto no mundo, mas com ele permanece atuante como a contrapartida da subjetividade ao constante e objetivo “estar no mundo” da matéria. A fase imaterial é o próprio horizonte previsto pelo artista em uma “transparência da apreensão de ordem fenomenológica”,41 ou seja, contra
41 Castro. Op. cit., p.154.
a “brutalidade da matéria”, o labor de uma pintura homogênea se coloca sempre no domínio da visualidade que nos faz supor o artístico e a pureza de seu tratamento como empenhos decisivos à manutenção dessa ordem – da ordem plástica contra o “orgânico inacabamento” (incompleteness42) da matéria em estado bruto.
42 Wiener. Op. cit., p.13.
A “atualidade da experiência” é, então, a tomada de consciência do observador; a conexão sutil que permite à obra e ao observador habitarem o mesmo espaço, ainda que esse espaço não seja exatamente apenas o espaço virtual nem, tampouco, exclusivamente, o espaço físico. É dessa “dimensão instável e reflexiva das esculturas de Willys de Castro” que fala Ronaldo Brito a propósito de elas criarem “um ambiente ambíguo: corpóreo, digamos, mas imaterial. Menos do que objetivo, mais do que simplesmente virtual. Da própria ordem, quem sabe, da produção histórica e intersubjetiva do real”.43 Talvez aí figure a fenomenologia que o artista refere: menos na relação participativa entre os corpos – da obra e do espectador (como se provindo do corpo o gesto de “ver” e do objeto a condição de “visto”) – do que no ímpeto significante da observação. Da relação sugerida pela interpenetração do objeto visível e do observador vidente, e não pela hierarquia pressuposta no ato predatório da observação, mas na indissociabilidade imposta aos termos (visível e vidente) pelo espaço – esse agente sub-reptício que funda toda observação; esse ponto de conexão que é menos sentido do que direção − do qual fazem parte os corpos tanto quanto os objetos, já quando deixam de ser objeto e corpo para se tornarem parte desse espaço flexível e intermediário que é locus da própria percepção. Supor daí a perspectiva de um objeto artístico intangível, para não dizer metafísico, é a consequente distorção operada por um pensamento clássico mediante o qual se prevê, para os aspectos estruturais dessa obra, a antiga distinção entre as naturezas da luz e da matéria. Como se apenas a segunda fosse, de fato, substancial. De outra forma, também a luz é de algum modo substância. A substância que, de fato, chega aos sentidos – se assim se quiser ponderar; o ponto material sobre o qual se pede orientar a relação insubstancial entre o visível e o vidente. Norbert Wiener discute essa questão com base no movimento histórico traduzido no final do século XVIII pelo que se denominou “estudo do éter”, ou seja, na possibilidade conclusiva de se determinar o movimento da matéria através do éter. Esse ponto atravessou dezenas de experimentos e muitas variantes até ser questionada a própria existência do éter. De qualquer modo, a importância da elaboração dessa teoria foi
30
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43 Brito, Ronaldo. Experiência crítica. São Paulo: Cosac Naify, 2005, p.222.
sempre justificada pela ideia de um observador privilegiado (o próprio éter) segundo o qual todas as leis postuladas da física pudessem ser aplicadas para o movimento da luz e da matéria. O que entretanto interessa aos propósitos deste trabalho é, justamente, o novo paradigma estabelecido no enfrentamento dessas questões na virada do século. Nesse sentido, Wiener remete-nos à teoria de Eistein: “Contudo, Einstein, em 1905, traduziu tais ideias 44 Lorentz é um dos principais defensores da teoria do éter, buscando através de seus experimentos a possibilidade de comprovar a existência do éter e o “movimento absoluto” da luz através dele.
de Lorentz44 numa forma em que a impossibilidade de observar o movimento absoluto
45 Wiener. Op. cit., p.20.
sem a subordinação newtoniana de tudo mais à matéria e à mecânica”.45
era antes um postulado da física que o resultado de qualquer estrutura peculiar da matéria. Para os nossos propósitos, o importante é que na obra de Einstein, luz e matéria estão colocadas em base de igualdade, como havia estado em obras anteriores a Newton,
A teoria de Einstein recai sobre aquela quebra de paradigma que atingiu violentamente os postulados da física quando “o mundo conforme existe realmente é substituído, de 46 Id., ibid.
uma outra maneira, pelo mundo conforme seja observado (...)”.46 A teoria conhecida como “teoria da relatividade restrita”, em tempo, abandonou completamente a ideia da existência do éter, e o movimento passou a ser descrito sempre tendo em vista um observador que toma partido nas relações de tempo e espaço. Mais tarde, as experiências
47 Experiências a partir das quais o físico postulou o chamado “princípio da incerteza”.
de Heisenberg47 dariam novos contornos a esses conceitos, mostrando que o observador não só participa como altera o fenômeno próprio da observação. Também contra esse “pensamento clássico” Merleau-Ponty lançaria sua fenomenologia da percepção na concepção de um espaço não positivo, em estreita desavença com aquele absolutismo previsto ao meio na antiga mecânica. “(...) o espaço é anterior às suas pretensas partes, que sempre são recortadas nele. O espaço não é o ambiente (real ou lógico) em que as coisas se dispõem, mas o meio pelo qual a posição das coisas se torna possível. Quer dizer, em lugar de imaginá-lo como uma espécie de éter, no qual todas as coisas mergulham, ou de concebê-lo abstratamente com um caráter que lhes
48 Merleau-Ponty. Op. cit., p.328.
seja comum, devemos pensá-lo como a potência universal de suas conexões”.48 A relevância que aqui se dá a tais termos visa a mostrar que Willys de Castro se situa num momento singular da história da arte e do pensamento, em que tanto o realismo prognóstico do materialismo, de um lado, quanto o apelo idealista da forma pura, do outro, são postos em evidência em nome de um exercício de instabilidade da percepção. Desse equilíbrio instável que se apresenta na recursividade de todo processo sistêmico. Willys, que se colocava dividido entre o transcendentalismo da fenomenologia em que a arte de seus contemporâneos se baseava e o pragmatismo das ciências que fizeram parte da formação do artista (Willys de Castro formou-se químico industrial em 1948), encontrou nos Objetos ativos uma forma de conciliar determinado idealismo da arte com certo pragmatismo (a seu modo possível) que é também visível em sua atuação como profissional de design e em sua produção para o mercado “não artístico”.
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Essa divisão, em todo caso, esteve presente nas artes desde os primórdios do construtivismo. Se por um lado o anti-ilusionismo de Tatlin, por exemplo, se constituía a partir da densidade do espaço real, por outro, o idealismo da obra de Naum Gabo ficava evidente na complexidade teórica da formulação de suas obras: “A escultura de Naum Gabo deve ser lida como habitando um espaço especial, idealizado, e deve revelar-se conceitualmente transparente, apresentando ao observador estacionário uma síntese de todos os pontos de vista isolados de que ele disporia se circunavegasse o exterior do objeto”.49
49 Krauss. Op. cit., p.69.
A situação do observador nos Objetos ativos representa sim uma questão de objetividade material, assim como os contrarrelevos de Tatlin revelavam uma “interdependência do objeto construído e da realidade de sua situação”.50 De outra forma, porém, e em
50 Id., ibid.
determinados aspectos, retoma também a virtualização do objeto característica das correntes que desaguariam mais tarde no concretismo de Max Bill e que levariam ao extremo os termos de “visualidade pura”. Não à maneira particularmente idealista de Gabo, a julgar pela síntese empreendida pelo artista tencionando submeter o tempo ao espaço fechado de sua transparência conceitual, mas aqui na obra de Willys se pode também falar em transparência, que seja a da própria imersão de visão profundamente comprometida com a simultaneidade não linear dos aspectos materiais e imateriais do mundo. O que parece incontestável nessa permuta é a importância assumida pelo papel do observador, e talvez aí se encontre o mais visível ponto de concerto entre o pragmatismo inerente à própria formação intelectual de Willys de Castro e a influência da fenomenologia da experiência de seus contemporâneos neoconcretos. Enfrentar os Objetos ativos de Willys de Castro, dessa forma, requer a mesma imparcialidade que o artista tenta conseguir com a precisão de seu métier, já que, assim, se transportando da “opacidade da condição de coisa”51 para a “transparência da apreensão de ordem fenomenológi-
51 Castro. Op. cit., p.154.
ca”52, a obra reconhece sua autonomia, e o objeto “inaugura-se no mundo como um
52 Id., ibid.
instrumento de contar a si próprio”.53
53 Id., ibid.
Bruno Melo Monteiro (Rio de Janeiro, Brasil) é graduado em produção cultural pela Universidade Federal Fluminense e mestre em História e Crítica de Arte pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. / brunofritz@doctor.com
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Referências bibliográficas BRITO, Ronaldo. Experiência crítica. São Paulo: Cosac Naify, 2005. CAPRA, Fritjof. A teia da vida. São Paulo: Editora Cultrix, 2000. CONDURU, Roberto. Willys de Castro. São Paulo: Cosac Naify, 2005. GULLAR, Ferreira. Diversificação da experiência neoconcreta. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro: 4 de dezembro de 1960. KRAUSS, Rosalind. Caminhos da escultura moderna. São Paulo: Martins Fontes, 1998. LEONCIO, José. Uma nova obra. Folha da Tarde. São Paulo: 16 de maio de 1960. MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da percepção. São Paulo: Martins Fontes, 1999. MORIN, Edgar; LE MOIGNE, Jean-Louis. A inteligência da complexidade. São Paulo: Petrópolis, 2000. WIENER, Norbert. Cibernética e sociedade: o uso humano de seres humanos. São Paulo: Cultrix, 1958.
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Lucenne Cruz. Alguns, 2009, cartas re-escritas (e enviadas) em gaze e papel-carbono. Fonte: arquivo pessoal.
Que extravios de naturezas constituem um livro de artista? Lucenne Cruz
A estrutura do artigo (um capítulo da dissertação defendida no mestrado) é erguida pelas noções de escrita, corpo e plasticidade, que constituem o objeto de estudo e reflexão: livro de artista. Compreende exercícios que especulam – em transversais – obras de artistas que veiculam sua produção àqueles conceitos e às linhas de força que configuram o trabalho com o livro em suas diversas naturezas na arte contemporânea. O livro coloca em linguagem uma teoria de artista. Escrita, livro de artista, teoria e arte contemporânea. Destino a este artigo uma pensata suspensa acerca do que é (e é ainda em construção) um livro de artista e, que outros suportes, incluindo o corpo humano e o corpo como um texto, acolhem o alimento da escrita? nas obras está o solo conceitual, o estrado ou o objeto sobre o qual o corpo da escrita se espalhará. O livro é uma forma de pronunciar o mundo. E tecer. E quando esse objeto não é mais costurado com linhas em montinhos de cadernos e no lugar da língua há outra linguagem e em seu corpo operam marcas e esses traços são paisagens plásticas? ou mesmo sem qualquer vestígio externo desse objeto absoluto que manuseamos com prazer nas livrarias da cidade, respiramos seus aromas, acariciamos o relevo de suas superfícies, ainda que quase nada lembre sua estrutura primeira, ainda assim podemos chamar de livro um livro de artista. E é por meio das reflexões estruturais do próprio livro que o artista brinca com as convenções e expande o sentido da leitura para além do fosso da imagem escrita. Trato os livros como corpos textuais. O que vem a ser um corpo? Não somente o encaixe de ossos e de carnes, mas também uma porção ilimitada de matéria ou de coisas; a parte principal de um livro: o corpo do texto e o coração da escrita; o núcleo central de certos objetos, o corpo da nave espacial copulou a estação em órbita, por exemplo; o registro de objetos no céu: as estrelas, os planetas, os cometas são corpos celestes; o corpo de Deus, o pão da eucaristia; o indivíduo, a separação de corpos; uma corporação; o corpo da infantaria: os soldados pertencentes a uma arma; o corpo de baile; os corpos cavernosos; um corpo estranho, uma farpa. Talvez uma cidade possa ser reconhecida como um corpo por pertencer a esse arquivo material e imaterial de fatos e objetos e ainda por estar sob a forma de livro. De um livro de cabeceira a ser lido do lado de fora da casa. As ruas que passam por becos, monumentos, cemitérios, arranha-céus, teatros, as ruas escrevem traços transversais sobre escombros e galerias subterrâneas.
Que extravios de naturezas constituem um livro de artista? Lucenne Cruz
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As origens do livro encontram-se nas tabuinhas de argila da Antiguidade antes mesmo do papiro, das fibras vegetais e dos tecidos. No barro cozido – os primeiros livros – eram inscritos fatos, códigos, ideias, heranças e usos. A natureza do livro sempre foi a de um objeto móvel, a de uma superfície que acolhe a língua, os signos plásticos, o lugar das migrações, o bem que se transporta para certas culturas iconoclastas. Um pequeno livro1 curvo torneado em um mastro de madeira como se fosse uma fita de seda enrolada em um carretel esteve aqui no CCBB2 na sala destinada ao mundo – o seu escuro3 e seu bem pouco, seu secreto, seu religioso – judaico dentro da exposição Lusa – a matriz portuguesa. O Livro. O cavalete que carrega as visões de mundo, os conteúdos da vida. A reunião de folhas ou de tecidos ou de coisas, cosidas, enfeixadas ou montadas podem ser lidas como um livro (manuseável, com forma entendida e interpretada em função de valores plás-
1 Um exemplar muito antigo da Torá ou Torah, o livro da lei mosaica dos hebreus, chamado também de Lei de Moisés (Torah Moshê). 2 Centro Cultural do Banco do Brasil, RJ, de out. de 2007 a jan. de 2008. 3 Expressão colhida em e.mail trocado com Roberto Corrêa dos Santos quando falávamos da maneira como a obra de arte recebeu a luz.
ticos) e como cânon cultural (conteúdo entendido e interpretado em função de valores semânticos). As duas maneiras podem amalgamar-se como um conjunto orgânico – texto e arte – ou apenas como um conjunto textual em que a mensagem escrita vem em primeiro lugar: um livro de matemática, a exemplo. O propósito de meu trabalho imbrica com a forma anterior: o fabrico de objetos textuais instaurando outras concepções de corporeidades e grafias, outro lugar da escrita e da inscrição do corpo (estrutura móvel reescrita a cada leitura). E o que vem a ser um livro de artista? Um projeto que excede a forma dando à narrativa o aporte de uma ação plástica e autoral. E, mais, um objeto que “nos afeta como um desastre”4 e nele pensei por um bom tempo: Balada, de Nuno Ramos. O fabrico de diminutas utopias: um hábito contemporâneo.
4 Franz Kafka, carta a Oscar Pollak, 1904. Kafka discorre como um livro deve nos trespassar e nos magoar profundamente, como a morte de alguém a quem amávamos mais do que a nós mesmos, como ser banido para uma floresta longe de todos.
Da ínfima parte à mais alta, a construção dos livros que trabalho remonta à questão do escasso, a miúdo, do que deixamos para trás, o pouco que fica, do que se tem à mão sem sair do duomo, do precário, do quase nada que se avizinha à tese do vazio, do silêncio. Resíduos. Desde muito cedo, aprendi o valor da despensa: eduquei-me a tirar de apenas duas cebolas um aristocrático creme para as noites de inverno. Albert Camus declarou, ao receber o prêmio da Academia Real da Suécia,5 que, quando moleque, possuía um único par de sapatos e, com o intuito de gastar menos sola, procurava poupar os pés nos campos empoeirados, jogando como goleiro. Bancos. Também de um número limitado de notas musicais e letras dos alfabetos geram-se infinitas combinações, traços, sentidos. O Livro, para Da Vinci era a utopia cartesiana de relacionar, em seus mais de 50 cadernos manuscritos, a arte à ciência, a técnica à teoria artística. De todo modo, a tapeçaria de imagens – desenhos entremeados de escrituras – é um índice que mede a unidade de seus estudos sobre as questões internas do conhecimento, isto é, o cortejo das inquietudes que levou Leonardo a especular sobre assuntos tão múltiplos como o voo das aves, a anatomia dos corpos, o teorema da pintura. Registros ou livros de artista? Os dois, talvez. Também as coleções encadernadas de Os Caprichos, de 1799, com águas-fortes e águas-tintas satíricas do pintor aragonês Francisco de Goya são exemplo de uma mudança de enfrentamento dos artistas rumo ao trabalho com o livro e sua circulação: uns 300 exemplares foram retirados
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5 Em 1957, após ganhar o Nobel de Literatura.
das chapas de cobre e colocados à venda numa casa de licores em Madri por dois dias apenas e recolhidos, por temor de denúncias à Inquisição, quando tinha vendido 27 cópias. Amigos foram presenteados com alguns mais e muitos foram ofertados para a Real Calcografia da Espanha em troca de uma pensão para seu filho. O artista que se tornou em vida a síntese 6 “No fundo, não há senão Matisse.” Essa frase de Picasso demonstra a reverência plástica do artista à grandeza de um seu contemporâneo – mais do que isso: um amigo inseparável.
de todo um século, Pablo Picasso,6 compôs, junto a pares amigos seus, diversos livros entre-
7 É publicada em 1931, 100 anos após a primeira edição, Chef-dœuvre inconnu, de Balzac, uma edição de luxo, com 13 águas-fortes e 67 gravuras sobre madeira de Picasso. E, em 1947, uma água-forte para a nova edição de Cinco Sonetos, de Petrarca (1304-1374). No ano seguinte, 41 obras gráficas para uma edição manuscrita espanhola de Vinte Poemas, do poeta Luis de Góngora y Argote (1561-1627).
e para algumas obras clássicas reeditadas7 em sua época. As gravuras de Picasso acompa-
8 A primeira intervenção plástica – cinco gravuras para o prefácio - de Picasso em um livro editado foi em 1916, para o escritor Hugo Ball, fundador junto de Hans Arp e Tristan Tzara do movimento dada, no cabaré Voltaire.
tecendo literatura com obras gráficas: lavrou o metal e a pedra antes de imprimir centenas de águas–fortes, águas-tintas e litografias diretamente para as obras escritas em seu tempo nham poemas de livros8 de Max Jacob, Apollinaire, André Breton, Paul Eluard, Paul Valéry, Tristan Tzara, Pablo Neruda, Antonin Artaud e Jean Cocteau. O meio estético que Alselm Kiefer escolheu para falar de livros é a instalação de uma biblioteca inundada de placas de ferro que viraram noite seguida de noite recebendo todo o fardo histórico – a memória universal pós-guerra – da ação do tempo. A ferrugem, um ferro sobre um campo à tarde, bate o sol e a pintura havia agora se tornado um objeto tal qual qualquer coisa tridimensional sem destroçar o aspecto plástico dos livros amontoados nas estantes em solene melancolia. (A alegoria – o corpo é texto | o livro é carne – resume toda a estética do filme de Peter Greenaway, The Pillow Book, além de encapsular outros temas: reprodução, transmissão
9 Uma jovem de Kyoto dos anos 70/80, que vai para Hong Kong e lá se torna modelo, mas sem abandonar a paixão pela escrita em seu corpo, despertada por seu pai (um escritor) que pinta um poema em seu rosto, a cada ano, no dia de seu aniversário e pela tia que lê para ela um clássico da literatura japonesa – O Livro de Cabeceira, o diário de uma cortesã: Sey Shonagon. Um livro feito há mil anos, o livro que enumera as coisas esplêndidas da vida.
e redenção. Nagiko9 descobre que o editor exumou o corpo do seu amante, profanou seus despojos, reduziu-o à pura superfície, sem o forro das carnes, fez, da pele escrita, o seu livro. Um livro pode nascer dentro de outro livro? Qual a força de um editor? A quem pertence o mercado de livros? E aquele que lê também escreve? O último, o Livro dos Mortos, é a senha para que a amada tenha de volta o objeto-poema, um delicado relicário; guarde-o sob um bonsai florido e comece a escrever, agora sim, o seu Livro de Cabeceira. A seção das coisas esplêndidas da vida: os azuis-escuros, todos os papéis azuis, uma chuva morna, andando bem devagar de quimono, águas tranquilas e águas agitadas, escrivaninha...) Boîte Vert, Marcel Duchamp, 1934
10 Entre 1913 e 1950, o casal Ansberg colecionou os trabalhos de artistas como Marcel Duchamp, Charles Sheeler, Walter Pach e outros.
Nos começos de fevereiro de 1934, Duchamp escreve uma carta aos Ansberg10 evocando
11 As diferenças entre reprodução e obra de arte original são temas que iriam logo se tornar de primordial interesse para Duchamp. Nos cinco anos seguintes, ele iria sistematicamente começar a reproduzir suas obras as mais importantes. Ele visava no início apresentá-las na forma de um álbum, mas o projeto iria tomar proporções mais ambiciosas e adotar o nome de Boîte em valise, verdadeiro museu portátil.
Eu venho a colocar no ponto a edição de notas, documentos, referindo
seu projeto de publicar uma edição em fac-símile11 de suas notas para o Grande Vidro.
ao meu vidro La Mariée mise à nu par sés celibataires, même – Eu gostaria de reunir todas as minhas notas escritas em 1912, 13, 14 e 15 sobre esse tema e fazê-las reproduzidas em fac-símile (pela fototipia que dá imediatamente a impressão do original sobretudo pelas notas manuscritas). Eu gostaria também de reproduzir os principais quadros e desenhos que serviram à composição da Mariée...
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Vocês gostariam então de ter a extrema presteza de fazer uma boa foto da Broyeuse de chocolat (1914; aquele que tem fios presos) e me enviála imediatamente; eu gostaria de ter 2 provas, uma mais escurecida e uma mais clara para escolher (dimensão das fotos 9 a 10 polegadas x 10 a 11 polegadas aproximadamente; provas sobre papel brilhante). Penso em lançar a edição em 500 exemplares ordinários (100 francos o exemplar). Minha intenção é de reunir todas essas fotos e papéis cortados na sua forma original numa caixa em papelão (aproximadamente 14 polegadas x 10 polegadas) com o título sobre a caixa. Teria um pouco mais de 135 notas e uma dezena de fotos. Como a edição em fototipia custa muito caro, pensei em pedir a dez amigos verdadeiros se eles consentiriam em pagar $50 por uma edição de luxo dessa edição. Naturalmente, essa tiragem de luxo seria tão bonita quanto possível como espero de uma foto colorida, papel especial, caixa luxuosa etc. e seria limitada a 20 exemplares (dos quais 10 fora de comércio). De modo que eu começo por você, meu querido Walter, e lhe peço se você gostaria de me ajudar com esses $50 para realizar essa edição. Se você me responder sim tão logo seja possível, eu poderia começar. A foto da Broyeuse não é tão importante quanto o seu “sim”; e o dinheiro, ele também, pode esperar até a publicação em julho próximo. Aqui está o meu “hobby” por enquanto.12 Feita de papelão, a Caixa foi recoberta de veludo verde, o que valeu ao objeto finalizado ser chamado de Boîte vert. O título é traçado sobre a capa, com estêncil, numa bolha branca: LA MARIÉE MISE À NU PAR SES CÉLIBATAIRES, MÊME. Para cada uma, Duchamp reproduziu 93 notas manuscritas e desenhos e, para cada cópia das de luxo, um desenho e uma nota original. Uma a uma, as notas escolhidas para a Caixa foram fotografadas em separado e reproduzidas em fototipia, vinda da impressão que produzia um fac-símile fiel ao original, mas que custava bastante caro. Ele acompanha cada etapa da impressão, prepara modelos que reproduzem os contornos de cada nota irregularmente uniformizada, segundo a forma original. Inútil dizer que foi um trabalho longo. Em vista de facilitar o processo de colocar cores, Duchamp preparou estampilhas e coloriu cada prova à mão: Eu então fiz litogravar todos esses pensamentos com a mesma tinta que os originais. Para encontrar papéis de qualidade absolutamente idêntica, eu tive que vasculhar os recantos de Paris, os mais improváveis. Além disso, foi preciso em seguida aparar 300 exemplares de cada lito, com a ajuda dos moldes de zinco que eu esculpi sobre a delineação dos papéis originais. Era um trabalho importante e eu tive que contratar a minha guarda.
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12 Tradução de Ana Luiza Cruz Vizaco. Carta de Duchamp a Lou(ise) e Walter, datada de 20 de fevereiro de 1934, Paris, 11, Rua Larrey (arquivos Arensberg, PMA). In Naumann, 1999, p.111.
Marcel Duchamp. Boîte Vert, setembro de 1934. Esta imagem é da edição de luxo dedicada a Maria Martins incluindo um exemplar de The Blind Man e um desenho preparatório para o Grand Verre. San Francisco, Museum of Modern Art. Fonte: fotografia de Fhyllis C. Wattes.
Antes de concluir a obra, Duchamp publica um formulário de subscrição descrevendo o trabalho e indicando que havia duas edições, uma de 300 cópias autografadas e enume13 Logo após sua publicação, Duchamp enviou uma das primeiras cópias de luxo à Katherine Dreier, que possuía o Grand Verre. Ao que ela correspondeu: “Meu querido, sua surpreendente caixa chegou!!!!! É uma das mais perfeitas expressões do dadaísmo que eu jamais encontrei. Eu estou terrivelmente me entretendo comigo mesma – o quanto eu fiquei atormentada ao ver esses pedaços de papel rasgados – e naturalmente o vidro ESTAVA estilhaçado! Pareceu-me no início que eu não poderia suportar todos esses pedaços de papel rasgados – depois eu me dei conta do fato de quanto o dada tem razão em nos impelir a nos afastar da rotina e enfrentar a situação – o que é mais importante –, a questão da forma. Com o tempo, eu tenho certeza que eu terei prazer como eu fiz com os Miró, já que me lembro o quanto eles me inquietaram no início”.
radas para o grande público, a outra com 20 cópias de luxo.13 O formulário de subscrição continha também um fac-símile de sua nota sobre a Broyeuse de chocolat; uma prova destinada a demonstrar as capacidades do procedimento de impressão por fototipia, com uma reprodução fiel da escritura manuscrita em preto sobre papel milímetro (o mesmo que fora usado na nota original), sublinhado a lápis azul e marcas em vermelho. Para finalizar, o formulário indica que os pedidos deveriam ser endereçados a Rrose Sélavy, 18, rue de la Paix (o endereço do banco de Duchamp). Outra deliciosa anedota de artista. Assim que as caixas estavam prontas para os dois tipos de edição, Duchamp deposita as notas em fototipia em cada caixa sem observar uma ordem: se quiséssemos ler as notas e amarrá-las de novo no Grand Verre, toda tentativa de organização era empenho e responsabilidade pessoal de quem está atrás de pistas. Duchamp obteve assim o resultado que procurava: as notas são claramente compreendidas como parte integrante do Grand Verre, um tipo de guia posto à disposição para evoluir através do labirinto de sua narração, no entanto, a ausência voluntária de organização do artista nos impede de ‘ler’ – e se – o assunto de maneira lógica do início ao fim. Nós somos dessa forma contrariados em nossos esforços em medir a obra e extrair-lhe sentido como um todo coerente. Palavreados. Cada caixa foi assinada pelo artista no interior das costas da caixa, mas com o tempo
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a maior parte dessas assinaturas foi absorvida pela camurça verde que cobria a caixa e desapareceu, fenômeno tão apropriado – embora involuntário(?) – para um artista cuja obra parecia cada vez mais efêmera. Assim, ele havia de renovar a arte ao mesmo que tempo que lhe conservava a gênese – e não apenas à maneira do museu – e a vida da história da arte. E o que nos dará essa mistura a compensar em sua leitura atenta e na (im)possível decifração? Resposta de Duchamp, na mesma carta: “Literalmente falando, a busca do conceito ao produto final, com relação ao tema desse retardo em vidro”. Mas mais do que isso, o volume sugere a existência de um conjunto mecânico e físico de símbolos para que o artista moderno trabalhe sobre essas bases; do mesmo modo como o artista gótico tinha um repertório religioso a partir do qual realizar janelas e afrescos. Un Voyage en Mer du Nord, Marcel Broodthaers, 1973 Habitar, ter por hábito demorar nas coisas, refazer o que foi desfeito, percorrer terras dentro de meu quarto, isso tudo me agrada. Permaneci horas a fio olhando o pequenino livro de Broodthaers que caiu em minhas mãos por obra do divino, o acaso de namoro firme com a intenção. Assentei-me naquelas poucas páginas pensando estar numa daquelas pequenas salas de cinema e um fio de luz empoeirada que vem do fundo atravessa o escasso ar e, em intermináveis segundos, ilumina o écran quadro a quadro com a mesma imagem viva apresentada sob o manto da coisa imaginária, da ficção. A ficção não é mentira, é dúvida que, por sinal, tem uma beleza própria. Atravessar a arrebentação, foi o que pensei essa manhã. Andar em viagem pelo Mar do Norte, um mar do Oceano Atlântico situado entre as costas da Noruega e da Dinamarca, pode parecer uma aventura e tanto se o que se tem como embarcação é uma pintura e uma fotografia. Em 1973-74, Marcel Broodthaers concebeu um vídeo14 – que é um livro também – com o mesmo título e as mesmas imagens estáticas (cada uma durando aproximadamente 10’) que se desenrolam lentamente num fluxo de coração|parando cuja narrativa acontece na imagem incompleta ou na falta absoluta da palavra desencadeando, assim, a teoria da imagem que se aporta em sua convicção de que a incompletude é o status da imagem do campo da arte. E de como a ficção tornou-se um meio (não mais específico como na pintura moderna), mas um atalho para a experiência estética que está (também) na saturação do espaço através da imagem. Moldando sua viagem cinemática na forma de um livro, Broodthaers alterna intertítulos, começando com Página 1 indo até a Página 15, abre a tela com a fotografia de um iate distante, solitário, visto quatro vezes como uma passagem lenta da página 1 para a página 4, e, ao virar a página seguinte, surge uma pintura do século dezenove de um pesqueiro a vela, o qual após páginas sucessivas é mostrado em detalhes variados. A primeira delas, executando o salto radical da cena puramente marinha, com as suas escunas e grandes barcos, para um gigante close do entrelace da tela; rende-se à próxima página para uma visão tão próxima do duplo vagalhão da vela principal de tal forma que se leva a ter uma imagem de uma pintura
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14 http://www.youtube.com/watch?v=--uI9ccaLvA
abstrata. Apenas virando, depois do anúncio da próxima página, a 6, para dar passagem a uma outra imagem tecida em intenso monocromo azul. Essa idéia de progresso poderia sugerir que a narrativa convocada pelo livro é uma evolução arte-histórica encaixando em páginas sucessivas a história de uma troca do modernismo do espaço profundo necessário à narrativa visual por uma superfície cada vez mais achatada que agora refere apenas seus próprios parâmetros: a realidade do mundo substituído pela realidade dos dados pictóricos. Mas, já na próxima folha, o pormenor monocromático de novo se retira para um plano aberto da escuna, e assim, em movimentos sucessivos descontínuos, Broodthaers deturpa o relato de uma progressão modernista na arte, nem tudo segue para o porto. Podem-se pular páginas de um livro ou ler de trás para frente, a ordem está desfeita. Na edição em papel, a composição de Un Voyage em Mer du Nord se faz presente tal como na montagem em vídeo; as séries das imagens são janelas de um grande portal aberto à aventura, o ilimitado artifício de contar em idéias o que é andar no mar estando parado – em tempo e espaço – aproximar-se de um cais que não se vê. Há bastante água para empurrar. As páginas ainda estão cerradas nas bordas, assim como vinham os livros antigamente, mas Broodthaers quer que renunciemos a usar aquele punhal de escritório e, nesse gesto, desarmar a razão que o levou a publicar a obra. Ventos redondos. A obra de Marcel Broodthaers tece-se entrelaçando a grande carga de questões vindas das inúmeras teorias e convicções do seu tempo – Zeitgeist – com sua experiência única de poeta, para quem a vida e a arte não formam qualquer continuum pela mera razão de que são apenas e simplesmente a mesma coisa. No final dos anos 60 (1968) abriu em seu apartamento de Bruxelas a Secção XVII de seu Museu de Arte Moderna, Departamento das Águias, instalação e momento decisivo da reflexão em torno da ideia de museu e do questionamento do sentido e das formas de legitimação dos objetos artísticos, em particular de sua apresentação. Deita abaixo assim o museu como instituto ao apresentá-lo como vitrina de imagens do objeto real, da obra de arte, das palavras. Balada, Nuno Ramos, 1995 26 de novembro de 2008, na hora do sol a pino. No acervo do Centro Cultural do Banco do Brasil do Rio de Janeiro há um exemplar de 15 Livro editado em 1995 pela Editora 34, com 926 páginas. Tiragem limitada, numerada e assinada pelo artista.
Balada,15 na sala das obras raras. A moça que nos acompanha calça as luvas brancas, estende um papel sobre a mesa e coloca o livro ao alcance dos olhos. Não posso tocar. Está aberto ao meio, todo branco nada escrito, escrito a bala. Dá um frio ver o projétil alojado bem no centro das páginas estilhaçadas pelo percurso do tiro à queima-roupa. É um livro pesado, pois além das quase mil páginas, contém chumbo em suas entranhas rasgadas pela trajetória certeira do punho do artista e também a densidade de um poema conceitual aberto. Podemos folhear o livro? Ela, sim. Por favor, as primeiras páginas. Obrigada.
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Ao ser aberto, enche-se de vento o fole que se forma com as folhas meio presas querendo tombar para a direita e não podendo, a folhagem refém de um acaso pensado que registra aquilo que corroeu a pouco e pouco as camadas de pele, aos bocados foi-se vestindo de desenhos, de cicatrizes abertas pela algazarra da arma de fogo. A bibliotecária mostra a folha de guarda em branco como todo livro em branco e na próxima um quadrado com doze números, um enigma? Não se sabe. Mais algumas folhas e o local exato, na página 7, da perfuração a bala, uma circunferência perfeita reconstitui ao pé da letra o calibre e o estampido seco do que aconteceu em silêncio. Circundando essa abertura, uma leve poeira de pólvora. Dali para a frente, os rasgos crescem para os lados cegamente até estancarem na página 396 ao receber a cápsula vazia, o que restou da ação plástica que gerou a obra. No caminho, alguns metais ficaram para trás e se amalgamaram ao papel como seiva que gruda nas cascas das árvores, prensaram muitas folhas que não podem mais se abrir. A fim de existir, Balada é o gesto escrito.
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Nuno Ramos. Balada, 1995. Fonte: Disponínel no blog de Fábio Morais, em http://moraisfabio.blogspot.com/2009/01/balada-nunoramos-1995.html, acesso em 7.3.2009.
Referências bibliográficas ARASSE, Daniel. Anselm Kiefer. Müchen: Schirmer/Mosel,2001. ARTAUD, Antonin. Linguagem e vida. São Paulo: Perspectiva, 2006. BARTHES, Roland. Aula. Tradução de Leyla Parrone-Moisés. São Paulo: Cultrix, 2004. BROODTHAERS, Marcel. Un voyage en Mer du Nord. 1st Belgian Edition. 1/1000. Hossman Bruxelles in association with Petersburg Press, London, novembre 1973. FERREIRA, Glória e COTRIM, Cecília. (orgs.), Escritos de artistas: anos 60/70, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 2006. GREENAWAY, Peter. The Pillow Book. Inglaterra: Cinema, 1997. HEIDEGGER, Martin. A origem da obra de arte. Lisboa: Edições 70, 2000. KRAUSS, Rosalind. A voyage on the North Sea: art in the age of the post-medium condition. New York: Thames&Hudson, 1999. NAUMANN, Francis M. Marcel Duchamp L’art a l’ere de la reproduction mecanisee. Paris: Hazan, 1999. RAMOS, Nuno. Ensaio Geral. Rio de Janeiro: Globo, 2005. SCHWARZ, Arturo. Marcel Duchamp. In: Arte Moderna e Contemporânea. São Paulo: Fundação Bienal, 1987. SANTOS, Roberto Corrêa dos. Obra. Rio de Janeiro: Elo, 2006.
Lucenne Cruz (Rio de Janeiro, Brasil) é graduada em artes (2005), com habilitação em história da arte, pelo Instituto de Artes da UERJ, e mestre (2009) em artes, pelo mesmo Instituto, com a dissertação transversais contemporâneas em livros de artista. Sua pesquisa em arte está voltada para a escrita e para sua transposição em outros suportes plásticos – a palavra dentro do espaço aberto a inscrições, a extravios da própria escrita, a sua natureza. / lucennemaria@gmail.com
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Baianas e drags: tramas visuais em Carmen Miranda Gustavo Borges Corrêa
Parte do quarto capítulo da dissertação “Carmens e drags: reflexões sobre os travestimentos transgenéricos no carnaval carioca”, apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Artes da UERJ em março de 2009, trata da importância da atriz e cantora luso-brasileira Carmen Miranda para as discussões sobre identidade nacional e cultura popular e analisa a relação entre a Brazilian Bombsheel e as drag queens, personagens da cultura popular urbana internacional que há décadas cultuam a artista. Carmen Miranda, cultura popular, drag queens. No decorrer das últimas décadas, Carmen Miranda tornou-se um dos Uma “Carmen Drag” na Banda de Ipanema, em 2007. (Acervo do autor)
ícones mais copiados pelas drag queens. Com todo o seu exagero visual, alcançado pelo uso de altíssimas sandálias de plataformas, vistosos turbantes repletos de frutas, saias muito rodadas, maquiagem carregada e gesticulação que misturava sensualidade e graça, não é difícil entender por que a artista se tornou referência essencial para o “colorido” mundo das drags. A estrela lançou as bases visuais do “fenômeno drag” que nos anos 90, mais de três décadas após sua morte, contribuiria para manter vivo seu mito. Antes mesmo de a expressão drag queen ser popularizada, a imagem de Carmen já estava fortemente associada às festividades das comunidades gay, tanto no Brasil quanto em outros países – em especial nos Estados Unidos, país que, através de sua indústria
1 Saia, Luiz Henrique. Carmen Miranda. São Paulo: Brasiliense, 1984, p. 91.
cinematográfica, possibilitou à artista tornar-se ídolo mundial. Saia1 conta um caso engraçado: Em 1972, em Nova Iorque, é relançado num cinema da moda The Gan’g
2 Filme que no Brasil recebeu o título de Entre a loura e a morena.
All Here,2 ficando um ano em cartaz e provocando histórias pitorescas em algumas sessões, por exemplo, quando Alice Faye era vaiada toda vez que aparecia na tela e La Miranda era delirantemente aplaudida. Há boatos de que vários homossexuais afetados desmaiavam durante a maravilhosamente kitsh sequência em que Carmen canta “The lady with the tutti-frutti hat”. É então que o público jovem norte-americano toma contato com a Pequena Notável, e na onda louca de nostalgia (...), seus turbantes fazem sucesso, seus balangandãs causam desvarios e suas sandálias!!! Estas tornaram-se fetiches para homens e mulheres, sobretudo no universo gay.
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Os anos 70 foram decisivos para que a ligação entre os homossexuais e Carmen Miranda, nos Estados Unidos e na Europa, fosse consolidada. Saia3 cita uma fala do empresário
3 Saia. Op. cit., p. 82.
Guilherme Araújo, idealizador de um dos bailes de carnaval mais conhecidos no Rio de Janeiro, o Grande Gala Gay, que em 1970 assistiu a uma reapresentação de Copacabana, filme de 1947, em Londres: “fomos assistir Copacabana e a platéia em sua maioria era constituída de tias,4 que serviam drinks e canapés durante a projeção”. Outro exemplo da forte relação entre o público homossexual e a Brazilian Bombshell5 é o surgimento, em 1985, do bloco carnavalesco carioca chamado Banda da Carmen Miranda. Embora a agremiação tenha nascido antes de a expressão drag queen chegar ao Brasil (e, provavelmente, antes até de ela ter sido popularizada em seu país de origem, os Estados Unidos), foi na década de 1990 que ela ganhou fama no Rio de Janeiro, ficando conhecida como um “bloco de drags”.6 A revista Manchete7 registra em 1996: A banda Carmen Miranda mostrou este ano por que a Pequena Notável é a eterna fonte de inspiração das drags. Surpreendentes, criativas, poderosas, vitaminadas e sempre divertidas, as carmens tomaram as ruas de Ipanema no dia 11, com seus arranjos de cabeça trazendo muito mais que bananas.
4 Tia, décadas atrás, era conhecido sinônimo para designar um homem homossexual não muito jovem. 5 Brazilian Bombshell (Granada Brasileira) foi o apelido criado por Earl Wilson, colunista do jornal norte-americano Daily News, para Carmen Miranda. A razão para o apelido foi o estrondoso sucesso da performance da artista luso-brasileira no espetáculo Streets of Paris, apresentado durante longa temporada em Nova York em 1939 (Castro, Ruy. Carmen: uma biografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2005). 6 Green, James Naylor. Além do carnaval. A homossexualidade masculina no Brasil do século XX. São Paulo: Editora Unesp, 2000. 7 Manchete. Rio de Janeiro: Bloch Editora, ano 44, n. 2290, 24. fev. 1996, p. 30.
Neste artigo, refletimos sobre a relação entre Carmen Miranda e as drag queens; pensamos também a respeito da importância da indumentária de baiana na vida e na obra da artista, já que foi por meio desse figurino que ela se tornou ícone internacional; além disso, a personagem baiana é a mais copiada pelas drags que “incorporam” Carmen. Queremos, finalmente, prestar homenagem à estrela que, se estivesse viva, estaria comemorando 100 anos de idade neste ano de 2009 e que continua sendo referência estética essencial para suas “filhas”, as drags queens.8 Como escreve Sá,9 seu legado e influência parecem inesgotáveis, seja nas inúmeras referências em filmes, shows, musicais, livros e teses, ou nas homenagens em desfiles de moda e enredo de escola de samba, seja na situação de um dos ícones mais celebrados da cultura gay e camp. Em toda sua exuberância, Carmem sempre foi sinônimo de uma estética do excesso, em sintonia com o visual drag queen e o estilo eclético da pós-modernidade. A presença de fã-clubes no exterior, principalmente nos EUA e Inglaterra, testemunha o alcance e a presença ininterrupta de Carmen Miranda no imaginário popular internacional. Afinal, de onde vinha Carmen? Questões sobre identidade Carmen Miranda se considerava brasileira legítima ou, melhor, “carioca da gema”! Sua origem, porém, sempre foi ponto polêmico em sua biografia. Mesmo antes de sua transferência para a América do Norte, a questão da identidade nacional de Carmen já era debatida. Portuguesa, brasileira ou americana? Afinal, a qual país ela pertencia?
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8 A famosa drag queen norte-americana Ru Paul, quando esteve no Brasil, em 1996, afirmou, em tom de brincadeira – característico das drags – que era filha de Carmen Miranda (Trevisan, João Silvério. Devassos no paraíso: a homossexualidade no Brasil, da colônia à atualidade. Rio de Janeiro: Record, 2007). 9 Sá, Simone Pereira. Baiana internacional: as mediações culturais de Carmen Miranda. Rio de Janeiro: MIS Editorial, 2002, p.13.
Maria do Carmo Miranda da Cunha nasceu no dia 9 de fevereiro de 1909, em Portugal, na freguesia de Várzea da Ovelha, conselho de Marco de Canavazes, distrito do Porto. Pouco ficou em sua terra natal. Em 17 de dezembro daquele ano, com 10 meses, Maria do 10 Existem algumas versões que explicam o surgimento do apelido Carmen: teria sido concedido à Maria do Carmo adolescente, em razão de seu gosto pela ópera Carmen de Bizet. Outra versão tem também relação com a ópera: seu tio Antônio, fã da obra de Bizet, teria começado a chamá-la por Carmen ainda em sua infância, apelido que logo foi adotado por todos os que conviviam com ela. E a terceira versão alega ser Carmen diminutivo “natural” de Maria do Carmo, coisa comum na época (Barsante, Cássio Emmanuel. Carmen Miranda. Rio de Janeiro: Elfos Editora, 1994). 11 Gil-Monteiro, Martha. Carmen Miranda: a Pequena Notável. Rio de Janeiro: Record, 1989. 12 Mendonça, Ana Rita. Carmen Miranda foi a Washington. Rio de Janeiro: Record, 1999.
Carmo (que, logo após seu nascimento passou a ser chamada apenas de Carmen10) chega ao Brasil, acompanhada de sua mãe, Maria Emilia, e de sua irmã mais velha, Olinda. O pai deixara Portugal rumo ao Brasil meses antes, logo após o nascimento da filha mais nova, em busca de vida melhor para a família – destino de tantos lusitanos no início do século XX.11 Carmen era filha de um típico casal de imigrantes portugueses. Seu pai, José Maria, trabalhou durante anos como barbeiro, e sua mãe, Maria Emília, teve uma pensão no Centro do Rio. Nessa região da cidade, Carmen passou a maior parte de sua vida antes de ir para os Estados Unidos. Embora também tenha morado em Santa Teresa, Flamengo e Urca, foi na Lapa e na Candelária que Carmen cresceu e descobriu o mundo.12 Antes de se tornar a Brazilian Bombshell que os norte-americanos e europeus tanto admiravam, Carmen foi a mais bem sucedida cantora da década de 1930; firmou-se como intérprete na época em que o advento do rádio provocava uma supervalorização do artista da música popular no Brasil. Em questão de poucos anos, Carmen transformou-se em celebridade em todo o território nacional, além de fazer excursões anuais a outros países da América Latina, em especial à Argentina, onde era muito admirada. Carmen tornou-se famosa no momento em que o samba, antes visto como algo só ligado aos negros dos morros cariocas, indigno de ser apreciado pelas “pessoas de bem”, começava a ser alçado à posição de ritmo nacional por excelência. Foi durante os anos 30, quando o rádio se consolidou como o maior veículo de comunicação do Brasil, que o samba passou a ser considerado o grande representante da música nacional. Esse era o cenário perfeito para o sucesso daquela que viria ser a maior cantora do rádio brasileiro de todos os tem-
13 Sá. Op. cit.
pos e que, um pouco mais tarde, seria eleita “embaixatriz do samba”.13 Nesse momento, as questões sobre identidade nacional eram muito debatidas no Brasil. Era a época do Estado Novo, do presidente Getúlio Vargas (1937-1945), que desejava construir um país moderno, renovado, que enchesse de orgulho os brasileiros e, principalmente, mostrasse o Brasil como um lugar civilizado para os estrangeiros que aqui viessem; desse modo, era necessário construir uma nova identidade para o brasileiro, mais
14 Motta, Marly. Rio, cidade-capital. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2004.
cosmopolita e que se afastasse de nossas características rurais.14 E Carmen era “a síntese
15 Mendonça. Op. cit., p. 11.
tornado a cantora mais badalada dos anos 30, Carmen deveria simbolizar esse Brasil ur-
do Brasil urbano da década de 30”.15 Era uma tamanha responsabilidade: além de se ter bano, ser embaixatriz do samba e representante do país quando viajasse para o exterior. Mendonça afirma que toda a promoção em torno de Carmen, construída pela imprensa e pelo governo, configurava na verdade um “projeto de brasilidade”, em que o samba (gênero mais cantado por Carmen) era peça essencial. A identificação com o samba, eleito como
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a “verdadeira” expressão popular brasileira, foi legitimada pelo público, pela imprensa, pelos empresários, pelos músicos e pelo governo; todos viam em Carmen a melhor representante que poderia existir dessa cultura popular carioca nacionalizada.16
16 Sá. Op. cit.
A questão da tradição em Carmen Miranda Passamos agora a refletir sobre as questões da tradição e da identidade na construção da personagem Carmen Miranda. Acreditamos que a época na qual a artista desponta para o sucesso nacional e, posteriormente, internacional, é fértil para essas análises. Uma das críticas mais comuns a Carmen, sobretudo depois que ela se tornou estrela de filmes hollywoodianos, alegava que ela havia deturpado o samba e a baiana, ou seja, transgredira a “ordem natural” da cultura popular brasileira. Desse modo, além de ter “corrompido” a imagem da baiana tradicional, Carmen teria inventado uma música que poderia até ser nomeada samba para os norte-americanos mais desavisados, mas que não era o samba “puro” dos morros cariocas. Não se levava em conta, contudo, que toda tradição nacional é, desde seu nascimento, invenção da época em que surge.17
17 Ferreira, Felipe. O livro de ouro do Carnaval brasileiro. Rio de Janeiro: Ediouro, 2004.
Era o período do Estado Novo, quando se tornava necessário construir um ideal de “pureza e naturalidade” para a cultura nacional, ideal que deveria ser respeitado, que não poderia ser modificado, alterado ou pensado fora das rígidas normas que regiam a tal cultura “pura”. Nesse sentido, Carmen fazia tudo errado aos olhos dos defensores da tradição: ela incrementava sua baiana, cantava músicas inspiradas no samba que não eram sambas propriamente ditos e requebrava os quadris a sua maneira, de acordo com as necessidades de suas personagens. Por isso talvez ela tenha ferido tanto os sentimentos daqueles que a acusavam de deturpar a cultura brasileira – logo ela que, anos antes, fora considerada a perfeita representante do país! A baiana de Carmen Muito mais do que por suas personagens no cinema, Carmen ficou famosa pela indumentária de baiana usada em muitos de seus filmes hollywoodianos; mas não foi em Hollywood que a Brazilian Bombshell apareceu vestida de baiana pela primeira vez. Green18 ressalta
18 Green. Op. cit., p.21.
que já em 1939 – portanto, um ano antes de ir para os Estados Unidos –, Carmen estrelava o filme brasileiro Banana da terra como uma baiana que cantava e dançava tendo uma pequena cesta de frutas precariamente presa à cabeça; “seu modo de atuar era uma imitação exagerada das tradições das mulheres afro-brasileiras dos mercados da Bahia”. Vemos, então, que Carmen, da mesma maneira que suas “filhas” drag queens, possuía tendência a exagerar seus referenciais estéticos. No cinema americano, ela pode ter-se tornado ainda mais exagerada, mas essa característica já a acompanhava desde seus tempos de Brasil. Barsante afirma que Carmen Miranda não foi a primeira estrela a vestir-se de baiana.19 Segundo o autor, o casamento de Carmen e a figura da baiana veio para deixar a artista ainda mais atraente visualmente (o que muito contribuiu para seu sucesso internacional).
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19 Barsante (op. cit.) informa que em 1934, no filme Voando para o Rio, a atriz norte-americana Etta Moten apareceu vestida de baiana pela primeira vez na história do cinema.
