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concinnitas ano 11, volume 2, nĂşmero 17, dezembro 2010


Universidade do Estado do Rio de Janeiro Concinnitas – Revista do Instituto de Artes da UERJ Editora Sheila Cabo Geraldo Conselho Executivo Alberto Cipiniuk, Cristina Salgado, Isabela Nascimento Frade, Jorge Luiz Cruz, Luis Andrade, Luiz Felipe Ferreira, Nanci de Freitas, Ricardo Basbaum, Roberto Conduru, Vera Beatriz Siqueira

Conselho Editorial Arlindo Machado USP / PUC-SP, São Paulo, Brasil

Michael Asbury Camberwell College of Art, Londres, Reino Unido

Carlos Zilio UFRJ, Rio de Janeiro, Brasil

Milton Machado UFRJ, Rio de Janeiro, Brasil

Christine Mello Faculdade Santa Marcelina, São Paulo, Brasil

Moacir dos Anjos, Fundação Joaquim Nabuco, Recife, Brasil

Eduardo Kac Art Institute of Chicago, Chicago, EUA

Nuno Santos Pinheiro Faculdade de Arquitectura de Lisboa, Lisboa, Portugal

Evandro Salles Artista plástico e crítico de arte, Brasília, Brasil

Paulo Sergio Duarte UCAM, Rio de Janeiro, Brasil

Gilles Tiberghien Paris I, Paris, França

Rafael Cardoso ESDI-UERJ, Rio de Janeiro, Brasil

Hélio Fervenza UFRGS, Porto Alegre, Brasil

Stéphane Huchet UFMG, Belo Horizonte, Brasil

José Thomaz Brum PUC-RJ, Rio de Janeiro, Brasil

Regina Melim, UDESC, Florianópolis, Brasil

Lorenzo Mammi USP, São Paulo, Brasil

Rodrigo Naves CEBRAP, São Paulo, Brasil

Luciano Migliaccio USP, São Paulo, Brasil

Rogério Luz UFRJ, Rio de Janeiro, Brasil

Maria Beatriz de Medeiros UnB, Brasília, Brasil

Sonia Gomes Pereira UFRJ, Rio de Janeiro, Brasil

Maria de Cáscia Frade FAV-RJ, Rio de Janeiro, Brasil

Valzeli Sampaio UFPA, Belém, Brasil

Maria Luiza Saddi Artista plástica, Rio de Janeiro, Brasil

Vitor Hugo Adler Pereira IL-UERJ, Rio de Janeiro, Brasil

Mario Ramiro USP, São Paulo, Brasil Direção de Arte e Design Lygia Santiago (bolsista Proatec UERJ) Web Design Mariana Maia (bolsista Proatec UERJ) Equipe de Produção Beatrice Martins (bolsista de Estágio Interno Complementar UERJ) e Luciana Grizotti (bolsista de Extensão UERJ) Revisão Maria Helena Torres Capa / Quarta capa Bill Lundberg, Guests (Convidados), 2009. Concinnitas é uma publicação semestral do Instituto de Artes/ART, vinculada ao Programa de Pós-Graduação em Arte. Este volume recebeu apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e do Programa de Pós-Graduação em Arte (PPGartes). Os artigos são de responsabilidade dos autores e não refletem a opinião do conselho editorial.

Catalogação na fonte UERJ/REDE SIRIUS/PROTEC

2010

concinnitas [www.concinnitas.uerj.br]


Sumário | Summary

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Apresentação | Foreword Dossiê | Dossier O gigante da encruzilhada | The giant of crossroad Mônica Maria Linhares Castrioto Herança antropofágica na poética contemporânea | Anthropophagy heritage in contemporary poetics Rubens Pileggi Sá Arte e mediação: percepção requer envolvimento | Art and mediation: perception requests involvement Vera Rodrigues de Mendonça Notas sobre a forma-colagem | Notes about the collage as form Isabel Almeida Carneiro Sentir o avesso: interioridade e exterioridade nos bólides de Oiticica | Feeling inside out: interiority and externality in Oiticica’s Bólides Carla Hermann Espaços em trânsito | Transitory spaces Jacqueline de Moura Siano Ensaio Bill Lundberg | Essay Bill Lundberg Apresentação | Foreword Valerie Cassel Oliver Artigos | Articles Bill Viola: na natureza das coisas | Bill Viola: the nature of things Gilles A. Tiberghien Eduardo Kac e a escrita do corpo no espaço | Eduardo Kac and the writing of the body in space Bianca Tinoco Arte contemporânea, corpo e cidade: existências entretecidas | Contemporary art, body and city: interwoven existences Danielle Milioli e Emyle Pompeu de Barros Daltro Corpos desindividualizados, faces desabilitadas | Disindividualized bodies, disabled faces Niura Legramante Ribeiro A invenção e a rua: da apropriação/reinvenção de objetos precários | The invention and street: the appropriation and reinvention of objects precarious Ludmila Brandão e Rosane Preciosa Origens, registros e deslocamentos em Marca Registrada | Origins, registers and displacements in Marca Registrada Manoel Silvestre Friques Resenhas | Digest O trabalho de luto da pintura moderna | The mourning’s work of modern painting Ricardo Nascimento Fabbrini Gordon Matta-Clark: desfazer o espaço | Gordon Matta-Clark: undoing space Elena O´Neill Hélio Oiticica – Museu É o Mundo | Hélio Oiticica – The Museum Is The World Beatrice Martins e Luciana Grizotti Abstracts Sobre Concinnitas | About Concinnitas Normas para publicação | Publishing rules



O artista norte-americano Bill Lundberg nos presenteou com uma sequência inédita de imagens da instalação Guests (Convidados), que reproduzimos na capa e na abertura do ensaio encartado nesta edição. Lundberg é um dos pioneiros da videoinstalação e nos abre, como escreveu Valerie Cassel Oliver, um campo de ilusões, que atrai e fascina. Suas instalações são jogos lúdicos em que a magia e a lucidez concorrem e se misturam. É esse campo lúdico e artificioso que aparece ainda em Stolen kisses (Beijos roubados) e Passage (Passagem), as duas outras instalações cujas imagens completam o ensaio preparado pelo artista. É também sobre videoinstalação o artigo que publicamos de Gilles Tiberghien, que escreveu um elucidativo ensaio sobre a obra de Bill Viola, outro pioneiro. Se Viola e Lundberg dividem especulações sobre o virtual da imagem, neste último, diz Tiberghien, o que se ressalta é o tratamento particular que o artista reserva à natureza como paisagem, que é a maneira como aborda a relação que o homem estabelece com o mundo. Especular sobre o que seja essa relação parece uma constante em muitos dos artigos aqui publicados, recebidos da comunidade acadêmica e artística. Na condição contemporânea da arte, a pergunta instala-se no ensaio sobre o corpo do homem como um lugar de experiências, abordado na obra de Eduardo Kac, mas também naquele que trata do processo em que os corpos se desindividualizam ou cuja existência é entretecida com o corpo da cidade. São maneiras de estar e de registrar o mundo, o que também aparece nos artigos que compõem o dossiê e que foram preparados para esta edição por Mônica Maria Linhares Castrioto, Rubens Pileggi Sá, Vera Rodrigues de Mendonça, Isabel Almeida Carneiro, Carla Hermann e Jacqueline Moura Siano. A todos agradecemos a colaboração.

Sheila Cabo Geraldo Editora

Bill Lundberg, Charades, 1976. Filme Super-8 representando um jogo de charadas projetado dentro um copo d’agua. Várias figuras aparecem em sequência. O som de uma audiência invisível tenta adivinhar as charadas que são definições de arte da autoria de artistas e poetas como uma crônica do pensamento ocidental sobre a evolução da arte moderna.

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O gigante da encruzilhada* Mônica Maria Linhares Castrioto

Ampliando a relação entre arte, mito e vida, a presente pesquisa propõe uma leitura sobre o desdobramento do histórico da obra Exu dos Ventos, de Mario Cravo Jr – compreendendo criação, translação entre galeria e espaço público, conflitos, assento e conservação – em paralelo com a narrativa do mito de criação de Èsù Yangí. Crítica de arte, arte e sociedade, mitologia africana na arte. Cristos crucificados, exus e Mario Cravo Jr Olódùmarè e Òrìsànlá estavam começando a criar o ser humano. Assim criaram Esú, que ficou mais forte, mais difícil que seus criadores. Olódùmarè enviou Esú para viver com Òrìsànlá; este o colocou à entrada de sua morada e o enviava como seu representante para efetuar todos os trabalhos. Exu é o orixá mais complexo da mitologia africana. Figura controversa * Artigo recebido e aceito para publicação em agosto de 2010. Exu dos Ventos rodeado pela mata no ateliê da Avenida Anita Garibaldi, tendo Mario Cravo Jr ao topo, Salvador, 1992. Fonte: cortesia do artista.

que habita a rua, a entrada e as encruzilhadas com seus disfarces. Apesar de todas as controvérsias e sincretismos a seu respeito, é necessário ter em mente seu caráter dinâmico, que não sossega; transgressor, subverte as alianças e as regras. Mostra o que estava escondido e esconde o que não quer mostrar. Para Mario Cravo Jr a temática de Exu surge de suas memórias, do estreito contato com fontes do candomblé, do folclore e do barroco brasileiro, tendo o artista elaborado uma pesquisa visual em busca de soluções plásticas que adequassem essas dinâmicas à modernidade que começa a germinar na Bahia na década de 1940. Em Exu, nenhum outro santo baixa em cima. É um personagem magnífico e eu transformei isso numa espécie de força simbólica. Primeiro de agitação e inquietação, segundo, como um personagem de força estimulante: agitado, criativo, imperativo e rebelde. Ele me acompanha

1 Cravo Jr, Mario. Entrevista concedida a Mônica Linhares. Oficina do Espaço Cravo, Parque Metropolitano de Pituaçu, Salvador (BA), 21.9.2009.

juntamente como os Cristos crucificados.1 Mario Cravo desempenha importante papel na consolidação do modernismo baiano integrando o grupo que ficou conhecido como “a primeira geração de modernos”, unindo em seu entorno Genaro de Carvalho, Carlos Bastos, Jenner Augusto, Rubem Valentim, Maria Célia Calmon Du Pin Almeida e Carybé.

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De maneira categórica, afirma que elegeu o orixá do candomblé como temática em sua obra; e que essa figura nada tem a ver com o cão ou o demônio. Sua escolha se faz pela similitude com o comportamento do homem na sociedade e com seus pares na identidade baiana. O escultor insere em sua pesquisa visual sobre Exu certa brutalidade e sensualidade. De temperamento brincalhão e mordaz, é imbuído desses predicados que o escultor separa e une com fogo o ferro e as formas que revelam Exu. E expande suas interpretações por caminhos sincréticos não só com outros orixás, mas também com outra temática de sua predileção: o Cristo crucificado. A partir dos anos 50, suas experimentações plásticas se voltam para a unificação entre personagem e símbolo surgindo assim misturas entre a cruz e o Cristo e entre Exu e o tridente – une orgânica e intrinsecamente o símbolo e o personagem. Em Exu mola de Jeep - como se surgisse do próprio tridente - Exu aparece fincado na terra tomando para si o significado do tridente: a cruz invertida num sentido de agressividade. A cruz se torna ausência presente na forma do corpo, em Cristo baiano. Cristo, cujo corpo representa o cordeiro de Deus, também é crucifixo. Ao olhar a obra vemos braços e pernas abertos formando uma cruz na diagonal, cabeça pendida para trás olhando o céu, e o falo apontando o chão. Essa ausência da cruz leva o observador a uma encruzilhada visual, e nos perguntamos: esse corpo luta para manter-se em cruz? Ou luta para dela se libertar? Talvez esteja entregue à fadiga, muito embora o aspecto truculento dos músculos sugira tensão no sentido de força e movimento. O artista comenta a obra: “Então você vê um Cristo que é meio Cristo, meio Exu. Eu fiz um Cristo meio Pedro, crucificado de cabeça para baixo, e o coloquei assim em pé, com os braços abertos, com sexo em riste.”2 Com relação à série de Cristos, de 1987, feitos com a madeira da demolição do antigo prédio do Mercado Modelo em decorrência do incêndio de 1969, relata sua inquietude quanto à conformidade das formas da cruz e dos crucifixos. Então retira a imagem de Cristo de sua complacência resignada para a agonizante luta com a cruz, por vezes tentando libertar-se dela, mantendo a cruz e o Cristo iguais materialidade e essência. Exu dos Ventos e Sinal da Cruz Òrúnmìlà, desejoso de ter um filho, foi pedir um a Òrìsànlá. Este lhe diz que ainda não tinha acabado de criar seres e que deveria voltar um mês mais tarde. Òrúnmìlà insistiu, impacientou-se querendo levar a qualquer preço um filho consigo. Òrìsànlá repetiu que ainda não tinha nenhum. Mario Cravo fez ainda Sinal da Cruz, escultura em relevo, de proporções monumentais, com ritmos e planos construtivos em soluções simétricas. No interior da cruz forma-se

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2 Idem.


outra cruz em fenda com iluminação interna. A escultura está na fachada do distinto 3 Sede da Federação do Comércio de Bens, Serviços e Turismo do Estado da Bahia – Sesc, Senai e Secec – fundada em 1947 e também conhecida como Casa de Comércio Deraldo Motta. O edifício fica na Av. Tancredo Neves e foi construído na década de 1980, pelo arquiteto Fernando Frank. A estrutura metálica do prédio foi projetada pelo engenheiro José Luis de Souza. Fonte: www.fecomercio-ba.com.br, em 15.11.2009.

edifício da Casa do Comércio da Bahia.3 Das sobras do recorte do aço usado para Sinal da Cruz foi criado o Exu dos Ventos, em 1992, no ateliê da Avenida Anita Garibaldi, em Salvador. Com seus quase dez metros de altura, com um alongado braço indicador, parte da escultura é móvel, de corpo fixado ao chão, num tripé. Guarda a simetria e articulações angulares utilizadas em Sinal da Cruz. Nesse corpo, as costelas servem de escada para manutenção da peça. O autor a descreve: Apoiada aqui balança os braços. E em cima tem outro elemento de apoio, um eixo e o outro elemento da cabeça, que faz a cabeça e os chifres que é outro independente. É um movimento interessante que faz

4 Brinquedo infantil do artesanato popular em madeira que mexe braços e pernas.

ficar assim... como o que chamamos aqui na Bahia de mané-gostoso4.5

5 Cravo Jr, M. Entrevista concedida a Mônica Linhares, 21.9.2009. Salvador (BA).

Desejoso de poder exibir suas obras permanentemente, Mario Cravo Jr idealiza a criação de um ambiente que acolha também atividades educacionais em integração de arte e natureza. Inicia a criação do Espaço Cravo, cuja intenção é propor um museu a céu aberto sob o sol e a chuva em diálogo constante com a natureza. Instala-se no Parque

6 O Parque Metropolitano de Pituaçu foi criado pelo decreto 23.666/77 do Executivo estadual e é a maior reserva ecológica com remanescente de mata atlântica da cidade de Salvador, Bahia. São 15km de trilhas pavimentadas, restaurantes, parques infantis, quadras poliesportivas, quiosques, esportes náuticos, além do museu a céu aberto. 7 Cravo, 2002, p.76.

Metropolitano de Pituaçu6 em 1994, com totens vegetais, objetos alados, tridimensionais, móbiles, desenhos, pinturas, produção em multimídia e também obras de outros artistas. Nesse contexto, de espaço e tempo, nosso protagonista – o Exu dos Ventos – foi instalado, triunfante, à entrada do parque “como a mais importante escultura, por sua característica e monumentalidade”7 e lá permaneceu por mais seis anos. A encomenda de Exu e a Cidade Maravilhosa do Cristo Redentor Então perguntou: “Que é daquele que vi à entrada de sua casa?” É aquele mesmo que ele quer. Òrìsànlá lhe explicou que aquele não era precisamente alguém que pudesse ser criado e mimado no àiyé. Mas

8 O monumento, localizado na Avenida Luis Viana Filho – Paralela, possui três monólitos de pedra polida, um espelho d’água e uma estátua representado Luís Eduardo. Na base, uma placa indica que ali foi enterrado o coração do ex-deputado: “Aqui se encontra o coração do deputado Luís Eduardo Magalhães”. Vale lembrar que o coração foi retirado, sem autorização da família, pelos médicos que acompanharam o político. A polêmica que envolveu o destino do órgão chegou ao fim com a encomenda do monumento. Este foi projetado pelos arquitetos Luiz Paulo Conde, prefeito do Rio de Janeiro, e Mauro Neves Nogueira. A estátua foi esculpida por Edgar Duvivier. A verba utilizada na construção do monumento foi obtida através de doações feitas à Associação de Amigos de Luís Eduardo Magalhães. 9 Magalhães, 14.2.2000.

Òrúnmìlà insistiu tanto que Òsàlá acabou por aquiescer. Òrúnmìlà deveria colocar suas mãos em Esú e, de volta ao àiyé, manter relações com sua mulher Yebìírú, que conceberia um filho. E porque Òsàlá dissera que a criança seria Alágbára, Senhor do Poder, Òrúnmìlà decidiu chamá-la de Elégbára. Em 1998, o prefeito do Rio de Janeiro, Luiz Paulo Conde visita Salvador por ocasião da cerimônia de inauguração do Memorial Luis Eduardo Magalhães,8 que ele projetara. Posteriormente, ao visitar o Espaço Mario Cravo, Conde conta em declaração ao jornal O Dia9 que chegou a fazer uma oferta ao escultor pelo Exu dos Ventos, com o intuito de colocá-lo às margens da Lagoa Rodrigo de Freitas. Teria mostrado interesse também por um Cristo, que Cravo Jr não aceitou vender.

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Logo depois, a empresa Lamsa10 – concessionária responsável pela Linha Amarela e pertencente à empreendedora baiana Construtora OAS Ltda. – adquire a escultura para oferecê-la ao município do Rio de Janeiro. A previsão de instalação da peça era junho de 2000; porém, quando foi anunciada na imprensa em fevereiro do mesmo ano, ano eleitoral para os cargos municipais, a instalação da escultura acionou redes sociais distintas em acirrada disputa não só pelo espaço simbólico na cidade, mas também pela utilização do espaço na mídia impressa. A notícia da encomenda da escultura baiana para o cenário carioca movimentou autoridades religiosas. A Cidade Maravilhosa, que tem a imagem do Cristo Redentor em seu ponto

10 “Concessão da via urbana Lamsa – Linha Amarela, no Rio de Janeiro, oficialmente Avenida Governador Carlos Lacerda, trecho que compreende o quilômetro 6 (Cidade de Deus – Barra) até a Ilha do Fundão (ligação com a Linha Vermelha), incluindo operação e manutenção. Este é um dos primeiros investimentos sob a modelagem de participação pública e privada do Brasil (tendo de um lado a Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, com suporte institucional, e de outro a OAS, com aparato empresarial e recursos para o financiamento da obra). A Lamsa é a única concessão rodoviária municipal do país.” Trecho retirado do site OAS Investimentos, disponível em http://www.oas.com.br, em 15.11.2009.

mais alto da paisagem – abraçando todos os cidadãos – passaria a ter Exu dos Ventos em seu importante e mais novo entroncamento viário. Embora o prefeito tivesse justificado seu intento como homenagem às culturas afro-brasileiras, isso não foi suficiente para conter os ânimos. Importante entender o Rio de Janeiro além da Cidade Maravilhosa cantada e contada nas marchinhas de carnaval e nos cartões-postais – cidade do Cristo Redentor –, como uma grande cidade moderna definida por características materiais e imateriais próprias, com expressiva heterogeneidade e diversidade sociocultural, como tão bem nos apresenta Gilberto Velho,11 que descreve ainda o conflito não só como recorrente, mas como uma dimensão constitutiva da vida social como um todo. Há ainda o sentimento de exclusão, a vivência da pobreza e as frustrações diante da sociedade de consumo como experiências que aumentam o potencial de conflito. Esse sentimento pode ser canalizado para movimentos socioculturais, ações políticas (como o Movimento Negro) e iniciativas para melhorar as condições de vida das comunidades; em que igrejas e ONGs desempenham papel importante. Nesse sentido, a luta pela sobrevivência, por reconhecimento e inclusão social funcionará como motor desses movimentos. A religião, com suas variações e conflitos, constitui dimensão fundamental da visão de mundo da maioria desse universo. A política seria a atividade fundamental para a constituição de um poder público com legitimidade junto com a sociedade como um todo. É nesse cenário conturbado e socialmente complexo que a cidade do Rio de Janeiro, em pleno ano eleitoral, recebe Exu dos Ventos. A disputa eleitoral para a Prefeitura do Rio de Janeiro apresentava em pesquisa “empate técnico”, ainda no primeiro turno, entre os candidatos Conde, César Maia e Benedita. Geralmente no período pré-eleitoral, entre março e julho, os políticos e a mídia começam a mobilizar o eleitorado. Como nesse início a propaganda política eleitoral ainda está proibida, a alternativa é a promoção de acontecimentos “eleitoreiros” para difusão na mídia. É nesse momento, e não em outro, que Exu dos Ventos ganha grande relevância pela mídia impressa. E é nesse período que Exu fica mais forte e mais difícil que seus criadores. Fato é que a inauguração da escultura, prevista para meados do ano, foi adiada.

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11 Velho, 2007, p.16.


Conflitos – Exu dos Ventos na mídia Assim desde que Òrúnmìlà pronunciou seu nome, a criança, Esú mesmo, respondeu e disse: Ìyá, Ìyá Ng o je Eku Mãe, mãe eu quero comer preás. A mãe respondeu: Omo na jeé Omo na jeé Filho come, come Filho come, come Omo l’okùn Omo ni jìngìndìnríngín A um se yì, mú s’òrun Ara eni Um filho é como contas de coral vermelho, Um filho é como cobre, Um filho é como alegria inextinguível. Uma honra apresentável, que nos representará depois da morte. Com a notícia da chegada da escultura de Exu ao Rio, a imprensa marca presença com uma série de reportagens nos principais jornais cariocas, nos meses de fevereiro, março e dezembro de 2000. O Dia, dos mais populares e de maior circulação no Rio de Janeiro, publica nessse período o total de 12 matérias. É o jornal que dá maior destaque ao conflito religioso, abrindo espaço para as opiniões dos evangélicos e para a Bancada Evangélica da Assembleia Legislativa. Em sua seção “Cartas na Mesa”, expõe as opiniões favoráveis de seus leitores sobre a instalação da escultura. O Jornal do Brasil, de maior circulação entre as classes mais altas do Rio de Janeiro, publicou apenas uma matéria no dia 15 de dezembro de 2000, com foto sob o título Exu dos Ventos. O texto informa sobre a inauguração da obra pelo prefeito, a aquisição da escultura pela empresa Lamsa, além de passar rapidamente pela polêmica com os evangélicos. O jornal Extra, mais popular e de grande circulação na cidade do Rio de Janeiro, Grande Rio e Baixada Fluminense, publica quatro reportagens aparentemente favoráveis à instalação da escultura e situando o leitor sobre as características positivas de Exu. O jornal O Globo, um dos maiores do Rio de Janeiro, apresenta matérias sobre o evento, com destaque para a visão católica. Dá grande ênfase em quase todas as reportagens ao posicionamento do cardeal dom Eugênio Salles, contra a escultura. Das reportagens que narram a refrega sobre a instalação da escultura, merecem destaque a opção oferecida pelo prefeito de realizar plebiscito entre os usuários da Linha Amarela para decidir o local de instalação da escultura, e a matéria do dia 23 de fevereiro de 2000,

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em O Dia, que publica na primeira página “Xô, Exu” sob a foto dos pastores com as mãos erguidas em oração e bíblia em punho; a imagem privilegia os dizeres da placa ao fundo: “Ampliação da Linha Amarela – por um Rio cada vez melhor.” Há quase um trocadilho visual entre a manchete de capa e o texto no interior do jornal, que na realidade informa sobre a falta de obras de drenagem na via; mas que, inicia o texto com “Queima e destrua todo mal!”. Olhares sobre Exu dos Ventos no Rio de Janeiro Então Òrúnmìlà trouxe todos os preás que pôde encontrar. E Esú acabou com elas. No dia seguinte a cena se repetiu com peixes. No terceiro dia, Esú quis comer aves. Gritou e comeu até acabar com todas. Sua mãe cantava todos os dias os versos e ainda acrescentava: Mo r’omo na Ají logba aso Omo máa Visto que consegui ter um filho, Continue a comer. No quarto dia, Esú quis comer carne. Sua mãe cantou como de hábito, e Òrúnmìlà trouxe-lhe todos os animais que pôde achar: cachorros, porcos, cabras, ovelhas, touros, cavalos, etc.; até que não sobrou nenhum. Esú não parou de chorar. Nosso personagem estabeleceu morada no entroncamento viário da Linha Amarela com a Vermelha,12 na parte interna da ilha. Por esse aspecto, Exu dos Ventos está no encontro de duas importantes vias da cidade. A Ilha do Fundão abriga a cidade universitária da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). A escultura fica numa espécie de canteiro, de frente para o viaduto que permite entrada e saída da Linha Amarela. Há trânsito intenso de veículos, nos dias úteis. Apesar da pouca quantidade de pedestres, eles são constantes. Não há exatamente um calçamento no

12 As duas linhas, Vermelha e Amarela, fazem parte do “Plano Doxiadis”, também conhecido como Plano Policromático, publicado em 1965 e concebido pelo arquiteto e urbanista grego Constantino Doxiádis, sob encomenda do então governador do estado da Guanabara, Carlos Lacerda (1960-1965). Destinava-se à reformulação das linhas mestras do urbanismo da cidade do Rio de Janeiro. Informação disponível em http://www.urbanismobr.org/bd/ documentos.php?id=2765, em 19.1.2010.

viaduto, e podemos supor que essa ausência seja intencional. São vias expressas somente para veículos, não para pedestres, embora deem acesso às comunidades de Vila Pinheiros, Baixa do Sapateiro e Timbau (pertencentes ao Complexo da Maré).13 Atrás da escultura passa uma das avenidas mais movimentadas do Fundão – notadamente pelas aulas de cursos noturnos. Para compreender a “dinâmica do olhar” que está em jogo em Exu dos Ventos – especificamente na estrutura narrativa da Linha Amarela – é preciso considerar a interação do observador com a obra e com sua orientação espacial. Paulo Knauss14 afirma que os aspectos formais escultóricos podem ser abordados a partir de sua relação com a forma urbana, organizando a construção dos olhares sobre a cidade, dando sentido à imagem escultórica que se define como imagem urbana.

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13 Complexo da Maré (ou simplesmente Maré) é um bairro da Zona Norte da cidade do Rio de Janeiro. Foi desmembrado de Bonsucesso pela Lei Municipal 2.119, de 19 de janeiro de 1994. A região, também conhecida como Favela da Maré, reúne diversas comunidades e favelas às margens da Baía de Guanabara. Com cerca de 130 mil moradores (dados de 2006), possui o maior complexo de favelas do Rio de Janeiro, consequência dos baixos indicadores de desenvolvimento humano que caracterizam a região. 14 Knauss, 2001, p. 10.


15 Arnheim, 1990.

Knauss parte da prerrogativa de centralismo, segundo a qual o “poder de centro”15 pode desenvolver-se na escultura tanto em relação a sua posição na malha urbana como à posição com o observador. Nesse sentido, Exu dos Ventos na Linha Amarela vai recusar o poder do centro conferido pela localização central não só em relação às avenidas da Linha Amarela e da Vermelha, mas como também em relação à planta do entorno em que está instalado. Outra característica passa por sua posição viária, percebida do ponto de vista do veículo em velocidade, somando ao olhar mais um dinamismo sensível, potencializando suas características cinéticas. Acredito que Exu dos Ventos careça de vista adequada para apreciar sua singular presença

16 Krauss, 2007, p. 244.

cênica com apelos cinéticos. Rosalind Krauss16 chama nossa atenção para a temporalidade estendida como conceito de tempo. Nos caminhos da escultura moderna há uma fusão da experiência temporal da escultura com o tempo real, conferindo ao trabalho certa teatralidade. Um dos aspectos mais notáveis da escultura moderna é o modo como manifesta a consciência cada vez maior de seus praticantes de que a escultura é um meio de expressão peculiarmente situado na junção entre repouso e movimento, entre o tempo capturado e a passagem do tempo. É dessa tensão, que define a condição mesma da escultura, que provém seu enorme poder expressivo. Essa teatralidade, de certa forma, é suspensa quando Exu dos Ventos se muda para a Linha Amarela. Porém, o sentido cinético é deslocado do eixo da estrutura da obra – afinal, trata-se de uma escultura móvel – para aquele que a contempla. A dinâmica do olhar se inverte e subverte a temporalidade pensada pelo artista. Artes de Exu? Talvez. “Exu mata o pássaro hoje com a pedra que atirou ontem” dizem os antigos da religião de orixás. Nessa nova situação, é o olhar que se movimenta e não a obra, conferindo novo caráter cinético ao que antes era fixo. A recuperação da memória de alguns dos funcionários de empresas vizinhas à escultura, que conviveram com a obra inteira, foi fundamental para melhor compreender os olhares que conferem sentido à escultura. No entanto, durante o trabalho de campo percebi que era dada mais ênfase à questão simbólica de Exu do que à apreciação estética. Um dos informantes, técnico da ambulância que presta serviço à Lamsa, logo de início identificou o nome do autor e da obra. Relatou que fazia curso para pastor da Igreja evangélica e que recentemente Exu dos Ventos havia sido tema das aulas, entre outras esculturas da cidade. Ao ser questionado sobre o conflito com a escultura, exatamente porque já existem na cidade outras imagens de referências religiosas – como o próprio Cristo Redentor –, se não havia preconceito por fazer referência ao universo afro-brasileiro, e por que esse segmento religioso não teria também o direito de figurar seus mitos

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em obras de arte distribuídas pela cidade, respondeu: “Por ser Exu e por ser associado ao diabo, o que deixa a situação bem complicada.” Ao insistir sobre o preconceito religioso, o informante foi enfático: “Esse negócio de mexer com o vento – o que isso tem a ver com esse lugar? É um local que tem toda uma questão ecológica e a meu ver não combina com nada aqui, nem na forma e nem na ideia.” Outro informante, funcionário da Cedae, quando abordado sobre a escultura, com bom humor respondeu: “Isso aí é macuuumba!” e complementou: “Volta e meia vem um grupo aqui e deixa um monte de ‘sujeira’ ali”. Então, surpreendida, perguntei: “Mas, na escultura?” E meu interlocutor respondeu que sim, além de toda a volta e em todos os lugares da ilha. Que era comum deixarem oferendas aos pés da escultura. Ao circular pela ilha, observando a arquitetura dos prédios, principalmente na Avenida Um, nos salta aos olhos o centro de pesquisas da Petrobras tendo do outro lado da rua um enorme pavilhão todo em estrutura metálica, com cobertura em formato de onda. Nesse mesmo pavilhão há uma cúpula que confere aspecto ainda mais futurista ao conjunto. Dessa forma, é possível fazer uma abordagem da narrativa visual da escultura com a forma urbana do Fundão. Exu dos Ventos afeta o espaço como um ator mecânico, que dialoga com a passagem do tempo, inclusive pela estrutura de aço em moldes construtivos. Tudo isso animado por fonte de energia externa. Esse aspecto cibernético encontra eco nos modernos edifícios e centros de pesquisas de complexas tecnologias que compõem o campus universitário, propondo um novo olhar sobre a ilha. Rosalind Krauss17 chama atenção ainda sobre o papel ideológico de toda a arte. E sobre o

17 Idem, ibidem, p. 253.

fato de as obras de arte projetarem uma imagem particular do mundo, ou de como é estar no mundo. Esse “mundo” é compreendido fundamentalmente diferente quando observado de outros pontos de vista ideológicos. Embora haja toda uma construção histórica e ideológica que levou os cristãos católicos a traduzir Exu como diabo no século XIX,18 essa construção ganha força com os neopentecostais. Esses ataques às imagens de santos e orixás – que volta e meia são noticiados nos jornais – em parte se baseiam numa concepção iconoclasta de que as imagens não possuem legitimidade com os assuntos sagrados, numa disputa entre palavra (Bíblia) e imagem na representação do sagrado. Há clara tensão entre as concepções de imagem contidas na escultura Exu dos Ventos. Embora o artista afirme que não utiliza qualquer conotação religiosa ou ortodoxa quando elege figuras religiosas como tema em suas esculturas, esse sentido místico é incorporado à escultura pelo público devoto no Rio de Janeiro que, ironicamente, passa a ser “alimentada” pelo povo de santo.

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18 Verger, 2000, p. 119.


Entretanto no universo cultural do povo de santo, as dinâmicas religiosas da prática de representação alcançam sua legitimidade como valor nos processos que se operam no seio da vida religiosa. Essas representações são consubstancializadas nos assentamentos dos ancestrais míticos, gerando ainda uma Subdivisão que pode induzir a pensar em um sistema de representação fragmentador, no qual o indivíduo se subdivide em muitos objetos. Ao renascer no culto, em vez de se dividir, a pessoa iniciada se multiplica; em vez de se diluir em outros, reforça os traços de sua personalidade. Assim, seu corpo passa a estar ligado a outros, a indivíduos compostos de outra carne, que devem ser tratados já que os assentos demandam abrigo, asseio, alimentação, convívio – práticas que implicam em educação e reintegração social.19

19 Conduru, 2007, p.30.

A lógica do monumento de arte em espaços públicos para contemplação não participa da lógica dos assentamentos. A cultura material constante nas práticas das religiões afrobrasileiras em geral é mantida inacessível aos não iniciados, havendo algumas situações específicas em que é exposta. Roger Sansi ao tratar as esculturas dos orixás do Dique do Tororó (Salvador, BA), de Tatti Moreno, lembra que o fato de representarem orixás não significa que contenham valor religioso para os adeptos das religiões de matriz africana. E argumenta por uma função cultural e social, posto que podem “estimular a sensibilidade estética da cidadania”. Sansi conclui que os ataques iconoclastas dos pentecostais constituem uma forma mais combativa de ocupar o espaço público, em disputa com as outras religiões. Imagem assento Até que no quinto dia, Esú disse: Ìyá, Ìyá, Ng ó je ó! Mãe, mãe, Eu quero comê-la! A mãe repetiu a canção... e foi assim que Esú engoliu a própria mãe. Òrúnmìlà, alarmado, correu a consultar Ifá que lhe recomendou fazer oferendas contendo uma espada. Assim foi feito. Encontramos ao longo da pesquisa algumas nuanças bem interessantes sobre a escolha do ponto de morada da escultura na Linha Amarela e que merecem lugar aqui. Através da etnografia em torno da obra, das indicações provenientes da orientação da pesquisa e dos atores presentes na inauguração da escultura, foi possível coletar relatos sobre a escolha do local dentro da Linha Amarela.

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Foto Luis Carlos da Silva. RJ, 16.2.2000. Dos presentes foi possível identificar: o prefeito Conde no centro; Mario Cravo Neto do lado direito em segundo plano (óculos escuros); Junior de Ode e Pai Celso logo à esquerda do prefeito em primeiro plano. Fonte: cortesia de Roberto Conduru.

Mario Cravo Neto, filho do escultor, manifestou o desejo de assentar Exu no local de instalação da escultura a um dos assessores do prefeito do Rio, seu conhecido, que se prontificou a ajudar. Assim foi encomendado o assentamento a um sacerdote do Rio de Janeiro: pai Celso de Omolu e Júnior de Odé, que gentilmente me cederam essas informações em entrevista. Contam que através do jogo de búzios, Exu fez algumas exigências e escolheu o local da instalação da obra, além de ter dado algumas orientações sobre o dia da inauguração. A parte ritual foi prontamente combinada. Talvez por conta de toda a troça midiática sobre Exu dos Ventos, houve um adiamento da cerimônia que foi concluída somente após as eleições. Infelizmente Mario Cravo Neto veio a falecer em agosto de 2009. Ao conversar com Mario Cravo Jr, em setembro do mesmo ano, sobre o assentamento da escultura, este logo argu-

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menta: “Isso é coisa de Mariozinho, meu filho. Ele que gosta muito... Eu não me envolvo 20 Cravo Jr., entrevista concedida a Mônica Linhares, em 21.9.2009.

com essa coisa de religião. Nunca quis saber”.20 Sobre Cravo Neto, Eliane Coster escreve: Mario Cravo Neto é um fotógrafo que também constrói uma visualidade do candomblé com múltiplas representações da religião, ora através de imagens simbólicas, unívocas que operam como ícones, ora através de imagens fragmentadas da realidade, que juntas, constituem um corpus poético (...)“Laroyé” é, para os Yorubás, a saudação a Exu. Este livro do autor, Laroyé, é, como ele mesmo disse, uma homenagem, uma oferenda para Exu.21

21 Coster, 2007, p. 94.

O Exu assentado foi Exu Sete Encruzilhadas, que é uma entidade da umbanda ligada a Oxalá. Através dos búzios a entidade recomendou, ainda, que a inauguração fosse feita pela manhã, com uma festa simples, sem bebida alcoólica e de poucos convidados. A assessoria do prefeito recomendou discrição para que não houvesse nenhuma manifestação com cartazes contrários à escultura. O assentamento ocorreu no foro íntimo dos atores aqui descritos. A escultura foi montada no dia 15 de dezembro, pelo filho mais novo do escultor. A cerimônia religiosa foi realizada nesse mesmo dia, bem cedo. Estavam presentes apenas os sacerdotes envolvidos. E, assim, assentaram Exu no local que foi destinado à escultura Exu dos Ventos. Pouco antes da chegada da comitiva e dos convidados, Pai Celso conta que Mario Cravo Neto veio acompanhado de um sacerdote da 22 Semente de noz-de-cola, originária da África, presente nas cerimônias e na prática do jogo de confirmação.

Bahia, deram um obi22 a Exu, que respondeu satisfatoriamente sobre os procedimentos religiosos realizados. Na hora marcada o prefeito e a cidade puderam contemplar a escultura e comemorar essa instalação depois de todo o impasse que se colocou diante da bancada evangélica e da mídia, mesmo após perder as eleições. Exu “perde a cabeça” No sexto dia depois de seu nascimento, Esú disse: Bàbá, bàbá, Ng ó je ó ó! Pai, Pai, Eu quero comê-lo! Òrúnmìlà cantou a canção da mãe de Esú e quando este se aproximou, Òrúnmìlà lançou-se em sua perseguição com a espada e Esú fugiu. Durante todo o tempo em que durou esta pesquisa a escultura permaneceu destituída da parte móvel, que foi localizada na Fundação Parques e Jardins, no galpão da Praça

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Escultura Exu dos Ventos sem a “cabeça” na Ilha do Fundão, RJ, agosto de 2009. Fonte: acervo pessoal.

General Pedra, na Praça XI. Interessante o galpão ficar num parque com enorme chafariz e variadas esculturas de deuses gregos em seu entorno. A ‘cabeça’ de Exu dos Ventos estava abaixo do elevado por onde passa a Avenida Trinta e Um de Março, sob a pista de retorno, configurando outra encruzilhada. Por consequência da proximidade de áreas de risco e dos frequentes furtos, todas as peças na parte externa do galpão estavam amarradas com correntes ou cabos de aço. Surpreendentemente, deparei-me com a parte superior de Exu dos Ventos amarrada a outra peça que, anteriormente, compunha uma cruz. Não consegui mais detalhes sobre a tal cruz. E a partir de então ficou ecoando essa insistência na cruz. Cruz, Cristos e Exu Quando Òrúnmìlà o apanhou, começou a seccionar pedaços de seu corpo, a espalhá-los, e cada pedaço transformou-se em um Yangi. Òrúnmìlà cortou e espalhou 200 pedaços e eles se transformaram em 200 Yangi.

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Exu e Cristo. Por que não Jesus? Cristo. Sutilezas da linguagem, em que há insistência na cruz. Força do símbolo. A palavra Cristo contém em si a plasticidade dinâmica da ação. Violência do homem. Homem crucificado. Homem contra a matéria numa luta sem fim. Na cruz. Em cruz. Crucificado, mas não passivamente. Tudo constitui essa inquietude. O fazer do artista, o homem, o espírito, a matéria. Reinterpreta a iconografia e o ícone com a matéria e a forma, dando certo tratamento bruto à superfície, conferindo ineficiência à visão. É preciso tato. Essa materialidade do humano na obra cria um potente jogo entre forma e símbolo. Outro escultor, Alexander Calder, cria seus móbiles jogando com o balanço do peso das formas. Nesses Cristos, Mario Cravo joga com o balanço do peso dos símbolos. Entremeando presenças, ausências e transfigurações, insere índices que tornam a matéria carnal: olhos, dentes e pênis. Mede, mas não meticulosamente, esses artifícios, em estonteante equilíbrio. E Exu? Paradoxalmente, em sua obra, os Exus são quase antítese de seus Cristos, sendo soberanos, serenos, combativos, galhofeiros e altivos. No mito, precede o humano, pois é princípio dinâmico. Impermanente e inconstante, Exu não se fixa em forma nem em lugar. Está sempre de passagem. Mario Cravo capta essa essência, e seus Exus apresentam uma harmonia volitiva na forma. Não há conflito entre o espírito e a matéria. O espírito inconformado que opera em seus Cristos encontra certa plenitude nos Exus. O hercúleo Exu, integrante do grupo escultórico encomendado especialmente para o prédio dos Correios de Pituba, em Salvador, é feito a partir de recortes de cobre rebatido que se conectam na superfície criando vazios, aparentando um simulacro muscular corpóreo e compondo escultura de aproximados três metros de altura. Deixa à mostra espaços entre um recorte e outro, alguns atravessados pela luz. Há um espaço vazio que corresponderia à região do diafragma, como se a musculatura estivesse contraída, retesada, insuflado de ar e energia, como se Exu estivesse pronto para agir. Sustenta vigorosamente um tridente sugerindo um estandarte – de 4,5m de altura – que está apoiado no chão e que completa a firmeza do tripé. Na outra mão, carrega um instrumento peculiar. Mantém um dos pés apoiado num banquinho. Na cabeça, sustenta os chifres e a lâmina. Mais uma vez Mario Cravo joga esteticamente com a iconografia, reinterpretando-a entre sincretismos e ortodoxia, porém não vertiginosamente como nos Cristos, mas numa estabilidade afirmativa sobre o lugar, o espaço. Assim representa e reinterpreta Elégbára – o senhor do poder. Já no Exu dos Ventos, Mario Cravo parte para a economia formal de recortes geométricos em sentido construtivo, encimado por uma condição cinética. Construtivo no fazer, sem eliminar totalmente o figurativo e o simbólico; não nesse trabalho. Aqui, a pujança do cadinho sincrético baiano aflora na organização simétrica das formas geométricas. Anima sua escultura com movimento dos ventos. E quais ventos? Não foi feita para um lugar específico. Seu projeto segue livre o curso da criatividade. Do ateliê vai para o Espaço Cravo, em Salvador, e de lá para o Rio de Janeiro, como Exu, que caminha. Nessa obra

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podemos reconhecer um pouco de outro semblante de seu trabalho, que encontraremos espalhado nos gramados do Espaço Cravo. O artista, imbuído de seu fascínio pelas máquinas, recicla equipamentos da indústria e constrói esculturas-brinquedo para o Parque de Pituaçu, em que fica o Espaço Cravo, numa experimentação lúdica, por vezes delicada, com o espaço, com o entorno e com o público. À primeira vista as esculturas guardam a memória dos brinquedos da infância: são bambolês que se equilibram... um bilboquê gigante, piorras e piões aquáticos, trepatrepas, cata-ventos, escorregas, dobraduras, divertidos Exus que lembram piratas, e por aí vai. Há descontração com a matéria, e logo esquecemos a dureza e violência do processo escultórico. Talvez o Exu dos Ventos de Mario Cravo seja um Exu menino, brincalhão como ele só. Daquele mesmo, à entrada da casa de Òsàlá e querido por Òrúnmìlà. Talvez, ao ser colocado à entrada do parque, com seu alongado braço, estivesse sempre a convidar ou a cumprimentar aqueles que passassem por ali, indicando o caminho. A estrutura que sustenta a parte móvel lembra um foguete, daquele que as crianças desenham, pronto para levantar voo. Ainda, visto por inteiro, aqueles robôs extraterrestres futuristas de um olho só que se movem sozinhos, que estão prestes a caminhar mecanicamente. E na verdade, foi inspirado num brinquedo popular infantil: o mané-gostoso. Pode parecer um tanto alheio, dada sua autonomia de movimentos. Mas é justamente o lugar que envolve o observador numa relação de tempo e espaço ao som do mar e do vento. Assim como as demais esculturas do parque, Exu dos Ventos guarda esse intenso diálogo com a natureza. É uma observação que requer “outros tempos”. Esse “tempo” não é percebido quando a obra passa a ter morada no Rio de Janeiro. Mas, na história, Òsàlá avisa: “esse não é propriamente alguém que possa ser mimado no Àiyé.” São referências sutis, que requerem um olhar atento. Talvez o Rio de Janeiro não estivesse preparado para receber o Exu dos Ventos. Conciliações Quando Òrúnmìlà se deteve, o que restou de Esú ergueu-se e continuou fugindo. Òrúnmìlà só pode reapanhá-lo no segundo òrun e lá Esú estava inteiro de novo. Òrúnmìlà voltou a cortar 200 pedaços que se transformaram em 200 Yangi. Isto se repetiu nos nove espaços do òrun que ficaram assim povoados de Yangi. No último òrun, após ter sido talhado, Esú decide compactuar com Òrúnmìlà: este não devia mais persegui-lo; todos os Yangi seriam seus representantes e Òrúnmìlà poderia consultá-los cada vez que fosse necessário enviá-los a executar os trabalhos que ele lhes ordenasse fazer, como se fossem seus verdadeiros filhos. Esú assegurou-lhe que seria ele mesmo que responderia por meio dos Yangi.

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Cruz, cruzeiro e encruzilhada: essa é a grande metáfora de interseção entre Exu e Cristo. Ambos moram na cruz: Exu na encruzilhada e Cristo na cruz. Embora eu tenha entendido na conversa com Mario Cravo, que o caminho percorrido por ele para conectar e reinterpretar essa relação entre Cristo e Exu passe mais pelo sincretismo entre Cristo e Oxalá. Assim, descreve Oxalá como orixá da criação e procriação, sendo a procriação intrinsecamente ligada à mecânica do sexo, ao sêmen; e sabendo-se Exu historicamente representado – em seus assentos na África – pelo falo, entendido como patrono da cópula. Cristo e Exu são dois temas fortes na obra de Mario Cravo e se unem no Exu dos Ventos. Afinal é um Exu feito com o refugo da escultura de uma cruz cristã. Instalado numa encruzilhada. O Exu assentado é um Exu ligado a Oxalá. E, inevitavelmente, é a cidade do Cristo Redentor que recebe Exu dos Ventos. Esse jogo entre Cristo e Exu é inserido no olho do furacão dos conflitos de intolerância religiosa e participa ativando o diálogo com a sociedade. Várias disputas estão presentes 23 Baltar, 2004, p. 35.

nessa polêmica. Nas palavras de Maria Clara Baltar23 Disputas essas tanto pelo domínio do espaço público (urbano) da cidade do Rio de Janeiro como uma disputa ideológica e moral presente em cada umas das religiões. Há até mesmo uma disputa política já que a colocação da obra poderia ser responsável pela perda de apoio de um partido, no caso o do prefeito Conde, e por outro lado o fortalecimento de partidos que fazem parte das bancadas evangélica ou cristã. Dessa forma, podemos concluir que a religião e seus símbolos são peças fundamentais para o entendimento da realidade social, já que além de um poder sobrenatural elas trazem consigo poderes políticos, econômicos e sociais. Muitos são os pontos que ainda permanecem obscuros em torno de Exu dos Ventos. Porém, quanto maior o mistério e a polêmica em relação à obra, tanto melhor para o artista, pois amplia o poder de alcance enquanto objeto estético e produtor de sentidos na cidade. O que nos exige Exu dos Ventos nada mais é do que um esforço de pensar os mundos sociais existentes na cidade, desconfiando criticamente do senso comum e das certezas dogmáticas. Talvez essas interreferências entre Exu e Cristo – personagens tão familiares no imaginário carioca – sejam um caminho, ou ainda, a tal ação pública valorizando a conciliação, da qual nos falava Cícero (e nos lembra Gilberto Velho). Se o fenômeno da heterogeneidade é parte da sociedade complexa moderno-contemporânea, sendo o conflito não só recorrente – mas também parte constitutiva da vida social como um todo –, podemos ver nele uma oportunidade de conciliação. Em que situações-limite vão requerer mudanças.