Além disso, a baiana seria uma maneira de aproximar Carmen de certa ideia de brasilidade com a qual alguns “gringos” já estavam razoavelmente acostumados; era um modo de dar a eles o que já conheciam – só que tudo potencializado pela alegria, exuberância e talento da Brazilian Bombshell. De onde, porém, havia surgido o apreço de Carmen pela baiana? Apesar de ter-se apresentado na capital da Bahia, Salvador, em algumas poucas ocasiões, Carmen não morou nem 20 Castro. Op. cit.
passou longas temporadas por lá.20 As inspiradoras da mais famosa indumentária usada
21 Motta. Op. cit.
por Carmen Miranda foram as baianas que, desde o século XIX, circulavam pelo Centro
22 Ferreira. Op. cit., p.257.
do Rio vendendo acarajés e outros quitutes.21 Ferreira22 afirma que “a figura da baiana, atualmente uma das imagens mais difundidas do Carnaval brasileiro, já era bastante comum nas ruas do Rio de Janeiro desde finais do século XIX”. Embora as baianas de Carmen fossem muitíssimo mais elaboradas e luxuosas do que as baianas do Centro do Rio, vestidas em seus trajes “típicos”, podemos ver características da indumentária dessas mulheres nos figurinos da estrela, como as saias rodadas e os turbantes. Carmen deve ter-se inspirado nas roupas que, desde os primórdios, as negras e mulatas da Bahia usavam para acompanhar procissões ou vender comida nas ruas. Muitas dessas mulheres tinham migrado para o Rio de Janeiro no começo do século XIX. Na viagem, a roupa se simplificara: conservaram-se os turbantes, as batas, as saias e as anáguas, mas os ornamentos, originalmente de ouro e prata, perderam em luxo e variedade. Com a vinda da corte portuguesa, em 1808, a chegada da Missão Francesa, em 1816, e a invasão da cidade pelas costureiras francesas, as baianas do Rio incrementaram suas roupas com
23 Castro. Op. cit.
rendas e babados, mas ainda longe do esplendor original.23 No entanto, Carmen, que deve ter visto essas imagens durante toda sua juventude passada no Centro do Rio, nelas se inspirou e as recriou de acordo com sua necessidade. Como
24 Fiske, John. Popular discrimination. In: Guins, Rainford; Cruz, Omayra Zaeagoza (orgs.). Popular culture (a reader). London: Sage, 2005; p.215-222. 25 Barsante (op. cit. p.5) conta, sem precisar datas, que “houve um tempo em que as fantasias de marinheiros e baianas eram proibidas nos bailes de carnaval do Teatro Municipal do Rio, por serem consideradas excessivamente vulgares”. 26 Storey, John. Cultural Studies and the study of popular culture. Athens, Georgia: The University of Georgia Press, 2003.
boa consumidora popular,24 Carmen não se sentiu obrigada a ser visualmente fiel a essas “baianas-cariocas” e pôde elaborar sua mais famosa personagem, a “Carmen Baiana”, pegando as referências visuais que mais lhe interessavam, excluindo outras, exagerando e colorindo algumas para, assim, dar à luz sua personagem glamorizada.25 As baianas que a estrela tanto viu na capital federal foram um produto primeiramente consumido por ela e depois por todas as drags que a representaram (e ainda representam) e, por sua vez, também transformaram a imagem da artista de acordo com as suas necessidades de fazedoras cotidianas da cultura popular.26 E a sofisticação que ela conferiu a suas baianas provavelmente foi também uma forma de diferenciá-las das que todas as outras mulheres vestiram; quem mais, além de Carmen, seria dona de trajes tão especiais? A baiana criada por Carmen seria, então, uma forma de aproximá-la de seus espectadores, seduzindo-os com essa personagem, embora provavelmente todos os cariocas que frequentavam a região central da cidade naquela década de 1930 já estivessem de certa forma habituados a
27 Gil-Monteiro. Op. cit., p.64.
ver as baianas – mas não a baiana de Carmen! Gil-Monteiro27 refere essa apropriação visual:
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Carmen não copiou as roupas usadas pelas baianas. Selecionou alguns elementos e acrescentou toques pessoais, fios de contas no pescoço, o estômago nu, o uso de cores vistosas e um turbante resplandecente com duas cestinhas cheias de frutas – que ela vira na Casa Turuna28 uma tarde quando passeava pela Avenida Passos e cismara de comprálas para seu turbante. Além do mais, estava acrescentando o insinuante enfeite por uma questão de necessidade. O imenso turbante podia acrescentar-lhe mais altura. O corte na comprida saia em leque e a blusa davam-lhe liberdade de movimento – algo muito importante, já que a sua nova maneira de cantar requeria liberdade para o leve e brincalhão movimento de cintura, braços e pernas. Além de toda a influência exercida pelas vendedoras de acarajés e cocadas do Rio, é relevante lembrar também que Carmen, antes de partir para os Estados Unidos, aproximou-se de dois dos compositores que mais tinham a Bahia em seus pensamentos: Ary Barroso e Dorival Caymmi. Ary Barroso, mineiro de nascimento que viveu no Rio de Janeiro a maior parte de sua vida, passou alguns meses em Salvador, durante 1929, trabalhando como pianista da orquestra de Napoleão Tavares. Estando na capital da Bahia, provavelmente entrou em contato com a cena musical local e, desde sua volta ao Rio, em 1930, produziu várias músicas de temática baiana, sempre idealizando a gente, os costumes e as paisagens do lugar.29 Carmen gravou pelo menos algumas canções de Ary Barroso enaltecendo as qualidades baianas, e duas se destacam: “No tabuleiro da baiana” – No tabuleiro da baiana tem / vatapá, oi, caruru, mungunzá, oi / tem umbu pra ioiô / se eu pedir você me dá / lhe dou / o seu coração, o seu amor de Iaiá e “Quando eu penso na Bahia”, que falava da Bahia de forma bem mais sofrida por causa da pretensa saudade que o compositor de lá sentia: Quando eu penso na Bahia / nem sei que dor me dá / oi, me dá, me, me dá, ioiô / se eu pudesse, qualquer dia / eu ia de novo pra lá / eu vou, eu vou, se vou, ioiô / eu deixei lá na Bahia um amor tão bom, tão bom, ioiô. Não só Ary Barroso, entretanto, ofereceu a Carmen músicas de inspiração baiana. Em 1938, Dorival Caymmi compôs uma das mais famosas músicas já gravadas por Carmen, “O que é que a baiana tem”, que se encaixou perfeitamente na voz e nos trejeitos da cantora (tanto que até hoje é uma das mais lembradas de seu repertório), além de ter sido muito oportuna para a consolidação de sua personagem baiana: O que é que a baiana tem?/ Tem torso de seda tem / Tem brincos de ouro tem / Corrente de ouro tem / Tem pano da costa tem / Tem bata rendada tem / Pulseira de ouro tem / Tem saia engomada tem / Sandália enfeitada tem / Tem graça como ninguém / Como ela requebra bem / O que é que a baiana tem?/ Só vai ao Bonfim quem tem / Um rosário
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Carmen Miranda, com a sua linda baiana cor de prata, no filme Uma noite no Rio. (Barsante, Cássio Emmaniel. Carmen Miranda. Rio de Janeiro: Elfos Editora, 1995, p.15.) 28 A Casa Turuna, localizada na Avenida Passos, ainda é uma das lojas de comércio popular mais procuradas pelos foliões que desejam fantasiar-se no carnaval. É também muito frequentada por drag queens e travestis, por causa da grande variedade de tecidos e dos acessórios chamativos que oferece. 29 Castro. Op. cit.
de ouro / Uma bolota assim / Quem não tem balangandãs / Não vai ao Bonfim / Ai não vai ao Bonfim 30 Ferreira. Op. cit., p.259.
Ferreira30 menciona a importância de Caymmi na formação da imagem da baiana tanto para Carmen Miranda quanto para o Carnaval: o músico foi o grande responsável pela difusão do traje, ao compor o sucesso musical “O que é que a baiana tem”. Com sua inclusão no filme musical Banana da terra, lançado em 1939 – no qual Carmen Miranda usaria, pela primeira vez, o traje de baiana estilizada que seria sua marca –, o personagem da baiana “carioca” alcançaria repercussão internacional. Uma verdadeira mania de fantasias de baianinhas, das mais diversas cores e feitios, tomaria conta do carnaval brasileiro a partir de então. Item obrigatório no desfile das escolas de samba atual, a fantasia de baiana contemporânea ainda procura manter, de um modo ou de outro, os elementos “tradicionais” estabelecidos na música de Caymmi. Ou seja, o torço, os brincos, os colares, o pano da costa, a sandália e os balangandãs, elementos que determinam uma “verdadeira” fantasia de baiana. A maneira como a canção entrou em Banana da terra é bem curiosa. A princípio, nessa cena do filme Carmen cantaria a música “Na baixa do sapateiro”, de Ary Barroso, em cenário que reproduzia uma rua de Salvador. Porém, de última hora, o compositor resolveu cobrar de Wallace Downey, diretor do filme, cinco contos de réis por cada composição sua a ser usada na história. O norte-americano se recusou a pagar tal quantia, e, então, foi preciso procurar às pressas uma música que cobrisse a ausência deixada por Barroso. Assim, o novato Dorival Caymmi teve a oportunidade de lançar sua música na voz de Carmen Miranda. E nada melhor do que lançar “O que é que a baiana tem” num cenário
31 Barsante. Op. cit.
baiano.31 Parece, então, que a entrada da personagem baiana na vida de Carmen Miranda deveu-se também ao acaso, embora logo se tenha tornado sinônimo da estrela. De acordo com Gil-
32 Gil-Monteiro. Op. cit., p.65.
Monteiro,32 “o que ela queria era ser como a baiana imortalizada na canção de Dorival, a mulher que se cobre de balangandãs e tem graça como ninguém”. Dorival Caymmi foi, de fato, a pessoa mais importante na “incorporação” que Carmen fez
33 Mendonça. Op. cit., p.18.
da imagem da baiana. Mendonça33 conta que, na preparação do figurino a ser usado em Banana da terra, o compositor baiano teve papel fundamental, ajudando a estrela até a escolher os materiais que iriam ser usados nas roupas: Como se cuidasse de preparar Carmen Miranda, Dorival Caymmi acompanhou-a até a costureira, mulher do compositor Vicente Paiva. Caym-
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mi lembra do tecido argentino escolhido por Carmen, com listras vermelhas, verdes e amarelas. Depois, foi com ela escolher os balangandãs na Avenida Passos. E no dia da filmagem sugeriu meneios a Carmen. Fazia-se o mais lindo camafeu tropical. Tinha torso de seda a baiana primeira. Pano da costa, bata rendada e saia engomada também. Brinco, pulseira, rosário de ouro. Tinha sandália enfeitada. E frutas, que a própria Carmen juntou ao torso da cabeça, evocando as ambulantes baianas, numa escolha que se revelou premonitória. Aqui, é interessante fazer algumas considerações sobre a tal baianidade de Dorival Caymmi. O jovem compositor ajuda Carmen Miranda a construir sua mais célebre personagem; desse modo, passa a ser considerado o “inventor” da baiana. A atriz e cantora, por sua vez, apresenta o até então desconhecido compositor à cultura musical carioca, tornandoo famoso pela gravação de “O que é que a baiana tem”. Há, assim, uma troca de favores: Caymmi auxilia Carmen na construção desta sua nova “identidade baiana”, e ela o introduz na cultura radiofônica da capital do país; se antes Caymmi era um compositor “regional”, no Rio ele se “universaliza”.34 Ocorre, então, uma construção elaborada tanto
34 Sá. Op. cit.
pelo baiano quanto pela carioca, em que a baianidade não é dado natural, mas algo inventado pelo compositor. Se Caymmi criou uma Bahia mítica com base no Rio de Janeiro (onde fixou residência definitiva), fruto da saudade de sua terra natal, tanto Carmen Miranda quanto o Rio de Janeiro souberam acolher essa ideia, essa “baianidade forjada”. Na então capital do país, a Bahia pôde ser recriada, tornar-se nacional e, posteriormente, com a ida de Carmen para os Estados Unidos, internacionalizada. De todo modo, essa “tradição baiana” foi construída no Rio de Janeiro. A produção dessa “autenticidade baiana” aconteceu mediante intenso processo de negociação e reprocessamento de referências ocorrido no Rio da virada do século XIX para o XX. Segundo Sá,35 não há uma tradição afro-baiana pura, resistente e autêntica à qual Carmen Miranda se opõe, mas sim um processo extremamente plástico, relacional, em que referências culturais de grupos diversos encontramse, transformam-se, misturam-se. E a partir do qual os signos de baianidade reprocessados pela matriz carioca passam a ocupar um lugar privilegiado no imaginário cultural da cidade – as baianas do Carnaval, “tia” Ciata, a Praça Onze, a festa da Penha, os fundadores das escolas de samba tradicionais; e é com eles que a futura Baiana Internacional vai dialogar. As primeiras baianas Depois da libertação dos escravos, em 1888, o Rio de Janeiro passa a receber constante fluxo migratório de ex-escravos vindos da Bahia que chegavam à capital do país em busca
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35 Id., ibid., p.102.
de vida melhor para si próprios e para seus descendentes. Desse modo, cria-se no Rio uma cultura urbana híbrida, que mistura elementos europeus (principalmente com a chegada da família real em 1808) e africanos. O Centro da cidade é um palco privilegiado para essas interações, pois é lá que os ex-escravos vão morar quando chegam no Rio, primeiramente no bairro da Saúde e, após ser expulsos pelas reformas modernizadoras do prefeito Pereira Passos, em outros pontos do Centro, como na região da Cidade Nova, no Campo de Santana e na Praça Onze. 36 Moura, Roberto. Tia Ciata e a pequena África no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, Departamento Geral de Documentação e Informação Cultural, Divisão de Editoração, 1995.
Moura36 destaca o caráter vivo dessas interações culturais que aconteciam na cidade. Segundo o autor, nunca houve em algum momento da história cultural carioca “evolução” de uma cultura a princípio fiel a tradições ancestrais e que depois tivesse sido apropriada pelas elites ou pela cultura de massa. Esse processo não é “evolutivo”, mas sim dinâmico e relacional. A vida cultural carioca, especialmente a partir da segunda metade do século XIX, se constituiu de uma mistura de influências heterogêneas que vinham de todos os lugares. E, entre todas essas influências e personagens, estavam as baianas que, mais tarde, inspiraram Carmen na criação de sua famosa indumentária. As baianas eram, nas comunidades formadas pelos ex-escravos, as responsáveis pela união das pessoas, pela organização de festas, pela manutenção dos rituais religiosos de origem africana e também
37 Id., ibid., p.102.
contribuíam para o sustento financeiro do grupo. De acordo com Moura,37 Vendendo comida em tendas ou tabuleiros, organizando ranchos, cordões e terreiros em suas próprias residências, rezando aos orixás, festejando, trabalhando e cantando, elas armavam uma rede de relações que informava, amparava, divertia e ampliava os contatos dos que chegavam ao mesmo tempo em que serviam de canal de comunicação entre negros e brancos (...) Exerciam, portanto, uma forma de liderança que tendia a criar seus próprios canais de participação sociopolítica no cotidiano – pela apropriação de territórios para outros usos que não os planejados pela cidade moderna; por outras formas de relação comunitária que não a da família burguesa nuclear –, mas sempre como mediadoras da interação entre os grupos – de brancos e negros, de baianos recém-chegados e os mais antigos, entre a velha geração de tradição afro-baiana e os mais moços, já criados em contato com as novidades da cidade do Rio de Janeiro. As baianas são personagens de extrema importância para o imaginário urbano popular carioca. Desse modo, não foi Carmen quem criou a baiana, como já afirmamos; ela estabeleceu, todavia, um canal de comunicação com essa tradição instituída no imaginário afetivo e cultural da cidade; décadas antes da invenção de Caymmi e Carmen, essas mu-
38 Sá. Op. cit.
lheres já revelavam aos cariocas “o que era que a baiana tinha”.38 Parece-nos que a baiana de Carmen Miranda já estava ligada, desse modo, a todo o con-
39 Gil-Monteiro. Op. cit.
texto simbólico da cultura afro-baiana-carioca anterior a ela. Gil-Monteiro39 acredita que
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a baiana da cantora não pode ser considerada “falsa”, pois sua elaboração estava em sintonia com esse imaginário que povoava o cenário carioca, até porque a visualidade construída por Carmen é completamente referendada pela baiana “verdadeira” – embora tenha sido exagerada e sofisticada pelas mãos da estrela. Mendonça40 também observa que a cultura popular não foi repentinamente descoberta e
40 Mendonça. Op. cit.
usada por Carmen apenas para fazer sucesso com as plateias mais refinadas; a autora prefere acreditar que Carmen, como participante dos constantes processos de negociação da cultura popular, realizou operações de tradução e também de redefinições dentro daquilo que é considerado “autêntico” e “tradicional”. Com sua incorporação da baiana, a artista, além de criar sua maior personagem, pode ter contribuído para afirmar a importância destas mulheres na cena urbana do Rio de Janeiro. Com sua “interferência” no modelo tradicional de baianas, Carmen o atualizou e, pouco tempo mais tarde, o “universalizou” – assim como fez com a baianidade do jovem Caymmi. Talvez a consequência mais importante da incorporação estética feita por Carmen tenha sido a de transformar a baiana em ícone da cultura de massa.41
41 Saia. Op. cit.
E a baiana tornou-se sinônimo de Carmen Miranda. Para sempre, ela seria associada à baiana – uma baiana estilizada, exagerada e luxuosa, mas, ainda assim, uma baiana. Embora no final da vida a estrela desse alguns sinais de que desejava livrar-se da personagem, considerando que ela lhe deu muito sucesso mas também a aprisionou, foi vestida com a sua versão estilizada da baiana do Rio, do Centro da cidade, que Carmen conquistou o mundo.42 Já nas apresentações no Cassino da Urca, onde foi assistida pelo
42 Castro. Op. cit.
seu “descobridor americano”, Lee Shubert, Carmen apareceu no palco trajada de baiana. No entanto, pelo fato de a fantasia de baiana ser considerada vulgar pelas classes mais altas da cidade, antes de se apresentar no refinado estabelecimento, Carmen sentiu necessidade de sofisticar o traje; para isso, convocou o artista plástico Gilberto Trompowski, que desenhou uma baiana branca, com uma larga barra preta, enfeitada com um desenho do Pão de Açúcar. Como complementos, muitos colares adornando seu colo e cestinhas de frutas na cabeça.43 Era a baiana luxuosa e estilizada que começava a se tornar popular.
43 Barsante. Op. cit.
Talvez Carmen tenha aberto caminho para que as baianas começassem a ser vistas com mais boa vontade e a enfrentar menos restrições sociais. Mendonça44 acredita que “se as
44 Mendonça. Op. cit., p.19
baianas não se limitaram às ruas naquele carnaval de 1939, entrando nos bailes grã-finos, é preciso levar em conta a estilização de Carmen”. Carmen Miranda e drag queens: uma relação duradoura Nesta parte do texto refletimos sobre a grande admiração que as drag queens, personagens da cultura popular urbana contemporânea, nutrem por Carmen Miranda – em especial pela “Carmen Baiana”. Acreditamos haver vários fatores que justifiquem essa relação. O camp em Carmen Miranda Carmen é considerada uma “deusa camp”. Niles45 afirma que o camp tem sido conectado,
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45 Niles, Richard. Wigs, laughter, and subversion: Charles Busch and strategies of drag performance. In Schacht, Steven; Underwood, Lisa (org.). The drag queen anthology: the absolutely fabulous but flawlessly customary world of female impersonators. New York: Harrington Park Press, 2004, p.35-53.
nos Estados Unidos e na Europa, a determinado jeito de ser homossexual, jeito esse que joga com o deboche, com o humor e com maneirismos estéticos. Em seus filmes, a estrela brasileira encarnou como ninguém esse estilo exagerado e abertamente engraçado de ser. Com seus olhos verdes revirados, seus requebros acelerados e seus figurinos atrevidamente coloridos, Carmen era a encarnação da “filosofia camp”. Segundo o crítico Stephen Holden, do New York Times, Carmen personificou o camp antes mesmo de o conceito ter 46 Green. Op. cit.
sido inventado.46 Podemos pensar no estilo camp como uma forma de pertencimento praticada pelos membros das subculturas gay. Apresentar-se para um grupo ou para uma comunidade – e também para os que não pertencem a eles – desse modo exuberante é uma maneira de se apropriar de espaços e territórios. Talvez isso também tenha acontecido com Carmen Miranda nos Estados Unidos. A exuberância, o “exotismo” e o humor non-stop podem ter sido uma estratégia para conquistar aquela terra de desconhecidos e se destacar. Desde sua chegada aos Estados Unidos, Carmen associou-se à ideia de humor, não sabemos se
47 Barsante. Op. cit.
“para ser aceita”, mas pelo menos para chamar a atenção.47 Também não podemos afirmar se tudo foi friamente calculado ou se havia uma boa dose do que poderíamos chamar de intuição: o humor usado enquanto forma de afirmação, como no caso das drags. Como se aprendem esses códigos de linguagem, essas gírias específicas que fazem com que, assim como em toda “organização profissional” (...), os homossexuais possam se entender por meias palavras e brincar por meio de alusões ou subentendidos? Como se transmitem de uma geração a outra essas formas de humor, como o camp ou o que se chamaria na França de “humor bicha”? E o que dizer dos códigos de roupas e de gestos, das maneiras de falar, da expressão corporal e de tantas outras referências “culturais” de que poderíamos dar, além da linguagem “invertida”, numerosos exemplos de ontem
48 Eribon, Didier. Reflexões sobre a questão gay. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2008, p.13-14.
ou de hoje?48 Um bom exemplo do quanto Carmen representa o estilo camp internacional aconteceu em San Francisco, Estados Unidos, no início dos anos 80. Ativistas da prevenção à Aids adotaram a imagem de Carmen Miranda – incluindo suas altíssimas plataformas e bijuterias
49 Camisinhas Miranda.
enormes – para desfilar pelas áreas gay da cidade como as Condom Mirandas,49 distribuin-
50 Green. Op. cit.
do preservativos às pessoas.50 A Banda da Carmen Miranda: o camp carnavalesco carioca O carnaval, enquanto período que possibilita aos indivíduos expressar-se de maneiras que não costumam ser permitidas no decorrer dos dias comuns, é um grande palco para as representações do estilo camp. Em que outra época do ano veríamos tantas carmens nas ruas de Ipanema, por exemplo? A atitude e a estética camp têm profunda relação com o efêmero, com aquilo que não é fixo e que pode ser facilmente alterado, sem comprome-
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timentos com o eterno. O camp existe enquanto humor, brincadeira, exagero e alteração momentânea das regras do dia a dia e, por isso, tem relação estreita com o carnaval.51
51 Idem.
A extinta Banda da Carmen Miranda pode ser tida como a síntese da performance camp brasileira durante o carnaval.52 A agremiação constituiu-se de múltiplas variações sobre a
52 Idem.
imagem de Carmen Miranda e sua célebre caracterização da baiana. A imagem de Carmen, embora muito forte, é aberta a variadas interpretações. A Manchete de 17 de fevereiro de 1996 registra a profusão de carmens que havia na Banda da Carmen Miranda naquele ano: Carmens de todas as cores, tipos e formatos invadiram, desvairadas, as ruas de Ipanema, esbanjando muita frescura. O espetáculo se repete desde 1984,53 quando nasceu a Banda Carmen Miranda, sempre com o transformista Erick Barreto como principal destaque. Este ano, para homenagear o Rio de Janeiro, vários monumentos e pontos turísticos
53 O ano que a Banda Carmen Miranda surgiu é discutível: algumas revistas dizem que seu primeiro desfile aconteceu em 1985, outras afirmam que 1984 marca a estreia do bloco.
da cidade foram incorporados às fantasias destes artistas do asfalto, que formam o grupo mais animado do carnaval brasileiro. Não faltou criatividade: do Pão de Açúcar à Linha Vermelha, passando pelo Maracanã e até pelo macaco Tião, todas essas alegorias substituíram os tradicionais abacaxis, balangandãs, bananas e outras frutas tropicais.54
54 Manchete. Rio de Janeiro: Bloch Editora, ano 44, n. 2289, 17. fev. 1996, p.23.
Alguns anos antes, a mesma Manchete publicava outra reportagem sobre a Banda, abordando brevemente a relação entre Carmen Miranda e os gays: O mito Carmen Miranda, que a cada ano mais e mais se amplia no mundo inteiro, ganha no Rio o seu caráter mais apoteótico. No carnaval carioca, a irreverência e o charme da Brazilian Bombshell têm sua mais perfeita tradução: a Banda Carmen Miranda.55 Green56 observa que “os bichas brasileiros logo captaram o componente camp na represen-
55 Manchete. Rio de Janeiro: Bloch Editora, ano 38, n. 1977, 10. mar. 1990, p.78. 56 Green. Op. cit., p.337.
tação da Pequena Notável, com seus balangandãs excessivos e sortido turbante de frutas tropicais”. Daí, a relação tão duradoura entre Carmen e os homossexuais. Se não houvesse o forte elemento de humor e de exagero na Brazilian Bombshell, provavelmente ela nunca se teria tornado esse tremendo “ícone gay-camp”. Teria sido Carmen Miranda a primeira drag queen do mundo? Termo muito usado para se referir à maneira com as drags queens se arrumam para seus espetáculos é “montação” ou “montaria”. Louro57 explica esse processo: A “montaria” consiste na minuciosa e longa tarefa de transformação de seu corpo, um processo que supõe técnicas e truques (como uma cuidadosa depilação, a dissimulação do pênis ou, ainda, por exemplo, o uso de seis pares de maias-calças para “corrigir” as pernas finas); um pro-
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57 Louro, Guacira Lopes. Um corpo estranho – ensaios sobre sexualidade e teoria queer. Belo Horizonte: Autêntica, 2004, p.84-85.
cesso que continua com uma exuberante vestimenta, muita purpurina, sapatos de altas plataformas e que se completa com pesada maquiagem (corretivo, base, batom, muito blush, cílios postiços e perucas). Ao executar, por fim, seus últimos movimentos, retocando o batom ou o delineador dos olhos, a “drag ‘baixa’”(...) É nesse momento que a drag efetivamente incorpora, que ela toma corpo, que ela se materializa e passa a existir como personagem. Excetuando-se o fato de Carmen, por motivos óbvios, não precisar “dar o truque”58 das drags, o exagero visual da “montaria” está bem próximo à exuberância estética da estrela. Em suas personagens cinematográficas, podemos ver Carmen como uma “mulher para além Carmen, na clássica cena de Entre a loura e a morena, quando canta “The lady with the tutti-frutti hat”. (Barsante, Cássio Emmaniel. Carmen Miranda. Rio de Janeiro: Elfos Editora, 1995, p.27.)
das mulheres”; uma mulher que exagera enormemente atitudes e gestos, ficando dessa
58 “Dar o truque” é expressão usada pelas drag queens para o ato de esconder o pênis, de forma que o volume genital não apareça através da roupa usada no show.
Por causa de seu exagero, Carmen pode ser considerada a precursora das referências
59 Saia. Op. cit.
homem que cria sua personagem drag não deseja assemelhar-se a uma mulher biológica;
forma, talvez, mais “fêmea” do que todas as suas companheiras de sexo biológico.59
estéticas adotadas, anos mais tarde, pelas drag queens. As drags realizam a sua “incorporação” da imagem feminina de modo exagerado, divertido e, principalmente, caricato. O esse intérprete quer antes brincar com as concepções de feminilidade tidas como natu-
60 Louro. Op. cit.
61 Hopkins, Steven J. “Let the drag race begin”: the rewards of becoming a queen. In Schacht, Steven; Underwood, Lisa (org.). The drag queen anthology: the absolutely fabulous but flawlessly customary world of female impersonators. New York: Harrington Park Press, 2004, p.135-50.
rais.60 A drag é uma personagem da fantasia, do sonho, e não da realidade. Assim como as drags, que nascem e vivem com a missão de existir só no palco,61 Carmen Miranda só poderia viver sob a luz da ribalta. Não queremos com isso dizer que a estrela não chamava atenção por seu grande talento como cantora e comediante; mas acreditamos que, sem seus turbantes, sem suas frutas, sem suas sandálias e sem sua grande boca vermelha, Carmen não se teria transformado nessa “referência drag”. O filme Uma noite no Rio, embora tenha cenas que arrancam algumas risadas dos espectadores, ganha força realmente durante as apresentações de Carmen, que canta a divertida “Chica chica boom chic” num cenário esplendoroso que copiava as formas do carioquíssimo Pão de Açúcar. Nessa sequência (que, aliás, abre o filme), Carmen aparece mais chamativa do que nunca, vestindo uma linda baiana cor de prata, gesticulando num misto de sensualidade e diversão, dividindo os vocais com Don Ameche (que interpretava dois papéis no filme: o de um rico industrial brasileiro e o de um jovem cantor norte-americano sósia do magnata). O desenrolar da história, pelo menos para os fãs de Carmen Miranda, não deve ter grande importância: o que é de fato essencial no filme é assistir à estrela desfilando seus elaborados figurinos de baiana, dançando animadamente e recheando a trama com cenas engraçadas. Carmen podia não aparecer como a estrela principal nos créditos do filme; mas, sem dúvida, era ela quem enchia de brilho a tela. A estrela brasileira jogava como ninguém com o humor e com a sensualidade; não uma sensualidade igual à das atrizes de Hollywood contemporâneas suas, sempre delicadas, doces e comportadas, nem tampouco uma erotização ostensiva. A sensualidade da Brazi-
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lian Bombshell era fruto, em primeiro lugar, de uma alegria que cativava quem assistisse a suas performances. Como no caso das drag queens, em que a sexualidade propriamente dita não é tão importante, pois, muito mais do que seduzir eroticamente, através da exposição de partes nuas do corpo ou de “caras e bocas” lascivas, o encanto vem da figura alegremente excessiva.62
62 Green. Op. cit.
Em Entre a loura e a morena, filme que parece ter sido o responsável por transformar, nos anos 70, Carmen Miranda em grande ícone gay,63 a estética do excesso se faz mais
63 Saia. Op. cit.
presente do que nunca. A cena em que a estrela canta “The lady with the tutti-frutti hat” provavelmente é a mais cultuada de toda a sua carreira. Nela, Carmen usa um traje negro que mantém as características da baiana, com longa saia que se abre em forma de leque para viabilizar a coreografia; a blusa de mangas bufantes; a barriga nua; as altas plataformas, o imenso turbante e a profusão de colares e pulseiras, cujos balangandãs são bananas e morangos. Essas frutas vão-se repetir no cenário do filme, lembrando a estética havaiana quando uma árvore, mistura de palmeira e bananeira, transforma-se em barracas de praia para as dançarinas que acompanham Carmen no número. A cena dirigida por Busby Berkeley explora todos os recursos técnicos disponíveis naquele momento para elaborar uma das coreografias mais impressionantes dos musicais da década de 1940: Nesta cena, especialmente, Berkeley explora os recursos técnicos de cortes e montagens de maneira extremamente exuberante. Cortes, zooms, travellings da câmera em sobrevoos, cenas que misturam bananas de papier-maché, as coxas das garotas seminuas que acompanham a coreografia e a própria Carmen, que surge de uma espécie de carro de boi sentada sobre pilhas da fruta, permitem aos críticos algumas associações eróticas em que Freud é convocado a explicar os motivos inconscientes do diretor e de um apoteótico final em que as bananas vão se multiplicando sobre a cabeça da protagonista até sumirem no infinito causam efeitos deslumbrantes, ofuscantes e estonteantes para os olhos de um mortal.64
64 Sá. Op. cit., p.162
Não entraremos aqui em explicações freudianas sobre os elementos fálicos da cena. O que nos interessa apontar é todo o seu excesso: as cores fortes, as frutas enormes, a alegria contagiante e a coreografia sensacional. A história do filme (uma leve comédia cheia de mocinhos e mocinhas) perde completamente a importância diante da exuberância do número comandado por Carmen. Parece que a Brazilian Bombshell tinha autonomia no enredo, que não dependia da trama para fazer parte do filme (embora sua personagem não ficasse só restrita à parte musical). Com seu figurino que parecia uma fantasia carnavalesca, seus olhos verdes vibrantes e seu gingado inconfundível, Carmen assumia sua “política do exagero”, seu gosto por tudo o que se destacasse visualmente. Comparado à Carmen, tudo se torna pequeno, discreto e lento.
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Nesse filme, fica bastante evidente a qualidade da performance da estrela. Sua atuação é bem diferente da dramaticidade normalmente exigida pelo cinema. Carmen faz parte da trama, mas ao mesmo tempo está para além dela. Foi atuando como uma performática, e não como uma atriz convencional, que Carmen conquistou Hollywood. Ela levou para os filmes uma bem-sucedida fusão de vários elementos do espetáculo (música, representação, dança, comédia, moda). Não fosse o cinema, muito provavelmente Carmen não se teria tornado esse grande ícone gay. A indústria cinematográfica norte-americana dos anos 40 e 50 era a responsável por criar ídolos. Atualmente temos também a indústria musical e a televisão dividindo a responsabilidade na formação de ícones. Seis décadas atrás, porém, a função de criar estrelas de porte internacional ficava a cargo exclusivamente de Hollywood. Atrizes de cinema eram referências de comportamento, beleza e feminilidade para os homossexuais. 65 Green. Op. cit., p.164-165
Carmen, é claro, era uma das mais admiradas. Green65 aborda esse papel social do cinema na construção das identidades gay no Brasil: As revistas sobre cinema, tais como A Cena Muda e Eu sei tudo, além das revistas semanais ilustradas, como O Cruzeiro, acompanhavam de perto a vida das estrelas de Hollywood (...). Essas publicações lançavam padrões de moda, maquiagem e estilos de cabelo (...). Os filmes e as revistas ofereciam a oportunidade [aos homossexuais] para desenvolver uma relação mais íntima com as representações de beleza, estilo e graça feminina que traziam à tona (...) Em vista da enorme popularidade dos filmes nesse período, essas representações cinematográficas constituíram poderosos pontos de referência para os homossexuais paulistas e cariocas à medida que moldavam e reforçavam padrões de feminilidade. Carmen Miranda, mais do que reforçar padrões de feminilidade tradicionais, criou outro modo de ser feminina e, consequentemente, se tornou o grande símbolo do exagero, da paródia e do camp. Desde muito antes do surgimento da Banda da Carmen Miranda, a subcultura homossexual já se apropriara da imagem da artista, que pode ser admirada por várias razões: sua beleza “exótica”, seu humor caricato, sua sensualidade incomum e talvez até por sua precoce pós-modernidade. Muitas dessas características são adotadas pelas drag queens no mundo inteiro. O sucesso de Carmen Miranda parece ter sido decorrente da sábia articulação que a estrela realizou entre duas de suas características: em primeiro lugar, o humor (como já mencio-
66 Bakhtin, Mikhail. A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. São Paulo/Brasília: Hucitec/Editora da Universidade de Brasília, 1993, p.31.
namos) e, em segundo lugar, por estranho que pareça, o uso do elemento grotesco nessa “estética das bananas”. O grotesco, observa Bakhtin,66 é uma violação brutal das formas e proporções “naturais”, que o autor qualifica como “tudo o que se aparta sensivelmente das regras estéticas correntes, tudo que contém um elemento corporal e material niti-
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damente marcado e exagerado”. Considerando o grotesco o exagero das formas corporais “naturais”, podemos pensar em Carmen como uma artista visual que brincava com essa noção: desde seus enormes turbantes repletos de frutas até seus saltos absurdamente desproporcionais em relação a sua baixa estatura (1,54m), Carmen era toda uma construção arquitetônica que fugia da tal “naturalidade” do corpo humano. Ainda de acordo com Bakhtin, o grotesco é inseparável do riso; sem o princípio cômico, o grotesco seria impossível. Essa associação entre comicidade e grotesco parece ser mais uma característica da relação entre Carmen Miranda e as drag queens. Últimas considerações Eribon67 explica que as formas de violência simbólica contra gays, fundamentadas numa
67 Eribon. Op. cit.
visão heterocêntrica da sexualidade, são mais ou menos as mesmas em todo o mundo ocidental; elas ganham contornos diferentes dependendo do país em que são exercidas, mas sua “essência” é igual. Então, por isso, homossexuais, quando leem ou veem representações de preconceito homofóbico em qualquer parte do mundo, podem criar um sentimento de “irmandade”, pois compartilham de experiências (nesse caso, negativas) bastante semelhantes, seja no Brasil, nos Estados Unidos ou em qualquer outro lugar do mundo. Esse compartilhar experiências e o consequente sentimento de pertencimento a uma coletividade podem ser também pensados em relação aos ídolos internacionais admirados pelas comunidades gay. Se os homossexuais de diferentes partes do globo compartilham vivências negativas, por que não compartilhariam a alegria de admirar estrelas em comum? Trevisan68 faz uma curiosa análise do porquê Carmen Miranda se tornou tão querida no universo gay. Em sua opinião, desde que Carmen virou a Brazilian Bombshell, ela se transformou no referencial arquetípico da carnavalização brasileira. Foi ela também quem inventou o travestismo moderno, “a partir da ideia de ser uma fantasia de si mesma (...) um eu sem centro”, como disse Arnaldo Jabor. Como ela própria desenhava suas fantasias de baiana, que depois a consagraram, pode-se dizer que Carmen Miranda construiu seu próprio jeito de ser travesti de si mesma. Não me parece casual, portanto, que entre homossexuais do mundo todo ela tenha se tornado um mito icônico, quer dizer, um símbolo da cultura da máscara – comum no meio homossexual, em que a máscara pode ser tão necessária para se proteger quanto para se impor. Desse texto destacamos alguns pontos. Em primeiro lugar, o autor parece usar a palavra travesti para designar o que aqui optamos por classificar como drag queens, ou seja, homens ligados à subcultura homossexual que se transformam temporariamente em mulheres “fantasiosas”, exageradas, longe da realidade, que não querem ficar parecidos com mulheres biológicas – esse querer se assemelhar a mulheres “de verdade” é característico
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68 Trevisan. Op. cit., p.389-390
69 Louro. Op. cit.
de travestis e transexuais.69 Em segundo lugar, é muito interessante a ideia de “um eu sem centro” – ideia que vem ao encontro da questão da identidade de Carmen, fluida e aberta a ressignificações. A artista, mesmo que sem intenção, criou um mito que seria adorado pelos homossexuais ao redor do mundo, justamente por ser receptivo a novos arranjos e adaptações. E, por último, a questão da máscara, usada como proteção às agressões do mundo e também como forma de se impor. Provavelmente, a personagem construída por Carmen, exageradamente engraçada e alegre, era também uma forma de sobrevivência em território que precisava ser conquistado – assim como acontece com os homossexuais (drags ou não), que usam o carnaval e outras celebrações como forma de exibição, ainda
70 Green. Op. cit.
que, muitas vezes, precisando utilizar algumas máscaras para se protegerem. Green70 afirma que as apropriações da figura feminina feitas pelos gays também constituem uma forma de conquista de espaços e de afirmação pública de suas noções de masculinidade e feminilidade. A admiração por Carmen Miranda certamente não é compartilhada por todos os homossexuais na mesma intensidade. Apesar disso, ela é um ícone eleito pelos membros das comunidades gay em todo o mundo para representá-los. A estrela tornou-se, desse modo, símbolo internacionalmente adotado. Além disso, os excessos de Carmen são verdadeiramente inspiradores para as drag queens. As construções visuais realizadas pelas drags são alimentadas por informações vindas de todas as partes do mundo; elas se influenciam pelas figuras da mídia e incorporam ideais de feminilidade, mas, como consumidoras criativas, não fazem uma cópia pura e simples do que lhes é oferecido. A construção de seu visual é fruto dessa lógica da informação globalizada. Por isso, alguns ícones são eleitos e inspiram esse fazer estético.
Gustavo Borges Corrêa (Rio de Janeiro, Brasil) é mestre em artes pelo Instituto de Artes da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (2009), bacharel em produção cultural pelo Instituto de Arte da Universidade Federal Fluminense (2002), fez parte das equipes dos setores educativos do Paço Imperial e do Centro Cultural Banco do Brasil entre 1998 e 2005, atua desde 2006 como professor de educação artística nos ensinos fundamental e médio, sendo, atualmente, funcionário contratado do Departamento Cultural da UERJ. / gu.correa@terra.com.br
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Foto do arquivo do Centro de Documentação do Movimento Operário Mário Pedrosa do CEDEM centro de documentação e memória da UNESP.
Mário Pedrosa: diálogo contemporâneo1 Juana Nunes
Com base nos artigos, textos e correspondências de Mário Pedrosa, examina os conceitos de arte, história e crítica, discutindo o interesse do crítico pelas experiências do Centro Psiquiátrico do Engenho de Dentro, pela arte indígena e a relação dialética existente entre arte e política como estratégia para definir sua visão interdisciplinar e sua contemporaneidade. Mário Pedrosa, crítica de arte, contemporaneidade. Em que medida a trajetória de Pedrosa nos possibilita especular acerca 1 Este artigo é parte da dissertação de mestrado A contemporaneidade das contribuições críticas de Mário Pedrosa, apresentada para obtenção do título de mestre, ao PPGARTES, mestrado em Artes da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Área de concentração: Arte e Cultura Contemporânea.
do fazer crítico, do fazer historiográfico em arte? Como essa trajetória se articula e se relaciona com essa tradição? Ou como sua crítica se relaciona com um fazer historiográfico contemporâneo que tensiona os conceitos de história, arte e crítica? A partir das influências de Cassirer e Susanne Langer na formação do pensamento artístico de Pedrosa, é possível repensar o tratamento que ele dispensava às questões da forma em sua crítica. A tensão existente entre a teoria da Gestalt e as formas simbólicas de Cassirer no desenvolvimento de seu pensamento problematiza as relações entre as abordagens focadas na análise formal das obras e as centradas na cultura (estudos culturais). Aqui coloca-se a questão da dimensão contemporânea de seu pensamento, buscando demonstrar que Pedrosa está mais próximo de um olhar fenomenológico das obras do que de uma crítica “formalista”, cotejando seu pensamento com o do filósofo Merleau-Ponty.
2 Pedrosa mantinha contato com Argan em função de sua relação com a crítica internacional: a referência a Argan também se justifica pela abertura de uma concepção de história crítica permeada por visão filosófica, posição que podemos ver também em Pedrosa.
Argan2 defende o ponto de vista de que a diferença entre história da arte da história está no fato de aquela, apesar de história, desvelar-se no objeto artístico; portanto, o olhar do historiador deve voltar-se para o presente, para a obra de arte atual, que pode ser a produção de artistas do passado, de sociedades distantes, mas cujas força e potência estética se mantêm no presente. Sendo a história da arte uma história de juízos de valor, a historiografia da arte se aproxima intimamente da crítica de arte, pois quando o historiador analisa a obra do presente, o faz diante de seu juízo estético. “Pode se dizer que a história da arte
3 Argan. Giulio Carlo. Guia de História da Arte. Lisboa: Estampa,1994, p.30.
sendo a história dos juízos emitidos sobre obras de arte, é história da crítica de arte.”3 Nessa perspectiva, fazer crítica é fazer história da arte, posto que o crítico, ao lançar seu olhar para uma obra de arte, o faz diante de seu juízo estético, sua visão artística. No exercício de sua crítica, ao escolher uma obra para análise, vai tecendo dialeticamente sua trajetória crítica e uma narrativa sobre a história da arte.
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É exatamente dessa forma que Pedrosa se relaciona com a história. Ao longo de sua trajetória, buscou refazer, reescrever a história da arte brasileira lançando seu olhar sobre nossa tradição, buscando nas obras dos artistas os fundamentos da modernidade que ele defendia, posição, aliás, similar à de Argan, que argumenta: Se aquilo que determina e justifica a nossa interpretação da arte do passado é a situação de nossa cultura e especialmente, como é fácil de entender, da cultura artística, não é possível compreender a arte do passado se não se compreende a arte da própria época. Os movimentos, os desenvolvimentos da arte, têm sempre influenciado profundamente a construção da perspectiva histórica em que se enquadram e explicam os acontecimentos artísticos do passado.4
4 Idem.
A história da arte brasileira contada por Pedrosa é uma narrativa que busca dar razão à sua visão de arte. Essa história linear, com conteúdo claramente progressista, tem como fim o triunfo da abstração. Pedrosa viveu o suficiente para ver germinar o fim dessa narrativa histórica e buscou compreender, de forma crítica, os novos rumos da arte. A industrialização deslocou o valor atribuído em nossa sociedade às atividades manuais, altamente identificadas com o fazer artístico, encerrando um ciclo histórico da arte. Portanto, o tipo de experiência que era mediado pela arte passa a existir de outra forma. Assim nasce um novo sistema cultural e uma nova história. Em O bicho-da-seda na produção em massa, Pedrosa analisa o anacronismo do artista numa sociedade de produção em massa, industrializada, em que o trabalho de caráter manual, característico do fazer artístico, perde valor. A ambiguidade do papel do artista demonstra-se na realização de um trabalho que frente ao mercado é concomitantemente produtivo e improdutivo, sendo da própria natureza do capitalismo capturar o que pode vir a ter valor de troca. Segundo Pedrosa, nenhuma obra de arte pode existir a não ser como produto de si mesma, jamais como substituição.5 Nesse sentido, cabe ao artista fazer uso de sua liberdade experimental, sua única opção frente a esse estado de coisas, designada pela expressão exercício
5 Pedrosa, Mário. O “bicho-da-seda” na produção em massa. In Mundo, homem, arte em crise. São Paulo: Perspectiva, 1986, p.112.
experimental da liberdade, cunhada por Pedrosa. Em Mundo em crise, homem em crise, arte em crise, artigo de 1967,6 Pedrosa defende a ideia de que, para vencer o acúmulo das trans-
6 Publicado em Pedrosa , 1986. Op. cit.
formações tecnológicas e o crescente isolamento da atividade de fundo artesanal, os artistas devem projetar em termos ambientais,7 único contexto capaz de viabilizar o elo de integração das atividades sociais e artísticas. Em sua opinião o homem fora nitidamente recondicionado
7 Ambiental para Pedrosa tinha o significado de ampliação e integração das artes num contexto sociocultural.
e mudara seu modo de se relacionar com os objetos do mundo, entre eles a arte. Portanto sua arte inevitavelmente também mudará, sob risco de chegar a seu esgotamento, seu fim. “Ou melhor, transmudar-se, de um modo imprevisível, para nós, ainda menos bípedes.”8 Parece inusitado que um debate que ocorre atualmente entre nós, de forma tão calorosa, tenha sido, já no final da década de 1960, tema e preocupação na crítica de
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8 Pedrosa. Mundo em crise, homem em crise, arte em crise in Mundo, homem, arte em crise, op. cit., p.220.
Pedrosa. É claro que, como todos na época, ele não tinha os elementos para definir e compreender o que de fato mudava na relação entre arte e história, arte e sociedade, mas, na condição de crítico, percebeu claramente o esgotamento do projeto moderno e de sua historicidade, tendo denominado pós-moderna a arte que se desenvolvia então. 9 Pedrosa, Mário. Arte ambiental, arte pósmoderna, Hélio Oiticica. Correio da Manhã. Rio de Janeiro, 26 de junho de 1966.
Em Arte ambiental, arte pós-moderna, Hélio Oiticica,9 Pedrosa define: “Que estamos agora em outro ciclo, que não é mais puramente artístico, mais cultural... a esse novo ciclo de vocação antiarte chamaria de arte pós-moderna.”
10 Belting, Hans. O fim da história da arte. São Paulo: Cosac Naif, 2002.
É interessante notar que o historiador da arte Hans Belting10 data como início da crítica ao modelo historicista da modernidade o final da década de 1940 e como seu apogeu as décadas de 1960 e 1970. Ao recapitular os acontecimentos artísticos citados por Belting em sua argumentação, chama atenção justamente a exposição promovida por Jean Dubuffet em 1949, Art Brut, em que metade das obras provinha de internos de clínicas
11 Pedrosa,Mário. Arte necessidade vital. In Forma e percepção estética. Arantes, Otília (org.). São Paulo: Edusp, 1996.
psiquiátricas. A conferência de Mário Pedrosa Arte, necessidade vital,11 em que defende a produção artística dos internos do Centro Psiquiátrico do Engenho de Dentro aconteceu em 1947, inaugurando um campo de pesquisa que, ao lado de sua defesa da abstração, vai abrindo caminho para as investigações teóricas que nortearão sua crítica nas décadas seguintes. Podemos concluir que Pedrosa não só acompanhou o desenrolar dos acontecimentos, mas, como crítico de primeira linha no mundo, esteve atento ao debate que se desenvolvia. Soube sobretudo interpretar acontecimentos e debates, dando conta das implicações teóricas necessárias para estar à altura da arte de seu tempo.
12 Belting. Op. cit.
Ainda em O fim da história da arte, Hans Belting12 busca esclarecer e analisar o esgotamento do modelo de história da arte que mantinha lógica interna baseada numa história que se desenvolvia a partir da caracterização de estilos e de uma vanguarda artística que moldava a história dos acontecimentos artísticos para o futuro, em lógica de rompimentos, em busca de uma forma ou modelo ideal, a saber – uma idéia de verdade artística. Portanto, o fim que Belting menciona é um fim da narrativa, da ficção em modelo interpretativo que moldava acontecimentos e obras em torno da ideia de desenvolvimento progressivo, que o autor define como enquadramento. Podemos distinguir uma era da história da arte de todas as épocas anteriores que ainda não possuíam uma imagem fechada do cenário artístico, ou seja, nenhum enquadramento. É esse enquadramento que está em jogo no meu argumento. E como se ao “desenquadramento” da arte se seguisse uma nova era de abertura, de indeterminação, e também de uma incerteza que se transfere da história da arte para
13 Id., ibid., p.25.
a arte mesma.13 Essa era de abertura questiona o modelo de arte ocidental, a ideia de uma imagem comum de história da arte que forjava o nivelamento das distintas sociedades, culturas e
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tradições artísticas. O “reconhecimento” do outro é, portanto, questão norteadora de uma verdadeira crítica da cultura. Digo cultura porque é nítida a extensão da historiografia e da crítica de arte atuais para o campo ampliado da cultura. Nesse sentido, o “desenquadramento” nos leva a um caminho no qual são possíveis diversas narrativas históricas. Assim, é inevitável a ampliação do arcabouço teórico que norteava a disciplina história da arte, visto que não há esquema de pensamento global que dê conta da diversidade de culturas dessa arte global que Belting buscou definir como arte híbrida. Hoje o universalismo difundido nesse ideal de arte parece, mesmo no Ocidente, implausível. Arte é ainda uma prática de autonomia pessoal na medida em que consegue manter-se a despeito das estruturas do mercado de arte. Mas esta prática não mais dispõe de modelos válidos com os quais tal autonomia possa ser medida. O pluralismo é a fonte de uma nova liberdade que se expressa em oposição aos padrões de arte conformistas do mercado... O velho universalismo que alimentou a crença ocidental na arte é diametralmente oposto ao novo globalismo da distintividade cultural.14 Nesse sentido, segundo Belting, a disciplina história da arte chega a um impasse. Ou ela amplia os horizontes de sua pesquisa para uma unidade maior da cultura, ou permanece em sua própria aporia, limitada a um uso que não dá mais conta dos fenômenos artísticos atuais. Desse modo, surge uma nova história da arte, ou histórias da arte, que ampliam seu método de análise, buscando as melhores ferramentas no campo vasto dos diversos conhecimentos para dar conta dos desdobramentos da arte contemporânea, algo como uma arqueologia do saber artístico e da cultura. Método crítico interdisciplinar, extradisciplinar Mário Pedrosa utiliza pequenas narrativas para construir uma teoria da arte, uma escrita que podemos definir como interdisciplinar, posto que é visível em seus textos o deslocamento da escrita para campo mais amplo do que o da história da arte. Ele buscou utilizar esses conhecimentos oriundos de outros campos de pensamento para fomentar seu entendimento teórico sobre o fazer artístico. Desse modo, produziu um fazer crítico que é sempre acompanhado de um horizonte como perspectiva utópica, em que vida e forma artística estariam interligadas como fio condutor de sua análise sobre a produção artística, o meio de arte e a sociedade. A ideia de um método interdisciplinar define o desejo, a necessidade de buscar, entre os campos de conhecimento, as ferramentas para o entendimento do fenômeno artístico. Seja ao utilizar a psicologia para a análise das experiências do Engenho de Dentro, seja no estudo da arte indígena se aproximando dos conceitos de antropologia, Pedrosa inaugura um novo olhar que amplia sua análise do objeto artístico, antes marcada pela ideia de percepção da forma.