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Como o que acontece na história em que Exu devora tudo até que Orunmilá consegue uma conciliação. Porém, essa conciliação requer sempre o encontro dessa aliança entre Exu e Orunmilá, que passam a trabalhar juntos. Podemos relacionar ainda a queda da parte móvel da escultura com o assentamento que foi feito, posto que, se os assentamentos demandam cuidados, uma boa manutenção na parte física da obra se faz necessária. A cidade demanda cuidados com Exu dos Ventos e com o assentamento de Exu. Talvez a Cidade Maravilhosa consiga representar a sua complexidade tendo o Cristo católico de braços abertos e o Exu dos afro-brasileiros indicando o caminho conciliatório entre cristãos e religiões de matriz africana. Ficam registrados aqui os apelos às autoridades competentes, uma vez que tanto Mario Cravo Jr quanto a Fundação Parques e Jardins demonstraram grande interesse em colocar o Exu aos ventos, novamente. Essas artimanhas – símbolos, sincretismos e personagens de fé – que se encontram no campo da arte são artes de Exu.

Mônica Maria Linhares Castrioto (Rio de Janeiro, Brasil) é graduada em educação artística pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2005) e tem mestrado pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (2010) com a dissertação Artes de Exu – Intervenções artísticas e representações afro-descendentes no Rio de Janeiro: Tridente de NI e Exu dos Ventos. Atualmente é professora substituta de artes visuais do Colégio Pedro II, do Centro Educacional Jabuti e Oficina Criativa. / monicalinhares@hotmail.com

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Imagens do รกlbum Nowhereman, 2010.


Herança antropofágica na poética contemporânea* Rubens Pileggi Sá

O presente ensaio é um fragmento de minha dissertação de mestrado intitulada Arte crítica, contexto público e ação poética no cotidiano e se propõe a pensar a herança antropofágica cultural modernista e as conquistas do neoconcretismo dos anos 60 como um caminho para a prática artística contemporânea. O resultado que se busca faz da própria pesquisa um exercício poético, em que o texto torna-se elemento ativo, relacionando camadas de ação para a performance do corpo. Política, poética, experimentação. “Uma lata existe para conter algo Mas quando o poeta diz: ‘Lata’ Pode estar querendo dizer o incontível” Gilberto Gil, “Metáfora”, 1982 Poesia no dia a dia “A poesia existe nos fatos. Os casebres de açafrão e de ocre nos verdes * Artigo recebido e aceito para publicação em agosto de 2010.

da Favela, sob o azul cabralino, são fatos estéticos”. Assim começa o Manifesto do PauBrasil, de 1924, assinado por um dos protagonistas da Semana de Arte Moderna de São Paulo, de 1922, o poeta e agitador cultural Oswald de Andrade. Nesse Manifesto, Oswald já profetizava uma visão de mundo que, até hoje, mais de 85 anos depois, ainda continua válida. Sua lucidez ao investir contra o formalismo parnasiano e a cópia aos modelos importados já era bem clara, em termos de postura poética, assim como na agudeza de enxergar a realidade e o cotidiano como fontes privilegiadas para a criação estética. Além dessas percepções revolucionárias em termos de arte e pensamento para a época, Oswald e o movimento Pau-Brasil – incluindo, entre outros participantes, a pintora Tarsila do Amaral – propunham “substituir a perspectiva visual e naturalista por uma perspectiva

1 Oswald de Andrade, Manifesto Pau-Brasil. Publicado originalmente no jornal Correio da Manhã, São Paulo, em 1924. Disponível em: http://www.fflch.usp.br/df/caf/artigo/manifesto-pau-brasil-oswald-de-andrade. Acesso em: 15.10.2009.

de outra ordem: sentimental, intelectual, irônica, ingênua”.1 Ou seja, não era a substituição formal de uma coisa por outra o parâmetro de Oswald para um posicionamento estético da identidade sociocultural brasileira, mas outro comportamento frente à arte produzida na terra do pau-brasil, que contemplasse “o equilíbrio, a invenção (...) e a surpresa”, e sem “nenhuma fórmula para a contemporânea expressão do mundo (...) Apenas

2 Manifesto da Poesia Pau-Brasil, publicado originalmente no jornal Correio da Manhã de 18.3.1924.

brasileiros de nossa época”.2 No rastro dos dois manifestos de Oswald – Pau-Brasil (1924) e Antropófago (1929) – a cultura e a identidade nacionais foram moldadas, e os movimentos posteriores continuam

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encadeando-se em nítida sucessão que não se esgota; ao contrário, eles se renovam, permeados ‘do equilíbrio, da invenção e da surpresa’. As experimentações com a linguagem e a busca da relação direta com os fatos potencializaram as várias formas de produção criativa, cujos desdobramentos, muitas vezes contrários uns aos outros, ainda se fazem 3 Concretismo e Neoconcretismo, ou Vanguarda Artística versus CPC, por exemplo.

refletir em nossa atualidade.3 Nesse sentido, o Neoconcretismo brasileiro, ao inverter e reinventar a prática concretista, trouxe para a cena de debate uma discussão internacional sobre arte que dialogava com as vanguardas internacionais da época, ampliando a discussão tanto da Arte Pop quanto da Arte Conceitual, como mostra, por exemplo, Mari Carmem Ramírez,4 em seu

4 Ramírez, 2007, p.184-195.

artigo Táticas para viver da adversidade: o conceitualismo na América Latina. O que estava em jogo não era a substituição de um objeto por outro ou por um conceito tratado como objeto artístico, mas um pensamento radical que levava às últimas consequências o modo de operar ética e esteticamente a (e na) realidade. Em carta de 1972 a Aracy Amaral, Hélio Oiticica é categórico: “(...) nada tenho a ver com arte conceitual. Pelo contrário, meu trabalho é algo concreto como tal. Para mim o conceito é uma etapa, como o sensorial, ambiental, etc. (...)”.5 O que Oiticica chama de ‘concreto’, todavia, é

5 Oiticica apud Jacques, 2003, p. 109.

parte de uma poética que toma do cotidiano e da realidade seu material de trabalho, no sentido de fazê-la pertencer a um fluxo que propõe, desde sua origem, uma conexão de princípios e identidades afins, abrindo-se para além da representação e da criação de objetos. Como observa Oiticica, em dezembro de 1967, no texto Aparecimento do suprassensorial na arte brasileira, a proposição mais importante “seria a de um novo comportamento perceptivo, criado na participação cada vez maior do espectador, chegandose a uma superação do objeto como fim da expressão estética”.6 É a busca de um tipo

6 Oiticica, 1986, p.102.

de ação que seja, ao mesmo tempo, poético/político e um modelo de comportamento singular e diverso, característico da mistura cultural do caldeirão étnico do ‘matriarcado de Pindorama’, como escreve Oswald, no Manifesto Antropófago. Quando Oiticica propõe o conceito de “obra-obra” – de apropriação de situações “ao menos durante algumas horas”7 – e diz que sua arte vale para uma determinada situação e contexto

7 Idem, ibidem, p.80.

específicos e fora dali não possui quase nenhum valor mais, é preciso entender que, na verdade, estamos diante de complexidades nunca antes pensadas, em que a dimensão temporal e horizontal8 da obra no contexto social é experimentada como condição de fazer parte do dia a dia das pessoas.

8 Ver a esse respeito o artigo O artista como etnógrafo, de Hal Foster, 2005, p. 30-42.

Discorrendo sobre a diferença entre modelos referentes à tática e à estratégia, De Certeau coloca a primeira como portadora de nomadismo e a segunda como dependente de lugares. Uma horizontal, outra vertical. Uma do tempo, outra do espaço. Uma do oprimido, que nem por isso deixa de resistir; outra do poder. Uma, a arte da dissolução, a prática do fazer; outra, totalizante, teórica. “Trata-se de combates ou jogos entre o forte e o fraco, e das ações que são possíveis para o fraco”.9 Para o autor, tática é a “ação calculada determinada pela ausência de um lugar próprio”. Assim, “aproveita as ocasiões e depende delas, já que não conta com uma base em que acumular os benefí-

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9 De Certeau, 2001, p. 398.


cios, aumentar o próprio e prever as saídas”. Se, porém, ganha em mobilidade, “exige 10 Idem, ibidem, p. 401.

por sua vez maior capacidade de adaptação aos acasos do tempo”.10 De Certeau, baseado em Clausewitz, compara a tática à astúcia do prestigitador habilidoso que usa do ardil e do chiste para se introduzir, por surpresa, em uma ordem de

11 Idem, ibidem, p. 402.

valores fixos e hierarquizados.11 Pois bem, ardil, surpresa e chiste são características muito próprias à luta de capoeira, uma ‘invenção’ brasileira que veio a ser sistematizada, desde o começo do século passado, a partir de Mestre Pastinha (1889-1981). A capoeira, particularmente a capoeira de angola, é jogo rasteiro e malicioso, originado em senzalas e quilombos, onde a ginga do corpo era a única arma que o negro escravo tinha para se defender, se esquivar e atacar o inimigo, que o queria manter em cativei-

12 Muniz Sodré (1991, p. 17), em O Brasil simulado e o real, capítulo 2, refere-se à capoeira como “resistência ideológica”.

ro. Uma ciência do corpo contra o poder da opressão.12 Uma prática – jogo, esporte, arte, luta – em que a risada, a ginga e a malemolência podem levar o adversário incrédulo à morte, sem que o berimbau perca seu ritmo: “eu vim aqui foi pra vadiá”. Sobre a prática do chiste, De Certeau cita Freud, ao mostrar “as formas que toma o ‘retorno do reprimido’: economia e condensações verbais, duplo sentido, transla-

13 De Certeau, op. cit., p. 404.

dos e aliterações, empregos múltiplos dos mesmos materiais, etc.”.13 Assim, não só a capoeira brasileira assume todos esses atributos descritos por De Certeau, mas a própria condição de país colonizado, e por um conceito de identidade cultural ainda por se afirmar, está presente nos debates que envolvem a arte desde o modernismo, passando pelo Tropicalismo e sobre as quais parece haver manancial cada vez mais rico para dela se fazer uso. Assim, as brincadeiras de duplo sentido, as aliterações verbais, as

14 Termo cunhado pelo cantor e compositor Tom Zé, referindo-se a sua própria maneira de fazer uso da criatividade.

plágio-combinações,14 os trocadilhos e todas as ambiguidades que podem ser pensadas nas relações entre verbal, visual e sonoro tratam de manipulações da linguagem, no sentido de seduzir, maquiar ou inverter a posição linguística do receptor, quebrando o sentido lógico da leitura antecipadamente esperada. Ocasião propícia que De Certeau

15 De Certeau, op. cit., p. 407.

denomina kairós.15 Exemplo ilustrativo de chiste é descrito por Hakim Bey, no livro TAZ, sobre o selvagem que, de tanto ser colocado como “o guardião do espírito da floresta”, acaba assumindo essa identidade para si, ainda que, antes da colonização, ele não passasse de morador de um local comum, sem se perguntar se era ou não seu guardião. Ou seja, ele acabou apren-

16 O termo, em sua amplitude, também possibilita o enclausuramento de identidades em torno de visões hegemônicas. Ver Gonçalves; Silva, 1998, p. 12.

dendo que tal designação lhe dá status, cria defesa, forja identidade. Da mesma forma, dizemos que o índio é brasileiro, mas ele continua completamente exótico para nós e, embora dele descendentes, sua cultura nos é completamente estranha. Não entendemos seus rituais, apenas os olhamos com o olhar da multiculturalidade,16 sem conseguir nos rela-

17 Clastres, 1978, p. 85.

cionar por assimilação e, muitas vezes, submetendo-os à visão do colonizador, tratando-

18 Na música de Chico Buarque e Ruy Guerra “Fado Tropical”, da peça Calabar: o elogio da traição, de 1973, o seguinte trecho é bastante emblemático: “Todos nós herdamos no sangue lusitano uma dose de lirismo (além da sífilis, é claro)”.

os como vagabundos que não querem arar a terra.17 Nesse caso, o agir dissimulado, a invisibilidade, a cópia, a paródia e o estereótipo também podem ser tomados como potências criativas de sobrevivência, para além da herança tropicalista e, em arte, recolocados como uma alegoria da alegoria que, ao se contrapor ao melancólico, de certa forma, o reafirma.18

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Transformar discursos sociológicos e filosóficos em arte, porém, não se faz transportando conceitos de uma área do saber para outra, até porque a produção dos conceitos se dá em registros diferentes que não se podem ver representados uns nos outros.19 Ou seja, não é uma questão formalista. Todavia, não é a troca de um sistema – fixo, estratégico, totalizante, vertical – por outro – móvel, tático, relativista, horizontal – a articulação possível em um campo de forças em disputa pela significação e, sim, a continuação de discursos de resistência, de práticas heterogêneas e moldáveis, constantemente negociáveis em suas indeterminações formais, articuláveis, adaptáveis às situações que surgem no contexto deste ou daquele sistema. As táticas circulam em lugares estratificados, submetendo-se a eles, em resistência diária de atrito. Assim, o modelo ‘estratégico’ também é transformado, encurralado em seu

19 Em palestra para estudantes de cinema, em 1987, o filósofo Gilles Deleuze assim separa os saberes: “(...) ninguém precisa da filosofia para refletir. As únicas pessoas capazes de refletir efetivamente sobre o cinema são os cineastas, ou os críticos de cinema, ou então aqueles que gostam de cinema (...) Se a filosofia deve servir para refletir sobre algo, ela não teria nenhuma razão para existir. Se a filosofia existe, é porque ela tem seu próprio conteúdo”. Folha de S. Paulo; caderno MAIS, domingo, 27.6.1999, p. 4-5. Disponível em: http://www.midiaindependente.org/ pt/blue/2008/05/419034.shtml. Acesso em: 12.12.2009. Tradução: José Marcos Macedo.

próprio êxito: dependia da definição de um lugar ‘próprio’ distinto do resto; agora esse mesmo lugar se converte no todo (...). Porém, essa abertura do aparato por si mesmo tem como inconveniente não ver as práticas, que resultam heterogêneas e que ele reprime ou crê reprimir.20

20 De Certeau, op. cit., p. 407.

Tal modelo estratégico não resulta em prática absoluta e sem fim, uma vez que está inscrito em processos produtivos e sujeito a múltiplas variáveis. O que De Certeau coloca, usando metáforas, é que tal situação pode ser comparada a uma noite mais longa do que um dia, “a noite das sociedades”, em que, “de um mar escuro emergem as sucessivas instituições, imensidade marítima em que os sistemas socioeconômicos e políticos aparecem como ilhas efêmeras”.21

21 Idem.

Enquanto isso, entre a consistência da rocha que sonha sua geologia através das eras e o poema que desaparece na areia da praia, seguimos o poeta Oswald de Andrade que, em Poesias do Pau-Brasil, de 1924, no estilo do verso livre conquistado pelo modernismo, canta o presente em “Escapulário”: No pão de açúcar De cada dia Dai-nos senhor A poesia De cada dia Tirando da arte a arte Em A Origem da Tragédia – cujo prólogo é dedicado a Richard Wagner – Nietzsche descreve duas forças antagônicas, o apolíneo e o dionisíaco, “de maneira parecida com a dependência da geração da dualidade dos sexos, em lutas contínuas e com reconciliações somente periódicas”.22 Dioniso é o deus da embriaguez sedutora e envolvente, ligado à temporalidade, enquanto Apolo é o deus da ‘plástica’, da ordem harmônica dos sistemas construtivos e da espacialidade. O argumento de Nietzsche é que a tragédia grega teria sofrido grande re-

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22 Nietzsche, 2005, p. 27.


vés com o fato de Eurípedes ter levado o público para o interior da cena, trazendo o palco para perto do espectador e eliminando o coro da tragédia grega. Chamando Eurípedes de “malfeitor”, Nietzsche então, como se falasse ao autor de Medeia, diz que “em virtude de 23 Idem, ibidem, p. 65.

teres deixado Dioniso, também te deixou Apolo”.23 Em seu entender, Eurípedes representa a decadência da tragédia, por ser praticante de um “socratismo estético, cuja lei principal reza mais ou menos o seguinte: ‘tudo deve ser inteligível, a fim de ser belo’; como paralelo

24 Idem, ibidem, p. 75.

à frase socrática: ‘só aquele que sabe é o virtuoso’”.24 Segundo o filósofo alemão do século XIX, o teatro grego antigo catalisava as forças primitivas daqueles que participavam de seu ritual, colocando todos em celebração do êxtase dionisíaco, enquanto o drama busca explicação para a origem dos deuses. No capítulo A bela diacronia, dados para uma história das formas do livro Modos de saber, modos de adoecer, analisando essa referida obra de Nietzsche, Roberto Corrêa do Santos afirma que “a tragédia, com Ésquilo e Sófocles, consuma essa desmedida metafísica. E por grande respeito ao público o desloca: cria as

25 Santos, 1999, p. 44. 26 Idem, ibidem, p. 45.

condições de ver de fora e do alto, de desindividualizar”.25 Enquanto, com Eurípedes, “mata-se o coro trágico, travestido agora pelo coro populista, pedagógico, didático”.26 O que se coloca, para a arte contemporânea, é que a questão já não é mais apenas uma relação entre a representação e a “desmedida metafísica”, em que o público ou estaria participando de um ritual para e com os deuses Apolo e Dioniso, ou estaria em posição analítica, assistindo a uma peça de teatro como quem assiste a uma palestra gerencial. Quando o grupo norte americano The Yes Men, cria um site na internet com as características do site da Organização Mundial do Comércio – OMC e vai à Finlândia realizar uma palestra para os empresários locais, defendendo a escravidão e apresentando uma roupa dourada com um falo gigantesco inflado, propondo seu uso para o “investidor contem-

27 O vídeo dessa ação, apresentado por partes, está disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=GC4f5b5pi8I. Acesso em: 20.1.2010.

porâneo”,27 e as pessoas levam em consideração a situação, até que ponto tal farsa pode ser comparada com um espetáculo de teatro? Talvez, nesse caso, só se admitirmos que o coro é um público traído em suas boas intenções, cujos deuses lhes roubaram a fé. Apolo e Dioniso vingam-se pelo avesso na sociedade de cultura mass media pós-industrial, injetando sua ausência na crença de negociantes ávidos por lucro financeiro. Ao contrário do que Duchamp diz sobre o coeficiente artístico de uma obra de arte e sua consagração

28 Duchamp, 1997. Disponível em: http:// n0panic.blogspot.com/2004/11/f1-16-oacto-criativo-marcel-duchamp.html.Acesso em: 10.1.2009. 29 No capítulo intitulado Platão e os gregos, assim coloca Deleuze (1997, p. 154): “O platonismo aparece como doutrina seletiva, seleção dos pretendentes, dos rivais (...) A Ideia é posta por Platão como o que possui uma qualidade primeiro (necessária e universalmente); ela deverá permitir, graça a provas, determinar o que possui uma qualidade em segundo, terceiro, segundo a natureza da participação. Tal é a doutrina do julgamento”. 30 Nietzsche, op. cit., p. 74.

para a posteridade,28 o rebaixamento desse coeficiente artístico passa a ser uma questão também para o artista, uma vez que o fator de qualidade também é um critério de exclusão.29 Se Nietzsche reclama do homem teórico que em Sócrates e posteriormente em Descartes30 se tornou paradigma da razão lógica, então a fórmula é transformar a teoria em discurso, devolvendo-a ao solo árido do drama, molhando-a com o maná da farsa, da comédia, do jogo inventivo das aliterações, dos trocadilhos, dos duplos sentidos e das surpresas criativas. No livro Catatau, de 1975, Paulo Leminski cria um personagem que é um monstro semiótico, cujo nome é Occam. Esse personagem tem por característica devorar o sentido das frases e comer a lógica das palavras à medida que elas vão-se aproximando dele (quer dizer, da palavra Occam), e novamente as palavras vão-se rearranjando, à medida que dele se afastam. O escritor londrinense Maurício de Arruda Mendonça, assim resume o livro:

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A ideia de René Descartes (1596-1650) visitando o Brasil como integrante da comitiva de sábios e artistas do Conde Maurício de Nassau é a hipótese apresentada por Leminski. Sentado debaixo de uma árvore do jardim botânico do palácio de Nassau em Recife, o filósofo tenta aplicar seu ‘Penso, logo existo’ ao Brasil, tendo nas mãos uma luneta e um cachimbo com erva narcótica. Descartes vai-se embriagando com a fauna e a flora brasilis. Tudo é ex-oticum: vem de fora, estranho, estrangeiro. Ele espera, impaciente, o estrategista do exército da Companhia das Índias Ocidentais, o polonês Artyczewski, a fim de que lhe explique aquele Brasil. O livro é esta longa espera, que se revelará frustrante para o filósofo: Artyczewski chega à última linha do romance totalmente bêbado e incapaz de explicar qualquer coisa logicamente.31

31 Mendonça, M. A. Catatau: um gabinete de raridades. Disponível em www.leminski.hpg. ig.com.br/ensaio9.htm. Acesso em: 10.3.2009.

Tirar a arte da arte para torná-la domínio do comum, abrindo-a para linhas de fuga em que o corpo da ação funde-se com o corpo do texto não rouba a mágica do entretenimento e nem a razão da representação. Em última instância, tudo é e representa, ao mesmo tempo. Assim como a palavra vale pelo que é, ela representa um outro, ela toma lugar daquilo que foi nomeado. Discorrendo sobre a figura de linguagem do anagrama, Foucault pondera que: “anagrama pomba, flor, e rio, tão apegado à representação por semelhança que ao ler pomba, flor e rio, a forma se dissipa”.32 Assim sendo, a representação da palavra

32 Foucault, 1988, p. 26 e 27.

e a sonoridade da ‘coisa dita’ ficam tão distantes da ‘coisa’ que, em vez de ser evocada pelo anagrama, ela se perde. Para o autor, é Magritte que consegue resolver tal distância entre as linguagens, ao estabelecer jogos paradoxais entre texto e imagem, como no caso de “Isto não é um cachimbo”. Para Foucault, o artista “ao fazer a frase negar a imagem (...) as faz colidirem, reabrindo a armadilha que o anagrama tinha fechado”. Ou seja, quando eu digo ‘o azul é azul’, isso não é apenas uma evidência. Isso traz tudo aquilo que, a seu redor, inventa para a frase o seu conteúdo. Cria o lugar do agora no instante em que o agora é ou está, sabendo de antemão – e por isso mesmo – que “agora, já passou”, como na letra da canção de Arnaldo Antunes, no cd Nome, de 1993. É preciso admitir, entre figura e texto, toda uma série de cruzamentos, ainda que, de acordo com Foucault, “as palavras sejam suscetíveis de receber uma figura, e as imagens, de entrar 33 Idem, ibidem, p. 33.

na ordem do léxico”.33 Se inventamos o fim do trágico questionando o próprio enredo da obra, humanizando não o mito, mas enfocando as paixões humanas, o drama, é porque assumimos o exótico, o folclórico e o alegórico, uma vez que é sempre melhor representar – mesmo que seja mostrando aquilo que esperam de nós – do que não ter corpo para ser representado. É preciso o corpo morto para se fazer necropsias, nem que seja o nosso próprio, o do homem cordial.34 A farsa é sincera, nesses casos. E o comum torna-se diferente, voltado para a leitura que desmancha a lógica,35 adicionando significados que estavam fora da percepção. Vender a farsa de um país tropical: Iracema da América, índios, floresta, mulatas. O outro como o mesmo. Você é exótico, você é daqui. O plágio como brincadeira, como

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34 Em Raízes do Brasil, Sergio Buarque de Holanda observa que o “homem cordial”, que não faz distinção entre o que é público do que é privado, detesta formalidades, põe de lado a ética e a civilidade. Entrevista disponível em: http://www.unicamp.br/siarq/sbh/o_globo. html.Acesso: 13.1.2010. 35 “Passar do outro lado do espelho é passar da relação de designação à relação de expressão – sem se deter nos intermediários, manifestação, significação. É chegar a uma dimensão em que a linguagem não tem mais relação com designados, mas somente com expressos, isto é, com o sentido”. Deleuze, 1998, p. 27.


jogo. O rotulado não entendido. Tirar da arte a arte e suspender o cotidiano dentro do cotidiano, como o clown ou o bobo da corte que, pelo disfarce e pelo riso toca questões profundas que deixam nu o rei. Esforçando-se por mostrar a relação da teoria com a prática, De Certeau diz que não surpreende uma arte organizadora de discursos que abordem práticas em nome de uma teoria: “Se a arte de dizer é, em si mesma, uma arte de fazer e uma arte de pensar, pode 36 De Certeau, op. cit., p. 412.

ser, então, por sua vez, sua própria prática e sua teoria, também.”36 Assim, De Certeau propõe a narração como modo de tornar o texto, também, um tipo de ação e, mais, faz do relato seu veículo de transmissão. Para o autor, o relato “não se limita a expressar um movimento. O faz”. A narração, assim, seria portadora de mètis, condensando, em si, uma habilidade, uma sabedoria e um artesanato dos quais se vale Zeus, “para alcançar supremacia entre os deuses”. É um princípio de economia: com o mínimo de forças, obter o máximo de efeitos. Sabe-se que assim define-se a estética. A multiplicação dos efeitos através da diminuição dos meios é, por diferentes razões, a regra que organiza a arte de fazer e a arte poética de dizer, pintar ou cantar.37

37 Idem, ibidem, p. 416.

Canibalismos Da necessidade de “caracterizar um estado da arte brasileira de vanguarda”, Hélio Oiticica invoca Oswald de Andrade e sua questão da antropofagia cultural – da deglutição do colonialismo cultural – confrontando-a com a Arte OP e Pop dos EUA, para dizer que é preciso absorver definitivamente tais modelos culturais exógenos em uma “superan38 Oiticica, op. cit.: p. 85.

tropofagia”.38 Tal absorção irá acontecer, segundo Oiticica, no “projeto ambiental” Tropicália, em que afirma ser essa, a seu ver, “a obra mais antropofágica da arte brasileira”. Pondera que o problema da imagem, nesse trabalho, é universal, porém, problematizado “num contexto típico nacional, tropical, brasileiro”. Para Oiticica, Tropicália contribui para “a derrubada do mito universalista da arte brasileira, toda calcada na Europa e na América do Norte, num arianismo inadmissível aqui”. Para ele, “o mito da tropicalidade é muito mais do que araras e bananeiras (...) qualquer conformismo, seja intelectual,

39 Idem, ibidem: p.106 a 109.

social, existencial, escapa à sua ideia principal”.39 Assim, se Oiticica imprimiu na antropofagia oswaldiana o conceito de ‘superantropofagia’, não é de todo errado dizer que ela se transformou, nos tempos atuais, em canibalismo, uma vez que as cidades atuais se assemelham cada vez mais umas às outras, e o sentimento de perda de identidade torna-se presente onde a regra é o consumo. Pensar um outro cultural à medida que houve um rebaixamento geral da cultura pelo padrão imposto pela globalização das mercadorias, bens e serviços é, de certo modo, interceptar a ideia de antropofagia, uma vez que já não há mais o outro cultural para ser devorado.

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A diferença básica entre antropofagia e canibalismo, assim, é que a primeira requer rituais para sua celebração. Celebra-se o inimigo capturado que passará suas forças – físicas, genéticas e simbólicas – para a tribo inimiga. Ou seja, há toda uma circunscrição de cunho sociológico e antropológico da percepção ‘do outro’, que é totalmente ausente no canibalismo, em que se devora o inimigo por fome, simplesmente. A única resposta vem da reação do corpo. E um corpo violentado só pode responder com violência e urgência. Matando por um par de tênis. Insistentemente pedindo qualquer coisa nas ruas. Entupindo os bons modos burgueses. Metendo medo na classe média com sua boca grande e faminta. Subirats, em A penúltima visão do paraíso, discutindo memória e globalização, afirma, em respeito à diferença entre as duas formas de devoração, que Canibalismo é a palavra apropriada para definir esse gênero negativo de hibridização como usurpação e deformação, como consumo degradação e destruição, ou seja, o que o cristianismo fez primeiro com as filosofias e mitos pagãos das civilizações do mediterrâneo (um paradigma é santo Agostinho contra os maniqueus) e mais tarde com as culturas históricas da América.40

40 Subirats, 2001, p. 116.

O trabalho de Ronald Duarte capta esse estado de coisas. A instalação realizada no Museu Imperial, em Petrópolis, em 2007, intitulada Funk Proibidão da Coroa, é um exemplo de ‘arte canibal’. Tomando o que foi a sala de música do Palácio Imperial para constituir seu trabalho, Ronald colocou um aparelho de som reproduzindo um tipo de música que veio a ser nomeado “proibidão” – por fazer apologia às drogas, ou por ser contra a polícia, ou por ter apelos sexuais explícitos. Além disso, fechou suas janelas com impressões de imagens digitalizadas do Morro da Coroa, conhecida favela carioca dominada por traficantes, como se fosse a própria vista que pudesse ser contemplada, a partir daquele local. Ao relacionar um fato histórico com um contexto atual, o Proibidão da Coroa (como ficou conhecido), mais do que fazer uma denúncia explícita ou “crítica institucional”, aciona um dispositivo pelo qual não é mais o antropófago a devorar simbolicamente a força do inimigo, mas o miserável que, sem saída, age da forma como é tratado. Trata-se agora de ataque explícito contra o colonizador. Da devoração sem rituais. Come-se a galinha dos ovos de ouro no almoço sem saber se haverá ou não jantar. A operação conceitual se faz, então, do seguinte modo: se não somos dignos de esperanças futuras, nem merecedores das glórias conquistadas no passado, então só nos resta o que sobrou dos nossos dentes, ainda, para arrancar os pedaços da carne saborosa e macia da contemporaneidade. O trabalho de Ronald, assim, é respeitável exemplo de ato canibal puro e simples (se é que podemos falar em pureza e simplicidade) que responde aos discursos ambíguos do termo multiculturalidade, abocanhando o turista etnográfico desavisado, perdido na floresta de signos com sua lente de aumento para a leitura do exotismo tropical tupiniquim.41 O que Proibidão

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41 Montados nos bancos de trás dos jeeps que os levam para “conhecer” as favelas, gringos ganham uma opção a mais de turismo e adventures na Cidade Maravilhosa.


da Coroa faz é devolver, em um golpe seco e direto, a violência da exclusão construída 42 Partes refeitas desse texto podem ser encontradas em Façanhas cotidianas: Deu é amor. Sá, Rubens Pileggi, 2009, p. 96-111. Também disponível em: http://alfabetovisual. blogspot.com/2009/11/deu-e-amor.html 43 Disponível em: http://www.youtube.com/ watch?v=YyzWhUPzN-w&feature=related. Acesso em: 23.11.2009.

secularmente neste país.42 Outro trabalho que pode ser considerado ‘canibal’, porque dentro do registro de pensar história, cultura, sociedade e meio ambiente dentro do contexto nacional, como é o caso do carnaval, é CO2 CO2,43 de 2007, do artista Jarbas Lopes. Aqui, a fantasia e a arte fundem-se na catarse do corpo em movimento e nas paradoxais relações que o artista estabelece entre materiais orgânicos e inorgânicos. Sua alegoria é crítica, mas, da maneira como foi colocada na avenida, em uma das alas da Escola de Samba Mirim

44 Na canção “Rock-romance de um robô Goliardo”, de 1984, Belchior canta: “eu sou um antropófágo urbano, um canibal delicado na selva da cidade”.

Pimpolhos, da Acadêmicos do Grande Rio, torna-se divertida e doce.44 São dezenas de participantes seminus, todos cobertos de argila molhada, carregando uma imensa estrutura de isopor absolutamente branca, assemelhada a uma construção futurista ou a prédios de uma cidade que, no final da passagem pela passarela, é destruída completamente pelos componentes da ala, como se fosse uma luta entre aquilo que brota e aquilo que pousa na terra, alienígena e exótico. Em vez de trazer o ambiente tropical para dentro do museu, leva a indagação e a indignação das transformações culturais para o meio da rua. No confronto entre o bem e o mal, o fim de um é a aniquilação do outro, também, como a luz e a sombra, como Apolo e Dioniso. Pensando pelo viés da perspectiva canibal, podemos dizer que Eurípedes – acusado por Nietzsche de fazer uma opção contra Dioniso – não pode ser visto como o causador de uma metafísica racionada ou racionalizada, como diz Corrêa dos Santos, visto que no contexto de significação do canibalismo uma metafísica racionada não se sustentaria, já que a questão é carnal, física, direta. Certamente Nietzsche não chegou a conhecer um terreiro de candomblé, espaço em que adeptos das religiões africanas incorporam orixás, como talvez o fosse Dioniso, entre os gregos. Se tivesse, lembrar-se-ia que os orixás da cultura Ketu e Ioru-

45 Em palestra proferida em 1992, na Biblioteca Mário de Andrade, em São Paulo, o poeta Roberto Piva afirmou que “era Afrodite que descendia de Iemanjá, não o contrário”.

bá são anteriores aos deuses da mitologia grega.45 Se Descartes pode vir com Leminski, como vimos, então podemos convidar, também, Nietzsche, para o nosso carnaval, brindando-o através de mais um poema de Oswald de Andrade: Brasil O Zé Pereira chegou de caravela E preguntou pro guarani da mata virgem – Sois cristão? – Não. Sou bravo, sou forte, sou filho da Morte Teterê Tetê Quizá Quizá Quecê! Lá longe a onça resmungava Uu! ua! uu! O negro zonzo saído da fornalha Tomou a palavra e respondeu – Sim pela graça de Deus

46 Poesias do Pau-Brasil, 1924. Andrade, 1978.

Canhém Babá Canhém Babá Cum Cum! E fizeram o Carnaval46

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Nowhereman Ao desconstruir a relação de oposição simples entre tática e estratégia, no sentido de que

Imagens do álbum Nowhereman com figurinha e envelope, 2010.

a organicidade da primeira, ao infiltrar-se pelas estruturas da segunda, a modifica também, De Certeau observa que é a memória o meio de transformar a prática dos lugares, quando essa se “aproveita da ocasião”.47 Assim, aprofundando em sua busca epistemológica, fazen-

47 De Certeau, op. cit., p. 421.

do da memória o meio de transformar os lugares, “por sua capacidade de poder alterar-se: pode deslocar-se, é móvel e não tem lugar fixo”, diz que ela “vive de crer no possível e em esperá-lo, vigilante, com cautela (...) tomando sempre o lugar do outro, porém sem o possuir, tirando proveito dessa alteração, sem se perder”.48 Assim, para De Certeau, o mais

48 Idem, ibidem, p. 422.

estranho dessa memória é sua mobilidade “cujos detalhes jamais são o que são”, ou seja, um espaço de não lugar, “o modelo de uma arte de fazer, ou desta mètis que, ao aproveitar as ocasiões, não deixa de restaurar, nos lugares onde o poder se distribui, a insólita pertinência do tempo”.49 Nesse sentido, De Certeau defende a prática da retórica como uma

49 Idem, ibidem, p. 424.

“inteligência labiríntica” “como hipótese inicial, que na arte de contar, nas maneiras de fazer se exercem em si mesmas”.50 Era o que também propunha Benjamin, em O autor como

50 Idem, ibidem, p. 425.

produtor, mostrando, ambos, que a retórica não visa distinguir o verdadeiro ou o certo,

51 Benjamin, 1992, p. 141.

51

mas sim fazer com que o próprio receptor da mensagem chegue sozinho à conclusão de que a ideia implícita no discurso representa o verdadeiro ou o certo. A didática que se revela aqui é dada por conexões que cada leitor, em vez de remontar o texto, o discurso, ou mesmo o significado visual, usando a memória como ferramenta,

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dela não fará mais apenas um repositório para operações de lógica de encadeamento linear, mas, através de operações próprias ao bricoleur, poderá abrir e remontar tais conexões. Segundo Paula Berenstein Jacques, em Estética da ginga, apoiada em Lévi-Strauss, a poesia do bricoleur reside “na dimensão aleatória do resultado, sempre inesperado e 52 Jacques, op. cit., p. 25.

intermediário”,52 em efeito que “os surrealistas denominaram com felicidade (...) ‘acaso

53 Lévi-Strauss apud Jacques, op. cit., p. 25.

objetivo’”.53 Assim, não há resultados finais e dogmáticos, mas apenas interrogações e problemas à espera de refutação e discussão em vias de problematização dentro de registro retórico dado pela ambiguidade e definido quase sempre por aproximação. Sua meta, porém, é a multiplicidade das significações. O que acontece, então, é que o ‘sujeito da

54 Para melhor compreensão da expressão, indico o artigo Repersonalização, enfrentamento e reversibilidade, de Maria Moreira, sobre o trabalho de Ricardo Basbaum. Item.5, Rio de Janeiro, fevereiro 2002.

percepção’54 retira da leitura dos enunciados sua interpretação daquilo que lhe é comunicado – texto ou imagem – impondo-lhe um filtro, ou a uma máquina de desconstrução e posterior reconstrução de significados. Remonta a realidade a partir de seus próprios pressupostos, agora como ativo participante de uma ação que ele propõe realizar. Em texto de 1964, Oiticica ao se referir a seus “bólides”, designados por ele como ‘transobjetos’, afirma que há uma objetivação do objeto no contexto da obra de arte, “transportado do ‘mundo das coisas’ para o plano das ‘formas simbólicas’ (...) de maneira direta e metafóri-

55 Oiticica, op. cit., p. 63.

ca”.55 Dando como exemplo um objeto, uma cuba, de que ele se apropria para um trabalho de arte, torna mais clara essa operação que modifica a maneira de perceber, através do uso da memória como “meio de transformar a prática dos lugares”, ao considerar que não há na obra terminada uma ‘justaposição virtual’ dos elementos, mas que ao procurar a cuba e sua estrutura implícita, já se havia dado a identificação da estrutura da mesma com a obra, não se sabendo

56 Idem, ibidem, p. 64.

depois onde começa uma e onde termina a outra.56 Um trabalho que venho desenvolvendo desde meados de 2009 procura compor essas questões como meio de tanto desencadear uma posição política do artista no contexto de sua atuação quanto desenvolver uma linguagem poética. O foco de interesse recai sobre o debate das questões estéticas pertinentes ao discurso da arte contemporânea, naquilo que, ao delimitar seu campo como forma de se pensar, o faz em nome das possibilidades de troca com o campo da cultura. Assim, tomando a realidade do Rio de Janeiro, que contabiliza mais de duas mil pessoas morando nas ruas, principalmente no Centro e na

57 Dados da Secretaria Municipal de Ação Social, censo 2008. Disponível em: http://www. fomezero.gov.br/noticias/prefeitura-do-riocontabiliza-dois-mil-moradores-de-rua-na-cidade. Acesso em: 20.1.2010.

Zona Sul da cidade,57 procurei fazer dessa situação o material para criar um trabalho de arte que refletisse esse drama. Sem me colocar como denunciante de qualquer espécie de realidade, ao mesmo tempo cônscio do choque que a imagem de miseráveis causa, busco mostrar a história de pessoas condenadas a morar nas ruas. De fato, várias camadas de interesses se sobrepõem para a confecção do trabalho e uma curiosidade pessoal era saber o que uma pessoa sonha quando não tem mais nada a perder. O trabalho começou a ser realizado na forma de um protótipo para a impressão em série de álbum de figurinhas, tendo por tema uma situação de miséria que coloca milhares de pessoas nas ruas, sem moradia, sem dignidade, vivendo apenas daquilo que lhes dão.

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A ideia, então, era dar um lugar a quem não tem. Oferecer um espaço de visibilidade a “invisíveis funcionais”. Gente que não se conta nas estatísticas senão como problema. Que não é vista senão como lixo, incomodando, impedindo a passagem, sujando a cidade. Um álbum de figurinhas é um objeto irônico, porque colecionávamos figurinhas de nossos heróis, na infância: os jogadores Garrincha, Pelé, o astronauta Yuri Gagarin, o ator Francisco Cuoco, ou, então, carrões de corrida, presidentes do Brasil ou, mesmo, a natureza exuberante. Mendigos, porém, são anônimos, nada exemplares, são figuras tristes. Anônimos cuja invisibilidade torna-se arma de sobrevivência. Voltar-se para eles como assunto em lugares nos quais predominam celebridades, exuberâncias, belezas e ato de heroísmo, é inverter a posição do espelho – sempre posicionado para refletir a melhor das imagens que possuímos – zombando das aparências. Além disso, o título do trabalho, deslocando qualquer pretenso olhar ‘politicamente correto’ das intenções da obra é Nowhereman, que em português pode ser traduzido como ‘homem sem lugar’ ou ‘homem do aqui agora’. Realizadas a pesquisa e as entrevistas, o material fotográfico foi transformado em protótipo do álbum de figurinhas, sendo cada um dos cromos a se colar a imagem de algum dos personagens retratados. Essas imagens são coladas, então, em páginas ilustradas com lugares da cidade, como apartamentos-padrão; informações sobre a quantidade de moradias vazias; anúncios com o preço de aluguel para morar e outras informações e imagens sobre lugares e equipamentos imobiliários do Centro da cidade. Cada figurinha tem um número atrás que corresponde a seu lugar no álbum. As figurinhas coladas têm, a seu lado, as informações sobre a pessoa – nome, idade, tempo de moradia na rua, o que a levou para a rua – e, em destaque, parte da entrevista em que ela revela seu sonho. Nowhereman tem algo da leveza cruel de Yves Klein quando propõe pintar bombas (armas de guerra), em azul.58 Ou, Beuys, sugerindo subir mais cinco centímetros o Muro

58 Torres, 2008, p. 185.

de Berlim59 para configurar forma mais “harmônica”. Também propõe comprometida

59 Borer, 2001, p. 33.

‘indiferença’ entre o objeto – que é seu produto final – e seu objeto-tema, uma vez que joga os dados do acaso, cuja herança mais explícita vem do readymade. Mais, apropriase ironicamente da Pop quando se posiciona em relação a um problema social pungente e urgente que é relativo a uma luta “exterior” ao debate das proposições artísticas e formais. Dá a ser consumido aquilo que a sociedade gostaria de evitar reconhecer. Assim, utiliza elementos de massa (figurinhas), objetos industriais (serialização) e até o fetiche consumista que tem na língua inglesa seu produto mais caro, ao fazer de seu título um clichê ‘for export’. E mais: busca criar relações fora do circuito instituído da arte, friccionando a arte na vida e fazendo sua carne viva mostrar-se em sua violência cruel. Aí se coloca o interesse do trabalho. Ao criar relações de choque e tensões, não se utiliza de nenhuma consciência crítica como justificativa para se afastar do problema, como se esse tema não devesse ser explorado, também. Nesse gesto extremo, porém lúdico, obriga o espectador/leitor/consumidor a uma participação ativa na questão, perguntando-lhe, nesses casos, sobre a reação das pessoas diante da banalização da miséria às suas portas. Além disso, pensando a cultura como texto e a performance

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que o álbum de figurinhas obriga o participador a fazer, voltando seus olhos na direção horizontal, uma ideia que salta é a de que estamos todos mergulhados na mesma situação humilhante: contemplando a estátua que desce do pedestal com o “monumen60 Ruínas de Passaic, de Robert Smithson, as fotos de Rilke Kalbe, Lotes Vagos, de Louise Ganz e Breno Silva, e o projeto Descampado, de Lara Almárcegui podem ser pensados como exemplos de ‘monumentos horizontais’.

tos horizontais” e o mendigo caído no chão.60 Além de toda a justificativa conceitual, de todo o trabalho para realizar um protótipo, faltava, ainda, colocar a ideia em prática, isto é, produzir e fazer o álbum circular. Tive a felicidade, no entanto, de ver meu projeto ser contemplado com um prêmio de incentivo

61 No momento, aguardando o pagamento pelo prêmio (chamada pública n. 006/2010).

à produção artística, pela Secretaria Estadual de Cultura do Estado do Rio de Janeiro,61 e isso determinará um alcance que ainda não sei dimensionar. A ideia é que cada álbum seja distribuído gratuitamente e que as pessoas comprem as figurinhas, servindo o dinheiro obtido com as vendas para retornar ao Centro da cidade com vistas a – além de doar refeições aos moradores de rua, andarilhos e pedintes – desdobrar novas ações a partir da relação com o espaço público. Por essa via, o álbum de figurinhas Nowhereman alinha-se ao pensamento plástico produzido por artistas como Hélio Oiticica e a poéticas como a do artista Gordon Matta-Clark, nos anos 70, e Krzysztof Wodiczko, nos anos 80 e 90, entre muitos outros, sendo a transformação poética parte da luta pela transformação social. É possível, também, estabelecer relações com a obra Arco Inclinado, de 1981, de Richard Serra, pois a situação de incômodo causada pela chapa de aço instalada no meio de uma praça, em NYC, nos EUA, tem proximidade muito peculiar ao incômodo causado pelos próprios moradores de rua no Centro da cidade, só vistos como problema. E, embora a ideia do projeto tenha acontecido antes do boom dos álbuns de figurinhas da Copa do Mundo de 2010, de certa forma é ilustrativo ver como as pessoas são seduzidas por esse tipo de entretenimento. O fazer desse entretenimento uma ação de arte promove relações que se apropriam da herança antropofágica no sentido de se criar “outra perspectiva”. Ou, como coloca Pelbart, “O lado de fora é sempre a abertura de um futuro, com o qual nada acaba, pois nada nunca

62 Pelbart, 1998, p. 93.

começou – tudo apenas se metamorfoseia”.62

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Rubens Pileggi Sá (Bela Vista do Paraíso, Brasil) é artista visual, mestre em artes na linha de pesquisa Processos Artísticos Contemporâneos (IA/UERJ - 2010), sob orientação de Luiz Cláudio da Costa; graduado em licenciatura em Artes Plásticas pela Universidade Estadual de Londrina (2004). Escreveu no jornal Folha de Londrina de 1999 até 2007, assinando semanalmente a coluna “Alfabeto Visual”, sobre arte contemporânea. Autor do livro Alfabeto Visual, publicado em setembro de 2003. Idealizou e coordenou o evento “Arte em Circulação”, com patrocínio da Caixa Cultural, levando artistas do Rio de Janeiro para Curitiba para trocas sobre gestão autônoma e agenciamentos de circuitos – maio/2008. Gestor do projeto Documento Capacete 2009, de organização de arquivos da Residência Capacete, apoiado por edital da Secretaria de Cultura do Estado do Rio de Janeiro – março/julho 2009. Desenvolve atualmente pesquisa plástica em múltiplos meios, como vídeo, fotografia e ação urbana, a partir da realidade de andarilhos e pedintes do Centro do Rio de Janeiro. / pileggisa@gmail.com

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Arte e mediação: percepção requer envolvimento* Vera Rodrigues de Mendonça

Propõe uma breve história da mediação, observando que a relação do espectador com a obra de arte envolve mecanismos que foram determinados pela lógica orientadora da exposição dos objetos (que se vem diversificando ao longo do tempo). Tais mecanismos, hoje inseridos nos projetos curatoriais, reverberam na história de cada observador, gerando inúmeros significados nem sempre previstos pelas instituições e pelos artistas. Arte contemporânea, mediação, percepção. Todos os museus hoje ou têm headfone ou textos plotados nas paredes da sala expositiva. Mas o monitor, o educador ou mediador deve * Artigo recebido em agosto de 2010 e aceito para publicação em setembro de 2010.

ser menos a pessoa que transmita conteúdos acabados e mais alguém que estimule o público a estabelecer algumas relações de seu próprio

1 Cocchiarale, 2007, p. 15.

modo.1 Arte e percepção A história dos museus remontaria ao tesouro ateniense de Delfos, às

2 Bazin, 1967.

antiguidades gregas e ao Museu Alexandrino, segundo Bazin.2 Isso significaria dizer que a origem do museu estaria ligada ao museion e à pinakothéke. O primeiro era o local onde se reuniam os conhecimentos da humanidade, a segunda, o local onde se guardavam as bandeiras, os quadros, os mapas e as obras de arte. Tanto a reunião de conhecimentos como a de objetos originaram os tesouros, que, por sua vez, eram divididos em: tesouros eclesiásticos – na Igreja, era o lugar de estudo e de conservação dos conhecimentos humanos; tesouros reais – nas cortes, que eram considerados os centros das relações internacionais; e gabinetes de curiosidades – para a rica burguesia e os aristocratas cultos, que, em última instância, possuíam o privilégio de transmitir os conhecimentos e a cultura. No século XVIII foram criadas as instituições museológicas que, depois de certo tempo, passaram a ser abertas para visitação pública em determinado horário na semana. A partir dos séculos XIX e XX, os museus se abriram definitivamente ao público. Museu vem da palavra grega museion, que era o nome do templo de Atenas dedicado às musas. No século III a.C, o vocábulo passou a denominar o conjunto de prédios construídos

Antoni Muntadas. Atenção, 2002, serigrafia (5/22), 66,5 x 102cm Acervo da Fundação Vera Chaves Barcellos. Fonte: Material Pedagógico 2008 para o professor. Fundação Bienal do Mercosul.

em Alexandria composto por uma biblioteca, um anfiteatro, um observatório, salas para estudo, um jardim botânico e um zoológico. Na Grécia, no século V a.C, o lugar em que se guardavam as pinturas de artistas era denominado pinacoteca.

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A ideia de colecionismo teria sido desenvolvida pelos romanos que, para ampliar seu império, travavam batalhas e saqueavam as cidades derrotadas. Foi por esse caminho que as obras gregas preencheram os espaços de templos romanos, formando coleções que davam orgulho aos imperadores de Roma. Na Idade Média, a maior parte das coleções formadas pelos romanos teria permanecido sob a responsabilidade da Igreja, apesar de alguns reis amantes da cultura constituírem suas próprias coleções de arte. Em festas e banquetes, esses reis costumavam mostrar os objetos de suas coleções a seus convidados. As coleções reais se ampliavam em função das pilhagens nos povoados derrotados nas batalhas expansionistas do império. Verifica-se no Renascimento o aumento do desejo pelo colecionismo de obras de arte. Algumas famílias importantes ficaram conhecidas devido a suas coleções, como, por exemplo, os Médici e os Strozzi, que construíram, em seus palácios italianos, salas especiais para abrigar suas coleções artísticas. Foi em Viena, no entanto, que surgiu um local específico para guarda das obras de arte na concepção atual de museu. O Museu de Viena foi fundado pelo arquiduque Leopoldo Guilherme e para lá migraram as grandes coleções reais que foram abertas ao público, em 1783, por ordem do imperador José II. É importante frisar que já havia sido criado o hábito de comprar obras de arte com a nomeação de pessoas responsáveis por essa tarefa. Em 1649, por exemplo, o pintor Velázquez foi contratado pelo rei da Espanha para ir à Itália comprar as obras que são a base do acervo do Museu do Prado, em Madri, e que foi construído, em 1785; em 1868 suas coleções deixaram de ser propriedades reais para se tornar nacionais. Aos museus de Viena e do Prado, seguiram-se outros, como, por exemplo, o Louvre, aberto ao público como Museu da República em 1793; o Museu Britânico, em 1847, o Cluny, na França, em 1843, e o de Leningrado, em 1852. Apesar de alguns pesquisadores que analisam a história dos museus afirmarem que o museu moderno teria começado nos “gabinetes de curiosidades”, Douglas Crimp3 combate essa ideia, argumentando que há enorme diferença entre o que teria originado os museus e os gabinetes no que diz respeito à seleção dos objetos e ao método utilizado para classificá-los. O “gabinete de curiosidades”, surgido no final do Renascimento, não poderia ser a gênese do museu moderno só pelo fato de alguns de seus objetos se terem espalhado pelos museus etnográficos, pelos de história natural, artes decorativas, armas e armaduras ou, em alguns casos, de arte. O materialista histórico encara [os tesouros culturais] com um distanciamento cauteloso. Pois os tesouros culturais que ele observa têm, sem exceção, uma origem que ele não pode contemplar sem se hor-

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3 Crimp, 2005.


rorizar. Devem a sua existência não apenas aos esforços das grandes cabeças e dos grandes talentos que os criaram, mas também às dores anônimas de seus contemporâneos. Não existe nenhum documento da civilização que não seja ao mesmo tempo um documento da barbárie. E, do mesmo modo que um tal documento não está livre da barbárie, a barbárie também contamina o modo como ele foi transmitido de um proprietário para outro.4

4 Benjamin apud Crimp, op. cit., p. 208.

A partir do início do século XIX, os europeus exportaram essas instituições para outros países, principalmente os colonizados, levando com elas suas metodologias de análise dos fenômenos e dos patrimônios culturais e, dessa forma, impondo, às elites e às populações locais, a observação de suas culturas sob o ponto de vista europeu. Durante o processo de rompimento dos laços colonizadores, os regimes trataram das questões políticas em detrimento das questões culturais, que permaneceram orientando os padrões de produção e consumo – sobretudo os museus, que deram continuidade a suas atividades nos esquemas originais, afirmando a hegemonia europeia nos países agora independentes politicamente. Os museus se consolidaram como instituições de coleções, conservação, apresentação e educação no sentido mais didático da palavra, mantendo-se o público inerte na relação com as obras. As exposições de arte cumprem, desde o primeiro Salão de Paris, em 1737, o papel de aproximar as produções artísticas e o público, independentemente da qualidade desse público. Antes disso, porém, os proprietários de acervos já desejavam mostrar suas coleções, gerando alguns tipos de mostras que limitavam o privado e o público. Por questões impregnadas de demonstrações de poder social, econômico ou cultural, a exposição deste tipo de bem − obras de arte − denotava caráter elitista que ressoa até os dias de hoje. A elitização de ideias é prática presente em qualquer sociedade, haja vista que um grupo − pequeno −, ocupando a parte superior da pirâmide social, detém o conhecimento e a força que alinham e conduzem as diretrizes da comunidade. Com as artes não é diferente. Ainda no tempo em que arte e artesanato eram prática única do fazer manual, o mestre transmitia conhecimentos a seus aprendizes, e seu valor era atrelado a sua condição técnica e política na sociedade em que estava inserido. Não é assim ainda hoje? Respeitandose as devidas proporções contextuais, históricas e sociais, encontra-se uma hierarquia na produção artística que está rotulada por outros termos e critérios. Se antes os museus eram construídos no Centro das cidades como importantes marcos de desenvolvimento cultural, no século XX, sobretudo a partir da Segunda Guerra Mundial, esse conceito se alterou sob a alegação da preservação das obras. Os museus se encaminham para a periferia das cidades, visando à proteção de seus acervos da contaminação

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atmosférica e do ruído. Eles se convertem em centros culturais, criando espaços de convivência para seus visitantes descansarem e conversarem, além de atividades educacionais que priorizam a formação de seu público. A arquitetura dos edifícios é pensada em sua relação com a natureza do entorno, utilizando materiais que explorem essa relação, como também os espaços internos possuem outros critérios para suas organizações e ambientações que estimulem a presença e as percepções dos visitantes, apesar de ainda serem vistos vestígios da arquitetura de seus antecessores. Mediação e envolvimento O teor educacional começou a ser repensado entre as décadas de 1980 e 1990, apesar de encontrarmos algumas tentativas sem muito sucesso em décadas anteriores. A partir desse período, parece que as palavras de Paulo Freire5 serviram de base para as reflexões

5 Freire, 2001, p. 259-268.

das instituições museológicas quanto ao público com o qual elas se relacionavam. O pensamento de conscientização, que transformaria o homem-objeto da sociedade de consumo em sujeito apto a relações ativas e reflexivas, começou a ganhar espaço e a se fortalecer porque os museus notavam que se deveriam adaptar às produções que estavam sendo realizadas, bem como às novas relações que se estabeleciam com seu público.6 Na década de 1970, Hugues de Varine-Bohan, na época diretor do Conselho Internacional de Museus − Icom, incomodava-se com a passividade na relação entre museus e público: O museu como finalidade, o museu como objetivo é a universidade

6 As transformações ocorridas nos processos artísticos requisitavam novos modos de conservação e exposição das obras nos museus. Como também, entendendo o público em seu teor heterogêneo, esses processos buscavam relações mais reflexivas com ele, além de convidá-lo a participar de suas produções. A arte, ao se constituir como um agente de mediação, cria um campo relacional em que ela é o núcleo da ação.

popular, a universidade para o povo através dos objetos. O que em uma universidade normal é a linguagem das palavras e, em última instância, a linguagem dos signos escritos, no caso do museu, converte-se em linguagem dos objetos, do concreto.7 A busca atual, de acordo com as ações e os discursos de vários setores da produção artística, em direção a uma democratização da arte, incluindo as várias ações educativas, é uma tentativa de tornar menos vertical a pirâmide social, aumentando o contato entre seus vários setores e a circulação de pessoas e bens culturais entre eles. Para que uma coleção venha a público, algumas atividades devem ser pensadas. A exposição pode ser vista como ato de comunicação com o público e, em função disso, precisa se conectar com ele de alguma maneira. A conexão se dá por intermédio dos artifícios utilizados para a exibição das peças, desde sua seleção, montagem, iluminação até a divulgação da mostra. O chamamento do público induz a um ato de mediação que não é puro, mas carregado de intenções dos organizadores da exposição. Eles fazem propostas de temas, organizações espaciais que levam a mecanismos que ativem a relação dos objetos expostos com o público que os irá visitar.

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7 Varine-Bohan, Hugues. Apud Salvat, 1973, p, 19. Entrevista. El museo como finalidad, el museo como objetivo, es la universidad popular, la universidad para el pueblo a través de los objetos. Lo que en una universidad normal es el lenguaje de las palabras y en última instancia el linguaje de los signos escritos, en el caso del museo se convierte en el lenguaje de los objetos, de lo concreto.


O modo de exposição das peças foi uma preocupação desde as primeiras mostras que, além de permanecer até os dias de hoje, desenvolveu metodologias e disciplinas que investigam os vários aspectos da questão. Desde o século XVI e até meados do XIX, a ordenação das peças era praticamente nenhuma. Juntavam-se pinturas e gravuras em uma mesma parede, cobrindo-a totalmente, e ainda misturavam-se outros tipos de objetos sem a preocupação de classe, período ou estilo. Em 1793, com a nacionalização e exposição das coleções reais no Louvre, em Paris, a imprensa protestou sobre o modo como as peças eram apresentadas. Em 1799, foi adotada a ordenação cronológica, apesar de ainda se manter a mistura dos objetos. Em 1810, as pinturas apareceram isoladas das outras peças do acervo, mas foi somente em 1851 que os pintores do Renascimento italiano conquistaram um espaço em destaque no Louvre. A partir de 1902, a maioria dos museus europeus iniciou um processo de exposição de suas obras organizado por épocas, estilos, linguagens e, até mesmo, artistas. O apuro com as montagens foi-se aperfeiçoando a ponto de aparecerem, então, os museus com características específicas para atender a determinada época, estilo, linguagem ou artista. Tudo era feito em prol de uma melhor percepção das obras e uma consequente preocupação com os aspectos e as circunstâncias que iriam mediar tal percepção. Daí o surgimento da museologia, uma disciplina específica que, além de outras atividades envolvidas na existência de um museu, estudaria os vetores que deveriam estar presentes na mediação das relações com as peças expostas a fim de se atingir um determinado objetivo. A apresentação das peças começou a seguir, desde então, determinadas regras básicas que ainda são discutidas nos projetos de museologia, como, por exemplo, a disposição dos quadros na parede quanto a sua distância do chão ou de seu vizinho para que não ocorram interferências indesejáveis em sua percepção; a obra mais importante dever ficar no centro do espaço e, se ela for de pequena dimensão, usar recursos que chamem a atenção do espectador para ela, como iluminação, por exemplo. Mesmo com a preocupação de criar modelos expositivos mais receptivos, ocorre um declínio de público nos museus de um modo geral. Claro que muitos foram os fatores e as 8 Mota, 2007, p. 15.

circunstâncias que estiveram presentes nesse processo de esvaziamento. Segundo Mota,8 De fato, os museus de todos os tipos constatarão, no início do século XX, uma diminuição − ou pelo menos um não crescimento − do seu público, e transformarão as maneiras de apresentar suas coleções muito em função das experiências desenvolvidas nas exposições não vinculadas a essas instituições. É a partir daí que se definem conceitualmente estratégias e objetivos nesse tipo de organização, considerando-se as exposições não só como um meio para transmissão de ideias, mas também como um mercado em desenvolvimento.

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A instituição museológica entrou em crise física e ideológica, principalmente, a partir dos anos 60 e foi nessa época que os museus e as instituições afins se envolveram na difusão da arte para as periferias, na tentativa de ampliar seu público e o “entendimento” das produções que estavam acontecendo. Seriam os movimentos democratizadores aos quais Canclini9 se refere quando destaca duas questões quanto à recepção das obras de arte:

9 Canclini, 2008, p. 135.

“uma prática: é possível abolir a distância entre os artistas e os espectadores? E outra estética: têm valor as tentativas de reestruturar as mensagens artísticas em função de públicos massivos?” Essas questões, segundo o autor, seriam uma simples avaliação das conquistas que tais movimentos democratizadores poderiam ter alcançado. Em sua opinião, as linhas das respostas a essas questões se estabeleceram “com mais propostas políticas e ensaios voluntaristas [do] que com elaborações teóricas e estéticas”. Uma das respostas foi a contextualização pedagógica que entendia ser necessário dar conhecimento ao público das referências contextuais das obras expostas, bem como os espaços expositivos conterem informações suficientes sobre as exposições, além de “visitas monitoradas”. Os museus se encheram de cartazes instrutivos, sinais de trânsito, visitas monitoradas em vários idiomas. Baseados na muito considerável tese de que todo produto artístico está condicionado por um tecido de relações sociais, a museografia, os catálogos, a crítica e os audiovisuais que acompanham as exposições devem situar os quadros e as esculturas em meio a referências contextuais que ajudariam a entendê-los.10

10 Idem, ibidem, p. 136.

Essa ação teria sofrido “dois tipos de críticas, uma que podemos chamar de ‘culta’ e outra de democrática”. A crítica culta ponderava que as ações didáticas poderiam reduzir a obra ao contexto, levando-a a perder sua relação empática com o espectador. A crítica democrática propôs “arrancar as obras dos museus e galerias para levá-las a espaços dessacralizados: praças, fábricas, sindicatos”.11 Entretanto, alguns artistas e sociólogos rebateram

11 Idem, ibidem, p. 137, grifo do autor.

essa ideia porque determinadas obras seriam executadas para lugares específicos e, fora desses lugares, sofreriam interferências de um público que estaria ali por outros motivos e não pelas experiências estéticas. “Os artistas notaram que, se quisessem se comunicar com públicos massivos nas cidades contemporâneas, saturadas de mensagens de trânsito, publicitárias e políticas, era melhor atuar como desenhistas gráficos.”12

12 Idem, ibidem, p. 138.

Outra linha de respostas pensou na promoção de “oficinas de criatividade popular”.13

13 Idem, ibidem, grifo do autor.

Além do conhecimento sobre a obra de arte, seria dado também o conhecimento sobre a produção artística. Tratava-se de “devolver a ação ao povo”, não popularizar apenas o produto, mas os meios de produção. Todos chegariam a ser pintores, atores, cineastas. Ao ver murais das brigadas chilenas, peças teatrais

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de participação dirigida por Boal no Brasil e na Argentina, por Alicia Martínez no Teatro Camponês de Tabasco no México, os trabalhos dos colombianos Santiago García com La Candelaria e Enrique Buenaventura com o Teatro Experimental de Cali, os filmes de Sanjinés e Vallejo, comprovamos que amadores podem produzir obras valiosas sem passar por dez anos de formação artística.14

14 Idem, ibidem, p. 138-139.

15 Idem, ibidem, p. 139.

Canclini,15 no entanto, aludindo às oficinas de criatividade popular, questiona se a qualidade das obras ali produzidas não estaria condicionada ao modo como os artistas passavam o conhecimento. Além de detê-lo com segurança, eles teriam a simpatia do público e saberiam como conduzir a aprendizagem. Esse questionamento parte da observação do autor de que, após os anos 60 e 70, período em que houve a proliferação dos movimentos democratizadores, essas experiências teriam “(...) empobrecido em número e qualidade, sem produzir em nenhum país a dissolução do campo artístico em uma criatividade generalizada”.

16 Crimp, op. cit.

Crimp16 remete o afastamento do público às transformações ocasionadas nas produções das obras de arte na contemporaneidade, responsáveis, de certo modo, pelo surgimento

17 Canclini, op.cit.

dos movimentos democratizadores citados por Canclini.17 Sobre a obra minimalista, Crimp argumenta que seu significado estaria relacionado ao local de exposição − “especificidade de espaço” −, alterando, desse modo, sua relação com o espectador. Ou melhor, se o significado da obra dependia do local de onde era percebida pelo espectador, este se tornava figura importante no tripé de sustentação museográfica: artista-obra-público. Crimp usou o minimalismo como exemplo dessas transformações porque, na mesma época das produções minimalistas, outras produções em diversas tendências também aconteciam e possuíam o mesmo perfil: o embate com o público. William Rubin, curador norte-americano que foi diretor do Museum of Modern Art − MoMA, responsável por suas seções de pinturas e esculturas, foi acusado por alguns críticos de ter imprimido à instituição forte teor modernista durante sua atuação, nos anos 70 e 80. Em entrevista à revista Artforum, em 1974, ele falou sobre o museu como um aporte mediador entre as burguesias democráticas e o público para que este aceitasse o que as elites determinavam como arte quando faziam seus investimentos no setor. Contudo, essa situação estaria mudando, o que tornaria os museus sem valor diante da produção contemporânea. Ao olhar para trás daqui a dez, 15 ou 30 anos, pode ser que se tenha a impressão de que a tradição modernista tenha verdadeiramente chegado ao fim nestes últimos cinco anos, como opinam alguns críticos. Se assim for, os historiadores de daqui a 100 anos − não importa o nome que deem ao período que agora chamamos de modernismo − dirão que ela começou logo depois da metade do século XIX e terminou no início

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da década de 1960 (...) Talvez se considere que a linha divisória seja entre as obras que basicamente deram continuidade ao conceito de pintura de cavalete, que se desenvolveram associadas à vida democrática burguesa e que estavam envolvidas tanto com o crescimento das coleções privadas como com o conceito de museu − entre isso e, digamos, a earthwork, as obras conceituais e outras tentativas do gênero, que pedem (ou deveriam pedir) outro ambiente e, talvez, outro público.18

18 Rubin, William apud Crimp, op. cit., p. 80.

A questão mais presente aqui é a adaptação dos museus à exposição da arte contemporânea. Essas instituições deveriam preparar-se para receber e expor obras de arte que, de uma maneira ou de outra, lidavam com a liberdade de expressão, mostrada muitas vezes em contestações e conflitos com o próprio sistema e circuito de arte, que depois iriam cooptar essas mesmas obras. Não há dúvidas de que os espaços ditos tradicionais para as exposições de arte teriam de se movimentar na mesma direção das produções que aconteciam a partir de meados do século XX. Na impossibilidade de certas adaptações, as galerias privadas começaram a suprir essa demanda, mas enfatizando um caráter diferenciador no público que consumia arte. Não são todos os setores sociais que frequentam galerias de arte, como também nem se sabe se isso interessava a elas. Ainda sobre o aumento do distanciamento entre o público e os museus, Crimp19 alega que

19 Crimp, op. cit.

os museus ofereceriam ao público uma história cultural que se contraporia ao materialismo histórico, como expunha Walter Benjamin. Benjamin defendia uma coleção de objetos que, retirados de seus contextos, fossem recondicionados de tal forma, que dialogassem com a percepção política do momento. Não haveria estagnação histórica para os objetos, que permitiriam o envolvimento histórico com eles a partir dos diálogos e das relações com o momento presente de sua nova condição de coleção. O contrário se daria nos museus, com os objetos sendo arrancados de seus contextos e acondicionados em outros que os tornariam independentes tanto de sua história como de seu presente. O museu construiria uma história cultural para aquele objeto. O historicismo apresenta uma imagem eterna do passado, o materialismo histórico um envolvimento particular e único com ele... A tarefa do materialismo histórico é pôr em marcha um envolvimento com a história que seja original a cada novo presente. Ele recorre a uma consciência do presente que destrói o continuum da história.20 Essa situação, no entanto, parece estar mudando diante das várias tentativas de aproximação com o público que as instituições museológicas implementam com suas ações educativas. A organização das mostras, por meio de projetos curatoriais ou não, implica o uso de várias ferramentas responsáveis pela mediação de público e obras.

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20 Benjamin, apud Crimp, op. cit., p. 181182.


Material pedagógico referente à exposição Diário de bordo: uma viagem com Leonilson, realizada no Espaço Cultural Unifor, da Universidade de Fortaleza, de 11 de fevereiro a 15 de março de 2009

Arte e envolvimento Em 1981, Richard Serra produziu uma escultura sob encomenda do Programa Arte na Arquitetura da Administração Geral de Serviços da cidade de Nova York. Arco Inclinado, feito em metal, com 3,6m de altura e que alterava sua visibilidade de acordo com o tempo climático, foi instalado em caráter permanente na praça do Edifício Federal Jacob K. Javits, na zona sul de Manhattan. A instalação da obra, entretanto, não foi bem vista por todos e causou grande polêmica acerca do local de exposição. Sob a alegação de perturbar o trânsito das pessoas, intervir na visão e nas funções sociais da praça, a questão foi parar na justiça. Serra foi o primeiro a dizer que, se a obra saísse da praça, ela seria destruída. Testemunhos de artistas, de funcionários de museus e outras pessoas a favor da obra não conseguiram alterar a decisão de levar a obra para um contexto rural, onde “o entorno não se sentiria tão esmagado por seu tamanho, e sua superfície de aço cor de 21 Crimp, op. cit., p. 135.

ferrugem estaria em maior harmonia com as cores da natureza”.21 Diante do fato, percebe-se que a conexão da obra com o local não se assumia como condição de existência da obra, tida como autônoma e imunizada contra qualquer valor que pudesse interferir em sua condição de obra de arte. Tanto fazia se o Arco inclinado de Serra estivesse no meio da praça ou na zona rural, porque continuaria sendo o Arco inclinado.

22 Idem, ibidem.

Vê-se, a partir da discussão de Crimp22 sobre o minimalismo, quando o autor se refere à “especificidade de espaço”, que a situação do espectador tinha sido alterada consideravel-

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mente frente a essas novas experimentações artísticas. Sua percepção não estava ligada apenas ao objeto, como pretendiam as exposições modernistas. A limpeza dos cubos brancos, lembrando-nos de O’Doherty,23 não faz mais sentido porque a percepção de arte

23 O’Doherty, 2002.

agora convoca, em um receptor ativo, outros sentidos e outras sensações para acontecer, além de considerar fatores externos ao objeto de arte. A alteração do espaço em que a obra foi instalada ou do qual o espectador percebe a obra modifica a relação entre os dois e cria outras obras. Foi o que aconteceu com o trabalho de Richard Serra, cujo deslocamento da praça em que havia sido instalado originalmente não estava previsto em seu projeto. Arco inclinado foi feito para ser instalado em um lugar específico desde sua concepção. A mudança do local de instalação levou também à mudança de contexto, e, consequentemente, criou-se outra obra. No entanto, as pessoas, mesmo aquelas pertencentes ao grupo do público especializado, mantinham a concepção modernista de exposição das obras, que não levava em conta o contexto para o qual o artista trabalhara. Ao mesmo tempo ficou claro que os espaços institucionais em que a arte era exposta, substitutos do domicílio privado, determinavam, confinavam e limitavam drasticamente as possibilidades da arte. À época em que instalou essas últimas obras em galerias comerciais e museus, Serra já havia transferido grande parte de suas atividades externas para os espaços abertos do campo e da cidade. A evidente ‘falta de cabimento’ das obras expostas em recinto fechado, espremidas no interior de salas brancas limpas, impõe, dentro dos limites do espaço normalmente privado, as condições de uma verdadeira experiência 24 Crimp, op. cit., p. 143.

pública com a escultura.24 Há muitas coisas envolvidas nas relações entre público e obra de arte, além do conhecimento de técnicas ou de produção. Trata-se de assunto cujo debate é contínuo e sem respostas objetivas ou ações definitivas, o que se evidenciou nas atividades citadas por Canclini25 referentes aos movimentos democratizadores e em suas perguntas sobre a recepção das obras de arte. Mediação e percepção Em busca das respostas que atravessam a complexa relação da obra com o espectador, os museus e outras instituições afins experimentam várias maneiras de trazer o público para dentro de seus espaços, sobretudo os museus mais conhecidos, que são reféns da massa de turistas que compõe suas estatísticas de visitação. Contudo, até esses se incomodam com a passividade de seus visitantes e ampliam seu papel na sociedade, colocando-se como intérpretes de suas comunidades e educadores de um público que desejam mais informado e formado também quanto a sua condição de agente cultural. Dessa forma, são criados espaços para oficinas, seminários, projeções de filmes e vídeos, bibliotecas

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25 Canclini, op. cit.


multimídias, elaboração de material didático e preparação de mediadores mais alinhados com as questões contemporâneas. A crise que chegou aos museus os despertou para novas experiências que valorizassem suas existências, principalmente no que diz respeito a seu teor pedagógico e à intensificação das relações público/museu por meio do entendimento da importância dos mecanismos de mediação presentes nessas relações. As pesquisas realizadas sobre a função e o papel dos museus e das instituições afins recaem quase sempre nos vários aspectos de dimensão pedagógica, ou seja, na formação de público ou de profissionais relacionados aos setores da produção artística. Todavia, a preocupação com a formação não é tão recente assim. O Museu do Louvre, em Paris, foi pioneiro na criação, em 1880, de serviço permanente de educação. Entre 1914 e 1918, o Museu Vitória e Alberto, de Londres, desenvolveu material didático sobre suas obras para ser distribuído aos estudantes que o visitavam. Os Estados Unidos fizeram grande investida educacional em seus museus a partir de 1920 e, em 1960, eles já possuíam 35 museus com atividades permanentes de atendimento a estudantes, enquanto, na Europa, esse número girava em torno de uma dezena. No Brasil, apesar de atividades educativas 26 Na década de 1950, os recém-criados Museu de Arte Moderna − MAM e Museu de Arte de São Paulo − Masp, como também as primeiras bienais, já possuíam a figura de monitor ou guia para as visitas.

já fazerem parte de algumas instituições museológicas desde meados do século XX,26 foi a partir da década de 1990 que a mediação começou a ter sua devida importância, junto com a função do arte-educador. Concomitante à ocorrência em maior escala das atividades educativas no final do século XX, aparecem inúmeras instituições culturais − centros culturais −, muitas vezes, fazendo o papel dos museus quando organizam mostras temporárias. Também surgem novos museus com especificidades bem delineadas que orientam suas coleções como aporte para a segurança de um passado nem tão distante assim, mas já exposto pela velocidade com a qual o presente se esvai. A existência desses locais, contudo, não assegura a permanência do passado entre nós se o público não tomar conhecimento de seus acervos. Com o apelo do resgate à memória, da aproximação de arte e público, são pensadas várias estratégias para a formação desse público, além de sua convocação pelos vários meios utilizados na organização das mostras e em sua divulgação. São requisitados profissionais para atuar nas diversas áreas que compõem os projetos dessas atividades, movimentando um setor cultural que estava um pouco estagnado desde o modernismo. Enfim, a preocupação com a função pedagógica das instituições culturais voltadas para as artes visuais tem-se ampliado com a perspectiva de uma sociedade cada vez mais inclinada ao consumo mediado pela tecnologia que impõe velocidades excessivas às comunicações e às informações. Arte e mediação

27 Canclini, 2007, p. 228-229.

Segundo Canclini,27 os meios de comunicação e as tecnologias informáticas facilitaram o acesso aos conhecimentos científicos em escala transnacional. O Estado teria perdido sua competência em gerir saberes que comporiam “formas de representação e imaginários

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sociais”. Na tendência geral, sugere o autor, as empresas transnacionais pareceriam ser as promotoras da gestão cultural, o que as tornaria responsáveis pela tendência homogeneizante dos mercados, apesar de serem respeitadas algumas características específicas de cada grupo por conta do atendimento às demandas mercadológicas. Podemos citar, no Brasil, o caso dos grandes patrocínios que envolvem empresas como a Petrobras, por exemplo, ou de programas de incentivo à produção artística, como o Rumos do Itaú Cultural. A privatização cultural tende a aliciar o público para um consumo passivo, legando-se uma arte como mercadoria tendenciosa da manutenção de seu circuito mercadológico. Crimp28 fala da situação dos museus de uma maneira muito parecida com o método ten-

28 Crimp, op. cit., p. 147.

dencioso do mercado: O museu, contudo, baseado na benevolência de sua neutralidade, simplesmente substitui o conceito comercial de mercadorias privadas da galeria por um conceito de expressão privada ideologicamente constituído. Pois, o museu, enquanto instituição, foi constituído para produzir e manter uma história da arte reificada que se baseia em uma série de mestres, cada um deles apresentando sua visão de mundo particular. Martín-Barbero,29 citando Nestor Canclini, expõe como as demandas mercadológicas agiriam sobre a relação mercado/consumo. O espaço no qual o consumo se constituiria como “reprodução de forças” seria o mesmo em que se instauraria uma “produção de sentidos”. Nesse espaço transformado em campo de batalha, os objetos – obras de arte – não seriam importantes apenas por seu significado, mas pelas apropriações que os impregnariam de sentidos pelas “diversas competências culturais”. Tal batalha minimizaria, então, o fator de homogeneização que as empresas transnacionais tenderiam a imprimir no mercado cultural. O marketing cultural, continua o autor, propiciaria a espetacularização das exposições que enchem as galerias. As relações perceptivas com as obras seriam mediadas por um aparato repleto de signos. Seriam os signos presentes nos produtos desenvolvidos para alimentar o marketing cultural que permeariam essas mediações, além da própria organização das exposições com todos os seus mecanismos mediadores. Os signos − nomes de artistas famosos, principalmente − trabalhariam em uma rede de significados que criaria e desenvolveria a necessidade de todos irem às exposições. A arte também possui sua rede simbólica criada por sua relação com o espectador. Os signos ganham seus significados com base em acordos sociais que nem sempre contemplam todos os setores da sociedade, mas que são mediados por todas as estruturas que interagem na existência da arte. É nesse ponto que o marketing cultural encontra sua

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29 Martin-Barbero, 2008, p.292.


fragilidade quanto à entrada de sua carga simbólica na existência da obra de arte. Ele se confronta com as significações da própria obra. De uma maneira ou de outra, como a arte se conecta com o público por várias vias permeadas pela significação elaborada por sua rede simbólica ou pela significação originada pela rede simbólica do marketing cultural, a presença massiva de público obtida pela espetacularização não deve ser considerada ponto negativo. Ela pode ser tratada como mais uma tentativa de ampliar as relações que incrementam a vivência da obra de arte e as experiências do espectador, o que já serve como garantia de resistência a um consumo alienado. 30 Idem, ibidem.

Ao falar sobre o marketing cultural, Martín-Barbero30 o faz em tom de certo modo pessimista quando discorre sobre o modo espetacular que envolve as mostras de arte. A presença do público já se constitui como importante acesso às relações perceptivas com a obra. Considerando-se que as redes simbólicas são os aparatos que contribuem para a organização dos grupos sociais, elas estão em constante movimento de adaptação às novidades, criando a dinâmica necessária para absorver novos códigos e alinhar os existentes. Talvez, por esse caminho − o marketing cultural como meio também de disponibilizar códigos para novos significados – possam ser reveladas interessantes possibilidades de novos públicos para as obras de arte, mesmo que elas estejam fora do que alguns chamam de compreensão. Mediação: percepção e envolvimento Em virtude das circunstâncias expressas até agora, não restam dúvidas sobre a importância da presença de agentes e de setores específicos para a educação ou formação de público no circuito de arte. Hoje as exposições são organizadas por curadorias preocupadas com o cunho pedagógico de seus projetos. A museologia busca a contextualização ou ambientação para as obras de arte, além de haver a preocupação, principalmente dos artistas, com ações que visem à presença ativa de público. O caráter educacional é colocado como linha de frente na existência das instituições culturais, valorizando-se as relações que envolvem a comunicação entre obra e público. A presença de ações educativas está tão forte nas instituições culturais, que ela acaba fazendo parte dos discursos de publicidade das mostras permanentes e temporárias. Por questões que podem envolver a responsabilidade social como valor agregado ao produto final de um projeto ou a marca de uma atitude politicamente correta em tempos contemporâneos, qualquer que seja a exposição ou a instituição cultural, ela mantém atividades educativas em seus espaços. A elaboração dos projetos pedagógicos envolve profissionais de várias áreas do conhecimento que buscam estratégias para a aproximação efetiva de obra de arte e público. São pensadas inúmeras atividades e conceituações que despertem o caráter educacional da

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Material de divulgação das atividades do Museu Victor Meireles, em Florianópolis, Santa Catarina.

exposição e que atendam à maior diversidade possível de público, sempre buscando ativar os mecanismos já existentes em todo o processo criativo tanto da obra como do projeto curatorial da mostra. O papel do curador fortalece o processo de chamamento e formação de público. Suas ações abrem possibilidades de aparecimento das circunstâncias mediadoras que envolvem a exposição. É interessante notar que a presença de um curador pedagógico já pode ser vista em algumas organizações ou comissões curatoriais, o que demonstra que o principal agente de uma exposição, na atualidade, procura se alinhar ao interesse maior da obra de arte: sua comunicação.

Vera Rodrigues de Mendonça (Funarte, Rio de Janeiro, Brasil) é graduada em Educação Artística pela Uerj; especialista em Gestão de Políticas Públicas pela UnB e mestre pelo Programa de Pós-Graduação do Instituto de Artes da Uerj. É administradora cultural do Centro de Artes Visuais da Fundação Nacional de Artes – Funarte, atuando como responsável pelas ações pedagógicas do Centro; tutora presencial do curso a distância de Pedagogia da Uerj, na disciplina Seminário 2: O ensino de arte contemporânea na sala de aula, e faz consultoria para a Fundação Getúlio Vargas, na área de artes visuais. / verarodrigues@yahoo.com.br

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Notas sobre a forma-colagem* Isabel Almeida Carneiro

Ao pensar na estrutura do texto artístico - que procura acompanhar o processo do trabalho e, ao mesmo tempo constituir-se como parte da obra – foi elaborado um esquema que permite o fluxo entre a obra plástica e a obra escrita. Surgiu assim um sistema de fragmentos, que tenta abarcar o todo em partes, pois cada nota é um fragmento que corresponde a um ponto relevante do meu trabalho artístico e ao conceito de colagem. Colagem, fragmento, jogo. “Não é o assunto do quadro nem a técnica do pintor que fazem a dificuldade do puzzle, mas a sutileza do corte, e um corte aleatório produzirá necessariamente uma dificuldade aleatória (...)” George Perec, A vida modo de usar. Com intuito de conceber um pensamento amplo sobre colagem cons* Artigo recebido ee aceito para publicação em agosto de 2010.

truí a dissertação na forma de fragmentos plásticos e textuais que intitulei Notas sobre a forma-colagem. As Notas foram divididas em dois núcleos teóricos, o primeiro formado pelos temas ‘Morte da pintura e a colagem’, ‘O jogo de colagens cubistas e dadaístas’ e ‘A colagem e a arte conceitual’, em que se estabeleceram tentativas de elucidar o pensamento da colagem através da história da arte a partir da construção de meu ponto de vista artístico. O segundo núcleo, formado pelas ‘Notas de temporalidades inconciliáveis’, são escrituras paralelas às investigações plásticas das 90 telas em 90 dias e configuram campos de ressonâncias paradoxais com o campo da visualidade plástica. A morte da pintura e a colagem “A junção de duas realidades inconciliáveis em aparência, sobre um plano que aparentemente não combina com elas...” Max Ernst, What is the mechanism of collage? 1. Boa parte da construção da pintura moderna foi pensada a partir do prognóstico do fim, como constatou Yve-Alain Bois, em seu texto Pintura: a tarefa do luto, pois quando

Isabel Carneiro. Notas sobre a forma-colagem.

lidamos com a pintura ainda hoje tomamos a partida como perdida.

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A teleologia greenberguiana “de Édouard Manet a Jackson Pollock” e certa corrente do pensamento da pintura do século XX programaram a morte da pintura; sendo assim todos os pintores posteriores a Manet só poderiam pintar o último quadro de cavalete. Seguindo essa narrativa teleológica, artistas modernos tais como Mondrian e Malévitch, mas também Jackson Pollock e Ad Reinhardt, e depois Robert Ryman continuaram na procura do último lance a ser desvelado pela pintura. Robert Ryman, segundo Yve-Alain Bois, seria o guardião da tumba da pintura moderna, pois para ele a poética de Ryman, que parte do princípio de que o jogo está vencido, é a única que consegue trazer as transformações ocorridas com as rupturas da Pop Art e da Arte Conceitual para dentro do campo da pintura. Consumava-se a desconstrução da pintura. Mas é apenas com Robert Ryman que a demonstração teórica da posição histórica da pintura como o excepcional reino de habilidade manual foi inteiramente conquistado e, por assim dizer, desconstruído. Por sua dissecação do gesto ou do pictórico material rústico e por sua (não estilística) análise do traço, Ryman produz uma espécie de dissolução da relação entre o traço e seu referente orgânico. O corpo do artista se move para a condição da fotografia: a divisão de trabalho está interiorizada. O que está em risco para Ryman não é mais a afirmação da singularidade do método da produção pictórica frente ao modo não especializado da produção de mercadorias, mas a decomposição mecâ1 Bois, 1990, p. 99.

nica disso.1 2. Segundo Joseph Kosuth, a partir de Marcel Duchamp, a arte não seria mais aceita como um arranjo de belas formas, cores musicais, ou quaisquer atributos ingênuos, pois o que a arte passa a fazer definitivamente é investigar seu próprio conceito. No texto Arte depois da filosofia, Joseph Kosuth diz que se um artista aceita fazer pintura (ou escultura) ele está aceitando a tradição que o acompanha. Se um artista faz pintura é porque já aceita a natureza da arte (pintura) sem a questionar. Por isso, para Joseph Kosuth a pintura não poderia ser mais arte, pois não questionaria sua natureza e ficaria presa somente aos aspectos morfológicos ou ‘formalistas’ da arte tradicional. O formalismo foi uma corrente crítica surgida no século XIX por influência da doutrina da pura visualidade, de Konrad Fiedler, que, tal como uma nova ciência, constituiu o exercício da visão como atividade autônoma ou exclusiva, independente de outras faculdades do espírito. No século XX, ‘formalismo’ foi termo taxativo usado para denominar os pintores do ex-

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pressionismo abstrato americano que eram acusados de dar extrema importância à forma plástica e ao dado puramente visual que se contraporia, de alguma maneira, ao conteúdo, que seria próprio do pensamento dos artistas conceituais posteriores. Formulado e banalizado ao longo das décadas do século passado, o termo vigorou principalmente entre os artistas conceituais dos anos 60, como Joseph Kosuth que, para desqualificar a produção artística e a crítica que se fez durante o período da escola de Nova York, chamou de formalistas artistas como Clifford Still, Willem de Kooning e Jackson Pollock, pelo fato de eles ressaltarem os procedimentos formais em suas pinturas: a linha, a cor, o plano, os gestos – processos considerados desligados de inteligência crítica. Essa produção da escola de Nova York foi rejeitada pelos artistas das vanguardas a partir 2 “Elas são Musak Visual” foi como a crítica de arte Lucy Lippard descreveu as pinturas de Jules Olitski (Kosuth, 2006, p. 216).1932.

dos anos 60, porque davam privilégio ao caráter sensível, como a tal música visual2 criticada por Lucy Lippard, que para os conceituais tinham tornado a arte acrítica e voltada apenas para os ideais de consumo do mercado. Para a produção artística atual cabe a pergunta: como pensar esse paradigma da arte moderna formalista, tal como foi construído, sem cair em uma dessas falsas armadilhas da pós-modernidade que recusam tudo o que for concebido pela prática da forma, que apelidam de ‘formalismo’? Entre um formalismo moderno, voltado para as questões da pura visualidade e às questões relativas ao juízo de gosto e ao universalismo da arte, e um antiformalismo pósmoderno, que repensa a própria autonomia da forma artística e não confere privilégio à autorreflexividade moderna, privilegiando o caráter conceitual da arte, podem existir questões pertinentes para a produção artística que perpassem esses dois pensamentos antagônicos da arte? No texto O artista como etnógrafo, Hal Foster registra que a dicotomia forma versus conteúdo esteve sempre no bojo de discussão da forma artística. W.Benjamin, em seu texto de 1934 O autor como produtor, requer que o artista encontre uma forma de arte que dê conta de seu conteúdo social. Essa discussão atualizada para os anos 60 parece reacender a separação existente entre ‘arte-formal-burguesa’ e ‘arte-conceitual-proletária’, e que a divisão entre ambas travaria a velha luta entre as classes dominantes e dominadas. Trabalhos de pintura ainda hoje podem ser facilmente tachados de formalistas se tiveram a autorreferencialidade da arte, ou seja, a arte que dialoga com ela mesma e com a tradição? Donald Judd, dando ênfase e atualidade às afirmações de Duchamp, afirma ser arte tudo aquilo que se nomeia arte. Por isso, a atitude formalista da pintura e da escultura poderia ter o privilégio de uma condição artística, mas só em virtude de sua apresentação. Isso nos leva à percepção de que a arte e a crítica formalista aceitam como definição da arte algo que só existe nas bases morfológicas.

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3. A ordem disciplinada de minha produção lida com o lado amorfo da rotina na maior parte do tempo. Trabalho os conceitos da pintura como tradução da música através das colagens de superfícies e através de conceitos de temporalidades num mesmo ou em diversos planos bidimensionais. Pintar com as colagens é propor um jogo entre o artista e os objetos corriqueiros do mundo real, entre o mundo real e a irrealidade de suas histórias e origens inventadas que não conseguem reter memórias de lugar nenhum. 4. Com o desenvolvimento da física moderna, a colagem se torna um dos pontos de inflexão do pensamento humano no século XX. Concomitantemente às ideias da relatividade do espaço-tempo da física de Albert Einstein, as colagens sinalizavam no campo artístico o não limite entre presente, passado e futuro e entre realidade, virtualidade e ilusão.3

3 Perloff, 1993.

5. A colagem pressupõe duas ou mais materialidades diferentes coladas sobre um mesmo plano, que reservam entre elas significados próprios. Essas materialidades heterogêneas se colam, mas não se amalgamam, pois não se tornam coisa única. A colagem pressupõe a distinção entre os diversos elementos no mesmo plano pictórico ou criando planos justapostos. O jogo da colagem cubista e dadaísta “Si ce sont les plumes qui font le plumage ce n´est pas la colle qui fait le collage.” Max Ernst 6. As colagens cubistas de Picasso e Braque, especialmente as de 1912, contribuíram decisivamente para a afirmação de um novo espaço plástico moderno, a ‘desespecialização’4 produzida pelo ato de cortar e colar papéis e outros materiais, proporcionaram maior liberdade na busca de caminhos para a pintura. As colagens dos dadaístas Kurt Schwitters e Max Ernst, assim como as colagens cubistas de Picasso e Braque, trabalharam os signos plásticos em diálogo com o mundo ordinário dos meios de comunicação e dos objetos culturais, e reverberaram o limite tênue entre arte e não arte, o que posteriormente o grupo Fluxus irá desenvolver com as experiências sonoras de John Cage na indistinção entre ‘música e mero barulho’.5 7. Compreendemos as colagens enquanto um sistema de composição, em seu aspecto técnico, de duas ou mais materialidades que reúnem e afirmam o diálogo de várias vozes sobre um mesmo plano. Esse conceito de colagem pressupõe um novo sistema de composição da pintura do século XX e tem sua démarche com a pintura de Manet. As pinturas de Manet são analisadas por Pierre Francastel a partir do ‘princípio da oposição violenta’ que foi usado para denominar as relações antitéticas e conflituosas entre heterogeneidade e a descontinuidade dos meios que constituem o conceito de colagem e que foram empregadas sistematicamente na obra do ‘pintor da modernidade’:

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4 A primeira vez que esse termo foi usado foi com o Impressionismo de Georges Seurat por sua extrema ênfase no virtuosismo da pintura com a técnica do pontilhismo, que não era mais pintura, apesar de muito bem realizado como técnica. O clímax do termo deskeling foi usado no contexto das colagens cubistas que foram feitas usando a desespecialização da técnica da pintura de cavalete, tornando as abstrações mais fáceis e rápidas através da sobreposição de papéis colados. A desespecialização promovida pelas colagens cubistas gerou novo paradigma para as artes que não mais necessitavam de um labor ou um virtuosismo em seu fazer para serem consideradas obras de arte. A arte abdicou do seu fazer manual (Krauss, 2004). 5 Danto, 2002, p. 65.