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14 Belting, Hans. Arte híbrida? Um olhar por trás das cenas globais. In Arte & Ensaios n.9. Rio de Janeiro. Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais - Escola de Belas Artes UFRJ. 2002, p. 173.
15 Holmes, Brian. Investigações extradisciplinares − Para uma nova crítica das instituições. In Concinnitas n.12. Rio de Janeiro: Instituto de Artes da UERJ, 2008. p.8.
Em Investigações extradisciplinares, Brian Holmes15 exemplifica o uso de seu método como tentativa de compreender o fenômeno contemporâneo. Sua ambição consiste em ampliar a narrativa de interpretação da arte em campos distantes da arte, mas também perceber presentes neles os elementos próprios do jogo estético: Temos um novo tropismo e uma nova espécie de reflexividade em ação aqui, envolvendo tanto artistas quanto teóricos e ativistas, na passagem para além dos limites tradicionalmente atribuídos a seu exercício. A palavra tropismo transporta o desejo ou necessidade de virar-se rumo a algo além, a um campo ou disciplina exterior; enquanto a noção de reflexividade indica um retorno crítico ao ponto de partida, uma tentativa de transformar a disciplina inicial, de acabar com sua isolação, de abrir-se a novas possibilidades de expressão, análise, cooperação e compromisso. Esse movimento de ida e volta ou, melhor, essa espiral transformativa é o princípio operativo do que chamarei de investigações extradisciplinares. Ao mesmo tempo em que propõe mudanças na disciplina artística para uma crítica ampliada, Holmes percebe que o alargamento das fronteiras provoca o esvaziamento da densidade do artístico, de sua identidade como objeto ou ação estética. A autorreflexividade defendida aqui tem o objetivo de resguardar, no momento do alargamento da crítica, a especificidade da arte. Seu método busca constituir uma crítica que, ao dar conta da produção contemporânea, realiza dialeticamente seu alargamento aos campos mais distintos do mundo da arte, identificando nesses espaços “os usos instrumentais ou espetaculares que tão frequentemente se fazem da liberdade subversiva
16 Id., ibid., p.9.
do jogo estético”,16 sem esvaziar ou reduzir a crítica de arte a um universo limitado. Pensar a crítica no momento contemporâneo é, sobretudo, lançar luz a manifestações artísticas que não mais se definem como arte sem com isso carregar para si um escopo de ambiguidades. Tais manifestações pretendem alcançar quase sempre a circulação, o caminhar entre disciplinas, a transversalidade. Perceber, no fluxo de movimentos sociais, nas ocupações do espaço público, ações em rede e, nas ações que se relacionam de alguma forma com a rede midiática, uma potência estética é o grande desafio da crítica contemporânea; repensar o lugar da arte, seus modos de presença no mundo, ou seja, sua dimensão pública. Para Holmes, esse complexo movimento em espiral proposto pela análise extradisciplinar permite uma crítica que não negligencia a existência de disciplinas diferentes e nem seu aprisionamento nas disciplinas. Essa nova crítica cultural tem a potência, segundo o autor, de renovar a crítica institucional, que se estabelece nas ruas, no limiar da crítica das condições de representação, em que crítica e prática artística pressupõem uma prática política. Para ser eficaz uma crítica cultural deve mostrar as conexões entre as principais articulações do poder e as estéticas mais ou menos triviais
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da vida cotidiana. Ou seja, deve revelar que as relações sociais obedecem tal dinâmica que se impõem de maneira geral a quem está envolvido nelas; mas, além disso, deve fazê-lo mediante a crítica dos discursos, imagens, ou atitudes emocionais específicas que são as formas concretas que tais relações sociais adotam, escondendo a desigualdade e a crua violência.17 No mesmo sentido podemos perceber a atuação de Pedrosa. Sua crítica circulava em uni-
17 Holmes, Brian. La personalidad Flexible. Por uma nueva crítica Cultural. In Brumaria – prácticas artísticas, estéticas y política, n.7. Madrid, 2006. p.98.
versos distantes do mundo especializado da arte e, ao mesmo tempo, reivindicava essa especialidade. Esse interesse interdisciplinar acompanha a motivação de duplo sentido: responder criticamente aos desdobramentos artísticos contemporâneos, que na década de 1960 rompiam com as molduras disciplinares, e corroborar para o entendimento político do papel estratégico do trabalho artístico na transformação social. Em A Bienal de cá para lá,18 Pedrosa, tendo como referência a história das bienais de São Paulo, utiliza dados econômicos como elemento de sua análise sobre a marcha da arte no
18 Pedrosa, Mário. A bienal de cá pra lá. In Mundo, homem, arte em crise. Op. cit., p. 253.
Brasil, mercado, instituições e circuito de arte. E aproveita para tecer longo comentário sobre o desenvolvimento econômico da cidade de São Paulo, palco principal da industrialização e urbanização do país. Além disso, sustenta a ideia de que uma personalidade como Cicilo Matarazzo e a vontade de criação de um ambiente artístico que culminou na realização da primeira bienal de certo modo eram fruto da caracterização de uma elite que, fugindo do caos instaurado na Europa, detinha 50% das empresas paulistas e ansiava recriar no país seu modelo cultural: Ao mesmo tempo em que o capitalismo brasileiro-paulista recebe o sangue dessa mais-valia que entra em torrente pelos portões adentro das fábricas novas que se vão abrindo em São Paulo, descem nos portos e aeroportos do Rio e de São Paulo, na mesma década, novas camadas de imigrantes que, diferentemente dos das primeiras vagas imigratórias do início da República e do começo do século, não vêm com contrato de trabalho para fazendas de café, mas com bens, capitais e know-how, para aqui mesmo instalar seus negócios, fábricas e empresas. Esses homens que fogem às catástrofes políticas e sociais do Velho Mundo trazem também com eles certas experiências, certos gostos pessoais, certa bagagem cultural, em suma (modesta, não nos façamos tampouco ilusões). Percebe-se que a necessidade de ir além de um campo específico era motivada pelo próprio fazer crítico; Pedrosa entendia esse alargamento para outras disciplinas como exigência, tal como Jacques Lassaigne, que cita: “A crítica moderna se vai tornando cada vez mais enciclopédica; hoje, exige-se do crítico conhecimento em quase todos os domínios, da filosofia à matemática, da estética à psicologia, da sociologia e antropologia às ciências físicas”.19
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19 Lassaigne, Jacques. Apud Pedrosa, Mário. Em ordem do dia – a terminologia da crítica. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 11 de julho de 1957.
Esse interesse interdisciplinar fica mais evidente em sua trajetória crítica na formulação da criação do Museu das Origens. Na ocasião do incêndio do Museu de Arte Moderna do Rio, Pedrosa ali estava organizando com Lygia Pape uma grande exposição de arte indígena brasileira, Alegria de viver − Alegria de criar, dividida em três áreas: indumentária, artefatos e cerimonial. Ao todo seriam expostas 1.000 peças de diversas comunidades 20 Pedrosa, Mário. Projeto exposição Alegria de viver − Alegria de criar. Acervo Mário Pedrosa, seção manuscritos. Biblioteca Nacional.
indígenas brasileiras, projeto20 cancelado em função do incêndio. Na ocasião, Mário Pedrosa propôs a reformulação do MAM do Rio com a criação do Museu das Origens, que se deveria constituir de cinco museus interligados: do índio, do inconsciente, do negro, de arte popular e o de arte moderna. A proposta da criação do Museu das Origens consistiu em verdadeira síntese do pensamento de Mário Pedrosa sobre arte, posto que busca um espaço físico concreto para a síntese de arte primitiva e moderna. O conceito de museu plural explicita seu interesse como crítico nas obras e nos artistas do Centro Psiquiátrico do Engenho de Dentro e da arte indígena, assim como da arte negra – interesse, aliás, intimamente ligado ao desenvolvimento de seu pensamento crítico. Especulações, paradoxos, ranhuras
21 Ferreira, Glória. Crítica de Arte no Brasil: temáticas contemporâneas. Rio de Janeiro: Funarte, 2006. p.19.
Segundo Glória Ferreira,21 a entrada de Mário Pedrosa no cenário da crítica de arte no Brasil também significou o deslocamento do debate numa dimensão ideológica, em que a atualização estética pelo modernismo acompanhava, exigia da arte uma tarefa nacional: desvelar a identidade. Esse deslocamento possibilitou um enfoque crítico estético-formal que resultou na estruturação de um sistema de arte comprometido com a emancipação do pensamento estético. Diante de sua tamanha importância no cenário brasileiro, por que o esquecimento? Como um crítico do quilate de Mário Pedrosa foi ao longo do tempo sendo relegado a uma referência apenas histórica? Em parte, suas ideias envelheceram, mas a potência essencial de suas formulações resiste e se renova. É fato que o esgotamento do projeto construtivo brasileiro, do qual Pedrosa, no campo da arte, foi o principal articulador, é elemento importante para análise. A ideia de um projeto artístico comprometido com o desenvolvimento e com a modernização do país foi sendo esvaziada, uma vez que esse desenvolvimento não foi repartido por toda a sociedade. Quando da crise do projeto construtivo representada pela ruptura neoconcreta, Mário não só respaldou a crítica formulada por Ferreira Gullar, como serviu de inspiração. Podemos afirmar que o rompimento sustentava-se em parte nas ideias de Pedrosa. Afirmamos que, em parte, o referencial de análise utilizado para pensar a obra de Pedrosa, centrado nas elaborações concretas do crítico com base na teoria da Gestalt, perdeu o vigor no momento em que a arte se expandiu de seu universo específico para o campo ampliado da cultura. Ao reler sua obra por um ponto de vista diferente, podemos perceber que as novas ideias estéticas vão germinando ao longo do tempo; são fissuras, ranhuras que pos-
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sibilitam a constituição de um pensamento plural, em que uma esfera não elimina outra. Ele foi capaz de consolidar um pensamento estético e ao mesmo tempo lançar bases para novas percepções do fenômeno artístico. Isso só foi possível porque todas as suas ideias, por paradoxais que pareçam, eram parte de concepção única de arte. O que parece ser em Mário Pedrosa dois interesses distintos vai-se demonstrando, na prática, faces da mesma moeda; mais que isso, funciona como ideia-força de função mediadora, da qual uma dimensão vai corrompendo a outra e modificando seus critérios críticos. Quando de sua volta ao Brasil, no final da década de 1970, Pedrosa passa a ter maior interesse na arte indígena e a reivindicar uma arte de retaguarda, afirmando não se considerar mais crítico e que a arte no mudo vivia uma crise de saturação. Em sua opinião, ser crítico nesse quadro de falta de criatividade seria fazer o comentário sobre o comentário. Em entrevista, Pedrosa afirma: Eu falo que não sou um crítico de arte mais, porque há um desenvolvimento da crítica de arte ou da arte hoje em dia, é cada vez mais.....não digo de repetição, mas é um comentário já feito. É comentário sobre o comentário, porque todos esses movimentos são reflexos de movimentos que já existiram em outra parte. Eu não vou falar sobre o Brasil, eu acho que a arte está em decadência, me permitam dizer, a posição da arte está em decadência em toda parte do mundo, porque a época não permite mais uma recriação do movimento de arte. Hoje, no mundo inteiro a arte é uma decorrência, uma decorrência dos poderes que existem e que determinam os valores da sociedade. Hoje a arte é contestável e isto é um elemento interessante. A arte é contestável em toda a parte. Não estou contestando arte e nem os artistas. Os artistas que continuam a fazer arte são os artistas que fazem arte, têm seu papel. Mas o que eu critico é que ele não necessita mais de crítico de arte para pintar, explicar ou tentar interpretar os movimentos que existem. O artista de hoje não precisa de crítico de arte... o crítico de arte foi muito bom para preencher uma função social dos meios artísticos. É bom para as instituições de arte coletiva, é bom para os marchands, é bom para os museus.22 Diante dessa contradição, podemos especular que o crítico negava o sistema de arte, tal como transformado, no momento em que o mercado de arte passa a ter maior influência na produção artística e a se institucionalizar no Brasil. Segundo Pedrosa, a função do crítico permeia uma atuação militante, necessita de uma causa, uma vanguarda. Portanto era a arte totalmente institucionalizada que não lhe interessava mais. No entanto, em vez de se afastar da crítica, como preconizava, dedicou-se a organizar com Lygia Pape a exposição Alegria de criar, alegria de viver, que explicita seu maior interesse na arte indígena:
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22 Pedrosa, Mário. Entrevista ao Idart em 14 de julho de 1977. In Abstração e reflexão. p.243.
Os índios viveram nas florestas, viveram nos rios e aí estão as artes que estão ligadas a eles. Não há obras, um instrumento de trabalho que não esteja feito com alegria , com o prazer de construir. E isto é muito importante porque atinge as profundezas da arte em tudo... A alegria de viver, a alegria de trabalhar, a alegria de criar é uma coisa só.Desde o instrumento de trabalho, desde a canoa, desde os instrumentos musicais, desde a cozinha, tudo é feito com alegria de trabalho e com a extrema necessidade de completar. É muito comum numa cesta, cujo desenho é maravilhoso, ele fazer a cesta para levar mandioca, do lado externo colocar o desenho mais bonito. Se você pergunta para ele: 23 Id., ibid., p.248.
“mas por que você fez isso?, ele diz: Se não fizer isso não pega o pé.23 Sua fala é reveladora em nossa investigação, já que seu interesse pela arte indígena se coaduna com uma vontade de resgatar uma potência vital para a produção artística e mesmo para um projeto civilizatório mais humano. Pedrosa afirmava poder fazer alguma coisa se tentasse despertar a sensibilidade para a cultura indígena, que esta poderia ser um elemento de aprendizado, um modelo de sociedade que olhasse para todos os aspectos humanos. Em sua opinião, esse contato poderia produzir algo novo: “Não podemos esquecer do seguinte: a alegria de fazer o objeto. A alegria, porque ele se identifica com o objeto. Ele tem uma alegria espontânea, a alegria de viver, a alegria de criar. E é isto o
24 Id., ibid., p.250.
que falta hoje em nós. É esta alegria de viver, a alegria de criar.”24 Na essência do projeto Alegria de criar, alegria de viver está uma revisão que Pedrosa foi realizando ao longo de sua trajetória e que aponta para o aprofundamento de questões em torno de seu pensamento estético. Essas revisões vão sendo levantadas aqui e acolá em diversos textos, mas não aparecerem de forma sistematizada. Nesse sentido são apontamentos, indicações, ranhuras. Foi compreendendo a forma para além do problema gestaltiano que o crítico pôde perceber o processo de criação, a atitude criadora como elemento-chave do fenômeno estético: “Na arte pós-moderna”, diz ele, “a ideia, a atitude
25 Pedrosa, Mário. Do porco empalhado ou os critérios da crítica. Correio da Manhã. Rio de Janeiro,11 de fevereiro 1968.
por trás do artista é decisiva”.25 A relação entre arte e política tão percebida na trajetória crítica de Mário Pedrosa passa a ter na contemporaneidade projeção reveladora, quando podemos observar nos trabalhos de artistas e coletivos a preocupação de afirmar, como conceito de suas realizações artísticas, a ideia de que é com base na assimilação da atitude política como estratégica artística e vice-versa que se revela a possibilidade de se fazer arte hoje. O projeto de estetizar a política que podemos ver em Pedrosa − não no sentido de rebaixar a dimensão estética ao sentido político − ou mesmo do uso da arte para fins políticos que tanto o crítico combateu no realismo soviético, mas quer, sobretudo, pensar a arte como uma necessidade vital do homem, um processo de intervenção criativa no mundo capaz de transformar a realidade. Vemos hoje artistas que pensam a arte como “o lugar privilegiado da política” no momento em que se fala de um capitalismo cognitivo, da mudança de
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um capitalismo produtivo para um capitalismo do conhecimento, em que a luta de ideias na sociedade se dá no campo da imagem. Essa é sem dúvida uma contribuição de Mário Pedrosa. Nesse sentido, o debate acerca de arte e política ganha uma dimensão reveladora quando nos debruçamos no estudo das questões apresentadas pelo crítico, seja quando compreendia na arte esse espaço comum em que o homem tem, com criatividade, a capacidade de se transformar e transformar a sociedade, ou quando fez de sua crítica uma ação subvertora da ordem ao quebrar as hierarquias entre arte culta e arte popular, consciente e inconsciente, constituindo narrativa inovadora que articulava as noções de arte e antropologia e de arte e política. É nesse sentindo que interpretamos o legado crítico de Mário Pedrosa, posto que fez de sua prática historiográfico-crítica uma subversão do espaço estreito do campo específico da disciplina história da arte, propondo um sentido ampliado para sua crítica de arte, produtora de uma escrita que propõe reaproximação de arte e vida, que só podemos definir como política.
Juana Nunes (Rio de Janeiro, Brasil) é mestre em artes pelo PPGARTES do Instituto de Artes da UERJ e, atualmente, coordenadora geral de Mobilização e Articulação em Rede da Secretaria de Cidadania Cultural do Ministério da Cultura. / juanauerj@yahoo.com.br
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Odara: comunicação estética da dança no candomblé Kate Lane Costa de Paiva
Aborda as danças do ritual do Xirê no candomblé. Considerando as dimensões culturais e artísticas dessa prática religiosa, aponta para a importância da visualidade nos rituais e sua relação com o conceito de beleza, funcionalidade e tradição por meio da análise da palavra nagô odara. Comunicação, estética, dança. Dança, música, adornos e vestimentas apresentam-se interligados nos rituais de candomblé. A dança ritual vincula-se diretamente à manifestação dos deuses, sendo a incorporação estimulada pelo ritmo e pelas cantigas. Não só o indivíduo praticante da religião dança ou canta; a própria divindade assim se expressa e se apresenta, determinando a essencialidade desses elementos para a realização dos rituais. A dança dos orixás é sentida (e percebida) por todo o aparato corporal. Não basta ver o 1 Para o grupo religioso, axé significa energia vital, boas energias. O orixá ao dançar seria capaz de emanar essa energia.
orixá dançar; é preciso receber seu axé,1 e para recebê-lo os fiéis, incorporados ou não, mantém as mãos erguidas e abertas na direção do orixá que está dançando no salão, criando uma continuidade entre o corpo que percebe e aquilo que é percebido. Roupa, canto, movimentos e adornos possuem total plasticidade ou visibilidade; são elementos que dependem uns dos outros. Essas imagens totais configuram a materialização de uma linguagem dentro do candomblé, compondo um campo estético sinestésico de comunicação. Sinestésico, pois suscita a percepção de todos os sentidos corporais. Nesse
2 Gerheim, 2008, p.8.
aspecto, concordamos com Gerheim:2 “A linguagem, em geral, é definida como capacidade de abstração, mas na medida em que dá forma ao pensamento, podemos dizer que possui também uma plasticidade e, portanto, uma materialidade.” O candomblé como sistema religioso que estabelece práticas culturais específicas e com elas modos de pensamento, de ação e de fazer, possui linguagem própria, calcada na percepção corporal e que desvela a maneira de pensar e de se posicionar do grupo, assumindo formas plásticas em imagem, movimento, gestos. Trata-se de linguagem constituída por códigos experimentados pelo / no corpo. Entender tais códigos significa poder entender o que está sendo “dito” (não com símbolos de grafia ou fala, mas com símbolos visuais) durante as cerimônias. A linguagem partilhada pelo grupo assume a forma de imagens, a partir das quais o próprio sentido é partilhado e negociado entre seus membros.
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Extremamente vinculadas, a produção estética e a forma de se comunicar expressam o modo como o grupo conhece o mundo através da vivência. E falam sobre uma prática
Mãos que recebem axé. Fonte: arquivo da autora (fotografia).
cultural que trabalha maneiras de ver, sentir e saber, que, por sua vez, atuam como modos de conhecer. Essa linguagem é híbrida, como o meio que a gerou,3 criando uma zona de significação que engloba palavra, imagem, som e movimento. Palavras oriundas das rezas e saudações proferidas durante o ritual. Imagens compostas pelo arranjamento do próprio espaço do terreiro para as festas, as vestimentas e as cores. Som dos atabaques e cantigas entoados para chamar o orixá e fazê-lo dançar. E movimento dos gestos corporais tanto da dança dos orixás como da interação dos participantes do ritual. Imagem contaminada por informações de naturezas diversas. E voltamos a Gerheim: a linguagem como potência transformadora capaz de criar imagens. No candomblé a linguagem se fundamenta na narrativa mítica. A escolha de cada elemento que compõe essa produção de imagens, em especial, os gestos da dança, encontrará sua
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3 Consideramos o candomblé um sistema religioso híbrido por nascer da junção de várias crenças e práticas culturais africanas que se juntam e se reconfiguram em solo brasileiro. distintas (Bastide, 1985; Verger, 2002).
Silêncio e afetividade de orixá: comunhão entre deuses e homens. Fonte: arquivo da autora (fotografia).
explicação no mito que narra a história de cada orixá, criando uma espécie de órbita em que o sentido pode movimentar-se. A divindade executa movimentos que celebram seus feitos, narrando suas histórias. A forma é embasada pelo conteúdo mítico. O mito enquanto linguagem, comunicação, encontra seu suporte na criação imagética, na forma/conteúdo presente na imagem, percebida em sua totalidade e presença no e com o corpo durante a dança dos orixás no Xirê. O mito confere sentido ao ritual e vice-versa, posto que reelaboram e celebram a narrativa
4 Iaô é o nome dado ao recém-iniciado na religião.
mítica. O mito determina como os iaôs4 devem vestir-se, que gestos fazer, como os orixás irão dançar. Tudo possui um “fundamento”, como diz o povo de santo. E esse “fundamento” se encontra na narrativa mítica, criando uma imagem que fala, que comunica através do corpo, ao mesmo tempo em que reinventa o mito, perpetuando-o.
5 Barthes, Roland. Mitologias. Rio de Janeiro: Difel, 2006.
Roland Barthes5 aponta os diferentes modos de atenção que a imagem suscita na ordem da percepção e sua diferença em relação à escrita. A narrativa mítica é veiculada pela visibilidade da imagem, por sua vez capaz de engendrar significados diversos, diferentes possibilidades de leitura, que fogem a linearidade da escrita e da narrativa.
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A atribuição de sentido está intimamente ligada à contiguidade de linguagem e mundo. Atribuir valores e sentidos é também nomear coisas, construir redes de conhecimentos e possibilidades de mundos. A inteligibilidade do mundo é tanto sensível quanto semântica, e a própria sensibilidade já envolve semioticidade.6
6 Picado, 2003.
A significação inscreve-se no âmbito do sensível, em nossa capacidade de perceber/ nomear o mundo a nossa volta. Percepção que é sentida com o corpo todo, externa – olhos, mãos, nariz, boca, pele – e internamente – consciência, inconsciência, mente, estômago, músculos. A relação entre significante, significado e signo no processo de produção de sentido passa necessariamente pelo intérprete. Isso gera proximidade entre significante e significado, não os reduzindo, entretanto, à igualdade. O sentido produzido possui um lócus de enunciação, ou seja, um local histórico, cultural e social em que se encontra quem profere o sentido.7
7 Bhabha, 2005.
Em nosso objeto de estudo, o apelo que as visibilidades exercem sobre os espectadores e participantes no ritual do candomblé age diretamente sobre os sentidos corporais. Uma percepção corporal no interior da qual surgem significações. E é curioso como a própria palavra sentido(s) aponta para esta relação entre significado e percepção: sentido, do verbo sentir; sentido, os sentidos corporais (tato, paladar, olfato, visão, tato); sentido, ter significado, expressar algo. O corpo se comunica através de semiótica instaurada no âmbito da sensibilidade e da percepção, calcada nesse aparato sensorial uno e não dividido em partes fisiológicas. A percepção é fato total e não privilégio de um olho/visão. Através dessa construção simbólica sensível, conhecimento e saber se articulam, encontrando na corporeidade seu agente fundamental. Se esse corpo pode comunicar dentro do sistema de significação do candomblé é porque ele é capaz de dar conta de uma expressão que a língua falada ou escrita já não pode. Ele se apresenta como um corpo-imagem que se instaura na percepção. Ao performatizar e presentificar a narrativa mítica é o corpo do iniciado quem fala, age, se apresenta. O corpo na dança cerimonial precede a questão linear da mera representação de um determinado mito. Ele não é a reapresentação desse mito, mas sua presentificação. Muniz Sodré8 aponta para a essa expressividade do corpo em relação à linearidade da grafia: A infinita e imediata expressividade do corpo leva à suposição de que o poder ativo e passivo das afecções ou dos afetos, além de preceder
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8 Sodré, 2006, p.24.
a discursividade da representação, é capaz de negar a sua centralidade racionalista (...). Um exemplo talvez pequeno, mas certamente significativo, mostra-se no teatro, quando a qualidade de expressão do corpo do ator transcende a qualidade do texto (...). Fatores como ritmo, tempo, entrosamento, energia, gesto e corpo sobrepõem-se à literalidade da peça. 9 Gruzinsky, 2006.
E Gruzinsky9 aponta para a imagem como impossibilidade velada da palavra, que permite cristalizar crenças de difícil ou perigosa verbalização. E essa seria a força criadora da imagem. Os orixás não falam. Se, entretanto, não possuem a palavra através da língua falada, sua comunicação se faz pelos elementos visuais e sonoros que o compõem. Imagens, sons e gestos “falam” ao narrar os mitos de cada orixá, e seu silêncio mantém os mistérios desses códigos. Os erês, contudo, seus representantes infantis, falam, possuem a palavra e, por isso, são os responsáveis por trazer algumas mensagens desses orixás em ocasiões especiais. Notase, então, que ao mesmo tempo em que há impossibilidade da fala, ela também pode ser invocada, em raros casos, quando a imagem já não é suficiente. Pensar a produção imagética do candomblé e sua produção de sentido é pensar o sistema religioso em sua prática cultural, pensar a cultura como diferentes maneiras de conhecer, de saber, calcada em sistemas de significações que criam linguagens próprias para conhecer o mundo. Isso significa analisar a dinâmica cultural através da diferença, do híbrido, dos lugares que estão entre, que estão aqui e acolá, pois os significados engendrados nos códigos que compões as práticas culturais nunca são isolados, puros ou verdadeiros. Eles estão sempre em relação a alguma coisa, podendo ser modificados ou suprimidos. E, se esses significados ligados ao universo simbólico da produção do conhecimento podem flutuar, mesmo que não fujam à órbita do consenso do grupo, pode-se dizer que é o próprio conhecimento que assume essas redes flutuantes. O conhecimento, então, tornase mais aberto às questões de percepção sensível, dos modos de ver e sentir. No caso de nosso objeto de estudo, ao corpo que canta e dança, que se movimenta, se entrega, que sente. “O conceito que eu defendo (...) é essencialmente semiótico. Acreditando, como Max Weber, que o homem é um animal amarrado a teias de significados que ele mesmo teceu, assumo a cultura como sendo essas teias e sua análise; portanto, não como uma ciência experimental
10 Geertz, Cliford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Guanabara, 1989, p.15.
em busca de leis, mas como uma ciência interpretativa, à procura do significado.”10
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A dança traz a presença do próprio deus e de sua história. Quem dança, entretanto, não é o indivíduo dotado de uma, se podemos assim chamar, consciência racional, gesticulando intencionalmente. Ao dançar incorporado, o indivíduo torna-se o próprio orixá, assumindo outro “estado de ser”, expressão que transpusemos dos estudos feitos por Els Lagrou11 ao tratar da arte Kaxinawa:
11 Lagrou, disponível em: http:// www.scielo.br/scileo.php?pid=S010493132002000100002&script=sci_arttext. Acessado em: 02/03/2009.
Desde que consciência é inconcebível sem uma consideração do estado de corpo, estados de consciência tornam-se estados de ser. Uso “estados de ser” em substituição à definição comumente usada para “estados de consciência”, porque, desse modo, evitamos o perigo de inadvertidamente opor mente e corpo. Como não pretendemos apontar aqui para essa divisão entre corpo e mente a que a autora se refere, optamos por tratar o transe ritual como esses estados de ser, apontando para a continuidade existente entre orixá e iniciado, já que estes estão intimamente ligados. No transe da dança ritual, o orixá se presentifica, torna-se, portanto, um ser – agente. O que há, assim, é a transformação de um ser – homem, o iniciado – em outro ser – deus, o orixá. Ao dançar, é o corpo incorporado do iniciado que dança, e é o orixá que “fala” e se mostra através da dança. Por isso, concordamos com Castro:12 ao se presentificarem, tornarem presença, orixás e homens tornam-se indivíduos no contexto do ritual, sendo dessa maneira ‘encorporados’.
12 Castro, Eduardo Viveiros de. A inconstância da alma selvagem. São Paulo: Cosac & Naify, 2002.
Mais do que incorporado ou encarnado, o que aprisionaria o orixá dentro na forma corporal humana, ao ser ‘encorporado’ orixá e homem partilham da mesma substância corpo para se manifestar como indivíduos atuantes no ritual. Segundo Deleuze,13 a possibilidade de mudar sua natureza é o que constitui o indivíduo. Essa é a mudança que se apresenta nos estado de ser desse indivíduo, não é a substituição separada de um (homem) pelo outro (deus), mas a continuidade entre eles. Sendo o candomblé religião em que deuses e homens coexistem no corpo, tanto um como outro estão suscetíveis a esses estados de ser. O homem é capaz de transformar-se em orixá capaz, por sua vez, de assumir variados contornos e sutilezas que lhes conferem identidade e diferença nas chamadas qualidades de santo. De acordo com a filosofia religiosa, os orixás possuem determinadas qualidades, que os interligam uns aos outros em suas características de personalidades. Como os elementos visuais e sonoros representativos de cada orixá expressam esses dados de personalidade advindos das narrativas míticas, também eles podem misturar-se entre si, criando uma gama de possíveis orixás com características híbridas a partir do panteão afro-brasileiro.
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13 Deleuze, 1988.
Assim, por mais que haja filhos do mesmo orixá, eles serão sempre diferentes um dos outros devido à qualidade de cada um. Mesmo que vários Oxossis, ou Xangôs, ou Iansãs e Estados de Oxuns. Fonte: Prandi, Reginaldo. Mitologia dos orixás. São Paulo: Companhia das Letras, 2001 (fotografia).
Oxuns dancem ao mesmo tempo, por mais que pareçam iguais, serão diferentes entre si,
14 Verger. Op. cit.
De acordo com Verger,14 essas qualidades seriam explicadas pelos diversos modelos de cul-
pois cada um terá uma qualidade que traz em si uma identidade e, com ela, uma alteridade.
to encontrados em África no início do fluxo do tráfico de escravos. Como fosse cultuado ao longo de regiões amplas, cada orixá recebia diversos nomes e algumas particularidades que teriam sido ressignificados sob a expressão ‘qualidade de santo’. As qualidades permitem mobilidade aos elementos visuais e sonoros característicos das divindades. E, ao se tornarem padrões deslizantes, o próprio sentido desliza entre eles. Os elementos se misturam e hibridizam, seguindo os laços de parentescos narrados pela mitologia afro-brasileira. Isso lhes confere possibilidades de criação e inovação, mas que não fogem à órbita de sentido estabelecida pelos ensinamentos adquiridos desde o processo de iniciação. E quando esse padrão é desobedecido é a própria veracidade do ritual que se coloca em risco. Seguir os padrões inscritos nesse regime significa estar de acordo com as tradições aprendidas ao longo do processo iniciático, afirmando os valores pertinentes ao grupo, que ex-
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pressam sua forma de se posicionar no mundo. Nesse sentido, é o próprio regime estético que expressa maneiras de agir e pensar o mundo. Sobre a articulação entre maneiras de fazer e pensamento, observa Rancière:15 “Um
15 Rancière, 2005, p.13.
regime específico de identificação e pensamento das artes: um modo de articulação entre maneiras de fazer, formas de visibilidades dessas maneiras de fazer e modos de pensabilidade de suas relações, implicando em uma determinada idéia de efetividade de pensamento.” As formas de fazer, de conviver e de viver assumem visibilidades que expressam um pensamento específico, característico do meio em que elas surgem. O candomblé, com suas maneiras de fazer e suas formas de visualidades, configura campo estético que expressa maneiras de pensar do grupo. E com isso é capaz de estabelecer relações entre o que é visto e o que é dito, articulando maneiras de ver, modos de fazer e viver expressos por seu regime estético, que, por sua vez, revela o meio cultural em que surge. Esses padrões estéticos criam uma unidade modular baseada na tradição e na funcionalidade; determinam quem toca os atabaques, quem entoa cantigas, o que pode ou não ser cantado, quais espaços podem ou não ser penetrados, etc. Isso cria uma órbita em que as formas e seus sentidos se devem desenvolver para que os rituais sejam reconhecidos e afirmados pelo grupo como autênticos ou verdadeiros, mesmo aqueles mais “inovadores”. Há liberdade para acrescentar elementos que conferem individualidade e identidade a cada terreiro em seus rituais e a cada orixá, como veremos nas qualidades de santo. No entanto, a criação transita nos limites dessa órbita do regime estético. E aquilo que foge a ela pode ser considerado impróprio, falso ou simplesmente feio. Segundo Marco Aurélio Luz,16 o conceito ocidental de belo não existe na tradição iorubá. A definição de belo do complexo nagô pode ser expressa pela palavra odara, que significa simultaneamente “bom, útil e belo”. O belo, nesse sentido, é uma conjugação de valores subjetivos e objetivos. Quando um ritual é bem feito, segue às tradições, possui os fundamentos religiosos, tem verdade e emoção, diz-se que está tudo odara. Quando uma divindade aceita uma oferenda porque essa foi feita de coração e bem arranjada, diz-se que está tudo odara. Quando um orixá dança com vigor e a comunidade religiosa o saúda fervorosamente, odara é a palavra que o define. Se uma cantiga é entoada por alguém que não deveria, se algo está fora do lugar em que deveria estar, se um mais velho é desrespeitado ou se um orixá aparece de maneira que destoe da maneira aceita pelo grupo, o ritual torna-se “feio”, sem fundamento e, portanto, sem legitimidade.
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16 Luz, 1995.
É a fidelidade à tradição e aos ensinamentos adquiridos que distingue um “bom” de um “mau” candomblé ou ainda um ritual “bonito” de outro “feio”. Há um sistema de eleição calcado no discurso dos participantes que julga se os rituais estão ou não de acordo com o que foi ensinado, se têm ou não fundamento, segundo o povo de axé. Esses julgamentos que levam o ritual ser considerado bom e bonito, e, dentro de padrões estéticos compartilhados pelo grupo, revelam um discurso sobre a dimensão artística. O campo da arte, no qual se inscreve o poder estético, não aparece dissociado de outras dimensões da vida religiosa, embora o discurso sobre ele seja raramente percebido como tal. 17 Geertz. Op. cit., p.147.
Segundo Geertz17 muitas vezes o discurso sobre arte em determinados grupos de culturas tradicionais não está dissociado das outras dimensões práticas da vida cotidiana: “Não há dúvida, porém, de que esses povos falam sobre arte, como falam de qualquer coisa fora do comum ou sugestiva, ou emocionante que surja em suas vidas – dizem quem toca, ou quem faz, que papel desempenha nessa ou naquela atividade, pelo que pode ser trocado, qual seu nome, como começou e assim por diante”. A estética ritual tem de estar de acordo com as regras que regem a funcionalidade das formas que esse discurso engendra. Não há separação entre o discurso estético, a função do ritual e a visão de mundo. A beleza dos rituais é algo que combina forma, conteúdo, tradição e cognição, estabelecendo continuidade entre aquilo que agrada aos deuses, ao grupo e aos sentidos. Sob o prisma da tradição as narrativas míticas fundamentam as regras sociais e estéticas do grupo. E desse modo o discurso acerca do que é ou não tradicional se torna bastante importante para o estabelecimento do próprio sentido engendrado nesse regime estético. No entanto, a identidade religiosa dos terreiros, marcada pelo discurso tradicional, é sem-
18 Capone, 2004.
pre o resultado de uma negociação dos atores sociais que compõem o grupo.18 Rituais como o Xirê passaram por diversas modificações em suas formas desde a “invenção” do candomblé e o surgimento do primeiro terreiro “tradicional”. O que é tido como tradicional hoje em dia provavelmente não o era há alguns anos. Dona Marina, uma de nossas informantes, em entrevista, revelou parte dessas mudanças, especialmente no que diz respeito à feitura: “Naquela época era tudo muito diferente de hoje, sabe. Era tudo mais difícil. Quando eu fui feita, eu tinha 17 anos, e o resguardo era de seis meses. Seis meses sem namorar, sem sair de casa, a gente só podia sair par trabalhar e estudar, mesmo assim de cabeça baixa, toda de branco e com a cabeça coberta! Hoje, o iaô com três meses já pode sair do resguardo.” Atualmente até os candomblés mais tradicionais estabeleceram a duração desse período em três meses e abrem algumas exceções em relação à vestimenta e aos adornos com
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relação ao local de trabalho do iniciado; ele pode, por exemplo, não usar todos os fios-deconta, preservando apenas o mais simples que simbolize o seu orixá e não precisa usar estritamente as vestes brancas, desde que elas sejam claras, nunca escuras. Essas adaptações tiveram de ser feitas em função do tempo cada vez mais acelerado das sociedades atuais. Algumas características consideradas tradicionais dos rituais tiveram de ser adaptadas ou até suprimidas devido às exigências cotidianas de uma sociedade “moderna” e “globalizada”. O período do resguardo do iaô é um exemplo dessa adaptação; outros são as incisões feitas na pele dos iniciados e as curas, que também apontam para uma “tradição adaptada”. As curas, que costumavam ser grandes em tamanho e espessura, sofreram redução, tornando-se de mais difícil percepção. Há permanente multiplicidade presente no discurso sobre a tradição, que aponta para sua dinâmica. A tradição enquanto algo puro, verdadeiro, se revela na prática ritual como algo permanentemente construído e negociado dentro da lógica interna do grupo e da articulação dos elementos que o compõem. E, nesse sentido, concordamos com Stuart Hall19 (2003) quando observa que: “Isso nos deve fazer pensar novamente sobre aquele
19 Hall, 2003, p.239.
termo traiçoeiro da cultura popular: a “tradição”. A tradição é um elemento vital da cultura, mas ela tem pouco a ver com a mera persistência de velhas formas. Está muito mais relacionada às formas de associação e articulação dos elementos.” O hibridismo acabou por se configurar como meio de sobrevivência desse sistema religioso, presente desde sua formação histórica. Poderíamos indicar o sincretismo como forma híbrida de sobrevivência,20 que se aplica também ao candomblé.
20 Canevacci, 2001.
Na senzala, os escravos costumavam identificar seus orixás com os santos católicos para que pudessem professar suas crenças sem que os senhores se dessem conta. Os elementos usados tanto por católicos como pelos rituais afro-brasileiros eram os mesmo em sua forma – as imagens dos santos. No entanto, a maneira como cada um deles usava estas imagens e os significados a elas atribuídos diferenciava-os não só como grupo religioso, mas como grupo cultural. Os santos católicos geraram nova possibilidade de sentidos e significados. Se a tradição não tem a ver com velhas formas estagnadas, articulando, combinando e recombinando elementos, podemos dizer que ela é sempre a atuação de forças que estabelecem o que é ou não é tradicional. A tradição está sempre em relação, sua característica é a dinâmica, é poder se colocar em disputa. E disputando quem é mais tradicional, os terreiros de candomblé adquirem seu poder enquanto instituições religiosas. Deleuze21 sugere que se as relações de poder implicam as relações de saber, estas, em compensação, supõem aquelas. A disputa pela tradição é o que rege a disputa pelo poder e vice-versa. Nesse jogo de força, nessa tensão se situa a tradição – antes fruto de uma negociação feita pelo próprio grupo que a legitima que algo estável.
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21 Deleuze, 2005.
E quando falamos em força estamos falando de maneira plural, o que significa que sua característica principal é estar em relação com outras forças. De forma que toda força já é uma relação, em que “a força afetada não deixa de ser também uma capacidade de 22 Id., ibid., p.78.
resistência”.22 Esss forças estão presentes na estética ritual do candomblé. São elas as responsáveis pelo acréscimo e supressão de elementos visuais que compõem os processos ritualísticos. O ritual público do Xirê as afirma ou reafirma, pois nele estão presentes aqueles que legitimam tanto os rituais como os terreiros, a comunidade religiosa e seu entorno. São eles que julgam se um ritual está ou não odara. E essa legitimação exerce enorme influência sobre aquilo que é ou não tradicional, ou seja, quanto mais odara estiver um candomblé, mais tradicional e, com isso, mais poderosa é a casa que o oferece. Por outro lado, esses elementos que compõem a “estética candomblecista” se atrelam a um mercado de consumo religioso, em que o preço material está pautado no preço simbólico, fundamentado na tradição. Os elementos materiais usados para compor a estética do Xirê fazem parte de todo um sistema econômico que fabrica e revende por intermédio das casas de artigos religiosos, popularmente chamadas casas de macumba. A relação entre o valor simbólico e o valor econômico, presente no consumo dos elementos visuais do Xirê, se apresenta também nas vestimentas usadas pelos mais novos e pelos mais velhos. Conforme o praticante evolui em seus processos iniciáticos, evolui também a manifestação de suas divindades, e ele adquire o direito de utilizar bens de maior valor econômico, que por sua vez guardam um maior valor simbólico.
23 Canclini, p.59.
Os rituais, aponta Canclini,23 servem para manter dentro do grupo a coesão dos significados, que são selecionados e fixados graças a acordo coletivo. Os bens usados nesses rituais servem para estabelecer esses sentidos e quanto mais “dispendiosos” eles forem, maiores serão o potencial simbólico-afetivo e a eficácia do próprio ritual. “Os rituais eficazes são os que utilizam objetos materiais para estabelecer o sentido e as práticas que os preservam. Quanto mais custosos sejam esses bens, mais forte será o investimento afetivo e a ritualização que fixa os significados a eles associados”. A identidade dos papéis religiosos revelada pelo consumo desses elementos estéticos está associada à maneira como esses indivíduos criam sentidos e significados com base na escolha desses elementos. E esse consumo, por sua vez, revela a maneira como o grupo negocia coletivamente os valores desses bens. O valor mercantil desses objetos é fruto das interações socioculturais em que são utilizados e que determinam quem pode ou não ter
24 Id., ibid., p.56.
acesso a eles. E, nesse sentido, voltamos a Canclini:24 Mas se os membros de uma sociedade não compartilhassem os sentidos dos bens, se estes só fossem compreensíveis à elite
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ou à maioria que os utiliza, não serviriam como instrumentos de diferenciação. Um carro importado ou computador com novas funções distinguem os seus poucos proprietários na medida que quem não pode possuí-los conhece o seu significado. A enorme variedade de cores e formas que compõem as vestes de cada orixá, segundo suas qualidades e o gosto pessoal do filho de santo, revela a capacidade que o significado tem de ser negociado e assumir diferentes visibilidades. Embora, possa deslizar, o significado flui sempre dentro da órbita do discurso da tradição, ainda que ela se mantenha em constante movimento. O tradicional, assim como o popular, foi, durante muito tempo, identificado com o rural, com o imutável, como aquilo que estaria à margem dos processos de modernidade e tecnologia do espaço geral da sociedade, ou seja, aquilo que resistiria bravamente ao processo de dominação exercido pela indústria cultural,25 marcada pelo consumo e pela alienação. No entanto, o que se percebe é que as culturas tradicionais ou populares se mantêm em constante processo de reinvenção de suas próprias tradições, que passam por negociações com a cultura dominante. Essas negociações estão diretamente vinculadas aos usos e consumo não só de bens materiais, mas de ideias e conceitos referentes a outras classes ou grupos sociais (como a redução do tempo do período de resguardo do iaô). E esse consumo não é fruto apenas de uma imposição; passa por um processo de escolha, incorporação e resistência voltado para os elementos materiais que comporão padrões estéticos nos rituais. Se nos propusemos a pensar a produção de sentido das imagens que fazem parte do sistema de comunicação do candomblé, temos de levar em consideração sua dinâmica cotidiana, a influência que recebe do meio em que se insere e as articulações que com ele estabelece. E, dessa maneira, buscar o entendimento de sua complexidade sem a enclausurar sob o peso de uma tradição estaticamente preservada que isolaria a prática cultural dessa religião numa tradição ingenuamente imutável. O consumo ou uso de alguns elementos é condicionado por esse acordo coletivo que revela o que é ou não tradicional, ou, em outras palavras, o que pode ou não pode se acrescentado ou escolhido para que o ritual se legitime. O sentido é partilhado na forma. A imagem do sagrado é sentida e confere sentido vestindo-se, movendo-se, colorindo-se, miscigenando-se, para estar sempre odara.
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25 Canclini, 1997.
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Kate Lane Costa de Paiva (Rio de Janeiro, Brasil) é graduada (2005) em educação artística pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, onde se tornou mestre (2009) com a dissertação O conhecimento ‘encorpado’: aspectos da dança dos orixás no candomblé, e é professora substituta do Departamento de Ensino de Arte e Cultura popular do Instituto de Artes; em 2007 integrou a equipe de pesquisa do Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular do Iphan e atuou como professora da rede pública municipal de Maricá, RJ. / katepaivarj@yahoo.com.br
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HÉLIO ÍGNEO
ensaio de Suzana Queiroga sábado, 17 de outubro de 2009, 14h35min Trecho da mensagem enviada por celular para vários amigos. “Hoje vi a cena mais triste do mundo, a segunda morte de Hélio, a maior das mortes, o seu corpo incinerado, sua epiderme derretida. Muita dor, muita. Um ente mais que querido re-morrendo. Dor imensa. Fiz fotos que ficaram dolorosamente lindas, até assim vibra a energia de Hélio, suas cores estavam lá, atravessando a cena negra. Dor muita dor.” SQ Agradecimentos A Cesinha Oiticica, que permitiu minha entrada e o registro A Marcelo Cattan e Cristina de Pádula Edição das fotos de Mario Grisolli
Arte e vida: bordas dissolvidas* Valzeli Sampaio
Qual, afinal, o lugar da arte contemporânea com base em aproximações com o mundo da vida? Já virou clichê, definir as poéticas contemporâneas em função da superação da autonomia modernista e da consequente permeabilidade com o real. Olhando com atenção, podemos ver que não é somente a arte que se aproxima da vida. Também a realidade se aproxima da arte – o que não deixa de ser uma provocação persistente a nossos critérios de interpretação, juízo e discernibilidade, sendo, portanto, a arte definida nos meandros dessa aproximação. Arte, vida, interface. Como vemos a arte? Infelizmente ainda a olhamos com óculos em* Artigo recebido em agosto de 2009 e aceito para publicação em agosto de 2009.
prestados de alguns séculos atrás. Essa miopia dificulta perceber a mutação que se engendra há pelo menos desde as vanguardas do século XX. Os artistas do grupo Fluxus nos avisam: à medida que mudamos, tudo ao nosso redor se modifica. Para Nam June Paik, um dos precursores da videoarte e membro do Fluxus, os artistas não definem suas obras de arte; a arte é que deve encontrar suas próprias definições. Fato é que a produção artística contemporânea vem refletindo a tensão entre arte e vida, com representações que enfocam as relações entre os espaços, os fluxos existenciais, a presença do homem, o devir do encontro e desencontro. Os artistas apostam naquilo que é próprio de nossa sociedade, a pluralidade, a interculturalidade. O que, entretanto é próprio desse grupo de pessoas? O que distingue a arte, numa sociedade de mercados globalizados, do fim das fronteiras no ciberespaço, da presença das novas tecnologias em todos os setores da vida? A produção artística contemporânea discute ética, sociologia, antropologia, política, uma de suas tantas inscrições. A desmaterialização da obra, o efêmero, a arte como processo que decorre de uma ideia, o hibridismo, a supressão dos limites entre público e privado são traços da produção da arte contemporânea, que tem entre suas características também a apropriação do corpo humano, último reduto unitário do indivíduo, associado como lugar de inscrição da arte de agora. Assim como o conceito de lugar se volatiza como mercúrio no ar, sem
Ana Mendieta. Sem título (Silueta Series, Iowa), Museum of Fine Arts, Boston, 1977.
obrigações, a arte representa o mundo em estilhaços, o homem dividido, fragmentado. E, incorpora os padrões do mundo contemporâneo.
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Existem inúmeros fatores de complexidade para que se estabeleçam a empatia e a compreensão dessa produção. O mundo globalizado ao contrário do que propaga é exigente, assim como a arte, porque trabalha com hipóteses e espaços muito reais da vida humana. E exige disponibilidade, acessibilidade, portabilidade, referências. Qual, afinal, é o lugar da arte contemporânea com base em aproximações com o mundo da vida? Já virou clichê definir as poéticas contemporâneas em função da superação da autonomia modernista e da consequente permeabilidade com o real. Olhando com atenção, podemos ver que não é somente a arte que se aproxima da vida. Também a realidade se aproxima da arte – o que não deixa de ser uma provocação persistente a nossos critérios de interpretação, juízo e discernibilidade, sendo, portanto, a arte definida nos meandros dessa aproximação. Importante enfatizar que não se trata de entender tais ações como se fosse a mera atualização dos projetos de vanguarda, o que seria entender as coisas pela metade. São contudo inconfundíveis as afinidades entre os propósitos de tais influências e as estratégias das vanguardas históricas das décadas de 1910 e 1920 ou das neovanguardas dos anos 60 e 70. Percebe-se uma espécie de crença de que a vanguarda possui uma história que se ampara na justaposição de arte e realidade, mas justaposição que vai da arte à realidade. Pois nas vanguardas, entendemos facilmente, é a arte que pretende dilatarse, apropriar-se da vida, do museu e dos espaços da cultura, e não o inverso. É a arte, enfim, que se apresenta como um padrão de intervenção sobre o mundo, mas um paradigma entra em crise no exato momento em que é plenamente proferido. Refletindo sobre essas questões, podemos considerar que, para a função da arte, em nossa presente condição, devemos distinguir que seus limites vão-se diluindo à medida que múltiplas interações com outras formas de representações culturais são conquistadas. Isso indica que o processo criativo levado a cabo pelo artista se implementa quando ele desloca seu espaço representacional e passa a invadir e a usar em suas propostas os próprios referentes de outras formas de representação, tendo como suporte o vídeo, a performance, a internet, o celular, a publicidade numa intercessão da arte com a vida. Essas relações revelam-se na produção da arte eletrônica e novas mídias, e na performance.1 Para a representação artística atual, novas estratégias e táticas criativas permitem não somente o acesso físico e intelectual à obra de arte, mas sobretudo que o processo criativo seja fruto de um novo jogo representacional. O artista, ao atuar como facilitador estabelece e cria vínculos com outras atividades humanas: política, ciência, religião, educação, etc. Joseph Beuys2 mostrou que a arte pode estar presente em todas as atividades e, para que isso ocorra, é tarefa do artista atuar em níveis tanto operacionais como de decisão. Nesse novo estado, o processo criativo deixa de ser o fim e assume nova qualidade, a de ser um meio para oferecer o cruzamento de diferentes experiências de vida.
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1 “a performance passou a ser aceita como de expressão independente a partir da década de 1970 (...) sempre que determinada escola parecia ter chegado a um impasse, os artistas se voltavam para a performance como um meio de demolir categorias e apontar para novas direções.” (Goldenberg, R. A arte da performance: do futurismo ao presente. São Paulo: Martins Fontes. 2006). 2 Em 1962, Beuys conheceu o movimento Fluxus, e as performances e trabalhos multidisciplinares do grupo – que reuniam artes visuais, música e literatura – inspiraram-no a seguir nova direção, também voltada para a performance. Associou-se ao Fluxus e se tornou seu membro mais significativo e famoso. Sua obra tornou-se cada vez mais motivada pela crença de que a arte deve desempenhar papel ativo na sociedade.
Estamos imersos num processo de mutação e expansão; por exemplo, o significado de representar dilata sua forma de operar deixando obsoletos antigos conceitos de representação. A autoridade do artista não se limita mais à criação de obras de arte reguladas segundo lógicas de representação consagradas – arte atual, por exemplo, revela interstícios entre a mídia, a publicidade, o artesanato e as ciências, o cotidiano, ultrapassando, em alguns casos, sua qualidade estética. A arte atual não se confina mais no espaço fechado do museu, da galeria e das instituições; o fazer artístico se volta para temas em que a crítica da representação na arte dá prosseguimento aos desdobramentos que revelem o reconhecimento de seu campo expandido. Em decorrência, torna-se um híbrido conceitual e vivencial apto a interatuar em diferentes contextos econômicos, sociais e culturais. Entornando seus limites e invadindo a cultura de forma dilatada, a obra de arte a partir dos anos 90 se afirma como ato político. “Uma das preocupações da minha geração era produzir trabalhos que de alguma maneira o espectador pudesse, em algumas situações até matematicamente, reconstruir. Ou 3 Meireles, C. (3 de julho de 2006). Atiçando a brasa. Entrevista. Disponível em Canal Contemporâneo: http://www.canalcontemporaneo.art.br/brasa/archives/000795.html Acesso em 31 de julho de 2009.
seja, que eles não repousassem puramente em uma patologia do artista”.3 A obra Inserções em circuitos ideológicos faz-se na rede de informação. Garrafas de coca-cola são retiradas e recolocadas no circuito comercial com inscrições em serigrafia de frases como “Yankees go home”, cédulas de um cruzeiro são carimbadas com a frase “Quem matou Herzog?”. São de operações em rede dentro de rede, apropriando-se da indústria, da publicidade, camuflando-se no espaço da vida, ressignificando e dando novos usos a seus objetos, ampliando as possibilidades de intervenção artística, como um vírus dentro do sistema da vida.
4 Rosenberg, H. Objeto ansioso. São Paulo: Cosac & Naify. 2004.
Para o crítico de arte Harold Rosenberg,4 a arte produzida depois das vanguardas “deixou de ser, como antes, uma atividade marcada pela rebeldia, pelo desespero ou pela autoindulgência à margem da sociedade”. Ele defende que a “arte ansiosa” “tem parentesco com o existencialismo e com o teatro do absurdo”, isso não é mais uma realidade
5 Angst, em alemão, angústia, medo.
na arte. “A angst5 pode estar morta no espírito da maioria dos artistas de hoje, mas a ansiedade da arte não tem nada haver com a intensidade dos problemas que tenham com carreira, aluguel, publicidade, namoradas ou namorados”. A clássica visão de representação que tinha o produtor, a obra e a recepção como entes separados e cumprindo cada um sua função estética, é substituída na arte contemporânea pela integração complexa entre essas partes, por meio da qual podem ser suscitadas estratégias criativas em que o jogo representacional reinventa suas regras. No artigo O novo como valor, escrito em 1964, o crítico modernista Rosenberg revelanos uma das características da arte daquele período, anunciando-nos a realidade da arte
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atual: “antigamente, um novo estilo de arte ou o trabalho de um artista desconhecido só adquiriam notoriedade depois de passarem pelo crivo da crítica e da apreciação estética. Hoje o processo muitas vezes funciona às avessas: primeiro se chama a atenção do público, depois vem a discussão e a avaliação crítica.” O afrouxamento das categorias e o desmantelamento das fronteiras interdisciplinares levaram a arte a assumir muitas formas e nomes diferentes: conceitual, arte povera, processo, antiforma, land, ambiental, body, performance, minimalismo e política. Esses e outros têm raízes no minimalismo e nas várias ramificações da pop e do novo realismo. E mais recentemente convivemos com as intervenções, ações na interface entre arte e política, os coletivos de artistas. As práticas artísticas contemporâneas vêm rompendo as fronteiras históricas de movimentos e do próprio entendimento da história da arte como uma linha histórica evolutiva. O ambiente atual revela a simultaneidade de tempos-espaços, em que as imagens técnicas instituem nova confusão, e altera a imagem da história da arte. O fim da história da arte não significa que a arte e a ciência da arte tenham alcançado o seu fim, mas registra o fato de que na arte, assim como no pensamento da história da arte, delineia-se o fim de uma tradição que desde a modernidade se tornava o cânone na forma que nos foi confiada. A tese afirmava que o modelo de uma história da arte com lógica interna, que descrevia a partir do estilo da época e de suas transformações, não funciona mais: quanto mais se desintegrava a unidade interna de uma história da arte autonomamente compreendida, tanto mais ela se dissolvia em todo campo da cultura e da sociedade em que pudesse ser incluída.6 Segundo Cauquelin,7 “o que encontramos atualmente no domínio da arte seria muito mais uma mistura de diversos elementos; os valores da arte moderna e os da arte que nós chamamos de contemporânea, sem entrarem em conflito aberto, estão lado a lado, roçam suas fórmulas, constituindo, então, dispositivos complexos, instáveis, maleáveis, sempre em transformação”. A generalização da operação ready made realizada pela arte pop, mostrou que qualquer coisa pode ser transformada em arte, que ela pode acontecer em qualquer lugar e através de qualquer meio. Conceitos como hibridização e contaminação evidenciam que não existem mais limites rígidos entre gêneros artísticos, como também não existem mais distinções nítidas entre arte e vida, entre arte e filosofia (da arte) como se vê na arte conceitual ou no aspecto conceitual de quase toda arte atual. Outra questão importante é a da ampliação do espaço da arte, que tornou possível a
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6 Belting, H. O fim da história da arte. São Paulo: Cosac & Naify. 2006. 7 Cauquelin, A. Arte contemporânea – uma introdução. São Paulo: Martins Fontes. 2005.
inclusão do espectador na obra e que pode ser percebida na proliferação de conceitos espaciais na teoria da arte atual: site specific, intervenção urbana, instalação, ambientação, environnement, arte pública. Esses e outros conceitos serão apresentados depois dos movimentos que marcaram a década de 1960 (Pop, Minimalismo, Arte Conceitual, Fluxus e Nova Objetividade) e ecoam as propostas dadaístas do começo de século ainda com ressonância nas práticas artísticas atuais. Alguns desses artistas revelam a força e a capacidade criadora na adesão e sondagem do próprio corpo e do próprio espírito. Seu fazer artístico é intimamente congênito a seu ser, como Ana Mendieta, que nasceu em Havana em 1948 e morreu em Nova York em 1985. Aos 12 anos, passou a viver nos Estados Unidos em orfanatos e instituições junto com a 8 http://www.uiowa.edu/
irmã mais velha. Foi aluna de Hans Breder, na Universidade de Iowa,8 num dos primeiros cursos interdisciplinares daquela instituição, entrando em contato com a vanguarda artística do início dos anos 70 e com o movimento feminista. Mendieta começou a fazer performances e earth-body works em 1972. Entre os trabalhos mais comentados está a série Silueta, feita no México e em Iowa, de 1973 a 1980. São mais de 100 obras em que Mendieta faz a silhueta de seu corpo aparecer em meio à natureza: no chão gramado, de terra batida ou molhada, na areia, num solo rochoso, em meio a vegetação rasteira ou na água. A artista também utilizava o fogo, demarcando os limites de seu corpo com pólvora e acendendo-a. Muitos de seus filmes mostram as silhuetas sendo queimadas e as cinzas que sobram. Os temas invocados em seus trabalhos são morte e vida, em seus aspectos naturais e culturais. Alguns de seus earth-body works e de suas performances foram gravados e fotografados. Propagando com seu corpo cenas e símbolos femininos incorporados na paisagem, seus trabalhos marcaram a história da arte recente. Desde 1970 minha manifestação artística consiste num diálogo com o natural. É o meio que achei de tornar concretas as minhas raízes emocionais com a minha terra e também de conceitualizar minha cultura. Quando meus pais me enviaram para fora de Cuba em 1961, eu me senti arrancada do seio da minha pátria. Minha arte celebra a interconexão do mundo humano e material no plano da corporeidade, o renascer de anseios antiquíssimos como a promessa de um futuro melhor. A obra efetuada nas Escaleras de Jaruco tem sido de um grande valor para mim, porque foi minha primeira oportunidade de trabalhar em solo cubano... Usando raízes me foi possível trabalhar cinco corações, que representam as cinco subdivisões das culturas indígenas cubanas. Estes cinco corações devem ser colocados sobre a
9 Mendieta apud Saccá, L. Corpo como experimento. Nossa América – revista do Memorial da América Latina, 26-34. 2006.
terra vermelha, uma terra que soube absorver tanto sangue derramado antes de chegar à terra de liberdade que é hoje.9
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Para Mendieta a apropriação da arte e da vida é uma questão incondicional, sendo, portando, produção de grande importância para compreendermos as relações de arte e vida na arte atual. Na análise da curadora Lucilla Saccá,10
10 Saccá. Op. cit.
nunca um gesto foi tão sincero, tendo estimulado a artista a obter uma expressão absoluta de sua fisionomia física e psíquica. A sua vontade não é aquela de apropriar-se, através da ação, da dimensão do espaço, e impor seu estilo, de acordo com um cânon bem conhecido de tanto body art de raiz norte-americana. Este nem mesmo chegou a restringir aquele contato dionisíaco e envolvente, extensivo também aos participantes, algo presente na ação performativa de Lygia Clark. Ao invés, seu gesto é vivido na solidão, uma característica que sempre a acompanhou. Em solo brasileiro Lygia Clark, Lygia Pape e Hélio Oiticica desviaram sua produção de uma investigação mais formal e espacial, de teor neoconcreto, para outra, mais compartilhada, que propunha a aproximação da arte à vida, e tramaram as conexões inaugurais de nossa contemporaneidade com base em nossa experiência modernista. Nesse sentido, o crítico de arte Fernando Cocchiarale11 observa: Ainda que consideremos a forte especificidade, tanto de repertório quanto de método, da produção visual brasileira, podemos observar que nos últimos 45 anos ela configura uma rede inteligível de obras e de ações contemporâneas que poderiam ser inscritas e, em alguns casos já se inscrevem, no debate internacional. Por que essa sincronia foi ocorrer no momento exato da passagem, nos Estados Unidos e na Europa, da tradição modernista (centrada na pesquisa e invenção formais) para a contemporaneidade (retorno ao ícone e a narrativa) que introduz pela primeira vez no campo da arte a temporalidade como fluxo ou processo (experiência, apropriação, e com elas, aproximação entre arte e vida)? Observando o processo criativo levado a cabo pelo artista contemporâneo, seu espaço representacional passando a invadir e a usar em suas propostas, os próprios referentes de outras formas de representação, tendo como suporte o vídeo, a performance, promovendo a intercessão da arte com a vida, como nos trabalhos de Letícia Parente, que surgem ressignificando a relação entre obra e fruidor. Em seus vídeos, Parente realiza performances para a câmera, que registra gestos banais, cotidianos (costurar, passar a ferro, guardar a roupa, se maquilar, etc.), convertendo essas ações em processos de subjetivação, transformando a câmera num espelho da
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11 Também um dos precursores da videoarte brasileira. (Cocchiarale, F. A (outra) arte contemporânea brasileira: intervenções urbanas e micropoliticas. 2005. Disponível em RIZOMA.NET: http://www.rizoma.net/interna. php?id=222&secao=artefato. Acesso em 31 de agosto de 2009.
condição feminina, da opressão política, etc. Nesses trabalhos, vemos a artista, em sua casa, numa série ações rotineiras, preparações corriqueiras, numa relação de reificação desses gestos, extraindo das repetições para a câmera o intolerável e o irreversível que habita a vida.
12 Precursora da videoarte brasileira.
Os trabalhos de Letícia Parente12 surgem tornando complexa a relação com o espectador. Suas performances não existiram para uma plateia, mas tão somente para uma câmera que a registrava. (...) É a sede o registro, como uma exigência de apropriar-se do presente e fazê-lo variar como um pensamento impróprio do corpo. É essa exigência que afeta a câmera nos trabalhos de Letícia e desfaz o propósito de registrar aquilo que ela visa. O interessa da câmera é constituir a imagem como um traço de ação, seu sentido como cicatriz, e não uma significação. O objeto visado, o corpo do artista, faz alguns movimentos cotidianos, e a ação é dramatizada. O objetivo não é narrar e nem propor um discurso sobre o corpo ou sobre a obra, mas fazer brotar
13 Costa, L. C. Letícia Parente: a videoarte e a mobilização do corpo. In: Soares, Rosana de Lima; Machado Jr., Rubens; Araújo, Luciano Correa de. Estudos de Cinema Socine Viii. São Paulo: AnaBlume/Fapesp. 2006.
um pensamento corpo.13 O artista nessa situação supera limites deterministas passando a ter sua produção desvinculada de sistemas de representação dados a priori, ou seja, em seu gesto criativo o artista substitui a representação pela produção de presença. O trabalho de arte já não tem mais a ver com a representação. Esse modo de trabalho que chamamos de artístico deve a partir de agora consagrar-se a um produzir semelhante – na esfera do acontecimento, da presença: não mais na esfera da representação.
Valzeli Sampaio (UFPA, Belém, Brasil) é doutora em comunicação e semiótica. Professora do mestrado em artes e da Faculdade de Artes Visuais (ICA/UFPA). Artista, produtora e curadora independente. Tem experiência na área de produção, pesquisa e crítica em artes, com ênfase em arte contemporânea, design e novas mídias, atuando principalmente nos temas: cultura visual, processo de criação, semiótica, novas mídias e arte contemporânea. / valsampaio@uol.com.br
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Kerkhof. Ron Athey: It’s Scripted, 1997.
Segurança da vida, uma questão artística?* Dolores Galindo
A partir da segunda metade do século XX, museus, galerias e artistas passaram a se deparar com regulamentações, voltadas para a garantia da segurança da vida, criadas de acordo com problemas e princípios característicos do universo tecnocientífico. Considerando duas controvérsias em torno dos trabalhos dos artistas Ron Athey e Eduardo Kac, sugiro a necessidade de analisar para além dos momentos espisódicos de controvérsias, as questões colocadas pela arte à racionalidade que orienta a bioética e a biossegurança. Arte, corpo, segurança da vida. Desde a segunda metade do século XX, museus e galerias vêm enfren* Artigo recebido em agosto de 2009 e aceito para publicação em agosto de 2009.
tando problemáticas relacionadas à segurança da vida que até então se restringiam ao universo tecnocientífico e ao mercado tecnológico. Em trabalho anterior, postulamos que o ingresso da arte nos dispositivos de segurança da vida deu-se quando sua relação com a ciência se deslocou da função de representação para a intervenção direta sobre corpos e
1 Galindo, 2006.
materiais biológicos regulados e de circulação vinculada a usos médicos e jurídicos.1 Com o ingresso da arte na intervenção sobre os corpos e sobre matérias biológicas cada vez mais reguladas por aparatos de segurança, alguns termos, temas e problemas estranhos aos círculos de conversação artísticos tornam-se constantes. Os debates travados, apesar de sua relevância, permanecem circunscritos às situações nas quais são geradas controvérsias entre arte e comissões de bioética e de biossegurança. Para efeito deste texto, consideramos a bioética e a biossegurança dispositivos pertencentes à “justiça experimental”, isto é, ao conjunto de instituições, procedimentos e normas que regula a experimentação com seres humanos, animais e matérias biológicas de menor
2 Virilio, 2003.
escala, como, por exemplo, moléculas e genes.2 A biossegurança, certamente uma das modalidades mais recentes dos dispositivos de segurança da vida, diz respeito ao controle de confinamento, de acessos, de quantidade de material, de vedação de materiais ou tecnologias biológicas. Trata-se de aparato criado para controlar os riscos advindos ou que possam advir do laboratório tendo em vista a proteção dos trabalhadores e do ambiente externo. A bioética, por sua vez, surge da necessidade de pensar eticamente os excessos da experimentação impulsionada pelos efeitos dos experimentos nazistas e facistas que ganharam
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visibilidade finda a Segunda Guerra Mundial. Sem dúvida, a ética é questão axial à construção dos sabres, vide remontarem os textos clássicos ao período anterior à disciplinarização e separação dos campos filosófico, científico e artístico. Como aparato de justiça experimental, porém, a bioética surgiu na modernidade e da modernidade inscrita nas preocupações em torno do pós-guerra. A problematização da vida na perspectiva da biossegurança e da bioética ganhou visibilidade quando os riscos biológicos transcenderam os limites da segurança dos trabalhadores dos laboratórios e se converteram em problemas de segurança coletiva. Não possuindo tradição de organização no que concerne aos procedimentos de biossegurança e de bioética, na arte dá-se frequentemente a extensão das normas aplicáveis aos estabelecimentos científicos e de saúde. Procedimentos já consolidados no contexto tecnocientífico são resgatados por artistas e organizadores de mostras de arte. Todavia, o processo de tradução dos princípios normativos que regulam a tecnociência para o contexto artístico vem gerando uma série de controvérsias que evidenciam o obscurecimento dos questionamentos colocados pela arte à lógica securitária. Os desencontros de arte e segurança da vida tornam-se visíveis, sobretudo nas situações em que há questionamento da legitimidade da realização de práticas artísticas que utilizam corpos ou materiais biológicos como foco de experimentação. Neste artigo, argumentamos acerca da necessidade de que a tematização da segurança da vida seja inserida no debate artístico para além das situações que geram controvérsias, bem como da relevância do envolvimento de artistas nas comissões de bioética e biossegurança. Postulamos que há irredutibilidade entre os regimes normativos que orientam a arte e os aparatos classicamente destinados à segurança da vida, cujas raízes remontam aos diferentes temas e problemas que orientaram os dois campos. Com isso, na mesma medida em que a segurança da vida se converte em problema para a arte, esta última, por sua vez, deve converter-se, também, em tematização necessária para repensar os princípios que orientam os referidos aparatos. Para tal, num primeiro momento retomamos alguns elementos que marcam a origem da biossegurança e bioética, contrastando-os com os experimentos artísticos que envolvem intervenções sobre corpos levados a cabo na mesma época. A escolha da arte que explora o corpo como matéria de criação se deu por ser emblemática da diferença que marca arte e ciência na tematização dos limites da experimentação. Enquanto a arte busca ruptura e radicalização na intervenção sobre os corpos, a ciência busca limitar, controlar e regular essa intervenção. Se alguns artistas buscam o contato com o abjeto, a ciência busca a assepsia. Num segundo momento, discutimos duas controvérsias em torno de trabalhos artísticos que tomam o corpo como suporte. Selecionamos a primeira em torno do uso do sangue e a se-
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gunda tendo como fulcro o questionamento da autonomia do artista em garantir a segurança de um procedimento realizado em seu próprio corpo. A problematização sobre bioética em arte vem sendo objeto de reflexão, principalmente, depois de intervenções que utiliza3 Ver Gigliotti, 2005.
ram tecnologias genéticas.3 No nosso caso, tomamos como exemplo experimentos artísticos que envolvem intervenções nos corpos sem mediação de aparatos laboratoriais complexos, contexto mais próximo das controvérsias vividas nacionalmente, ainda pouco analisadas. Nas considerações finais, retomamos as controvérsias abordadas à luz das relações entre arte e ciência, argumentando que um dos efeitos dos atravessamentos da segurança da vida na experimentação corporal deve ser a incorporação, pelos aparatos de segurança da vida, da estética como dimensão legítima das experimentações corporais. Vanguardas, o corpo como experimento As vanguardas artísticas do século XX desfiguraram a imagem harmoniosa do corpo humano que levara pelo menos quatro séculos para ser construída. Desconstruíram o corpo de proporções perfeitas da arte clássica. A arte desse período questionou, com violência, a estética dos corpos baseada na harmonia da forma humana, vindo, aliás, a ser nomeada
4 Baillette, 1999.
como arte contra o corpo.4 Durante os anos 30, no plano pictórico, os surrealistas fragmentaram os corpos humanos de tal modo, que a imagem do acéfalo foi considerada a síntese de uma época.5 Deu-se um movimento por meio do qual o corpo em pedaços, que no século XIX fora pintado para os atlas anatômicos, entrou definitivamente para o universo pictórico da arte, embora até então se houvesse mantido incólume à fragmentação que lhe fora imposta na ciência anatômica. Artistas como, por exemplo, Francis Bacon (1909-1992), mostraram com clareza o esfacelamento do corpo nas artes visuais. Cabe mencionar também os trabalhos do artista alemão Hans Bellmer, aclamado pelo surrealismo francês, que, pela heterodoxa combinação de fragmentos corporais, produziu anatomias monstruosas − por exemplo, a série Poupée, variations sur le montage d’une mineure articulée, publicada em duas páginas do número 6, da revista Minotaure (1934-35). Nas décadas de 1960 e 1970, alguns experimentos artísticos asumiram a forma de luta contra o corpo, na qual a destruição foi reinventada como arte, extrapolando as práticas
5 Baillette. Op. Cit.
de segurança da vida. Como afirma Baillette,5 os artistas refratários à imagem autorizada dos corpos, no intento de suplantá-la, trouxeram à tona corpos marginalizados, depreciados e escamoteados. Buscou-se ativamente o escândalo por meio da evidência conferida aos orifícios, fluidos abjetos e à dor. Deve-se observar que se tratava de dor controlada ao limite em que poderia ser vivenciada como performance.
6 Villaça, 2002.
O espetáculo da arte contra o corpo questiona os limites do humano pelo abandono da
7 Seligmann-Silva, 2003.
arte como mimese e do uso da deformação.6 De acordo com Seligmann-Silva,7 essa arte só
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se tornou plenamente possível depois da Segunda Guerra Mundial e seu “ritual máximo da violência”. Até o século XX, a arte vinha, sobretudo, tendo como suporte a matéria inanimada.8
8 Gessert, 1993.
A problematização do corpo na arte desse período foi concomitante à intensificação das técnicas científicas, que visavam à garantia da vida e a seu prolongamento, almejando ultrapassar a própria morte.9 Ainda que pareçam opostas − no sentido de que a arte pode
9 Sfez, 1996.
implicar agressão ao corpo, e a medicina insiste na preservação da integridade física −, ambas encontram no recrudescimento da plasticidade do corpo sua condição de existência. Arte e ciência participam da amplificação das possibilidades de ação sobre o corpo, que perdeu grande parte de sua opacidade. Normalizando as possibilidades de contágio: a medicalização do corpo Ao passo que na história da medicina o cruzamento entre corpo e segurança da vida data, pelo menos, do século XIV, com as ações sobre o corpo do médico tendo em vista sua proteção contra a peste, na arte esse processo só ganhou expressividade no século XX. Quando comparada à medicina, a problematização das práticas artísticas sob a perspectiva da garantia da segurança da vida é tardia. Desde a virada microbiana do século XVIII, manusear o corpo e suas partes exige o domínio de técnicas para controle dos microrganismos.10 Gradativamente, intervir sobre o
10 Rosen, 1994.
corpo de alguém tornou-se atividade restrita à medicina, cujos profissionais deveriam ser capazes de seguir procedimentos de higiene, antissepsia e de atuar em situações de emergência. Inicialmente as disciplinas, como as tecnologias que incidem sobre o corpo, eram solicitadas para neutralizar perigos que residiam na confusão e agitação da população, atuando sobre as concentrações de indivíduos. Ao longo do século XVIII, as disciplinas foram estendidas ao corpo social como um todo, desenrolando-se aí dupla tendência: multiplicação das instituições disciplinares e disciplinarização dos aparatos de controle já existentes.11
11 Foucault, 1995.
Normalizar o comportamento dos médicos nos hospitais implicou gerir a conduta daqueles responsáveis pela saúde da população e acostumados a administrar o comportamento do outro. Os pobres e sua confusão no modo de habitar, vestir e gerir seus dejetos eram, até então, os principais responsáveis pela propagação de doenças. Assim, houve intervalo de pelo menos um século entre a adoção dos procedimentos de controle da troca da roupa dos pacientes e aqueles destinados à limpeza da roupa usada pelo médico. Três ordens de preocupação se mesclaram na garantia da segurança da vida nos hospitais, relativas à garantia da saúde do médico, do doente e da população. Na peste está o grande modelo para compreensão do controle dos microrganismos nos hospitais. Foucault12
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12 Foucault, 2004.
elevou a peste do estatuto de doença para o de ferramenta de compreensão da sociedade. A peste implica exercício de controle das relações entre humanos e ameaças à saúde, buscando administrar os perigos de contaminação por meio de rotinas rigorosas e não apenas pela exclusão dos acometidos. Assim, a intervenção da arte deu-se sobre um corpo medicalizado e controlado por dispositivos responsáveis pela garantia da segurança da vida. Mediante controvérsias recentes é possível observar o processo inicial da problematização da arte como questão de interesse para a saúde. Enquanto projetos artísticos, por meio da experimentação do despedaçamento e da violência, buscavam romper com determinado ideal sobre o corpo, a medicina era indagada quanto aos abusos cometidos nas experimentações com seres humanos, vindo a dar origem ao campo da bioética. A experimentação sobre os corpos na arte e na ciência: contrastes no pós-guerra Sob o impacto da Segunda Guerra Mundial, enquanto na ciência se dava a discussão sobre os limites da experimentação com seres humanos, artistas, nomeados atualmente 13 Selligmann. Silva. Op. cit.
performers, mutilavam seus corpos. Segundo Seligmann-Silva,13 como já dito, a figura do performer só se tornou possível depois da Segunda Guerra Mundial – “ritual máximo de violência” –, que teria gerado as condições de possibilidade para o uso artístico da violência contra o próprio corpo como forma de expiação. Esses artistas continuaram a via aberta pela estética inspirada no marquês de Sade (século XIX) e o questionamento da figura humana conduzido pelas vanguardas artísticas, com destaque para o surrealismo. Se a ciência se deparava com a necessidade de limites aos excessos da experimentação com seres humanos, a arte se deparava com a necessidade de transpor os limites no uso do corpo que haviam sido traçados pela arte clássica e pela moral. A arte corporal dos anos 60 e 70 foi responsável pela estetização da violência contra o próprio corpo. Sem consideração da sua dimensão estética, tais performances e happenings seriam mons-
14 Jeudy, 2002.
truosos. Como adverte Jeudy,14 Quando as encenações monstruosas não entram na esfera institucional da arte, é a ameaça de destruição da sociedade que se faz sentir. Tratase de uma regra de sobrevivência das sociedades contemporâneas: a referência implícita ao corpo como objeto de arte não pode funcionar senão do único ponto de vista da idealização das relações estéticas para si e para os outros. Os experimentos artísticos, diferentemente dos científicos, não problematizaram a vida com base na lógica biopolítica de compensação entre riscos e benefícios à população. Assim, usar o termo experimento para referir trabalhos artísticos pode soar estranho; serve-nos, entretanto, para assinalar dois aspectos: 1) o caráter de tentativa sem conhe-
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cimento prévio dos resultados das ações; 2) as consequentes transformações na matéria. Segundo Pelbart,15 são “experimentos sem verdade”, ou seja, que não procuram compro-
15 Pelbart, 2003.
var ou negar hipóteses, nem chegar a fatos. A arte não busca o mesmo valor de verdade que a ciência; não está submetida ao mesmo regime de produção de verdade que tem na objetividade um de seus principais parâmetros. As ações iniciais visando à garantia da segurança da vida nos experimentos artísticos que não são apoiados pelo argumento biopolítico deram-se com base na saúde pública. Entende-se como campo da saúde pública aquele constituído, depois da medicina moderna do século XVIII, como polícia médica e medicina social, fundado na atenção à enfermidade entendida como fenômeno coletivo.16
16 Birman, 2005.
Acionistas vienenses, controvérsias precursoras Nos anos 60, os trabalhos dos acionistas vienenses despertaram críticas e foram classificados como sujos e imorais ou, ainda, criminosos. Não se colocavam em pauta, porém, questões concernentes à segurança da vida em relação aos artistas e às pessoas convidadas a participar das performances. A segurança, quando invocada, o foi no sentido de segurança pública, entrando em ação o poder de polícia e a pena de confinamento. Quando os fluidos corporais despertavam temor e ojeriza, não o faziam por medo ou ameaça de contaminação por doenças; geravam náusea.17
17 Villaça. Op. cit.
Em geral, as performances e happenings vinham acompanhados de discursos que declaravam, sob a forma de manifestos, as intenções do artista ou do grupo.18 O corpo era
18 Baillette. Op. cit.
agredido para buscar traçar outro corpo sobre aquele que estava sendo mutilado, cortado ou submetido a posturas incomuns. Assim como o anatomista trabalha na pele do cadáver para construir sobre ele um corpo sem sinais de putrefação, o artista trabalhava seu próprio corpo para lhe sobrepor uma forma aberta à experimentação e livre das coerções médicas e morais. Da mesma maneira que na anatomia, ao longo dos séculos XVI a XVIII, se tornou visível um espetáculo do corpo morto, no século XX, ganhou visibilidade um espetáculo da arte contra o corpo, em espaços públicos e galerias. Gestos aproximavam o corpo do artista da animalidade ou da confusão com os objetos. Dava-se uma subversão dos sentidos do humano no contexto dos experimentos sem verdade que, como lembra Pelbart,19 não buscam confirmar ou refutar hipóteses. Nesse processo, o corpo foi rein-
19 Pelbart. Op. cit.
ventado como suporte da arte, distanciando-se das finalidades médicas, que tradicionalmente governam seu uso como objeto de incisão e inscrição. A pele converteu-se definitivamente em tela artística. O contraponto [da] capacidade da tela de exibir a imagem da pele está na correspondente possibilidade de a pele tornar-se portadora de imagens – ‘fazer-se tela’ – quando é a epiderme que passa a ser por, sua vez, superfície de inscrição de imagens.20
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20 Senra, 2003, p.83.
Além das questões de segurança pública, os acionistas vienenses também enfrentaram questionamentos quanto à saúde mental de seus membros, pois eram vistos com desconfiança por praticarem a automutilação. Nas ações vienenses, a violência contra o próprio corpo e o corpo do outro, visava extrair um sentido desses corpos – a sua liberação dos efeitos moralizadores e sua reinvenção. Coadunavam-se seus praticantes aos ideais de liberação dos anos 60. Em 1963, o happening organizado por Nitsch e Mühl, nomeado fest des psycho-physischen naturalismus, no qual o primeiro eviscerou uma ovelha e se colocou dentro das vísceras, 21 Geay, 1999.
foi interrompido pela polícia.21 Uma das mais conhecidas ações do grupo vienense consistiu em simular a mutilação do pênis do artista Rudolf Schawarzklogler. No trabalho, nomeado Ação n.2, de 1965, as imagens são extremamente realistas, a ponto de, quando o artista se suicidou, ter sido divulgada na mídia a alegação de que as sucessivas mutilações do seu pênis teriam causado sua morte. Edith Adam, sua namorada na época, em entrevista concedida em 1985, afirma que no calor dos acontecimentos, escreveu uma carta à imprensa desmentindo os boatos em torno da morte. A controvérsia em torno de Ação n.2 estendeu-se ainda ao questionamento a respeito de se a obra deve ou não ser considerada trabalho do grupo. Além de ter sido uma simulação, não foi vivenciada pelo artista em público e sim por um modelo no apartamento do artista em situação privada. Em 1968, por causa da performance Arte e revolução (Kunst und Revolution), realizada na Universidade de Viena, Günter Brus, Otto Muehl e Oswald Wiener foram acusados de degradar símbolos do Estado e condenados a alguns meses de prisão. A performance incluía defecar sobre uma mesa ao som do refrão Shitting and pissing are arts (Defecar e urinar são arte). Brus urinou num vidro, bebeu sua urina e se masturbou ao som do hino nacional austríaco. Depois disto, Otto Muehl voltou à prisão, em 1991, por crimes contra a moralidade, que incluíam a acusação de pedofilia. Nada mais apropriado para definir as ações do grupo vienense do que a expressão “a pintura como crime”, cunhada por Rudolf Schwarkogler, em um manifesto publicado em 1966-1968. Os escândalos não se restringiram à Áustria. Em 1966, como parte do evento internacional Destruction in Art Symposium, expuseram o trabalho Ação n.21, que terminou com a intervenção policial. O trabalho envolvia evisceração e destruição de uma ovelha morta, ao som de uma orquestra. Foram elaborados relatórios psiquiátricos e textos publicados na mídia, condenando o caráter abjeto das performances. O simpósio representou o primeiro contato mais consistente do grupo com o cenário da performance internacional. Mais recentemente, no trabalho Teatro das orgias e dos mistérios, representado pela primeira vez em 1998, animais foram eviscerados durante seis horas. Essas eviscerações, con-
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duzidas por Herman Nitsch, despertam críticas de grupos de proteção dos animais. Novas sensibilidades e intolerâncias quanto ao uso de animais em experimentações artísticas e científicas foram responsáveis pela tradução do trabalho de Nitsch como um problema de ética animal. Em resposta aos protestos, o artista afirmou que animais são assassinados todos os dias e que, se o trabalho choca, é, justamente, porque expõe esse fato. Ron Athey: o sangue como experimento, o experimento como questão de segurança Ron Athey, artista queer nova-yorkino, é adepto das práticas de sadomasoquismo, escarificações e implantes, encarnando situações extremas de dor.22 Em 1994, em função
22 Miglietti, 2003.
da cena Human priting press, o artista foi proibido de continuar exibindo a performance executada no Walker Center. Nela, primeiro, fazia incisões na pele das costas de um dos participantes; depois, aderia papel cirúrgico às marcas de sangue, gerando impressões que, num terceiro momento, eram transportadas por roldana acima da cabeça de alguns espectadores. O trabalho foi acusado de ameaçar a segurança do público.23 O fato de o artista ser soro-
23 Richards, 2003.
positivo para o HIV aumentou o burburinho causado pela performance, gerando acusações ao órgão financiador por subsidiar um trabalho inseguro e que, além disso, envolvia sadomasoquismo, corpos nus e profanação à iconografia religiosa. Nos ambientes hospitalares o sangue é contido, triado e tem sua visibilidade estrita a situações controladas. Na performance em questão, foi exposto ao público e ocupou posição de destaque. Paralelamente ao advento da Aids e do novo estatuto simbólico do sangue, deu-se intensificação das modificações corporais que fazem uso de procedimentos invasivos. Como assinala Spink,24 a sociedade contemporânea é ambivalente, pois a busca de segurança da
24 Spink, 2001.
vida é concomitante à disseminação das práticas que a colocam em risco. Roy Athley subverte a lógica do rechaço incorporado a esse material humano e ao mesmo tempo mostra a força de nova intolerância. Ainda que, à primeira vista, o universo das incisões corporais se afigure ilimitado, a morte é, com frequência, um nítido limite. Nas incisões e aplicação de implantes, em vez de vítimas, os adeptos são protagonistas, pois controlam as condições de realização do trabalho sobre seus corpos. Os artistas e adeptos das modificações corporais se submetem a dor controlada. Observe-se que a censura ao trabalho de Ron Athley não se manifestou sobre questões estéticas, mas, sim, de saúde. Do ponto de vista da estética tradicional, não faria sentido a questão sobre o potencial risco à saúde do público, ainda mais amplificada pelo medo do contato com o fluido corporal de uma “pessoa poluente”.25 A fobia do câncer nos ensinou a temer o meio ambiente poluente; agora temos medo de pessoas poluentes, consequência inevitável da ansiedade causada pela Aids. Medo da taça da comunhão na missa,
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25 Sontag, 1988, p.87.
medo da sala de cirurgia; medo do sangue contaminado seja o sangue de Cristo ou do próximo. A vida – o sangue, os fluidos sexuais – é ela própria o veículo da contaminação. Assim, com o advento da Aids nos anos 80 alguns trabalhos artísticos continuaram a despertar reações de abjeção, porém, a elas foram somadas questões de saúde. Nos anos 60 e 70, quando das performances dos acionistas vienenses, o sangue ainda não materializava o medo da infecção por vírus e outros patógenos. O controle do sangue tornou-se um dos ícones da garantia da saúde pública. Ao fazerem uso do sangue, artistas corporais pósAids lidam com um material biológico extremamente controlado. Eduardo Kac, a cápsula do tempo e o tempo da bioética O campo artístico não possui tradição de organização no que concerne à garantia da segurança da vida. Assim, no caso vivido por Ron Athley, fez-se o controle pela extensão das normas aplicáveis aos estabelecimentos científicos e de saúde. Procedimentos já consolidados na saúde são trazidos por artistas e organizadores de mostras de arte, porém seu valor é renegociado no contexto artístico. Em alguns casos não é suficiente a importação de procedimentos considerados essenciais nos contextos da saúde e da ciência, como, por exemplo, o termo de consentimento 26 Menegon, 2004, p.845.
informado.26 O problema vivido pelo artista Eduardo Kac, ao tentar expor Time Capsule, no Itaú Cultural, em 1997, permite perceber a renegociação dos referidos procedimentos quando aplicados ao contexto artístico. O termo de consentimento é documento recomendado por declarações internacionais, códigos de ética e resoluções e leis específicas, para ser utilizado na prática cotidiana em saúde e na realização de pesquisas envolvendo seres humanos. O uso da expressão consentimento informado é comum na literatura internacional; no Brasil, desde 1996, adota-se a terminologia consentimento livre e esclarecido (CLE), conforme a Resolução do CNS n. 196/96, que dispõe sobre ética em pesquisa com seres humanos. O projeto de Kac envolvia pequena cirurgia para implantação de microchip no tornozelo do artista, seu registro numa plataforma para localização de animais e a execução de um Raio X do tornozelo. O evento foi divulgado simultaneamente na web e por um canal aberto de televisão. Em matéria publicada em 1997, dizia-se que, segundo o setor jurídico do Itaú Cultural, o trabalho punha em perigo a integridade física do artista: A própria integridade física é o principal obstáculo que o artista eletrônico carioca Eduardo Kac, 35, está enfrentando para mostrar o trabalho inédito Time Capsule (Cápsula do Tempo), que envolve “tecnologias de vigilância intracorporal”, no Brasil. Programado para fazer parte do evento Arte e Tecnologia, do Instituto Cultural Itaú (ICI), Time
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Capsule foi vetado pelo departamento jurídico da instituição por implicar risco de vida para o artista − incluindo a possibilidade de um choque anafilático.27
27 Folha de S. Paulo, São Paulo, 10.10.97, caderno Folha Ilustrada.
A decisão pela não execução da obra foi tomada pelo setor jurídico da instituição, desconsiderando a proposta do artista de assinar um ‘termo de consentimento informado’. Kac se dispôs, ainda, a assinar um termo de responsabilidade pela apresentação da obra, mas nem isso foi suficiente para o departamento jurídico. ‘Esse tipo de preocupação, a partir do momento em que o elemento biológico está envolvido, não é infundada. Mas a obsessão com isso: Vou minimizar todos os riscos, mas é inegável que sempre pode acontecer alguma coisa’, afirmou o artista.28
28 Idem.
Na mesma matéria, Ricardo Ribeboim, então diretor superintendente do Itaú Cultural, defendeu a importância do trabalho, mas apontou que sua realização poderia implicar oposição entre pessoa física e pessoa jurídica. De acordo com ele, as leis brasileiras responsabilizariam a instituição, mesmo que Kac assinasse o documento insentando-a das consequências. Ainda que a ideia fosse muito boa, os riscos seriam incalculáveis.29
29 Idem.
Eduardo Kac, em entrevista concedida à autora, viu no embargo a sua obra, o receio de a instituição ter sua imagem comprometida. Sem dúvida, o fato de pertencer a uma instituição financeira torna o Instituto Itaú Cultural, particularmente cauteloso quanto à segurança, seja biológica ou de outra ordem.30 Ainda em 1997, a poucas quadras do prédio do Itaú Cultural, o trabalho Time Capsule foi exposto na Casa das Rosas na mostra Arte Suporte Computador, recebendo ampla divulgação. Como garantia da segurança, o procedimento contou com maca cirúrgica, a presença de um médico e uma ambulância de plantão para qualquer emergência. Além disso, havia instrumentos cirúrgicos; fotografias de pessoas da família do artista (mortas em campos de concentração); um computador e um braço telerobótico responsável pelo acionamento do botão de um aparelho de escâner. O artista foi responsável pela inserção do implante em seu próprio corpo, sendo auxiliado pelo médico Paulo Gouveia. Durante a filmagem, enquanto o artista inseria o microchip, o médico narrava o procedimento em linguagem técnica, sendo divulgados no Canal 21, ao vivo, em 11.11.1997, em cadeia nacional, o implante e a voz do médico. De acordo com Paulo Gouveia, o artista foi posicionado por ele como paciente quando pediu licença para “ir ajudar o paciente” e também como artista, uma vez que antes de executar os cuidados médicos puxou uma salva de palmas. Agora ele vai rompendo a pele...Vai percorrer com a agulha paralelamente à parte superior da pele, vai percorrer num ângulo paralelo
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30 Kac, 2006.
a pele, vai introduzir totalmente a agulha no tecido subcutâneo. Aí, ao final do término da inserção da agulha, ele vai segurar, apertar e fazer a introdução do chip através de um mandril que corre por dentro da agulha. Aí, com o término da inserção da agulha, agora ele vai pressionar para que não haja sangramento, ele vai retirar a agulha. Um procedimento absolutamente sem risco, inócuo, esterilizado sem contaminação. Agora, com licença que eu tenho que ir ajudar o paciente... (...)31
31 Registro de obra Time Capsule em CD Room Art Future, 1999.
A oposição entre as avaliações do Itaú Cultural e da Casa das Rosas mostra a fluidez dos contornos da segurança da vida na arte brasileira. Não há consenso sobre critérios para manutenção da segurança da vida na arte nem sobre os procedimentos a adotar. As discussões, diferentemente da área da saúde, que conta com documentos técnicos, mobilizam apenas atores diretamente interessados. Três anos depois, Eduardo Kac voltou a expor no Itaú Cultural, quando foi um dos destaques da exposição Emoção artificial, em suas duas edições, 2000 e 2002. Na análise feita 32 Machado, 1998.
por Machado,32 os efeitos do trabalho de Kac são comparados àqueles produzidos pela introdução do mictório no espaço da arte feita por Duchamp. As dúvidas e ambiguidades que marcam a tentativa de exposição do trabalho Time Capsule no Itaú Cultural mostram que há ainda longo percurso reflexivo a ser percorrido, o qual deve ir além das situações controversas. Considerações finais As controvérsias vividas por Ron Athey e por Eduardo Kac deixam entrever a necessidade de que a tematização da segurança da vida seja inserida no debate artístico. Como vimos, os princípios que orientam a arte são distintos daqueles que norteiam a bioética e biossegurança, criados com finalidades científicas. A intensificação da preocupação com a segurança da vida conduz a arte para a esfera da gestão da vida. Trabalhos artísticos tornam-se passíveis de avaliação por instituições, cujos procedimentos e cálculos costumeiramente detinham seu campo de ação nos desenvolvimentos científicos. Os desencontros são vários, pois a arte, dada sua tradição organizativa, manteve-se alheia às instituições responsáveis pela garantia da segurança da vida. Em várias situações experimentos artísticos e regulações em biosegurança e bioética con-
33 Kac. Op. cit.
vergem, dando espaço a colaborações regulares ou pontuais entre artistas e cientistas.33 A ausência de consideração específica por parte das instâncias reguladoras acerca dos impasses colocados pelas experiências estéticas à justiça experimental constitui, porém, problema a ser redimensionado, principalmente quando se trata de práticas corporais extremas e/ou abjetas, como é o caso da performance de Ron Athey ou ainda das sus-
34 Galindo. Op. cit.
pensões corporais.34
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Diante do exposto, uma primeira conclusão consiste na constatação de que, inevitavelmente, a segurança da vida se converteu em um problema para a arte. Decerto, a reflexão sobre as especificidades da experimentação artística pode contribuir para minimizar as controvérsias em torno da arte. Como segunda conclusão, o reconhecimento de que a arte se deve converter em um problema para os dispositivos de segurança da vida − não só como campo a ser regulado, mas como campo que, ao mostrar os limites dos dispositivos de governo da vida, atua como um laboratório ético e reflexivo.35 Ao julgamento biopolí-
35 Clark, 2006, p.411-416.
tico acerca dos benefícios do emprego de técnicas para a promoção da saúde ou segurança da população, a arte sobrepõe reflexões ético-estéticas.36
36 Auslander, 1995, p.25-31.
Tradicionalmente aprendemos, ao longo da história da anatomia, que a arte pode contribuir para o treinamento médico,37 porém, a principal contribuição que a arte pode acrescentar aos debates contemporâneos sobre as lacunas que se fazem presentes nos dispositivos de decisão da justiça experimental não pode, certamente, ser restrita a uma função complementar na educação médica ou bioética. Práticas artísticas provocadoras desfamiliarizam procedimentos que se tornaram rotineiros, a exemplo da assinatura de termos de consentimento informado como no caso vivido por Eduardo Kac, indo além de qualquer função auxiliar ou complementar. Para além de qualquer finalidade complementar, a arte funciona como disparadora de debates no interior da justiça experimental, ampliando o espectro de decisão e reflexão. É aceitável que dispositivos de segurança da vida levem em consideração a dimensão estética que está na base dos experimentos artísticos? Caso a resposta seja afirmativa, quais as implicações para a racionalidade que orienta tais dispositivos? Acreditamos que a arte, ao extrapolar os usos convencionais de tecnologias e materiais biológicos medicalizados, subverte-os, convertendo-os em superfícies para uma prática reflexiva. As controvérsias aqui discutidas mostram que são necessários novos arranjos institucionais que ampliem o diálogo entre artistas, cientistas e instâncias regulamentadoras responsáveis pela garantia da segurança da vida. Resta saber em que medida o caráter subversivo e transgressor dos experimentos artísticos extremos pode ser conciliado com a racionalidade que orienta os dispositivos de segurança da vida. Trata-se de uma questão ou, mais propriamente, um campo de tensões a ser explorado em futuras pesquisas sobre o tema.
Dolores Galindo (UFMT, Cuiabá, Brasil) é doutora em psicologia social PUC-SP, com estágio doutoral na Universidade Autônoma de Barcelona, havendo defendido a tese ilustrar, modificar, manipular: a arte como questão de segurança da vida; professora do corpo permanente do Mestrado em Estudos da Cultura Contemporânea da Universidade Federal de Mato Grosso; pesquisadora nos grupos Práticas Discursivas e Produção de Sentidos – PUC-SP e Estudos do Contemporâneo (UFMT). / doloresgalindo@ufmt.br
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concinnitas ano 10, volume 2, número 15, dezembro 2009
37 Wilson, 2006, p.515–516.
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Lamounier Lucas. Intervenção artística urbana intitulada Dieu Salut Le Bon Goût, veiculada em painéis de bancas de revista, em Belo Horizonte, 2007. Fonte: Lamounier Lucas.