O aparente nonsense temático é decorrência direta do processo construtivo e logo o entenderemos, se pensarmos o Déjeuner... como colagem ou montagem... Com efeito, não se trata de caso isolado, mas de experiência inicial, propositadamente estridente como manifesto ou aviso de descoberta, e outros quadros de Manet trarão descontinuidades e heterogeneidades símiles. O papel fundamental de relações antitéticas foi denominado por Pierre Francastel (1900-70) de “princípio de oposição violenta”.6

6 Martins, 2007, p. 39.

8. Braque insistiria repetidas vezes que o espaço era sua principal obsessão pictórica. Numa de suas declarações mais reveladoras e lúcidas, ele afirmou: “Existe na natureza um espaço tátil, um espaço que eu poderia quase descrever como manual”, e acrescentou: “O que mais me atrai, e que foi o princípio orientador do cubismo, foi a materialização desse novo espaço que senti.” A rejeição da perspectiva tradicional, com um ponto de vista único, era tão essencial para a materialização das sensações espaciais, que Braque desejou trans7 Golding, 2000, p. 43.

mitir, tanto quanto Picasso, uma multiplicidade de informações em cada objeto pintado.7 9. Picasso e Braque afirmaram ter começado colando objetos na tela com o intuito de fazer um tromp l´oeil, que seria o mesmo que um tromp l´espirit, pois pretendiam confundir os objetos reais com a realidade da tela, sem a divisão entre pintura e espaço, e sem a divisão entre a realidade da pintura e a da natureza. O propósito do papier collé era dar a ideia de que diferentes texturas podem entrar numa composição para se tornar a realidade da pintura, que rivaliza, assim, com a realidade da natureza. Tentamos nos livrar do tromp l’oeil para achar um tromp l´espirit (...) Se um pedaço de jornal pode se tornar uma garrafa, isso nos dá algo que pensar também em relação aos jornais e garrafas ao mesmo tempo. Esse objeto deslocado penetra num universo para o qual não foi feito e no qual retém, em certa medida, a sua estranheza. E essa estranheza foi o que nós quisemos fazer as pessoas pensarem porque estávamos totalmente conscientes de que nosso mundo estava se tornando muito

8 Picasso apud Perloff, 1993, p.95.

estranho e não propriamente tranquilizador.8 10. Em Picasso Papers, Rosalind Krauss argumenta que o emprego de jornais e outros objetos de uso comum, colados num único plano pictórico, seria uma forma de trazer diversas influências e dar às colagens uma polifonia, uma multiplicidade de vozes que traduziriam o novo espaço moderno. É essa própria aleatoriedade, essa desordem, que parece representar e garantir a ‘objetividade’ da notícia em si, sua desobrigação com relação

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a qualquer interesse, qualquer voz. Mas a desordem do jornal tem sua própria tarefa a realizar, e esta é desorganizar o espaço da narrativa, da história e da memória, e no lugar delas, oferecer-se como mercadoria, e isso não se limita apenas aos anúncios da imprensa. Antes é a própria disjunção que realiza a tarefa da publicidade, transformando a notícia em entretenimento, a história em espetáculo, a memória em 9 Krauss, 2006, p. 19.

mercadoria.9 A escolha predominante do papel-jornal nas colagens cubistas de Picasso e Braque se deve à intenção dos cubistas em romper com os ideais simbolistas que defendiam a pureza nas artes. Para o poeta Stéphane Mallarmé, os jornais diários representaram a promiscuidade das ‘letras’, pelo modo vulgar com que apresentavam as notícias, como uma “prostituta exposta na primeira página”, e por isso, não mais possuía a virgindade do livro, que poderia permanecer fechado e “imaculado”. Os jornais entraram nas colagens cubistas pelas questões artísticas, como o tamanho da fonte na folha do jornal impresso. Picasso e Braque trouxeram o ‘baixo’ e o ‘promíscuo’ para o mundo das artes com as colagens de jornal em suas pinturas. A precariedade e o instantâneo são atributos das notícias veiculadas nos jornais diários, e, por isso, a apropriação dos cubistas não foi ingênua, pois expuseram a mudança e o paradigma da autonomia da arte trazendo o signo verbal para o campo das artes visuais. Maurice Raynal, um dos primeiros críticos a escrever favoravelmente sobre a colagem cubista, ressaltou que a utilização dos jornais nas colagens de Picasso e Braque foi uma crítica e uma homenagem aos ideais simbolistas de Mallarmé,10 como a colagem Un coup de thé, de Picasso, que foi retirada de uma manchete de jornal que citava a poesia de Malarmé “Un coup de dés jamais n´abolira de hasard” (Um lance de dados jamais abolirá o acaso), de 1897. 11. As colagens cubistas experimentaram o acaso com a colagem das manchetes de jornais como num jogo de dados. As experiências artísticas do início do século, como a música atonal e a pintura moderna, foram influenciadas pelas experiências dos jogos surrealistas que trabalhavam com indeterminação11 nas construções artísticas que pretendiam fugir das regras da tonalidade, da simetria e do equilíbrio. O acaso na obra de Picasso é muitas vezes repreendido por leituras críticas, como a da historiadora da arte Patrícia Leighten,12 que sugere que Picasso escolhia os recortes das manchetes de acordo com sua visão política; me parece, entretanto, que era o apelo surrealista das manchetes de jornais que interessava aos cubistas. 12. A escolha aleatória e a presença do acaso conduziam a prática de Kurt Schwitters que, para a construção de sua obra total Merz,13 colava objetos conforme sua escolha afetiva,

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10 Stéphane Mallarmé foi um dos primeiros escritores a se posicionar contra o jornal por considerá-lo demasiado vulgar e sem expressividade artística como os livros. 11 Denominamos estéticas da indeterminação a configuração artística que se produziu no campo da música. A expressão se refere às produções artísticas que empregam procedimentos indeterminados nos diferentes níveis musicais, desde os materiais, até a forma e a interpretação. 12 Historiadora inglesa citada por Rosalind Krauss em Os papéis de Picasso, 2006.

13 “Denominei Merz esse procedimento novo cujo princípio era o uso de todos os materiais. É a última sílaba da palavra Kommerz. Ela surgiu com Merzbild [quadro Merz], uma assemblage em que, entre formas abstratas, podia-se ler o fragmento Merz, recortado e colado a partir de um anúncio para Kommerzund-Privatbank. A palavra Merz, por associação com os outros elementos da composição, tornava-se ela mesma um elemento icônico e deveria figurar assim” Schwitters in Merz, 1932.


quase o mesmo procedimento que levava Marcel Duchamp ao encontro de seus objetos trouvées; ao que parece, a ordem do aleatório e do acaso esteve presente nas poéticas dos cubistas, dadaístas e surrealistas, mas exerciam forças diferentes sobre o processo de criação de cada um deles. 13. Greenberg justificou a colagem cubista como uma busca da afirmação da planaridade da pintura, que não prejudicava o olhar naturalista da época. Para ele, os cubistas já sabiam abstrair, mas não poderiam fazê-lo totalmente, pois a pintura naquele momento ainda estava ligada à representação da realidade. As colagens eram maneiras de experimentar a planaridade, sem se perder num jogo da pura visualidade das formas. As colagens surgiram no momento em que a pintura cubista se tornava extremamente abstrata e havia a necessidade de separar figura e fundo, e identificá-los no todo abstrato da pintura. As colagens, segundo Greenberg, não queriam dar realidade à pintura, utilizando materiais reais como cordas ou fitas; queriam antes separar os diversos planos na pintura. Acabaram se tornando os meios que Picasso e Braque encontraram como a saída da pura abstração, que mais tarde seria adotada pelos expressionistas abstratos como um desdobramento da abstração cubista. Um pedaço de papel de parede imitando fibras de madeiras não é mais ‘real’, segundo qualquer definição, ou mais próximo da natureza do que sua simulação pintada; nem um papel de parede, um oleado, um jornal ou a madeira são mais ‘reais’, ou mais próximos da 14 Greenberg, 1959, p. 84.

natureza, do que a pintura sobre tela.14 Segundo Greenberg, as colagens cubistas queriam reafirmar a planaridade da tela, mas sem perder o real no ilusório. A pintura precisava proclamar – e não fingir negá-lo – o fato físico de que ela era plana, ainda que ao mesmo tempo tivesse de superar esta planaridade proclamada como um fato estético e continuar a relatar

15 Idem, ibidem, p. 85.

a natureza.15 A necessidade de não evidenciar totalmente o plano faz parte da concepção de Braque e Picasso de que a pintura morreria se perdesse completamente sua ligação com a natureza, se não mais pudesse identificar os objetos na pintura. O medo dos cubistas era que a arte se tornasse um simples jogo de cor e formas autônomas do mundo real, e deixasse de participar do estatuto da obra de arte. A colagem e a arte conceitual “A beleza, segundo Lautréamont, é o encontro fortuito de uma máquina de costura e um guarda-chuva sobre uma mesa de dissecação.” Susan Sontag, 1963

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14. Nos anos 60, com o movimento da Pop Art e do Fluxus, as práticas históricas da colagem de objetos ordinários trazidos para o campo da pintura adquirem questionamento político: a indistinção entre arte e vida e entre arte e não arte. A conquista do real físico aprofunda-se, ainda, pela incorporação no processo de trabalho, nos anos 1960, de ‘materiais reais’, isto é, materiais habitualmente considerados não artísticos. A Pop Art e o Nouveau Réalisme também contribuíram para aprofundar as fronteiras do território real cotidiano, com seu aproveitamento de objetos industrializados e imagens de massa.16

16 Basbaum, 1988, p. 301.

Os artistas da Pop Art usaram exaustivamente material ordinário como as embalagens e lixos industriais em suas colagens e assemblages.17 Andy Warhol, Jasper Johns e Robert Rauschenberg ajudaram a trazer a discussão da arte e seus limites para as instituições artísticas, na guerrilha travada entre arte erudita e arte banal, baseadas nas influências históricas de Marcel Duchamp e de Kurt Schwitters.

17 Em Art of Assemblage, William C. Seitz argumenta que o termo collage não é bastante amplo para cobrir a diversidade da moderna arte compositória e modos de justaposição. Tanto em francês como em inglês, ‘assemblage’ denota ‘a junção de partes e de pedaços’ e pode-se aplicar tanto às formas planas como às tridimensionais.

15. O legado conceitual das colagens cubistas, incluindo os papiers collés, foi a ‘reversibilidade figura e fundo’ desenvolvida através da mutabilidade do signo plástico, que foi consequência da arbitrariedade do signo verbal, propostos ambos pelos estudos semiológicos de Saussure e Jakobson. Este tipo de manipulação, um jogo sem fim com a mutabilidade dos signos que seguem seu caráter arbitrário, abunda no cubismo sintético de Picasso... Venho escrevendo uma pequena história da semiologia do cubismo na qual a grade tem um papel decisivo no desdobramento do cubismo analítico de Picasso e Braque, e na qual a descoberta da total potencialidade do que Sausurre chamou de arbitrariedade do signo marca o nascimento do cubismo sintético.18 Os artistas conceituais problematizaram posteriormente o signo linguístico e extrapolaram o signo puramente visual, ajudando a colocar em xeque a autonomia do objeto artístico. A arbitrariedade do signo linguístico, como proposto por Saussure, coincide com a prática das colagens de 1912. No campo da arte, a crise da autonomia do objeto coincide com a entrada do signo verbal no período da arte moderna. 16. Segundo Joseph Kosuth os cubistas nunca questionaram se a arte tinha ou não aspectos morfológicos, mas, sim, quais desses aspectos eram aceitáveis no campo da pintura; Kosuth também afirmou que só a partir de Duchamp haverá uma mudança epistemológica no significado da arte:

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18 Bois, 2006.


Isso significa que a natureza da arte mudou de uma questão de morfologia para uma questão de função. Essa mudança de “aparência” para “concepção” foi o começo da arte “moderna” e o começo da arte “conceitual”. Toda a arte depois de Duchamp é conceitual (por natureza) 19 Kosuth, 2002, p. 217.

porque a arte só existe conceitualmente.19 17. Se pensarmos na tentativa de Schwitters de “criar relações entre todas as coisas do mundo” em sua obra de arte total Merz, encontramos um terreno fértil para as práticas entre arte e vida e seus processos de deslocamentos e assimilações, que foram mais enfáticos do que os procedimentos performáticos de Allan Kaprow. A dissipação da linha que separava arte e não arte é colocada à prova na corrente do Fluxus do neo-dadá Georges Maciúnas. O objetivo radical desse artista era fazer o cotidiano e suas ações adquirirem dimensão artística, tornando obsoleta a divisão entre arte erudita e arte banal, e abolindo até mesmo a necessidade de ‘artistas’ que seriam diferentes dos ‘não artistas’. Georges Maciúnas em Neo-Dadá in Music, Theather, Poetry and Art declarava que: (...) se o homem pudesse ter uma experiência do mundo, o mundo concreto que o cerca, da mesma maneira que tem a experiência da arte, não haveria necessidade de arte, artistas e de elementos igualmente não produtivos. A ideia de Maciúnas era de que algo poderia ser arte

20 Maciúnas apud Danto, 1999, p. 25.

sem ser necessariamente Arte.20 18. Em seu texto A arte como armazém: Fluxus e filosofia, Athur C. Danto explicita um dos questionamentos da corrente dadaísta que influenciaram a Pop Art e o Fluxus: a ideia de ressignificar o cotidiano a partir das práticas da filosofia do zen-budismo empregada pelo Dr.Suzuki na Universidade de Columbia. Em sua tentativa de ressignificar o cotidiano, a visão de Georges Maciúnas e a filosofia zenbudista do Dr. Suzuki colocavam em xeque a arte e seu lugar ímpar na experiência sensível. 19. No texto A fala cotidiana, que se torna interessante contraponto a essa ideia de ressignificação do cotidiano empregado pelo Fluxus, Maurice Blanchot observa que pertence ao próprio cotidiano a insignificância. E o insignificante é sem verdade, sem realidade, sem segredo, mas se torna também o lugar de toda significação possível. O cotidiano escapa. É nisso que ele é estranho, o familiar que se descobre (mas já se dissipa) sob a espécie do extraordinário (...) O cotidiano para ser cotidiano deve permanecer sem verdade e deve escapar sempre, pois quando colocamos significado no cotidiano não

21 Blanchot, 2007, p. 237.

estamos mais lidando com esta parte amorfa e privada de nossas vidas.21

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Percebemos a importância e atualidade da prática da colagem, que reabilita o cotidiano e as práticas diárias do fazer, e singulariza a existência ambígua da arte num sistema em que ela permanece sempre como algo que resiste e que se apresenta como problema. 20. As colagens reabilitam os resíduos, os lixos deixados pelo consumo desenfreado, mas reabilitam simultaneamente a prática diária do colecionar: arquivar e colecionar com o máximo de preciosismo um mundo de objetos-lixo que foram descartados e posteriormente escolhidos para participar da manufatura das colagens, reestabelecendo a ordem da mercadoria. Notas de temporalidades inconciliáveis “Eu tinha em mim um canto que vibrava enquanto eu trabalhava; esse canto, eu o moldei na forma, e através dela ele chega até vocês.” Kurt Schwitters 21. O jogo instaurado aqui tem como objetivo colar aleatoriamente as Notas num mesmo texto-colagem. A aleatoriedade e a não sequencialidade das Notas de temporalidades inconciliáveis só puderam ser conquistadas através de um sistema fechado de possibilidades, em que não havia uma narrativa a ser seguida progressivamente. Cada nota tenta abarcar um conceito apreendido durante as aulas do mestrado, pensadas e refletidas em relação a meu processo plástico. Através das Notas de temporalidades inconciliáveis tentei capturar os processos artísticos envolvidos em meu trabalho de maneira livre e fragmentada, e, portanto, mais atenta aos acidentes, às aleatoriedades e aos acasos pertinentes às construções das obras plásticas. 22. A forma do fragmento está alinhada historicamente ao Romantismo alemão e à tentativa de abarcar sistematicamente o todo. A forma fragmentada das Notas de temporalidades inconciliáveis permite uma situação comumente utilizada nos diários de bordo de artistas, que são capturas de ideias fugazes que acontecem durante o cotidiano criativo. A forma do fragmento proporciona mais liberdade na criação da escrita, pois as formas rápidas e sintéticas de chegar ao pensamento são diferentes do peso, da demora e dos desvios provocados por uma escrita mais retesada, que sempre “acerta” as arestas para encaixar os conceitos numa forma textual mais arredondada. 23. O sistema de notas ou blocos permitiu o surgimento de formas coesas sobre o fazer artístico, pois a forma fragmentada e contida22 em blocos impôs à pesquisa uma ordem preestabelecida em que as combinações se tornaram diferenciadas (combinatórias ou aleatórias),23 e essa situação contribuiu para uma escrita que me parece mais sensível e flexível, capaz de deslizar com certa desenvoltura entre a práxis e os conceitos.

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22 Ver teoria do fragmento de Schlegel in Seligmann, 1997, p. 41-42. 23 Os conceitos de formas aleatórias e combinatórias são ideias paralelas que surgiram entre as colagens musicais e as colagens plásticas.


Isabel Carneiro. 90 telas em 90 dias. 30 x 30 cm (cada), 2008.

A sistematização do fazer artístico na forma fragmentada das notas criou uma escrita aleatória e combinatória que instaurou novo diálogo entre a forma plástico-musical e a forma textual. A forma aleatória das Notas se refere ao conceito de infinitas possibilidades no campo da música utilizadas nas obras de John Cage e Pierre Boulez, que usavam a indeterminação em suas composições para possibilitar a existência do acaso, do aleatório e dos acidentes. A forma combinatória da escrita se refere ao campo da música tonal e sua estrutura compositiva, que é fechada aos acidentes e às aleatoriedades, pois existe sequencialidade produzida pelo pensamento harmônico. Pode-se pensar que a escrita fragmentária impede ou inibe que as ideias saiam de um nível superficial e ganhem profundidade teórica dentro do trabalho escrito, mas o que pretendo mostrar aqui é como as passagens de ideias fragmentadas que intitulei Notas de temporalidades inconciliáveis conseguem aprofundar os conhecimentos envolvidos nas obras numa ordem aleatória e combinatória, podendo parecer a princípio desligadas

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de um único procedimento intelectual, mas que, no entanto, são elaboradas sistematicamente dentro de um mesmo processo que questiona a própria forma da colagem nos textos artísticos. 24. Trazer o texto como colagem: fragmentos teóricos produzidos a partir da experiência realizada com as colagens plásticas. O texto como colagem não tem urdiduras, não tem costuras. Subverte a própria questão do texto como algo tecido. A colagem existe na ‘superfície’,24 faz as ideias conviverem num mesmo emaranhado de espaço-tempo, mas preserva, estrategicamente, distâncias, incongruências, contradições. 25. Podemos pensar como referência para o trabalho os artistas conceituais do Art&Language, que fizeram do próprio texto teórico um objeto de arte, pois em sua opinião o que definiria ou não um trabalho de arte seria sua intenção artística; um trabalho artístico poderia ser mesmo um texto teórico. O texto que aqui apresento pode ser, então,

24 Superfície é conceito da filosofia pós-estruturalista segundo a qual os acontecimentos só acontecem na esfera da superfície, na camada mais externa, pois não existiria algo por trás que tivesse a capacidade de revelar o invisível ou o indizível como na metafísica cristã. As coisas só se explicam em sua superfície, pois os signos só se traduzem por meio de outros signos. A superfície é o único lugar em que as coisas podem acontecer.

um objeto de arte nesse sentido proposto. 26. As Notas de temporalidades inconciliáveis poderiam se tornar um trabalho artístico por sua ação performática de escrita artística, mas prefiro pensar nelas como uma dimensão reflexiva ou exercício filosófico em paralelo à construção plástica das colagens das 90 telas em 90 dias. 27. A pintura requer tempo: buscas, idas e vindas, tropeços, retornos e pausas. Apagar e aceitar os erros ou fazer surgirem os acertos, para novamente os destruir – eis a tarefa que cabe ao pintor. 28. O desgaste promovido pela colagem de anular o procedimento anterior, transformá-lo, como pintar = queimar25 na pintura de Anselm Kiefer.26 Algo que nunca se refaz da mesma forma, como no livro de areia de Jorge Luis Borges, que nunca nos permite retornar à mesma página. 29. A pintura requer o tempo da experiência e o tempo da maturidade: exercício, contemplação e labor. E esse tempo da pintura parece estar sempre em desacordo com o tempo linear e homogêneo do senso comum. A pintura sempre problematiza o tempo atual, vive de um descompasso produtivo; não se reconcilia com o tempo da vida e faz os relógios caminharem lentamente. 30. O tempo da pintura é do gesto pronto e realizado, registro de algo feito, mas pintar é sempre “editar” pinturas anteriores, operar na história da arte, cindir tempos e experiências, como na edição de imagens de vídeos ou como na reimpressão de uma fotografia ou mesmo de um texto escrito como este das Notas de temporalidades inconciliáveis.

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25 Danziger, 1994. 26 Anselm Kiefer, pintar = queimar é a ressignificação do emblema da pintura e da morte da alta cultura germânica após a guerra, dos mitos construídos na Alemanha nazista. O artista possui extraordinário entendimento dos materiais não usuais da pintura, como palha, areia, chumbo, cinzas e madeira, e tem como tema principal em sua poética o Romantismo alemão da grande mãe Terra, o solo e a Floresta Negra.


31. A aleatoriedade não pode ser confundida com o acaso. A aleatoriedade existe dentro de um campo fechado de possibilidades, dentro de parâmetros estabelecidos, mesmo que esses parâmetros se tornem imprevisíveis pela sequência lógica do pensamento. Minhas colagens nascem do gesto aleatório, mais do que do acaso, pois a cada nova tela que faço se fundem fragmentos encontrados aleatoriamente sobre o espaço de trabalho com os materiais aleatórios encontrados numa papelaria. 32. As urdiduras são necessárias ao texto. A colagem é o que reúne, sobrepõe, subverte, intervém sempre na superfície. O texto como colagem não poderia deixar de ser ele mesmo superficial (como estratégia) e fragmentado; temporalidade quebrada e sincopada. A cola gruda e desgruda, a colagem pode ser temporária, pois as coisas permanecem juntas porque se grudam e depois se descolam, pois a cola seca. 33. A colagem rompe, sobrepõe e apaga, subverte o que está em cima e embaixo, o visível e o oculto. Os campos são cindidos uns pelos outros, a colagem faz a violência de manter coisas completamente distintas reunidas umas às outras, e essas coisas, apesar de coladas, mantêm suas identidades e autonomias. Convivem entre elas, mas não se amalgamam. A colagem pressupõe a distinção entre os objetos, experiências e palavras. 34. A colagem acontece dentro de um campo finito de possibilidades: o retorno do velho com aspectos do novo. O tempo não é absoluto e não coordena tudo e todos, a própria noção de tempo é permanente, existe num espaço-tempo estabelecido e conhecido. As colagens são sobreposições desses tempos cronológicos e subjetivos. O tempo não é absoluto, não carrega tudo e todos, e não existe mais o tempo inteiro: A 27 “Tal é a intuição maior que guia a obra e Leibniz, em particular a Monodologia. Deus é a mónade absoluta desde que conserve a totalidade das informações que constituem o mundo numa completa reunião. E se a retenção divina deve ser completa é porque inclui do mesmo modo as informações que ainda não estão presentes diante das mónades incompletas representadas pelos nossos espíritos e que estão por acontecer no que chamamos futuro” (Lyotard, 1990, p. 67).

grande mónade27 absoluta de Leibniz está morta, pois o tempo emana da própria matéria. A física moderna descobriu que toda partícula, por mais mónade que seja, possui uma memória elementar e, por consequência, um filtro temporal. É assim que físicos contemporâneos têm tendência a pensar que o tempo emana da própria matéria e que não existe uma entidade exterior ou interior do universo que teria por função juntar os diversos tempos numa única história universal. 35. Comparo os tempos da pintura e da música. A colagem só acontece na música pois as notas são de frequências diferentes, ainda que pertençam ao mesmo acorde ou escala, e vibram no mesmo tom e ao mesmo tempo, mas depois se descolam, e passa a existir o silêncio das notas. 36. Dois desdobramentos do tempo são interessantes na pintura: a colagem do passado enquanto memória, e o tempo vivo da experiência, que são as possibilidades múltiplas e infinitas no presente. Ao colar os dois conceitos, temos a ideia de que o tempo sempre retorna, mas não simplesmente como passado renovado, e sim com aspectos do passado que não são mais os mesmos e permanecem à espera, pois as possibilidades do novo podem ser infinitas, como uma espécie de futuro inconsciente ou não cognoscível.

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37. A colagem enquanto memória na música acontece com as escalas e as regras formais que estruturam a música tonal e que também pertencem à memória do ouvido, que é o sistema do passado. As possibilidades novas do presente surgem das improvisações das notas realizadas pelo compositor na hora da execução da música e que levam em consideração as escalas preexistentes da música tonal; as improvisações acontecem dentro de um campo fechado de possibilidades que chamo de campo potencial da aleatoriedade. 38. A música atonal não pretende trabalhar com a memória, nem com o passado dos tons, porque quer o surpreendente novo da escala nova, ‘o pássaro que não volta para o ninho’. Será que nossos ouvidos conseguem suprir essa falta de eixo ou falta de norte dos nossos sentidos? Pois a fisiologia humana sempre retorna e trabalha com a memória e os dispositivos de linguagem para armazenar informações. 39. Sabemos, com Deleuze, que a duração só pode ser pensada pelo aparecimento da diferença. Em meu trabalho de pintura, quero captar o tempo em camadas, feitas de diferenciações que se desdobram em múltiplos acontecimentos. Existem vários tempos nas colagens que podem ser distinguidos, outros são confundidos e entram num mesmo emaranhado de espaço-tempo. 40. O primeiro ato na pintura, que se estabelece com as verticais e horizontais que são os primeiros acordes da “Invenção a duas vozes”, de Bach prossegue com a relação das mãos direita e esquerda do piano, que são simultâneas e que estabelecem um espaço pictórico igual ao das cinco cores primárias através da escala nordestina de Bela Bartók.28

28 Bartók. Mikrokosmos - Piano Solo. Copyright By: Boosey & Hawkes. Londres: 1940.

41. O primeiro tempo que podemos chamar de primeiro ato ou primeira estrofe sempre é configurado por uma tinta, que é como a escolha de um tom, como na música (por exemplo, si b ou fá #) Em seguida, entram em cena os outros tempos do compasso na colagem: a pichação com Color Jet, massa acrílica, a lixa, o reboco, e depois de volta ao início. 42. A partitura se realiza na pintura como escrita executada e não simplesmente uma forma de códigos para se decifrar. A pintura não é partitura, e, sim, música. Algo realizado como a frequência sonora no ar. 43. A pintura como exercício do retorno do real. O real para Lacan é tudo aquilo que não pode ser simbolizado. Como simbolizar o tempo? Vivemos o dilema do instante, do tempo como raposa, que devora tudo o que ainda se possui. O tempo como o grande buraco ruidoso da vida humana. Somos sempre apunhalados pelo tempo que não volta. É oportuna a lembrança da epígrafe do texto do Peter Pál Pelbart citando Maurice Blanchot: “Morrer é, absolutamente falando, a iminência incessante pela qual, no entanto, a vida dura desejando.”29

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29 Pelbart, 1998, p. 10.

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44. A superação da contemplação sobre a ação segundo Plotino. O artista não consegue mais contemplar, age e então volta a contemplar: contemplação / fazer/ volta à contemplação. Passagem de Confissão criadora, de Paul Klée: um certo fogo que surge, que se acende, que avança através das mãos para atingir a tela, que incendeia a tela, que salta em faíscas, fechando o círculo ao retornar para seu lugar de origem: alcançando os olhos e continuamente seu avanço [de volta ao centro do movimento, da vontade, da ideia]. 45. A respiração pausada e lenta, e a continuidade dos sons, dos pensamentos, das palavras ditas e não ditas, da memória aterrorizante e sempre presente. Colagem-descolagem, sobreposição, justaposição, composição, decomposição. 46. São as imagens, os objetos e as experiências do mundo – incluindo aqueles apreendidos pelos aparatos tecnológicos – que busco traduzir na pintura. Não simplesmente mostrar, exibir, mas traduzir naturezas e temporalidades inconciliáveis em meios pictóricos. 47. Fotografias de muros, de rebocos, cartazes colados e descolados. Tento refazer essa experiência, que vivo no dia a dia, na chave da atenção dispersa, algo tão próprio à modernidade. Busco a repetição diferencial. Aprisionamento do mundo pela imagem, no anteparo da tela, assim como nas serigrafias de Andy Warhol que nunca se repetem e sempre retornam com diferenças mínimas. 48. Renovar o compromisso: proponho pintar 90 telas em 90 dias. Pequenas telas de 30 x 30 cm. Experiência ininterrupta da pintura, como algo cotidiano, independente da vontade ou qualquer inspiração. Pintura como exercício de temporalidades. Persistir, resistir, fazer durar. 49 Começo a ler Brás Cubas, de Machado de Assis, cujo narrador inicia o livro pelo relato de sua morte; inicio “a pintura por 90 dias”, que parte da morte vivida desde o primeiro dia de pintura, dia 31 de julho. O relato sempre começa pelo fim. A pintura é uma consciência da finitude, um relato que parte do fim e que antecede sua morte tantas vezes anunciada. Seria o pintor um narrador que relata, renovadamente, a própria morte da pintura? Será o lugar de chegada da pintura moderna ainda o túmulo, o cubo vazio e branco dos museus e galerias? 50. Nas traduções existe a perda, a incompletude. As pinturas tendem a ser traduzidas pelas palavras, algo assim se perde no caminho, algo de que só a experiência sensível consegue dar conta, como na poética de Robert Ryman, entre tantos outros. Existe a impossibilidade da tradução na pintura. A melancolia é própria da pintura moderna, pois ela 30 Lages, 2002.

parte da consciência de seu fim. Podemos pensar o pintor como um tradutor? Com Walter Benjamin e Suzana Kampf Lages,30 sabemos que o tradutor vive sob o signo da melancolia.

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Se a tarefa do tradutor é reescrever – ou transcriar, como queria Haroldo de Campos – os conteúdos linguísticos de uma obra literária em outra língua, a tarefa do pintor é traduzir nossa experiência de mundo para o universo dos signos plásticos. Por outro lado, ao assumir a tarefa de pensar e escrever sobre a arte e sobre sua própria produção, o artista assume a tradução dos signos plásticos para os signos verbais. Acontece que essa tradução nunca se efetiva, nunca se dá de maneira integral e redentora. Na tradução, há sempre restos, resíduos, intransparências, materialidades e tempos inconciliáveis. 51. O sentido da obra não se entrega facilmente, encobre-se de verdade ou impurezas. 52. A escrita na forma de fragmentos tenta conter o todo em partes; a sistematização do pensamento em notas ou blocos permite que esmiucemos ao máximo cada parte fragmentada, que segundo a teoria de Schlegel seria a única maneira de tentar abarcar sistematicamente o pensamento que é, no todo, inapreensível ou inabarcável. Assim como no âmbito teórico, os românticos chegam à conclusão de que só é possível se atingir uma lucidez pontual; no plano da forma da exposição passa-se o mesmo. “A minha filosofia”, escreveu Friedrich Schlegel em 1797, “é um sistema de fragmentos em uma progressão de projetos (...) Eu sou um sistemático fragmentário.” Um fragmento deve ser igual a uma pequena obra de arte, totalmente separado do mundo ao redor e perfeito em si mesmo como um ouriço.31 Assim, a ideia de notas ou blocos, que aparentemente poderiam ser entendidas como incapacidade de progressão ou continuidade, tornam-se uma tomada consciente do trabalho como única forma possível de abarcar os conceitos teóricos de maneira totalizadora.

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31 Seligmann, 1999, p. 41-42.


53. Talvez a pintura, em seu gesto anacrônico, seja a única expressão artística contemporânea, porque é a única expressão extemporânea, pois, na concepção de Friedrich Nietzsche, a única possibilidade de ser contemporâneo é estar fora da rede dos acontecimentos. A experiência da distância, de seu colocar fora do tempo torna-se a condição de perceber seu próprio tempo atual: O contemporâneo é intempestivo. 54. A pintura como O retorno do real. Para Lacan, o real é tudo aquilo que não pode ser simbolizado e assimilável, por isso ainda precisamos do simulacro ou do anteparo que é a forma possível de tradução do real, sendo a arte uma das formas possíveis de anteparo ou simulacro desse real. Para contrapor essa ideia do real nunca assimilável ou cognoscível temos o existencialismo ou ceticismo de Jean-Paul Sartre, que em seu livro A náusea, de 1938, relata o dia em que seu personagem Antoine Roquentin, um historiador que pesquisa a vida e obra do Marquês de Rollebon, foi acometido por um mal inexplicável e passou a observar as coisas do mundo em sua ‘superfície’ naquilo que elas são tão somente: a percepção pura e inquestionável do real. Alguma coisa mudou inexoravelmente no mundo de Antoine Roquentin e no modo como ele enxergava o mundo.

Isabel Almeida Carneiro (Rio de Janeiro, Brasil) é artista visual e trabalha com o conceito de colagem como forma na música, na pintura e no vídeo. Especialista pela PUC-Rio em História da Arte e da Arquitetura no Brasil em 2007, sua pesquisa surgiu a partir das colagens cubistas na Colagem como forma moderna. Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Artes da UERJ, bolsista da FAPERJ com o projeto intitulado A colagem como forma na música e na pintura, teve sua dissertação defendida em março de 2010 com o trabalho das Notas sobre a forma-colagem, em que produziu objetos teóricos e plásticos sobre o conceito de temporalidades inconciliáveis. / bebelcarneiro@terra.com.br

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Notas sobre a forma-colagem Isabel Almeida Carneiro (páginas 56-75)

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Sentir o avesso: interioridade e exterioridade nos bólides de Oiticica* Carla Hermann

A definição do substantivo bólide revela por si algumas associações feitas por Oiticica acerca do espaço. O artista parece assim ter batizado a série de objetos produzidos entre 1963 e 1967 para exaltar dois aspectos: sua luminosidade decorrente da cor que os preenche e a relação dos objetos com o espaço. Essas relações são exploradas no presente artigo à luz da noção de informe, desenvolvida por Yve-Alain Bois e que norteia a organização estrutural que os bólides fazem de maneira a aproveitar a matéria desperdiçada do dia a dia e construir a ideia de adversidade almejada por Hélio Oiticica. Hélio Oiticica, bólides, espaço. A definição do substantivo bólide revela por si algumas associações * Artigo recebido e aceito para publicação em agosto de 2010.

feitas por Oiticica acerca do espaço. Segundo o dicionário Michaelis, bólide é uma “espécie de meteoro ígneo que atravessa o espaço; aerólito. Variação: bólido”. A noção de que um bólide é um corpo cadente e flamejante que se desloca no espaço parece ser um dos motivos para a apropriação do nome pelo artista, pois são objetos que têm presença marcante onde se situam. O tamanho de objetos passíveis de serem transportados por

1 Faremos referência aos nomes de obras de Hélio Oiticica em letras minúsculas, contrariando a tendência atual que propõe o uso de maiúsculas para os conceitos e obras do artista. Apenas nos títulos dos bólides os veremos em maiúscula. De modo a respeitar os critérios de relação metódica usada por Oiticica, optamos por colocar todas as informações nos títulos e a data de realização da obra entre parênteses, tal como o artista fazia.

uma só pessoa também sugere que os bólides1 de Oiticica seriam, de alguma maneira, deslocáveis no espaço, observação para a qual pesa o fato de encontrarmos diversas fotografias dos bólides posicionados em ambientes outros que não o estúdio de criação de Hélio Oiticica ou o espaço expositivo. Encontramos algumas fotografias dos bólides nos jardins de sua casa no bairro Jardim Botânico, na favela da Mangueira e ainda em ruas do Leblon, todos no Rio de Janeiro. A noção de “meteoro ígneo” não pode ser considerada estritamente para todos os exemplares da série, mas se encaixa com precisão aos bólides caixa, confeccionados em tons fortes de amarelo, laranja e vermelho, em óbvia relação com a cor do fogo. A cor está no cerne das estruturas dos bólides bem como de quase tudo o que Oiticica desenvolveu ao longo da vida. Em entrevista a Ivan Cardoso, em 1979, o artista atribui a escolha do nome dos bólides à vontade de “consumir as coisas em cor”: (...) nessas coisas que eu chamo de invenção da cor eu procuro usar a cor mais racionalmente. Na realidade, elas sempre foram luminosas

B17 Bólide vidro 5 Homenagem a Mondrian (1965) 31 x 18,75cm. Fonte: Ramirez, 2007, p. 282.

para consumir, era uma tentativa da estrutura na qual ela era pintada, quer dizer, a parte física do objeto, ele fosse consumido pela cor, por

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isso mesmo eu usei a palavra Bólide para os Bólides, que eu tive essa ideia quando eu vi um filme do Humberto Mauro, Ganga Bruta, em que as pessoas usam roupas brancas e a roupa branca refletia a luz, então ele iluminava as pessoas vestindo de branco, porque havia deficiência de luz, ou sei lá o que, então as pessoas rolavam, assim, por um gramado, vestidos de branco e pareciam Bólides... Aí eu pensei assim, pareciam Bólides... ah, na realidade o que eu estou fazendo são Bólides, eu quero transformar as coisas que eu estou fazendo, consumir elas de luz através da cor.2 Oiticica parece ter batizado a série de objetos produzidos entre 1963 e 1967 com esse nome para exaltar dois aspectos. A luminosidade dos objetos decorrente da cor que os

2 In Braga, Paula Priscila. A trama da terra que treme: multiplicidade em Hélio Oiticica. Tese (doutorado em filosofia). Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas/Universidade de São Paulo, São Paulo, 2007.

preenche é o primeiro deles, sendo sua relação com o espaço o segundo. Tal como os aerólitos cadentes, os bólides são corpos no espaço, independentes de relações estabelecidas com o chão em que são colocados ou mesmo o espaço do museu que habitam. São objetos pensados para a interação, nos quais o processo de manipulação é que dá o tom de sua existência, mas são, ao mesmo tempo, capazes de existir fechados em si mesmos. Passados mais de 30 anos desde sua concepção, a obra de Oiticica permanece potente em relação ao espaço do museu, com o qual trava embate constante. Embora haja a possibilidade de vê-la atualmente dissociada da adversidade para a qual foi supostamente pensada, acreditamos poder estender a ideia de adversidade necessária para os objetos de Oiticica ao próprio espaço do cubo branco, suas regras e imposições. Se há a necessidade de materialidade exterior com que os objetos precisam medir-se, o espaço institucional se constitui como matéria e forma contrárias à obra, especialmente no que concerne às questões da participação e ação do espectador. A presença da exterioridade como essencial para a obra atingir seu objetivo é retomada diversas vezes por Nuno Ramos: “Daí que seja imprescindível restituir a ele um ponto de vista exterior, que percorre seu labirinto sem mimetizá-lo.”3 A comparação da obra com um labirinto marca seu espaço interior como espaço que reitera, mas indefine, ao mesmo tempo, a fronteira externa. A interioridade do labirinto confunde quem o adentra: cria uma identidade repetitiva e claustrofóbica, não permite a formação de espaço interior de definição óbvia; pelo contrário, seus meandros significativos não permitem formação objetiva. O que estranhamos não é a necessidade da presença de certa exterioridade para que se percorra o labirinto interno da obra de Hélio sem mimetizar no interior da obra sua mundanidade. É sim a necessidade de restituição desse olhar exterior, uma vez que esse outro sempre esteve presente. A percepção que sustentamos é a de que a obra de Oiticica, de maneira particular os bólides, impõe ao espectador sua presença, de modo que essa exterioridade é permanentemente atualizada, devido à diferença marcada entre sujeito e objeto.

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3 Ramos, Nuno. À espera de um sol. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 28.7.2001. Caderno Ideias, p 4-6.


A demarcação de limites entre sujeito e objeto coincide com a reiteração da interioridade da obra, embora ao trazer elementos mundanos para sua composição o artista acabe criando uma força contrária a isso, quase paradoxal. Ainda segundo Ramos, Oiticica preenche as “dobras do labirinto com pedaços do mundo”, de modo a fugir dos aspectos claustrofóbicos dessa interioridade capaz de confundir, que seriam claramente percebidos pelo espectador, do exterior. Estamos diante da função operacional da utilização da apropriação. Os objetos cotidianos de Oiticica fariam com que a arte coincidisse com o mundo (exterioridade) e estivesse potencialmente em toda parte do mundo, numa tentativa de coincidir modelo e realidade, desdobrando o modelo construtivo de Mondrian. A idealidade da forma não impede que ela seja não representativa, de maneira a unir estruturalmente arte e vida. É a vida que se torna modelo, e não o contrário, e a obra duplicaria a vida dentro do espaço expositivo. Os objetos cotidianos não seriam modelo do mundo apreendido e sim parte de uma construção anterior a isso, tal como o projeto construtivo, tão admirado por Oiticica. Ainda acerca da leitura feita pelo artista Nuno Ramos, há um aspecto a ser questionado, entretanto. O autor coloca a utilização dos objetos cotidianos como uma resolução para a interiorização sufocante e “claustrofóbica”, representada algumas vezes pelo autor através da metáfora do labirinto. Outra leitura nos parece possível: a de que a utilização dos objetos do dia a dia venha como resposta à necessidade de potencializar um embate interior da obra, e não de amenizá-lo, como Ramos sugere. Tal hipótese deriva da percepção de que a forma dos bólides é pensada a partir do readymade, ou seja, os vidros e madeiras utilizados parecem estar na gênese da forma do bólide e dela são parte estrutural. Cada parte dos materiais empregados está emaranhada à própria ideia de consolidação material enquanto objetos artísticos, o que potencializa a interioridade em embate dessas obras, em vez de amenizá-la. Apesar da importância simbólica dos objetos mundanos a que Ramos se refere (e que certamente eles possuem), preferimos destacar o problema que é colocado pela matéria e suas qualidades físicas, tais como a transparência e a opacidade. O vidro do B17 Bólide vidro 5 Homenagem a Mondrian estrutura uma mediação visual pela matéria. A solução de pigmento em pó e água revelada pela garrafa e a tela de náilon da parte de cima do bólide configuram um aspecto interior da obra que funciona como filtro mediador do “fora”. Por outro lado, a cor e a forma podem expulsar o espectador para o mundo, como ocorre em alguns bólides caixa, como, por exemplo, B13 Bólide caixa 10, em que a madeira pintada em tons de laranja e a forma hermética do cubo quase fechado parecem repelir o espectador. Ainda pensando no interior contundente chegamos à percepção de que a força da ênfase na interioridade se dá na estruturação de duas vontades antagônicas. Uma é utilizar objetos do dia a dia devido a sua potência de memória visual e cognitiva, por serem, desde a primeira vista, objetos que não foram pensados na sociedade para desempenhar funções estéticas ou artísticas. A outra é descaracterizar tais objetos enquanto cotidianos, depois de elevados à condição de objetos de arte. Assim, os bólides lutam para tornar impossível

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a fundação do objeto em seu interior, ou seja, tentam tornar “irreconhecíveis” para o mundo os objetos que dele foram retirados. Esse processo se dá no nível da forma no sentido mais amplo do termo, tal como trabalhado por Yve-Alain Bois.4 Assim, o informe não aparece como a forma aparente ou o contorno despedaçado ou destruído: aparece

4 Bois, Yve-Alain. The Use Value of Formless. In Formless: User’s Guide. New York: Zone Books, 2000, p. 13-40.

na interioridade da obra, revelando-se inverso à forma, por operar dentro desse embate entre revelar o mundo e não permitir reconhecer-se por ele. Partindo da ideia de George Bataille, Yve–Alain Bois defende o informe como elemento operacional da obra. A forma, portanto, não pode ser encarada como definição ou formato (a maneira como ela se organiza “fisicamente”); é também constituída pelo aspecto operacional do informe. É essa dimensão operativa que permite pensar a ambiguidade da forma e do informe, numa dialética que não se resolve. A forma é pensada fora da concepção idealista moderna, que vê o significado como construção apriorística, anterior a sua “corporificação” na matéria, assegurando a apoteose do conceito de imagem.5 A concepção idealista da forma é ainda passível de crítica por considerar que a obra existe meramente a partir do significado, ignorando a influência da forma (mesmo a simples morfologia) no próprio processo artístico.

5 Bois, Yve-Alain. Whose formalism? In Art History and Its Theories. The Art Bulletin. New York: College Art Association, março de 1996. Disponível em: http://www.eds.edu/faculty/ bois/bois-whose-fomalism.html. Acesso em 18.2.2009.

A noção do informe pode ser particularmente útil para a análise dos bólides de Hélio Oiticica, já que a escolha conceitual de Yve-Alain Bois possibilita tratar do problema formal sem cair no formalismo greenberguiano de autonomia radicalmente fechada. Para além da necessidade de estabelecer a relação entre a forma e o sentido nos pareceu necessário encontrar embasamento teórico que tratasse da questão formal, diante da percepção de que, na leitura feita pela maior parte da crítica sobre Oiticica, esse aspecto é deixado em segundo plano, priorizando a questão participativa. Procuramos, portanto, compreender a forma de Hélio Oiticica pelo informe explorando a noção de adversidade criada a partir da relação entre a forma e o exterior, visto tanto como espaço externo quanto como cultura. Oiticica retomou a confecção de pequenos objetos no final de 1977 e os chamou de Topological ready-made landscapes e, a partir dessa experiência, disse ter feito a verdadeira descoberta da cor a partir da forma do readymade, comparando seus bólides anteriores ao “fim da representação”. A interioridade marcada dos bólides produzidos nos anos 60 não é repetida nesse segundo momento, quando os objetos estão voltados para o exterior. A intenção de Oiticica, com os TRML é alterar a paisagem, construir ambiências a partir dos objetos, usando a manipulação para isso. “São vidros onde eu coloco uma cor (...) e por fora desliza uma fita ou faixa de borracha também de cor, então você muda a paisagem conforme você quer, subindo ou descendo a fita, sem dobrar, alterando a paisagem”.6 Ou seja, a interferência dos objetos e da cor no espaço de entorno é importante aqui. Embora Oiticica tivesse trabalhado transparências nos bólides (Homenagem a Mondrian é exemplo novamente), a alteração do espaço pela cor não parecia ser sua principal preocupação. Em contrapartida, a exterioridade é bastante marcada nessa produção do final da

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6 Oiticica, Hélio. Fala, Hélio – entrevista concedida a Lygia Pape (1978). Ars n.10. São Paulo: Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais/Escola de Comunicação e Artes, USP, 2007, p. 7-16.


vida do artista. Ao nomeá-los Topological ready-made landscapes e não bólides, o artista afirma a principal distinção entre eles. Apesar de os TRML serem objetos cujo propósito e destino são a manipulação e formalmente também serem apropriações de objetos cotidianos (um recipiente plástico de xampu infantil, uma garrafa de vidro de desinfetante, tramas, etc.), eles são muito mais voltados para o espaço exterior do que para si mesmos. A principal diferença material é que nesses objetos “tardios” Hélio Oiticica sempre colocava um elástico ao redor dos volumes, de modo que pudesse ser mudado de lugar, mas sempre envolvendo o objeto. Lidando com os TRML percebemos também que eles são objetos apropriados e menos alterados, menos trabalhados pelo artista do que aqueles que ele chamou de bólides. Na verdade, estes são peças totalmente construídas a partir de sobras do dia a dia. Os TRML são apropriações de objetos em si, e a relação que o artista explora é mais com o espaço (daí o nome landscapes, aludindo à construção de paisagens que aqueles objetos e a cor promovem no espaço) e menos com a questão material no que tange a sua natureza, sua rusticidade e aspereza. Podemos até arriscar dizer que os TRML não se preocupam com a impressão de participação adversa em primeiro plano, que seria o propósito central dos bólides. De volta aos bólides, a forma contingente das caixas e recipientes de vidros dá aos objetos uma presença que não passa despercebida no espaço. De maneira austera, os objetos se colocam diante do espectador, como se tivessem personalidade forte e demarcada. Da mesma forma, a espacialidade interna muito marcada torna esses objetos um tanto voltados para si mesmos. A especialidade espacial dos bólides não é a de construir ambiências ou de preencher de luz o ambiente em que são colocados (exceto talvez o B39 Bólide Luz, que era uma luminária infantil com uma lâmpada), e sim a de marcar, por sua interioridade, sua presença no espaço. A relação dos bólides com o espaço é, em geral, problemática, pois contida, como que dada por formalidades colocadas pela presença do objeto. Podemos dizer que não se desejam descortinar para fora deles mesmos e, por isso, não “percorrem” o espaço. Embora sejam objetos tridimensionais, muitas vezes parecem lidar com a espacialidade da pintura a que constantemente fazem referência. Nos bólides caixa as partes manipuláveis geralmente saem de dentro de uma caixa maior; funcionam sempre como uma portinhola, uma gaveta ou um alçapão. São articulações, ligadas à caixa de madeira principal do objeto. É impossível desmembrar um bólide caixa no espaço. Nos bólides vidro, a fluidez é maior graças às telas de náilon ou de juta. Entretanto, a maleabilidade e a liberdade tanto para manipular quanto para avançar no espaço são restritas pela forma principal, que serve de base e se mantém impassível. Um bom exemplo dessa relação contida é o B18 Bólide Vidro 6 Metamorfose (1965), cuja “base estática” é composta por cinco vasos quadrados de vidro colados entre si formando um retângulo irregular. Os vidros são cheios de pigmento em pó de distintos tons de amarelo, o que faz com que cada vidro se assemelhe a um tijolo vitrificado de um tom específico. A solidez da base vítrea do objeto é equilibrada pela plasticidade aerada da parte superior, onde estão emaranhados folhas de plástico transparente e amarelo e pedaços de trama de

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náilon pintados de maneira irregular com tinta a óleo. Dessa forma, quando examinamos a trama, vemos que algumas partes são cobertas pela tinta e outras não, ora permitindo ver a trama que há por baixo, ora vendo mais da pintura do que o substrato. Conforme dito, esse objeto não se abre no espaço, não se descortina para além daquilo que a base de vidro permite. Embora não se trate de composição visualmente pesada, porque a transparência da base de vidro passa ao espectador uma falsa noção de leveza e as formas plásticas da parte superior sejam armadas e se sustentem para cima, a manipulação e mesmo um olhar mais atento atestam que não há muito em que mexer, não há como desmembrá-lo ou moldá-lo de modo diferente. Na tentativa de compreender essa peculiar relação com espaço, podemos fazer um contraponto dos bólides com os Bichos, da artista Lygia Clark. Confrontar os dois é de extrema valia por sua contemporaneidade e pela associação que a crítica comumente faz de suas obras representativas do desenvolvimento inovador da arte contemporânea brasileira. De fato, os Bichos são igualmente formas táteis de experiência e foram desenvolvidos por Clark entre os anos 60 e 64. A interpretação dos objetos e sua alteração espacial dependem, em parte, do manipulador, que é integrado pela dimensão espacial da obra quando realiza a intervenção. Há, porém, uma diferença crucial: os Bichos são mais do que simples estruturas articuladas (placas de alumínio em formatos geométricos); são peças pensadas para a articulação, nas quais a manipulação promove a mudança da forma original exatamente pelo rearranjo feito com as dobras. Os bólides, a título de comparação pontuada, são estruturas de manipulação que trazem alguns elementos articulatórios, mas são ancorados numa forma fixa. Os Bichos são estruturas que percorrem o espaço pelas mãos de quem os manipula, objetos que permitem não apenas a manipulação mais casual e descompromissada, mas também maior fluidez através da estrutura morfológica, armada e dobrada das folhas de alumínio. A observação de outro bólide levanta mais hipóteses no que diz respeito à espacialidade contida. Em 1967, Oiticica fez quatro bólides saco, sendo o B52 Bólide saco 4 Adaptável (1966-1967) aquele que mais nos chama a atenção. Trata-se de plástico transparente costurado na forma de um saco, um retângulo fechado em um dos lados e aberto em outro. Na barra do lado aberto, há a frase “Teu amor eu guardo aqui” feita com letras recortadas de tecido vermelho. Um bólide que pode ser vestido e utilizado sobre o corpo chama a atenção exatamente por ser um bólide, e não um parangolé, como os desenvolvidos entre 1964 e 1968. Qual característica garante para essa obra sua existência enquanto bólide? Aparentemente a diferença entre este e os parangolés é a forma de contingência e a construção da espacialidade orientada pela forma. A observação de vídeos que mostram Hélio e outras pessoas vestindo os parangolés e os bólides saco revela a importância da questão da forma e da espacialidade por ela criada. Heliorama (2004), documentário experimentação de Ivan Cardoso traz imagens de uma performance na qual o artista veste calça de tecido metalizado nas cores verde e rosa da escola de samba da Mangueira, sapatos prateados de passista e, na parte de cima, sobre o peito nu, o Bólide saco Adaptável.