A arte no espaço urbano* Lamounier Lucas
O artigo discorre sobre as especificidades do espaço público para a exibição da obra de arte e analisa as funções do espaço expositivo de museus e galerias, e as implicações desse espaço para a aura da obra de arte, além de aprofundar questões que dizem respeito a sua instalação no espaço urbano. Em sentido inverso, discute a forma de percepção a que são submetidas e a força latente dessas obras descontextualizadas do espaço convencional de exposição. Aura, arte pública, intervenção artística urbana. A obra de arte exposta no espaço urbano submete-se a um sistema * Artigo recebido em agosto de 2009 e aceito para publicação em agosto de 2009.
próprio de apreciação, distinto daquele a que se submetem as obras que se encontram protegidas pelas paredes do museu/galeria. Conceber uma proposta artística que extrapola esse espaço tradicional e ganha o espaço público implica, primeiramente, pensar a
1 A primeira dificuldade que se apresenta à abordagem do tema arte exposta fora do espaço da galeria está na tentativa de se encontrar nomenclatura adequada. Alguns autores utilizam a expressão “arte pública”, outros preferem as terminologias “arte no espaço público”, “arte urbana”, “intervenção urbana” ou “intervenção no espaço urbano”. Buren propõe duas formas de distinguir a arte no museu e na rua. Na primeira, mais simplista, o autor nomeia arte, sem adjetivo, aquela exposta no museu, e arte pública aquela exposta nas ruas. Na segunda forma, propõe a diferenciação arte no espaço museológico em oposição à arte no espaço público. Concorda, contudo, que não se pode ignorar o fato de ser o museu também um espaço público e afirma que a obstinação da associação unilateral da palavra público a apenas uma das modalidades de arte discutida pode estar associada à própria natureza dessa palavra, ao se constatar que o objeto exposto na galeria é frequentado por um público mais especializado, mais sensível, mais observador, enquanto a arte exposta na rua é consumida por todos os públicos, sem distinção. Neste artigo, utilizam-se, indistintamente, todas essas nomenclaturas para se referir à arte que é exposta no espaço público. 2 O´Doherty, 2002. 3 Buren. Op. cit. 4 Referência à terminologia adotada por O´Doherty (op. cit.) para se referir à galeria de arte contemporânea.
questão da arte pública,1 sua desvinculação do espaço institucionalizado da galeria de arte e a forma como é percebida. O status de obra de arte no espaço urbano é questionado por diversos autores. O´Doherty2 e Buren,3 por exemplo, afirmam que o espaço místico da galeria confere a todo trabalho plástico ali exposto o aval de obra de arte, ao passo que a obra instalada no espaço público não teria, em princípio, a garantia desse rótulo. Fora do cubo branco,4 a obra encontrase completamente nua, exposta, sem qualquer arcabouço que a proteja. Segundo Buren,5 a arte dos museus tem sua aura6 automaticamente legitimada pela simples condição de estar inserida no espaço do cubo branco, ao passo que a arte exposta na rua tem sua legitimação questionada. Uma vez abandonada sua redoma protetora, perde a segurança e a neutralidade do espaço asséptico em que se encontrava e passa a sofrer profunda influência do novo lugar, que a impregna e a marca, direta ou indiretamente, seja ela feita ou não para museu ou galeria. Ainda que a obra de arte fruto de uma encomenda pública tenha, num primeiro momento, sua aura respaldada pelo fato de ser resultado de uma contratação por parte de uma instância que lhe conferiu previamente o status de arte, as demais obras públicas submetemse a um esquema de valorização diferente. A encomenda pública já nasce legitimada pelo fato de ter sido selecionada em meio a tantas outras e a ela se pode atribuir valor que, embora distinto em sua totalidade do status conferido à obra exposta na galeria, vale pela chancela da encomenda. Para o conjunto de obras de arte instaladas no espaço urbano sem o processo da encomenda, entretanto, o status de arte é abalado, porque essas obras
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estão destituídas dos rótulos conferidos pela galeria ou pela encomenda. Instaladas no
5 Buren. Op. cit.
espaço público, muitas vezes elas disputam o espaço das grandes cidades e a atenção dos
6 Benjamin, 2000.
transeuntes. Trabalhos de arte pública entendidos como intervenção urbana, que também não contam com o processo de encomenda pública, mas que, ao contrário de happenings e performances, não se esgotam no momento da ação, ou seja, no instante em que ocorrem, como a land art, as intervenções artísticas temporárias e o grafitti,7 também têm sua aura ques-
7 Ver Silva,2005 e Archer, 2001.
tionada quanto ao abandono da galeria, à inexistência do aval da encomenda pública e, em menor escala, à efemeridade da obra. Ao contrário das encomendas públicas, normalmente instaladas em espaços privilegiados para contemplação, essas obras dispensam pedestais, jardins construídos em volta e iluminação direta, e se fundem ao caos urbano, disputando espaço com inúmeras mensagens publicitárias. Apesar de todo esse abalo na aura da obra de arte no espaço urbano, segundo alguns autores, sua força latente decorre exatamente de sua descontextualização do espaço da galeria. Uma vez fora do espaço expositivo institucionalizado, atrairiam atenção diferente da que lhes seria dispensada se estivessem disputando com outras obras a atenção do espectador das galerias de arte. Vasconcelos8 chega a ponto de afirmar que a arte se torna mais relevante quando exposta
8 Vasconcelos, 2003.
no espaço público. Meramente contemplativas ou assumidamente contestadoras, as obras de arte expostas no tecido urbano criam novas possibilidades de diálogo com o público, pois, ao extrapolar o espaço hermético do museu/galeria, tornam-se elemento instigador na relação entre o cidadão e o espaço público. Montes,9 por sua vez, afirma que cada vez mais artistas, curadores e museólogos concor-
9 Montes, 1998.
dam quanto ao significado de uma obra de arte ou de uma exposição ser resultado de um complexo diálogo entre criador, obra, curador, museólogo e espectador. E, para processar o resultado que lhe é apresentado, o público se vale de seus códigos culturais, de seu gosto social culturalmente construído, da repercussão que o trabalho do artista tem na mídia, das ideologias políticas, etc. Assim, nesse contexto, “devolver à arte sua função pública”10 passa a ter significado bem preciso, uma vez que a ação legitimadora que o museu lhe garantia já não é mais suficiente para credenciar a qualidade dessa arte, por se tratar de operação não realizável sem que se perca parte essencial de seu significado como criação humana. As discussões contemporâneas sobre arte pública envolvem a consciência dessa nova forma de conexão entre espaço e significado, e a infinita possibilidade intrínseca de
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10 Id., ibid., p. 278.
recriação do sentido da arte. Assim, se o processo de sacralização da arte empreendido pelo espaço do cubo branco ou do museu por si só não é suficiente para estabelecer o valor da obra de arte em nome da comunidade e da nação, a tarefa de devolver à arte sua dimensão pública significa fazer com que ela dialogue com as comunidades locais e com as tribos urbanas, pois, dessa forma, acaba se tornando o elo que confere a essas tribos e comunidades fragmentadas o sentimento de pertencimento, na tentativa de rearticular esses indivíduos dispersos na sociedade de massas e funcionando como uma rede de sociabilidade organizada em torno dos valores próximos à experiência cotidiana dessa comunidade. Assim, na tentativa de rearticular interesses tão diferentes, mas comuns o suficiente para que se torne possível o diálogo dos cidadãos sobre suas diferenças, a arte pública alcançaria legitimação. Pensar a questão da existência da aura da obra de arte exposta no espaço urbano implica considerar o processo histórico de transição da percepção e da fruição da obra de arte, desde o momento histórico inicial marcado pela veneração cultual, quando se observava a predominância da sublimação na relação do sujeito com a obra, passando pelo momento caracterizado pela beleza autônoma da obra de arte, quando o espectador passou a estabelecer relação de prazer que definia o valor da obra, até o momento em que se passa a observar a suplantação do valor de culto da obra por seu valor de exposição. 11 Benjamin. Op. cit.
De fato, de acordo com Benjamin,11 o processo de desritualização da obra pode ser percebido exatamente no confronto entre estes dois polos: o valor de culto e o valor de exposição. A crescente possibilidade de exibição das obras de arte por meio de exposições nos museus/galerias a partir dos séculos XVII e XVIII fez com que, paulatinamente, o valor de exposição da obra suplantasse seu valor de culto, fato só possível depois da invenção dos meios mecânicos de reprodução, pois, com as novas técnicas, o potencial expositivo atingiu escala capaz de destruir o último refúgio do valor de culto da obra de arte: sua autenticidade. A reprodutibilidade técnica permitiu à obra de arte emancipar-se e desvincular-se de sua função ritual, tornando, nesse contexto, inconcebível a tentativa de atestação de autenticidade de uma obra. A possibilidade de reprodução a partir dos novos meios mecânicos libertou a obra de arte de seu local de origem, desvalorizando seu valor tradicional e sua autenticidade, fundados na herança cultural. Distantes do domínio restrito da tradição, os objetos artísticos, até então intocáveis, tanto no sentido físico quanto valorativo, puderam abrir-se a novas significações, como, por exemplo, a política. Muitos autores que lidam com a arte instalada no espaço público veem a decadência da aura da obra de arte de forma positiva, como uma espécie de celebração das mudanças que a reprodutibilidade técnica inaugurou. Paralela a essa celebração positiva, é possível perceber também a existência de outra leitura essencialmente negativa do conceito de obra de arte aurática, que critica e repele a reauratização institucional da obra de arte mo-
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derna uma vez que identifica nos museus/galerias a tentativa de concepção de outro processo de sacralização. Segundo esses autores, o espaço institucionalizado do cubo branco, ao valorizar a obra única, promove uma tentativa de reauratização, o que representa um retrocesso, principalmente quanto ao objetivo de consolidar um mercado para essa arte. Ao discutir a aura da obra de arte e seu declínio a partir da inserção dos novos meios de produção e reprodução técnica, Benjamin12 afirma que a perda da aura é inevitável
12 Idem.
e, do ponto de vista histórico, algo extremamente positivo. Em sua opinião, a obra de arte exerce uma função ritual autoritária cuja destruição seria vista com bons olhos, pois libertaria os objetos artísticos para outras funções, como a de mercadoria, por exemplo. Ao mesmo tempo em que as modernas técnicas de reprodução possibilitam nova forma de relacionamento entre o público e a arte, democratizando seu acesso a ela e retirando das obras seu valor sagrado, promovem uma relação mais crítica com a tradição, ou seja, destroem a aura da obra de arte. Se, por um lado, a instalação da obra fora do espaço privilegiado da galeria parece indicar que ela abre mão de seu status de obra de arte e de sua função cultual, por outro lado, parece refletir também a preocupação com a experiência do sujeito com a obra, uma vez que o espaço público passa a ser percebido como espaço privilegiado de fruição, que possibilita o contato da obra com um número muito maior de pessoas. Além disso, as novas condições de experiência do sujeito nos grandes centros urbanos impõe, para a obra exposta no espaço urbano, distante do cubo branco, uma nova forma de percepção, de fruição e de relação do sujeito com a obra de arte. Assim, se considerarmos a evolução do conceito de aura em Benjamin,13 quando, na obra intitulada Baudelaire, um lírico no auge do capitalismo, ele passa a ser descrito com base na forma de percepção e na relação entre sujeito e objeto, deixando de ser percebido apenas como unicidade e autenticidade puramente materiais e passando a representar o lugar em que se desenvolve uma experiência autêntica, as intervenções artísticas urbanas parecem experimentar uma revalorização em seu status de obra de arte. Ao romper com as fronteiras do museu/galeria e ganhar o espaço público, a obra de arte pública destrói a distância que a separa do espectador e, logicamente, de sua aura, potencializando a relação entre a obra e o sujeito. Assim, se por um lado as intervenções artísticas temporárias no espaço urbano têm sua aura questionada sob os aspectos da unicidade e da tradição, por outro, por se tratar de intervenções temporárias que muitas vezes acontecem sob o olhar do público, o hic et nunc, seu aqui e agora, por ser extremamente evidente e muitas vezes não descolado da obra, promoveria uma ressurreição da obra posto que reativa a experiência única. Arte pública: principais características Ainda que se perceba de forma generalizada entre diversos autores a dificuldade de nomear
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13 Palhares, 2006.
a arte que acontece fora do espaço do cubo branco, bem como o consenso de que essa dificuldade passa pela própria confusão entre as assimilações dos conceitos de público e privado, é possível extrair uma série de características que definem a arte no espaço público. 14 Gouveia, 1998, p.87-91 e p.159.
Segundo Gouveia,14 o conceito de arte pública bem como suas características deve ser entendido com base no processo histórico de migração da arte da galeria e dos museus para o espaço urbano. Segundo a autora, a partir dos anos 60, os artistas resolveram libertar suas obras do destino fatal dos limites institucionais ou das coleções particulares, começando a produzir obras especialmente direcionadas a locais públicos. Ao longo desse processo, passaram a desenvolver com o público passante, os fruidores e usuários desse tipo de obra, uma relação diferente daquela de reverência e respeito que se estabelece no interior dos museus e galerias. Logo, o conceito de arte pública passou a significar algo mais amplo do que arte em espaço público. O mais importante nesse processo, aponta a autora, foi a ruptura com o discurso hermético que permeava o mercado da arte, uma vez que o acesso à obra de arte implicava o acesso a um código formal e restrito, preestabelecido. Assim, à medida que as obras se voltam para o público, reintroduz-se, segundo ela, aquela utilidade que fazia parte da arte em seus tempos iniciais, e a arte pública passa a reincorporar o caráter utilitário de outrora.
15 Abramo, 1998, p.56-60 e p.155-156.
Já de acordo com Abramo,15 é possível perceber um movimento quase natural do surgimento da arte pública contemporânea, como se o espaço público fosse caminho predestinado em função do crescente aumento das dimensões das obras, nos últimos 20 anos do século XX; até a gravura, de tamanho normalmente limitado pela técnica e pelas dimensões dos suportes, passou a ser feita de maneira compartimentada, tornando-se, depois de montadas as partes, um grande painel. A autora questiona então se os museus teriam condição econômica, espaço e reserva técnica para abrigar essas obras. As próprias residências – cada vez menores – não comportam obras de arte tão grandes. Assim, no limite entre o tamanho crescente das dimensões das obras de arte e a disponibilidade de museus ou residências para abrigar essas obras, o espaço público surge como a única saída possível. Seria simplista, entretanto, aceitar a argumentação de que as obras de arte abandonaram o reduto protetor do museu/galeria e ganharam os espaços públicos exclusivamente em função de seu tamanho. A arte pública contemporânea compreende um código próprio e estabelece diálogo bastante profícuo com o espaço urbano em que está instalada e com as comunidades que usufruem desse espaço.
16 Mashinini, 1998, p.198-202 e p.311.
Mashinini16 sugere que a obra de arte pública deve ser concebida como parte integrante do ambiente construído e não apenas como acréscimo decorativo, posterior. Logo, a arte pública desempenha relevante papel em qualquer sociedade específica, sendo componente importante na revitalização das cidades e da própria sociedade. Ao enumerar alguns benefícios da arte pública em experiências em diversos países do mundo, o autor lhe
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atribui, em primeiro lugar, a responsabilidade pela integração da arte tradicional e da arte contemporânea à vida cotidiana; em segundo, a criação de oportunidades para a expressão da comunidade; em terceiro, lembra ele, não podem ser ignorados os benefícios econômicos advindos da arte pública enquanto potencial turístico; nem, em quarto lugar, sua capacidade de melhorar a estética dos edifícios e dos espaços públicos; em seguida ao fato, em quinto lugar, de a arte pública servir ao importante propósito de criar consciência pública do valor da arte e de elevar o perfil público para as artes, o autor enumera, ainda, a possibilidade de o artista vender seu trabalho e ser por isso reconhecido, o que torna a arte urbana também vitrina para o artista e oportunidade de emprego. Além disso, integrada à arquitetura, a arte urbana estimula a colaboração entre o artista e o planejamento arquitetônico das cidades, e representa destacado aspecto na acentuação de uma identidade comunitária. A obra de arte pública e o caos do espaço urbano Com base nessas considerações sobre a relação da obra de arte com o lugar, pode-se propor uma abordagem das obras de arte que se instalam no espaço público das grandes cidades, em particular as intervenções artísticas temporárias no espaço urbano, como aquelas que se valem dos veículos de mídia exterior normalmente destinados à exibição da mensagem publicitária, como outdoors, painéis luminosos, painéis de bancas de revistas e de abrigos de ônibus. Essas obras, embora se relacionem amplamente com o espaço que as acolhe, enfrentam sérios problemas para sua exposição: “o que o cubo branco permite à obra de 17 Buren. Op. cit., p.191.
arte, a rua lhe recusa”.17 Em primeiro lugar, as obras precisam brigar com a grande poluição visual da urbe para serem vistas. Sob esse aspecto, os problemas decorrentes da exposição dessas obras em meio a tantos poluidores visuais remetem aos referentes à organização expositiva dos museus do século XIX. Aqui, a moldura dos outdoors e dos painéis eletrônicos parece reproduzir a mesma função das grossas molduras de madeira que limitavam as obras pré-impressionistas: servir de limite para que a obra possa ser vista, isolada, em meio a tantas outras. Só que, no espaço urbano da grande cidade, a obra de arte exposta disputa visibilidade com estímulos de outra natureza, como mensagens publicitárias, pichações, vitrinas, sinais luminosos, néons e fachadas, e não com outras obras de arte. Assim, apesar da presença da moldura também nos outdoors, nos painéis de bancas de revistas e nos cartazes de abrigos de ônibus, por exemplo, torna-se muito mais difícil transformar a obra de arte em unidade exibível e, mais difícil ainda, anular os efeitos do entorno sobre a obra. Retomando a análise empreendida por Hirata,18 segundo os princípios da Gestalt, a obra de arte instalada em tais suportes
18 Hirata, 2005.
e em meio ao caos urbano pode ser vítima de baixa pregnância formal. Zorzete19 aponta a poluição visual como agressão à obra de arte instalada no espaço pú-
19 Zorzete, 1998, p.128-134 e p.165.
blico e enumera os postes de luz, as placas de trânsito, os painéis publicitários, etc. como elementos que interferem em sua leitura. Bergamin,20 por sua vez, chega a afirmar que a depredação das obras de arte no espaço urbano só não é maior porque as pessoas não to-
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20 Bergamin, 1998, p.100-105 e p.162.
mam conhecimento de que elas existem. Essa constatação passa, obviamente, pela análise da experiência do cidadão em relação aos espaços público e privado, mas revela também a influência do caos urbano no processo de percepção da obra de arte pública. A própria configuração arquitetônica da urbe constitui, em si, um espaço caótico, que 21 Takahashi, 1998, p.221.
Takahashi21 denomina “paisagem gráfica”, interpretada como a paisagem que emana das cidades enquanto suporte para as mensagens gráficas, como os outdoors, néons, cartazes e painéis publicitários colados às paredes dos prédios, enfim, “coisas que são apostas, acopladas às paredes, às cidades, às fachadas...” A análise proposta pela autora relaciona o caos do espaço arquitetônico e o caos dos poluidores visuais da urbe. Para Takahashi, a paisagem gráfica oferece dupla interpretação, uma vez que a arquitetura e a mensagem gráfica constituem duplo canal de mensagem, veiculando, simultaneamente, duas mensagens que, na maioria das vezes não se sintonizam: a arquitetura é portadora de uma, e o outdoor afixado nessa arquitetura, por exemplo, emite outra, antagônica, completamente diferente. As duas mensagens, não raro, são paradoxais e, embora na maioria das vezes o paradoxo seja interpretado como forma de incoerência, essa incoerência, acredita a autora, faz parte do cotidiano. Assim, tanto a arquitetura caótica da urbe quanto a mensagem gráfica passam a contribuir para a baixa pregnância formal da arte exposta no espaço urbano. Uma das grandes aflições que acomete o cidadão da urbe e uma das grandes tensões que todo grande centro urbano experimenta está exatamente na tentativa de se negar o paradoxo entre
22 Takahashi. Op. cit.
as mensagens gráfica e arquitetônica, na busca de coerência. Contudo, segundo Takahashi,22 a cidade é um elemento orgânico, em vida, mutante e, portanto, incoerente. O espaço urbano, ressalta a autora, não nega a camada anterior, a experiência anterior, o tempo já passado, pois, se assim o fizesse, a cidade seria algo uniforme e não haveria essa realidade paradoxal. Mais do que um espaço físico, entretanto, a cidade é um espaço humano, um grande suporte em que acontecem as grandes projeções por parte dos cidadãos envolvidos na construção desse espaço. Essas projeções nada mais são, observa a autora, do que a manifestação de uma utopia, que se dá sobre tentativas de se acreditar na cidade e de se pensar que ela deve responder aos anseios e expectativas dos cidadãos, esquecendo-se, contudo, de que se trata de elemento vivo que requer interação. A arte urbana, conclui Takahashi constitui o elemento fundamental no estabelecimento do diálogo entre a expressão necessária dessa utopia por parte dos cidadãos e a tentativa de uma reflexão física desses anseios por parte da cidade. Segundo esses autores, o status de arte que os limites da galeria conferem à obra é questionável na arte pública, uma vez que se perde a confirmação da sua função legitimadora, como se fosse possível apreender do público passante: “se isso é arte, por que não está na galeria?”. De fato, a questão da arte instalada em lugares públicos não é, historicamente, tão recente. A própria história da arte, a criação dos museus e galerias e, principalmente, a
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busca do espaço perfeito para a exibição das obras, que resultou no cubo branco, parecem legitimar a galeria como o único e inquestionável espaço de exibição. Dentro dos limites da galeria, a obra é inquestionável; na rua, não. Evidencia-se assim o papel do lugar sobre a obra, dando a ver toda a complexidade que envolve a exposição de uma obra de arte em local público, externo à galeria, em suporte efêmero e em meio à poluição visual da urbe. A decisão pela exposição de um trabalho nessas circunstâncias é, no mínimo, corajosa e arriscada, sob todos os aspectos analisados. A obra de arte urbana e a importância do lugar Assim como Mashinini,23 outros autores defendem a ideia de que a arte pública contem-
23 Mashinini. Op. cit.
porânea deve manter diálogo constante com o espaço urbano em que se instala, sendo percebida como elemento dinâmico e sistêmico e não apenas como aposto decorativo. Brenson,24 por exemplo, concorda com a ideia de que as obras de arte devem funcionar em
24 Brenson, 1998, p.180-190 e p.309.
relação a algum lugar e, se isso não ocorre, se elas não estabelecem algum tipo de diálogo com o local em que se instalam, pode-se dizer que, de alguma maneira, fracassaram em seu propósito. O local para o qual a obra de arte é feita determina até mesmo seu grau de aceitação ou de rejeição por parte da comunidade. Já de acordo com Senie,25 um dos grandes desafios da arte pública, em particular das
25 Senie, 1998, p.34-45 e p.153.
intervenções em espaços urbanos, está no fato de incorporar, de forma bem-sucedida, a história e as especificidades do lugar à obra que se está construindo, mantendo-se sua acessibilidade ao público e, ao mesmo tempo, sua viabilidade estética. Inúmeros são os relatos de obras de arte pública marcados pela controvérsia, por um lado porque o artista ignora as necessidades do público e, por outro lado, porque sua intenção nem sempre é compreendida pelo público. Assim, a análise cuidadosa do local constitui o primeiro passo para que uma intervenção urbana ou uma encomenda pública sejam bem-sucedidas. Peixoto,26 entretanto, esclarece que a obra projetada para um lugar específico não implica
26 Peixoto, 1998, p.113-120 e p.163.
a simples adequação às características históricas ou tradicionais desse lugar, ressaltando aspectos ali já inscritos, mas antes a preocupação de se distanciar do conteúdo preexistente nesse espaço, adicionando-lhe sempre algo e não se tornando mera decoração. Para o autor, a arte pública deve analisar o sítio e defini-lo em função da obra e não em função de uma configuração preexistente, evidenciando-se, com isso, a condição de permanente mutação dos espaços urbanos. Segundo Silva,27 o trabalho instalado sem preocupação com a comunidade que frequenta o lugar pode enfrentar problemas e manifestações por parte do público, uma vez que a obra de arte está, de certa forma, invadindo um espaço público ao qual, pela força de sua relação habitual com o espaço fechado dos museus e galerias, ela é, no mínimo, estranha.
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27 Silva. Op. cit.
28 Buren. Op. cit.
Assim, Buren28 afirma que a instalação da obra de arte no espaço urbano suscita duas questões indissociáveis, porém contraditórias: 1) a necessidade de se perceber o lugar como novo espaço a ser decifrado e 2) o questionamento da natureza da própria proposta. Só assim será possível que a obra de arte abandone a galeria, deixando seu lugar cultual e se instalando em outro lugar, sem, contudo, naufragar em sua proposta. Dessa forma, o lugar reveste-se de vital importância por ser fixo e acaba por se constituir como o “quadro” ao qual a obra está profundamente limitada. A percepção das obras instaladas no espaço público
29 Sevcenko, 1998, p.136-144 e p.167-169.
Sevcenko,29 Abramo30 e Bergamin31 buscam analisar o processo de percepção das obras
30 Abramo. Op. cit.
de arte instaladas no espaço caótico das cidades. Sevcenko sugere que, no processo de
31 Bergamin. Op. cit.
megalopolização, o fluxo da vida urbana é determinado não pelo comportamento humano, mas pela dinâmica das máquinas, ou seja, a experiência da vida humana na urbe é determinada pelos potenciais e pelas demandas do maquinário que organizam o espaço urbano e dirigem as atividades urbanas. Assim, o cidadão da megalópole é obrigado a se ajustar ao “fenômeno da aceleração do percurso humano”, pois, nas grandes cidades, em
32 Sevcenko. Op. cit., p.167.
função do fluxo determinado pelas máquinas, “ninguém tem tempo de andar fruindo”.32
33 Almeida, apud Vasconcelos. Op. cit.
Almeida33 afirma que a obra de arte interfere no cotidiano das pessoas, sendo possível observar reações e até mesmo não reações: cedo ou tarde, o olhar distraído da multidão se contamina pela obra exposta no espaço público.
34 Abramo. Op. cit.
Abramo34 chega mesmo a sugerir a existência de nova forma de percepção com base na análise do processo de assimilação da obra de arte pública pelo cidadão das grandes cidades. De acordo com a autora, o transeunte não contempla uma obra de arte pública de uma só vez, não há um instante de fruição determinado, tal como ocorre com a obra exposta no museu/galeria. A obra de arte pública, ela continua, não é contemplada; é absorvida aos poucos pelo transeunte, formando-se paulatinamente em sua memória, o que faz supor nova modalidade de percepção, fragmentada, em processo, que se constrói no dia a dia: uma percepção inteligente, “porque ela não se faz na presença da obra, mas
35 Id., ibid., p.57.
in memória da obra”.35 Nesse diálogo entre a obra de arte pública ou intervenção urbana e o público espectador, há que considerar, a posição polêmica de alguns autores quanto ao perfil da recepção do cidadão contemporâneo e, por conseguinte, à qualidade do processamento e da assimilação
36 Finkelpearl, 1998, p.70-80 e p.157.
da obra que lhe é apresentada. Finkelpearl36 aponta a existência de inúmeros trabalhos sociológicos que mostram ser a arte nos museus essencialmente destinada às classes altas, o que indica a distinção e a superioridade cultural do perfil da audiência da arte do museu/
37 Oliveira, 1998, p.61-67 e p.154.
galeria em relação ao da audiência da arte pública. Oliveira,37 por sua vez, discorda que o museu seja um espaço elitista e que sua programação contemple tão somente a elite. Considera antes que elitista é a educação, que não atende a todos, só conferindo a uma parcela da população tem acesso a uma educação de qualidade. A deficiência no sistema
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educacional brasileiro resulta, em sua opinião, em público incapaz de usufruir tudo aquilo que o museu oferece. Assim, se a qualidade da educação faz com que a audiência do público frequentador dos museus e galerias norte-americanos seja bastante superior, em termos relativos, ao perfil da audiência do público frequentador de museus em países em desenvolvimento, como o Brasil, pode-se supor que a obra de arte instalada no espaço urbano seja consumida por um público que não teria informação nem educação suficientes para a perfeita assimilação da obra. Bergamin38 chega mesmo a questionar a validade da obra
38 Bergamin. Op. cit.
de arte pública e das intervenções urbanas para um público despreparado, sem educação suficiente para a completa fruição da obra. Apesar da posição polêmica desses autores, não se pode ignorar a importância das intervenções artísticas urbanas e das encomendas de arte pública para a tessitura da dinâmica urbana da cidade contemporânea. Bem ou mal interpretadas, essas manifestações artísticas revelam o mecanismo vivo de funcionamento da urbe, a multiplicidade de tribos urbanas e as diferenças culturais, artísticas e sociais a que toda grande cidade está submetida. Sob esse aspecto, o espaço público, mais do que o museu ou o cubo branco, passa a ser visto como o lugar por excelência em que a obra expõe suas credenciais ao reconhecimento como arte, “na esperança de que, negociando com o usuário do espaço convertido em espectador, ela se veja efetivamente reconhecida como arte”.39 Todos os espaços em que as intervenções urbanas ocorrem e em que a arte pública
39 Montes. Op. cit., p.278.
se manifesta passam então a ser considerados lugares legítimos para exibição da arte, o que faz com que, ao mesmo tempo, cada vez mais espaços culturais alternativos capazes de empreender esse diálogo entre as múltiplas manifestações artísticas sejam criados e mantidos pelo poder público e por instituições de direito privado, fundações ou mesmo empresas. Essa posição revela-se tacitamente contrária à análise de alguns autores que argumentam sobre a inexistência de qualquer mecanismo que possa legitimar a arte exposta na rua, questionando, assim, a existência de aura para essa modalidade de arte. Assim, por empreender o diálogo com ambientes e públicos até então inatingidos, a obra de arte passa a incorporar novas funções, uma vez que se torna criação aberta infinitamente à produção de novos significados, mantendo, contudo, sua referência de valor enquanto linguagem. Sob essa perspectiva, a arte pública contemporânea não se limita apenas a dessacralizar o espaço do museu. Ao contrário, segundo Montes,40 ressacraliza
40 id., ibid.
esses novos espaços profanos distantes do cubo branco, mudando a relação do cidadão com o espaço público, promovendo a experiência da redescoberta, pelas comunidades, de uma sacralidade arcaica da natureza sob a cidade edificada, ao mesmo tempo em que possibilita ao homem questionar a qualidade de seu convívio e também “reconstruir formas significativas de pertencimento, recriando solidariedade e novas identificações com o espaço da cidade, numa nova maneira de reconstituição de identidades sociais e culturais”,41 além, é claro, da democratização do acesso à arte.
41 Id., ibid., p.278.
Os espaços público e privado Segundo Finkelpearl,42 parte fundamental do problema da definição da arte pública está nas assimilações dos conceitos de público e privado, e dentre as principais polêmicas que
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42 Finkelpearl. Op. cit.
envolvem a arte pública destaca-se o choque que se manifesta quando se leva a arte – atividade essencialmente relacionada à classe alta – para o ambiente da classe baixa, a rua. Logo, ele conclui, a arte pública nos Estados Unidos é uma “contradição de termos”. Essa dificuldade na assimilação dos conceitos de público e privado apontada por Finkelpearl 43 Bergamin. Op. cit.
é extensiva, acredita Bergamin,43 também ao Brasil, onde a confusão sobre o significado dessas palavras não se limita a uma parcela da população, que percebe o espaço público como a lata de lixo do espaço privado, mas atinge também dirigentes, que muitas vezes confundem as verbas públicas com suas contas privadas. E, constata o autor, os espaços
44 Peixoto. Op. cit.
públicos padecem com a confusão entre esses dois termos. Peixoto44 também concorda: o próprio conceito de espaço público está em crise, tendo-se perdido a distinção entre o que é público e o que é privado. A população foi alienada do espaço público, transformado em verdadeiro espaço de guerra, ao mesmo tempo em que o espaço privado tornou-se algo
45 Fadden, 1998, p.94-99 e p.160-161.
invadido, assaltado, atacado. Fadden,45 por sua vez, amplia as posições de Finkelpearl, Bergamin e Peixoto, sugerindo que, no Brasil, grave problema é o fato de os espaços públicos não serem assim considerados pela população: “são espaços privados, cujo proprietário é alguém que é o governo”. Nesse sentido, é dificílimo conscientizar a população quanto à necessidade de preservar os espaços públicos ou mesmo as obras de arte instaladas nesses espaços porque, no entender da população, o dono do espaço público é a prefeitura e não o povo. Principalmente a classe média considera o espaço público o espaço do outro, do inimigo, verdadeira selva. Há pouca esperança, segundo o autor, de que haja, em curto prazo, reversão desse processo, pelo menos enquanto perdurar junto à população a confusão quanto às acepções de espaço público e espaço privado. É preciso pensar sobre o tipo de intervenção cabível à arte para facilitar o relacionamento com as cidades contemporâneas, nas quais o próprio espaço público está em crise,
46 Peixoto. Op. cit.
acredita Peixoto,46 em cuja opinião as intervenções artísticas contribuem para redefinir o espaço urbano, criando novas tramas com a arquitetura e o urbanismo, e as situações sociais ao redor; assim, o espaço urbano passa a ser o resultado das intervenções artísticas, não o “campo pré-organizado, estabelecido para que isso se dê, caso a atividade artística tenha alguma força e alguma função.” Logo, de seu ponto de vistas, as intervenções temporárias no espaço urbano não são meras exposições coletivas; configuram antes uma proposição de adequação e de experimentação do espaço.
47 Bergamin. Op. cit.
Segundo Bergamin,47 ao redefinir as tradicionais contraposições entre rua e galeria, entre interior e exterior, tornando mais ambíguas as polaridades entre a arte do museu/ galeria e a arte pública, esse tipo de intervenção urbana extrapola o conceito de arte na rua – não é exata ou estritamente arte em espaço público, a partir do momento em que, para esse tipo de intervenção, a cidade significa, antes de qualquer coisa, um amplo espaço, um novo campo em que se instaura a relação dicotômica entre o “onde
48 Id., ibid., p.116.
termina a rua” e o “onde começa o museu”,48 e se exploram todas as tensões advindas dessa relação.
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Sob essa perspectiva, a produção do trabalho do artista torna-se parte integrante da obra, e sua participação no processo como um todo é constitutiva do resultado final. O artista passa a se relacionar com todas as etapas do processo, desde a solicitação da permissão dos organismos públicos ou privados para a instalação da obra até a montagem e a desmontagem do trabalho. Torna-se, assim, um ser metropolitano, cuja experiência da cidade passa a ser fato decisivo para o resultado de seu fazer artístico e cuja preocupação com questões como a atualidade da obra para um lugar específico ganha muita relevância. Nesse contexto, as intervenções artísticas temporárias no espaço urbano parecem renunciar a seu valor de culto, e até mesmo a seu valor de exposição, priorizando, talvez, a experiência do sujeito com a obra. Tanto a efemeridade e a precariedade dos suportes utilizados, como os outdoors publicitários, por exemplo, quanto a brevidade do período de exposição da obra parecem revelar uma despreocupação com o valor de culto e de mercadoria da obra, uma vez que, para a maioria dessas propostas de intervenção urbana, o valor de mercadoria da obra não reside, muitas vezes, no objeto exposto em si, mas no registro videográfico ou fotográfico desse objeto comercializado posteriormente ao período de exposição. De fato, sob todos os aspectos trabalhados inspirados em Benjamin,49 se considerarmos a aura vinculada à unicidade e à tradição, as intervenções artísticas temporárias instaladas no espaço urbano têm, por todos os motivos explicitados, sua aura abalada. Contudo, ao promoverem a experimentação do aqui e agora da obra de arte em sua relação com o público fruidor, essas obras passam a reivindicar seu status de arte com base na potencialização da experiência do sujeito com a obra. Conclui-se que a decadência da aura da obra de arte, ao liberar a obra de arte de sua função cultual, aponta novos caminhos para a arte e para a fruição do público. Nesse sentido, a figura dos museus/galerias aparece como tentativa de manter a aura da obra de arte única e seu valor de culto, ao passo que o espaço público se torna um grande cenário aberto a novas possibilidades de fruição e de existência da arte. Ainda que, no espaço público, seja difícil perceber a obra de arte como mercadoria, um produto com valor de mercado, a suplantação do valor de culto da obra cede espaço a seu valor de exposição, até porque no espaço urbano, ainda que repleto de poluidores visuais, a obra exposta é vista por um número muito maior de pessoas. Portanto, o espaço urbano surge como nova possibilidade para a obra de arte, posto que critica a necessidade da exposição da obra no espaço cultual da galeria como único recurso para validar seu valor de culto, de exposição e de mercadoria e se identifica como espaço privilegiado de fruição e de percepção do público em relação a novas manifestações artísticas contemporâneas.
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49 Benjamin. Op. cit.
Lamounier Lucas (UEMG, Belo Horizonte, Brasil) é mestre em artes pela Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais – EBA/UFMG; especialista em docência do ensino superior pelo Centro Universitário Newton Paiva; graduado em comunicação social (publicidade e propaganda) pela Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFMG e em artes plásticas pela Escola Guignard da Universidade do Estado de Minas Gerais – UEMG; professor do curso de publicidade do Centro Universitário Newton Paiva e da Faculdade Estácio de Sá; professor do curso de artes plásticas da Escola Guignard – UEMG. / raoult@bol.com.br
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Em contato: a não execução* Lela Queiroz
Aborda o enredamento das concepções de corporalização/embodiment, de campo exploratório e do contato como compósito de linguagem em perspectiva pelo exercício teórico-prático de dança contemporânea com a metodologia BMC das aulas coletivas com Lela Queiroz, pesquisadora de dança do programa recém-doutor UFRGS-UFBA em 2008 e indagar de que modo os processos matriciais de mudanças de estado a elas se atrelam à medida que os processos criativos avançam. Tem como base o entendimento de corpo como processo, e se apoia nas vertentes das ciências cognitivas da teoria de desenvolvimento dinamicista. Contato, embodiment, dança contemporânea. O contato tem sido entendido de diversos modos nos procedimentos so* Artigo recebido em maio de 2009 e aceito para publicação em setembro de 2009.
máticos de trabalho em dança contemporânea. Se tomarmos como referência o trabalho do
1 Vianna, Klauss. 1990.
deixado pela dinamarquesa Gerda Alexander3 em seu trabalho sobre eutonia, procura rela-
2 Miller, 2007.
cionar a distribuição de apoios com o tônus, o aspecto da força da gravidade com entrega
3 Alexander, 1991.
professor Klauss Vianna,1 trata-se pontos de apoio.2 Vianna, que seguiu bastante o norte
e resistência com a ação contrária exercida em relação ao apoio. Quanto mais o apoio é ativado, mais intenso se torna o tônus; quanto maior a entrega por manifestação do peso, menor é a intensidade do tônus. À eficiência do tônus se associa uma economia de esforços como aporte da melhor troca de apoio por superfície de contato. Essa é uma maneira de o contato dar-se como apoio. Há nisso, porém, muitas implicações, e existem outras formas de compreender contato, aqui apresentado como um princípio operacional BMC, Body Mind Centering, plataforma contemporânea de conhecimentos para pesquisa em dança. Marcada pelo discurso da autonomia artística e da techné, a dança referendou-se por muito tempo no domínio da técnica privilegiando os aspectos de uniformidade e controle, execução exímia e virtuosismo em detrimento de outros aspectos vitais do movimento. Hoje, a dança contemporânea e formas híbridas escapam desses grilhões e têm na educação somática bastidor permanente para suas criações. A educação somática ganha estabilidade como uma vertente na dança contemporânea por possibilitar fundamentação ao alcance das demandas de criação em dança. BMC, a Escola Internacional certificada de movimento e contato para fins artísticos e terapêuticos, propõe movimentos e contato como centrais para entender a sofisticada rede de conexões nos procedimentos especializados que busca tecer no organismo.
Em contato: a não execução Lela Queiroz
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A perspectiva da corporalização/embodiment4 permeia todo o trabalho corpo/mente im-
4 Thompson, 1996.
plementado por BMC, numa visão evolutiva dos processos por desenvolvimento em tempo real. Estão implicados aí os operadores de auto-organização5 e a construção metafórica
5 Thelen, 1995.
da realidade, em que “há um cruzamento de questões de ordem prática e simbólica,
6 Lakoff, 1999.
absolutamente enredadas”.
7 Greiner, 2005.
6
7
Thelen8 em seu trabalho se refere aos movimentos intrínsecos como “processo cognitivo”
8 Thelen. Op. cit.
do organismo. Os domínios são de início conflados (não separados) e fabricam as relações de causalidade; entremeados, e novas habilidades sensório-motoras mudam para habilidades cognitivas e vice-versa. Além disso, o movimento funcional é o amálgama entre mente e organismo que o animal precisa para destrinchar o ambiente e as informações sensoriais nele presentes, adaptar e integrar para se movimentar eficiente e efetivamente. “O significado tem suas origens nas ações e sua manifestação – gerada – em tempo real e pela atividade”.9 Segundo os filósofos Lakoff e Johnson, o conhecimento é enraizado no
9 Id., Ibid., p. 277.
corpo. A significação brota das percepções e ações do corpo. “Os conceitos não refletem apenas nossa realidade exterior, são feitos no corpo e pelo cérebro em nosso sistema sensório-motor”.10
10 Lakoff e Johnson. Op. cit., p. 22.
Sob o prisma do BMC, o modo preferencial de entender desenvolvimento se estabelece na visão do corpo “não coisificado”. A aventura de descobrir por experimentar estava 11
presente na conscientização corporal criada por Klauss Vianna. Embora por conceitos bastante diferentes dos aqui propostos e embora já tramitasse um entendimento distinto do corpo-máquina preso irremediavelmente à techné, persistia o pressuposto fenomenológico do corpo apriorístico ou essencialista. Não obstante, corpo “não coisificado” nos remete a múltiplas dimensões do vir a ser e do existir, e situa a questão do corpo como processo e a do movimento como percepção e informação.
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Cia. de dança de Diadema. Foto: Paulo Cesar Lima. 11 Cohen, 1993.
É bastante pertinente que o modo de o BMC desenvolver seus experimentos seja pela geração de campos exploratórios. Os processos de construção do conhecimento no corpo se dão, segundo Bonnie B. Cohen por processos de corporalização/embodiment, refutando a visão cognitivista mental separada do corpo. Segundo Esther Thelen, das ciências cognitivas que propõem uma teoria da ação do desenvolvimento, a percepção está no campo de ação e de exploração no ambiente, e não há como conhecer um estímulo ou um objeto sem interação, sem se afastar ou se aproximar, sem entrar em contato, sem pegar ou largar, sem o experimentar tátil, isto é, sem que o corpo ou alguma de suas partes tivesse entrado em contato, diversas vezes, com o objeto em questão. O reconhecimento das informações no ambiente ganham dimensão com movimentos. 12 Lakoff e Johnson. Op. cit., p. 30.
Lakoff e Johnson12 explicitam em sua obra os meandros dessas operações, em que a apreensão do mundo depende da capacidade do corpo de categorizar; operações que desencadeiam nosso sistema conceitual e derivam necessariamente das metáforas construídas sobre relações espaciais no corpo por nosso sistema sensório-motor.
13 Gibson, Elleonor.
Em sua teoria de desenvolvimento da percepção, Elleonor Gibson13 afirmou que a exploração era a ligação entre informação perceptiva e controle motor. Nos deparamos com a noção de que o ato de explorar implica mudança de percepção. A velha noção de execução passa a ser questionada e, em seu lugar, surge a noção de processo auto-organizativo, fator central na teoria de desenvolvimento, desautorizando a visão externalista do fenômeno, bem como a visão essencialista sobre corpo – são, portanto, o organismo e o ambiente, juntos, que engedram a mudança. É a ação por exploração e por corporalização/embodiment que compõe o tecido da ação experimental em BMC. A ação no ambiente – os modos como o organismo se movimenta nele – incrementa os processos neurológicos pela forma como a conexão sensório-motora se estabelece entre controle motor (ação) e gamas sensoriais subjacentes aos sentidos físicos (percepção). Segundo a concepção dinamicista, movimento é sentido, percepção, informação. Nessa comunicação que o movimento faz, o contato corporal é chave na questão da familiarida-
14 Queiroz, 2006.
de para os processos de corporalização/embodiment.14 A abordagem processual do curso regular ministrado por Lela Queiroz no Estúdio DançaIntegrada aplicando o método BMC para criação em dança contemporânea propõe o caminho somático de movimento e contato pelo desenvolvimento e busca a emancipação do corpo. O exercício teórico-prático no fluxo arte-ciência alia os aspectos formais da
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arte do movimento aos anatômico-fisiológicos propostos pelo método, reunindo aspectos formativos, mas sobretudo criativos, dentro da concepção de explorações, soluções adaptativas e improvisação. A aula é dividida em: foco com o corpo e o grupo, foco nos príncípios evolutivos, foco no campo exploratório seguido por um foco improvisacional. Processos iniciados em cada uma das quatro divisões da aula irrigam e atuam como conversores de escalas de espaço-tempo variadas. Observar como as diversas escalas temporais/espaciais entre operadores e procedimentos se relacionam e variam ao aplicar os princípios evolutivos de desenvolvimento indicou serem fundamentais as seguintes características: (1) aprendizado por ação sensório-motora e processos de atenção e intenção mente/corpo, (2) campos migratórios, (3) espaço curvo e verticalização da experiência, (4) ação dupla com finalidade estruturadora e criativa. Novas ferramentas e procedimentos de criação surgem nesse (e por esse) caminho exploratório de corporalização/embodiment pelas variações entre contato e movimento. A referência a campos migratórios diz respeito à informação com modificação continuada, numa perspectiva darwinista. Instâncias do próprio conhecimento de corpo mesclamse a instâncias de aprendizagem específica, com lúdica motivação de enveredar pelo desconhecido e com a capacitação conceitual que trazem parâmetros e referenciais para a ação em configurações mais complexas. Em aprendizagem específica, configura-se a detecção de demandas intrínsecas não verbalizadas por parte dos alunos. Elas constituem corrente manancial entre acaso e necessidade. Na capacitação conceitual das aulas figuram o trânsito teórico-prático das ciências cognitivas e os princípios fundamentais do sistema de práticas BMC – entre eles forma precede função, estabilidade-mobilidade, sombra-luz, iniciação-caminho – provenientes do método, e o aspecto crucial do trabalho fica por conta da exploração que vai intermediando essas instâncias. A escuta, por parte da facilitadora, bem como de participantes, permite transpor o mecanicismo e a repetição (que redundam na questão da execução) e prestar atenção no que está acontecendo, em “escuta e presença”, gerando um campo detector de demandas suscitadas coletivamente sem que seja utilizada a palavra. BMC chama isso de “a mente da sala” (The mind of the room). Mais uma vez, fica confirmada a compreensão sistêmica do observador implicada na ação no mundo. A adoção desse princípio de corporalização/embodiment adquire novo sabor: além de estar em jogo o corpo como um todo, os movimentos que o corpo faz participam ativamente na construção da cognição. O olhar e o gesto seguem a “escuta e presença”, e nutrem-se as demandas sem ficar condicionadas à fala. Ao contrário, é ela que se adapta aos caminhos emergentes.
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O processo Cia. Borelli. Foto: Paulo Cesar Lima.
As operações viscerais, controladas pelo sistema nervoso autônomo, visto que são fontes de regulações primeiras e profundas do organismo, ganham destaque em BMC; são elas que reorganizam internamente um processo dinâmico que aposta, para favorecer a corporalização/embodiment, no diálogo inconsciente-consciente e se apoia especialmente nas divisões do SNParassimpático e SNEntérico do Sistema Nervoso Autônomo. Ossos, músculos e nervos deixam de ter mera compreensão motora ou esquelético-articular e passam a elencar redes sensório-motoras de conexão corpo/mente. Em BMC, a contraparte do sistema nervoso somático, o sistema nervoso autônomo, recebe a designação de acrescer, como sua especificidade, o papel de segundo cérebro do organismo, pareando-se com algumas famílias de filosofias orientais. A compreensão diferenciada do papel evolutivo de movimentos e contato na construção dessas redes sensório-motoras leva-nos à compreensão dos padrões neurológicos basais (BNPs) desenvolvidos pelo BMC. O conjunto das ativações do corpo compondo o amplo domínio sensório-motor afeta por completo a antiga compreensão motora per se, datando a obsolescência desse reducionis-
15 Queiroz. Op. cit.
mo, flagrando a complexidade envolvida no campo de movimentos e do contato.15 O acesso ao corpo com base nessas conexões e nos princípios evolutivos do movimento e de desenvolvimento para a ampliação repertorial de dança do aluno norteia esse trabalho em aula. Mergulhos de movimentos e contato migram entre posturas de alongamento e fortalecimento, incursões dos princípios em improvisação, e o aporte conceitual transforma cada uma dessas dimensões numa grande empreitada exploratória. “Corporalização/embodiment, desenvolvimento por exploração lúdico-criativa e abordagem mente/corpo por movimento&contato singularizam a proposta do BMC como Educação Somática especificamente para a Dança.”
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O trabalho corporal com base nos sistemas corporais que o BMC estuda contribui interdependentemente para a expressão corpo/mente e tem como uma de suas possibilidades abordar tais sistemas pelo ponto de vista das qualidades de movimento e contato, e isso ao mesmo tempo balanceia e integra sistemas entre si, criando uma qualidade expressiva individual. A interação dos diversos sistemas no organismo é feita num continuum entre movimentos e contato por modificação continuada. Interessada em investigar como esses processos ocorrem com o corpo, por qualidades de movimentos que se tornam catalisadores de modificações crescentes nos estados, Lela Queiroz destaca o fato de que essa confabulação incessante entre movimentos e contato parece ser a característica essencial do dinamicismo, como matrizes intrínsecas no desenvolvimento, que desencadeia mudanças de estado. Eles se flagram como variáveis, ora como dissipadores, ora como indicadores, moduladores e facilitadores nos processos auto-organizativos. Assim, o trabalho em aula, essencialmente por mergulhos e incursões, segue algumas características intrínsecas dos processos evolutivos, tais como ocorrer por variação x seleção, processos de tomada de decisão, adaptação de arranjos já percorridos em soluções criativas. Ocorre significativo acasalamento do material proposto em matrizes diferenciadas em cada corpo. E o enriquecimento repertorial se dá numa estrutura aberta não linear ou cumulativa, mas que se rearranja continuamente – adaptativamente – em percepção ampliada da realidade. Para entendermos tanto a corporalização/embodiment, assim como o diálogo de inconsciente e consciente, pelo prisma do BMC, quanto a cognição com base em movimentos e contato, é crucial a compreensão do sistema sensório-motor, bem como o entendimento de como acontece a construção de padrões neurológicos a partir de movimentos. Aqui nos deteremos no fenômeno do contato. O contato promove o reconhecimento no sistema corpo-ambiente.16 Modificador nessas comunicações, caracteriza transformações nos estados corporais/mentais. O contato desempenha, portanto, papel crucial nos processos de comunicação, processos esses que são dinamicamente constituídos. Na visão sistêmica dinamicista, contato é variável crucial na seleção e atração para uma dada configuração entre muitos estados possíveis. O contato corporal deixa um rastro modificador, uma vez que constitui mediação específica. Trata-se de acontecimento permanente entre os diferentes tipos de toque e relações que se estabelecem nos sentidos do tato (texturas, superfícies) e da visão. A maneira de o contato dar-se como apoio constitui uma das variáveis possíveis – a manifestação como apoio fica sujeita aos aspectos de modificação de outras variáveis, sejam elas de intenção, tensão, pressão, duração, aspereza, etc. Por exemplo, partindo-se do princípio de que o relaxamento se estabeleça e se dê a manifestação do peso do osso no apoio, fica, por assim dizer, de certo modo desmotivada a iniciação de uma ação se
140
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16 Lewontin, 2002, p. 46-74.
ocorrem um colapso das forças e a ausência de tônus necessários à configuração de uma ação. Ao contrário do que comumente se pensa, estão em jogo novas relações além das de contato unicamente como apoio. O contato-improvisação pode ilustrar bem isso; por se tratar do contato entre dois ou mais, a conexão é viva, coemergente e coevolutiva... Temos no contato imensa gama de exploração para a questão dos movimentos. Um estado de movimento reconfigura-se com o acontecimento de um contato. O contato porta um grau de decisão e escolha: estar em contato de um modo exclui outros. Essas escolhas afetam diretamente o modo e o significado do contato. Trazem algo do aspecto irreversível da ação, irreversibilidade essa restrita ao momentum dos movimentos em jogo e da ação em curso. O contato é transdutor, certa medida, permitindo a transmutação de um evento em outro. É conversor, em outra, permitindo converter uma energia em outra. E age ainda como conector. Isso nos lembra um pouco o fator “tudo ou nada” eletroquímico da sinapse no sistema nervoso, pois, quando o limiar é atingido, ocorre o disparo, que converte um evento em outro. Assim se dá com o contato, assim se toca, assim se estabelecem novas redes. O contato correlaciona o campo da minha ação com o que está fora e nos joga na compreensão sistêmica do observador implicado na ação no mundo. Na tese de doutorado, Lela Queiroz defende uma visão dinamicista do organismo, condi17 Greiner; Katz, 2001.
zente com a teoria corpomídia,17 em que se entende corpo como ambiente de mediação. Esclarece-se a razão de conceber movimentos e contato como dinâmicas intrínsecas do
18 Thelen. Op. cit
organismo, como sustenta Thelen.18 Esclarece-se, nas medições dos experimentos de “habituação”, o papel que o contato desempenha como indicador não apenas tátil, mas do ambiente da exploração em jogo, dimensionando a informação nele contida. Ele produz o diferencial em meio às variáveis de invariância do objeto. O contato cria referenciais para a continuidade da percepção. Mais importante ainda, junto com o movimento, ele informa
19 Queiroz. Op. cit.
os sentidos para a recategorização perceptiva.19 A título de exemplo, e ressalva seja feita, uma tradução possível para yield é ceder, ou entrega. Seguindo-se a mesma ressalva, bond é conectividade e vínculo, sem o qual o yield fica um pouco comprometido, um pouco desprovido de inteireza configurada. Tanto yield como bond são noções sofisticadas do BMC para dar cobertura à espécie de eventos pertinentes ao contato, entendido de modo muito específico em suas variáveis. Novas matrizes repertoriais são plantadas dessa forma e começam a se definir num terreno de diferenciação crescente possibilitado por sua vez pela experiência direta que as explorações concedem, seja nas variações de contato em que figuram sensações táteis (cinestésicas), duração, energia emergente nas ações, emoções, direções espaciais e outros fatores envolvendo demais sentidos, seja nos caminhos de movimentos. O rastro do contato modifica a ação com escolhas e tomadas de decisão em limiares de ação muito rápidas, em fluxos do inconsciente cognitivo. Com isso, o campo do contato
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pode ser visto como um potente processo matricial gerador que se constitui enquanto margem e auto-organiza novos estados. A repercussão do trabalho de BMC junto aos alunos tem indicado mesmo mudanças de estado significativas. A exploração em BMC age duplamente, como ferramenta de trabalho de campo e procedimento criativo. A dança contemporânea, seja em composição por movimento coreográfico ou improvisacional, ganha novo espectro de proposições. Criativamente, o contato modifica os contextos, e a dança é feita de contextos. Nesse sentido, o enriquecimento repertorial decorre e depende das práticas exploratórias com o próprio corpo em movimento. Com isso em mente, a exploração de movimentos é campo crescente e em expansão, e as significativas mudanças de estados sentidas pelos alunos decorrem desses processos de percepção ampliada da realidade, que antes de ganharem a forma de relatos ganham descrição em seus corpos.