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B9 Bólide caixa 7 (1964) refletindo um morador do Morro da Mangueira. Fonte: Ramirez, 2007, p. 60.

A coletânea de vídeos O espetáculo e a delicadeza, que acompanha o livro Arte brasileira 7 Duarte, Paulo Sergio. Arte brasileira contemporânea – um prelúdio. São Paulo: Silvia Roesler Edições de Arte, 2009.

contemporânea – um prelúdio, de Paulo Sergio Duarte,7 traz por completo esse registro de movimento, filmado em 1979 e identificado como “Hélio Oiticica filmado na frente de um supermercado no Leblon”. Podemos observar que a movimentação do corpo do artista está sempre limitada pelo saco. Ele executa movimentos de passista sem grande desenvoltura, para frente e para os lados, respeitando a condição de verticalidade imposta pelo saco. A visibilidade permitida pela transparência do material plástico não garante sua expansão para o espaço ao redor: Hélio está dentro do objeto, encapsulado por ele. A interioridade enfatizada dos bólides aqui se deixa perceber facilmente, pois a transparência do saco permite a visão do artista dentro dele, no interior contingente e restritivo. A mesma coleção de imagens traz a captura dos movimentos de Hélio vestindo o Parangolé P4 capa 1 formado por pedaços de tecidos de várias cores (azul, verde, mais de um tom de amarelo e laranja) e diferentes tamanhos, tais como pétalas ou folhas costuradas de maneira irregular. Por ser um “amarrado” de partes coloridas de tecido que o artista veste como uma camisa, esse parangolé (como os demais) libera os braços de quem o veste. O movimento, articulado estruturalmente por quem veste, certamente encontra maior fluidez pela liberdade concedida pela forma, dada a organicidade de sua união com o corpo. É óbvia a maior liberdade de movimentos estimulada pela forma do parangolé, e essa breve comparação serve mais para enfatizar a natureza contingente dos bólides e

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a espacialidade igualmente restrita que ela possibilita do que para colocar as diferenças entre as duas séries de objetos, dado que escapa ao escopo da pesquisa. Para tornar mais complexa a relação entre o dentro e o fora, há ainda que apontar característica peculiar de outro bólide, no qual a presença de um espelho pode inverter a relação de oposição entre interior e exterior com que trabalhamos até aqui. B9 Bólide caixa 7, é, mais uma vez, uma caixa de madeira pintada em tom forte de amarelo e, como outras analisadas, apresenta uma de suas partes passível de deslizamento, como uma gaveta. O que o diferencia dos demais é o já citado espelho retangular, que reflete o entorno em que o bólide se encontra. O espelho é capaz de trazer para dentro do objeto o que está do lado de fora, desconstruindo a noção de oposição, se ela for vista como via de mão única. O exterior torna-se interior, mesmo que momentaneamente, ao mesmo tempo em que aquilo que está fora continua presente do lado de fora também. O dentro e o fora: o atrito entre interioridade e cultura A oposição de interior e exterior se manifesta não apenas na tensão entre fechamento e abertura, mas também entre interioridade e cultura, originando complexa espacialidade, na qual a adversidade e a contraposição se afirmam como forma. A cultura material cotidiana mais uma vez entra em nossa análise por ser um dos componentes dos atritos entre as obras de Hélio e a cultura. Em sua vivência no Morro da Mangueira, Oiticica costumava levar para o ambiente da favela alguns de seus bólides e parangolés, objetos que tinham como admitida referência inicial algum momento vivido ou observado pelo artista de situação de precariedade. Em 1964, no trajeto de ônibus para seu trabalho no Museu Nacional da Quinta da Boa Vista, Oiticica teria visto na Praça da Bandeira a construção de um mendigo, feita de ripas de madeira, cordas e arame farpado, com frase “aqui é... parangolé” pintada. No ano seguinte, sua amiga Desdemone Bardin fez fotos com ele que são consideradas pelo Projeto Hélio Oiticica “a gênese dos parangolés”.8 As fotografias trazem objetos despejados em locais de relativo abandono. A primeira mostra Hélio e Jackson Ribeiro, em um terreno ao lado

8 Ramirez, Carmen (org.). Hélio Oiticica: The Body of Color. Londres: Tate Publishing, 2007.

da linha do trem, observando uma faixa de tecido com dizeres pendurada por um único ponto, formando uma pequena cobertura, como uma barraca ou tenda. A segunda mostra uma pilha de latas, formando um retângulo irregular, tendo sido clicada nos arredores da Mangueira. A terceira também dispõe poucas latas, uma garrafa de bebida e um saco plástico preto ao pé de uma árvore franzina, onde há alguns pedaços de pano ou plástico, tirada no estacionamento do MAM do Rio. As fotografias, capturas de momentos visivelmente organizados pelo artista a partir do lixo e usando objetos largados nos locais, permanecem como documentos visuais dessa noção de que os bólides e os parangolés9 seriam abstrações da própria condição de precariedade (e, por consequência, de adversidade) encontrada nas ruas. Além disso, como as fotografias foram feitas em espaços marginais (terrenos vazios cheios de lixo e entulho ao lado da linha do trem e próximos à favela ou um estacionamento), tornam irresistível a ideia de que os bólides tomaram forma a partir

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9 Embora a fonte em que observamos as fotos (o livro citado) as utilize como ilustração da “gênese dos Parangolés”, pensamos que elas também ilustram algo da noção inicial dos bólides, especialmente a fotografia das latas empilhadas.


Hélio Oiticica e Jackson Ribeiro em 1965 (foto: Desdemone Bardin). Fonte: Ramirez, 2007, p. 374

dessa condição urbana marginal, do lixo e do abandono dos locais inabitados e entrópicos. Os espaços produzidos pela urbanidade como excessos que constituem vazios seriam abjetos da metrópole, sobras do uso “oficial” da cidade. Seriam esses espaços os “berços” ideais para os objetos de Hélio, que aproveitaria também a noção daqueles espaços como informes na estruturação das obras. A cultura como agente provocador de adversidade para a obra também é entendida no contexto social em que a trajetória de Hélio Oiticica e suas obras se inscreveram. Oiticica sempre pretendeu um sentido político para seus trabalhos, embora jamais o fizesse através de frases de efeito e imagens de óbvia conotação política como, por exemplo, as Urnas quentes (1968) de Antônio Manuel. Defensor da necessidade de “(...) colocar no sentido social bem claro a posição do criador, que não só denuncia uma sociedade alienada de si mesma mas propõe, por uma posição permanentemente crítica, a desmitificação

10 Figueiredo, Luciano (org.). Lygia Clark – Hélio Oiticica: cartas 1964-1974. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 1996. p. 74.

dos mitos da classe dominante (...)”,10 Hélio compreendia que o papel do artista seria também sociopolítico. Sendo tão individualmente envolto nas questões acerca da arte da natureza do objeto e da pureza pelas cores, nada mais pertinente do que pretender

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colocar-se criticamente através das formas abstratas e menos explícitas, numa tomada de posicionamento subterrâneo. Diante do sentido de uma cultura exterior que seria por ela mesma adversa, um dos mecanismos que Oiticica utiliza é devolver o espectador para o mundo. A forma de caixa, ora impenetrável, ora disponível, e as cores capazes de repelir mantêm o outro no exterior adverso. B09 Bólide Caixa 7 (1964) é exemplo contundente dessa dualidade de interioridade e cultura. A precariedade proposital de sua construção faz com que o reflexo daquele que olha para seu interior transponha o observador para dentro da situação adversa. Ao mesmo tempo, torna o bólide parte integrante do seu lado de fora. Enfim, borra as fronteiras entre o interior e o exterior da caixa, afirmando, duplamente, a adversidade do precário. Esse mesmo mecanismo aparece em uma obra da artista Lygia Pape, a Caixa de Baratas (1967), uma caixa retangular de acrílico com 28 baratas ordenadamente dispostas sobre fundo espelhado. Utilizando também o recurso de fazer de quem se aproxima do objeto parte integrante dele através da imagem refletida, a artista também cria uma situação adversa para o espectador ao espelhá-lo junto às baratas de seu interior. Esses insetos são considerados por unanimidade os restos da civilização, e podemos até dizer que são explicitamente abjetuais. De maneira diversa do bólide citado, a condição adversa criada por essa caixa de baratas envolve a repulsa do espectador. Entretanto, nos dois exemplos, o jogo de imagens operado pelo espelho traz o sujeito e o espaço exterior para dentro da situação de adversidade construída e utiliza essa própria captação do que está fora para construir a situação de adversidade. Além disso, devolve ao mundo aquilo que é adverso e que dele retirou, criando um duplo movimento de troca, confundindo as fronteiras entre o dentro e o fora. Uma hipótese para entender o espaço contingente dos bólides seria a de que esses objetos e outros realizados por Hélio Oiticica se referem antes de tudo à pintura. Martinez pensa elementos da pintura na composição da obra Tropicália (1968). Segundo o autor, a matéria disposta no chão da instalação delimita campo tal como uma tela que, articulada com as superfícies verticais dos penetráveis Imagético e A Pureza é um Mito, “sugere a planaridade própria do campo pictórico, aludindo a uma das grandes telas de Jackson Pollock, que eram pintadas sobre o chão”.11 A forma de A Pureza é um Mito – um pequeno quadrado formado por superfícies de madeira retangulares com dois metros de altura e pintadas nas cores azul, vermelho, amarelo e branco – é aberta na parte superior, enfatizando a planaridade das superfícies pela abertura e as relações estruturais que ocorrem

11 Martinez, Vicente. Uma pintura no espaço do mundo. In Medeiros, M. (org.). Arte em pesquisa: especificidades, v.1. Brasília: Editora da Pós-Graduação em Arte da Universidade de Brasília, 2004, p. 318-324.

dentro dos limites das quatro margens da tela. As estruturas ortogonais dos penetráveis estão presentes nos bólides caixa e são referências diretas a Mondrian, declaradamente o artista mais influente para Hélio Oiticica. As caixas e paredes estabelecem uma ordem abstrata com o espaço, e, embora não “exclusivamente uma ordem plástica formal, mas também de ordem cultural e social”,12 a ordem espacial dada pela forma aparece de maneira bastante marcada. Pensando na especificidade dos bólides vidro, ainda que em alguns casos a forma não seja retangular, há uma relação de perpendicularidade entre os

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12 Idem, ibidem, p. 321.


recipientes de vidro, em que o pigmento em pó fica em depósito ou em suspensão, e os pedaços de tela, plásticos e tecidos endurecidos que são projetados para cima dos vidros (nos referimos especialmente a B15 Bólide vidro 4 Terra, B17 Bólide vidro 5 Homenagem a Mondrian e B18 Bólide vidro 6 Metamorfose). Ademais, a transparência dos vidros permite a visualização do pigmento, o que parece aludir mesmo à questão da cor e do substrato da tela da pintura, bem como a sua penetração no espaço, como irradiação possível, mas um tanto limitada. De modo geral, as referências a Mondrian para Oiticica aparecem através da tensão de elementos, como se o brasileiro desse às cores e formas básicas de Mondrian outro sentido. O básico e essencial para o holandês são a geometria e as cores puras existentes apenas no mundo da arte, enquanto Hélio pensa naquilo que é básico na vida, na cultura – destituindo essa noção de qualquer conotação de pureza e, por sua vez, pensando sobre o procedimento básico da cultura brasileira – a exclusão, o abjeto, o adverso. Os marginais, os objetos descartados, os materiais usados nas construções seriam, portanto, os elementos constitutivos da realidade mais essencial. A própria citação de Mondrian no nome do bólide Homenagem a Mondrian seria maneira de articular a tensão entre os mundos da arte e da exterioridade, profundamente rejeitada por Mondrian. Oiticica, ao contrário, parece ter vivido dessa tensão. A verdade é que mais do que criar tensão, a ordem plástica formal dos bólides se confunde com a realidade do mundo do qual retirou os elementos para compor sua identidade de abstração. Ao posicionar um bólide no espaço aberto real “(...) o mundo das estruturas abstratas de Mondrian parece se render ao peso das ações terrestres, passando (...) a tocar 13 Idem.

a terra (...)”.13 O sentido de abstração se confunde com a rusticidade da matéria usada em sua construção, na mescla de terra e pigmento, aproximando a terra, o orgânico e o natural ao sintético da cor pura da pintura abstrata.

Carla Hermann (Rio de Janeiro, Brasil) é mestre em artes pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. / carla.hermann@gmail.com

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Espaços em trânsito* Jacqueline de Moura Siano

Síntese de minha dissertação de mestrado, In transit: uma reflexão sobre ações artísticas em espaços de passagem, em que, partindo de minhas próprias ações, investigo novos modos de pensar práticas artísticas realizadas em espaços públicos, este artigo procura compreender a melancolia e a esperança como princípios ativos das ações que invadem as rotinas urbanas cotidianas e nelas interferem. Busca flagrar o próprio fluxo entre espaços, imagens, seres e objetos, sempre em contínua transformação. Propõe intervenções poéticas em espaços públicos de passagem, visando a mudanças sutis no que se refere aos hábitos desenvolvidos nas relações com esses espaços e os elementos que os atravessam. Rotina urbana, melancolia, esperança. É isso: tudo está ao alcance do homem e tudo lhe escapa, em virtude de sua covardia... Já virou até axioma. Coisa curiosa a observar-se: * Artigo recebido e aceito para publicação em agosto de 2010.

que é que os homens temem, acima de tudo?

1 Dostoiévski, 2010, v. 1, p.12.

eis o que o mais apavora...”1

O que for capaz de mudar-lhes os hábitos:

Por um lado a rotina dos deslocamentos cotidianos urbanos, os espaços e ritmos envolvidos nos processos de circulação que se repetem continuamente. Por outro, o movimento repetitivo das imagens em vídeo. Os procedimentos padronizados de captura e as técnicas estabelecidas e consagradas para montagens. Em meio a isso as vidas que seguem ritmos regulares na escala diária, na escala sazonal, na escala anual, na escala das faixas etárias e na escala que iguala uma vida à que a sucedeu. Repetição de lugares, ritmos, técnicas, vidas. O que será, porém, que os conduz a se reportarem como os mesmos, isto é, cada vez mais homogêneos e mais sem escape? Em minhas ações em meio à crescente indiferenciação experimentada no meio urbano, poderia haver planejado precisa e monotonamente cada movimento a ser realizado. Poderia ter antecipando o efeito desejado sobre a mente de cada passageiro que fosse capturado nesse vórtice entre observado e observador, entre ator e espectador, entre fator Cobrador 438, fotografia digital, 2010, dimensões variáveis.

e resultado, entre paciente e agente. Poderia haver predeterminado de modo exaustivo todas as possibilidades de cada tomada e de cada montagem e já ter como seguro que isso

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é suficiente. Mas me pergunto por que se esgotaram os desejos nessa direção e o quanto é justamente esse esgotamento que pode compelir a mudanças. Atração O que hoje posso dizer é que, de modo incomum, a rotina me atraiu. O cotidiano tornouse objeto de minha atenção. A compulsão levou-me às plataformas, aos vagões, aos coletivos; a mergulhar no espaço urbano, que tanto me atrai, levando-me a explorar não somente a rotineira repetição dos trânsitos e deslocamentos que neles ocorrem, mas também as possibilidades de deslocamentos nos modos de pensá-los e nos modos de com eles me relacionar. Em que medida certas características pertencem a um espaço em si e em que medida lhe são atribuídas por quem com ele se relaciona? Até que ponto a rigidez das condições impostas por um meio são decorrentes das limitações de certo observador para perceber as oportunidades de alteração desse meio? A opressão pode não resultar exclusivamente do espaço urbano em si, mas também sofrer considerável influência dos modos de pensar daqueles que por ele transitam ou o habitam. Mútua influência Hábitos interferem e moldam os relacionamentos com o espaço que se ocupa. Imposição de ritmos, repetição de fluxos, aceleração, especulação, especialização, delimitação, confinamento, claustrofobia, sufocamento, isolamento, distanciamento, melancolia, desespero, alienação, desorientação, vigilância, controle, adestramento, conformação, esquecimento, esvaziamento, esgotamento, espetáculo e excessos podem ser resultantes dos encontros entre as características de um espaço e as maiores ou menores capacidades de seus ocupantes para com eles interagir. Nessas interações, tanto as características do meio podem alterar os ocupantes, influenciando-os, quanto esses podem ser capazes de alterar as características do meio. Trata-se de perguntar o quanto a tristeza ou a alegria podem estar não apenas na cidade. Trata-se de investigar o quanto podem estar-se originando não somente do texto urbano, mas também de traços dos leitores que com ele se relacionam. Passo então a me importar com a sensação de melancolia que brota desses relacionamentos urbanos, a sentir o quanto talvez seja preciso entristecer para que cheguem a surgir, precisamente a partir dessa tristeza, forças para agir. A partir desse impulso que se ensaia do fundo de um esgotamento, passo também a visualizar um modo transmutado de esperança que talvez possa provocar deslocamentos e mutações nos comportamentos que se cristalizaram nas relações entre esses espaços de trânsito e seus ocupantes. Esses que, em

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última análise, marcham diariamente para um ponto em que tendem a não mais transitar no tempo, isto é, a não mais mudar, seja de um dia para o outro, seja do trabalho para casa, seja de uma vida para a que a sucede. Excesso As sensações de agonia, ansiedade, aflição ou angústia desencadeadas por entorpecente repetição talvez colaborem nos modos de pensar o espaço urbano sob perspectiva que o toma como um lugar de excessos. Numa palestra em Tóquio, para um grupo de arquitetos japoneses, Wim Wenders relata sua vivência de viajante que se depara com múltiplas paisagens especialmente nas diferentes cidades para as quais dirigiu sua câmera. Analisa as conexões entre cinema e cidade relatando suas imbricações; onde uma se faz documento da outra e diz que o cinema “é o espelho adequado das cidades do século XX e dos homens que aí vivem (...) capaz, como nenhuma outra arte (...) de captar o clima e os fatos do seu tempo, de exprimir 2 Wenders, 1994, p. 181.

suas esperanças, suas angústias e seus desejos (...)”.2 Segundo Wenders essa relação está acompanhada de uma espécie de esgotamento por excessos. Em sua opinião, nossa civilização sofre de “bombardeios de imagens” nunca antes experimentados; algo que não tende a diminuir; bem ao contrário, “se intensificará ainda mais (...) Os computadores, os jogos eletrônicos, os videofones, a realidade virtual

3 Idem, ibidem, p. 183.

não passam de componentes dessa inflação”.3 A própria sedução das imagens as torna vazias e desvalorizadas, sobretudo depois de sua exploração pela publicidade. Melancólico, Wenders vê uma inseparável relação entre o processo de distanciamento das imagens, que haviam sido criadas para “mostrar” e passaram a ser utilizadas para “vender”, e as cidades “cada vez mais alienadas e alienantes” cujos centros são ocupados pelas corporações e tomados pela especulação imobiliária

4 Idem, ibidem, p.124.

“pela indústria do consumo e do espetáculo”.4 No documentário Janela da alma (2001), de João Jardim e Walter Carvalho, Wenders relata a superabundância das imagens que desviam nossa atenção para o que realmente importa, deixando todos vazios de emoções, e afirma que “as histórias simples; não

5 Fala retirada do depoimento de Win Wenders no documentário de João Jardim e Walter Carvalho Janela da alma, (2001).

conseguimos mais vê-las”.5 Nesse mesmo documentário, José Saramago reconhece que o excesso de produção de imagens acarreta distúrbios nas relações sociais, como a perda de memória de nós mesmos, e declara que “Vivemos todos numa espécie de lunapark audiovisual. Vamos acabar todos com os sentidos perdidos (...) perdidos de nós próprios

6 Fala retirada do depoimento de José Saramago no documentário de João Jardim e Walter Carvalho Janela da alma, (2001).

(...) perdidos na nossa relação com o mundo (...).6 As visões de Wenders e Saramago me fazem questionar em que medida somos incontrolavelmente oprimidos por esses excessos. Em que medida é justamente em meio a esses exageros e abusos que, carregados de tensão, de energia, podemos desencadear novas

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mutações? Quanta força a melancolia levada ao extremo pode nos dar para que mudemos os modos de interagir com opressivas repetições de imagens? A diferença entre a percepção de se estar esvaziado ou sobrecarregado – ou esgotado em ambos os casos – e perceber esse esvaziamento ou sobrecarga como fatalidade ou oportunidade de provocar mudanças talvez seja dependente do tipo de esperança com o qual se aborda uma realidade.7 Esquecimento Outro modo de perceber o espaço urbano remete a uma forma diferente de experimentar esquecimentos. Com o desenvolvimento industrial e comercial afetando criticamente o espaço das cidades e com as respostas urbanísticas que foram efetuadas a fim de lidar com essas crises,

7 Como Wenders e Saramago também observo um esvaziamento por excessos. Diante disso, procurei orientar meus trabalhos para uma economia tanto na captura direta de imagens e sons quanto nas apropriações de imagens de filmes, que depois faço retornar ao público desdobradas na forma de videoinstalações ou em projetos para outros espaços, reservados ou não à recepção de trabalhos de arte. Afastando-me da utilização de dispositivos sofisticados para captura de imagens e sons, penso poder ativar outros sentidos que não só o visual.

começam a surgir certas especializações nos espaços coletivos das cidades. Pontos, traços, linhas, medidas e padrões configuram afastamentos e agrupamentos e induzem fluxos de pessoas conforme novos modos de convivência. Esses novos modos se distanciam de uma antiga natureza, isto é, de antigos modos de ser animal, e se aproximam da inauguração de novas tendências naturais, massivas e largamente encontradas nos meios urbanos que se desenvolvem por todo o planeta. Isso vai conformando novos modos de existir que mais claramente refletem conflitos da presença desse outro animal que vem a ser o homem urbano. As cidades, que a princípio florescem para a proteção dos homens e a aproximação deles, passam a sufocar antigas formas de convívio e a favorecer outros modos de interação entre seus habitantes. Robert Smithson no retorno a sua Passaic natal (1967) vê uma cidade com espaços degradados. Melancólico, registra e nomeia alguns sítios como monumentos; ruínas sem qualquer memória afetiva numa paisagem artificial. Sobras estéreis de um movimento expansionista acelerado. Com a ação de registro fotográfico desses lugares, transmuta o próprio conceito de monumento e as relações do homem e da arte com a paisagem. A lógica do monumento, usualmente ligada a uma representação comemorativa e vinculada a um sítio determinado – que declara certas relações entre tempo e espaço –, colapsa. Ironicamente, os monumentos, que deveriam rememorar feitos e datas históricas, acabam fadados ao esquecimento.8 No instante em que são erguidos, parecem querer apontar para a amnésia do próprio futuro, por isso Smithson nomeia esses lugares como monumentos, ao mesmo tempo em que transforma a fotografia documental em trabalho de arte, direcionando esses registros para a galeria. A cidade de Passaic reflete um futuro desencantado e desgastado “(...) cheia de buracos, comparada com a cidade de Nova York, que parece compacta e sólida, e esses buracos em

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8 Que memória se deve ativar? No trabalho de Leila Danziger a poética é a do esquecimento, ou da fragilidade da memória, e seu monumento é o jornal, palco do esquecer diário, receptáculo da amnésia coletiva. Em recente artigo para um periódico (Papel das Artes, n.12), a artista traz para discussão o estatuto e o lugar da obra pública como mediadora de um processo em que há assumidamente “(...) o compromisso de revigorar e qualificar o nosso tão combalido espaço público” (Danziger, 2009, p. 26-27). Segundo a artista, “os jornais traduzem a falácia de um tempo linear, vazio e homogêneo: tão logo surgem, acumulam-se numa massa de esquecimento, transformam-se em dejetos da humanidade” (Danziger, 2007, p. 172).


Sem título, fotografia de celular, 2009, 10 x 15cm.

certo sentido são os vazios monumentais que definem (...) traços de memória de uma série de futuros abandonados”.9

9 Smithson, 2001, p. 46.

Os trabalhos de Smithson poderiam ser tomados como indicação de um incontornável futuro catastrófico. Essa interpretação poderia advir igualmente das colocações de Wenders e Saramago. Porém, se por um lado é preciso não ocultar os fatores perversos associáveis aos excessos, esvaziamentos e esquecimentos por eles apontados, por outro é preciso explorar o quanto é justamente a atitude de não negar a visão do desfavorável que nos pode prover caminhos para trabalhá-lo. Pergunto-me o quanto pode estar no dinamismo e mutabilidade das práticas artísticas o caminho para pensar o movente no urbano e o mutante no vivente. Espaço urbano Diante do peso de certas características constatadas no espaço urbano a apatia não seria uma saída incomum; porém meu olhar insiste em vê-las também de outro modo. Não se trata de negar delirantemente a melancolia, o excesso e o esquecimento pelos quais me possa sentir envolvida. Trata-se de perguntar de que outros modos posso me relacionar com a realidade. De que outros modos posso olhar os espaços que atravesso, mudando assim minha forma de relação com esses lugares? Nasci, vivo e trabalho no Rio de Janeiro – ponto de apoio entre idas e vindas por outros lugares. Aqui tenho meu domicílio. Meu olho passeia por seus contornos de montanhas, florestas, praias, edifícios e gente. Complexa paisagem formada por vários tecidos urba-

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nos e não urbanos em constante pulsão e mudança, cuja potência conduz à vertigem. Meu olho resvala em alguma paisagem que me parece mais perene. O Corcovado e os Dois Irmãos com a Floresta da Tijuca derramando-se sobre suas encostas. O Monumento aos Pracinhas no Aterro do Flamengo, a igrejinha da Glória, a Praça Paris e o prédio da antiga Mesbla acionam a memória de outras vivências, de minha infância e adolescência. A cidade em sua geografia sugere um sanduíche entre o Oceano Atlântico e o Maciço da Tijuca. A faixa edificável, assim comprimida, é densamente povoada. A cidade se espraia em direção aos morros e mata, mas, embora preserve amplos espaços de respiração – coisa incomum em outras partes –, não consegue esconder em seus contornos os problemas sociais e de relacionamentos que a atravessam. O espaço urbano se move, muda. Nele nossos corpos se apresentam como receptáculos de afetos e agentes modificadores à medida que o experimentamos. Espécie de texto aberto às mais variadas interpretações sobre modos de fazer, o ambiente urbano apresenta dinamismo que irradia sua potência de organismo vivo, e assim o sinto como lugar privilegiado para a arte. Espaço de enunciação Um dos aspectos importantes sobre o dinamismo urbano é que os deslocamentos que nele ocorrem produzem enunciações. Michel De Certeau experimenta a cidade de Nova York do alto. Lá embaixo passam pedestres em suas rotinas diárias. Segundo De Certeau, “Aquele que sobe até lá no alto foge à massa que carrega e tritura em si mesma toda identidade de autores e espectadores.”10

10 De Certeau, 2008, p. 170.

Daquele ponto de observação, o olhar que aprendeu a enxergar as cidades e as pinturas com o auxílio da perspectiva pensa-se invisível e soberano sobre a multidão ao longe. Assim deslocado, julga-se inatingível. Lá embaixo, o anonimato rege os caminhos cotidianos: (...) vivem os praticantes ordinários da cidade. Forma elementar dessa experiência, eles são caminhantes, pedestres, Wandersmänner, cujo corpo obedece aos cheios e vazios de um “texto” urbano que escrevem sem poder lê-lo (...) Os caminhos que se respondem nesse entrelaçamento, poesias ignoradas de que cada corpo é um elemento assinado por muitos outros, escapa à legibilidade. Tudo se passa como se uma espécie de cegueira caracterizasse as práticas organizadoras da cidade habitada. As redes dessas escrituras avançando e entrecruzando-se compõem uma história múltipla, sem autor nem espectador, formada em fragmentos de trajetórias e em alterações de espaços: com relação às representações, ela permanece cotidianamente, indefinidamente, outra.11

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11 Idem, ibidem, p. 171.


Ainda que invisíveis aos olhos, os percursos criam espaços na cidade. Infinitos trajetos que os mapeamentos se esforçam por reproduzir. De acordo com De Certeau, “Os jogos 12 Idem, ibidem, p. 176.

dos passos moldam espaços. Tecem lugares”.12 Assim o ato de caminhar cria um sistema de enunciação que divulga e constitui as narrativas urbanas através de linguagem própria, em que “o ato de caminhar parece portanto encontrar uma primeira definição como

13 Idem, ibidem, p 177.

espaço de enunciação”.13 Nossos corpos transmitem mensagens, assim o movente institui

14 Idem, ibidem, p.178-179.

distanciamentos e aproximações, “cria uma organicidade móvel no ambiente”.14 De Certeau acredita na potência desses fluxos que de alguma forma nos resguardam da imobilidade, da repetição do mesmo – e por não pertencerem a um lugar fixo e predeterminado, podem vir à tona no momento exato em que se fazem necessários para trazer modificações. Uma espécie de arquivamento de formas de fazer e de pensar, mas ao mesmo tempo uma capacidade para reinventar o próprio cotidiano. Tal potência gera novos modos de vida, instaura pluralidades e escapa assim à fixidez de condições. (...) esses ‘modos de fazer’ criam um espaço de jogo mediante uma estratificação de funcionamentos diferentes e que interferem uns aos outros. Desta forma, o norte-africano que vive em Paris ou em Roubaix imprime/modela as maneiras de ‘habitar’ (uma casa ou uma língua) próprias de sua Cabília natal, no sistema que lhe impõe a residência e a convivência social ou o sistema da língua francesa (...), instaura pluralidade e criatividade. Graças a uma arte do intervalo [arte de l’entre-deux], obtém efeitos imprevisíveis. São operações que burlam a eficiência dos regimes de poder desviando os modos de usar os bens culturais, gerando metamorfoses na ordem atuante, criando anônimas cotidianidades, reinventando o espaço de suas relações. Outros espaços Para Michel Foucault, há muito as relações com o espaço se vêm modificando. Desde o espaço medieval ou espaço da ‘localização’, considerado aquele no qual oposições e intersecções compunham uma hierarquia definida, marcada por sua fixidez e dicotomias bem assentadas, passando pela ‘extensão’ da percepção espacial – radicalmente alterada pelas investigações de Galileu, que permitiu a concepção de um espaço infinito –, às relações em rede do mundo moderno. Na atualidade, segundo Foucault, vivemos experiências múltiplas em redes de relacionamentos formadas por pontos que se entrecruzam na trama do espaço; assim, a extensão foi substituída pelo ‘posicionamento’. O ‘sítio’ substitui a extensão do pensamento do período moderno e é definido por relações entre elementos ou pontos em séries ou conjuntos, podendo essas relações ser de proximidade, de armazenamento, de circulação, de demarcação e de classificação dos elementos que se estão relacionando. O posicionamento

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se define pelo próprio conjunto de relações que acolhe; “vivemos no interior de um conjunto de relações que definem posicionamentos irredutíveis uns aos outros e absolutamente impossíveis de ser sobrepostos”.15

15 Foucault, 2004, p. 414.

Alguns desses sítios são utilizados como espaços “de posicionamento de passagem”, como as ruas e o trem; outros são usados por breve espaço de tempo, como os cafés, os cinemas, as praias – “espaços de posicionamento de parada provisória”.16

16 Idem, ibidem.

Entre tantos outros, Foucault destaca as ‘heterotopias’; “(...) espécies de utopias efetivamente realizadas (...)”.17 Espécies de ‘contra-sítios’, isto é, como se fossem utopias reali-

17 Idem, ibidem, p. 415.

zadas onde todos os outros sítios reais de uma cultura podem ser encontrados e ao mesmo tempo representados, contestados e invertidos. Espaços que deslocam e questionam o que se apresenta como ‘real’ na sociedade; em toda e qualquer sociedade. Embora se possa indicar sua posição geográfica real, esses sítios estão fora de todas as classificações de lugares; “(...) espécies de lugares que estão fora de todos os lugares (...)”.18 Impregnadas

18 Idem, ibidem.

de especificidades, as heterotopias refletem os signos e as relações culturais às quais se veem em confronto. Em minhas caminhadas pela cidade experimento a rua e os diferentes fluxos de deslocamentos presentes também em espaços de posicionamento, indagando que modos de passagem se dão ou ainda podem vir a se dar nesses lugares. Percebo certa uniformização no comportamento geral das pessoas nos modos de ocupação desses sítios usualmente destinados ao simples deslocamento. Exploro possíveis intervenções artísticas capazes de desencadear perturbações nas configurações vigentes nos espaços urbanos, capazes de impulsionar trânsitos de outra ordem em seus ocupantes. Agitações dos fluxos cotidianos capazes de dar origem a novas ‘enunciações’. Assim sendo experimento novos modos de acionamento desses espaços procurando provocar novos trânsitos mentais. Portando uma câmera fotográfica adentro os espaços públicos de passagem. Subvertendo sua “normalidade”, crio ‘heterotopias’. A ação no trânsito Há cerca de três anos comecei a trabalhar com captura de imagens em espaços de grande circulação urbana. Com a venda do carro, não me restava outra saída a não ser utilizar outros meios de locomoção em meus deslocamentos – incorporei o uso de transportes coletivos a minha rotina diária. Nas primeiras experiências com o corpo e a câmera, concentrei-me nos ônibus. Comecei a observar mais atentamente o fluxo urbano e os modos como se estabelecem as relações dispersas entre usuários, motoristas, cobradores e vendedores ambulantes. Procurava então capturar certos sinais de isolamento e desânimo em alguns de seus ocupantes, e acabei por perceber que os espaços de passagem são espaços de extrema melancolia.19

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19 No Dicionário de psicanálise, editado por Elizabeth Roudinesco (1988, p.506), o verbete melancolia não deixa dúvidas sobre os altos e baixos do humor melancólico: “Doença da maturidade, do outono e da terra, a melancolia também pode diluir-se nos outros humores e caminha de mãos dadas com a alegria e o riso (sangue), a inércia (a fleuma) e o furor (a bile amarela); através dessas misturas, portanto, ela afirmaria sua presença em todas as formas da expressão humana.”


Alguns aspectos são contingentes, outros necessários. Diante da proximidade física indesejada, decorrente dos excessos de lotação, a divisão desses espaços se coloca como desconforto. Muitos se resguardam do menor contato físico, deixando transparecer sua aversão ao compartilhamento forçado em espaço tão exíguo. Em meio a esse adensamento físico, persiste o afastamento mental e social. Compõe-se um estado de isolamento coletivo que a vida na metrópole por vezes produz com grande eficácia. O trânsito intenso das ruas se divide em diversos fluxos com volumes e velocidades distintos, e, à medida que vou capturando imagens, penso sobre as diversas relações entre as cidades e as práticas artísticas. 20 Assim a Internacional Situacionista define o conceito de deriva: “Modo de comportamento experimental ligado às condições da sociedade urbana: técnica da passagem rápida por ambiências variadas (...).” Jacques, Paola Berenstein. Definições. In Jacques, 2003, p. 65. 21 Em 2005 realizei uma primeira ação nos meios de transporte, que consistia na distribuição de flyers com pequeno texto e reprodução de um dos trabalhos, utilizado na performance “Voz”, apresentada no mesmo período nas cidades do Rio e Nova Iguaçu na exposição Zona Oculta – entre o público e o privado.

Adoto as derivas20 como procedimento artístico, e para isso o ônibus me permite mais uma variação experimental, espaço que já havia vivenciado.21 De repente o ônibus para e ouço a voz de um vendedor de bugigangas. Observo a entrada de alguns passageiros pela porta dianteira e percebo que quase ninguém, além do vendedor, cumprimenta o motorista ou o cobrador. O destemido ambulante traz sua munição em uma valise: produtos “três em um”. Rapidamente retiro a câmera da bolsa não querendo perder os detalhes de sua evolução no exíguo espaço do ônibus. Alguns passageiros demonstram que minha presença é incômoda ou, no mínimo, não esperada. Às vezes os registros são fotográficos, outras em vídeo. Há dias em que saio de casa com a câmera ligada, outros não. Não há agenda incontornável a cumprir nem lugares rigidamente predeterminados; sigo o fluxo dos acontecimentos, tendo que decidir repetidamente, a cada oportunidade não imaginada que se apresente, o rumo a tomar. Não há método ou roteiro tão exaustivamente planejado a ponto de não permitir qualquer desvio, muito pelo contrário; o que há é o impulso irresistível dos estímulos imediatos e imprevisíveis. O gesto com a câmera se transforma em ação e introduz uma espécie de corte na realidade. Onde habitava a passividade silenciosa passa a pulsar o transtorno pelo gesto inaudito. A ação busca perturbar a acomodação do senso comum, que muitos conduz ao papel de fundo de uma paisagem inerte – que não se altera, não transita, não passa. O que me impulsiona é o desejo de troca. Aonde essas trocas vão chegar e o que vai acontecer com elas, isso é algo que há de ser experimentado em processo. O espaço da melancolia Sentada junto à janela, vou capturando a paisagem externa e o movimento nas ruas. Vejo o Pão de Açúcar e a Baía de Guanabara e me pego a imaginar o estonteante momento dos viajantes a vislumbrar esses contornos, a registrar suas primeiras e agitadas impressões dessa paisagem quando ainda não havia essa outra natureza que é a cidade. Lembro-me

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então das palavras do geógrafo Milton Santos: “A paisagem é um conjunto de formas

Ginga, fotografia de celular, 2010, 10 x 15cm.

que num dado momento exprime as heranças que representam as sucessivas relações localizadas entre homem e natureza. O espaço são as formas mais a vida que as anima.”22 Sinto então que o espaço não é dado, mas vai-se modificando no tempo em função das alterações das relações que com eles estabelecem os que nele vivem. Uma curiosa sensação de melancolia eufórica conduz meu pensamento a Walter Benjamin que, sabendo de perdas irreparáveis, não se permitia paralisar e caminhava pelas ruas de Paris e por suas passagens encontrando, resgatando e dando nova vida aos rastros de singularidades perdidas, que assim renovavam e ressignificavam o presente em que ele vivia. Imbuído de uma melancolia que não o abatia, mas antes o provocava, Benjamin saía a recolher em notas, em fragmentos, espaços poéticos de uma cidade e seus viventes; fugidios traços que remetiam àqueles que já não estavam mais lá. Benjamin procurava o beco, a cidade fora de seus aspectos mais tradicionais, onde a história não está mais dada, pronta e acabada como um discurso contínuo e homogêneo. Benjamin indagava justamente sobre o que o historiador do convencional propositadamente encobriu ou coniventemente deixou que se ocultasse. O ser passado, não ser mais, é o que trabalha com mais paixão nas coisas. É a isso que o historiador confia (...) seu assunto. Prende-se a essa força e reconhece as coisas como são no momento do não mais ser.

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22 Santos, 2002, p. 103.


Tais monumentos do não mais ser são as passagens. E a força que nelas trabalha é a dialética. A dialética as revolve, as revoluciona, revira para baixo o que está por cima, faz delas o que nunca foram, transformaas de locais luxuoso em <x>. E delas nada mais resta do que o nome: passagens, e: Passage du Panorama. No íntimo desses nomes trabalha a subversão, por isso preservamos um mundo nos nomes das velhas ruas e ler à noite um nome de rua assemelha-se a uma transmigração.23

23 Benjamin, 2006, p. 909.

Segundo Benjamin, é preciso se identificar com os vencidos; é preciso resgatar as vozes e os desejos do passado que não foram ouvidos. O que há de vigoroso nessa atitude não é tanto poder reapresentar tais vozes tal como teriam sido quanto poder retomá-las em encontros mais felizes do que aqueles que os relatos hegemônicos com elas estabelecem. O tempo do melancólico é o da interrupção do tempo contínuo. Uma forma sagaz de pensar, que não procura negar a ilusão de um tempo que ruma em direção ao progresso sem fim, mas sim criticá-lo, divergindo de sua ininterrupta marcha. Rompendo-a e mudando seu ritmo para que dela possam brotar desvios capazes de não somente redimir os que se foram e sucumbiram sob as injustiças passadas – ocultadas sob relatos alinhados com os que venceram –, mas também criar novas oportunidades de vida para os que hoje demandam novas possibilidades. É preciso deixar transitarem as relações com o excessivo peso do que já se conhece como possível, para que se possa ver o quanto esse prévio conhecimento é paralisante. Esse encontro com Benjamin permite-me perceber que minhas ações estavam justamente a resgatar pequenas capturas de sob a ilusão de um cotidiano que se repetia como o mesmo todos os dias. Pequenas percepções que podem ser realinhadas, seja no ato de intervenção nos meios de transporte, seja adiante, quando associadas umas às outras no momento de edição das imagens em vídeo, seja no retorno ao público em espaços destinados ou não à exibição de trabalhos de arte. Procurando compreender a melancolia não como elemento que só pode desencadear uma esperança passiva, passei então a experimentar a conexão entre uma melancolia que, levada aos níveis do esgotamento, pode ser compreendida como elemento provocador de outro modo de esperança, não mais associada à espera, mas à ação. Com a percepção alterada e acionando expectativa mais potente de intervenção, percebo que minha ação começa a surtir efeitos. É como se ganhasse então potencialidades antes não imaginadas para fender a visão de que tudo se repete igualmente no cotidiano, de que não há saída, de que não há esperança. Esperança ativa Ao experimentar provocações, percebo que os impulsos a elas relacionados são induzidos em mim por uma esperança. Mas não o tipo de esperança daquele que se sente desfa-

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voravelmente afetado e espera que cesse naturalmente a causa desse afeto. Guio-me através de uma forma de ‘esperança ativa’, ou seja, através de uma esperança que não aguarda algo que está por vir, mas se mobiliza ao encalço de genuínos ‘encontros’, com situações cuja forma não se pode antecipar. Invisto na esperança de que minhas ações e as de outros singulares agentes sejam capazes de talhar fissuras na impenetrável rotina, possibilitando a ocorrência de inesperadas oportunidades de mudança nas relações com espaços ocupados. Algo desse modo divergente de esperança é tratado por Ernst Bloch. Uma derivação no sentido comum de esperança que congela a ação, passando a inspirar a luta por dias melhores: A espera, colocada acima do ato de temer, não é passiva como este, tampouco está trancafiada em um nada. O afeto da espera sai de si mesmo, ampliando as pessoas, em vez de estreitá-las (...). A ação desse afeto requer pessoas que se lancem ativamente naquilo que vai se tornando [Werdende] e do qual elas próprias fazem parte.24

24 Bloch, 2005, p. 13.

Essa esperança instigante e construída a partir de “sonhos diurnos” que emergem da vontade de uma vida melhor não se atém a uma contemplação congelada que “aceita as coisas como são e estão”.25 Segundo Bloch, “pensar significa transpor”,26 e para que essa

25 Idem, ibidem, p. 14. 26 Idem, ibidem.

transposição se efetue é preciso movimento. Através de suas colocações o autor abre novas perspectivas para uma esperança que não se processa mais em um mundo fechado, mas sim desdobrado em relações dinâmicas que emergem em direção ao futuro, criando tensão no presente e assim possibilitando a constante remodelagem da realidade existente em um presente que não está mais dado: Nenhum objeto poderia ser reelaborado conforme o desejo se o mundo estivesse encerrado, repleto de fatos fixos ou até consumados. No lugar deles, há apenas processos, ou seja, relações dinâmicas, nas quais o existente dado ainda não é completamente vitorioso. O real é processo e processo é a mediação vastamente ramificada entre o presente, o passado pendente e sobretudo o futuro possível.27 É sob o regime de uma esperança ativa, que não trabalha mais com expectativas de realização de possibilidades já compreendidas, dadas e resolvidas, que os aspectos aqui brevemente relacionados – melancolia e ação – investem em tentativas de abertura de novas perspectivas, através das negociações entre o conhecimento que se rebate do passado para o presente como possível já conhecido, e o que se faz retornar do futuro almejado para o mesmo presente como possível esperado.

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27 Idem, ibidem, p. 194.


Percebo a partir daí, que certas práticas artísticas não têm fugido às realidades opressivas 28 Lembro da ação de Rosana Ricalde e Felipe Barbosa “Pisando em nuvens” (2001), quando criaram faixas de pedestres com tiras de algodão. Evocando os códigos de divisão do espaço urbano, a ação revela o embrutecimento e distanciamento presentes na relação entre motoristas e pedestres, e provoca ainda a reflexão sobre os jogos de poder que se estabelecem cotidianamente nos espaços coletivos. 29 Nomeio aqui dois exemplos de grupos de artistas que promovem ações urbanas: o PORO composto pela dupla de artistas Brígida Campbell e Marcelo Terça-Nada!, que trabalham com ações efêmeras na cidade de Belo Horizonte, como a distribuição de panfletos e a projeção de imagens em muros. Disponível em: <http://poro.redezero.org/video/ documentario/->, e o coletivo GIA (Grupo de Interferência Ambiental), composto por artistas visuais, designers e arte-educadores, que também operam fazendo panfletagem na cidade de Salvador e intervenções diretas na paisagem através de cartazes tipo outdoor, como na campanha eleitoral para a prefeitura de Salvado em 2009, intitulada “Sorriso amarelo” ou os mais recentes disponíveis em: <http://giabahia.blogspot.com/>

percebidas nos espaços urbanos,28 mas inversamente as têm buscado como aspectos que oferecem oportunidades para novos modos de atuação.29 Pleno, vazio, fechado, oblíquo, exíguo, amplo, público, privado. Habitacionais, comerciais, industriais; de segurança, vigilância e controle os espaços da cidade possuem lugares dentro de lugares. Vejo-os como novas possibilidades para minhas ações a partir do questionamento dos modos tradicionais de entendimento entre melancolia, esperança e ação e a partir de novos posicionamentos artísticos deles decorrentes. Breves considerações finais Minhas questões giram em torno de rever o hábito de depositar passivamente esperanças em processos. Sinto que essa forma mutante de esperança pode render muito mais às práticas artísticas se for compreendida como princípio ativo naqueles que atuam como agentes catalisadores ou provocadores de mudanças. O que hoje procuro desenvolver é a capacidade de compreender e acompanhar os movimentos que surpreendentemente me conduziram, e voltam a me conduzir, a novos mergulhos nas rotinas urbanas, no cotidiano que tanto desejo capturar. Minha esperança transmutada em ação busca interagir através de novas e inimagináveis formas de conviver com os fluxos cotidianos dos ambientes urbanos em que atuo. Desejo intensificar essa vida compartilhada, a tal ponto, que eu termine por provocar novos modos de perceber os próprios fluxos, seus trajetos, seus roteiros, seus ritmos, ao mesmo tempo em que eu comece a fundir-me a eles através dos diversos trânsitos, mudanças e deslocamentos que percorremos ao longo do tempo.