Referências bibliográficas ALEXANDER, Gerda. Eutonia. São Paulo: Ed. Martins Fontes, 1991. COHEN, Bainbridge B. Sensing, feeling and action. Massachussets: Contact Editions, 1993. EDELMAN, Gerald M. Bright Air, Brillant Fire. On the matter of the mind, memory and the individual soul: against silly reductionism. New York: Basic Books, 1992, p.165-187. GREINER, Christine; KATZ, Helena. Corpos e processos de comunicação. Fronteiras. São Paulo: Unisinos, 2001, v. l3, n. 2, p. 65-75. LAKOFF, George; JOHNSON, Mark. Philosophy in the flesh. New York: Basic Book, 1999. LEWONTIN, Richard C. A tripla hélice – Gene, organismo e ambiente. São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p. 46-74. MILLER, Jussara. A escuta do corpo. São Paulo: Ed. Summus, 2007. QUEIROZ, Clélia. Corpulações. Tese (Doutorado em Comunicação e Semiótica). PUC-São Paulo, São Paulo. 2006. ______. Beyond body machine, the birth of corpusmedia. RJ. http://www.idanca.net. 2006. ______. A subjetividade revisitada. Simpósio corpo e subjetividade – SENAC-SP. Congresso Mundial de Dança CID / ONU. Grécia. http://www.idanca.net e Movimento Dança Recife. 2005. ______. Processos de corporalização nas práticas somáticas. BMC. v. 1, p. 167-176. col. Húmus. Caxias do Sul: Lithograf. 2004. ______. Corpomídia o além amar dos discursos sobre corpo. n. 12, p. 88-96. Revista Reichiana. São Paulo: Ed. Sedes Sapientiae. 2003. ______. Cartilha desarrumada: trânsitos e circuitações em Klauss Vianna. 151p. Dissertação (Mestrado em Comunicação e Semiótica). PUC-São Paulo, São Paulo. 2001. THELEN, Esther. A dynamic systems approach to the development of cognition and action. Massachussetts: MITPress. 1998.
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Lela Queiroz (UFBA, Salvador, Brasil) é doutora em comunicação e semiótica pela PUCSP, mestre em consciência corporal, professora adjunta do Programa de Pós-Graduação em Dança da UFBA, praticante BMC, formada em educação somática pelo movimento nos EUA e Alemanha; coreógrafa e artista performer em intervenções públicas, tendo recebido bolsas e premiações. / lela@ufba.br
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Ana Maria MagalhĂŁes e TarcĂsio Meira em Idade da Terra, de Glauber Rocha.
A imagem-tempo como potência política do cinema* Rodrigo Guéron
Segundo Gilles Deleuze, o cinema só vai encontrar toda a sua potência quando se deslocar do cinema da “imagem-movimento” para o cinema da “imagem-tempo”, mudança que caracterizaremos mais detalhadamente neste artigo. Mas nosso principal tema se refere à maneira como o cinema da “imagem-tempo”, a partir de suas principais características, encontra uma nova potência política ou, segundo palavras do próprio Deleuze, o cinema “(...) se torna inteiramente político, mas de outra maneira”.1 Cinema, política, pensamento. Política e arte, e aqui, especificamente, política e cinema: eis o que * Artigo recebido em julho de 2009 e aceito para publicação em setembro de 2009.
primeiro chama a atenção em nosso texto. Mas, é claro, também a Filosofia, visto que já
1 Deleuze, 1983, p.30.
no início de seu segundo livro sobre (e não só sobre, mas também com base em e com)
no resumo nos referimos a um filósofo, Gilles Deleuze, e citamos trecho que se encontra o cinema: Imagem-tempo. Essa citação foi retirada do trecho em que ele explica a passagem, do que chama de “cinema clássico” para o “cinema moderno”, do cinema da imagemmovimento para ao cinema da imagem-tempo; é nessa passagem que o cinema se teria tornado “inteiramente político, mas de outra maneira”. Então, aqui temos outra relação, filosofia e política, e, finalmente, as três juntas: filosofia, cinema e política.
2 Nietzsche, 1996.
Da mesma maneira que Nietzsche fez em O nascimento da tragédia,2 é com base num problema estético e na arte – no caso, o cinema – que Deleuze nos conduz à filosofia e, nesse mesmo movimento, à política. Ou melhor, por uma abordagem estética e uma singular forma de produção estética – o cinema –, Deleuze nos reconduz ao que, para quase toda a academia filosófica, a não ser pelos “especialistas” em filosofia política, parece hoje bastante distante, ou seja, a política como um problema filosófico; e mais, a filosofia se reencontrando como fundadora da política posto que encontra seu caráter ontologicamente estético – o que se refere a aestesis, à sensibilidade, ao corpo –, mas também à medida que descobre, com o estudo de Deleuze sobre Bergson, o mecanismo cinematográfico da percepção e
3 Bergson, 2001.
do pensamento,3 e o próprio universo compreendido como uma espécie de metacinema. Na primeira fase do cinema, o cinema da imagem-movimento, Deleuze já sinaliza sua potência política, mas potência ainda efetivada de maneira limitada, porque o cinema não havia descoberto e assumido todas as suas possibilidades. Deleuze nos indica então que a dimensão política do cinema está no iluminismo das primeiras escolas de cinema.
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Assim, já depois que Nietzsche diagnostica um esgotamento de todo o racionalismo, já depois que ele constata, denuncia e combate o iluminismo, sobretudo quando reduzido à impotência niilista do positivismo e da razão hiper-reificada como força que se volta contra a vida e paralisa o pensamento, Deleuze nos leva a crer que o iluminismo encontra seu último momento potente no cinema. Na verdade trata-se de um certo kantianismo que Deleuze percebe nas primeiras escolas de cinema e que inspirara antes o modernismo: o cinema que busca experiência do sublime. Assim este “autômato do movimento”, o cinema, numa espécie choque sensorial, seria capaz de acionar o “autômato do pensamento”: a razão. Ela, diante do sentimento de imensidão e incomensurabilidade – a experiência do sublime – supera qualquer intimidação inicial e acaba por acionar toda a sua força e sua tendência infinita para não se sujeitar, ou seja, o sentimento sublime não é próprio do objeto da natureza diante do qual experimentamos essa grandiosidade e incomensurabilidade, mas é expressão da infinita liberdade e das infinitas possibilidades da própria razão4 que, por ele impactada é posta a funcionar em seu limite. Ainda que, por exemplo, Eisenstein tenha concebido a montagem dos filmes como um processo fenomenológico que colocaria as imagens, os elementos das imagens e todos os elementos fílmicos em colisão dialética, colisão que constituiria os sentidos do filme e finalmente o sentido do filme como o “Todo Filme”; ainda que, portanto, Eisenstein conceba uma montagem cinematográfica hegeliano-marxista, a experiência estética buscada por seus filmes é também de certa maneira a do sublime kantiano. Nessa lógica, o cinema, “autômato do movimento”, obra de arte que é manifestação sensível da Ideia, como diria Hegel, provocaria um choque sensorial que moveria o pensamento exatamente por se encontrar em oposição dialética a ele. A experiência do “Todo Filme”, o “sentido do filme” estaria no próprio subsumir dessa oposição que se daria no modo de ser da experiência hegeliano-marxista da autoconsciência. O racionalismo das primeiras escolas de cinema, porém, estava também na própria maneira de estruturar as histórias dos filmes. Mesmo como “filmes de ficção”, o cinema clássico construía uma história fechada, em que, de alguma maneira, o conflito a que assistíamos era o da mentira filme x a verdade filme. Tratava-se de histórias que aspiravam a um fim, ou seja, havia de uma maneira ou de outra uma teleologia nos filmes que assumia um caráter moral – de fábula moral –, explícito por exemplo nos westerns. A originalidade da imagem-movimento estaria assim na tradução cinematográfica, na objetivação fílmica, do iluminismo que perpassava a própria civilização, ou seja, o iluminismo como um regime de verdades que persistia mesmo quando a palavra de ordem era revolução. A originalidade política e cinematográfica de Eisenstein, por exemplo, estava na invenção cinematográfica das massas como sujeito do processo histórico: a originalidade estava onde a história poderia ter outro protagonista. E aí estaria também o sinal da captura política que esses filmes iriam sofrer mais adiante, qual seja, a ideia de que a história poderia ter “o protagonista” na luta por um reino de justiça que seria como um telos:
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4 Kant, 1955.
um destino predeterminado da história. “O protagonista”, no caso a classe operária, tida como “consciência da história”, era já o início da crença num transcendente: o antecedente da sujeição do cinema ao pensamento na forma Estado. Em todo caso, as massas como protagonista e a própria existência da classe operária, sua efetiva constituição, estivera antes nos filmes de Eisenstein, e mesmo em Vertov, do que plenamente na Rússia e na União Soviética. O século XX fundava-se tanto sobre uma experiência cinematográfica do real, que Eisenstein foi tão líder da Revolução Soviética – enquanto ali houve de fato um devir revoloucionário – quanto Lenin: foi um grande produtor estético da revolução. Nesse sentido, seus filmes tinham já, num aspecto pelo menos, o que, segundo Deleuze, o cinema só foi descobrir explicitamente com Orson Welles e com o neorrealismo italiano: a “potência do falso”, ou seja, uma capacidade inventora, produtora de realidade. Tratava-se de uma descoberta feita pelo cinema que o aproximava da filosofia, uma vez que desde Nietzsche esta se afirmava como potência inventora de sentidos, liberadora de sentidos e perspectivas. O cinema, quando descobre a potência do falso como sua principal característica e força, está se descobrindo como vontade de potência: trata-se de uma descoberta nietzscheana do cinema. Foi nesse mesmo contexto que o cinema percebeu, ali pela Segunda Guerra Mundial, que precisava enfrentar as contraforças do pensamento. Mesmo sendo uma forma de expressão do pensamento distinta da filosofia – portanto, cinema não é filosofia; mesmo sendo então arte em sua atividade de produzir perceptos e afetos (que não param, é verdade, de engendrar conceitos na filosofia), o cinema viu suas contraforças triunfarem dentro dele mesmo e sobretudo dentro dos impressionantes jogos de poder que se impõem para se fazer um filme: o preço do filme. Segundo Deleuze, o dinheiro seria o avesso de toda imagem cinematográfica, isto é, o grande intermediário entre a imagem e o tempo dos filmes: o cinema, portanto, com um dos mais extraordinários exemplos do que Deleuze 5 Deleuze. Op. cit., p. 104.
chamou de “velha maldição do capitalismo: tempo é dinheiro”.5 O cinema se vê então totalmente sujeitado, totalmente capturado pelo capital e pelo Estado lá pelos idos da Segunda Guerra Mundial. Nesse caso, então, as contraforças do pensamento se expressam como contraforças da arte. E a captura do cinema é aí tão estética quanto política. A resistência, porém, que o cinema irá abrir terá também esse caráter estético-político. Entre outros motivos, essas contraforças do cinema podem ser assim chamadas porque nos impedem a percepção da dimensão cinematográfica do próprio processo de produção do real. Pouco tempo antes da guerra, Eisenstein parece perceber essas contraforças quando res-
6 Eisenstein, 2002.
ponde, num texto sutil que balança entre o irônico e o cauteloso,6 à pressão que sofria do stalinismo para mudar seu cinema. Nesse texto, Eisenstein mostra que não aceita ser o cineasta do Estado (cineasta moral? cineasta jurista?) e esclarece então que, se era para fazer filmes com a mesma estrutura estética e dramática de Hollywood, mas exaltando
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e reificando os heróis morais da revolução – na verdade agora heróis do Estado soviético –, o cinema soviético perderia, como perdeu, toda a sua potência revolucionária; e só a recuperaria bem mais tarde, com Tarkovski. A seu modo, portanto, Eisenstein percebeu que, quando a revolução deixava de ser esteticamente renovadora, não era mais revolução. Das massas sujeitas do processo histórico, o cinema tornou-se grande agente das massas assujeitadas – ainda que Eisenstein talvez jamais tivesse percebido que o embrião desse assujeitamento sempre estivera no conceito de “massa”, por expressar uma grande unidade contra toda a multiplicidade: massa sempre pronta a se tornar “povo” como um dos transcendentes do Estado Nação). O que o cinema precisa desconstruir é então a vontade de verdade e a racionalidade a todo preço, das quais ele nasce e às quais dá configuração própria, que acaba por limitá-lo em suas possibilidades. Primeiro a câmera de cinema e todo o dispositivo, como a mais magnífica, a mais suprema tecnologia da mímesis buscada desde o renascimento: “Eis a verdade”, era o enunciado geral que veio com o dispositivo do cinema, como viera antes com a fotografia; depois, como já vimos, o iluminismo das escolas de cinema: o autômato do movimento que acionaria o autômato da razão e, enfim, o telos de todo filme e suas histórias fechadas como o fim de toda contradição. Por isso então o cinema é tão magnificamente capturado pelo Estado e pelo capital: racionalização plena e definitiva no final, as histórias que creem no fim da história e o caráter moral dos personagens: a vida em sua dinâmica produtiva disciplinada e sujeitada por transcendentes morais. Esse só poderia ser o destino do cinema clássico: o cinema da imagem-movimento. Assim pensava, por exemplo, o cineasta Hans Jürgen Syberberg. O que Syberberg parece ter concluído é que, esteticamente, esse projeto e concepção de cinema só poderia descambar para um impressionante ideal asséptico: como se o destino da imagem-movimento só pudesse ter sido mesmo Leni Refensthal. Por isso o cineasta alemão dizia que era preciso mover contra Hitler um processo dentro do próprio cinema, voltando contra ele suas próprias armas para derrotar cinematograficamente o “Hitler cineasta”.7 Qual era o problema da imagem-movimento, então? A sujeição do tempo. O tempo, desde sempre a grande matéria dos filmes, era concebido nas primeiras escolas de cinema (embora já escapasse por todos os lados) como um número do movimento, como definiu Aristóteles em Física, e a física moderna manteve em seus primeiros séculos. A sujeição do tempo significava uma limitação na compreensão das possibilidades do próprio tempo, que implicava, por sua vez, limitação na compreensão das possibilidades do movimento e do papel ativo do corpo – o corpo sempre como imagem, nesse processo. A captura do cinema pelo Estado e pelo capital, que assumem seus supremos momentos de articulação a agenciamento num momento como o da Segunda Guerra Mundial, ou seja, num momento de “guerra entre nações”, é sem dúvida alguma consequência extrema da vontade de verdade: vontade de verdade como contraforça, como “força da antiforça”: agente despotencializador do pensamento e da arte. Nesse sentido, a vontade de verdade se apro-
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7 Deleuze. Op. cit., p. 345.
xima da própria estrutura da imagem-clichê como um esquema sensório-motor, posto que antes de qualquer positividade, qualquer caráter ativo e afirmativo, a vontade de verdade é o temor de todos os riscos, a recusa de todo devir e movimento, desdobramento de um grande temor do lugar-limite a que a arte nos pode conduzir. Os personagens nômades do cinema da imagem-tempo vivem uma experiência-limite de ordem sensório-motora. Eles se instalam e nos instalam no lugar da gênese da experiência de realidade como o lugar da gênese das imagens: gênese de corpos-imagens como signos, realidade desde sempre como experiência de linguagem, e sobretudo toda e qualquer experiência da percepção dos corpos, da matéria, como desde sempre percepção de imagens. Por isso esses personagens experimentam e nos fazem experimentar o fato de que esse lugar-limite dos seus e nossos corpos é um lugar de criação: produção. Por isso Deleuze diz que aí se descobre toda a potência do cinema, identificando essa descoberta como nietzscheana: a descoberta das potências do falso. Em outros termos, essa é a descoberta da vontade de potência pelo cinema. O cinema assim nos desloca, como a filosofia havia feito com Nietzsche e Bergson, de uma suposta reprodução e da descrição do real para a produção do real. Deslocamento que é feito à medida que o cinema nos conduz de volta ao plano de imanência. Somos então existencialmente instalados num lugar-limite, onde um abalo sensório-motor impõe a reinvenção das imagens como signos: a retradução dos afetos que acometem aos corpos em novos sentidos. Ou, como diria Nietzsche, “um impulso nervoso 8 Nietzsche, 1974.
que transformamos em imagem, e uma imagem que transformamos em som...”.8 É nesse momento que podemos dizer o quanto essa operação estética é também uma operação política. Se, de um lado, o iluminismo, seus universais e transcendentes ganham frescor e potência nas primeiras escolas de cinema por causa da própria originalidade das experiências fílmicas, originalidade do próprio cinema como forma de expressão, de outro, a sujeição do cinema à forma Estado/capital e sua captura completa nas mobilizações nacionais da Segunda Guerra Mundial foi o destino da imagem-movimento exatamente porque mantinha o tempo disciplinado. A insurgência do tempo sobre o movimento permite então ao cinema nos levar aos limites de nós mesmos, porque nos leva ao exato limite sensório-motor em que nossa própria vida se instala e se produz como uma diferença de tempo – sobre um intervalo – entre nós e o mundo em torno. Em outras palavras, vamos ao limite de nosso mundo, o nosso limite como microcosmo dentro do grande cosmos, e descobrimos ali o aberto, que é a maneira como Bergson descreve o Todo. O problema então é não recuarmos diante dessa descoberta, posto que existencialmente ela significa, na descrição de Nietzsche, o exato princípio da experiência do niilismo: a descoberta de que todo esforço pela vida é vão. Isso acontece porque, ao experimentarmos esse lugar existencial-sensorial em que a própria experiência do real como experiência da imagem surge, descobrimos que não há nenhum sentido para além da experiência imanente da vida que justifique a própria
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vida: ao contrário, é ali que ela se constitui como sentido. Toda a potência do cinema da imagem-tempo vem dessa descoberta, até no que ele tem de potência política. De fato, a derrocada dos transcendentes é a própria derrocada do Estado e do capital como transcendentes, posto que o pensamento que afirma os transcendentes é já o pensamento na forma Estado;9 ainda que seja fato que do ponto de vista das insistentes estéticas dos poderes constituídos e seus esquemas sensório-motores – o biopoder – essa derrocada jamais tenha acontecido. Não há dúvida, porém, de que a crise da razão precisa ser compreendida tanto como crise estética quanto como crise política. Por isso dissemos que a potência política do cinema está na possibilidade de ele nos devolver ao plano de imanência. Plano de imanência semelhante à maneira como ele foi descoberto e descrito pelos pré-socráticos, physis e nous: matéria e espírito; mas ambos sempre em devir e em reprocessamento. O cinema da imagem-tempo nos conduz ao aberto, ao todo bergsoniano, não só porque acontece o rompimento do que Deleuze chama de ligação orgânica entre os personagens e as imagens, típica do cinema clássico, mas também porque aí se dá o rompimento dos limites constituídos, das ilusórias experiências de realidades a priori, que faz com que experimentemos as imagens, suas composições e histórias, apenas como clichês. De fato, na experiência da imagem-clichê, a redução sensório-motora que funda a própria experiência do real como experiência sempre de imagens, chega ao extremo de redução a um sentido predeterminado que acaba por ganhar caráter transcendente. Por isso compreendemos o processo de instauração do clichê como o próprio processo que carimba no corpo a moral, à maneira que descreve Nietzsche: um processo “fisiológico” semelhante ao processo “sensório-motor” bergsoniano. O clichê é uma imagem-moral: uma imagem índice redutor e determinador de valor. Ele funciona como uma espécie de imagem padronizadora capaz de despotencializar afetos, posto que produz serialização e disciplinamento sensório-motor afetivo e perceptivo. Nesse sentido podemos dizer que o clichê é uma imagem que é expressão de um poder constituído, exatamente à medida que esvazia nossa potência criativa como corpos vivos que somos. O clichê – a imagem-clichê – não é algo particular ao cinema, mas é algo próprio a nossa experiência de realidade sempre enquanto imagem. Se a experiência das imagens – a experiência do mundo – é desde sempre a experiência da linguagem (e por isso o que percebemos como objetos são também sempre signos), ela só pode ocorrer no modo de ser de uma experiência comum, embora desigual, em que potências se encontram, se confrontam e/ou se compõem. Isso significa que nossa dimensão política está no simples fato de estarmos instalados na linguagem. Assim, se essa percepção de corpos-imagens é da ordem da linguagem e é, como vimos, uma produção de nossa potência vital enquanto corpos vivos, qualquer ação que altere essa percepção, que mude seu caráter, será política. Em outras palavras, qualquer ação estética – que se refere ao corpo, à sensibilidade – será então política.
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9 Deleuze e Guattari, 2002.
Isso implica a compreensão, aliás, de que, como corpos-imagens instalados na linguagem e enquanto linguagem, somos parte de um corpo-imagem coletivo. De fato, a linguagem e a experiência do real enquanto imagem são sempre prótese: extensão e ferramenta do corpo que ganham determinada forma. Trata-se, contudo, de um tipo especial de prótese, qual seja, a que se estende ao corpo para, num entrelaçar-se de corpos, constituir esse corpo coletivo, comum, num processo que é eminentemente político. Em outras palavras, a extensão (a prótese), fruto de ação produtiva e inventiva do ser, torna-se mais do que simplesmente extensão posto que altera a capacidade produtiva do ser e pode vir a tornar, ela mesma, um novo modo do ser em produção. São exatamente esses corpos coletivos, resultado da composição e dos jogos de poder dos corpos individuais e singulares, que são capturados pelos transcendentes do Estado. A captura consiste numa delimitação que precisa parcialmente despotencializar um corpo coletivo, remetendo e sujeitando toda a sua produção a uma espécie de “grande unidade”, que inclui desde as dinâmicas coletivas de produção decodificadas em “PIBs nacionais”, até uma espécie de decodificação qualitativa nomeada “cultura nacional” ou “identidade nacional”. Nesse sentido, a saída dos estúdios do neorrealismo italiano para filmar o caos da guerra, foi como o sair da última casamata da guerra: casamata do próprio Estado Nação. Segundo Paul Virilio, a propósito, as últimas grandiosas produções de guerra do Terceiro Reich, os filme-clichês de guerra de Hitler, foram vistos nessas casamatas posto que 10 Virilio, 1993.
já não existiam mais cinemas na Alemanha semidestruída e a caminho da derrota.10 Nesse caso, o estúdio era ele mesmo um clichê, isto é, um esquema sensório-motor que produz uma redução de sentidos em parcial anestesiamento e em redoma sensorial em relação ao mundo em torno. Deleuze, por sua vez, chama a atenção para como uma espécie de “entrelugar” que a Itália vai ocupar no final da guerra, tornando difícil seu enquadramento aos lugares morais dos Estados “bons e maus”, “vencedores e perdedores” do conflito, favorece o próprio neorrealismo: um movimento que começa a quebrar os clichês exatamente porque surge numa situação de aberto histórico deslocado de qualquer clichê. Por isso essa operação estético-política do neorrealismo pode ser considerada também resistência, e mesmo desconstrução do que Foucault chamaria de biopoder; sendo, nesse sentido, uma ação biopolítica. Por isso também, a partir de então, o caráter político do cinema teve de se afirmar para além do iluminismo das primeiras escolas. A operação política do cinema da imagem-tempo é, em primeiro lugar, uma quebra de clichês, que, entretanto, muitas vezes se dá como uma guerra de afetos que detecta e desconstrói as contraforças da vida e do pensamento que surgem como imagens e personagens. Nesse caso, é notadamente Orson Welles o pioneiro nessa operação, ao mesmo tempo apresentando e colocando em crise uma série de figuras do ressentimento com os quais seus personagens, interior ou exteriormente, não param de se medir. São respectivamente Kane, cuja impressionante vontade criadora se transforma em vontade controladora, e Otelo, quando é contaminado pela inveja e pelo ciúme de Iago. Trata-se do “nietzscheanismo”
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de Orson Welles, mas que é parte de uma descoberta nietzscheana que marca todo o cinema da imagem-tempo, qual seja, o cinema descobrindo as “potências do falso”; em outras palavras, o cinema descobrindo a vontade de potência tal com foi descrita por Nietzsche. Nesse sentido, a liberação dessa potência vital contra tudo que se lhe opõe passou a ser uma questão desse cinema, marcando sua dimensão política e fazendo de seu combate político uma espécie de resistência biopolítica, nos termos de Foucault. Antes de Foucault, porém, foi Nietzsche quem descreveu essas figuras do ressentimento como as figuras do niilismo que são apresentadas na última parte do Zaratustra.11 O Niilismo é, em Nietzsche, o modo como as contraforças do pensamento e da vida, manifestando-se como “vontade de nada”, ganham dimensão histórica e social. Mais tarde então, no magistral filme de Werner Herzog O Enigma de Kaspar Hauser, veremos o infantilmente potente, criativo e perigoso Kaspar enfrentando, uma a uma, as figuras do niilismo como Nietzsche as descreveu: o Homem de Estado, o Homem de Religião, o Homem Culto e o Homem Verídico ora como o lógico, ora como cientista. Kaspar Hauser é um herói trágico do cinema da imagem-tempo porque é um personagem que nasce e vive fora de tempo. Exatamente por isso ele é lançado numa dinâmica de descobertas e invenções que quebram as figuras morais aqui descritas. É nesse sentido que a quebra dos clichês dos filmes morais dos Estados nacionais mobilizados para a guerra é uma operação biopolítica. O biopoder que o neorrealismo começa a descontruir, em operação que cineastas como Godard, Cassavetes e Glauber levam muito mais longe, é constituído por corpos-imagens adestrados, ascéticos, serializados, cheios de afetos de ressentimento, excitados para a guerra, e assim por diante. Identificar Godard e Glauber como cineastas políticos parece mais evidente. Mesmo que sejam grandes desconstrutores dos clichês políticos do iluminismo, do Estado Nação e do capital, os mantêm de certa maneira identificados, justamente por essa operação de deslocamento e desconstrução que fazem. Godard, por exemplo, descobrindo a moral judaico-cristã, a estrutura da grande causa transcendente, na célula maoísta em A Chinesa; Glauber fazendo o cinema político em que o intelectual iluminista entra em derrocada à procura de um povo que falta; o transe, o deslocamento e o acavalamento dos tempos históricos e dos lugares sociais predefinidos: a implosão de toda lei e de todo determinismo da história em Terra em transe. Em que medida, porém, poderíamos dizer que Cassavetes é um cineasta político? Pela maneira especial em que esse estadunidense é um cineasta de corpos (embora Godard e Glauber também o sejam), desde o corpo estranho, o corpo “no lugar social impossível” da menina branca da família de negros em Shadows, a descoberta do rosto como o centro especializado da percepção em Faces, até o corpo que não para de gesticular querendo desesperadamente sair de si, nem que seja pela loucura, de novo expressões faciais distorcidas, frases e sons pela metade, enfim, o estágio de pré-loucura da protagonista de Uma mulher sob influência: espasmos de um desespero sensório-motor para escapar aos clichês sociais impostos. Cassavetes é, então, político posto que é biopolítico.
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11 Nietzsche, 1981.
De fato, os corpos capturados pelo agenciamento estado/capital são na verdade o grande drama dos Estados Unidos; por isso o grande cinema americano contemporâneo é um cinema de corpos: de novo um corpo num entrelugar sexual/social impossível em Meninos não choram, de Kinberly Peirce; ou então corpos cheios de dores e secreções na quebra da assepsia hollywoodiana da sexualidade e dos corpos como nos filmes de Larry Clark: Kids, Bulli e Ken Park – a assepsia hollywoodiana tão herdeira do cinema de Leni Refenstal: “De Hollywood a Hitler, de Hitler a Hollywood” dizia Deleuze. Esta é então a biopolítica do cinema da imagem-tempo: a liberação dos corpos dos clichês. E antes, e em primeiro lugar, do grande clichê político do iluminismo: a redução da política a assuntos de Estado ou à lógica “sociedade civil x Estado”. E, assim, toda a potência política capturada para a luta pelo poder no Estado; antes até de acionar, e por isso mesmo adiando e sujeitando infinitamente, a potência produtiva dos corpos. Ao corpo então se impõe que ele se sinta parte de um grande corpo único, e, assim, língua, sotaque, performance e cada expressão artística – dança, teatro, cinema – viram arte nacional; ou tudo isso como um grande estilo, um grande nicho de mercado como padrão-clichê do capital: mesmo que seja também “arte nacional”. Como poderia existir, por exemplo, dança nacional? O Estado e o capital invertem a lógica produtiva dos corpos com base no desejo, criando de fora para dentro o padrão que deveria ser o de todos, o único... Um dos aspectos da operação política do cinema da imagem-tempo é que ele reencontra a subjetividade em meio a todas essas totalizações; ou pelo menos está a sua procura. Os personagens em aberto, vagando... A insurgência do tempo sobre o movimento, no cinema da imagem-tempo, acontece à medida que o corpo vivo se descobre como agente dessa insurgência: como máquina produtora de tempo e sentido; e, mais, o cinema como corpo-extensão, prótese constituinte desse corpo. É nesse sentido que o cinema da imagem-tempo traz a política para seu lugar ontológico. Isso acontece porque ele nos ajuda a identificar, e nele nos instala, um lugar existencial de produção e criação que, como expressão de nossa subjetividade, só se pode constituir politicamente. Nesse sentido, tanto hoje quanto antes, a batalha política se identifica com a batalha estética, pois o cinema moral, o cinema de Estado, e o esvaziamento da inventividade nos grandes estilos e nos nichos de mercado constituem operação de poder e situação de relativa impotência que insiste em retornar. E mesmo que o cinema da imagem-tempo e suas diversas soluções estéticas possam ter sido ou vir a ser capturadas – também virar clichês –, mesmo que talvez devamos radicalizar dispositivos pós-cinema, desconstruindo o próprio cinema como um regime de verdades, tudo o que se chama hoje de estetização da política é na verdade uma operação sensório-motora, uma operação estética, que nos cega de modo preciso para a dimensão ontologicamente estética da política. O que acontece então é que o sentido do termo “política” se fecha em impotência, vira uma espécie de clichê de si mesmo, no melancólico espetáculo estético-publicitário da luta pelo poder no Estado feito com vistas ao
A imagem-tempo como potência política do cinema Rodrigo Guéron
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capital e à custa dele – processo que parece ir em dois sentidos diametralmente opostos, quais sejam, uma hiperestetização da política de um lado e de outro uma incapacidade de compreender esse caráter ontologicamente estético – e cinematográfico, no sentido bergsoniano – da política; e que é também o caráter estético e cinematográfico do pensamento e da filosofia. Ou, como diria Deleuze, “Civilização da imagem não. Na verdade civilização do clichê”.
Referências bibliográficas BERGSON, Henri. L’evolution creatrice. Paris: PUF, 2001. DELEUZE, Gilles. L’Image-Temps. Paris: Les Editions de Minuit, 1983 : 30. DELEUZE, Gilles; Guattari, Felix. Mil Platôs. vol. 5. São Paulo: Editora 34, 2002. EISENSTEIN, Sergei. A forma do filme, novos problemas. In A forma do filme. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2002. KANT, Emmanuel. Critique du Jugement. Paris: PUF, 1955. NIETZSCHE, Friedrich. Sobre verdade e mentira num sentido extra moral. São Paulo: Abril Cultural, 1974. _________. Assim falou Zaratustra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1981. _________. O nascimento da tragédia. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. VIRILIO, Paul. Guerra e cinema. São Paulo: Editora Página Aberta, 1993.
Rodrigo Guéron (UERJ, Rio de Janeiro, Brasil) é professor adjunto do Instituto de Arte da UERJ. Doutor em Filosofia (Estética e Filosofia da Arte) com a tese Cinema e Clichê, Niilismo na Imagem. Mestre e bacharel em Filosofia pela UFRJ, cineasta e roteirista de cinema e vídeo. Autor dos curta-metragens 750 Cidade de Deus, Clandestinidade e Eu Estou Bem Cada Vez Melhor. / rgueron@uol.com.br
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Uma tradução comentada do catálogo classificatório dos pintores antigos de Xie He Bony Braga Schachter
O Catálogo classificatório dos pintores antigos, de Xie He, é um dos mais importantes textos sobre pintura chinesa, datando do século VI. Nesta tradução, forneço em notas algumas observações necessárias a seu entendimento; o problema da terminologia empregada por Xie He; a importância dos seis cânones na história da arte chinesa; a questão das passagens corrompidas. Pintura chinesa, história da arte, teoria da arte. A China possui uma antiga tradição de pintura e uma rica produção textual em matéria de teoria e história da arte. No Registro das pinturas conhecidas, Guo Ruoxu, da dinastia Song do norte (960-1127), lista 30 fontes textuais consideradas referência quando o assunto é arte. A segunda fonte citada por Guo, que dispõe os textos cronologicamente, é o Catálogo classificatório dos pintores antigos, de Xie He. Trata-se de um dos textos mais importantes no âmbito da história da arte chinesa: ali, pela primeira vez, foram enunciados de modo estruturado os seis cânones da pintura, espécie de princípios que constituiriam o critério de verificação da qualidade de qualquer obra de arte. Xie He, o autor do texto aqui traduzido diretamente do chinês, viveu durante o período das Dinastias do Sul (420-589), no Estado de Qi (479-502). As informações sobre sua vida são escassas. Foi pintor da corte, mas sua obra enquanto crítico e historiador da arte exerceu mais influência sobre a posteridade do que suas próprias pinturas, das quais não há vestígios. Segundo Yao Zui, da dinastia Chen (557-589), Xie He tinha um grande poder de observação, que usava para retratar a figura humana: “quando ia representar a aparência das pessoas (…) só precisava de um olhar para pegar o pincel e se pôr a trabalhar”. De acordo com o relato de Yao Zui, forma-se a imagem de Xie He como um excelente pintor de retratos: “no que concerne à retratação das pessoas, ninguém o alcançou”. Xie He é, a um só tempo, pintor, historiador da arte, esteta e crítico. O vocabulário que ele emprega para qualificar os pintores remete a diversas fontes de períodos anteriores, merecendo um estudo aprofundado. Quando compôs seu texto, a China já tinha uma tradição de pintura que deveria datar de mais de mil anos. Ele enuncia seus seis cânones no prefácio. Depois, distribui 27 pintores em seis categorias diferentes, observando o quanto se aproximavam ou se distanciavam daqueles princípios. Pode-se dizer que faz uma história da arte como história dos artistas. Informações biográficas quase não são citadas por Xie He, que prefere deter-se no estilo de cada pintor. De certo modo, pelo discurso
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instaurado por ele, a arte constitui um campo autônomo. Não que a pintura seja independente da sociedade ou livre de qualquer função – como a educação dos homens –, mas os critérios de julgamento de sua qualidade devem ser buscados nela mesma: na perfeição da linha, na força da pincelada, no sentimento transmitido pela imagem produzida por um pintor. Infelizmente, a maioria das obras dos pintores mencionados por Xie He não foram preservadas, o que constitui prejuízo muito grande para o entendimento do seu texto. Nota-se pela comparação de diversas fontes textuais que, embora cada erudito que discute a pintura tenha seu próprio estilo, compartilha com os outros um vocabulário comum cuja base se constitui de determinados termos. Tais termos funcionam nos textos como núcleos semânticos importantes, orientando a leitura e diminuindo a ambiguidade. O padrão de escrita dos textos chineses antigos, sejam filosóficos ou históricos, é de admirável concisão. Contudo, brevidade não significa facilidade. É necessário grande esforço na tarefa de acomodação do significado das sentenças chinesas, por vezes escritas de modo extremamente econômico e polido, na estrutura das sentenças em língua portuguesa. Nenhuma tradução para línguas ocidentais é capaz de manter a estrutura do texto chinês, uma vez que se trata de idioma sem flexões de gênero, número etc, mas se pode empenhar no sentido de captar o espírito das palavras do autor, seu estilo. Nesta tradução discuto, em notas, questões que considero importantes para o entendimento do texto, tais como: o problema da terminologia empregada para qualificar os pintores, a importância dos seis cânones na história da pintura e da teoria da arte chinesas, a questão da corrupção de certas passagens durante o processo de cópia do texto.
Referências bibliográficas - Edição usada para tradução do texto HE, Xie. Guhua pinlu. Hong Kong: Wenhua Chuban Youxian Gongsi, 2001. - Livros e textos de apoio CHEN, Chiyu. Xie He huapinde lishi jiezhi ji ruogan wenti bianxi. In: Yishu baijia. Nanjing: Jiangsu sheng wenhua yanjiu yuan, 2003. CHENG, Anne. História do pensamento chinês. Petrópolis: Vozes, 2008. CHENG, François. Empty and full: the language of chinese painting. Boston: Shambala, 1994.
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Cópia de obra atribuida a Gu Kaizhi.
GILES, Gilbert. An introduction to the history of the Chinese pictorial art. Londres: Bernard Quaritch, 1918. GUO, Ruoxu. Tuhua jianwen zhi. Hong Kong: Wenhua Chuban Youxian Gongsi, 2001. KITAURA, Yasunari. Historia del arte de China. Madrid: Edições Cátedra, 1991. LU, Yanbin.WANG, Suoying. Jianming hanpu cidian. Shanghai: Shanghai waiyu jiaoyu chuban she, 1997. XIA, Zheng. Cihai. Shanghai: Shanghai cishu chuban she, 1999. YAO, Zui. Duhua pin. Hong Kong: Wenhua Chuban Youxian Gongsi, 2001. ZHANG, Yanyuan. Lidai minghua ji. Hong Kong: Wenhua Chuban Youxian Gongsi, 2001.
Catálogo classificatório dos pintores antigos1 A presente Classificação dos pintores2 cobre todos3 os pintores, dos excelentes aos menores. Entre aqueles que produzem pinturas, não há nenhum que não tenha esclarecido o que se deve exortar e o que se deve evitar.4 Com suas composições, marcaram a ascensão e a queda.5 Milhares de anos de história podem ser vistos refletidos nas pinturas. Ainda que os pintores tenham domínio dos seis cânones,6 é raro que algum tenha ido à exaustão em todos. Desde a Antiguidade até hoje, cada um foi bom em um ou outro.7 Quais são os seis cânones? O primeiro é a harmonia8 do sopro9, isto é, gerar o movimento.10 O segundo é o método ósseo,11 isto é, empregar o pincel. O terceiro é a correspondência às coisas, isto é, representar as formas.12 O quarto é a adequação às categorias, isto é, aplicar a cor. O quinto é a divisão e o planejamento, isto é, a composição.13 O sexto é a transmissão da tradição, isto é, a cópia dos modelos.14 Apenas Lu Tanwei e Wei Xie foram plenos em todos.15 No que concerne às obras, dentre elas há as engenhosas e as ingênuas.16 Em arte não há sentido nos termos antigo e contemporâneo.17 Inspecionei as pinturas cautelosamente conforme sua distância daqueles critérios. De acordo com as categorias classificatórias, distribuí os pintores produzindo uma ordenação comentada. Assim, o que está descrito aqui não provém de ampla fonte, mas dos próprios imortais divinos, não tendo sido ainda sabido por ninguém.18 Primeira categoria19 Lu Tanwei.20 Compreendeu o princípio e exauriu a natureza.21 Sua execução supera a capacidade descritiva das palavras. Açambarcou os predecessores e engendrou a posteridade.22 Da Antiguidade até hoje, permanece único. Nem mesmo o mais violento entusiasmo é suficiente para louvá-lo. Mas não se situa no próprio extremo do que tem valor?
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Uma vez estando acima do mais alto grau, não há mais nada a ser dito sobre ele. Assim, injustamente o classifico na primeira categoria.23 Cao Buxing.24 De Buxing quase não restaram obras, apenas um dragão pintado dentro do Pavilhão Misterioso.25 Observando-se o vigor de seu estilo,26 como poderia seu renome ser considerado uma falsa conquista? Wei Xie.27 Os pintores foram resumidos, alcançando em Xie sua elaboração inicial. No que concerne aos seis cânones, era quase igualmente bom em todos. Embora não se possa falar que sua representação das formas fosse maravilhosa, deve-se admitir que conseguiu um sopro robusto.28 Elevou-se para além da multitude de homens. Um pincel excepcional para amplas gerações. Zhang Mo29 e Xun Xu.30 Com nobre qualidade e sopro ajustado,31 foram ao extremo na maravilha, chegando a participar da divindade. Mas quando representavam os elementais e os espíritos, punham de lado o método ósseo.32 Caso alguém se detenha apenas na observação de como estruturavam33 os objetos, não estará apto a ver seu refinamento. Afora seu modo de estruturação, pode-se se satisfazer com seu estilo34 elevado e pleno. Podem ser chamados sutis. Segunda categoria Gu Junzhi.35 Em termos de harmonia divina e força do sopro, não alcançou o virtuosismo de seus predecessores. Mas em matéria de sutileza e estudo meticuloso dos detalhes, ultrapassou os sábios de antanho. Foi o primeiro a transformar o antigo no novo. No que concerne à aplicação das cores e à composição das formas, foi o criador de novos conceitos em ambos os domínios, como se açambarcasse os feitos de Fuxi, que foi o iniciador dos símbolos divinatórios, e os de Shizhou, que foi o primeiro a alterar o método de escrita. Instituiu as plataformas como locais de pintura. Em dias de vento e chuva, verão abrasador ou umidade, não se pegava no pincel. Só quando o dia apresentava céu claro e clima ameno se empunhava o pincel. Subindo à plataforma, deixava o terraço, sendo raramente visto pela esposa e pelos filhos. Junzhi foi o primeiro na pintura de cigarras e de pardais. Durante o tempo de Daming dos Song, sob o céu ninguém ousava com ele competir.36 Lu Sui.37. Harmonia estrutural38 vigorosa e completa. Seu colorido tinha graciosidade.39 Bastava apenas um traço e uma pincelada para que pelo movimento do pincel tornasse tudo extraordinário.40 Suas obras remanescentes são poucas, por isto se diz que é raro ver os rolos de suas pinturas. Daí ser considerado um tesouro. Yuan Qian.41 Comparável a Lu, de quem foi discípulo brilhante.42 Foi maravilhoso no retrato humano, sendo o segundo em beleza em relação ao virtuoso que o precedeu. Mesmo mantendo tenazmente o modelo de seu mestre, não contribuiu com nenhum conceito
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novo. Ainda que o harmonioso disco de jade possua diminuta falha, seu valor não é comparável ao de 10 cidades?43 Terceira categoria Yao Tandu.44 Pintor dotado de estilo proeminente. Engenhoso, variegado e cheio de surpresas.45 Perfeito na representação de toda sorte de espíritos. Tanto no extraordinário quanto no comum, apropriado. Em elegância46 e em solenidade, simultaneamente bom. Talentoso como ninguém, excedeu todas as expectativas. Por obra do céu, nasceu sabendo, posto que sua conquista não foi resultado do estudo.47 Ainda que minucioso e sutil, perdeu frequentemente a proporção do longo e do curto. Dentre os servos,48 nenhum se compara a ele.49 Como o odor da artemísia poderia ofuscar a beleza do jade? Gu Kaizhi.50 Aprofundou seu estilo51 em refinamento e sutileza. Não usava o pincel em falso. No entanto, suas obras não alcançam sua concepção.52 Sua fama ultrapassa a realidade.53 Mao Huiyuan.54 O estilo55 do pintor é redondo,56 pleno. Não há nada que não tenha dominado. Passou pelo cume do extraordinário. Vigoroso e irrestrito, um pincel proeminente.57 Possui força58 sólida e harmonia59 elegante.60 Transcendeu insuperável a todos de sua geração. A sua liberdade e facilidade61 também atingiram, necessariamente, o cume da maravilha. Embora supremo ao estabelecer as propriedades62 das coisas, não foi à exaustão em termos de placidez.63 Bom em espíritos e cavalos, obstinado na estruturação. É dotado de ingenuidade.64 Xia Zhan.65 Embora a força do seu sopro não fosse suficiente, era abundante em esplendor. Conquistou renome por longas gerações. A beleza de sua execução não é falsa.66 Dai Kui.67 A harmonia de seu sentimento era contínua. Seu estilo68 era gracioso, elevado, engenhoso. Sua melhor pintura é o Santo virtuoso,69 modelo para 100 trabalhos. Depois de Xun Xu e Wei Xie é, verdadeiramente, um guia. Yong, seu filho, pode dar continuidade a sua beleza. Jiang Sengbao.70 Deliberando sobre Yuan e Lu,71 renovou as gradações de vermelho e de azul.72 Seu uso do pincel tinha sólidez óssea.73 Era profundamente versado nos modelos dos mestres. Foi bom apenas no retrato das pessoas. Wu Ridong.74 Seu modo de estruturar, elegante e resplandecente. Na composição, habilidade e engenho. Com sua beleza dominou sua época, ganhando reputação na capital.75 Zhang Zé.76 Concepção77 ilimitada. Movendo o pincel, tudo se fazia novo e extraordinário. Inferior em matéria de composição. Não exauriu nem em variedade, nem em engenho. Lu Gao.78 Sua mesura estrutural79 não era ordinária. Superou o vulgo de seu tempo. Trabalhava em harmonia com as estações do ano. Frequentemente se destacava dos outros.
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Nas suas pinceladas percebe-se a renovação do fluxo dos movimentos. Quase nenhuma de suas pinturas foi transmitida à posteridade. Assim como os galhos da caneleira têm um único aroma, a abundância e a escassez80 possuem a mesma natureza fundamental, sendo difícil copiar suas obras.81 Quarta categoria Qu Daomin e Zhang Jibo.82 Fizeram boas pinturas nas paredes dos templos.83 Em ambos, o ponto forte era a pintura em leques. Dos homens e cavalos não perdiam nenhum detalhe. Maravilhosa a peculiaridade de sua estruturação. Também adentraram a divindade.84 Gu Baoguang.85 Todo o seu método provém de Lu.86 Sua execução87 remete a Zong Bing.88 Sua maneira,89 a Yuan Qian.90 Pode ser chamado pequeno feiticeiro.91 Wang Wei e Shi Daoshu.92 Shuo e Wang Wei tiveram por mestres Xun Xu e Wei Xie. Wang conquistou sua meticulosidade,93 Shi transmitiu sua verossimilhança. Quinta categoria Liu Xu.94 Seu emprego da ideia95 era contínuo e delicado. A estruturação do pintor era seleta e meticulosa. Era forte na representação de cigarras e pardais, sendo ótimo na pintura das damas. No entanto, seu detalhismo passou da medida; quando copiava perdia a verossimilhança. De qualquer modo, quando se contempla sua obra profundamente, percebe-se que ele de fato conquistou o decoro.96 Ming Di.97 Ainda que primário em forma e cor, conquistou um sopro divino. O rastro da sua pincelada é transcendente. Também possui aparência extraordinária.98 Liu Shaozu.99 Bom na cópia dos modelos, sua concepção não tinha limites.100 Supremo na representação de ratos e pardais. O rastro de seu pincel era único.101 Frequentemente se destacou da multitude. As pessoas de seu tempo o chamavam de pintor da transformação. No entanto, apenas repetiu sem nada criar,102 não sendo o primeiro entre os pintores. Sexta categoria Zong Bing.103 Bing não era bom nos seis cânones. No que tange à execução104 certamente tinha prós e contras; suas pinturas não são um padrão. Teve ideias boas o suficiente para serem copiadas pelos mestres.105 Ding Guang.106 Mesmo tendo alcançado fama com suas cigarras e pardais, sua pincelada era leve e fraca.107 Não que não tivesse estudo meticuloso, mas era deficiente na vivacidade do sopro.108
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Detalhe de A deusa do rio luo, cópia de obra atribuída a Gu Kaizhi.