Jacqueline de Moura Siano (Rio de Janeiro, Brasil) é artista visual, mestre em artes (2010) pelo Instituto de Artes da Uerj, sob orientação da artista Leila Danziger. Na década de 1990 frequentou oficinas e aulas teóricas com diversos artistas e críticos de arte na Escola de Artes Visuais (EAV) do Parque Lage. Nos anos 2005/2006 fez parte da equipe do serviço de Educação no MAM-Rio, sob coordenação de Maria Tornaghi. Desde 2006 é professora da EAV-Parque Lage. Nos últimos anos tem trabalhado com ações, fotografia, vídeo e instalações. Sua pesquisa volta-se para questões que envolvem as relações entre artistas, público e espaços de produção e circulação de arte. / jacquelinesiano@superig.com.br

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Referências bibliográficas BENJAMIN, Walter. Passagens parisienses. In Passagens. Belo Horizonte/São Paulo: UFMG/ Imprensa Oficial, 2006, p. 909. BLOCH, Ernst. O Princípio Esperança. Rio de Janeiro: Ed.Uerj/Contraponto, 2005. DANZIGER, Leila. A obra pública como processo e mediação. Papel das Artes, n. 12, Rio de Janeiro, set.-out. 2009. DE CERTEAU, Michel. De las práticas cotidianas de oposición. In Modos de hacer: arte crítico, esfera pública y acción direta. Salamanca: Ediciones Universidad de Salamanca, 2001. _________. A invenção do cotidiano: 1. Artes de fazer. 15. ed. Petrópolis: Vozes, 2008. DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Crime e castigo. São Paulo: Abril, 2010. FOUCAULT, Michel. Outros espaços. Ditos e escritos, n. 3, Rio de Janeiro, 2004. GIA (Grupo de Interferência Ambiental). Disponível em: <http://poro.redezero.org/video/documentario/- > JACQUES, Berenstein (org.). Apologia da deriva: escritos situacionistas sobre a cidade. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2003. PORO. Disponível em: <http://poro.redezero.org/video/documentario/- > ROUDINESCO, Elisabeth. Dicionário de psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,1988, p. 505-507. _________. A análise e o arquivo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006. SANTOS, Milton. A natureza do espaço: espaço e tempo, razão e emoção. São Paulo: Edusp, 2002. SARAMAGO, José. Entrevista concedida no documentário Janela da alma. Direção de João Jardim e Walter Carvalho. Europa Filmes, 2002. DVD (73min), son., color., legendado. SMITHSON, Robert. Um passeio pelos monumentos de Passaic. O Nó Górdio: jornal de metafísica, literatura e artes, ano 1, dezembro 2001. WENDERS, Win. Entrevista extraída do documentário Janela da alma. Direção de João Jardim e Walter Carvalho. Europa Filmes, 2002. DVD (73min), son., color., legendado. _________. A paisagem urbana. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. “Cidade”, n. 23, 1994.

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A sintaxe da ilusão* Valerie Cassel Oliver Como posicionar a obra de Bill Lundberg? Pioneiro no campo das instalações contemporâneas de filme e vídeo, Lundberg se engajou em investigações estéticas que pré-datam e pressagiam aquelas realizadas por alguns de seus mais notáveis contemporâneos, entre os quais se incluem Gary Hill, Bill Viola e Tony Oursler. Por mais de 30 anos, Lundberg tem integrado os aspectos formais da pintura, da arte da performance e do cinema para tratar de questões sobre a condição humana. Para compreender as inestimáveis contribuições desse artista pioneiro, os espectadores devem antes “experienciar” sua presença ilusória. Lundberg é um mago do coração humano. Percorrendo essa mostra, um pequeno labirinto da carreira de Lundberg, o visitante é imediatamente seduzido pelas criações do artista, assim como por sua habilidade de atrair o espectador para dentro do espelho da vida. As instalações de filme e vídeo de Lundberg lançam sinais ao espectador. Emergindo da escuridão, seus feixes de luz nos atraem para um palco mágico, uma esfera ilusória em que as aparições se tornam atores cujas narrativas cuidadosamente concebidas servem para tornar a condição humana transparente. As aparições que surgem no palco ilusório de Lundberg são como os espectadores – homens, mulheres e crianças – mas que parecem estar presos dentro de um “globo de neve” sacudido. Espiando-os atentamente dentro de seus mundos construídos, acabamos entendendo esses atores como as dramatis personae, ou seja, o elenco por trás da proverbial mensagem contida dentro de uma garrafa. Suas existências evocam um senso aguçado de consciência, tornandonos como espectadores autoconscientes e cientes de nossa própria fragilidade. Contudo, é somente através dos olhos e da perspectiva de Lundberg que temos o privilégio de ingressar nesse novo estado de consciência. Suspensos no espaço – um nadador flutuando numa piscina retangular ou pessoas miniaturizadas gesticulando num copo d’água – os personagens que vivem dentro da moldura do vídeo são incapazes de ver o que nós vemos: a consciência por trás do gesto, a emoção por baixo da ação, a alma em espasmos de catarse. Com sua ênfase na imagem como meio condutor emotivo da linguagem e do comportamento, Lundberg conecta a audiência com seu mundo ilusório, através de um momento fragmentado no tempo. As narrativas não lineares, sejam verbalizadas sejam por meio de gestos, tornam-se a ponte para o mundo externo, artimanha seminal que nos ajuda a perceber nossa própria humanidade. É a compreensão individual e coletiva do espectador, relativa à linguagem de cada personagem, que permite a Lundberg mediar com habilidade nossa percepção da obra, como psicossocial. O que nós, na qualidade de espectadores, podemos imaginar – poder preencher as lacunas das cenas dos roteiros de Lundberg – desperta nossas próprias histórias e experiências. A ressonância entre suas imagens e nossas próprias realidades, portanto, fornece a Lundberg o poder, como artista, de remover o superficial e apresentar-nos a essência de nosso ser. * Trecho do ensaio publicado durante a exposição A sintaxe da ilusão, no Museu de Arte Contemporânea de Houston, EUA, entre dezembro de 2001 e março de 2002. (Tradução Mario Mieli)

Valerie Cassel Oliver (Museu de Arte Contemporânea de Houston, Texas, EUA) é curadora sênior do Museu de Arte Contemporânea de Houston. Foi diretora do Programa Artista Visitante do Instituto de Arte de Chicago e tem publicado extensivamente sobre arte contemporânea. vcassel@camh.og







Guests (Convidados), 2009 Páginas 1-3 O vídeo foi gravado durante a noite. As pessoas chegam a uma porta, batem, são recebidas por uma moça e entram. Alguns dos visitantes estão formalmente vestidos, outros estão mais casuais. Chegando à porta, o seu comportamento varia entre impaciência, desconfiança e antecipação. Nenhum dos “convidados” fala. Há apenas o som deles batendo na porta e da porta se abrindo e fechando. A projeção de vídeo foi calculada precisamente para se encaixar num painel verticalmente situado solto e em pé (ortogonal ao piso) no centro de uma galeria. O lado que recebe a projeção do vídeo do painel é pintado de branco e o lado oposto pintado de negro. O projetor é colocado 20 metros a partir do painel e montado no teto.

Stolen Kisses (Beijos Roubados), 2008 Páginas 4-5 Uma camisa branca é suspensa em um cabide na galeria a cerca da altura do ombro. As mãos de uma mulher aparecem abraçando um corpo. Essas mãos sensuais acariciam o corpo com ardor e paixão. O único som é das mãos da mulher que se deslocam sobre a camisa.

Passage (Passagem), 2004 Páginas 6-8 Filmado no Rio de Janeiro na escada de uma passagem subterrânea da cidade, em vários dias a fim de obter a forma final dos sete minutos. Durante a edição retirei todo o som original (cacafonia da cidade). E numa nova trilha sonora recriei obsessivamente cada individual passo de pessoa a pessoa que aparece no vídeo final. Portanto, quando a escada aparece vazia o que existe é silêncio. É como se não existisse absolutamente mais nada no ambiente em que o vídeo foi filmado além do que aparece na imagem da instalação.

Bill Lundberg (University of Texas, Austin, EUA) nos últimos 35 anos exibiu seus filmes e vídeo esculturas em inúmeras coletivas na América e na Europa. Entre suas individuais destacam-se as no Whitney Museum e P.S1 (Nova York), Contemporary Arts Museum (Houston), Carnegie Institute Museum of Art (Pittsburgh) e o Espaço Lyonais de Arte Contemporanea (Lyon, France). Suas obras integram importantes coleções, tais como: Museus Guggenheim (Nova York), Blanton (Texas) e a coleção da família Le Jeune (Brussels). / lundbergw@earthlink.net



Bill Viola: na natureza das coisas* Gilles A. Tiberghien

O artigo analisa vídeos de Bill Viola a partir do tratamento particular que o artista reserva à natureza em geral. Realizados entre 1960 e 1970, estão disponíveis na coleção das novas mídias do Centro Georges Pompidou. Bill Viola, arte e natureza, vídeo e paisagem. Há várias maneiras de rever as primeiras obras em vídeo de Bill Viola. * Artigo recebido e aceito para publicação em setembro de 2010.

Uma delas, e talvez a mais interessante, me parece, consiste na interrogação sobre o

Tradução Iracema Barbosa. Revisão técnica Sheila Cabo Geraldo.

sempre presente de uma forma ou de outra em seu trabalho, e é nessa perspectiva que

1 Agradeço a Chistine Van Assche e a sua equipe, que me deram a oportunidade de trabalhar sobre este fundo, para preparar a apresentação dos filmes que eu havia selecionado para a sessão Video et après de 23 de janeiro de 2006 consagrada a Bill Viola. É o texto dessa apresentação que podemos ler aqui.

tratamento particular que o artista reserva à natureza em geral. Natureza que está examinarei alguns vídeos escolhidos na coleção das novas mídias do Centro Georges Pompidou.1 Entre os vídeos dos anos 60-70, Reflecting Pool (1977-1979, 7’) é um dos mais famosos. Ao final dessas décadas, Viola realiza outras obras como Ancient of Days (1979-1981, 12’21’’) e Chott el-Djerid [A Portrait in Light and Heat] (1979, 28’). Todos esses vídeos têm em comum uma interrogação sobre o que estabelece nossa relação com o mundo: o que nos opõe a ele, o que nos permite ao mesmo tempo apreendê-lo e retê-lo não apenas como um correlato de nossa consciência, mas, talvez mais secretamente, como aquilo que torna possível essa própria consciência. Essa relação, para Viola, é a paisagem. É uma relação complexa: trata-se ao mesmo tempo de um filtro que transforma nossa percepção e modifica o modo como as coisas se nos oferecem e de um espelho que nos faz ver nele o que acreditamos apreender através dele. Se a paisagem é um reflexo, ela é também o lugar de todas as projeções – um reflexo que se anima, que possui autonomia, um reflexo que se libera do espírito que está ali refletido. A piscina de Reflecting Pool nos retorna uma imagem que ela fixou como uma fotografia depois que o corpo projetado desapareceu. Subitamente a superfície da água começa a vibrar, sem que se compreenda a causa dessa agitação. A imagem se anima sozinha, como em um filme, independente daquilo que a tornou imagem. Viola, no entanto, não se priva de escorregar para o outro lado desse espelho, de onde surge de repente um corpo nu. É esse mesmo corpo que aparece bem no início do vídeo e que, vestido e captado em pleno mergulho, se torna imagem congelada acima da água enquanto tudo continua a se mexer ao redor.

Bill Viola. The Crossing (A passagem), 1996. Instalação de vídeo e som. Gran Central Market, Los Angeles, EUA.

A água é para Viola o lugar de passagem por excelência, e isso se constata de modo emblemático no vídeo que tem precisamente esse título, The Passing (1991, 54’). Vemos encenado

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o ciclo da vida e o da morte através das imagens da mãe de Viola em agonia, depois morta e, paralelamente, os primeiros passos dados pelo próprio filho de Viola. O elemento aquático é onipresente até o fim, e a câmera, mergulhada na água e colocada na altura do artista, mostra-o deitado sobre o leito raso de um riacho; a luz assim filtrada cintila sobre sua pele. “Com frequência utilizei a água como metáfora”, escreve Viola, “sua superfície ao mesmo tempo refletindo o mundo exterior e agindo como uma barreira para o outro mundo”.2 Assim, em Chott el-Djerid, no momento em que a imagem parece decididamente aproximar-se de um ponto na paisagem, a câmera fixa um poço situado à flor da areia repleto de água vermelha. Uma pedra lançada nessa água nos faz entrar subitamente em um universo desfocado, embaçado pelo calor, como se estivéssemos imersos num elemento líquido de contornos

2 Viola, Bill. Interview with Michael Nach. In Violette, Robert; Viola, Bill (eds.). Reasons for Knocking at an Empty House. Writings 1973-1994. Londres: Thames & Hudson / Anthony D’Offay Gallery, 1995, p. 180; tradução nossa, assim como sempre que não se fizer menção ao tradutor.

indefinidos. Durante um tempo duvidamos da realidade daquilo que vemos. O artista, aqui, parece fazer um teste dos limites: em que ponto nossa visão para, e a partir de quando nós começamos a imaginar? Em uma nota de 1980, Viola escreve: “Senti em Chott e numa parte de Reflecting Pool que uma visão intensa e persistente da câmera pode ser comparada a uma visão concentrada que anuncia uma perturbação na consciência. O objeto não muda, é você quem muda. Isso, aliás, é o que há atrás do budismo importado da Índia na China e no Japão – é exatamente o que faziam os pintores suiboku-ga. Eles pintavam as montanhas, a vegetação e as garças – sempre mostradas cobertas por uma luz que penetra muito além de sua forma pictórica ou mesmo além daquilo que elas podem representar para quem as olha. Isso é puro olhar.”3 Em curto texto que Viola consagra à Chott el-Djerid, ele declara: “Quero ir a um lugar que me dê a impressão de estar no fim do mundo. Um lugar privilegiado de se

3 Viola, Bill. Note, 1980. In Violette, Viola, op. cit., p. 79.

estar, de onde vislumbrar o interior do vazio – o mundo do lado de lá – aquilo que para o peixe estaria acima da superfície da água. Um lugar em que tudo se tornaria estranho e não mais familiar. Em que não haveria nada sobre o que se apoiar. Desprovido de referências.”4 Olhar o mundo abaixo das águas é animalizar o olhar, ver o próprio mundo, nosso mundo,

4 Viola, Bill. Note, April 29, 1979. In Violette, Viola, op. cit., p. 54.

com olho de peixe, como nas experiênicias mentais do etnólogo Jakob von Uexküll que se propunha, por exemplo, a olhar uma rua como a veria uma mosca.5

5 Uexküll, Jacob von. Mondes animaux et mondes humains. Trad. do alemão por P. Muller. Paris: Gonthier, “Médiations”, 1965.

Chott el-Djerid começa com imagens que parecem ser de casas na neve; o vídeo prossegue através de planos que dão o sentimento de distâncias variáveis ou indeterminadas. Inicialmente rodado nas planícies de Ilinois e na província de Saskatchewan, no Canadá, a paisagem não cessa de se confundir, e ora se aprofunda, ora se achata. As coisas simples se desdobram, e aquilo que acreditávamos ser entidades separadas acaba se fundindo numa coisa só. A imagem é um compromisso entre o mundo e meu espírito: em que momento ela oscila de um lado a outro? Tudo está nesse ‘entre-dois’, nessa espécie de película intermediária, que é tão estranha às coisas quanto a nós mesmos. A paisagem tal como concebe o filósofo alemão Joachim Ritter, é o modo pelo qual a natureza se oferece a nós. Para retomar seus termos, se diria que a paisagem, “é a natureza esteticamente representada, que se apresenta a um ser que a contempla experimentando sentimentos”.6 E Ritter acrescenta: “Os campos que se estendem na entrada da cidade, o rio que marca uma fronteira, que serve de via comercial ou que

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6 Ritter, Joachim. Paysage. Fonction de l’esthétique dans la société moderne [1962]. Trad. do alemão por G. Raulet. Besançon: Éditions de l’Imprimeur, 1997, p. 59.


coloca problemas para os construtores de pontes, as montanhas e os pastos das estepes (ou ainda os prospectores de petróleo) não são, portanto, paisagens. Só se tornam paisagem para o homem que se volta para eles a fim de apreciar livremente seus espetáculos e para 7 Idem, ibidem.

estar ele próprio em plena natureza, sem buscar finalidades práticas.”7 A paisagem é para o homem uma maneira sensível de aceder à natureza, sem desejar transformá-la. Essa concepção aproxima-se da de Viola: o conhecimento que podemos ter da paisagem passa, em sua opinião, essencialmente pela experiência, que se faz em grande parte pela contemplação, graças a uma maneira particular de se colocar o espírito em alerta, através dos sentidos, que o refinamento da tecnologia potencializa e diferencia em infinita acuidade. Ver a paisagem é também imaginá-la: “A paisagem e a imaginação nos parecem estar em oposição. Penso na diferença entre soft e hard, o mental e o físico, entre o pensamento e uma rocha. Mas penso também em sua equivalência, na transformação de uma coisa em outra. Por exemplo,

8 Viola, Bill. Perception, technologie, imagination et paysage.Trad. do inglês por C. Wajsbrot. Trafic, n. 3, été 1992, p. 77.

o pensamento pode mover uma rocha. Uma montanha pode inspirar um pensamento”,8 escreve Viola. É o que ele se dedica a mostrar em toda sua obra e particularmente em HatsuYume (First Dream) (56’) de 1981. A paisagem, assim, é uma relação entre espaço interior e espaço exterior. “A paisagem pode existir como um reflexo sobre as paredes internas do espírito ou como projeção externa de

9 Viola, Bill. Note, 1979. In Violette, Viola, op. cit., p. 53.

um estado interno”,9 observa Viola. Em texto posterior, ele explica: “Em 1976 realizei um trabalho intitulado Migration, em que posicionei uma câmera focalizando uma gota de água, revelando assim que as propriedades ópticas da gota d’água criavam uma minilente do tipo olho de peixe; em consequência, a imagem do cômodo inteiro e de tudo que lá se encontrava era visível nessa gota. Em 1979, fui ao deserto do Saara na Tunísia e, utilizando uma lente de telescópio especial fixada numa câmera de vídeo, filmei miragens e outros fenômenos visuais provenientes dos efeitos de calor intenso sobre as ondas de luz que atravessavam o imenso espaço aberto. Sempre considerei que essas duas obras se relacionam – uma procura no exterior a exploração do espaço infinito, a outra visa à interioridade, à exploração de um

10 Viola, Bill. Statement, 1985. In Violette, Viola, op. cit., p. 150.

micromundo; e assim as duas alcançam o mesmo ponto.”10 Se o visível é estratificado é porque as camadas de sentidos que nos permitem acessá-lo também o são, das mais simples às mais complexas. Os vídeos de Viola podem ser considerados meditações sobre a existência, impressões da filosofia zen ou dos pensamentos taoístas, reflexão sobre o ciclo contínuo da vida e sobre a mundanidade das aparências. Esse entendimento não é falso, e as numerosoas referências de Viola a Daisetz T. Suzuki, Ananda K. Coomaraswany, Mircea Eliade ou C. G. Jung, entre muitos outros, testemunham seu interesse por essas questões. Que não configuram necessariamente o mais interessante. Pode-se também, de acordo com o próprio artista, entregar-se aos aspectos sensíveis que a imagem nos oferece e viver uma experiência estética susceptível de abalar nossas certezas mais elementares sobre o mundo, sobre as fronteiras entre aquilo que nos pertence e aquilo que não nos pertence. Assim, como observa John Walsh, o deserto de Chott el-Djerid “perde sua

11 Walsh, John. Emotions in Extreme Time. In Wash, John (ed.). Bill Viola. The Passions. Los Angeles/Londres: The J. Paul Getty Museum/The National Gallery, 2003, p. 28.

substância e se torna um véu cintilante e mutante, uma metáfora da vida que Viola assimila à noção soufi dos ‘70.000 véus de luz e sombra (...) entre nós e Deus. Você certamente está vendo apenas o primeiro véu – a seguir existem ainda outros 69.999!’.”11 Bill Viola: na natureza das coisas Gilles A. Tiberghien (páginas 112-119)

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Viola considera que para ver é preciso diferenciar o tempo, que a percepção supõe desdobramento semelhante ao da música.12 Daí essa forma de meditação visual que passa por processos de câmera lenta de distanciamento ou de suspensão. O personagem que anda na neve no início de Chott el-Djerid desloca-se em velocidade normal, mas está tão distante, que precisamos de um certo tempo para perceber que ele se move. Assim que nos damos conta de que esse ponto escuro é de fato um homem que avança em nossa direção, tomamos consciência ao mesmo tempo da paisagem imensa e gelada em torno dele, paisagem que logo aparece como a verdadeira coisa a ser vista, sem que tenhamos essa compreensão num primeiro momento. Vários minutos depois, quando vemos nitidamente o homem cair na neve, nos sentimos sendo lembrados de nossa escala humana. O homem sobre o rochedo em Truth Through the Mass Individuation (1976, 10’13’’) é, ele também, uma espécie de parâmetro na paisagem: ele ali permanece durante toda uma sequência na qual, em alguns minutos, a noite sucede ao dia, sendo a continuidade temporal garantida pelo barulho de um motor de barco que se advinha ao longe. Ancient of Days (O ancestral dos dias), cujo título faz referência a uma obra de William Blake, joga com todas as possibilidades de captar o tempo que corresponde na realidade à natureza compreendida no sentido grego de phusis, dito de outro modo, a natureza concebida como movimento de crescimento e de eclosão. Viola encena o espetáculo improvável da involução do tempo físico – os eventos que vemos, digamos assim, ‘no lugar’ no tempo da visão, vão-se sucedendo ao inverso. A técnica do vídeo, entretanto, faz também ressurgirem antigas medidas de tempo: quando o artista acelera a imagem da trajetória do sol pela da sombra projetada do obelisco de Washington, esta desempenha o papel de um quadrante solar gigante. Ela nos faz perceber, enfim, o tempo mecânico da câmera que mostra o mundo de cabeça para baixo, como se tudo acontecesse tão rapidamente, que esse próprio movimento condensasse, em apenas três minutos de filme, as 12 horas ‘reais’. Tudo isso nos transmite um sentimento de espaço que tanto a imagem como o som podem, Viola insiste, nos restituir em parte iguais. De acordo com a maneira como nossos sentidos são solicitados, o tempo parece desenrolar-se mais ou menos rapidamente, e o espaço se comprimir ou, ao contrário, estar num estado particular de expansão. Truth Through the Mass Individuation enfatiza o papel que o som desempenha em nossa percepção do espaço: o mergulho de um homem e o som do rugido de um leão, a deflagração causada pelo fusil que o artista segura e que vemos atirando na direção do alto dos arranha-céus, o barulho de um trovão provocado por um címbalo jogado na água em meio a pombos e que permanece ressoando algum tempo depois que eles já se dispersaram. Essa dilatação específica que afeta nossa percepção das coisas é acentuada pela câmera lenta e contrasta com a última sequência, em que vemos um homem penetrar a escuridão em direção a um estádio, onde alto-falantes envolvem com seu rumor uma multidão que advinhamos reunida ao longe. Como isolar um som num conjunto de outros sons? Como diferenciar indivíduos no meio da massa? Como compreender aquilo que nos distingue do fluxo contínuo do mundo? “A proporção de um ruído de fundo num sinal sonoro é função da pureza desse sinal e designa em

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12 “O pensamento é um processo, é uma energia, não uma coisa fixa. O pensamento é como a música. Ele deve se desdobrar para ser um pensamento.” (B. Viola, entrevista não publicada com Anne-Marie Duguet, citada em Duguet, A.-M. Déjouer líimage. Nîmes: Jacqueline Chambon, 2002, p. 45).


termos técnicos a medida da potência de um ruído caótico numa zona desorganizada. Pode13 Viola, 1992, op. cit., p. 81.

ríamos também falar na ‘proporção de um ruído de fundo na vida’.”13 Nesse sentido, se per-

14 Idem, ibidem.

gunta Viola, “até que ponto podemos nos aproximar da verdadeira natureza das coisas?”.14 Será que devemos, a fim de responder a essa questão, investigar nossa própria natureza? I Do Not Know What It Is I Am Like (1986, 89’), através da encenação de elementos pertencentes à biografia do autor, é uma interrogação sobre a identidade de cada um. O título significa literalmente não sei com o que me pareço. Trata-se de explorar essa coisa qualquer que poderia haver em comum entre uma pedra, um animal e um homem, e se conformar, ao

15 Para as necessidades da apresentação fiquei sobretudo interessado nos primeiros dois terços do filme. Encontraríamos no entanto outros elementos para análise em sua última parte, em que vemos as imagens de homens em transe se furando na carne com agulhas ou correndo sobre um tapete de brasas, imagens que se alternam com as de animais, o fogo, a água e as florestas.

mesmo tempo, com aquilo que sou.”15 Não é porque o artista está constantemente presente em seu vídeo que podemos falar em autorretrato. Viola aparece mais como o personagem que dá a escala, que permite um ponto de vista sobre mundo, ponto de vista que vislumbra a imagem, através da qual ele observa, ele nos observa e nos obriga a nos olhar. A luz, mas também a escuridão são vetores, os meios dessa observação. Olhando, nossas pupilas se fecham de modo imperceptível. Esse fade in, a câmera pode esticá-lo, estendê-lo e explorá-lo como uma dimensão do visível. “O ponto focal negro em nossas vidas”, escreve Viola num texto publicado em 1990, “é a pupila, e foi apenas questão de tempo até que alguém se desse conta e pensasse em utilizar um espelho. O espelho ideal desde o início da humanidade, é o fundo negro da pulila. Existe uma propensão natural do homem a olhar no fundo dos olhos do outro ou, por extensão, no fundo de si mesmo, um desejo de se ver vendo, como se o esforço de ver no interior desse pequeno centro negro do olho não revelasse apenas o segredo dos outros, mas também o segredo da totalidade da visão humana. Afinal de contas, a pupila é a fronteira e o véu,

16 Viola, Bill. Video-Black. The Mortality of the Images. In Violette, Viola, op. cit., p. 205-206. 17 Estranhamento que esconde talvez mais proximidade, como o mostra bem JeanChristophe Bailly em seu liro Le Versant animal (Paris: Bayard, 2007) quando afirma: “É através da visão que vemos que não somos os únicos a ver, que sabemos que os outros veem, olham e contemplam” (p. 57). 18 Viola, Bill. Video-Black. The Mortality of the Images, op. cit., p. 206.

ao mesmo tempo exterior e interior.”16 Viola vislumbra aqui o olho daquele que é o mais radicalmente estrangeiro,17 o animal, para se refletir enfim no olho do animal; aí então no trigésimo minuto, aparece na pupila de uma coruja, envolvida pelos gritos dos pássaros, referências ao espaço em que ela é vista. “Olhar nos olhos é uma antiga maneira de auto-hipnose e de meditação”, lembra Viola. “Em Alcebíades, de Platão, Sócrates descreve o processo pelo qual adquirimos conhecimento de nós mesmos através da pupila do outro e no reflexo do dele.”18 Cito assim uma passagem longa do texto de Platão de onde extraí essas linhas e na qual Sócrates assim se exprime: Não deixastes de notar, não é, que quando olhamos o olho de alguém que está diante de nós, nosso rosto se reflete naquilo que chamamos a pupila, como num espelho; aquele que olha vê sua imagem (...) Assim se o olho deseja ver a si mesmo, é preciso que ele olhe um olho, e neste olho a parte onde reside a faculdade própria deste órgão; esta faculdade é a visão (...) Bem, meu caro Alcebíades, a alma também, se quiser conhecer a si mesma, deve olhar outra alma, e nesta outra alma,

19 Platon, Alcibiade [133 a-b]. Trad. M.Croiset, Paris: Gallimard, 1991, p. 70-71.

a faculdade própria à alma, a inteligência ou ainda um outro objeto que lhe é semelhante.19 Bill Viola: na natureza das coisas Gilles A. Tiberghien (páginas 112-119)

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Esta última parte do texto é considerada obscura. Qual seria esse objeto semelhante à alma que se torna visível na pupila? Pareceria que Viola perseguiu, conscientemente ou não, essa interrogação. No olho da coruja, vemos Viola consultar velhos tratados de anatomia, cercado de objetos cuja imobilidade é apenas aparente: um ovo ou ainda uma carapaça de caramujo, a princípio confundida com um cesto sobre o qual se encontra a lesma, do qual vai se separar imperceptivelmente. A câmera filma o monitor em que aparece a imagem dos olhos do pássaro. Até onde forçar a analogia entre o olho e a tela, o olho vivo e a câmera? Um olha o outro que não nos olha. “Na televisão”, escreve Viola, “a fidelidade sempre se referiu à imagem visual, não à realidade, e raramente à imagem retiniana, mesmo se a câmera pode ser considerada um modelo bastante grosseiro do ser humano (...). As imagens artificiais não representam a realidade com precisão, elas visam à imagem e não ao objeto, à percepção visual e não ao campo da experiência mental”.20

20 Viola Bill, 1992, op. cit., p 79.

Ora, é a experiência que interessa ao artista. O que nos olha nos olhos dos animais senão nós mesmos concentrados sobre uma pupila? Minha pupila não se parece com todas aquelas que observo, humanas ou animais, como estas que vemos aqui? Mas essa visão estreita daquilo que poderia ser nossa natureza é logo arruinada se considerarmos a expansão visual e física de nosso corpo: o mundo que vê meus olhos e através do qual acessa meus outros sentidos atesta que este corpo se prolonga assim “até as estrelas”, para dizer com Bergson.21 Ao mesmo tempo, este corpo é penetrado, atravessado pelo grande fluxo da natureza, e qualquer modificação nesta o afeta por sua vez. I Do Not Know What It Is I Am Like seria uma natureza-morta? Poderíamos pensá-la, à visão de todas elas, entre as mais suntuosas naturezas-mortas flamengas do Renascimento que o filme evoca. Mas elas parecem mais destinadas a nutrir o artista, no sentido literal e

21 Ver Henri Bergson, Les Deux Sources de la morale et de la religion. Édition du centenaire. Paris: PU F, 1959: “Car si notre corps est la matière à laquelle notre conscience síapplique, il est coextensif à notre conscience, il comprend tout ce que nous percevons, il va jusquíaux étoiles” (p. 1.194).(Se nosso corpo é a matéria em que nossa consciência opera, ele é a extensão de nossa consciência, compreende tudo o que percebemos e vai até as estrelas.)

figurado, do que a servir de simples citações. A pele escamada com os reflexos prateados do peixe morto é a mortalha suntuosa de um animal preparado para o ritual da mastigação, ao passo que a casca de ovo de calcário, progressivamente esmigalhada pelo empurrão de um organismo invisível, revela uma membrana que palpita e que se rasga, antes que o pintinho que ela continha apareça e agite seus pés como as mãos de um bebê. Ora, na realidade, o peixe comido pelo artista dá sinais de uma natureza bem viva; o morto assimilado pelo vivo contribui para a longa cadeia da vida. “Os modelos fundamentais dos seres humanos vêm da natureza porque somos parte da natureza”, escreve Viola. “E se considerarmos a essência do que constitui o mundo natural vemos que este é feito de mudança e de processo. Então descobrimos que existe no ser humano, à medida que ele atravessa a vida, um tipo de processo que em termos geológicos chama-se ‘sedimentação’, quando as camadas da experiência humana assemelham-se às camadas de sedimentação na terra.”22 E acrescenta que essas camadas, da mais superficial à mais profunda, com o passar dos anos, se sobrepõem e coexistem: “Assim, todas as experiênicas que você já experimentou vivem em você na vida

22 Viola, Bill. Putting the Whole Bank Together. Conversation with Otto Neumaier and Alexander Pühringer (1994). In Violette, Viola, op. cit., p. 270-271.

e todas se tornam aquilo que definimos como uma pessoa. O invisível é sempre bem mais presente do que o visível.”23

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23 Idem, ibidem, p. 271.

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Essa estratificação desestabiliza o ponto de vista, lança o descrédito sobre a capacidade do olho de traduzir fielmente o real. As coisas não se parecem: acreditamos ver um rochedo e olhamos um corpo vivo, uma espécie de polvo ou uma matéria viscosa, o interior de um animal. O ventre da terra é talvez um vasto organismo em que nasce espontaneamente a vida, que também surge da decomposição da carne de um animal morto que para viver pastou num campo que por sua vez o devora. A natureza cresce, se multiplica, mas não estaciona em lugar nenhum. A Hans Belting – que lhe ponderou que se cada um (como ele, Viola, o pensa) tem seu próprio horizonte, é preciso considerar que “a natureza existe muito além 24 Viola, Bill. Conversation between Hans Belting and Bill Viola. In Walsh (ed.), op. cit., p. 215.

disso” – Viola responde: “a natureza não tem horizonte.”24 A natureza é de fato sem limites. Ela produz seres que ela mesma absorve. Essa grande digestão acontece em sobressaltos sutilmente perceptíveis, e os raios no céu nublado testemunham um espasmo invisível, uma constrição cósmica ou a constrição de uma nuvem. A que se assemelha um bisão que pasta? A um conjunto de fluxos, de ingestões e de excreções; é um corpo que atravessa o alimento absorvido, assimilado e depois expelido em forma de excrementos. O bisão faz ao campo aquilo que o campo faz ao bisão, um é reflexo do outro. Olhar um animal pastando é entrar progressivamente no âmago de um universo de contemplação em que a calma se instala no espírito. Em uma nota de 1986, Viola registra: “Esses bisões e eu nos instalamos aqui durante oito horas. Eles estavam muito mais em seu meio do que eu. Eles simplesmente estavam aqui. Pura meditação, espírito-campo [prairie

25 Viola, Bill. Note, 1986. In Violette, Viola, op. cit., p. 138.

mind] em uníssono com a paisagem.”25 Encontra-se Bergson em Viola. Em Matéria e memória o filósofo francês observa: “Esta erva em geral que atrai o herbívoro, a cor, o odor da erva sentidos e submetidos como forças (...) são os únicos elementos imediatos de sua percepção exterior. Sobre esse fundo de generalidade e de semelhança, a memória deles pode fazer prevalecerem contrastes que darão origem à diferenciações; o bisão distinguirá então uma paisagem de outra paisagem, um campo de outro campo; mas é aí, repetimos, que está o

26 H. Bergson. Matière et mémoire, note 26, c’est Presses Universitaires de France, édition du centenaire, Paris, 1970, p. 299.

supérfluo da percepção e não o necessário.”26 Basta que o supérfluo se torne o necessário para adotar o esprit-prairie de que nos fala Viola: contemplar o mundo como um ruminante e começar a saber, mesmo de modo ainda obscuro, com que nós podemos parecer.

Gilles A. Tiberghien (Université Paris I, Paris, França) é mestre de conferências na Université Paris, Panthéon-Sorbonne, onde ensina Estética. É autor de várias publicações, entre elas Land Art (éditions Carré, 1993 [edição revisada em janeiro de 2011]), Nature, art, paysage (Actes Sud/Ensp, 2001), Notes sur la Nature: la cabane et quelques autres choses (Le Félin, 2005), Emmanuel Hocquard (Seghers, 2006), Finis Terrae: imaginaires et imaginations cartographiques (Bayard, 2007) e Courts-circuits (Le Félin, 2008). / gillestiberghien@noos.fr Iracema Barbosa (Rio de Janeiro, Brasil) é artista e professora, faz doutorado em Artes na Université Rennes 2, França, onde viveu e trabalhou entre 2000 e 2009, tendo assistido aos seminários de Gilles A. Tiberghien, na Université Paris I, Sorbonne (2001-2004). / iracemabarbosa@orange.fr Bill Viola: na natureza das coisas Gilles A. Tiberghien (páginas 112-119)

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Eduardo Kac e a escrita do corpo no espaço* Bianca Tinoco

O artigo aborda o trabalho de Eduardo Kac como poeta e performador no começo da década de 1980, lembrando sua participação no coletivo Gang e suas intervenções poético/performáticas naquele período. Apoiando-se em Maria Beatriz de Medeiros, Paul Zumthor, Gilles Deleuze e Félix Guattari, observa de que maneira esses trabalhos iniciais refletem um pensamento do corpo que perpassa a produção posterior do artista. Eduardo Kac, performance, arte contemporânea. Antes, muito antes de se tornar um artista de renome graças a pesqui* Artigo recebido em março de 2010 e aceito para publicação em junho de 2010.

sas envolvendo computação, robótica e biotecnologia, Eduardo Kac tornou célebre sua

Pornograma 3 (Alis Grave Nil), de Eduardo Kac, produzido em 1982. A imagem serviu de base para a capa da publicação Escracho (1983).

voz e movimento. De 1980 a 1983, período em que criou mais de uma centena de “poemas

1 Neste texto, empregamos a palavra performance como sinônimo de arte da performance ou performance art.

experiências físicas com a poesia, Kac fez performances1, demonstrando em seus primei-

paixão pela palavra. Mais especificamente pela palavra falada, incorporada, que se faz pornô” e projetos correlatos, ele se dedicou a uma produção que rejeitava o suporte do papel e era pensada para o corpo em ação na cidade. Mesmo sem intenção, durante suas ros trabalhos como é fluida e porosa a linha entre as duas linguagens. Quando escreveu seu primeiro poema pornô, em janeiro de 1980, Eduardo Kac tinha 18 anos. Na adolescência, travara contato com a poesia de autores que versaram sem pudores sobre a questão do corpo, como Gregório de Matos, Manuel du Bocage e os romanos Marcial e Catulo. Também já havia bebido, àquela época, do manancial de Ezra Pound, Charles Baudelaire e Arthur Rimbaud. Dessas leituras, e também de uma oposição à poesia marginal então em voga, Kac tirou a determinação de se despojar de uma sintaxe criada para a leitura silenciosa. Ainda que tenha publicado, em 1981, os livros Nabunada não vaidinha e 24, ele se empenhou em conceber uma poesia para ser gritada na multidão, para a participação do público em espaços públicos. Na poesia de Kac, o corpo era não apenas o meio, mas o tema dos versos. “Nesses poemas,

2 Kac, 2004, p. 263.

busquei eliminar barreiras entre pornografia e erotismo, poesia e política, arte e vida.”2 Tirando de contexto palavrões e vocábulos estigmatizados, ele buscava subverter a carga semântica desses termos, revelando o preconceito depositado sobre as palavras e libertandoas para uma fruição mais aberta e menos conservadora. “Em outros termos, palavrões normalmente usados de forma agressiva eram recontextualizados, de forma a se transformarem

3 Idem, ibidem, p. 264.

em panfletos políticos progressistas ou instrumentos de crítica social bem-humorada.”3

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Em seu ponto de vista, os poemas também configuravam uma atitude política, uma vez que tratavam de sexo com naturalidade, em uma acepção plural, pansexual, sem aderir à visão machista e utilitarista das classes dominantes – na época ainda fortemente associadas à repressão e à ditadura militar. Ele deslocava, por exemplo, palavras pornográficas para a descrição de uma paisagem idílica, como em “Eclipse”: o dia amanheceu tesudo o mar chupa a bucetinha do horizonte escancara um sorriso azul enquanto o sol de pau duro goza junto cualua O poeta não era o único a tentar oferecer uma visão mais natural do corpo. Em fevereiro de 1980, um grupo de mulheres protestou na Praia de Ipanema em prol do topless, para que pudessem tomar sol em pé de igualdade com os homens, sem sexualizar os seios. A iniciativa não durou mais que um verão, devido às pressões da sociedade, mas foi acompanhada pelo Topless Literário, uma manifestação poética nas areias da praia, da qual Kac participou. Naquele ano, ele se tornou O Bufão do Escracho, um dos integrantes do grupo Gang, braço performático do Movimento de Arte Pornô. O coletivo também era formado por Cairo Assis Trindade (O Príncipe Pornô), Teresa Jardim (A Dama da Bandalha), Denise Trindade (A Princesa Pornô, mulher de Cairo), Sandra Terra (Lady Bagaceira), Ana Miranda (A Cigana Sacana), Cynthia Dornelles e as crianças Daniel e Joana Trindade (Os Surubins). Em 1980 e 1981, a Gang realizou várias intervenções em praças, praias e teatros no Rio de Janeiro, incluindo uma série de encontros de poesia às sextas-feiras na Cinelândia. As vivências e descobertas do grupo eram publicadas na revista Gang, com três edições até setembro de 1981. No espaço da rua, Eduardo Kac adaptava suas criações, incorporando novas técnicas de acordo com o local e com as reações do público. Nos muros, registrava o poema-grafite “Overgoze”, formado apenas pelo neologismo. Introduzindo outros elementos às ações da Gang, além da voz e do gestual, fazia charadas e oferecia aos acertadores o Poemazóide – objeto assim chamado por lembrar um espermatozóide de borracha, e que trazia carimbado em uma etiqueta, de um lado, “Dica pura”, e do outro, “Pica dura”. Quando se apresentou com o grupo na Biblioteca Mário de Andrade, em São Paulo, foi expulso do palco e passou a gritar seus versos nas escadarias do prédio, conquistando a simpatia da imprensa local. Ao trazer para o corpo os poemas de sua autoria, Kac os assumiu e, durante o período em que trabalhou como poeta e performador,4 vestiu essa opção em tempo integral. Em seu armário, camisetas estampadas pelo artista traziam poemas como “Filosofia”: pra curar amor platônico só uma trepada homérica

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4 Termo utilizado por pesquisadores iberoamericanos, com destaque para o mexicano Felipe Ehrenberg, em substituição ao anglicismo performer, e que denomina o artista de performance. No Brasil, foi amplamente adotado por Renato Ferracini (Unicamp/Grupo Lume) e Fernando Pinheiro Villar (UnB), entre outros.


Ele também usava uma pontiaguda pulseira punk, uma minissaia rosa, sandálias trançadas e, em ocasiões especiais, batom vermelho nos lábios. O resultado era uma figura andrógina, com marcante contraste entre os adereços femininos, o cabelo longo e encaracolado e o físico de jogador de basquete – à época, Kac era atleta no Clube de Regatas Flamengo. minha mina me deu de presente uma minissaia rosa que combina muito bem com minhas grossas & musculosas & cabeludas pernas. descolei uma bonita pulseira sadomasô. tipo punk. que quase não tiro da munheca. e de quebra curto muito um batom bem vermelho (presente do broto também) que dá charm no contraste com a minha pele polonesa mais do que branca: transparente. daí que de repentelhamente (sim porque qualquer lance repetido repetido e repetido demais cai no abismo da diluição careta ou da ortodoxia cega) me invento de fundir estas esparsas proposições de décadas precedentes (a saia no novo traje masculino de Flávio de Carvalho (anos 50) mais o batom (anos 60) mais a pulseira punk (anos 70) e caminho pelas ruas como um cidadão qualquer. ou melhor como um cidadão comum que na verdade sou. as únicas agressões de que fui alvo até agora foram escarradas e 5 Kac, Trindade, 1984, p. 170.

xingamentos.5 Em 1981, Kac deu início à série de trabalhos Pornogramas – aquela que, segundo ele, chegou mais perto de alcançar seu objetivo de uma poesia escrita com o corpo. Criou cerca de

6 Os Pornogramas, assim como outros registros do período relatado, foram exibidos por Eduardo Kac na exposição Pornogramas: 1980-1982, na Galeria Laura Marsiaj, de 28 de janeiro a 13 de março de 2010.

10 poemas visuais compostos com corpos, especificamente para serem fotografados.6 Por meio deles, o poeta considerou concretizada sua ambição literária de tornar o espaço um meio de escritura para o corpo, que retornava ao papel na revelação fotográfica. Ao fixarse no suporte do papel, pensava Kac, o corpo finalmente se dava à leitura – uma contradição em relação às ideias que levaram o artista à poesia pornô, como veremos adiante. O ponto culminante das ações da Gang foi a performance coletiva Interversão, também chamada de Pelo strip-tease da arte, realizada em 13 de fevereiro de 1982 no Posto 9 da Praia de Ipanema. Tendo como pretexto os 60 anos da Semana de Arte Moderna de 1922, os performadores do grupo realizaram uma Passeata Pornô, na qual ficaram nus. Tentaram atrair outros banhistas para um banho de mar ao natural (conseguiram algumas adesões), e por pouco não foram presos por atentado ao pudor. “A performance no Posto 9 (...) fez uso de um amplo repertório de poemas, diálogos, canções, ações interativas, apresenta-

7 Kac, 2004, p. 265.

ção de objetos, passeata e mergulho coletivo. O Posto 9 ficou eletrizado (...)”7 Durante a ação, foi distribuída a revista de oito páginas Pornô Comics, criada pelo cartunista Ota uma semana antes, com tiragem de mil exemplares. O enredo da publicação era a realiza-

8 A história em quadrinhos foi reproduzida na compilação Antolorgia: arte pornô, organizada por Kac e Trindade, 1984.

ção da passeata, tendo os integrantes da Gang como personagens principais.8 Após a performance em Ipanema, Eduardo Kac julgou ter chegado ao fim de sua relação com a Gang – e, em parte, com a poesia gritada – por temer uma institucionalização das

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atitudes irreverentes do coletivo. Ainda em 1982, apresentou-se no evento 14 Noites de Performance, no SESC Pompeia, criou seu primeiro poema digital e sentiu-se atraído pela

Pornograma 2 (Hic et ubique), de Eduardo Kac, produzido em 1981.

arte tecnológica produzida em São Paulo por Otávio Donasci, Carlos Fadon Vicente, Wilson Sukorski, Hudinilson Jr. e Mário Ramiro – com os quais estabeleceu ampla troca, por meio de encontros e cartas, durante a década. Em 1983, elaborou o primeiro holopoema ou poema holográfico, apropriando-se das técnicas do holograma, e realizou em 1985 a primeira exposição de holopoesia, no Museu da Imagem e do Som (MIS), em São Paulo. De certa maneira, Kac continuava a transportar a poesia para o espaço, mas sem a presença do corpo do autor dessa vez9. “Em meus holopoemas, letras tridimensionais esculpidas com raio laser flutuam no ar. Surgem e desaparecem, mudam de forma e de cor, alteram sua posição no espaço em função do ângulo de observação do espectador.” Encerrando a fase de estudos da poesia corporificada, Kac lançou em 1983 o livro de

9 De acordo com Kac, o papel do corpo não desaparece na holopoesia: ele é simplesmente levado do autor para o leitor. O artista afirma que é impossível ler o holopoema sem que o leitor faça, por conta própria, sua performance (uma quase dança) perante o holopoema, em uma leitura cinestésica.

artista Escracho, fruto de quase dois anos de trabalho. A publicação reuniu textos dele, de afetos e desafetos – nesta última categoria, estão Carlos Drummond de Andrade e o colunista Zózimo Barrozo do Amaral. “Da mescla de linguagens de vanguarda (videoteatro, arte ASCII, música eletroacústica) com outras formas de expressão (cartum, grafite, fotografia) resultou esta panaceia da criação pansemiótica, cujo próximo número está previsto para 2.983 (...)”10 A capa é um dos Pornogramas, trabalhado graficamente.

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10 Idem, ibidem, p. 269.