Notas 1 Texto de Xie He, que viveu durante o período das Dinastias do Sul (420-589), tendo servido como pintor no Estado de Qi (479-502). 2 O título original da obra é, como pode ser visto no prefácio, Classificação dos pintores (hua pin), e não Catálogo classificatório dos pintores antigos (guhua pinlu). Durante a dinastia Liu-Song (420-479), o texto passou a ser chamado por Catálogo classificatório dos pintores (hua pin lu). Depois, durante os Tang (618-907), também ficou conhecido como Catálogo dos pintores antigos (guhua pinlu). No Registro das pinturas conhecidas (tuhua jianwen zhi), produzido durante a dinastia posterior Song (960-1279), se usa o título hoje corrente: Catálogo classificatório dos pintores antigos (guhua pinlu). Durante os séculos, o texto original certamente sofreu alterações por parte de compiladores. Isto será discutido com mais detalhes nos tópicos relativos a determinados pintores, onde podemos ver mudança de conteúdo dos comentários de Xie He quando comparamos fontes diferentes. De qualquer modo, a versão que nos chegou é, no todo, confiável. 3 Isto é, todos os pintores que Xie He considerava dignos de nota, e não todos os pintores da história chinesa. Ao que tudo indica, Xie He só escreveu sobre o que viu. Infelizmente, nada sobrou da maioria das obras dos pintores mencionados por Xie He, o que prejudica, aliás, nossa compreensão de seus comentários. 4 Nessa passagem fica clara a inspiração confucionista do pensamento de Xie He. Zhang Yanyuan, da dinastia Tang (618-907) abre o seu Registro dos pintores renomados de todas as épocas (lida minghua ji) de modo semelhante: “Os pintores contribuem na educação dos homens.” Pode-se dizer que a pintura chinesa tem dois grandes gêneros:
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decorativo e didático. Nos Registros históricos (Shiji), Sima Qian relata a visita de Confúcio (551-479 a.C.) à capital dos Zhou. Nas paredes do Palácio das luzes (ming tang), ele teria visto pinturas de heróis nacionais e de homens notáveis da Antiguidade, sendo cada pintura acompanhada de inscrições com palavras de elogio ou de aconselhamento. Assim, as melhores pinturas expressavam valores morais que deveriam educar, instruir os homens. O tema da educação é fundamental no confucionismo e está relacionado, por sua vez, à questão da escrita, da leitura e da produção de imagens. 5 Isto é, a ascenção e a queda das dinastias. Segundo algumas proposições confucionistas, a queda de uma dinastia estaria ligada à má conduta de seu soberano. 6 Os seis cânones da pintura são enunciados pela primeira vez por Xie He, que os apresenta de modo elíptico e ambíguo, sem desenvolver seu significado em longa argumentação. De qualquer modo, os seis cânones serão muito discutidos pelos eruditos posteriores, dando origem a inúmeras leituras de seu significado. O modo como Xie He estrutura as frases em que apresenta os seis cânones é semelhante ao modo como o autor do Discurso sobre a escrita e etimologia das palavras (shuowen jiezi) estrutura as sentenças em que explica os seis modos de composição dos caracteres chineses. Isto por causa do uso da expressão shi ye no fim das frases: “o primeiro se chama indicador de situação (…) como em acima e abaixo. O segundo se chama pictográfico (…) como em sol e lua. O terceiro se chama pictofonético (…) como em rio e ravina. O quarto se chama encontro de conceitos (…) como em marcial e prova. O quinto se chama sinonímia (…) como em investigar e idoso. O sexto se chama empréstimo (…) como em ordenar e longo”. Nessa passagem, a expressão shi ye tem o sentido de como em. Os cânones de Xie He são proposições compostas de quatro palavras cada, adicionando-se a expressão shi ye ao fim de cada proposição. Neste caso, a expressão – composta pelo demonstrativo shi (que na língua moderna é o verbo ser) e pela partícula final ye – tem o sentido de isto é, pois ela ajuda a diminuir a ambiguidade na leitura dos enunciados. A expressão shi ye ao fim de cada enunciado permite entender que as duas últimas palavras de cada proposição são explicações do significado das duas primeiras palavras de uma mesma proposição. Assim, a proposição ABCD shi ye, que segue a mesma estrutura dos cânones de Xie He, em que cada letra representa um caractere chinês, poderia ser traduzida assim: AB, isto é, CD. 7 Literalmente: “cada um foi bom em um tópico”. 8 Harmonia (yun) é uma palavra que está fortemente relacionada ao elemento sonoro. Na língua moderna, a palavra forma diversas locuções, como: yunjiao (rima), yunlü (regras de rima), yunwen (composição literária em rima, em verso). 9 Sopro (qi) é conceito fundamental da cosmologia chinesa. Segundo Anne Cheng (1997; p.36-37): “A unidade procurada pelo pensamento chinês ao longo de toda sua evolução é a própria unidade do sopro, influxo ou energia vital que anima o universo inteiro. Nem acima nem fora, mas dentro da vida, o pensamento é a própria corrente da vida (…) Ao mesmo tempo espírito e matéria, o sopro assegura a coerência orgânica da ordem dos viventes em todos os níveis. Fonte da energia moral, o qi, longe de representar uma noção abstrata, é sentido até no mais profundo de um indivíduo e de
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sua carne. Embora sendo eminentemente concreto, nem sempre contudo é visível ou tangível: pode ser o temperamento de uma pessoa ou a atmosfera de um lugar, a força expressiva de um poema ou a carga emocional de uma obra de arte”. 10 Ou, vivacidade e movimento. Alguns consideram esse o mais importante dos seis cânones. Zhang Yuanyan dedica um dos capítulos do Registro dos pintores renomados de todas as épocas (lida minghua ji) à discussão dos seis cânones de Xie He: “No passado, Xie He disse que a pintura tem seis cânones (…) [vejo que] os pintores da Antiguidade perdiam a verossimilhança em detrimento do sopro e da estrutura (…) e que os pintores de hoje, embora consigam a verossimilhança, não geram a harmonia do sopro (…) A representação das coisas precisa ser buscada na verossimilhança e, para que se a atinja, o sopro e a estrutura têm de ser completos. O sopro, a estrutura e a verossimilhança têm sua base no erigir da idéia, e seu retorno no uso do pincel”. De modo ainda mais interessante, Guo Xuruo afirma que o primeiro cânone de Xie He não pode ser ensinado, não pode ser transmitido. Ele dedica um capítulo do Registro das pinturas conhecidas (tuhua jianwen zhi), denominado Discussão sobre o fato de a harmonia do sopro não poder ser ensinada (lun qiyun feishi) ao tema: “[Dos seis cânones, apenas] cinco cânones podem ser estudados: a harmonia do sopro exige que se tenha o saber inato”. Segundo alguns eruditos, a ideia original do cânone é simples: trata-se de transmitir vida por meio da pintura. Chen Chiyu, professor da Universidade Tsinghua, argumenta que Xie He, sendo um pintor de retratos, estava interessado em transmitir por meio da pintura a presença da própria pessoa retratada. 11 A expressão método ósseo (gufa) está ligada ao modo adequado de uso do pincel, que deve expressar vigor, força. Assim como se fala em ossos nos tratados de arte, também se fala em carne (rou) e músculos (jin). Xie He não foi o primeiro a usar o termo osso (gu) para se referir à qualidade de uma pincelada. Na verdade, ele usa um termo que já estava presente em outros textos. Durante a dinastia Han (aproximadamente II a.C. a II d.C), o termo ósseo (gu) aparece em uma variedade de locuções, em textos dedicados à arte de predileção (xiang ming shu). Depois, é absorvido como termo essencial dos escritos sobre caligrafia e pintura. Zhong You, da dinastia Wei (230-265), diz: “muita força e músculos abundantes, santidade. Nenhum força e nenhum músculo, doença”. Wei Furen (272-291), uma mulher versada em caligrafia durante a dinastia Jin, afirma: “Aquele que é bom na força da pincelada tem muito osso. Aquele que não é bom na força da pincelada, muita carne.” Zhang Yanyuan: “Zhang Mo obteve os músculos. Lu Tanwei obteve os ossos.” Gu Kaizhi, pintor celebrado pela maioria dos eruditos mas classificado na terceira categoria por Xie He, em sua Teoria da pintura (lun hua), usa várias locuções com o termo osso (gu): método osséo (gufa, como em Xie He), graciosidade óssea (guqu), completude óssea (guju), osso eminente (jungu), osso celeste (tiangu). 12 Xie He, sendo um pintor de retratos, parecia estar interessado na verossimilhança. Assim o interpretam determinados comentaristas. Esse cânone também fala muito acerca da relação de proximidade existente entre a escrita, a caligrafia e a pintura chinesas, isto é, a proximidade existente entre a produção de palavras e a produção de imagens. Na Discussão acerca da origem da pintura (xu hua zhi yuanliu), Zhang Yanyuan fala das
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relações entre a origem da pintura e a origem da escrita: “Estabelecidas as formas das grafias da escrita, a criação e a transformação não puderam cerrar seus segredos. O céu, a chuva e os espíritos não puderam mais esconder suas formas. Os espíritos choraram à noite. A escrita e a pintura são um só corpo. Para transmitir os conceitos há a escrita. Para transmitir as formas há a pintura. A ideia (yi) do céu, da terra e do homem sagrado é estudada de acordo com as palavras (…) há três ideias no que concerne à palavra figura (tu). Um: afiguração do princípio (tuli), como ocorre nas imagens dos trigramas. Dois: afiguração do conhecimento (tushi), como ocorre no estudo das palavras. Três: afiguração da forma (tuxing) como ocorre na pintura. O terceiro método de escrita, isto é, o método pictofonético [pelo qual se constrói palavras através da apreensão das formas dos objetos do mundo], é a própria ideia (yi) da pintura. Por isso se sabe que a escrita e a pintura, mesmo tendo nomes diferentes, são um só corpo.” A expressão usada por Xie He no terceiro cânone e traduzida por mim como representar as formas (xiangxing) é exatamente a expressão que nomeia o terceiro método de composição de caracteres chineses, o pictofonético (xiangxing). 13 A expressão adequação à categoria (suilei) é semanticamente próxima da expressão correspondência às coisas (yingwu), presente no cânone anterior. Segundo Chen Chiyu, o significado das duas expressões é o mesmo, só que Xie He usa palavras diferentes, por questões de estilo. Trata-se de não empobrecer o texto com repetições fáceis. Podese interpretar o terceiro cânone, também, sob a perspectiva da pintura de retratos e do interesse na imitação da natureza: as coisas possuem cores que lhes são próprias, e essas cores devem ser empregadas nas pinturas. Enquanto no cânone anterior Xie He estava preocupado com o problema da forma em correspondência à realidade, no terceiro tópico está focado na questão da cor. Outros tratadistas se ocupam da questão de modo semelhante. No quarto cânone está interessado na disposição dos diferentes elementos no espaço pictórico. Gu Kaizhi também já havia mencionado este tema na Teoria da pintura (lunhua). 14 Este é um dos cânones mais discutidos pelos eruditos. O que Xie He queria dizer com cópia dos modelos (moxie)? Entre os comentaristas da posteridade há, basicamente, duas leituras. Uma delas entende que Xie He, ao falar em modelos, estava se referindo às pinturas dos grandes mestres. A outra entende que Xie He entendia por modelo não as obras dos mestres, mas a própria natureza. Segundo Chen Chiyu, Zhang Yanyuan é um partidário da primeira leitura, que ele considera errada. Xie He, sendo um pintor de retratos, deveria estar interessado sobretudo nas características individuais, e não numa ideia universal do belo extraída das pinturas. Observando-se as exigências do segundo e do terceiro cânones, que versam sobre a verossimilhança, não creio ser errado julgar que Xie He se referisse à cópia da própria natureza e não ao estudo das pinturas dos mestres. 15 Ambos classificados por Xie He na primeira categoria, como se verá a seguir. 16 Termo frequentemente empregado nos manuais de pintura para falar da qualidade das obras. Quanto mais próxima do engenho (qiao) tanto melhor é uma obra de arte. O termo também designa a sagacidade de uma pessoa. O termo ingenuidade (zhuo) pode
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designar falta de inteligência, mas também inocência. No Tratado da união oculta (yin fu jing), texto taoísta que versa sobre as relações entre o visível e o invisível, sobre o macro e o microcósmico, lemos: “a natureza tem engenhosasidade (qiao) e ingenuidade (zhuo), que podem estar cerradas ou ocultadas (xing you qiao zhuo ke yi fu cang)”. Percebe-se, nos textos chineses sobre arte, o emprego de vocábulos que inicialmente seriam usados na qualificação do temperamento, do tipo físico de uma pessoa na qualificação de pinturas, como ocorre com qiao e zhuo. 17 Isto é, o fato de uma pintura ser antiga ou contemporânea não pode ser considerado o critério para que seja considerada melhor ou pior do que outra. Guo Xuruo afirma: “Caso se discuta sobre a pintura de temas religiosos do budismo e do taoísmo, da pintura de pessoas, de damas, de bois e de cavalos, pode-se dizer que os contemporâneos não atingiram os antigos. Caso se discuta sobre a pintura de paisagens, de flores, bambus, pássaros e peixes, verifica-se que os antigos não atingiram os contemporâneos”. Zhang Yanyuan, por sua vez, se ressente da falta de qualidade dos modernos em relação aos antigos. Xie He, de modo diverso, parece sempre tratar as pinturas como objetos do presente, para os quais não há outra alternativa senão a abordagem através do problema da forma, da cor, da composição, da verossimilhança etc. 18 Não se deve ler a sentença como se Xie He afirmasse que seu saber sobre arte tem na revelação divina a sua fonte. Antes, trata-se apenas de um recurso retórico, um modo grandiloquente de se referir à sua própria experiência com a pintura. 19 Durante o passar do tempo, o texto original sofreu corrupções, o que provocou a inserção de determinados pintores em categorias que originalmente não estavam, e a exclusão de outros. Quando isto ocorrer, indicarei em nota. 20 Lu Tanwei viveu durante o período das seis dinastias (420-589), tendo morrido em, aproximadamente, 485 d.C. Era nativo de Wu, tendo servido na época do imperador Ming, dos Song. Foi contemporâneo de Xie He. Um crítico disse que Lu tinha uma pincelada afiada como sabre. Outro, que Lu Tanwei tinha ossos. Zhang Yanyuan cita uma lista de obras de sua autoria, inúmeros retratos, representações de cigarras e pardais, além de cavalos. Segundo Kitaura (1991: p.141): “Lu fue, como Velázquez, esencialmente un retratista genial. Aunque la crítica de Xie He si convirtió em objeto de polémica posterior, tiene un peso respetable ya que sus palabras se fundamentan en el conocimiento directo tanto de las obras, como de la persona, pues es de uma generación posterior a de Lu”. 21 Essa sentença parece mostrar, mais uma vez, a tendência confucionista do pensamento de Xie He. Princípio (li) e natureza (xing) são duas palavras muito importantes no confucionismo. A primeira indica a estrutura das coisas, a ordem de tudo o que existe, nomeando originalmente os veios naturais do jade (Cheng: 1997, p.58). Segundo Anne Cheng, a palavra li (princípio) tem relações com o termo homófono li (ritual), e com a palavra wen, que significa escrita, traço, cultura. Cheng situa o termo no horizonte ético. A palavra natureza (xing), por sua vez, esteve no centro das discussões sobre a índole do ser humano: se é boa ou má, se se pode educar as pessoas para que vivam eticamente etc. Resumindo, Xie He nessa frase pode estar falando mais da virtude moral de Lu Tanwei do que de sua pintura propriamente.
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22 Isto é, trata-se de um ponto de referência. 23 Injustamente: para Xie He o mérito de Lu Tanwei enquanto pintor é tão elevado que ele não deveria nem mesmo ser categorizado junto dos outros pintores. 24 Cao Buxing viveu durante o período dos Três Reinos (Wei: 220-265; Shu: 221-263 e Wu: 222-280), em Wu, Estado fundado por Sun Quan, a quem Cao Buxing serviu. 25 Zhang Yanyuan cita Xie He, empregando uma sentença ligeiramente diferente, em que afirma que sobrou apenas uma cabeça de dragão. Zhang conta uma historieta segundo a qual Lu Tanwei, maravilhado com o dragão pintado por Cao Buxing, pegou a pintura e a colocou na água. Então, uma névoa densa subiu aos céus, provocando uma chuva que durou dias. Histórias desse tipo, cujo núcleo é a continuidade entre o mundo das imagens e a realidade, são abundantes nos textos sobre arte. 26 A expressão que traduzi por vigor do seu estilo (fenggu) já havia sido anunciado por Liu Xie no Wenxin diaolong. Fenggu significa, literalmente, vento e osso. No chinês moderno, a palavra vento (feng) forma locuções como: tendência (fengqi), estilo (fengge), maneiras (fengdu), feição (fengmao), mérito e talento literário (fengliu), graça (fengyun), elegância (fengzi). Assim, feng poderia ser traduzido por estilo. Gu (osso), por vigor, indicando o domínio do uso do pincel. 27 Wei Xie viveu durante a dinastia Jin (265-420). Sobre ele, Sun Chang afirma: “a pintura Florestas e bosques é a obra superior de Wei Xie, também havendo a pintura dos sete budas.” Gu Kaizhi concorda com Sun, afirmando que a pintura dos sete budas é um dos melhores trabalhos de Wei. 28 Através dessa sentença entende-se a interpretação de comentaristas posteriores, segundo a qual Xie He dispôs os enunciados que constituem os seis cânones numa ordem que reflete a importância de cada um deles, como fez com os pintores. Mesmo não obtendo perfeição em matéria de verossimilhança (wei bei xing miao), Wei Xie, para Xie He, conseguiu vivacidade, um sopro robusto (zhuangqi), o que já seria suficiente para classificá-lo na primeira categoria. 29 Zhang Mo viveu durante a dinastia Jin (265-420). Ge Hong, alquimista e filósofo do século IV afirma no Mestre que abraça a simplicidade (baopu zi): “Wei Xie e Zhang Mo juntos são os santos da pintura”. 30 Xun Xu viveu durante a dinastia Jin (265-420). Era chamado Gong Zeng. Segundo Zhang Yanyuan, ele era versado em caligrafia e pintura, tendo sido general (dajiang jun) durante a dinastia Wei (220-265), depois tendo servido na corte dos Jin. Zhang Yanyuan afirma que uma vez tendo sido enganado por um homem inescrupuloso chamado Hui, Xun Xu pintou o retrato de seu pai dentro de sua casa, amedrontando-o a ponto de o homem não mais conseguir residir no local. 31 Em vez de sopro ajustado (qi hou), no trecho citado por Zhang Yanyuan no Registro dos pintores renomados de todas as épocas (lidai minghua ji), Xie He diz sopro harmônico (qiyun). 32 Isto é, punham de lado a perfeição no uso do pincel. 33 A palavra que traduzi por estruturavam (ti) é recorrente no texto. Na língua moderna possui uma grande gama de sentidos, mas no contexto de Xie He parece
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indicar o modo como o pintor mede, representa, renderiza cada elemento particular da pintura. 34 Três palavras parecem semanticamente próximas e ligadas ao conceito de estilo no texto de Xie He: ti (estrutura), feng (vento) e fang (modo). 35 Gu Junzhi viveu durante a dinastia Liu-Song (420-479). A passagem a ele dedicada é uma das mais controversas. Comparando o texto de Xie He que nos chegou com as citações do criterioso Zhang Yanyuan no Registro dos pintores renomados de todas as épocas (lidai minghua ji), percebe-se que os compiladores posteriores corremperam o texto original. Se observado o texto de Zhang, os comentários dirigidos a Gu Junzhi na verdade teriam sido dirigidos a Gu Jingxiu, que viveu no mesmo período, servindo durante o reinado do imperador Wu (481-485). 36 Zhang Yanyuan, cita Xie He comentando Gu Jingxiu, e não Gu Junzhi, usando quase o mesmo texto: “Em termos de harmonia divina e força do sopro, não alcançou o virtuosismo de seus predecessores. Mas, em matéria de sutileza e estudo meticuloso dos detalhes, ultrapassou os sábios de antanho. Foi o primeiro a transformar o antigo no novo. Jingxiu foi o primeiro na pintura em leques e na pintura de cigarras e de pardais. Durante o tempo de Daming dos Song [456-465], sob o céu ninguém ousava com ele competir”. Caso este seja o texto original, Xie He comentou Gu Jingxiu, e não Gu Junzhi (ambos possuem sobrenome grafado do mesmo modo). A comparação com Fuxi, o ancestral mítico que teria criado os trigramas e os hexagramas que constituíriam o Livro das mutações (yijing), e com Shizou, que criou a grafia do selo (zhuan), uma das formas de inscrição dos caracteres chineses – bem como a historieta do abandono da pintura ao ar livre –, devem ter sido adicionadas pela posteridade, não correspondendo ao estilo de Xie He. Deste modo, conclui-se que Xie He deve ter comentado tanto Gu Junzhi quanto Gu Jingxiu, mas os compiladores posteriores trocaram o conteúdo do segundo pelo do primeiro, ao mesmo tempo em que tiraram o segundo da listagem. 37 Lu Sui viveu durante a dinastia Liu-Song (420-479). Foi filho de Lu Tanwei. 38 Harmonia estrutural (ti yun), isto é, harmonia (yun, como no primeiro cânone, yunqi), da estrutura (ti). 39 Graciosidade (piaoran). Termo construído a partir da palavra piao, que na língua moderna forma inúmeras locuções: piaodang (flutuar), piaoyang (ondular), piaoyou (boiar). A palavra ran, adicionada como terminação, produz inúmeras locuções no chinês clássico, como: ziran (espontaneidade), kuairan (placidez), haoran (abundância). Também se poderia dizer que o colorido de Lu Sui transmitia a sensação de que os elementos pintados flutuavam. 41 Yuan Qian viveu durante a dinastia Liu-Song (420-479). 42 Estudou com Lu Tanwei. Zhang Yanyuan cita Xie He falando sobre Yuan Qian, acrescentando a informação de que era bom na representação das damas. 43 Esta sentença, que alude a um episódio presente no Registro da história (shiji) de Sima Qian, não aparece na citação de Xie He feita por Zhang Yanyuan no Registro dos pintores renomados de todas as épocas (lidai minghua ji). O disco de jade (hebi) é uma peça de jade famosa na história chinesa.
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44 Yao Tandu é categorizado por Zhang Yanyuan como um pintor da dinastia Qi (479-502). 45 A sentença é particularmente difícil, também sugerindo que Yao Tandu inovou em termos de um tipo de pincelada específico, conhecida como feng. Segundo François Cheng (1994, p.101) há basicamente dois tipos de pincelada feng: zhengfeng (ataque frontal) e cefeng (ataque oblíquo). 46 Elegância (ya), termo estratégico que se repetirá em outras sentenças. 47 Isto é, Yao tinha aptidão natural. Os filosófos chineses muitas vezes procuraram entender se há ou não uma natureza intrínseca a guiar nossas atitudes, e se há ou não aptidões inatas. Não é de admirar, portanto, que se fale em Yao em termos semelhantes, afirmando-se que o seu saber era obra do céu, o que, no contexto de Xie He, é mais bem entendido se se pensar que seu saber era algo natural, e não algo conferido por Deus. 48 Na verdade, dois tipos de servos diferentes, referidos por yu e zao. De acordo com o Cihai (p.2126), os zao serviam aos funcionários (shi). Os yu, aos zao: “Zao é o mesmo que fazer (zao), pois os zao concluem todos os assuntos (…) também se diz que a palavra zao está ligada à cor negra, pois zao indica o nome geral para os oficiais que vestiam negro, encarregados de alimentar os cavalos”. Citando uma fonte antiga, registra-se no Cihai (p. 2077) sobre os yu: “Yu significa todos. Os yu auxiliam os zao na manutenção de todos os assuntos”. 49 Essa sentença não se encontra na citação feita por Zhang Yanyuan no Registro dos pintores renomados de todas as épocas (lidai minghua ji). 50 Gu Kaizhi viveu durante a dinastia Jin (265-420). Era chamado Chang Keng. Nome quando criança: Hu Tou. Trata-se de um dos pintores mais celebrados da história chi-
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Detalhe de A deusa do rio luo, cópia de obra atribuída a Gu Kaizhi.
nesa. Zhang Yanyuan elogia seu talento. Cita um comentarista que afirma: “desde que nasceram os homens, um pintor como ele ainda não havia aparecido.” Frase que possui a seguinte variação: “desde o tempo de Cang Jie, um pintor assim não havia aparecido”. Segundo Zhang, outro erudito afirma: “o maravilhoso pintor comungou com o divino, suas transformações são como um voo. Parece uma pessoa que está subindo rumo à imortalidade.” Por isto as pessoas apelidam Kaizhi com o termo tríplice perfeição (san jue): perfeição da pintura, do talento, da rapidez [de execução]. Li Sizhen, da dinastia Tang, disse sobre ele: “Gu nasceu com uma aptidão natural”. Zhang Yanyuan: “Zhang Mo obteve os músculos. Lu Tanwei obteve os ossos. Gu Kaizhi obteve a divindade. A maravilha da divindade não pode ser mensurada. Por isto, Gu é superior a todos”. Gu é famoso por não pintar as pupílas dos olhos das pessoas retratadas. Sua ligação com as crenças religiosas chinesas merece estudo. Há um ritual taoísta chamado Pontuar os olhos para abrir a luz (kaiguang dianyan), no qual o sacerdote usa pincel e tinta para pontuar os olhos da divindade, que se torna então digna de culto, como se fosse uma pessoa viva. Gu se negava a pontuar as pupílas das pessoas pintadas, pois ele entendia que isto dotaria a pintura de vida, como acreditam os sacerdotes taoístas que pontuam os olhos das estátuas. Há algumas historietas envolvendo Gu. Conta-se que certa vez ele se apaixonou por uma mulher que lhe negava amor. Gu, então, pintou a mulher numa parede e cravou um alfinete na altura do seu coração. Diz-se que ela começou a sentir dor no coração, implorando a Gu para que retirasse a agulha da pintura. Também se diz que ele pintou dragões num muro mas não pincelou suas pupílas, para que eles não tomassem vida, saindo das paredes. Gu Kaizhi escreveu um texto chamado Teoria da pintura (lunhua) onde expõe seus principais pensamentos sobre arte. O texto começa assim: “Em pintura, o mais difícil é pintar as pessoas. Depois, a paisagem. A seguir, cachorros e cavalos. Então, edificações e utensílios”. 51 Estilo, no sentido de estruturação (ti) das coisas. 52 Concepção (yi), que também se pode traduzir por ideia, um dos conceitos fundamentais na pintura chinesa. 53 Xie He foi sucinto em relação a Gu Kaizhi, o que despertou polêmica entre eruditos posteriores, que consideraram suas observações injustas. 54 Mao Huiyuan é categorizado por Zhang Yanyuan como um pintor da dinastia Qi (479-502). 55 Estilo, no sentido de estruturação (ti) das coisas. 56 Redondo (zhou), palavra que parece exprimir a inteireza da estruturação (ti) de Mao. Zhou é um termo que se opõe a fang (quadrado), que aparece em outros textos sobre arte. 57 Tradução literal: “sua pincelada era proeminente tanto na horizontal quanto na vertical”. 58 Força (li), termo que indica um dos componentes essenciais na qualidade da pincelada. 59 Harmonia (yun), como no primeiro cânone (yunqi). Também se poderia traduzir yun por um adjetivo, e a palavra seguinte por um substantivo abstrato, ficando: “elegância harmoniosa”. 60 O núcleo semântico desse tipo de sentença, formada por quatro caracteres (li qiu yun ya), são as palavras li e yun, qualificadas pelos termos qiu e ya, respectivamente. 61 Passagem que transmite fortemente a noção de que Mao Huiyuan tinha facilidade e liberdade (huihuo) no sentido de rapidez de execução.
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62 Propriedades (zhi), termo genérico que pode significar tanto as características externas das coisas como sua textura. 63 Placidez (kuairan). O Cihai registra (1999, p. 944), sobre o termo: “Em paz, sem nem mesmo uma expressão facial. A biografia de Guliang diz: placidamente (kuairan) recebeu as honras de todos os duques”. 64 Ingenuidade (zhuo), em oposição a engenho (qiao). Essa sentença não é citada por Zhang Yanyuan no Registro dos pintores renomados de todas as épocas (lidai minghua ji). 65 Xia Zhan viveu durante a dinastia Jin (265-420). 66 Na tradução dessa sentença, segui a citação de Zhang Yanyuan no Registro dos pintores renomados de todas as épocas (lidai minghua ji), onde se lê: shi mei fei xu. No texto que nos chegou como sendo de Xie He lemos: shi fei xu yi. A diferença está nas palavras mei e yi. Mei significa beleza. Yi é aquilo que os chineses chamam de palavra vazia, sendo apenas uma partícula que encerra a frase. Assim, há duas traduções possíveis. No primeiro caso: “a beleza de sua execução não era falsa”. No segundo: “a sua execução não era falsa [ou vazia]”. Detenho-me, também, no vocábulo que traduzi por execução (shi). Ele aparece na segunda sentença de Xie He em relação a Lu Tanwei, o primeiro dos pintores: “Sua execução [shi] supera a capacidade descritiva das palavras”. Também se pode traduzir shi por assunto, matéria, ficando: “O assunto supera a capacidade descritiva das palavras”. No caso de Xia Zhan, soaria ainda mais estranho: “a beleza do assunto [shi] não era falsa”. Shi significa várias coisas, entre elas: assunto, matéria, ofício, ocupação, envolvimento, servir, estar engajado com. Creio que é nesta última acepção que Xie He estava usando a palavra, no sentido de se estar engajado na atividade de pintar, de executar a pintura. Estenderei essa observação quando tratar de Gu Baoguang, em que o termo também aparece (ver nota 87). 67 Dai Kui viveu durante a dinastia Jin (265-420), tendo morrido por volta de 395. Também chamado An Dao. Segundo Zhang Yanyuan, era dotado de inteligência e erudição, sendo versado no tambor, no qin (um instrumento de cordas), na caligrafia e na pintura. Além disso, era artista precoce, mostrando talento desde a infância. Um homem eminente disse sobre sua pintura, quando ainda era criança: “essa criança não é comum. Caso se torne um pintor terá grande fama, é uma pena o fato de eu não estar vivo até lá para poder ver sua glória”. Diz-se que ele recusou energicamente o convite do imperador Wuling, que desejava ver sua capacidade de perto. 68 Estilo, nesse caso, o termo feng (vento), sobre o qual Giles faz interessante observação (1918, p.22): “[...] wich term is understood by the Chinese in the sense of divinae particulam aurae”. 69 São conhecidos os nomes de outras pinturas suas: Um velho pescador; Cavalos famosos; O leão negro, por exemplo. 70 Jiang Sengbao é categorizado por Zhang Yanyuan como pintor da dinastia Qi (479-502). 71 Provavelmente Yuan Qian e Lu Tanwei ou seu filho, Lu Sui. 72 A pintura chinesa também é conhecida como danqing que significa, literalmente, cinábrio (dan) e azul (qing). Segundo o Cihai (1999, p.287): “Na Antiguidade, os pintores sempre usavam vermelho e azul, por isto, a pintura ficou conhecida como danqing”.
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73 Gugeng (ver nota 11). 74 Wu Ridong viveu durante a dinastia Liu-Song (420-479). 75 Luoyang, centro político e cultural durante o período considerado. 76 Zhang Ze viveu durante a dinastia Liu-Song (420-479). 77 Concepção (yisi), ou ideia. Zhang Yanyuan, quando cita essa estasentença de Xie He, usa as palavras conceito (yi) e forma (tai), que parecem manter uma relação de oposição, remetendo ao invisível (a ideia, o plano mental, sugerido pelo vocábulo yi) e ao visível (a forma, a aparência, a atitude), respectivamente: “Em concepção e aparência, ilimitado”. 78 Lu Gao é categorizado por Zhang Yanyuan como pintor da dinastia Qi (479-502). 79 O termo que traduzi por mesura (zhi) aparece na versão que nos chegou do texto de Xie He como zhi, que significa estender, aumentar. Optei pelo termo homófono que aparece na citação de Xie He feita por Zhang Yanyuan. Em ambos os casos, transmite-se de modo forte a ideia do funcionamento da estruturação (ti) das figuras individuais que compõem a pintura. 80 O termo guizhi (canela) aponta para a planta cujo nome científico é ramulus cinnamoni, de uso medicinal na China. Creio que a palavra que traduzi por escassez (wei) esteja corrompida no texto original, tendo-se trocado wei por zheng, que corta a fluidez da metáfora e quebra o sentido da sentença. 81 Essa sentença não consta na citação de Xie He feita por Zhang Yanyuan. Provavelmente não consta do texto original, pois esse tipo de metáfora não é típica de Xie He, como as historietas não o são. 82 Qu Daomin e Zhang Jibo são situados por Zhang Yanyuan como pintores da dinastia Qi (479-502). 83 A essa altura a pintura mural já era amplamente disseminada na China, datando de séculos. 84 Adentrar a divindade (shen), no contexto de Xie He, não é o maior elogio que se possa dedicar a alguém, ao contrário do que ocorreria em Vasari, que ao denominar Michelangelo divino o colocava no topo, como o maior de todos os artistas. 85 Gu Baoguang viveu durante a dinastia Liu-Song (420-479). Serviu na corte do imperador Daming. 86 Isto é, da casa de Lu Tanwei. Xie He pode estar se referindo a Lu Tanwei ou a Lu Tanwei e seus filhos, que também foram bons pintores. Pela citação presente no Registro dos pintores renomados de todas as épocas (lidai minghua ji), parece referir-se apenas a Lu Sui. 87 Nessa sentença aparece novamente o termo shi, ao qual me referi na nota 67. Creio que essa passagem corrobore minha interpretação do termo shi como sendo mais bem traduzido por execução, indicando o ato de pintar. 88 Pintor colocado na sexta categoria por Xie He. 89 Maneira (fang), termo que em outras passagens traduz-se por estilo. 90 A sentença termina de modo diferente na citação de Xie He feita por Zhang Yanyuan no Registro dos pintores renomados de todas as épocas (lidai minghua ji), em que se lê: “Sua maneira, a Lu Sui e a Yuan Qian no que possuem de melhor”. 91 A passagem dedicada a Gu Baoguang dá a impressão de que ele é maneirista, no sentido de que se apropria de elementos presentes em diversos mestres (no caso, Lu Sui, Yuan Qian e Zong Bing) para produzir sua própria pintura.
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92 Wang Wei e Shi Daoshu viveram durante a dinastia Jin (265-420). A respeito de Daoshuo, Sun Chang afirma: “Daoshuo e seus três irmãos eram todos bons pintores. Suas obras incluem representações de pessoas, cavalos e gansos”. 93 Zhang Yanyuan troca meticulosidade [xi] por concepção [yi]: “ Wang conquistou sua concepção (…)”. 94 Liu Xu é situado por Zhang Yanyuan como um pintor da dinastia Qi (479-502). 95 Ideia (yi), termo traduzido em outras passagens por concepção, e que aponta para a dimensão mental e invisível de uma obra de arte. 96 A julgar pelo fato de Liu Xu pintar a figura humana, não é de estranhar que Xie He fale em decoro, provavelmente no sentido da adequação das figuras pintadas a todo o protocolo social. 97 Mingdi foi imperador da dinastia Jin (265-420), tendo governado de 322 a 325. Era chamado Sima Shao e Dao Ji. Foi o filho mais velho do imperador Yuandi. 98 Essa sentença não consta no Registro dos pintores renomados de todas as épocas (lidai minghua ji), em que Zhang Yanyuan cita Xie He comentando Mingdi. 99 Liu Shaozu viveu durante a dinastia Liu-Song (420-479). O comentário feito por Xie He parece ter sido corrompido pelos compiladores. Analisando-se o Registro dos pintores renomados de todas as épocas (lidai minghua ji), chega-se à conclusão de que no tópico destinado a Liu Shaozu foram acrescentados comentários originalmente dirigidos por Xie He a Liu Yinzu. 100 Segundo o registro presente no texto de Zhang Yanyuan, essa passagem, de fato, comentava Liu Shaozu. 101 Segundo o registro presente no texto de Zhang Yanyuan, essa passagem deveria comentar Liu Yinzu, e não Liu Shaozu. 102 Nessa passagem, que provavelmente foi adicionada posteriormente por compiladores, Confúcio é citado. Confúcio usava as mesmas palavras (shu er bu zuo) para se referir ao fato de apenas repetir as idéias dos antigos, sem nada lhes acrescentar. 103 Zong Bing viveu durante a dinastia Liu-Song (420-479). Chamado Chao Wen. Embora seja colocado na sexta categoria por Xie He, foi pintor celebrado, tendo escrito um tratado sobre pintura de paisagem. Zhang Yanyuan lhe dedica uma longa seção no Registro dos pintores renomados de todas as épocas (lidai minghua ji). Era bom tanto em caligrafia quanto em pintura. 104 Adaptei a expressão han hao ming su nessa sentença, traduzindo-a por execução. Na Antiguidade, o pintor ou o calígrafo usavam a boca para amaciar o pincel (daí a expressão han hao) e então preparavam o papel branco para executar a caligrafia ou a pintura (ming su). Su aponta para um tipo de seda, com o qual se fazia papel. Xie He pode estar se referindo tanto à execução da caligrafia quanto à execução da pintura de Zong Bing. 105 Novamente a expressão ideia (yi) aparece. Xie He reconhece em Zong Bing mais talento como teórico do que como pintor. 106 Ding Guang é situado por Zhang Yanyuan como pintor da dinastia Qi (479-502).
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107 Novamente aparece o tema das cigarras e pardais, de relativa importância na pintura chinesa. Além disso, a pincelada de Ding Guang é praticamente desqualificada: leveza (qing) e fraqueza (lei) seriam os atributos menos desejáveis para um pintor. 108 Essa sentença reforça o argumento segundo o qual o cânone mais importante de Xie He é o primeiro, que versa sobre o sopro (qi). Por mais que estudasse, Ding Guang não tinha nem talento (cai), nem sopro suficientes, isto é, nem aptidão natural, nem disposição física, afetiva, psíquica e espiritual necessárias para produzir uma pintura excelente.
Bony Braga Schachter (Rio de Janeiro, Brasil) é bacharel em história da arte pelo Instituto de Artes da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Atualmente cursa o mestrado do Programa de Pós-Graduação em Artes da mesma instituição, aprofundando-se no tema do talismã taoísta – importante elemento da cultura visual da religião – em sua relação com a arte chinesa, a escrita e a liturgia. Seu objeto de estudo é um conjunto de talismãs de uma linhagem exorcista surgida no século XIII denominada Qingwei. / bonybraga@uol.com.br
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Jorge Menna Barreto, 2009.
A arte de ser testemunha na esfera pública dos tempos de guerra Rosalyn Deutsche
Este texto foi apresentado em forma de palestra na Arco 2008 em Madri, Espanha. Usando autores como Hanna Arendt, Jacques Rancière, Claude Lefort, Emmanuel Lévinas, Etienne Balibar e Krzysztof Wodiczko, a pensadora constrói uma teia que problematiza as noções de público, arte na esfera pública, alteridade e política. A afirmação “Ser público é expor-se à alteridade” retrata bem sua fala, chamando a atenção para e tornando complexo o fenômeno visual da aparição implicada. Arte pública, esfera pública, face. Em 1958, Hannah Arendt definiu a esfera pública, ou a comunidade Tradução Jorge Menna Barreto.
político-democrática, como “o espaço da aparição”, ou o que a fenomenologia chama de
Krzysztof Wodiczko. A Projeção Hiroshima, 7 e 8 de agosto, 1999. Projeção pública na Abóbada Atômica, Hiroshima, Japão.
“tornar visível”. Ao enfatizar aparição, Arendt conecta a esfera pública – que ela modelou a partir da antiga pólis grega – à visão e assim, sem saber, abre a possibilidade para que as artes visuais possam ter um papel no aprofundamento e expansão da democracia, um papel que alguns artistas contemporâneos, felizmente, estão ansiosos para desempenhar. Em suas famosas palavras, Arendt escreveu: A pólis (...) não é a cidade-estado no seu lugar físico; é a organização das pessoas à medida que surgem o atuar e o falar juntos, e seu verdadeiro espaço está entre as pessoas vivendo juntas para esse propósito, não importando onde estejam (...) é o espaço da aparição no sentido mais amplo da palavra, ou seja, o espaço em que eu apareço para os outros à medida que os outros aparecem para mim, em que o homem
1 Arendt, Hannah. The human condition. Chicago and London: University of Chicago Press, 1958, p.198-99. [grifo meu].
(...) faz a sua aparição explicitamente.1 Filósofos políticos mais atuais também têm conectado o espaço público à aparição. Mais recentemente, Jacques Rancière definiu a prática democrática e a estética radical como o rompimento do sistema de divisões e fronteiras que determina quais grupos sociais são visíveis e quais são invisíveis. No entanto, antes ainda, no início dos anos 80, o filósofo político francês Claude Lefort, que foi influenciado por Arendt, relacionou a habilidade de aparecer à declaração dos direitos humanos, introduzindo ideias que se tornaram conceitos-chave no discurso da democracia radical. Para Lefort, o marco da democracia é a incerteza sobre as fundações da vida social. Com as revoluções democráticas do século XVIII, diz ele, e com as declarações de direitos francesa e estadunidense, o lugar do poder muda. O poder do Estado não é mais atribuído a uma fonte transcendente, como Deus,
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uma lei natural ou uma verdade autoevidente. Agora o poder vem “do povo”. Todavia, com o desaparecimento da fonte transcendente do poder, uma fonte incondicional de unidade social – o significado do povo – também desaparece. O povo é agora a fonte do poder, mas não tem identidade fixa. “A democracia”, diz Lefort, “é instituída e sustentada pela dissolução dos marcos da certeza. Inaugura uma história na qual o povo experimenta uma indeterminação relativa à base do poder, da lei e do conhecimento, no que diz respeito à base das relações entre o si mesmo e o outro”.2 O significado da sociedade se torna uma questão. É decidido pelo social, mas não é imanente. Ou melhor, a democracia dá surgi-
2 Lefort, Claude. The question of democracy. In Democracy and political theory. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1988, p.19.
mento ao espaço público, o reino da interação política, que aparece quando – na ausência de um base adequada – o significado e a unidade da ordem social são a um só tempo constituídos e colocados em risco. Precisamente porque a ordem social é incerta, está aberta à contestação, e então o que é reconhecido no espaço público é a legitimidade do debate sobre o que é legítimo e o que é ilegítimo. O debate é iniciado com a declaração de direitos, mas a invenção democrática destitui os direitos, assim como as pessoas, de uma fundação sólida. Os direitos, também, tornam-se um enigma. Sua fonte não é a natureza, mas o enunciado do direito e da interação social implícitos ao ato de declarar. A partir da interação, aqueles que não têm lugar algum na comunidade política fazem a aparição. No ato de declarar direitos novos, específicos, eles repetem a demanda democrática orginal por liberdade e igualdade. Assim eles também declaram o que Etienne Balibar chama de “o direito universal à política”,3 que, seguindo Lefort, pode ser entendido como o direito de aparecer como um sujeito enunciador na esfera pública. O espaço de aparição – a esfera pública – aparece então quando grupos sociais declaram o direito de aparecer. Latente nas noções de esfera pública como o espaço de aparição, para Arendt e Lefort, está a questão não só de como aparecer, mas como respondemos à aparição dos outros, questão que é da ética e política do viver juntos num espaço heterogêneo. Ser público é estar exposto à alteridade. Consequentemente, artistas que querem aprofundar e estender a esfera pública têm uma tarefa dupla: criar trabalhos que, um, ajudam aqueles que foram tornados invisíveis a “fazer sua aparição” e, dois, desenvolvem a capacidade do espectador para a vida pública ao solicitar-lhe que responda a essa aparição, mais do que contra ela. Neste ponto, no entanto, um problema surge, pois correntes importantes da arte contemporânea – em particular, a crítica feminista da representação – analisaram a visão precisamente como o sentido que, em vez de acolher o outro, tende a se relacionar com ele a partir da conquista e, de uma forma ou de outra, fazê-lo desaparecer enquanto outro. Transformar o outro numa imagem distante ou numa entidade presa, posta perante si – a visão –, há muito vem sendo discutido, é um veículo do desejo humano de maestria e domínio. Orientada na direção do triunfalismo, mais do que da resposta, a visão pode, por exemplo, tomar a forma de alucinação negativa, na qual falhamos em ver algo que está presente mas irreconhecível, algo cuja presença queremos ignorar. Se então o exporse ao outro está no coração da vida pública democrática, a questão de como a arte pode
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3 Balibar, Etienne. “Rights of Man” and “Rights of the Citizen:” The Modern Dialectic of Equality and Freedom”. In Masses, Classes, Ideas: Studies on Politics and Philosophy Before and After Marx. New York and London: Routledge, 1994, p.49.
desenvolver a capacidade de ser pública suscita outras questões mais: com qual tipo de visão devemos encarar a aparição dos outros? A arte pode estabelecer formas de ver que não buscam reduzir o impacto do expor-se? Que tipo de visão pode superar a apatia e responder ao sofrimento dos outros? Em resumo, o que é a visão pública? O filósofo Emmanuel Lévinas, em sua radical reavaliação da ética, oferece algumas respostas, uma forma de pensar sobre visão e espaço de aparição que desafia a visão triunfalista. Lévinas preocupa-se com a forma como o “eu” é chamado em questão quando exposto à aparição do outro. Ele concebe o outro não como um objeto de compreensão, mas como um enigma. Ele chama a outra pessoa que aparece para o outro de “a face”, mas a face – ou, como ele também nomeia, o vizinho – é mais do que a outra pessoa no mundo: é a manifestação do Outro no sentido daquele que não pode ser integralmente visto ou conhecido. O Outro se aproxima, mas não pode ser reduzido a um conteúdo; o Outro aparece mas não pode ser completamente visto. Ainda, quando o outro aparece, está acompanhado por algo mais, algo que Lévinas chama de “a terceira parte”. A abordagem dessa terceira parte não é, como a da face, um acontecimento empírico. É a emergência da consciência de que, diz Colin Davis, “o Outro nunca é apenas o meu outro”. Melhor, “o Outro implica a possibilidade de outros, para os quais eu mesmo sou um Outro… sou levado a me dar conta de que o Outro não existe só para mim, de que meu vizinho também 4 Davis, Colin. Lévinas: an introduction. Notre Dame: University of Notre Dame Press, 1996, p.83.
é vizinho de uma terceira parte e que de fato para eles sou eu a terceira parte”.4 Com a noção da terceira parte, Lévinas entra no discurso da esfera pública, pois a terceira parte suscita o encontro com o outro que está além do espaço do encontro face a face
5 Lévinas, Emmanuel. Totality and Infinity, trans. Alphonso Lingis, Pittsburgh: Duquesne University Press, 1969, p.213; originally published as Totaité et Infini, The Hague, Martinus Nijhoff, 1961. 6 Id., ibid., p.212. 7 Id., ibid., p.75-76. 8 Para críticas relacionadas, sobre a esfera pública, ver Iris Marion Young, “Impartiality and the Civic Public: Some Implications of Feminist Critiques of Moral and Political Theory,” In Feminism as Critique, ed., Seyla Benhabib and Crucilla Cornell, Minneapolis, University of Minnesota Press, 1987; Nancy Fraser, “Rethinking the Public Sphere: A Contribution to the Critique of Actually Existing Democracy,” Habermas and the Public Sphere, ed., Craig Calhoun, Cambridge: MIT Press, 1992; Bruce Robbins, “Introduction: The Public as Phantom,” In The Phantom Public Sphere, ed., Bruce Robbins, Social Text Series on Cultural Politics 5, Minneapolis: University of Minnesota Press, 1993; Thomas Keenan, “Windows: Of Vulnerability,” in Robbins, ed., The Phantom Public Sphere, p.121-41; and Rosalyn Deutsche, “Agoraphobia”, In Evictions: Art and Spatial Politics, Cambridge: MIT Press, 1996.
diádico e o firma em espaço público. A terceira parte é “a humanidade inteira que me olha”,5 e a relação com a face, posto que é também e sempre uma relação com a terceira parte, “coloca-se na mais completa luz da ordem pública”. 6 A abordagem do outro, ou a aparição, presupõe o mundo social, mas me diz que eu não consigo encontrar esse mundo a partir da posição de completo entendimento, o que faria o mundo ser “meu”. O mundo não me pertence. Lévinas escreve: “a presença do outro é equivalente a colocar em questão minha prazerosa posse do mundo”. 7 Lévinas retira do sujeito o poder do conhecimento, e essa despossessão traz de volta a dissolução da certeza que, para Lefort, dá nascimento à esfera pública. Lefort e Lévinas são filósofos do enigma – daquilo que escapa à compreensão e desmancha a autoconfiança, se entendermos a autoconfiança no sentido de estar impassível à presença de algo que um não conhece ou não pode controlar. O habitante da esfera pública lefortiana e leviniana, diferente do habitante da esfera pública habermasiana, não aspira ao total conhecimento do mundo social, pois tal conhecimento elimina a ‘outridade’.8 Por contraste, o desaparecimento da certeza, que em Lefort e Lévinas nos chama para o espaço público, nos obriga a ser o que Lévinas chama de “não indiferente” à aparição do outro. A “não indiferença” designa a habilidade de responder ao outro, uma “responsa(h)abilidade” que Lévinas considera a essência da existência razoável no homem. A responsabilidade em Lévinas é parte
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de um discurso ético-político que difere das meditações tradicionais sobre a moralidade. Em vez de começar com a universalidade de alguma lei moral racional, Lévinas “parte da ideia de que a ética nasce na relação com o outro”.9 Enquanto a moralidade é um discurso da certeza, a ética é incompatível com a certeza moral, pois a responsividade à face do outro interrompe o narcisismo, interfere nas idealizações do eu como compreendedor do
9 Lévinas, Emmanuel. “Being-for-the-Other,” In Is It Righteous to Be? Interviews with Emmanuel Lévinas. ed. Jill Robbins, Stanford University Press, 2001, p.114.
todo. Lévinas relaciona responsividade à visão, mas também, e de modo mais importante, a uma crítica da visão. Ele põe aspas de ressalva na palavra “visão”, colocando-a sob suspeita e indicando que ela abriga perigos: “Ética é uma óptica”, escreve Lévinas. “Mas”, continua, “é uma ‘visão’ sem imagem, subtraída do sinóptico e totalizador, objetificando as virtudes da visão, a relação (…) de um tipo completamente diferente”.10 O aparecer,
10 Id., ibid., p.23.
que cria o espaço público, dessa maneira pode não ser, de modo algum, um acontecimento visual – ou requer outro tipo de visão. Encorajar a aparição da esfera pública das aparições é, portanto, promover uma “visão sem imagem” ou formas não indiferentes de ver. E como a visão não indiferente nos obriga a um envolvimento com a questão, artistas que exploram essas possibilidades atuam na transformação psíquica e subjetiva que, como a tranformação material, é um componente essencial – e não apenas um epifenômeno – de mudança social. Levar adiante a não indiferença, no entanto, não é simplesmente uma questão de tornar visível aqueles grupos sociais que foram tornados invisíveis nas esferas públicas existentes ou produzir imagens verdadeiras desse outro para contradizer as falsas. Como vimos, a face do Outro de Lévinas é precisamente o que se perde quando capturado em imagem. Imagens, Lévinas alerta, tranformam faces em “figuras que são visíveis, mas cuja face foi retirada”.11 Chegamos a uma questão final: como pode a arte ajudar na aparição do outro, ao mesmo tempo em que torna visível os limites que a face coloca em sua representação – limites que, em certo sentido, são a mensagem da face? Não há, obviamente, resposta única, mas uma pode ser encontrada no trabalho do artista Krystof Wodiczko: Projeção Pública, Hiroshima, de 1999. A Projeção de Hiroshima de Wodiczko foi uma espécie de performance multimídia feita na cidade de Hiroshima nas noites de 7 e 8 de agosto, os dois dias seguintes ao aniversário do bombardeio atômico do Exército norte-americano em 1945. A performance foi documentada em filme feito pelo artista. Projeção de Hiroshima adquiriu novas camadas de sentido no tempo durante a guerra do Iraque, cujo custo em sofrimento humano tão claramente ecoa aquele do bombardeio de Hiroshima. Preparando a projeção, Wodiczko entrevistou uma variedade de habitantes da cidade: sobreviventes do bombardeio e da radiação, descendentes dos sobreviventes, jovens e coreanos, cujos depoimentos gravou. Enquanto falavam, o artista filmava suas mãos, e durante a projeção, autofalantes tocavam gravações dos depoimentos à medida que imagens ampliadas das mãos gesticulantes dos falantes eram projetadas no banco de terra da parte do rio que corre logo abaixo da Abóbada Atômica. Os reflexos das mãos projetadas se materializavam na superfície da
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11 Id., ibid., p.116.