A poesia do corpo em performance Em um primeiro momento, não é tarefa das mais simples associar a escrita e a poesia à performance. Na maioria das vezes, o ato de escrever é inseparável do papel que lhe serve de suporte – uma superfície delicada, de fácil destruição, mas que costuma sustentar registros por mais tempo do que o chão, a terra, o ar. O corpo que se inscreve em um determinado espaço deixa marcas tão efêmeras, que estas logo são apagadas pelo vento, a água, a movimentação de outros corpos ou o esquecimento. O risco é momentâneo. Mesmo os registros fotográficos, sonoros e audiovisuais não são capazes de fixar essa escrita em toda sua multiplicidade de gestos, expressões, silêncios, sons, tato, sensações. A escrita do corpo desenvolve-se, portanto, em meio rarefeito: se não for imediata, ela provavelmente não ocorrerá mais, dada a fugacidade dessa caligrafia. Ou, caso ocorra, será apoiada em registros secundários – os quais, por mais fiéis que procurem ser, não conseguem abarcá-la em sua mobilidade e nos múltiplos pontos de vista possíveis. Mais ainda, tal reprodução não estará apoiada na presença do corpo em ação, na possibilidade de seu contato e sua troca com o outro, na oportunidade do outro de fazer-se também escrita, coautoria. Assim, a escrita do corpo desenvolve-se para um leitor atento ou então para ninguém, em uma fala de si consigo, íntima por excelência. A performance, enquanto encontro de artista(s) com participador(es) e compartilhamento de determinados espaço e tempo, configura-se como uma escrita executada pelo pensamento corporificado. Uma escrita efêmera, porém inegável, cuja inscrição mais fiel é gravada no corpo e na memória do interlocutor, nas percepções que este experimenta durante a apresentação. Vivenciar um trabalho artístico dessa natureza, diz Maria Beatriz de Medeiros, é “(...) estar aberto a uma situação/sensação nova; ter disponibilidade para explorar até o ponto de se transformar; desconstruir um imaginário, enfim, ser capaz de 11 Medeiros, 2005, p. 99.

se sentir pleno, o que todo indivíduo é naturalmente”.11 Aqui está a grande potência de uma poesia para ser gritada na multidão, como a criada por Eduardo Kac no início da década de 1980. Ao se expor na rua, em contato com os ouvintes, o artista abriu mão da segurança do papel para encarar as reações, nem sempre positivas, a suas obras. De acordo com Paul Zumthor, esse impulso se inscreve em “(...) uma espécie de ressurgência das energias vocais da humanidade, energias que foram reprimidas durante séculos no discurso social das sociedades ocidentais pelo curso hegemô-

12 Zumthor, 2007, p. 15.

nico da escrita”.12 Nesse sentido, a iniciativa de Kac integraria um “(...) movimento que,

13 Idem, ibidem, p. 10.

desde o início do século XX, compele os poetas a realizarem vocalmente sua poesia”.13 O corpo de Kac, ao propagar verbal e gestualmente uma liberdade de conceitos, convidava outros a uma participação não apenas intelectual e emocional, mas também física, uma abertura para a experiência estética por meio da ativação dos sentidos. A poesia corporificada permite versos alheios à vontade do performador, é escrita também pelas vozes e atitudes em seu entorno. “Do significado de uma performance faz parte o entrelaçar

14 Medeiros, 2005, p. 141.

artista e público, onde esses se confundem, em um só movimento.”14 Eduardo Kac e a escrita do corpo no espaço Bianca Tinoco (páginas 120-127)

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Sem o anteparo do papel, sem a proteção de uma separação de tempos entre escrita e leitura, viabiliza-se um processo em que todos leem e redigem, agem e observam, vaiam e exultam. O artista se dilui nesse corpo coletivo, intenso e não organizado – o Corpo sem Órgãos de Antonin Artaud, ampliado por Gilles Deleuze e Félix Guattari. Analisando os primeiros trabalhos artísticos de Kac, é possível localizar um aparente paradoxo: o poeta fez a experiência de realizar suas obras no espaço urbano, arriscou-se a ser alvo de reações violentas ao questionar tabus envolvendo a sexualidade, e depois retornou ao papel com a série Pornogramas, aquela que julgou ser a melhor expressão de suas ideias ligadas à escrita do corpo no espaço. Cabe aqui esclarecer a posição do próprio Kac, para quem as obras em questão fazem parte de sua incursão na literatura, ou seja, ele lançou mão da performance como um meio, um recurso para dar corpo à poesia. As ações na rua, seguindo esse raciocínio, seriam como rascunhos, experimentos preliminares na busca de uma inscrição que, mesmo corporal, se tornasse definitiva e capaz de ser folheada, impressa, lida em tempo e espaço distantes de sua realização. Do ponto de vista da literatura, a contribuição dos Pornogramas é ousada ao inserir no meio impresso “caracteres” e “tipologias” corporais, ampliando a pesquisa dos poetas concretos com novos elementos e desenvolvendo uma linguagem alternativa à dos poetas marginais cariocas. Em Antolorgia, Kac reforça a importância desse momento para sua formação artística, destacando que “(...) muito além da pornografia e do erotismo, surge triunfante o corpo (...) Não apenas o corpo físico do poeta. Outro corpo. Na estirpe de Sade & Duchamp: uma Body Poetry, uma Energy Writing, ou qualquer outro nome que se queira dar.”15 Tal corpo, ele considera, é uma das recorrências marcantes em toda a sua traje-

15 Kac, Trindade, 1984, p. 190.

tória, presente em praticamente todos os trabalhos e inegável em sua incursão na bioarte. No campo da performance, porém, os Pornogramas constituem um desvio. Calou-se a voz do artista, congelou-se o movimento, o entorno foi recortado e silenciado pelo clique da câmera. Qualquer traço de imprevisibilidade foi deixado de fora, pois a imagem do corpo foi editada e escolhida entre tantas outras no contato fotográfico. Não há mais uma possível coexistência com o interlocutor. Após essa série, o abandono temporário do corpo na produção de Kac, com o desenvolvimento da Eletropoesia e da Poesia holográfica a partir de 1982, demonstrou coerência no caminho trilhado pelo artista. No texto “Eletropoesia”, o artista proclamou: “Hoje, cabe ao artista redimensionar os vetores da visualidade, agir na tênue fronteira da intersemioticidade e situar a palavra – matéria plástica – no domínio da eletrônica.”16 Ainda que ele argumente que as Eletropoesias são suas únicas obras desatreladas de uma existência corporal, matérica, o que se tem em praticamente todas é um corpo com o qual o interlocutor estabelece uma relação remota, mediada, fantasmática. A tactilidade, o cheiro, a presença corporal múltipla característica dos tempos da poesia pornô não perdurou – em muito devido às opções tecnológicas de Kac, como o uso artístico da telepresença. Como

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16 Kac, 2004, p. 276.


sublinha Zumthor, “(...) aquilo que se perde com os media, e assim necessariamente permanecerá, é a corporeidade, o peso, o calor, o volume real do corpo, do qual a voz é 17 Zumthor, 2007, p. 16.

apenas expansão”.17 Mesmo que não tenha prosseguido em sua produção performática, Eduardo Kac faz parte – ainda que ele não admita – da história do gênero no Brasil. Seus primeiros trabalhos, sozinho ou com a Gang, são exemplos de uma conexão inegável entre performance e poesia no país, e precedem os de uma geração de performadores cariocas mais ligada ao contexto da Geração 80 – da qual podemos citar a Dupla Especializada, o Grupo Seis Mãos, Aimberê Cesar, Alex Hamburger e Márcia X, entre muitos outros. Ao pregar a liberação, em voz e intervenções, de um corpo ameaçado e massacrado pela ditadura militar, o então poeta/performador ajudou a anunciar uma nova era na vida política, social e cultural. A irreverência e a coragem da “cara para bater” justificam o reconhecimento desta fase pouco alardeada e pesquisada. Tão distinta de sua trajetória posterior, ela é autêntica e exemplar da sede de Kac pela experimentação.

Bianca Tinoco (UnB, Brasília, Brasil) é mestre em Artes Visuais da Universidade de Brasília, na linha Poéticas Contemporâneas, sob orientação de Maria Beatriz de Medeiros. Formada em jornalismo pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e especialista em História da Arte e da Arquitetura no Brasil pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. / biancatinoco@gmail.com

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Eduardo Kac e a escrita do corpo no espaço Bianca Tinoco (páginas 120-127)

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Arte contemporânea, corpo e cidade: existências entretecidas* Danielle Milioli e Emyle Pompeu de Barros Daltro

Este artigo propõe uma reflexão sobre a reinvenção das relações corpo/cidade por meio da arte contemporânea, elegendo duas instalações coreográficas como exemplos que evidenciam tais propostas. Articulando conceitos como os de lugar, não lugar, ressingularização, desterritorialização, desconstrução com as obras Pequenos fragmentos de mortes invisíveis e Impermanências, da artista Vera Sala, as autoras se instalam sobre as linhas da sensibilidade dessa intérprete criadora, percorrendo os mapas que lhe são sugeridos pelos trabalhos em questão. Corpo, cidade, arte contemporânea. As velozes e silenciosas transformações da sociedade contemporânea, * Artigo recebido e aceito para publicação em março de 2010.

que atravessam as diversas possibilidades de existências, acabam por produzir modificações inusitadas no cenário urbano, nos corpos habitantes que compõem a cidade e constituem seus espaços. Essas modificações desencadeiam novos plurais conhecimentos expressos cotidianamente pela mídia, pelas artes, pelas práticas culturais. É o conhecimento construído e expresso no cenário artístico contemporâneo que efetivamente assume o corpo para pensar a tessitura da cidade que apresentamos como provocador da formulação de duas transversas questões: que relações, conexões, agenciamentos constituem entre si arte, corpo e cidade? Como a arte recria essas relações, conexões e agenciamentos? Alguns aspectos dessas questões tornam-se objeto deste texto que, misturando imagens e palavras, pretende contribuir com o delineamento de algumas respostas e com a dialogia entre arte contemporânea, corpo e cidade. Labirinto ou (in)fluxos que tecem novos mapeamentos do corpo Um labirinto polissêmico de estreitas passagens, feito de metal e vidro, e atravessado por corpos. O transeunte/visitante, cauteloso, entra nesse labirinto em que ora aprecia sua própria imagem refletida na película aplicada sobre o vidro, ora se movimenta quando, através dos vidros agora transparentes, enxerga um possível trajeto ilumina-

Pequenos fragmentos de mortes invisíveis / Vera Sala. Foto: Rogério Ortiz.

do irregularmente pelas luzes que constantemente se movem. No (im)possível trajeto, quatro corpos. Tremores, desequilíbrios, quedas, oscilações.

Arte contemporânea, corpo e cidade Danielle Milioli e Emyle Pompeu de Barros Daltro (páginas 128-134)

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A instalação coreográfica Pequenos fragmentos de mortes invisíveis (PFMI), da artista Vera Sala, nos insere em pequenas trajetórias internas de corpos devires “que nos arrancam do conforto em relação a nossa carne”.1 Corpo estrangeiro, polifônico, singular,

1 Sander, 2009, p. 395.

corpo labirinto a instituir corpos daqueles que transitam no labirinto. E, à medida que os corpos dos artistas e do público se atualizam nos espaços tempos construídos na instalação coreográfica, produzem acontecimentos, provocam a descoberta de “novos possíveis, ou ainda limiares”,2 fazendo com que esses corpos se

2 Idem, ibidem, p. 390.

desprendam de suas continuidades.

3 Deleuze, 1990.

3

A tessitura complexa de Pequenos fragmentos de mortes invisíveis reinventa as grandes cidades... Agitação febril, ritmos metropolitanos vertiginosos e frenéticos, mistura de estilos, demolições constantes, imbricado de signos, congestionamento de tráfegos, autoconstruções marginais.4 Cidades dissolvidas em contínuo processo de construção e

4 Canevacci, 2004.

desconstrução. Corpos que seguem os (in)fluxos do cotidiano, complacentes, oscilantes “como as linhas do transporte metropolitano de grandes metrópoles, a compor infinitas vias e possibilidades de trânsito para direções continuamente reinventadas”.5 Sinuosi-

5 Zanella, 2009, p. 98.

dade a tecer novos lugares de encontro, ainda que encontros de passagens, a sugerir os complexos e imprevisíveis contornos dos trajetos urbanos que desencadeiam esbarros, tropeços e desvios, e instauram a concreta presença do outro. Metáfora a denunciar a (in)constante (im)permanência humana. Segundo a crítica de dança Helena Katz, Vera Sala está buscando desarticular o corpo que dança, desautomatizá-lo, desligar suas ligações habituais, buscando uma desconstrução do corpo técnico da dança para impingir-lhe outra técnica, outro padrão de movimento.6 Os corpos em PFMI, aparentemente permanentes, movimentam-se por trajetórias mínimas que provocam tremores nesses corpos. As alterações ocorrem sem que se perceba muito bem como; são movimentos que parecem desorientados, que exploram a lentidão e a imprecisão. Desse modo, esses corpos contrapõem-se ao ritmo vertiginosamente acelerado dos grandes centros urbanos que promovem deslocamentos além de rápidos, precisos e orientados. Paradoxalmente, a construção de grandes avenidas que conectam e aproximam os mais variados pontos das cidades, acaba por proporcionar outros distanciamentos. Distanciamento entre as pessoas e seu entorno a passar ligeiro pelas janelas dos transportes urbanos e a refratar múltiplas e indefinidas imagens que se misturam ao imaginário humano como manifestação de tempos apressados e rotinas dilacerantes. Distanciamento de um tempo no qual os espaços públicos abrigavam encontros furtivos desencadeados pela estreiteza das relações.

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6 Entrevista com Helena Katz, concedida a Emyle Pompeu de Barros Daltro, no mês de junho de 2009, por ocasião da apresentação de Pequenos fragmentos de mortes invisíveis na Galeria Olido, São Paulo, SP.


Pessoas em um ônibus (Fim de uma jornada de Trabalho). Foto: Emyle Pompeu de Barros Daltro. 7 Guattari, 1992, p.170.

Félix Guattari registrou que “(...) o porvir da humanidade parece inseparável do devir urbano”;7 dessa forma, podemos perceber que os corpos dispositivos que compõem a referida instalação coreográfica anunciam possibilidades de reinvenção da cidade e de um corpo que, transcendendo cristalizações, torna-se ele mesmo a cidade, a redimensionar e reorganizar as possibilidades corporais. Pertencemos a certos dispositivos e neles agimos. A novidade de um dispositivo em relação aos anteriores é o que chamamos sua atualidade, nossa atualidade. O novo é o atual. O atual não é o que somos, mas aquilo em que vamos nos tornando, o que chegamos a ser, quer dizer, o outro, nossa diferente evolução. É necessário distinguir, em todo o dispositivo, o que somos (o que não seremos mais), e aquilo que somos em devir: a parte da história e a parte do atual. A história é o arquivo, é a configuração do que somos e deixamos de ser, enquanto o atual é o esboço daquilo em que vamos nos tornando. Sendo que a história e o arquivo são o que nos separa ainda de nós próprios,

8 Deleuze, 1990.

e o atual é esse outro com o qual já coincidimos.8 Vera Sala instaura assim um “corpo devir” que articula “estratégias possíveis à inven-

9 Sander, 2009, p. 390.

ção de outras corporeidades”.9 Esse corpo que ainda está por vir interroga-nos sobre

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nossos modos de ser/estar e faz “com que o outro e o externo se manifestem com evidência”.10

10 Deleuze, 1990.

Emaranhado rumo ao não lugar Cem quilos de arame (in)flexíveis, envolvem, aprisionam, afetam um corpo flexível buscando descobrir possibilidades de movimentações e construir percursos imprevistos. Entre os espaços ocupados e desocupados, imagens se multiplicam sob a forma de fronteiras em que coexistem a liberdade de ocupação do espaço e sua restrição. Imagens que evidenciam ainda o deslizamento da majoritariamente urbana sociedade contemporânea que efetiva “um largo deslocamento que vai do controle repressão, próprio da sociedade disciplinar, para aquele de controle estimulação, das sociedades de controle”.11

11 Piovesani, 2004, p.146.

As complexas relações que hoje prevalecem produzem rupturas, permeabilidades e elasticidades de margens e fronteiras. Impermanências que nos inserem em uma reflexão acerca de paradoxais questões sobre as práticas corporais e urbanísticas emergentes da intensificação do processo de mundialização em que vivemos. Questões como as aparentes condições de libertação do corpo, e não mais seu disciplinamento e autonomia da ocupação e do movimento no espaço e não mais sua restrição. Pseudoliberdades a instaurar novas barreiras, invisíveis, de distinções e segregações. O corpo de Vera Sala, agora à procura de frestas, denuncia um corpo agonizante a reivindicar novas relações com seu entorno. Um corpo a instituir um “não lugar”, a conquistar um espaço sem territorialidade fixa “onde o corpo não consegue se posicionar no papel de protagonista, de coadjuvante ou até mesmo de figurante de paisagem”.12

12 Takahashi, 2003, p. 150.

Vera Sala, articulando em uma perspectiva crítica e criativa arte e realidade cotidiana, promove outras possibilidades discursivas e provoca um processo de desterritorialização, à medida que propõe um corpo que adquire outros sentidos: não é mais seguir e acuar o corpo cotidiano, mas fazê lo passar por uma cerimônia, introduzi-lo numa gaiola de vidro ou num cristal, impor-lhe um carnaval, um disfarce que dele faça um corpo grotesco, mas também extraia dele um corpo gracioso ou glorioso, a fim de atingir, finalmente, o desaparecimento do corpo visível.13

13 Deleuze, 2005, p. 228.

Corpo mutável, mas inexoravelmente único, singular, a compor arranjos impregnados de acontecimentos e a instituir vivências que transformam as possibilidades ilimitadas das relações, conexões e agenciamentos que constituem a contemporaneidade. “No emaranhado disperso da vida cotidiana, afinal, procuramos o eu através do outro (...)”,14 o lugar no não lugar, um jogo que faz com que experimentemos o corpo como espaço de ressingularização constante de nós mesmos.

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14 Canton, 2009, p. 35.


Impermanências não acaba, é infinito mediante as múltiplas possibilidades de movimentos, e o corpo não se constitui mais como um obstáculo ao pensamento, mas, ao contrário, o provoca a mergulhar no impensado da vida. Incursões finais Assumir o corpo para pensar a cidade é assumir uma cidade que não é delineada apenas pela ocupação de seu espaço geográfico e arquitetônico, mas uma cidade enquanto espaço constituído por aqueles que a habitam, uma cidade que é produzida historica15 Lefebvre et al., 1996.

mente pela significação que os sujeitos acrescentam a suas atividades cotidianas.15 Propor ao corpo a reinvenção da cidade é “abrir o corpo a conexões que supõem todo um agenciamento, circuitos, conjunções, superposições, limiares, passagens e distribui-

16 Deleuze, Guattari, 2008, p. 22.

ções de intensidades, territórios e desterritorializações (...)”.16 É criar uma cidade que só existe através do corpo e um corpo que pode ser simultaneamente várias cidades. Assim como o labirinto de Pequenos fragmentos de mortes invisíveis instaura novos devires trajetos, Impermanências intensifica o emaranhado rumo ao não lugar. Ambas as instalações coreográficas de Vera Sala entregam o conceito de cidade ao movimento do corpo e potencializam percepções que por si só sobrepõem corpo e cidade, dilacerando a barreira instaurada pela ideia de que corpo e cidade configuram duas arquiteturas autônomas. As conexões entre arte contemporânea, corpo e cidade nos fazem atentar, portanto, para a reinvenção da vida. Vida tecida nos interstícios da cidade, marcada por determinado tempo e espaço e, simultaneamente, aberta a imprevisíveis agenciamentos.

Danielle Milioli (UFMT, Cuiabá, Brasil) é psicóloga graduada pela Universidade Federal de Santa Catarina UFSC (2002), especialista em Didática e Metodologia do Ensino Superior pela Universidade do Extremo Sul Catarinense Unesc (2006) e mestranda em Estudos de Cultura Contemporânea pela Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT). Atualmente é docente de Psicologia Social do Curso de Psicologia do Univag (Centro Universitário de Várzea Grande, MT) e intérprete criadora do Grupo Casa Artes do Corpo, de Cuiabá, MT. / danimilioli@hotmail.com Emyle Pompeu de Barros Daltro (UFMT, Chapada dos Guimarães, Brasil) é graduada em Comunicação Social pela Universidade Federal de Mato Grosso (2004), especialista em Planejamento e Gestão Cultural pela Universidade de Cuiabá (2007), curso realizado em convênio com a PUC/MG, e mestranda em Estudos de Cultura Contemporânea pela Universidade Federal de Mato Grosso, sob a orientação da Profª. Drª. Maria Thereza Azevedo. Possui formação em dança e é intérprete criadora do Grupo Casa Artes do Corpo, de Cuiabá, MT. / emylepellegrim@gmail.com

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Corpos desindividualizados, faces desabilitadas* Niura Legramante Ribeiro

O texto analisa algumas obras de arte contemporânea de três artistas atuantes em Porto Alegre, Vilma Sonaglio, Bianca Araújo e Richard John, que utilizam a linguagem da fotografia. Trata-se de investigar como os artistas problematizam a questão da identidade a partir do conceito de retrato proposto por John Tagg como “descrição de um indivíduo” e como “inscrição social” do corpo. Retrato, identidade, fotografia. Assuntos como retrato, autorretrato, pose, identidade e memória cor* Artigo recebido e aceito para publicação em março de 2010.

poral, social ou individual são muito recorrentes em obras de arte que utilizam o meio fotográfico na contemporaneidade. Para discutir a questão da identidade é preciso considerar que algumas das características desindividualizadoras do retrato na fotografia, já eram utilizadas desde seu surgimento, no período oitocentista. Recursos operativos, usados como artifícios na busca de determinada idealização da pessoa retratada, eram comumente empregados nos estúdios fotográficos. As escolhas dos elementos que compunham o cenário, os trajes, as poses e a eliminação de determinadas marcas faciais desagradáveis ao padrão de beleza influenciavam a imagem final. Essa teatralização do corpo necessariamente criava identidades que, em sua origem, já eram fictícias; fazia parte, porém, da construção de uma identidade social. O recurso técnico de correção das pupilas, inventado pelo suíço Johann Baptiste Isering, logo se tornou técnica de embelezamento e tem-se mantido até hoje, de forma ainda mais elaborada, como sabemos, na versão do photoshop empregados nos corpos cirúrgicos virtuais, grande trunfo da publicidade. Isso era tão importante, que o ateliê de Nadar mantinha seis profissionais encarregados do retoque de negativos e três pessoas para o retoque de cópias positivas. A fabricação da pose, igualmente fundamental, seguia determinados estereótipos; no início era utilizada para sanar problemas técnicos nos longos tempos de exposição que, depois, resultaram numa padronização de gestos o que deixava pouco espaço para representar individualidades, como observou Gisele Freund: Tanto no retrato fotográfico quanto naquele pictórico o que importa não é representar a individualidade de cada cliente, mas antes, conformar o arquétipo de uma classe ou de um grupo, valorizados e legi-

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timados pelos recursos simbólicos que se inscrevem na superfície da imagem.1

1 Freund, Gisele apud Fabris, 2004, p. 30.

O caráter de verdade e exatidão atribuído à fotografia quando de seu surgimento foi paulatinamente se desintegrando ao longo do tempo pelas possibilidades expressivas que os artistas vêm atribuindo à imagem fotográfica. Para discutir a forma como os artistas Vilma Sonaglio, Bianca Araújo e Richard John problematizam a questão do retrato e da identidade, a definição oferecida por John Tagg pode ser uma abordagem adequada: o retrato é um signo cuja finalidade é tanto a descrição de um indivíduo como a inscrição de uma identidade social. Porém, ao mesmo tempo, é também uma mercadoria, um luxo, um adorno, cuja propriedade em si mesma confere uma posição.2

2 Tagg, 2005, p. 52-53.

Na contramão histórica de apresentação social do retrato, dessa busca pela idealização da imagem e pela nitidez fisionômica, encontram-se os trabalhos de Vilma e Bianca, que recorrem à apropriação de imagens de arquivos de famílias e de retratos de colunas sociais, respectivamente. Há, em suas obras, a procura intencional de procedimentos plásticos desindividualizadores de identidades. O que essas artistas parecem colocar em xeque é o corpo como descrição física e como inscrição social, além de reafirmar a utilização da fotografia como antidocumento. Numa época de corpos espetaculares, de imagens de altíssima resolução veiculadas na mídia, há artistas que retiram o caráter documental oferecido pelo retrato. Negar a possibilidade de analisar o corpo pelos recursos simbólicos tão caros ao retrato tradicional, como os caracteres sociais identificadores do indivíduo – fisionomias, roupas e poses –, está no centro de determinadas operações plásticas da contemporaneidade. Segundo Jean-Jacques Courtine e Claudine Haroche, as classes sociais enfrentam-se pelo olhar: cada um investiga o desconhecido do outro (...) essas classes sociais observam-se, julgam-se e defrontam-se a partir de aparências físicas, dos traços inscritos nos seus corpos e nos seus rostos (...), o corpo do outrem torna-se uma coleção de detalhes a destacar, de índices a interpretar.3 São justamente esses paradigmas de julgamento que as fotografias de Sonaglio colocam em crise, pois retiram do observador algumas das possibilidades de escrutinamento social do corpo. Julgar o corpo por sua inscrição social é veementemente negado pelos códigos plásticos aos quais a artista recorre. Sonaglio acaba por desabilitar todos os recursos que, no retrato tradicional eram agregados ao corpo do indivíduo. O corpo perde seu estatuto de tradução de uma determinada identidade. Isso já se evidencia desde seu primeiro trabalho em fotografia do corpo nas obras da série Transeuntes, 1998, obtidas por procedimentos

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3 Courtine, Haroche, 1995, p. 220-221.


de inversão e baixa velocidade no momento de captura, o que resulta mais em superfícies de contornos brancos informes do que propriamente em corpos. A imagem se constitui, portanto, em manchas de contrastes em preto e branco num sentido mais gráfico do que fotográfico, nas quais não é mais possível o reconhecimento de corpos, mas apenas vultos. Esvai-se a descrição iconográfica a ponto de não se poder mais reconhecer como tal, o que contradiz a lógica da fotografia em sua função original suprema de conservar memórias corporais. Não há mais descrição física e muito menos inscrição social. E o gesto irônico da artista é o de ter fotografado pessoas que circulavam no prédio de um lugar chamado Tudo Fácil, na Rua Borges de Medeiros, em Porto Alegre, em que eram feitas as carteiras de identidades, local em que também foi realizada a exposição – um lugar que tem por finalidade identificar, abrigar uma mostra paradoxal cujas imagens desidentificam. A figura humana surgiu dessa relação com o próprio espaço da exposição. A questão da identidade, de ali fazerem documentos de identidade. (...). Então eu queria fazer algo neste sentido. Comecei a fotografar, mas a fotografia normal identificava e a minha ideia para essas imagens era justamente ao contrário: que a fotografia não identificasse. (...) Isso me levou a uma busca formal até encontrar essa inversão que 4 Depoimento da artista Vilma Sonaglio a Flávia Campos de Quadros. Porto Alegre, 25 de setembro de 2006 e 17 de janeiro de 2007.

desidentificava completamente as pessoas.4 Talvez formalmente com grau menor de radicalidade do que em Transeuntes, mas nem por isso menos inquiridoras da condição identitária do corpo, são as obras Altares: pretérito perfeito, 2000, Falso testemunho, 2000, Felicidade possível, 2000 e ainda o trabalho Janelas 12, 2004, realizado no espaço do Torreão. Para a série Altares, Vilma fotografou imagens de famílias que eram conservadas em porta-retratos dispostos em cômodas ou em composições de parede criadas pelas próprias famílias. O que esses altares domésticos representam? Certamente, uma conexão afetiva com o passado, uma pseudopresença. Por que fotografar, conservar e olhar para as imagens? Bourdieu oferece algumas razões pelas quais a fotografia pode trazer satisfações: A proteção contra a passagem do tempo como as falhas da memória, a comunicação com os demais, a expressão de sentimentos, a realização

5 Bourdieu, 2003, p. 52.

de si mesmo, o prestígio social, a distração ou a evasão.5 O fato de não manter vínculo afetivo com os retratados, porém, possibilitou à artista realizar operações de ordem plástica para provocar esvaziamentos de caracteres identitários. Essa ausência de afetividade com os retratados leva-a a afirmar: “por isso eu posso fazer o que eu faço; por isso eu posso embaralhar; por isso eu posso destruir; por isso eu posso

6 Depoimento da artista Vilma Sonaglio a Flávia Campos de Quadros em 21 de agosto de 2006 in Quadros, 2007, p. 160.

retirar a identidade”.6 A desindividualização das identidades é conseguida por procedimentos como as técnicas de alto-contraste, solarização, sobreposições de vários negativos, inversões de

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imagens e baixa velocidade para realizar as fotografias, como na série Transeuntes. Tais procedimentos fazem desaparecer a tridimensionalidade dos corpos, deixando apenas

Vilma Sonaglio. Felicidade possível (da série Altares verticais), 90 x 110cm, Fotografia p/b, 2000.

suas linhas de contornos, como se fossem decalques de desenho sobre uma superfície sombria, mergulhados na escuridão. Contrariamente à ideia de visibilidade do retrato tradicional, aqui há a procura intencional de esmaecimento da memória corporal pelo escurecimento das imagens. Pode-se ter a sensação de que, ao puxar os fios dos contornos desses corpos, eles se dissolverão, o que resultará apenas numa superfície preta. Embora a encenação da pose em alguns trabalhos, ainda seja visível, a legibilidade dos traços do rosto e detalhes da pele é escamoteada por corpos vazados. Suas intencionalidades estéticas desqualificam o que Bourdieu denomina os órgãos nobres da representação: face, fronte, olhos e boca.7

7 Bourdieu, 1999, p. 26.

A procura da imagem como antidocumento fica explícita pelo testemunho verbal da artista: Eu queria mostrar que a fotografia tem um outro lado. Pode ser documento, mas pode não ser. Eu transformava muito, não era um registro, uma imagem pronta. Por isso, o laboratório era o espaço para encontrar a solução formal para as minhas ideias.8

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8 Depoimento de Vilma Sonaglio a Niura Ribeiro. Porto Alegre, 4 de junho de 2008.


Essa desconstrução plástica do caráter documental do retrato indaga sobre o interesse do discurso da fotografia em revelar fisionomias. Os corpos vazados mais velam do que revelam, sobretudo quando sobrepostos vários negativos, ficando mais evidente a geometria das molduras dos porta-retratos do que propriamente os corpos. Não deixa de ser irônico o título Altares para a série de fotografias, dispostas inclinadas no espaço expositivo, no intuito de resgatar a situação original das imagens nos ambientes domésticos, como os porta-retratos. Sua intencionalidade ao utilizar a fotografia como antidocumento se evidencia, portanto, pela forma como apresenta a iconografia das imagens e pelos títulos da obras como Falso testemunho, Pretérito perfeito e Felicidade possível. O que é um pretérito perfeito? Um tempo verbal que, no modo simples, indica um fato já ocorrido, concluído, o que pode fazer uma analogia com o fato de a fotografia carregar a condição de passado, de uma situação já concluída. Outra analogia possível é que as imagens tal como foram captadas, com seus graus de realismos, agora na obra da artista, não existem mais, são do domínio do passado. Suas imagens desqualificam a semelhança com o referente, não testemunham mais nada e colocam o retratado na condição de algo que poderia ter sido, propondo uma indagação de como poderiam ser esses corpos se vistos nas imagens originais e como se a única possibilidade de felicidade fosse pelo velamento de uma determinada realidade. Por outro lado, porém, se tomarmos o conceito de pretérito perfeito composto como uma ação que ocorreu no passado e continua no presente, pode-se considerar que, embora a verossimilhança esteja sendo negada, ainda continua um vestígio de corpos, denunciados pelas linhas de contornos das figuras. Submersas em meio a zonas negras e marcas de luzes, suas figuras evocam a cegueira, pois tanto a escuridão quanto a luz intensa podem cegar e, além disso, são rostos que não podem mais ver. E, dessa forma, não há espaço para a vaidade. O que há, entretanto, nas imagens para serem cultuadas? Em suas fotografias que nada mostram dos corpos, não há ícones para serem cultuados, apenas silhuetas que sonegam as informações vitais para mapear identidades e, portanto, nada dizem sobre a fisionomia do retratado. O que a artista parece fazer é uma dessacralização dos retratos de família. Esse questionamento identitário de Sonaglio também é proposto por Bianca Araújo, porém valendo-se de outras operações plásticas que envolvem mestiçagens de procedimentos. O estatuto social de apresentação de corpos que se oferecem a uma objetiva é discutido pelo interesse da artista na visualidade apresentada nas fotografias das colunas sociais veiculadas nos jornais. Sabe-se que o retrato é o gênero maior para a glória do corpo e sua inscrição social, e o jornal, seu veículo de projeção para afirmação de status no imaginário da sociedade. Se a acepção do termo ‘apresentar’ significa “por-se diante ou na presença de; expor-se à vista de; mostrar-se, singularizar-se por determinado traço 9 Conforme Houaiss, 2009.

ou característica e dar a conhecer com ordem e clareza”,9 é exatamente a isso que se

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propõe o corpo enquanto retrato de coluna social perante o olhar dos outros, como um atestado de pertencimento social. O desejo do corpo de se fazer imagem como produto de uma aceitação social, obedece a determinados estereótipos de representação cujo valor maior é a evidência fisionômica. Isto é conseguido pela frontalidade da pose em meio-corpo, enquadramento e nitidez da imagem. Essa tipologia de enquadramento, que não contempla o cenário, mas tão somente o corpo, visa justamente explicitar ainda mais a referência física à identidade do sujeito. A constatação de Richard Avedon de que “um retrato fotográfico é uma imagem de alguém que sabe que o estão fotografando”10 pode ser aplicada de forma ainda mais perti-

10 Avedon, Richard apud Ewing, 2008, p. 29.

nente aos retratos de colunas sociais. E ao saber que estão sendo fotografadas, imediatamente as pessoas se constroem perante a câmera a fim de passar uma imagem de beleza e felicidade. Dessa afirmação de Avedon, pode-se aproximar esta de Barthes: Uma vez que me sinto observado pela objetiva tudo muda: constituome a mim mesmo enquanto poso e fabrico de forma instantânea outro

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Bianca Araújo. Charme e Simpatia, 42,5cm x 42,5cm, Fotografia, 2005.


corpo para mim mesmo, me transformo eu mesmo de antemão em uma imagem.11

11 Barthes apud Ewing, op. cit., p. 56.

Há uma particularidade nesse tipo de retrato, diferentemente do retrato de estúdio, que é a rapidez com que as pessoas devem colocar-se em pose, normalmente em meio a um evento, para conformar seus corpos numa imagem perfeitamente agradável, uma vez que esses retratos não são feitos para um cliente único senão para o consumo público, a grande escala, e, além disso, devem ser marcantes o suficiente para despertar a atenção do público leitor, devido à natureza efêmera do periódico, portanto, para um consumo breve e logo substituído por outro. Nesse sentido, a imagem digital veio beneficiar essa tipologia de retrato pela possibilidade de, no mesmo momento da captura, verificar se é preciso realizar nova tomada para encontrar satisfação da imagem. Além disso, como se sabe, há as conhecidas técnicas de embelezamento virtuais capazes de transformar o corpo num produto de beleza a ser consumido. A pose é um dos principais requisitos de construção social do retrato como lembra Annateresa Fabris: colocar-se em pose significa inscrever-se num sistema simbólico para o qual são igualmente importantes o partido compositivo, a gestualida12 Fabris, op. cit. p. 57.

de corporal e a vestimenta usada para a ocasião.12 A pose forjada, o enquadramento e o sorriso engessado fazem com que todas as fotografias se pareçam entre si. O rosto tem importância fundamental na vida social. No retrato, as expressões são maleáveis e passíveis de ser construídas, fazendo-se gradualmente os ajustes necessários para impressionar e causar a sensação de felicidade pelo sorriso na

13 Idem, ibidem, p. 72.

medida em que as pessoas aprendem a animar seus rostos de forma atrativa.13 São rostos colonizados por uma objetiva. As técnicas de conformação do corpo levam à construção de uma identidade ficcional. Nos retratos de colunas sociais o mais importante é ostentar pertencimento a uma determinada classe social. Os caracteres físicos dos retratados que poderiam distinguir uma individualidade da outra, são colocados em discussão por Bianca Araújo, na série Re(tratos). Como a própria grafia do título informa, a artista realiza uma operação de “tratar” plasticamente as imagens. Partindo de reproduções fotográficas encontradas nos jornais, a artista realiza uma cópia ampliada na qual recobre os corpos das pessoas com tinta. Em seguida, por procedimento de contato face a face da imagem pictórica com o papel fotográfico, realiza um fotograma que será ainda re-fotografado para que o trabalho final atinja determinada ampliação. Com esse procedimento de obter o fotograma, a luz atravessa a imagem pictórica e resgata o texto que se encontra no avesso da pintura. O texto não se refere à imagem e não pode ser lido na íntegra, mas contribui para anular a exclusividade de um olhar focado no corpo e denunciar as origens de suas imagens. As características físicas individuali-

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zadoras são violadas ao cobrir de tinta o retrato das pessoas que posam para as colunas sociais, e isso fica mais evidente nos fotogramas do que nas pinturas. Não é mais possível reconhecer com tanta precisão, determinados traços fisionômicos que particularizavam cada retratado. Há, nessa operação plástica, certa ironia, pois os corpos que desejavam ser reconhecidos por seus atrativos físicos são agora apenas figuras cobertas de tinta. Não são mais signos de uma identidade, de uma distinção social. Esvazia-se a referência biológica. O sujeito original desaparece. O que ainda permanece reconhecível é o sorriso padronizado. Desta forma, a artista escancara um dos estereótipos mais cultuados nesse gênero de fotografias. Para ressaltar o quanto os retratos de colunas sociais são padronizados, escolhe as imagens por semelhanças de poses e enquadramentos, de busto e meio-corpo, de indivíduos sozinhos, em duplas ou trios ou olhando diretamente para a câmera. Raros são os de homens sozinhos e não causa espanto o fato de a maioria ser de retratos femininos, o que ajuda a corroborar a tradicional vaidade do universo das mulheres. As desfigurações faciais provocadas por Bianca atacam diretamente o corpo enquanto descrição física e inscrição social e lançam um olhar analítico a imagens concebidas para serem efêmeras. Se para as obras de Vilma e Bianca a desidentificação dos corpos requer operações plásticas que escamoteiam a legibilidade física do retrato, o mesmo não acontece nos trabalhos em que Richard John procura preservar a visibilidade dos traços fisionômicos, mas nem por isso deixa de colocar em xeque a possibilidade de construção ficcional do retrato. Seu Duplo autorretrato, 2003, retoma a tradição da luz e da frontalidade do corpo tipificada pelo retrato 3x4, em seu pleno estatuto de objetividade. A tomada frontal é justamente para colocar em evidência a parte mais reconhecível do indivíduo. A operação técnica de registro desse tipo de retrato coloca o corpo em situação uniformizada por um padrão de identidade sem subjetividade: luz uniforme, olhar frontal, rosto sem expressão, e pose enrijecida. No segmento A genealogia da expressão, os autores do livro A história do rosto lembram que O rosto é o lugar ao mesmo tempo mais íntimo e mais exterior do indivíduo; aquele que traduz mais diretamente e da maneira mais complexa a interioridade psicológica e também sobre o qual incidem os mais fortes constrangimentos públicos. São, em primeiro lugar, os rostos o que se investiga, os olhares que se procura surpreender para decifrar o indivíduo.14

14 Courtine, Haroche, op. cit., p. 226.

Se a imobilidade fisionômica faz calar a linguagem do corpo é, portanto, no sentido oposto à individualização pela expressão que o retrato 3x4 foi historicamente normatizado. A

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Richard John. Sem título (Duplo autorretrato), Imagem digital/fotografia, 25 x 40cm, 2003.

socialização do indivíduo por posturas mais humanizadas é desprezada na configuração fotográfica padronizada por esse tipo de imagem, pois se trata de um rosto impenetrável. Ao olhar não é disponibilizada a alteridade secreta de um rosto, como diria Baudrillard. Esses códigos de visibilidade e clareza do retrato são mantidos na obra de John para interrogar sobre o conteúdo de verdade que durante muito tempo a fotografia desejou outorgar à sociedade. Essa verdade, entretanto, é subvertida. É apenas um jogo ilusório. A ideia de condensação de tempo está na base do trabalho, pois se trata da imagem do artista em duas diferentes idades obtida através de recursos digitais pelo programa denominado

15 Morph é o nome genérico dado a um determinado tipo de programa gráfico para computadores, popularizado a partir do final dos anos 80, que tem a capacidade de gerar transformações (animadas ou estáticas, quadro a quadro) em continuidade, sem quebras bruscas ou sobrepostas, entre imagens completamente díspares. Conceito enviado pelo artista Richard John à autora.

Morph15 que realiza média morfológica e matemática da aparência física, variável dependendo do percentual que o artista autoriza ao programa. Nesse caso foi utilizado 50% de sua imagem, em tonalidade sépia, quando tinha três anos de idade e 50%, em imagem colorida, quando tinha trinta e três anos de idade. Portanto, trata-se de uma identidade compósita que comprime trinta anos de vida. Aqui a fotografia pode mostrar seu poder de criar ficções quando é capaz de escamotear os intervalos de tempo entre uma imagem e outra criando uma falácia fisionômica, apesar do grau de realismo imposto à imagem. Há pequenos detalhes pelos quais um olhar mais atento acaba por desvendar a estratégia plástica: a diferença de tonalidade em partes do cabelo, a diferença de área ocupada pelo cabelo e pelos ombros, além da marcas fisionômicas na pele do pescoço e nos traços faciais que descem do nariz até a boca, que não condizem com os caracteres físicos de uma criança de três anos. Apesar da presença ostensiva dos seus traços fisionômicos que poderiam propor uma concepção de verdade, de fato constituem um falso documento. O que o artista discute nessas mestiçagens de fisionomias é uma identidade fictícia capaz de convencer o espectador num primeiro olhar até que se dê conta do estranhamento das duas imagens apresentadas ironicamente como um duplo do artista. Tais imagens funcionam como uma clonagem de si mesmo. Mas, o que seria um duplo para o artista?

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O duplo é o plano reflexivo. É a possibilidade de entendimento, mas também de dissociação. O duplo é o risco do encontro e da diferença. A presença do duplo coloca em xeque a noção do original, apontando para uma origem anterior à duplicação: um original ausente indicado apenas por replicações sucessivas. O duplo é a ruptura da unidade na dualidade, é o nascimento do mundo.16

16 Depoimento de Richard John a Niura Ribeiro, Porto Alegre, 16 de junho de 2008.

Essa duplicidade não deixa de ser uma forma de contrariar o princípio da unicidade de caracteres físicos que tornam um indivíduo diferente do outro. Produzir seres exatamente iguais aponta para um sentido de despersonalização que interroga o princípio de originalidade identitário. A média dos caracteres físicos entre as duas imagens construídas pelo programa de computador, de certa forma ironiza, com o título Duplo autorretrato, como uma encenação morfológica de si, uma identidade compósita. Essa cópia de si mesmo nos faz lembrar que vivemos na época de reprodutibilidade técnica da imagem. Essas imagens são originárias de outro trabalho, Sem Título (Autorretrato), 1997, de igual procedimento com apenas uma das imagens. A descrição fisionômica, porém, é esmaecida pelo papel de seda texturado que cobre toda a superfície da fotografia, o que dificulta a percepção do procedimento de morphing. A linha criada pela justaposição das duas partes do papel sobre a imagem, literalmente divide sua fisionomia em duas partes, como uma cortina que incita o olhar a descobrir sua identidade. Uma referência importante para Richard são as identidades compósitas criadas pela artista americana Nancy Burson (St. Louis, Missouri, 1948). Burson compôs fisionomias utilizando o programa morph com faces de personalidades conhecidas. Em colaboração com cientistas, utilizou a tecnologia para criar identidades geneticamente compostas entre rostos de várias atrizes, de atores, de líderes mundiais, presidentes, pessoas de diferentes raças, animais – gato com cachorro, leão e cordeiro, e também animais com homens, chipanzé, gorila e homem.17 Se nesses trabalhos de John há manipulações nos caracteres físicos do indivíduo, em Jesus Search, 2003, existente enquanto intervenção gráfica em Premonitor, a relação identitária é de outra natureza. Identificado já em trabalhos com a construção cultural da imagem de Jesus, Richard sequestra da Internet retratos de pessoas que têm em seu registro civil o nome de Jesus. Aqui o interesse não está prioritariamente na descrição física do indivíduo, mas em sua inscrição social enquanto nomeação. Uma identidade que se faz diferente pelos caracteres físicos, mas que se homogeneíza pela apresentação social. O nome desidentifica o indivíduo e o desabilita enquanto singularidade. Essa iconoteca de identidades de Jesus interroga sobre a apresentação social do indivíduo. Seja apropriando-se de fotografias já existentes e as desconfigurando, seja utilizando procedimentos de meios mestiços ou criando ficções, esses artistas possibilitam ver como

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17 Androgyny, 1982 (6homens+6mulheres), First Beauty Composite, 1982 (Bette Davis, Audrey Hepburn, Grace Kelly, Sophia Loren, Marilyn Monroe); Second male Movie Star Composite, 1984 (Richard Gere, Christopher Reeve, Mel Gibson, Waren Beaty, Robert Redford); Lion/Lamb, 1983; Presidents, 1982, (Johson, Nixon, Ford, Carter e Regan). Burson, Carling, Kramlich, 1986.


a fotografia tem redimensionado as possibilidades expressivas de investigações arqueológicas do corpo enquanto apresentação física e social.

Niura Legramante Ribeiro (UFRGS, Porto Alegre, Brasil) é doutoranda pelo PPGAVI, UFRGS; mestre pela ECA/USP; professora de História, Teoria e Crítica da Arte na Universidade Feevale e Atelier Livre, RS. / niura.legramante@gmail.com

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Arco de vergalhão com balas de Antônio Carlos da Silva. Fonte: PEREIRA, Gabriela de Gusmão. Rua dos Inventos, p. 35.