água. Quando a bomba explodiu sobre a Abóbada, milhares de habitantes gravemente queimados se atiraram no rio para aliviar a dor, mas a água estava contaminada pela radiação e logo ficou repleta de corpos. A Abóbada, no entanto, sobreviveu e, encarada como testemunha do trauma, tem desde então permanecido em seu estado de ruína, como um memorial. À noite ela é banhada de luz. A obra de Wodiczko, reproduzida três vezes a cada noite, consistia em 15 depoimentos e durava 39 minutos. Uma audiência de mais de 4 mil juntou-se na margem oposta do rio. A projeção antropomorfizou a Abóbada, transformando o prédio em um “corpo” que parecia ser a origem das vozes dos falantes. As mãos de um dos falantes segurava um antigo cadeado: “Segurarei este cadeado dessa forma para mostrar para nossos filhos, como um tesouro”, explicou. “Nosso pai usava este cadeado todas as vezes que andava de bicicleta. Pegamos este cadeado dos destroços da bicicleta que foi achada com seus ossos no local onde meu pai morreu.” Uma mulher de 27 anos falou sobre a persistência dos sintomas do trauma por três gerações, descrevendo como seu avô celebrou o bombardeio do Iraque na televisão durante a Guerra do Golfo Pérsico e sobre como não consegue deixar o hábito de machucar a si mesma: “Com frequência me firo com uma caneta”. Um sobrevivente rememorou a cena de 54 anos atrás, quando as pessoas pulavam no rio: “Eles gritavam ‘Ajuda!’ e moviam suas mãos, assim. Mas nunca mais saíram do rio. Afundaram. Mas o som da água (…) fluiu com os cadávares para o mar. A Abóbada está assistindo por toda a eternidade”. Dois falantes lembraram a negação de ajuda aos coreanos lesionados. “Aqueles raios de calor assustadores queimavam ferro e pedra”, um disse, “e quando a cidade inteira foi queimada e queimada até as cinzas, uma coisa não queimou – a discriminação”. Uma mulher chamada Kwak Bok Soon contou sobre a visita que fez como parte da delegação de sobreviventes para apresentar uma petição contra testes nucleares no Departamento de Estado dos Estados Unidos. A Projeção Hiroshima facilita a aparição da face do outro, embora possa parecer estranho mencionar face ao tratar de um trabalho que não mostra faces e, além disso, chama a atenção para a própria falência em fazê-lo. No entanto, é exatamente a ausência de faces que interessa, pois, como vimos, a face de Lévinas não é literal, mas precisamente aquela que escapa ao cerco do conhecimento e da visão. Ao aparecer, a face ultrapassa o que 12 Lévinas, Emmanuel. “The Face,” In Ethics and Infinity, Pittsburgh: Duquesne University Press, 1985, p.87; originally published as Ethique et infini, Librairie Arthème Fayard et Radio France, 1982. 13 Ibid. 14 A respeito da crítica feminista, ver Craig Owens, “The Discourse of Others: Feminists and Postmodernism,” in Beyond Recognition: Representation, Power, and Culture, Berkeley, University of California Press, 1992, 166-190 e Rosalyn Deutsche, “”Boys Town” e “Agoraphobia,” in Evictions: Art and Spatial Politics, Cambridge, MIT Press, 1996, 203-244; 268-327.
pode ser “visto”. De preferência, diz Lévinas, “a face fala”, 12 tal como as faces invisíveis da Projeção Hiroshima. A face transborda a visão já que a visão é, novamente nas palavras de Lévinas, uma “busca de adequação”, ou seja, uma busca de conhecer integralmente e dominar o objeto de conhecimento”.13 De fato, a face pede uma visão inadequada, o que quer dizer resposta. Insistindo na visão inadequada, a Projeção Hiroshima pertence a uma prática de arte contemporânea que produz imagens críticas, imagens que desfazem as fantasias narcisistas ou o que eu chamaria de masculinistas do sujeito que olha. Tais fantasias nos cegam à ‘outridade’, seja por rejeitá-la ou assimilá-la ao ego-sabedor ou ao Mesmo.14 Imagens críticas interrompem o excesso de autorreferencialidade, promovendo ‘respostabilidade’
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ao outro, estabelecendo modos de ver, e desenvolvendo a experiência do ser em público. Ao fazer isso, elas também trabalham contra as maneiras de ver promovidas pelo mass media estadunidense. Judith Butler, ao escrever sobre as representações do terror na mídia, diz algo similar: Se “a crítica cultural tem alguma tarefa neste momento”, escreve Butler, “é sem dúvida fazer com que voltemos ao humano onde não esperaríamos encontrá-lo (…) Nós teríamos que interrogar a emergência e o desaparecimento do humano nos limites do que conseguimos saber, do que conseguimos ouvir, do que conseguimos ver, do que conseguimos perceber”.15 “Os limites do que conseguimos saber, do que conseguimos ouvir, do que conseguimos ver, do que conseguimos perceber” – Butler está descrevendo a face de Lévinas, entendida tanto como o limite do conhecimento quanto como o pranto do sofrimento
15 Butler, Judith. “Precarious Life,” In Precarious Life: The Powers of Mourning and Violence. London and New York: Verso, 2004, p.151.
humano, que pede resposta. Butler contrasta a concepção de Lévinas da face com o uso que a mídia dominante faz de faces literalmente árabes. A mídia apresenta essas faces tanto de forma humanizadora como deshumanizadora. As faces deshumanizadas de Osama Bin Laden, Yasser Arafat e Saddam Hussein, diz Butler, têm sido usadas para encorajar uma desidentificação com o mundo árabe. Ao mesmo tempo, as faces sem véu das jovens mulheres afegãs liberadas da burka humanizam a guerra, mas o fazem de uma maneira que simboliza a importação bem-sucedida da cultura estadunidense. Apresentadas tanto como “os resíduos da guerra… ou os alvos da guerra”, faces como essas, produzidas a serviço da guerra, silenciam com o sofrimento causado pela guerra.16 Butler as chama de
16 Id., ibid., p.143.
“imagens triunfalistas” não só porque o triunfo estadunidense é seu conteúdo temático ou subtexto, mas porque não consideram a falência – a inadequação – da representação. Como consequência, imagens triunfalistas impedem a aparição da face. Constrastando, imagens críticas conturbam nosso campo visual, promovendo uma visão não indiferente e contribuindo para a transformação não só do olho cego, mas do ouvido surdo. A Projeção Hiroshima de Wodiczko constrói esse potencial transformativo ao engajar o público num tipo de visão – e escuta – conhecidos como testemunho, uma atividade que é crucial em nossos tempos de trauma coletivo e autodeflagrado, tal como a guerra e a tortura, que pedem testemunhas. Giorgio Agamben teorizou sobre a posição da testemunha como sendo a base da subjetividade ético-política porque a testemunha responde ao sofrimento do outro sem lhe tomar o lugar17. Agamben se baseia em Primo Levi que, ao escrever sobre si mesmo como vítima de Auschwitz, definiu o testemunhar como uma forma
17 Agamben, Giorgio. Remnants of Auschwitz: The Witness and the Archive. New York: Zone Books, 1999.
do que Lévinas chama de “ser-para-o-outro”. Um amigo uma vez disse para Levi que ele (Levi) foi salvo por uma razão – ser testemunha. Levi ficou horrorizado porque essa ideia denigre aqueles que não foram salvos, aqueles que, tal como Levi coloca, “se afogaram”. Em resposta, Levi insistiu que o sobrevivente do campo de concentração nazista não é uma verdadeira testemunha, já que ele não viveu a experiência completa dos campos, que foi uma experiência de morte. Levi diz “Nós, os sobreviventes, não somos as verdadeiras testemunhas” porque os sobreviventes não “chegaram até o fundo”: “A destruição derradeira, o trabalho completo, não foi contado por ninguém”.18 A testemunha sobrevivente é, portanto,
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18 Levi, Primo. The Drowned and the Saved,. New York: Random House, 1989, p.83-84.
uma “testemunha por proximidade”, uma testemunha para o outro. Já que a testemunha completa não pode falar, Levi torna-se uma testemunha secundária, mais do que primária, cedendo seu lugar ao outro. Na Projeção Hiroshima, Kwak Bok Soon faz o mesmo: “Eu odiava falar”, ela diz, “Eu absolutamente não queria falar (…) mas agora eu penso da seguinte forma: pessoas morreram, morreram sem falar [uma palavra]. Eu sobrevivi e estou viva, e os represento, então devo ousar falar sem me sentir envergonhada de odiar fazer isso”. Testemunhar é uma maneira de ver e escutar que requer a aceitação da inadequação, a renúncia ao desejo de domínio, pois, como a teórica do trauma Cathy Caruth discute, ser testemunha de uma verdade do sofrimento por um evento traumático é testemunhar a in19 Caruth, Cathy. “Recapturing the Past: Introduction,” In Trauma: Explorations in Memory, Baltimore and London: The Johns Hopkins University Press, 1995.
compreensibilidade desse evento.19 Começando pela observação de que vítimas de trauma são compelidas a repetir o evento causado pelo trauma, Caruth adiciona que a repetição não é apenas a tentativa da vítima de se preparar retroativamente para o evento. Também é um pedido para que o sofrimento seja testemunhado. “A história de um trauma só pode
20 Cathy Caruth, “Trauma and Experience: Introduction,” In Trauma, op. cit., p.11.
se dar a partir da escuta pelo outro”, escreve Caruth.20 Mas desde que, por definição, o evento que causou o trauma foi tão sobrepujante que não pode ser completamente conhecido ou experimentado no momento em que ocorreu, a vítima sofre de incompreensão, e se a testemunha afirma uma compreensão da experiência, ela reinvindica uma compreensão excessiva e, portanto, trai a vítima. Isso coloca um problema para a representação estética que quer responder ao sofrimento de outros. Enquanto um sofrimento traumático pede para o evento ser testemunhado, ele cria uma necessidade de um novo tipo de testemunha – o que Caruth chama de testemunho de uma impossibilidade, a impossibilidade
21 Id., ibid., p.10.
de compreender o trauma.21 Testemunhar no sentido ético de responder necessita de uma crítica das imagens baseada nas noções de adequação representacional. A Projeção Hiroshima propõe tal crítica. Wodiczko chama-a de “terapia memorial”. A expressão tem pelo menos dois significados: refere-se à terapia para sociedades problemáticas conduzida a partir de memoriais. E também se refere à terapia para memoriais, tal como a Abóbada Atômica de Hiroshima, que, em seu silêncio e condição de ruína, se parece com uma pessoa silenciada por um trauma histórico e por indiferença, uma pessoa como Kwak Bok Soon, que era incapaz de falar quando confrontada com a frieza do oficial do governo estadunidense, que se recusava a ser testemunha. Ao transformar a Abóbada Atômica em um corpo vivo, a projeção de Wodiczko deu ao prédio traumatizado o status de sujeito falante, resgatando-o de sua condição muda ao conversar com ele, como um psicoterapeuta. A projeção também ajudou as vítimas humanas a falar, ao enfatizar a linguagem complementar dos gestos das mãos – a linguagem da mente inconsciente – enquanto subtraía suas faces. Essa subtração protegia os falantes da captura da visão com imagem, a visão que sabe em demasia. Dessa forma, a projeção facilitou a aparição da face e perguntou – e até mesmo obrigou – os espectadores a tomar a posição de testemunhas, cuja visão inadequada lhes permite responder ao sofrimento. Ao mostrar como a representação é falha na presença da face do outro, a Projeção Hiroshima facilitou a emergência de uma esfera pública na qual a aparição de
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outros é celebrada porque, ao questionar a ordem social, evita que a democracia desapareça. Essa atividade é crucial neste momento, quando a retórica da segurança está ameaçando engolfar-nos. Testemunho de Kwak Bok Soon – 71 anos de idade O Sr. Hasegawa, eu e uma equipe que fala inglês visitamos o Departamento do Governo dos Estados Unidos, trazendo assinaturas e apelo que mostram nossa posição contundente contra testes nucleares, representando o então prefeito de Hiroshima, eu lembro. Um oficial do Departamento, que era muito jovem e bonito, apareceu. Como uma das vítimas da bomba, o Sr. Hasegawa apelou para ele, com todo o seu coração, para que parassem os testes. Senão, a Terra seria arruinada, e toda a humanidade seria destruída. Então o oficial começou a discutir a teoria do desarmamento nuclear. Eu consegui tolerar sua teoria até certo ponto. Mas ele disse algo no final. Ele disse que jogar a bomba não era errado, absolutamente. Ele disse que foi graças a isso que a guerra pôde ser finalizada mais cedo e que pelo menos 200 mil vidas de soldados foram poupadas. (…) Quando ouvi a voz do oficial dizendo 200 mil vidas, meu cabelo encrespou de raiva, e lembrei que a bomba levou 200 mil vidas em um único momento quando Hiroshima foi bombardeada. (…) “Com licença? A quem você acha que está dizendo isto? (…) Pessoas que sofreram por causa da bomba vêm conversar com você sobre querer salvar a Terra, quando poderiam em vez disso culpá-lo pelas vidas que você estragou.” Eu me senti dessa forma, naquele momento. Mas eu não tinha as palavras para protestar ali. De fato, eu não disse nada. Tudo o que eu fiz lá foi chorar muito. Eu não conseguia fazer nada além de chorar. (...) Eu tentei dizer algo. Em minha mente eu estava gritando “Como você ousa jogar essas coisas em pessoas que são vítimas!” Eu realmente gostaria de ter gritado “Que diabos que está pensando?” Mas eu não consegui colocar isso em palavras e saí do Departamento em prantos. Quando voltei ao Japão, fui a uma reunião na qual contávamos nossas experiências e ações como vítimas, e eu falei das minhas experiências pela primeira vez. Realmente, eu odiava falar. Eu absolutamente não queria falar (…) mas agora eu penso da seguinte forma: pessoas morreram, morreram sem falar [uma palavra]. Eu sobrevivi e estou viva, e os represento, então eu devo ousar falar sem me sentir envergonhada de odiar fazer isso. Eu estou falando sobre isso agora, sabendo que é minha missão.
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Jorge Menna Barreto (São Paulo, Brasil) é formado em artes plásticas pela UFRGS, mestre em poéticas visuais pela USP e doutorando na mesma instituição. Tem investigado, como artista e pesquisador, a relação do trabalho de arte com seu contexto e os desdobramentos da prática site-specific, além do uso e absorção acríticos do termo no Brasil. Práticas visuais e discursivas se mesclam em sua trajetória como artista, educador e crítico. Integra o grupo de críticos do Centro Cultural São Paulo. / jorgemennabarreto@gmail.com
Rosalyn Deutsche (Universidade de Columbia, Nova York, EUA) é professora adjunta do departamento de história da arte e arqueologia da Universidade de Columbia, Nova York. Reconhecida por traçar conexões entre arte contemporânea e políticas do espaço, Deustche atua nessa mesma instituição nas áreas de arte moderna e contemporânea; teoria feminista e urbana. / deutsche@erols.com
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Foto: Louise Ganz
Diálogos com os vazios da cidade Ana Cecília Soares
Resenha crítica da exposição Ambulantes em espaços vagos, dos artistas Breno Silva e Louise Ganz, cuja proposta é explorar a reconfiguração do espaço urbano, com base na ampliação do convívio com o “outro”, permitido pelos vários usos que se pode fazer dos espaços vazios da cidade. Nessa reflexão, mostra-se que esses lugares não devem ser vistos apenas como áreas desocupadas ou marginais, mas precisam ser compreendidos como espaços capazes de gerar oportunidades e inúmeras possibilidades. Cidade, vazios urbanos e ocupações artísticas. Estamos à procura de “espaços” (geográficos, sociais, culturais, imaginários) com potencial de florescer como zonas autônomas dos momentos em que estejam relativamente abertos, seja por negligência do Estado ou pelo fato de terem passado despercebidos pelos cartógrafos, ou por qualquer outra razão. Hakim Bey1 Um gorjeio tímido e metálico ecoava desengoçadamente pelos arredores 1 Bey, Hakim. Zona autônoma temporária. São Paulo: Conrad, 2001.
do hall do Centro Cultural Banco do Nordeste (CCBNB), em Fortaleza. O exasperado “cocoricó” emergido de um galo branco com olhar assustadoramente amarelado, por alguns segundos, foi abafado pelas buzinas desvairadas dos carros que cortavam vorazmente a Rua Floriano Peixoto, em que se situa o espaço cultural (bem no Centro da “urbe alencarina”). O conjunto de aves (composto por um casal de galo e galinha e mais três pintinhos), uma pisicina de plástico azul, cheia até a borda e com temática de ondinhas, uma rede de vôlei armada com sinalizações que simulam uma quadra de jogos são algumas das “peças” que dão corpo à exposição Ambulantes em espaços vagos, dos artistas mineiros Breno Silva e Louise Ganz. A mostra farta os olhos daqueles que param para observá-la. Seja pela reunião de objetos diversos, e muitas vezes inusitados, distribuídos pela branquidão silenciosa do espaço expositivo ou, ainda, pelas possiblidades de inventar usos ou situações com base nessa série de elementos expostos. Em mistura efusiva de humor, conscientização política e social, visão urbanística e linguajar publicitário, Ambulantes em espaços vagos é trabalho que inquieta o espectador,
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principalmente, pelo fato de se opor a tudo aquilo que as pessoas, de maneira geral, compreendem como arte. Assim, por trás desse estranhamento estético existe uma proposta de reconfiguração do espaço urbano, por meio da ampliação do convívio com o “outro”, resultante dos vários usos que podemos fazer dos pontos ociosos da cidade. Lugares esses, como explica a artista e professora Louise Ganz no livro Lotes vagos – ocupações experimentais,2 que são campos demarcados para a experiência do abandono, do ócio e da produção. “O lote vago em uma cidade é a potência para o esquecimento, para a vagabundagem, para a não vigilância, para atos não planejados ou pequenos delitos, para o descontrole e para a leveza.” Na busca de pensar os espaços vazios e suas formas de preenchimento, a expressão artística se camufla aqui em outras realidades ou linguagens, dentre as quais, por estranho que pareça, destaca-se a do mercado varejista, criando, na falta de expressão mais consistente, uma espécie de “poética artístico-comercial”. A exposição é composta por diversos kits, que propagam maneiras de melhor aproveitar os “ocos” da urbe, apresentando, ao mesmo tempo, um fim social e mercadológico. “São incríveis equipamentos para intensificar o seu dia a dia nas cidades. Com eles você potencializa o uso temporário de espaços que não estão sendo aproveitados, como: vagas de carros nas ruas, terrenos baldios, árvores”, (informa um dos cartazes fixados nas paredes do espaço expositivo, que funcionam como um tipo de manual de instrução ou panfleto publicitário para o público).
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2 Ganz, Louise; Silva, Breno Lotes vagos – das ocupações experimentais. Belo Horizonte: Instituto Cidades Criativas ICC, 2009, p.7.
Foto: Louise Ganz
Cada kit é possuidor de uma função específica – manicure, ambiente com som, mesas para almoço nas calçadas, granjas ambulantes, pequenos balneários ou quadras para jogos – e se acompanha de explicações do tipo: “transforme sua mochila em uma quadra, um picnic ou tenda ao ar livre” ou “transforme seu carrinho ambulante em um salão de beleza ao ar livre em poucos minutos”. Além das explicações e da montagem dos kits, a mostra traz ao público cerca de 11 fotografias, que exemplificam outros meios para o aproveitamento de locais abandonados e, aparentemente, sem função alguma. Ilustradas por diversas paisagens, constituídas pela sobreposição de imagens semelhantes às das placas de sinalização de trânsito, essas fotos contêm informações e sugestões hilárias (por que não exóticas?), do tipo: “Casamento – No Brasil o número de casamentos cresce 7% a mais que nos anos 90. O ritual normalmente é realizado em igrejas e salões de festa. Mas muitos são locais caros. Pode-se casar em terrenos baldios, cheios de flores e árvores”. Além das imagens, é oferecida aos visitantes a exibição de vídeos das ações ocorridas 3 Em Fortaleza foram negociados com seus proprietários oito lotes para empréstimo. Em seguida, cada um desses espaços passou a ser palco de ações diferentes desenvolvidas por vários artistas locais.
nas cidades de Fortaleza3 (2008) e Belo Horizonte (2005 e 2006), durante a efetivação do trabalho Lotes Vagos, intervenção dos artistas Breno Silva e Louise Ganz, que deu origem à exposição Ambulantes em espaços vagos. Enquanto a mostra constitui um recorte e, também, uma adaptação para o cubo branco das atividades que foram realizadas na rua, o projeto da intervenção tinha
Diálogos com os vazios da cidade Ana Cecília Soares
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como questão central a ocupação de terrenos baldios nas cidades com o intuito de torná-los públicos temporariamente, permitindo novas percepções e relações com o espaço e com o “outro”. O centro urbano é preenchido até a saturação; ele apodrece ou explode. Às vezes invertendo seu sentido, ele organiza em torno de si o vazio, a raridade (...) De sorte que todo espaço urbano carrega em si esse possível-impossível, sua própria negação.4
4 Lefebvre, Henri. A revolução urbana. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008, p.44.
É comum à morfologia de qualquer cidade a presença de campos abertos e vazios. Segundo Iná Rosa, doutora em arquitetura e urbanismo pela USP, os lotes vagos não devem ser vistos apenas como áreas desocupadas ou marginais, precisam ser compreendidos como espaços capazes de gerar oportunidades e inúmeras possibilidades, como novas centralidades, diversidades nas atividades urbanas e multiplicidade de suas relações. “Embora os vazios sejam potencialmente utilizáveis para ocupação e crescimento urbano, eles também podem ser locais reservados para preservação tanto da paisagem natural (sítio) quanto da paisagem construída (tecido)”.5 Nesse contexto, pode-se dizer que na exposição Ambulantes em espaços vagos, os artistas tentam devolver ao uso comum o que antes estava indisponível pela propriedade; mesmo que por curto período de tempo. Eles retiram da propriedade algo que era considerado
5 Rosa, Iná. O lugar dos vazios na cidade contemporânea: preservação e formas de ocupação. In Amaral e Silva, Gilcéia do; Oliveira, Lisete Assem de (org.). Simpósio A Arquitetura da Cidade nas Américas: Diálogos contemporâneos entre o local e o global. Florianópolis: PGAU-Cidade/ UFSC, 2006. CDROM. 6 “Profanando o improfanável” é expressão citada pela crítica de arte Marisa Flórido (Ganz e Silva. Op. cit., p.37).
intocável, “profanando o improfanável”.6 Ao desestabilizar a noção de propriedade privada, a exposição instiga nas pessoas o desejo de realizar experiências diversas e autônomas nos cantos “esquecidos” da cidade, lançando outras maneiras de pensar e agir sobre a malha urbana. Assim, em cada kit exposto está evidenciado o caráter intrinsecamente sociopolítico dessa proposta, da qual brotam infindáveis possibilidades de uso, levando em consideração as características do lote, como sombreamento ou insolação, ventilação, riqueza vegetal, atividades existentes em seu entorno e o interesse dos moradores da região. Não há necessidade de grandes transformações, apenas o suficiente para catalisar um processo de ocupação e de prazer. Encontramo-nos hoje diante de uma reconfiguração dos sentidos clássicos de público e privado, sobretudo se considerarmos os países ocidentais, e, talvez, estas denominações históricas não consigam abarcar as diversas práticas urbanas contemporâneas. Mesmo nomeado como público, muitas vezes um espaço é usado ou incorporado por alguns de forma privada. As atividades ou usos passam a definir o grau de privacidade ou de público dos espaços.7
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concinnitas ano 10, volume 2, número 15, dezembro 2009
7 Id., ibid., p.10-15.
Longe de convencionalismos e de meras banalizações, o trabalho desenvolvido por Breno Silva e Louise Ganz vem causando diversas inquietações no público, beirando o riso, a admiração e, mesmo, reações furiosas (das quais presenciei uma). Diante de tão variados sentimentos, chama-se atenção para o fato de que, mais do que nunca, o debate sobre o sentido da arte contemporânea e seus reflexos pelo espaço urbano está aberto. Ressaltando que, antes de fazer críticas reativas e pouco cordiais, é bom lembrarmos que é da natureza da arte refletir seu tempo e, se possível, provocar o pensamento crítico e transformações. A expressão artística é algo que ultrapassa as conceituações de gosto e estética. Arte é, pois, o fruto resultante da confluência de metamorfoses sofridas pela própria vida.
Referências bibliográficas BEY, Hakim. Zona autônoma temporária. São Paulo: Conrad, 2001. GANZ, Louise; SILVA, Breno. Banquetes – expansões do doméstico. Belo Horizonte: Instituto Cidades Criativas ICC, 2008. ________. Lotes vagos – das ocupações experimentais. Belo Horizonte: Instituto Cidades Criativas ICC, 2009, p.7. LEFEBVRE, Henri. A revolução urbana. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008. ROSA, Iná. O lugar dos vazios na cidade contemporânea: preservação e formas de ocupação. In AMARAL E SILVA, Gilcéia do; OLIVEIRA, Lisete Assen de (org.). Simpósio A Arquitetura da Cidade nas Américas: Diálogos contemporâneos entre o local e o global. Florianópolis: PGAU-Cidade/ UFSC, 2006.
Ana Cecília Soares (Fortaleza, Brasil) é jornalista pela Universidade de Fortaleza (Unifor), especialista em Teorias da Comunicação e da Imagem pela Universidade Federal do Ceará (UFC), repórter do caderno de cultura do Diário do Nordeste, editora do site e revista Reticências... e crítica de arte. / anacicasoares@gmail.com
Diálogos com os vazios da cidade Ana Cecília Soares
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O projeto do renascimento: uma contribuição aos estudos da tradição clássica Fernanda Marinho
Reflexão em torno do livro O Projeto do Renascimento, de Elisa Byington da coletânea Arte+, dirigida por Glória Ferreira e publicada por Jorge Zahar Editor, salientando sua importância no cenário bibliográfico nacional, ainda carente de produções dedicadas aos estudos das tradições clássicas. Renascimento, O Projeto do Renascimento, tradição clássica. Dentre títulos voltados para a arte moderna e contemporânea, discussões conceituais e historiográficas e transformações midiáticas e linguísticas da arte, O Projeto do Renascimento, de Elisa Byington, se destaca primeiramente pela temática clássica. O caráter ensaístico da coletânea cumpre a proposta de divulgar importantes temas relativos à arte a um público ainda carente de bibliografia em português que dê conta dos questionamentos intelectuais desse meio. O Renascimento, período histórico artístico que marcou o início da chamada era moderna, é adequadamente abordado nessa edição com base em suas mais atuais discussões junto à história da arte. Em função de seu formato pocket, entretanto, não se aprofunda nas questões levantadas, mas procura traçar um panorama geral daquilo que se compreende desse período, servindo, assim, como fonte fundamental para o desenvolvimento de pesquisas na área. A autora propõe a divisão da obra em 13 tópicos, e inclui referências, fontes e sugestões de leitura. Tal organização constitui um dos destaques do livro, uma vez que não repete os exaustivos esquemas cronológicos, mas prioriza os pontos de reflexão suscitados pela arte renascentista. O primeiro tópico – Das teorias da composição pictórica à história da arte – apresenta o conceito de Renascimento, sua origem provinda do termo Rinascita em relação à postura otimista de superação das trevas da Idade Média. O segundo – Luz e trevas – aborda a transição desses períodos a partir principalmente das figuras de Francesco Petrarca, tido como um vislumbrador da retomada dos padrões clássicos; Giovanni Boccaccio, que percebia o desenvolvimento de uma aperfeiçoada capacidade mimética, aproximando cada vez mais a obra do modelo natural; e Cennino Cennini, que já menciona Giotto como exemplo desse novo anunciado, sendo inventor daquilo que muitos teóricos renascentistas chamaram de moderno. Nos três tópicos seguintes, Byington aborda questões relativas à imitação, à relação entre referente e referencial e às mudanças ocorridas no âmbito dessas reflexões ao longo do
O projeto do renascimento Fernanda Marinho
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Renascimento. Em Imitar com invenção nova apresenta a doutrina estética da primeira metade do Quatrocentos, compreendendo, via Masaccio, a ideia de imitação como a que está mais próxima da realidade, sendo caras, portanto, as noções de anatomia e perspectiva linear. Em Espelho ideal retoma primeiramente as origens da fundamentação mimética renascentista, mencionando Aristóteles como principal influência nessa interpretação da arte como espelho da natureza, ressaltando ser a fidelidade da imitação tão importante quanto a escolha adequada de seus modelos. Posteriormente demonstra suas respectivas repercussões durante o Renascimento por intermédio de Leon Battista Alberti e seus tratados artísticos que repetem extensamente as noções aristotélicas; de Lodovico Dolce que assegura ser dever da pintura não só retratar o natural como superá-lo, apresentando o questionamento intensamente visitado por artistas e teóricos renascentistas, como Pico della Mirandola e Pietro Bembo: fidelidade ou correção do modelo, imitação ou superação? E, por fim, em Outras imitações, insere tal discussão em exemplos específicos: as diferenças básicas entre a aplicação do modelo antigo como aspectos decorativos, como um exotismo típico, por exemplo, dos pintores de Ferrara, e como base de fundamentos estruturais, como proposto nos tratados de Alberti; as diferenças entre a atitude fetichista de Michelangelo ao produzir a escultura Cupido adormecido com tratamento de mármore envelhecido, intencionando enganar especialistas, e a postura indiferente de Leonardo da Vinci frente tal adoração ao modelo antigo; a ideia de beleza como resultado da aplicação racional de técnicas artísticas, típica do Quatrocentos, em confronto com a noção de graça, que pretendia esconder a técnica, o artifício, mais característica do Quinhentos, quando o modelo artístico não se concentra mais na natureza e sim nas próprias obras de arte. Nos dois tópicos seguintes o tema se desloca das formas miméticas de criação para a figura do criador. Em A promoção social das artes e dos artistas a autora analisa a progressiva diferenciação dos conceitos de artesão e artista, já introduzida na transição da Idade Média para o Renascimento, mas ainda presente entre os séculos XV e XVI em consonância com a relação do processo produtivo do artista e a sua qualificação intelectual. O Homem universal complementa o tópico anterior através da figura de Alberti, exemplificado como artista intelectual interessado pelas três artes, pintura, escultura e arquitetura, muito diverso da idéia de artesão medieval preocupado apenas com a execução da obra. Alberti assume nesse livro destacada importância: em O quadro como janela a autora apresenta considerações desse teórico a respeito da arte da pintura; em As três artes do desenho: o papel da arquitetura aborda as noções arquitetônicas introduzidas por Vitrúvio e resgatadas por Alberti durante o Renascimento. O paradigma Leonardo da Vinci prepara o campo de discussão de A questão da disputa entre as artes. A Adoração dos Magos, pintura do mestre florentino, é apresentada como “caderno de anotações”, em que rascunhava formas posteriormente desenvolvidas em outras produções, demonstrando assim a importância que o artista dava à prática pictórica e à superioridade que acreditava ter o desenho em relação à poesia, como consequência da superioridade da visão em detrimento dos demais sentidos. Tal disputa entre as artes apresenta-se desde a Antiguidade recebendo o nome de paragone.
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concinnitas ano 10, volume 2, número 15, dezembro 2009
Os três últimos tópicos do livro abordam o período conhecido por Alto Renascimento, que já sentia as mudanças político-religiosas que incitariam futuramente a Contrarreforma. Michelangelo foi um dos maiores exemplos do modo como essas mudanças afetariam a religiosidade e por consequência as reflexões e produções artísticas de seu meio. Em As vidas vasarianas Byington apresenta o cenário de produção e repercussão da publicação de Vidas, obra célebre de Giorgio Vasari que ali reúne quase 200 biografias de artistas do início do século XIV até o século XVI, sendo por isso considerado um dos pais da historia da arte. Em A maneira moderna podemos melhor compreender o esquema vasariano dividindo as biografias em três idades diferentes, alusivas às idades do homem, da infância à maturidade: a primeira corresponde ao início do Renascimento representado principalmente pela figura de Giotto; a segunda, por Masaccio, Brunelleschi, Ghiberti, Donatello e Botticelli como artistas importantes no aprimoramento da perspectiva histórica; e a terceira, e denominada por Vasari a era moderna e representada por grandes nomes do Renascimento italiano, como Michelangelo, Rafael e Leonardo, entre outros. No último tópico O artista divinizado, interessante desfecho, a autora apresenta os rumos do período histórico posterior; não entretanto por suas respectivas características essenciais, mas pela maneira com que essas épocas reagiram à convivência com as obras de Michelangelo. A começar pela atitude de Daniele da Volterra de primeiramente cobrir o Juízo Final e depois executar modificações sobre as pinturas originais do mestre, demonstra toda a censura típica das resoluções do Concílio de Trento postuladas no mesmo ano do falecimento de Michelangelo. A breve leitura de O Projeto do Renascimento suscita fácil absorção de seus conteúdos, introduzindo de forma sucinta, porém não problemática, importantes conceitos básicos relativos à temática proposta. Pelo fato de as curtas páginas não comportarem o extenso conteúdo próprio dos universos de pesquisa associados ao mundo do Renascimento, sua proposta de fornecer material para futuras curiosidades torna-o importante leitura para os interessados no assunto. Cabe, dessa maneira, ao próprio leitor continuar a buscar respostas para as curiosidades aqui levantadas, a começar por uma: seria o Renascimento um período tão marcadamente otimista em função da superação das formas antigas e a elevação às trevas medievais? Não devemos considerar as descobertas dos novos limites do homem – sejam geográficos, devidos às grandes navegações, ou naturais, decorrentes dos estudos anatômicos – fonte de crescentes angústias e pessimismos?
Fernanda Marinho (Rio de Janeiro, Brasil) é doutoranda em história da arte pelo Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp (bolsista CNPq) e professora substituta do Instituto de Artes da UERJ; vem desenvolvendo desde sua graduação pesquisas referentes à tradição clássica. Atualmente ocupa-se do léxico conceitual e iconográfico do Antirrenascimento proposto por Eugenio Battisti. / fernandamarinhoc@yahoo.com.br
O projeto do renascimento Fernanda Marinho
195
Abstracts This essay is a fragment of my Master’s dissertation entitled “Desenho: uma habitação
Possibles temporalities
no tempo” (“Drawing: a dwelling in time”). It is a reflexion on Time and Art, in which I
Nena Balthar
propose to perceive time as a delay, from an artistic experience. A sort of deviation from
Pages 6-17
the accelerated time which aims at the efficiency in detriment of the process; a reference to what is not exceeding, which represents to me the idea of delay. The possibility to incite disruption in routine and afford belonging to its time. To linger in belonging implies attention to the liturgies of life, to a self-knowledge and the recognition of others different from us. Artistic experience, time, performance. Between the years 1958 and 1962, Willys de Castro got engaged in an extensive plastic
Art works as systems
research, which resulted on series of pieces like the “Studies for painting” and “Active
Bruno Melo Monteiro
Objects”. Inside this particular crop, the present work is developed under the perspective of
Pages 18-31
the approach of these pieces in an analogical reflection with the systemic thinking that has been developed on the exact and human sciences since the first half of the past century. Willys de Castro, active objects, systems. The structure of the present chapter (taken from my Master’s essay) is constructed by the
What misplaces of natures an
notions of writing, body, and plasticity which are object of study and pondering: artist’s
artist’s book comprises?
book. It comprehends exercises that speculate – in transverses – works of artists that
Lucenne Cruz
transmit their production to those concepts and to the line of strength which represent
Pages 32-41
the work within a book in its several natures in the contemporary art. The book places in language a theory of artist. Writing, artist’s book, theory and contemporary art. The article is part of the fourth chapter of the thesis “Carmens and drags: reflexions about
Baianas and drags:
the transgender incorporations in the Carnival from Rio de Janeiro”, presented to the Rio
visual plots in Carmen Miranda
de Janeiro State University’s Master Degree Program in Arts in march 2009. At the first part
Gustavo Borges Corrêa
of the article, we’ve analyzed Carmen Miranda’s relevance to the discussions about national
Pages 42-59
identity and popular culture. At the second part, we’ve studied the relation between the Brazilian Bombshell and the drag queens, characters of the international popular culture that admire the luso-brazilian artist for a long time. Carmen Miranda, popular culture, drag queens. This article aims to examine, from the articles and texts and letters by Mário Pedrosa,
Mário Pedrosa:
the concepts of art, history and criticism. Goal of this article is to discuss the interest of
contemporary dialogues
Pedrosa by the experiences of the Psychiatric Center Engenho de Dentro, the Indigenous Art
Juana Nunes
and the dialectic between art and politics in his career as a critical strategy to define its
Pages 60-70
interests interdisciplinary and contemporary. Mário Pedrosa, critical art, contemporary.
196
concinnitas ano 10, volume 2, número 15, dezembro 2009
Odara: aesthetic
The article approaches aspects of the aesthetic and communication inside in the dances of
communication of dance
the ritual of the Xirê in the candomblé. Considering the cultural and artistic dimensions of
in the candomblé
this practical religious, it points to the importance of the visibility in the rituals and its
Kate Lane Costa de Paiva
relation with the beauty concept, functionality and tradition through the analysis of the
Pages 71-83
word nagô Odara. Communication, aesthetic, dance.
Art and life: to break borders up
What is the place of contemporary art supported of approaches to the world of life? The
Valzeli Sampaio
discourses that define the contemporary poetic related to overcome of modernist autonomy
Pages 96-103
as a result of permeability with the reality is a cliché speech. In case of contemporary art is the reality that approaches to art. In fact, this is a persistent provocation to our criteria for interpretation, sense, and capability to recognize. And the art is defined in the interface of this approach. Art, life, interface.
Safety of life, an artistic problem?
From the second half of the twentieth century, museums, galleries and artists began to meet
Dolores Galindo
with regulations aimed at ensuring the safety of life created in accordance with principles
Pages 104-117
and problems characteristic of the technoscientific universe. Whereas two controversies surrounding the work of artists Ron Athey and Eduardo Kac, we propose that it is necessary that the issues raised by the artistic rationality that guides the bioethics and biosecurity are tested beyond the episodic moments of controversy. Art, body, life’s security.
The art in the urban space
This article discusses the specifics of public space for the display of works of art and
Lamounier Lucas
explores the functions of exhibition space in museums and galleries and the implications of
Pages 118-132
this area for the aura of the work of art, and further questions concerning the installation of work of art in urban space. In reverse, we discuss the form of perception that are submitted and the latent power of these works decontextualized space of the conventional exposure. Aura, public art, urban artistic intervention.
On contact: non execution
This article approaches the plot of embodiment, exploration and contact, put into
Lela Queiroz
perspective by the way theoretical-practical experiences in contemporary dance applying
Pages 133-141
BMC metodology in colective classes with Lela Queiroz, Dance Researcher in the post Doctor Research Program UFRGS-UFBA in 2008, and looks for to inquire how matrix processes of state shift may be connected to them as creative processes advances are made. In the understanding of body as process, it is supported by the dynamic theory of development and the cognitive sciences. Contact, embodiment, contemporary dance.
Abstracts
197
According to Gilles Deleuze, cinema realizes its whole power only when it shifts from the
The time-image as a political
“Movement-Image” stage onto a “Time-Image” one – a shift that we’ll describe in the
power of cinema
following pages. Our main concern, though, is the way that “Time-Image” cinema is able
Rodrigo Guéron
to find a new path to political empowerment in which, according to Deleuze’s own words,
Pages 142-152
cinema “(...)becomes entirely political, but in a different way” (Deleuze). Cinema, politics, thought. Xie He’s Classificatory catalogue of the ancient painters is one of the most important texts
A commented translation of
on Chinese painting, dating from the sixth century. In this translation, I furnish in notes
Xie He’s classificatory catalogue
some necessary remarks to its understanding, as follows: the problem of Xie He’s employed
of the ancient painters
terminology; the importance of the six canons in the history of the Chinese art; the question
Bony Braga Schachter
of the corrupted passages.
Pages 153-171
Chinese painting, art history, art theory. This text was presented in the form of a lecture at Arco 2008 in Madrid, Spain. Using authors
The art of witness in the
such as Hannah Arendt, Jacques Rancière, Claude Lefort, Emmanuel Lévinas, Etienne Balibar
wartime public sphere
e Krzysztof Wodiczko, the thinker builds a web that problematizes the notions of public,
Rosalyn Deutsche
art in the public sphere, alterity and politics. The statement “Being public is to be exposed
Pages 174-183
to alterity” says a lot about her talk, calling the attention to and turning complex the phenomenon of appearance implied. Public art, public sphere, face. The text carries through the critical analysis on the exposition “Ambulant in Vacant Spaces”,
Dialogues with the emptinesses
of the artists Breno Silva and Louise Ganz. The work brings the proposal of reconfiguration
of the city
of the urban space, from the magnifying of the conviviality with the “to other”, allowed
Ana Cecília Soares
will be the adds uses that if can make of the empty spaces of the City. Places these that not
Pages 184-189
they only must be seen free areas or delinquents, but they need you be understood, spaces capable you generate possibilities and innumerable possibilities. City, urban voids, artistic occupations. This review intends to think the book O projeto do renascimento, written by Elisa Byington
O projeto do renascimento:
of the collection Arte+, directed by Glória Ferreira and published by Jorge Zahar, showing its
a contribution for the classic
importance on the bibliographic national scenery, still in lacking on productions dedicated
tradition studies
to classics traditions studies.
Fernanda Marinho
Renaissance, O projeto do renascimento, classic tradition.
Pages 190-193
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concinnitas ano 10, volume 2, número 15, dezembro 2009
Sobre Concinnitas A revista Concinnitas é publicação semestral do Instituto de Artes da UERJ, criada em 1996 e, a partir de 2005, vinculada ao Programa de Pós-Graduação em Artes (PPGARTES). O termo Concinnitas, extraído dos tratados de Leon Battista Alberti, refere-se a uma teoria arquitetônica baseada no equilíbrio, refletindo política editorial de independência acadêmica e rigor científico, mas também disponibilidade para novas proposições artísticas e debates teóricos. O objetivo de difundir conhecimento faz da revista um espaço de incentivo à pesquisa e à produção no campo da criação, da fruição e da reflexão sobre arte e cultura. Assim, Concinnitas pretende responder à necessidade de formação de artistas, docentes e pesquisadores, bem como do público em geral, atendendo à demanda crescente de profissionalização, aperfeiçoamento e especialização, e contribuindo para melhorar qualitativamente a produção, a pesquisa e o ensino. Como objetivo da revista consta ainda a criação de conexões estreitas entre pesquisa, extensão e ensino universitários não só pelo estímulo à produção e à pesquisa discente, mas, sobretudo, por meio de seu processo de produção. Desde 2003 a publicação passou a Projeto de Extensão, constituindo um laboratório editorial, do qual participaram, até 2005, alunos de graduação, mas que, com a vinculação ao Mestrado, conta também com alunos de pós-graduação. Concinnitas tem seu conteúdo acessado livremente no site: www.concinnitas.uerj.br
Estrutura 1) Dossiê – Todos os números pares (junho) de Concinnitas têm seus dossiês organizados por um professor-pesquisador do PPGARTES, que convida ensaístas de âmbito nacional e internacional e apresenta proposta a ser avaliada pelo conselho editorial. Os números ímpares (dezembro), têm seus dossiês organizados a partir da indicação do colegiado do PPGARTES, que seleciona seis dissertações dentre as defendidas no último ano. 2) Ensaio – Um artista é convidado pelo conselho editorial, e seu trabalho é encartado no miolo da edição. 3) Artigos – São recebidos da comunidade acadêmica e artística e avaliados pelo conselho editorial (peer review), composto por pesquisadores das áreas de artes plásticas e visuais. 4) Entrevistas – De iniciativa dos editores, mas também enviadas por colaboradores, as entrevistas podem ser com artistas, críticos, historiadores e teóricos da área de arte e cultura; 5) Traduções – Indicadas pelo conselho editorial, devem ser artigos de referência para a comunidade acadêmica e artística. 6) Resenhas – Críticas de livros publicados e de exposições ou eventos na área de arte e cultura, além de revisões de artigos relevantes.
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Normas para publicação Concinnitas recebe artigos, entrevistas e resenhas: 1. O texto deve ser inédito (nas línguas portuguesa ou espanhola). 2. O texto será submetido à avalição de um consultor membro do conselho editorial ou de um consultor ad hoc (peer review). 3. O autor é responsável pelo conteúdo do texto e deve garantir exclusividade até o recebimento do parecer do conselho editorial. 4. O autor de texto publicado deve cumprir período de dois anos para nova submissão de proposta. 5. O autor deve transferir os direitos autorais do texto para a revista Concinnitas imediatamente após a aprovação. 6. O texto aprovado e publicado não poderá ser republicado em período de até dois anos. 7. O texto aprovado será divulgado no site (www.concinnitas.uerj.br > arquivo > artigos em espera). Aqueles não publicados imediatamente após aprovação poderão ser publicados na edição seguinte, conforme autorização do autor. 8. A seleção dos textos de cada publicação será feita pelo conselho editorial, baseando-se na aprovação e na data de recebimento. 9. Somente os textos que cumprirem as normas de publicação serão avaliados. 10. Os artigos e entrevistas devem ter até 40.000 caracteres sem espaço, editados em word, sem hifenação, sem tabulação de parágrafo e com entrelinha dupla. 11. As resenhas devem ter até 10.000 caracteres sem espaço, editadas em word, sem hifenação, sem tabulação de parágrafo e com entrelinha dupla. 12. O texto deve ser enviado por e-mail (concinni@gmail.com). 13. A folha de rosto deve conter: - nome do autor com a vinculação profissional e/ou universitária - e-mail e endereço pessoal e/ou profissional - título em português e inglês (até seis palavras) - resumo em português e inglês (até 500 caracteres sem espaço) - três palavras-chave em português e inglês 14. Currículo resumido em forma de texto (até 500 caracteres sem espaço). 15. As notas devem vir no final do texto, numeradas em algarismos arábicos. 16. O texto deve conter bibliografia seguindo as normas da ABNT. 17. Devem ser enviadas até três imagens, com legendas e não devem ser inseridas no corpo do texto (embora seja desejável a indicação de seu posicionamento). As imagens devem ser digitalizadas e enviadas por e-mail (concinni@gmail.com) em formato jpg, colorida, 300dpi, tamanho mínimo 12 x 18cm.
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concinnitas ano 10, volume 2, número 15, dezembro 2009
Universidade do Estado do Rio de Janeiro Reitor Ricardo Vieiralves de Castro Vice-Reitora Maria Christina Maioli Sub-Reitora de Graduação Lená Medeiros de Menezes Sub-Reitora de Pós-Graduação e Pesquisa Mônica Heilbron Sub-Reitora de Extensão e Cultura Regina Lúcia Monteiro Henriques Diretor do Centro de Educação e Humanidades Glauber Almeida de Lemos Instituto de Artes Diretor Roberto Conduru Vice-Diretora Vera Beatriz Siqueira Coordenadora de Pós-Graduação e Pesquisa Vera Beatriz Siqueira Mestrado em Artes Coordenadores do Programa de Pós-Graduação em Artes Luiz Felipe Ferreira e Leila Danziger Área de Concentração Arte e Cultura Contemporânea Linhas de Pesquisa Teoria e História da Arte; Processos Artísticos Contemporâneos; Arte, Cognição e Cultura Corpo Docente Aldo Victorio, Isabela Frade, Jorge Luiz Cruz, Leila Danziger, Luiz Cláudio da Costa, Luiz Felipe Ferreira, Marcus Alexandre Motta, Maria Berbara, Maria Luiza Fatorelli, Ricardo Basbaum, Ricardo Gomes Lima, Roberto Conduru, Roberto Corrêa dos Santos, Rogério Luz, Sheila Cabo Geraldo, Vera Beatriz Siqueira Coordenador de Graduação Marcelo Campos Cursos Bacharelado em Artes Visuais; Bacharelado em História da Arte; Licenciatura em Artes Visuais Corpo Docente Alberto Cipiniuk, Aldo Victorio, Alexandre Vogler, Cristina Pape, Cristina Salgado, Denise Espírito Santo, Ericson Pires, Isabela Frade, Jorge Luiz Cruz, Leila Danziger, Luis Andrade, Luiz Cláudio da Costa, Luiz Felipe Ferreira, Marcelo Campos, Maria Berbara, Maria Luiza Fatorelli, Maria Lúcia Galvão, Miguel Proença, Nanci de Freitas, Regina de Paula, Ricardo Basbaum, Ricardo Gomes Lima, Roberto Conduru, Roberto Corrêa dos Santos, Rodrigo Guéron, Rogério Luz, Sheila Cabo Geraldo, Vera Beatriz Siqueira Coordenador de Extensão e Cultura Denise Espirito Santo
Agradecimentos Alberto Cipiniuk, Claudia Saldanha, Cristina Salgado, Dária Jaremtchuk, Felipe Scovino, Isabela Frade, Luciano Vinhosa, Luiz Cláudio da Costa, Luiz Felipe Ferreira, Maria Berbara, Maria Lúcia Galvão, Ricardo Basbaum, Roberto Corrêa, Vera Beatriz Siqueira
Revista Concinnitas Universidade do Estado do Rio de Janeiro Instituto de Artes Rua São Francisco Xavier 524, Pavilhão João Lyra Filho, 11o andar, bloco E, sala 11.007 Maracanã, Rio de Janeiro, RJ, 20550-013, Brasil Telefone: (55-21) 2587 7985 www.concinnitas.uerj.br / concinni@gmail.com
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