A invenção e a rua: da apropriação/ reinvenção de objetos precários* Ludmila Brandão e Rosane Preciosa

Neste artigo, partimos de alguns objetos selecionados/fotografados por Gabriela de Gusmão Pereira em seu livro Rua dos inventos para pensar os procedimentos próprios a essa poética singular em seus modos de conceber e de reconfigurar esses objetos pelo uso, reinventando-os. Pretendemos também analisá-los tendo em vista alguns tópicos da complexidade artística que se instala no mundo contemporâneo. Invenção, estética popular, arte. No fundo, eu não compreendia por que não se podia utilizar em um quadro, com o mesmo direito com que se usam as cores fabricadas pelos comerciantes, materiais como velhas passagens de bonde ou bilhetes de * Artigo recebido em março de 2010 e aceito para publicação em abril de 2010.

métro, pedaços de madeira desbotados, tickets de vestiário, restos de

1 Kurt Schwitters apud Campos, 1977, p. 35-36.

habita os depósitos de entulho ou o monte de lixo.1

barbante, raios de bicicleta, em resumo: todo o velho bric-à-brac que

Em A arte no horizonte do provável, de cuja obra extraímos o trecho acima de Kurt Schwitters, Haroldo de Campos responsabiliza o artista alemão (18871948) pela “redescoberta do mundo perdido do objeto”, através da incorporação às suas obras da “parafernália de detritos, lascas, aparas, ferros velhos, cacos de vidro, jornais, impressos sem uso etc., que são o lastro rejeitado pela vida moderna em seu trânsito coti2 Campos, op. cit., p. 35.

diano...”.2 Campos afirma que esse gesto, de uma “apaixonada pesquisa de material”, fere profunda e definitivamente um campo, até certo modo, intocado para as artes visuais: “Os materiais nobres ou belartísticos que confinavam a expressão plástica, se substituem por outros (ou melhor, se ampliam, com o contingente destes últimos) eleitos através de um acurado sentido de textura, de cor, de inter-relações formais, de valores tácteis e

3 Idem, ibidem, p.38.

ópticos.”3 À “poética do aleatório” – em que destaca a provisoriedade do estético, o privilégio da noção de probabilidade contra a de certeza, a integração do acaso (ainda que sob a vigilância da inteligência criadora), a fragilidade da informação estética – Campos acrescenta, então, essa “poética do precário”, introduzida por Schwitters, mas desdobrada por muitos outros artistas nos mais variados campos expressivos, como tendências na arte contemporânea, produzidas “no quadro de uma civilização eminentemente técnica em constante

4 Idem, ibidem, p. 15.

e vertiginosa transformação”.4

A invenção e a rua Ludmila Brandão e Rosane Preciosa (páginas 146-157)

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O que nos instiga e motiva a produção deste texto é a familiaridade, mas também o espanto, que nos inspira a ideia de uma poética do precário, assim concebida no campo estético, quando a ela submetemos, para análise, fenômenos ordinários, nas ruas das cidades brasileiras, de invenção de objetos inusitados em condições da mais absoluta e efetiva precariedade (social e material). Rua dos inventos, obra de Gabriela de Gusmão Pereira, reúne com sensibilidade, inúmeros desses objetos, chamados aqui de inventos precários. Por suas páginas, desfilam geringonças urbanas, inventos de moradores de rua, que, cartografados juntos, desenham um mapa de excluídos, de extraviados por aí: debaixo de minhocões e túneis, mas também circulando apressados com suas vestimentas estrambóticas, supercoloridas, pelas ruas em que caminhamos nós, os com residência. Divididos em dois grandes grupos, os “inventos ambulantes” e os “inventores perambulantes”,5 mal folheamos o livro, percebemos que estamos diante de gente que transforma coisas, ou pedaços de coisas, em outras coisas. Fruto da necessidade ou não, o que salta aos olhos é a leitura fina e precisa dos materiais que estão disponíveis, que, por sua vez, projetam artefatos, atendendo a uma rigorosa lógica construtiva. Temos então uma situação que coloca lado a lado procedimentos estéticos da mais legítima arte de nosso tempo, de crítica rigorosa a alguns de seus cânones que resulta em novas poéticas e alguns objetos extraordinários, inventos precários que povoam as ruas da cidade. O que são esses objetos? Como são concebidos? Que procedimentos exigem? Quais relações estabelecem (se estabelecem) com o design ou mesmo com a arte? Como podemos compreendê-los? Em se tratando de objetos de extração popular, a antropologia nos autorizaria rapidamente a tratá-los como artesanato. Essa categoria, entretanto, só inclui aqueles artefatos de rápido reconhecimento, que carregam marca ou distintivo cultural − a cerâmica do Vale do Jequitinhonha, o bordado do Ceará, a arte plumária indígena, etc. –, reproduzíveis inúmeras vezes (muitas vezes com autoria variada), um a um, de forma artesanal. Não se aplica a esses objetos que, apesar de precários são únicos, são extraordinários no sentido próprio do termo e, como tal, não funcionam como objetos identitários de algum grupo cultural. Dificilmente estaríamos autorizados a tratá-los, conjuntamente, como experimentos ou propositores estéticos, conforme preferia dizer Hélio Oiticica, uma vez que não participam do circuito reflexivo e restrito da arte, ou seja, porque esses objetos não estariam, ao menos não conscientemente, dialogando com outros objetos artísticos, aprofundando questões já colocadas, formulando outras, experimentando soluções originais no campo da arte. Certamente alguns desses inventos precários, perdidos numa rua qualquer das cidades brasileiras, poderiam ser incorporados ao universo dos objetos de arte, ao modo do que sucedeu às obras de Bispo do Rosário, tal a potência dos afetos que carregam. Coletivamente, entretanto, carecemos de um modo de considerá-los seja como prática criativa, como prática projetual, como experimento pura e simplesmente.

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5 Segundo palavras da autora, os primeiros remetem a objetos que possuem características semelhantes, os outros apresentam algumas pessoas que trabalham ou vivem na rua e participaram mais efetiva e afetivamente do trabalho. Pereira, 2002, p.20.


Efetivamente, há um modo mais ou menos corriqueiro de os considerar. Com sucesso surpreendente, as ciências humanas e sociais (com o consentimento das artes) encontraram no conceito lévi-straussiano de bricolage a categoria que, a nosso ver equivocadamente, se propõe a “explicar” processos construtivos populares dessa natureza, de certo modo estranhos, uma vez que fogem ao padrão rotineiro do artesanato. Visando afastar-nos dessa confortável compreensão é que pretendemos analisar, a seguir, as condições de sua formulação e o equívoco de sua utilização para os objetos em análise neste texto. Para além do bricolage A ideia de bricolage foi utilizada por Claude Lévi-Strauss, na obra O pensamento selvagem, para designar um modo específico de pensar: o chamado pensamento mágico. Contra sua vontade, muito provavelmente, o uso da ideia deslizou de um contexto razoavelmente definido para generalizada vulgarização, espécie de remédio milagroso para situações de incompreensão de procedimentos criativos em condições especiais de precariedade. Ainda que em muitas situações haja evidente pertinência no uso da ideia (e nem temos a pretensão de desqualificá-la), a bricolagem virou algo como a definição “coringa” dos modos de pensar e construir (ideias, objetos, espaços) das classes populares. Como se aquilo que foi inicialmente concebido para as sociedades ditas “primitivas”, o seu modo de pensar – o pensamento selvagem –, ao ser transposto para as sociedades ocidentais, encontrasse correspondência total entre os pobres, os bárbaros metropolitanos. O propósito aqui, evidentemente, não é negar a existência, nas classes populares, de operações de bricolagem que, como veremos, funciona como a antítese do planejamento, da “engenharia”, mas de escapar ao determinismo segundo o qual, em condições de precariedade, só seria possível ser bricoleur. Para tanto, devemos primeiramente compreender a noção, conforme a formulou Lévi-Strauss. O ponto de partida do antropólogo era o justo combate à ideia segundo a qual, entre os ditos “primitivos”, o conhecimento seria construído somente a partir de uma razão prática (seu alvo era o funcionalismo em geral). Ao contrário do que se costumava pensar, Lévi-Strauss afirma que, entre os “primitivos”, as “espécies animais e vegetais não são conhecidas porque são úteis; elas são consideradas úteis ou interessantes porque 6 Lévi-Strauss, 1989, p. 24.

são primeiro conhecidas”.6 E assim conclui que o conhecimento, menos do que a uma funcionalidade, atende à exigência intelectual de “introduzir um princípio de ordem no universo”. Esta é a base de todo o pensamento. Todo ato ordenador ou estruturador (ato de conhecimento), por sua vez, possui certa eficácia intrínseca − o que nos faz achar que a utilidade (razão prática) o teria provocado −, mas muitas ordenações são basicamente intuitivas e se dão apenas segundo um sentimento estético. Há, entretanto, um tipo de pensamento que partindo da mesma base da arte e da ciência − da necessidade de ordem − e comungando do mesmo atributo da percepção estética, chega a resultados muito diferentes de ambos: o pensamento mágico.

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Para começar sua abordagem desse tipo de pensamento, numa consideração igualmente importante, o antropólogo trata de recusar a ideia de que o pensamento mágico seria um esboço de ciência ou um pensamento pré-científico. Produtos privilegiados do pensamento mágico − os mitos e os ritos −, longe de serem “obra de uma ‘função fabuladora’ que volta as costas à realidade”,7 são modos de observação e reflexão constituídos a partir

7 Idem, ibidem, p. 31.

da “organização e da exploração especulativa do mundo sensível em termos de sensível.” Ainda assim, essa operação (da ciência do concreto), por princípio “limitada a outros resultados além dos prometidos às ciências exatas e naturais (...), não foi menos científica, 8 Idem, ibidem, p. 31.

e seus resultados não foram menos reais”.8 É nesse esforço de compreender o funcionamento do pensamento mágico, referido também como “pensamento selvagem” e como “ciência do concreto”, que Lévi-Strauss invocará, num exercício de analogia, a atividade prática ou técnica conhecida na França por bricolage. Dirá então que a ciência do concreto é uma espécie de bricolage intelectual. Mas o que é bricolage? Em termos práticos, é, essencialmente, um trabalho realizado a partir de materiais diversificados, sem a preconcepção de um plano e também seguindo procedimentos que em nada se parecem com os processos técnicos. Ao modo desse bricolage prático, o pensamento mítico desenvolver-se-ia, segundo Lévi-Strauss, como uma composição constituída a partir de um universo instrumental fechado, cuja regra é: sempre arranjar-se com os ‘meios-limites’, isto é, um conjunto sempre finito de utensílios e de materiais bastante heteróclitos, porque a composição do conjunto não está em relação com o projeto do momento nem com nenhum projeto particular mas é o resultado contingente de todas as oportunidades que se apresentaram para renovar e enriquecer o estoque ou para mantê-lo com os resíduos de construções e destruições anteriores.9

9 Idem, ibidem, p. 33.

Isso seria possível porque, conforme o antropólogo, o pensamento mítico não trabalha com conceitos. Ao contrário da ciência, ou apenas diferentemente da ciência, ele trabalha com signos. Enquanto o conceito possui capacidade ilimitada, a do signo é restrita, daí que o primeiro passo do bricoleur é sempre retrospectivo: ele se volta para o conjunto daquilo de que dispõe – sempre um subconjunto da cultura – constituído por utensílios e materiais, dialoga com eles, no sentido de captar as possibilidades que esses objetos heteróclitos lhe apresentam, “a fim de compreender o que cada um deles poderia ‘significar’”10 para, então, se lançar na construção de algo que só será diferente do seu subconjunto, pela disposição interna das partes. Ainda que o cientista também seja limitado pelo estado geral de sua civilização – ou por “um determinado estado da relação entre a natureza e a cultura definível pelo período da

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10 Idem, ibidem, p. 34.


11 Idem, ibidem, p. 35.

história na qual ele vive”11 –, fato é que ele sempre procura “abrir uma passagem e situarse além, ao passo que o bricoleur, de bom ou mau grado, permanece aquém, o que é uma outra forma de dizer que o primeiro opera através de conceitos, e o segundo, através de

12 Idem, ibidem, p. 35.

signos”.12 Traduzindo a mesma proposição, Lévi-Strauss afirma que uma das formas nas quais signo e conceito se opõem diz respeito à posição de cada um em relação à realidade: enquanto o conceito “se pretende integralmente transparente”, o signo aceita, “exige

13 Idem, ibidem, p. 35.

mesmo, que uma certa densidade de humanidade seja incorporada ao real”.13 Há mais. Para Lévi-Strauss, bricoleur e cientista estão “à espreita de mensagens”. Todavia, para o bricoleur, essas mensagens, de alguma forma, já estão colocadas, se trata de mensagens pré-transmitidas, ao passo que o cientista busca antecipar sempre a outra mensagem. “O conceito aparece assim como o operador de uma abertura do conjunto com o qual se trabalha, sendo a significação o operador de sua reorganização: ela não o aumenta nem

14 Lévi-Strauss, op. cit., p. 35-6.

o renova, limitando-se a obter o grupo de suas transformações”.14 Aqui já dá para perceber o quanto a ideia, transformada em conceito, de bricolagem impõe limites à criação. Em que pese a reivindicação legítima por artistas, e mesmo cientistas, do procedimento como uma das suas formas de produzir (ciência ou arte) – a certa altura, sem planejamento, apenas na exploração especulativa do mundo sensível em termos de sensível – a bricolagem só pode ser compreendida considerando-se suas limitações. Até aí nenhum problema. A questão é: aquilo que em Lévi-Strauss funcionou para identificar e descrever um pensamento que não é científico ou artístico, que predominaria nas sociedades ditas primitivas (sem ciência, mas, nem por isso, sem conhecimento), transformou-se no único modo de “compreender” e “designar” os processos práticos de construção de objetos originais (ou também de ideias), não reprodutíveis ou mesmo seriais como o artesanato, no âmbito das classes populares, imediatamente identificadas ao pensamento mágico, ou pensamento selvagem. No melhor dos casos, isso é absolutamente redutor. Acresce-se a isso o fato de que a palavra francesa carrega consigo conotações paralelas que acabam significando negativa, subalternamente. Enquanto o bricoleur designa a pessoa que faz todo o tipo de trabalho manual (jamais intelectual!), o verbo bricoler pode ser traduzido por ziguezaguear, fazer de forma provisória, falsificar, traficar ou, ainda, indicar o uso de meios indiretos e tortuosos, suspeitos, portanto. Para o substantivo bricole destaca-se o significado de “coisa insignificante”, mas também, de “engano” e “astúcia”. Para bricolage, enfim, tem-se “trabalho de amador” ou, no sentido “antropológico” registrado em dicionário, o tipo de trabalho cuja técnica é improvisada, adaptada ao material e às circunstâncias. É óbvio que o cuidado do qual se cercou Lévi-Strauss para tão somente descrever e designar um dos “modos de pensar” das sociedades indígenas, ainda que “predominante” entre

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elas, não se estendeu ao uso vulgarizado do conceito para designar modos de construir das classes populares, ao qual se sobrepôs todos os sentidos corriqueiros da palavra bricolagem e seus termos correlatos. Um relaxamento do conceito, e de sua carga pejorativa (porque limitadora) certamente pôde ser observado no momento em que a arte e os artistas passaram a incorporar, ou a admitir que incorporam, procedimentos criativos como os da bricolagem, que permite certa “espontaneidade”, ou afastamento, ainda que temporário, do imperativo de um planejamento, de um projeto construtivo, previsível, total, seja como artifício criativo, seja como necessidade. Collin Rowe e Fred Koetter em Ciudad Collage, por exemplo, na crítica às teorias urbanas modernas e à ambição totalizadora do tradicional arquiteto/urbanista, atentos ainda às transformações urbanas contemporâneas, reivindicam um novo modo de resolução de problemas através da aceitação de “fragmentos de utopia”, em que o arquiteto, abandonando a posição “olho de Deus” para o tratamento da cidade, se assume como bricoleur. Outra forma de positivar o procedimento da bricolagem pode ser verificada na incorporação de um vocabulário (e das práticas correspondentes) não usual na arte, costumeiramente atribuído às atividades de menor valor, ou de valor discutível, que hoje atendem perfeitamente a certas injunções do mundo contemporâneo, na cultura, na ciência e na arte. Tomemos o verbo traficar, por exemplo. Se o descolarmos desse contexto que aponta apenas para um significado de mão única, poderemos desencavar outro uso, que nos parece bem mais produtivo para pensarmos nossa cotidianidade: a ideia de traficar traz consigo outra, que gostaríamos de recuperar, a de dialogicidade. Alguém que trafica com outrem, com a cidade, está aberto a todo universo de sensações que dela emana. E se ficarmos apenas no âmbito da cidade, podemos afirmar que ela não para de secretar objetos, e há muito vem exigindo de seus “usuários” dedicada atenção para esse fato. Nas ruas, nas calçadas, acumula-se uma parafernália de objetos descartados de todos os tipos, que esboçam a complexa malha social urbana, que expele seu contingente heterodoxo de gente e coisas. A Pop Art americana, inspirada no design de consumo, na propaganda, dialogou inteligentemente com essa sociedade que projetou tal avalancha de consumo, nos convocando a olhar francamente para seus objetos, seus ciclos de uso e descarte, o exibicionismo de suas imagens, e os inseriu no espaço da arte, abrindo, sobretudo, nossos olhos para seu potencial plástico. Como vimos na introdução deste texto, antes mesmo da Pop Art, menos uma escola do que um artista foi decisivo para reclamar da arte a inserção de materiais em nada nobres que eram facilmente encontrados em uma simples caminhada pelos arredores de um bairro qualquer: Kurt Schwitters, formulador e fazedor dessa arte

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por ele denominada Merz. Muito se tem escrito, e de forma consistente, sobre sua “poética”, e não é nosso propósito aqui enveredar pelo estudo de sua obra, à qual se dedicam muitos especialistas. O que nos interessa é enfatizar sua sistemática pesquisa de materiais vindos da rua, e como eles passam a integrar seu plano de arte e vida, unidas sob a denominação Merz. Podemos dizer que Schwitters, a partir da leitura sugerida por Haroldo de Campos, amplifica sua expressão plástica ao incorporar materiais “precários”, mas dotados de volume, texturas e cores que os fez não só serem eleitos, como também possibilitaram ao artista experimentar novas combinações. Schwitters soube com eles “traficar” informações plásticas, na medida em que os manipulou de forma experimental, ou seja, ele compunha arranjos e também se reinventava nessas operações. Pois bem, estivemos falando até agora de uma arte que se encorpa a partir do manuseio de dejetos, de objetos ordinários encontrados aos borbotões em sacos de lixo espalhados pelas metrópoles, pois é aí que se revelam esses tesouros em maior abundância. O artista, então, afirma seu ato criador exatamente no inesperado desses encontros, no que é capaz de escavar neles, conferindo-lhes visibilidade. Mas nem só ao artista é dado esse tipo de encontro. Sabemos todos que a cidade engendra, com suas pilhas de dejetos e sucatas, inúmeros modos de existência. Chega mesmo a abastecer um grande contingente de pessoas que habitam suas ruas. E, algo, a nosso ver, confabula para que tanto um artista quanto um morador de rua se articulem em termos de procedimento: ambos encontram nos objetos um meio de inventar uma complexa “língua” construtiva, a partir de seus modos de uso. Chamá-los, ambos, de bricoleurs é pouco para designar a ação desencadeada pelo encontro com esses refugos de natureza tão heterogênea. Tanto um quanto outro operam, conceitualmente, a partir da própria exploração da propriedade dos materiais com os quais se deparam, buscando respostas de uso, mas talvez não só. Ainda que se encontrem resistências à ideia de que práticas populares não são práticas de invenção, são no máximo exercícios de bricolagem, fica cada vez mais tênue a fronteira que separa as ditas artes maiores, refinadas e as menores, rudimentares. Basta pensar em projetos de arte, moda e design que, o tempo todo, se apropriam das várias estéticas populares que circulam em nosso cotidiano. Para além da funcionalidade: rua dos inventos Christian Peter Kasper, em seu instigante artigo O uso como invenção, nos introduz no universo da utilização de caixotes de feira descartados e reapropriados por moradores de rua da cidade de São Paulo. Em sua pesquisa, conferimos que cada tipo de caixote, seja de laranja, tomate, banana ou verdura desencadeará um tipo de emprego específico.

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No entanto, é possível pensar o uso do caixote para além da função prescrita. Nesse sentido, Kasper introduz um conceito bem interessante: o de affordance, criado por James Gibson. Da forma que a entendemos, a affordance de um objeto não diz respeito apenas às qualidades intrínsecas desse objeto, mas à possibilidade de ação que oferece. Isso nos pareceu importante, porque para além do uso para o qual foi concebido, no caso, o caixote, as dimensões e sua relação com o usuário, o objeto é portador de outras “possibilidades de ação”, outras potencialidades que podem ser exploradas quando alguém se aventura a um uso fora do contexto habitual; é importante frisar – as potencialidades de um objeto, portanto, não se esgotam apenas numa relação funcional. O uso original, mais imediato, pode representar apenas uma etapa na trajetória desse objeto, nos diz Kasper, e a inventividade de quem dele se apropria pode liberar outros usos possíveis. Nesse caso, é possível admitir que a relação objeto/usuário não se realiza forçosamente em torno de um caminho prévio e óbvio a ser explorado, mas se atualiza na própria dinâmica do encontro entre essas duas matérias singulares em busca de formas possíveis de acoplamento. E isso, há que convir, no plano da invenção, não é um procedimento simples, como bem nos sugere um dos muitos caixotes de Rua dos inventos.

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Mitsbichi de Zé Carlos. Fonte: PEREIRA, Gabriela de Gusmão. Rua dos Inventos, p. 83.


A máquina sonora de Zé Carlos, inventor do Mitsbichi reúne, em arranjo incomum, o que foi achando no lixo urbano: carrinho de supermercado, aparelho de som, placa de isopor, fios encapados, arame, pano, ferramentas. Nada, em sua composição, parece gratuito ou aleatório. Tudo se destina a um encaixe exemplar e inusitado. Ainda num contexto sonoro, e pautado na lógica da transformação de materiais descartados, não podemos nos esquecer de que a figura do DJ emerge exatamente nos anos 70, em função da obsolescência da tecnologia analógica, em face da nova tecnologia digital. O historiador da cultura Nicolau Sevcenko é quem nos traz esse relato: Dispondo de novos equipamentos, as pessoas mais abastadas simplesmente punham nas ruas os aparelhos ‘sucateados’ e seus discos ‘velhos’. Pois os jovens desempregados (negros) passaram a recolher essa ‘tralha’ e a reconfigurar seu uso. De equipamentos destinados a reproduzir sons previamente gravados, eles transformaram em ins15 Sevcenko, 2007, p. 116.

trumentos capazes de gerar sonoridades novas e originais.15 Garimpada nas ruas, a sucata analógica, ultrapassada, condenada ao lixo, investida de energia criativa, ganha novo status: inventa sons, não apenas os reproduz. Outro impressionante invento, que dialoga com o Mitsbichi, de Zé Carlos, é o Triciclo Amarelinho, de Pelé, que ganhou esse nome em função dos 98 rolos de fita amarela que encapam essa espécie de veículo multimeios composto de televisão, com controle remoto, aparelho de som, despertadores e luzinhas de Natal. Pelé exibe ainda um painel de fotos de várias moças posando em seu triciclo. E isso, é claro, revela uma popularidade conquistada, uma saída do anonimato a que se veria condenado. Tanto Zé Carlos quanto Pelé experimentam as possibilidades de affordance dos objetos que recolhem pelo caminho, ou seja, percebem não apenas as qualidades que neles já estão previamente inscritas, mas o que neles está virtualmente anunciado: sua potência relacional, algo a ser explorado, que culminará na reconfiguração de usos. Pelé, Zé Carlos e tantos outros, para além da penúria em que vivem, encontram meios de fazer funcionar uma autonomia criativa possível, que rebate as adversidades capazes de pôr em perigo sua potência de invenção. Dialogam intensamente com os artefatos que cruzam seus caminhos, deles indagando suas qualidades e potencialidades. E o curioso disso tudo é que há um acoplamento de qualidades e potências de mão dupla: não só dos objetos, mas dos sujeitos. Eles se redefinem em função das práticas de manuseio desses objetos, que por sua vez não serão mais os mesmos ao sofrer deslocamentos. Desformatam-se e formatam-se sujeitos e objetos.

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Nesses dois casos, e há bem mais ao longo desse livro, estamos diante de um inventário de “tecnologias urbanas de sobrevivência”. É assim que se refere o professor e crítico de 16

arte Paulo Sergio Duarte a esses inventos que dão testemunho das novas atribuições que os objetos descartados, esses refugos, são capazes de assumir. Se esses inventos de rua − inventos precários − não poderiam ser pensados como objetos de design num sentido estrito, uma vez que apenas objetos que geram matrizes passíveis de reprodução podem ser assim considerados, por outro lado, no que diz respeito ao aspecto projetual, ele está presente na realização de todos eles: são planejados, mas de forma livre, pouco seguindo qualquer espécie de cânone. Nesse sentido, são projetos singulares que atendem a outro chamado: o de novas práticas materiais, que impulsionam outras práticas estéticas, sociais e subjetivas. Fundam, de um lado, novas formas de convivialidade entre pessoas e entre pessoas e objetos e, de outro, tornam possível um modo de design contaminado pela arte, um design experimental, que se abastece no universo do precário, e que é urgente investigar.

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Triciclo de Pelé. Fonte: PEREIRA, Gabriela de Gusmão. Rua dos Inventos, p. 84. 16 Essa expressão encontra-se no texto de apresentação do livro de Gabriela de Gusmão Pereira.


Ludmila Brandão (UFMT, Cuiabá, Brasil) é doutora em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), com pós-doutorado em Crítica da Cultura pela Université d’Ottawa/Canadá. Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Estudos de Cultura Contemporânea da UFMT e do Núcleo de Estudos do Contemporâneo (CNPq/UFMT). / ludbran@terra.com.br

Rosane Preciosa (UFJF, Juiz de Fora, Brasil) é doutora em Psicologia Clínica (Núcleo de Estudos e Pesquisas da Subjetividade Contemporânea) pela PUC/SP. É professora do Instituto de Artes e Design da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). / rosane_preciosa@yahoo.com.br

Referências bibliográficas CAMPOS, Haroldo de. A arte no horizonte do provável. São Paulo: Ed. Perspectiva, 4a. ed., 1977. KASPER, Christian Pierre. O uso como invenção. In 4o Congresso Internacional de Pesquisa em Design (Anais em CDRom). Rio de Janeiro, 2007. LÉVI-STRAUSS, Claude. O pensamento selvagem. Tradução: Tânia Pellegrini. Campinas: Papirus, 1989. PEREIRA, Gabriela de Gusmão. Rua dos inventos: ensaio sobre desenho vernacular. Rio de Janeiro: Ed. Francisco Alves, 2002. SEVCENKO, Nicolau. A corrida para o século XXI – no loop da montanha-russa. 9a. ed., São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

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Acervo de LetĂ­cia Parente, sob cuidado de AndrĂŠ Parente.


Origens, registros e deslocamentos em Marca Registrada* Manoel Silvestre Friques

Analisa o vídeo Marca Registrada (Letícia Parente, 1975) a partir de suas relações com o contexto socioeconômico brasileiro da década de 1970 e com o desenvolvimento industrial internacional. Também relaciona Marca Registrada com a novela de Franz Kafka Na colônia penal, o que permitiu, com apoio na leitura de A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica, de Walter Benjamin, abordar o vídeo como uma agulha de vidro composta pela técnica artesanal de costura e pelo processo de captação/exibição de imagens eletrônicas. Letícia Parente, performance, videoarte. Para possibilitar que todos vistoriem a execução da sentença, o rastelo foi feito de vidro. Fixar nele as agulhas deu origem a algumas dificuldades técnicas, mas depois de muitas tentativas, o objetivo foi alcançado (...) E agora qualquer um pode ver através do vidro como se realiza a inscrição no corpo. O senhor não quer chegar mais perto para observar as agulhas? Franz Kafka, Na colônia penal Os momentos iniciais do vídeo Marca Registrada (1975) revelam a par* Artigo recebido e aceito para publicação em março de 2010.

te inferior de um corpo feminino: a câmera capta os passos de uma mulher em direção a uma cadeira, em que por fim se senta. Logo após, a câmera passa a ajustar seu foco enquanto Letícia Parente tenta passar um pedaço de linha de costura pelo buraco de uma agulha. Por duas vezes consecutivas ela é enganada por sua própria visão ao pensar ter conseguido inserir a linha. Esta ilusão óptica produzida pelo próprio olho humano, esse momento difícil em que uma linha tênue e fina deve passar pelo buraco mínimo de uma agulha, diz respeito à visão de Letícia e à nossa. Tal como Letícia nesses momentos iniciais, não conseguimos enxergar nitidamente o buraco da agulha. Ao tentar fazê-lo, ao tentar atravessar o buraco com a linha, somos enganados por nossa própria visão, que nos faz ver algo que, na realidade, não está acontecendo – produz-se ilusão. Quando a artista consegue, por fim, realizar a ação, há um desfocamento da câmera que só acaba quando seu pé esquerdo é enquadrado. Nesse momento em que conseguimos ver com nitidez o que se passa, observamos Letícia furar a própria sola do pé com a agulha: agora a linha passa pelos buracos da agulha e da pele. Enquanto a mão direita costura, a mão esquerda ajuda no processo de perfuração, realizando pequenas torções no pé

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esquerdo, de modo a facilitar a escrita. Em princípio, vemos que a artista produz pontos esparsos na superfície superior da sola do pé, desenhando algo que poderia se aproximar a um polígono. Segundos depois, percebemos que o que está sendo costurado no pé são letras, isto é, Letícia escreve sobre a sola esquerda. Com agulha e linha, ela costura letras, palavras e, por fim, uma expressão: Made in Brasil. O vídeo Marca Registrada revela o processo de escrita de Letícia Parente sobre a própria sola do pé esquerdo, em que a artista costura a expressão industrial Made in Brasil. Por que escrever costurando? Por que não simplesmente escrever? Por que tal expressão? Por que uma marca e não um nome? Um nome é uma marca? Por que escrever justamente sobre a sola do pé, superfície de contato do corpo com o chão? Se a visão estiver a nosso favor, é possível vislumbrar alguns caminhos que nos conduzam às possíveis respostas. Pode-se levar em conta, em um primeiro momento, o contexto imediato em que esse vídeo foi produzido. Marca Registrada compõe, em conjunto com vídeos de Sonia Andrade, Fernando Cocchiarale, Ana Bella Geiger, Ivens Machado, Paulo Herkenhoff e Miriam Danowski, a primeira geração brasileira de produção em videoarte. O pioneirismo carioca se deu por ocasião de uma mostra de videoarte ocorrida em 1975, nos Estados Unidos, mais parecisamente na Filadélfia.1 Além disso, sabe-se que a câmera Portapak que filmou não apenas a performance de Letícia, mas quase todas as propostas artísticas dos outros pioneiros, era propriedade de Jom Tob Azulay, tendo sido trazida dos Estados Unidos pelo cinegrafista, posto que o parque industrial brasileiro não fabricava

1 Arlindo Machado observa: “a pertinência dessa produção e sua sincronia com os vídeos realizados em outros países foram notadas claramente na exposição internacional Vídeo Art, no Institute of Contemporary Art, University of Pennsylvania.” Machado, 2007, p. 10.

tal mercadoria. Ao contrário, portanto, da câmera e da exposição, que não trazem em suas etiquetas a origem nacional, no vídeo de Letícia, produzido meses após o impulso inicial de uma mostra estrangeira2 e com uma câmera estrangeira, lemos na sola do pé, transformada em superfície de costura, a expressão made in Brasil. Nacional era, portanto, o corpo filmado. Tal fato produz uma tensão nessa primeira geração de videoarte brasileira: a produção artística dita brasileira (e, de fato, realizada em território nacional) se torna viável, no entanto, a partir de fatores e tecnologias provenientes dos Estados Unidos. De certo modo, poder-se-ia dizer que uma das origens dessa primeira geração de videoartistas brasileiros não é brasileira. Também não se trata de afirmar que tais vídeos são norte-americanos. Nem uma coisa, nem outra. Nem brasileiro, nem norte-americano. O que seria então? Origens e deslocamentos Tal pergunta nos conduz diretamente à expressão costurada por Letícia na sola de seu pé. Uma possível origem da expressão é encontrada em 1877 não nos Estados Unidos, mas no Reino Unido, quando made in, através da introdução do Merchandise Mout Act, foi utilizada pela primeira vez como selo de qualidade. Estampado no produto, o selo de procedência seria útil para garantir ao país produtor uma espécie de proteção de sua produção industrial contra os concorrentes. Como o contexto de seu surgimento indica, Made in relaciona-se à ideia de proteção e, principalmente, à noção de identificação internacional de uma produção nacional. Ela prevê a fabricação em larga escala de uma

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2 Letícia Parente não participou da mostra internacional de vídeo-arte Vídeo Art, com curadoria de Suzanne Delehanty, na Filadélfia, segundo Ana Bella Geiger, “a primeira mostra abrangente de videoarte internacional”. Integraram esta exposição a própria Ana Bella, Ivens Machado, Fernando Cocchiarale e Sonia Andrade. Foi a partir desta mostra que os artistas começaram a produzir os seus vídeos. Assim, mesmo não tendo participado diretamente da mostra, a obra de Letícia é resultado também deste convite inicial.


mercadoria padronizada, produção direcionada especialmente para o mercado externo. O selo de qualidade garante a origem da mercadoria ao mesmo tempo em que desloca o produto para outras nações. Made in parece afirmar o local em que o produto não se pode mais localizar: o selo define uma terra natal na exata medida em que ela se afasta do produto fabricado. A proteção, com isso, não se refere a um fechamento absoluto do país sobre ele mesmo, mas, pelo contrário, sua identificação em um mercado aberto e dinâmico. A proteção torna-se menos uma separação (não se retira o produto do mercado para protegê-lo dos concorrentes) do que uma diferenciação (coloca-se a etiqueta no produto de modo a facilitar sua identificação). Um aspecto importante e característico dessa expressão é seu idioma, a língua inglesa. Considerada a língua mais falada em todo o planeta Terra globalizado, ela é considerada por muitos o idioma oficial mundial. Nesse caso, made in estabelece entendimento comum a todos os mercados do mundo, e não apenas ao norte-americano ou ao britânico. Ela mesma não possui endereço fixo, transita entre mercados, configurando-se, na verdade, como selo presente em mercadorias de qualquer natureza, fabricadas em qualquer país. Atualmente, made in flui sem jamais parar. A justaposição da expressão com o nome Brasil aproxima os dois idiomas: uma vez que o nome do país não é escrito com z (o que caracterizaria sua escrita em inglês), mas com s, tem-se em Made in Brasil um verbo em inglês cujo complemento é formulado em português. Nesse choque entre línguas produzido por Letícia, a expressão estrangeira corrente é costurada ao idioma brasileiro criando um selo de qualidade estranho e angustiado. Nessa costura, o Brasil com s se define como complemento do verbo em inglês, mas, ao mesmo tempo, resiste a sua versão (sua escrita não é com z). Considere-se agora o título do vídeo: Marca Registrada. No âmbito do marketing, a marca pode ser tanto uma imagem quanto uma palavra, um desenho ou um símbolo. Não há especificidade de linguagem, a marca não é necessariamente apenas texto ou imagem, ou qualquer outra coisa. Ela também não possui mercadoria fixa: qualquer tipo de produto pode ter marca. Logo, a marca é algo que identifica alguma coisa, no sentido de sua “origem”, de sua fabricação. Há também outra natureza de garantia que a marca registrada fornece. O registro refere-se a um reconhecimento de exclusividade, impõe direitos de uso, define propriedades. Ao registrar sua marca, a empresa força uma separação entre o original e a cópia, separação essa problematizada justamente pelo próprio processo de reprodução técnica que caracteriza a fabricação industrial dos produtos cuja marca registrada legitima ou não. O registro é, desse modo, uma forma de legitimização, de reconhecimento e de autorização. Marca Registrada parece comentar também as características que marcam o contexto artístico de sua produção. Criado por ocasião de uma mostra estrangeira e com uma máquina estrangeira, o vídeo responde ao convite para a exposição de modo semelhante ao produto destinado à exportação. Como toda mercadoria voltada para o comércio exterior,

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Letícia grava no pé o selo de qualidade brasileiro, costurando a marca de seu país. Com isso, a artista se exporta, permitindo aos agentes externos dessa transação comercial identificar sua procedência: fabricada no Brasil, atesta o selo. Logo, Letícia afirma a produção brasileira de videoarte ao mesmo tempo em que a desloca para fora do país. Ironicamente, o selo costurado por Letícia define seu vídeo como produto cultural e artístico. Esse pensamento, presente na própria obra de arte, a respeito do circuito econômico e cultural em que ela está inserida aproxima Marca Registrada de outros trabalhos realizados na década de 1970. Nesse período, destaca Luis Claudio da Costa, “afloravam questionamentos sobre a função da arte, o circuito e o mercado em que a obra se insere. Como fetiche de consumo e signo de status social, a obra de arte é entendida antes como parte de uma engrenagem do que como objeto cultural significante”.3 No caso de Letícia, a consciência do circuito (ou sistema de arte) está presente também na decisão da artista de operar com recursos tecnológicos recém-inventados e que não estariam, de antemão, inseridos no contexto produtivo da arte. Apresentar um vídeo, em 1975, como obra artística é atitude que lança uma série de questionamentos ao estatuto brasileiro da arte e suas instâncias de legitimação (os museus, a história da arte, a crítica, o mercado). Pois o vídeo, além de partir de experimentação com meio tecnológico novo, apresenta um processo de escrita sobre o pé como produção artística. A provocação de Marca Registrada reside no fato triplo de a obra ser um vídeo, um processo e também acontecer no pé. Esse fato triplo desautoriza um conjunto de pressupostos artísticos utilizados até então para situar ou legitimar uma criação: como falar em especificidade do meio a partir de Marca Registrada? Poderia o vídeo, que apresenta um processo de costura do artista em seu próprio corpo, ser considerado estritamente um objeto artístico como um quadro ou uma escultura? Como exibi-lo? Como armazená-lo? Como vendê-lo? Em que tradição artística inserir essa produção? Em suma, Marca Registrada apresenta um modo de produção que, de variadas formas, problematiza a dinâmica institucional da arte e do mercado brasileiros. Se Marca Registrada descortina a relação entre a produção de arte e o mercado no qual ela está inserida, ele também focaliza a tensão entre vídeo e performance que o caracteriza. Nesse vídeo, quando escreve o selo de garantia na sola de seu pé, Letícia aplica ao corpo uma marca registrada, um rótulo de procedência. A expressão corrente que ela registra em seu pé é captada pela câmera, que virtualiza o acontecimento performático. Estabelece-se então uma relação entre a expressão made in, encontrada em todos os produtos industriais, em qualquer lugar do mundo, e o processo de virtualização da imagem que ocorre na videoarte. Ocorrida uma única vez, em data e local determinados, uma performance, quando orientada para a câmera, ganha novas dimensões, transformando-se em imagem, em videoperformance a ser projetada inúmeras vezes. Diante da impossibilidade de se repetir inúmeras vezes a costura sobre a pele, tem-se a videoperformance capaz de ser exibida em contextos e lugares distintos, de manei-

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3 Costa in Parente, 2008, p. 27


ra simultânea ou não. Nesse sentido, a videoperformance ganha capacidade de trânsito semelhante à expressão Made in. A relação entre a expressão corrente e a virtualização produzida pela videoarte apresenta, portanto, um deslocamento espacial. Ambos retiram algo de um contexto específico e o inserem em outro: o vídeo e a expressão são vistos, sucessiva e simultaneamente, em qualquer lugar. A verdadeira localização, com isso, é definida justamente pelo lugar em que esse algo já não pode mais estar. Marcas e registros Em 1974, um ano antes de Marca Registrada ser produzido, o Brasil ditatorial comandado pelo general Geisel (1974-1978) definia o II Plano Nacional de Desenvolvimento, caracterizado por dar continuidade ao processo de industrialização por substituição das importações (ISI), pautado no endividamento externo. O modelo econômico utilizado no governo Geisel tratava de prosseguir com o crescimento econômico (iniciado no governo de Juscelino Kubitschek e atingindo seu auge na fase da ditadura militar conhecida como ‘o milagre econômico’) através do desenvolvimento industrial da economia brasileira, “internalizando, em larga medida, os setores de bens de capital e 4 Hermann in Giambiaggi, 2004, p. 112.

insumos industriais”.4 Se, por um lado, o governo brasileiro, ao lançar mão dessa medida, reduzia a dependência brasileira quanto à importação de insumos e bens de capital, por outro lado, boa parte do processo de industrialização por substituição de importações foi pautado em fontes de financiamento externo. Assim, ocorre um paradoxo: a redução da dependência externa de bens de capital se dá através do aumento da dependência externa financeira. Nesse caso, em vez de depender de máquinas, o país estaria dependendo de recursos financeiros para adquiri-las. O processo de substituição das importações configura-se, na realidade, como um processo de substituição da dependência. Nessa operação, substitui-se uma dependência por outra, deixando intacta a condição original do país. Se esse processo se apoia em fontes de financiamento estrangeiras, as mercadorias, mesmo que sejam fabricadas em território nacional, estão diretamente comprometidas com o contexto internacional. Assim, um produto brasileiro, só o é, nesse caso, se sua produção depender (em maior ou menor grau) de fatores externos. O brasileiro, portanto, fundamenta-se no estrangeiro. Aqui, faz total sentido escrever em inglês fabricado em não tanto devido à exportação de um produto, mas ao comprometimento da produção nacional com a estrangeira. Nessa perspectiva, a expressão Made in Brasil revela a ambiguidade do modelo de crescimento econômico adotado no país. Com o uso da ISI, a produção brasileira passa, cada vez mais, a se assemelhar à produção mundial, posto que seus produtos se originam de máquinas e recursos importados. Pois, se a mercadoria passa a ser produzida no Brasil, os procedimentos e instrumentos que permitem sua fabricação permanecem importados. A padronização, com isso, é dupla: configura-se um processo de fabricação de produtos idênticos ao mesmo tempo em que

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se padroniza o nacional, já que recursos, procedimentos, técnicas, métodos, tempos e movimentos obedecem à lógica industrial estrangeira. Esse fenômeno de padronização do nacional, característico de todo o processo de industrialização por substituição das importações (ISI) é tema de uma música composta por Tom Zé em 1968, “Parque industrial”, em cujo refrão aparece a expressão costurada por Letícia. A irônica letra de Tom Zé constrói uma espécie de crônica do Estado brasileiro, mencionando a alegria resultante do controle e da padronização das condutas e dos corpos através dos bancos de sangue encadernados e dos sorrisos engarrafados e tabelados, requentados e prontos para usar. Neste retrato da grande festa nacional, é nítida a apropriação que o compositor faz de expressões publicitárias, combinando-as às expressões humanas. “Temos o sorriso engarrafado” afirma a letra de Tom Zé. Nessa frase constata-se o processo de padronização de alguma coisa cuja natureza difere completamente dos produtos industriais: o sorriso. De fato, por mais que Letícia registre o selo de qualidade de seu país sobre a sola do pé, ela mesma não é um produto industrial por excelência. Ao fazer isso, a artista se coloca no lugar de produto, provocando um embaçamento na separação de sujeito e objeto, revelando a linha de montagem à qual indivíduos e coisas estão submetidos. Tanto no vídeo quanto na música o sujeito se define também por sua objetualidade: se na letra de Tom Zé os sorrisos, expressões humanas que denotam alegria, satisfação e felicidade, são engarrafados (ou ‘cremedentalizados’, como ele afirma em uma entrevista), isto é, submetidos a um processamento industrial, em Marca Registrada, a artista se costura, sendo, assim, sujeito e objeto de um mesmo processo. O ato de costurar pode ser considerado um processo de transformação do trabalho: uma costureira transforma, por meio da costura, uma matéria-prima, o tecido, em uma manufatura, a roupa. Em Marca Registrada, o trabalho empreendido por Parente define seu próprio corpo como matéria-prima, em um processo de registro da marca nacional comum às mercadorias industriais. Quando o corpo se torna o local de registro da marca nacional, a questão industrial ganha outras dimensões. A indistinção entre sujeito e objeto se, por um lado, produz uma equivalência entre os dois polos classicamente considerados separados, por outro, revela um processo de reificação do ser humano, em que este é tratado como mero objeto, como coisa a ser organizada de modo a garantir uma dada produção. Esse processo é associado, por Letícia e Tom Zé, à padronização do nacional: à medida que a industrialização assume papel importante na economia do país, o ser humano é tratado como mais uma peça da máquina industrial, não se diferenciando, nesse sentido, dos demais dispositivos da fábrica. A relação entre Marca Registrada e o processo de coisificação do indivíduo é assim comentada por Letícia: A coisificação implica (...) pertencer. O pertencer, porém, transcende também à coisificação por força da ligação profunda e indevassável

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com a terra pátria. A marca registrada pode se assemelhar ao “ferro” de posse do animal, mas também é a base da estrutura acima da qual a pessoa sempre estará constituída em sua historicidade: quando de pé sobre as plantas do pé. Se, por um lado, a atividade de Letícia dialoga com os selos e as etiquetas das mercadorias industriais, por outro, a costura da artista sobre o próprio pé evoca a marcação de gado, quando se crava a ferro em brasa sobre a pele de animais as iniciais de seu proprietário. Neste último caso, define-se e rotula-se a posse de um dado corpo expropriado, o corpo do animal, propriedade alheia a si próprio, produto de outro. Nessa transferência de propriedade, há tanto uma expropriação quanto uma apropriação: o corpo expropriado do animal pertence ao proprietário. Nesse sentido, se o animal, que não é um mero objeto inanimado, não possui a própria vida, esta mesma vida pertence a outro. No caso da vida humana, tematizada no vídeo de Letícia, há uma diferença fundamental: em Marca Registrada o próprio ser humano empreende sobre si sua marcação. Tal fato revela a participação ativa do indivíduo no processo: ele não é apenas vítima, configurando-se também como agente da ação. Ele não marca outro senão ele próprio. Há que considerar também que o vídeo não exibe alguém forçando a artista a realizar tal ação: a costura no pé é voluntária. Tais consciência e ambiguidade do processo parecem revelar a complexidade de um pertencimento que é também um objetualizar-se, que é também um enquadramento. A marcação sobre a pele não está restrita, no entanto, à pecuária. De fato, até 1832, na França, a identificação dos criminosos era realizada por meio da aplicação pelas autoridades legais de uma marca de ferro em brasa no corpo do criminoso, de modo que esse símbolo visível denunciasse o sujeito. Se essa prática foi suprimida oficialmente pelas autoridades francesas, o advento da fotografia pode ser considerado, de certo modo, um aperfeiçoamento tecnológico desse antigo costume, uma vez que a fotografia é capaz de capturar e registrar o corpo do criminoso em seus traços físionômicos e ações involuntárias. Com a fotografia, os detetives e policiais poderiam observar e analisar os traços específicos de cada criminoso (uma pinta, uma marca de nascença, etc.), insignificâncias 5 Uma análise detalhada da apropriação da técnica fotográfica pela criminologia encontra-se no ensaio de Tom Gunning, intitulado O retrato do corpo humano: a fotografia, os detetives e os primórdios do cinema. Charney, Schwartz (orgs.), 2004.

presentes em seu corpo e que o denunciavam contra a sua vontade e desejo.5 Assim, se o ferro em brasa realiza uma marcação no corpo, a fotografia, como registro, constitui-se uma marca do corpo. No caso de Letícia, o processo de marcação realizado pela própria artista sobre seu corpo configura-se também como o processo de produção da imagem videográfica. Nesse sentido, há uma dupla marcação sobre o corpo de Letícia, aquela resultante da costura da expressão Made in Brasil, e a captação do corpo realizada pela câmera. A imagem, nesse caso, não representa esse processo, mas é, ela mesma, o próprio ato de marcação efetuado por uma ferramenta peculiar, desdobrada em duas técnicas, a artesanal e a industrial. Aqui, câmera e agulha compõem um aparelho singular, a câmera-agulha.

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A câmera-agulha A escrita sobre a superfície da pele empreendida por Letícia remete a uma novela de Franz Kafka escrita em 1914. Trata-se de Na colônia penal, em que um oficial militar descreve e demonstra para um explorador estrangeiro o funcionamento de um aparelho singular cuja função é escrever sobre a pele do prisioneiro, até a morte deste, a sentença à qual ele foi condenado. O oficial veste farda militar que, apesar de extremamente pesada e justa, é “própria para um desfile” e simboliza a pátria. Vestindo o uniforme, ele faz os últimos preparativos na máquina enquanto explica a sua configuração ao estrangeiro. A grande estrutura compõe-se de três partes – rastelo, cama e desenhador. As duas últimas assemelham-se a duas arcas escuras, estando o desenhador a uma distância de dois metros sobre a cama: entre eles está a fileira de agulhas de vidro responsável por cravar na carne do condenado a sentença que este desconhece. A ação empreendida por Letícia, o ato de costurar o próprio pé, relaciona-se menos com a figura do condenado do que com aquela do oficial patriota de Na colônia penal. Em dado momento, o oficial, em sua farda carregada de dragonas e cordões que simbolizam a pátria, ao tomar consciência de que não há mais ninguém na colônia a quem possa recorrer, passa a despir-se para, voluntariamente, trocar de lugar com o condenado. Ao contrário deste, que não tem conhecimento de sua sentença, o oficial, antes de se colocar no lugar do condenado, soletra e lê a própria condenação, que depois deposita no desenhador: “Seja justo”. Nessa nova situação, o aparelho e o oficial se completam mutuamente. “Se antes já era manifesto que [o oficial] entendia bem do aparelho, agora chegava quase a causar espanto como sabia manipulá-lo e como ele lhe obedecia.”6 O aparelho então passa a funcionar silenciosamente até que suas peças e engrenagens comecem a desmontar, gerando ruídos. Tal como a conjunção oficial-aparelho, Letícia empreende uma ação, de forma solitária, sobre si mesma: se no primeiro caso o aparelho preparado pelo oficial substitui suas mãos na execução da sentença, no segundo, a artista executa manualmente a escrita sobre a própria carne. Nas duas situações, está presente a consciência: em Na colônia penal, a consciência da sentença por parte do militar orgulhoso de sua pátria faz com que a própria escrita se transforme em assassinato, destruindo, por fim, o aparelho. No caso de Letícia, a escrita coisifica o indivíduo ao mesmo tempo em que o insere em uma pátria, conferindo-lhe uma nacionalidade. Há outro aspecto que aproxima as duas escritas: os aparelhos, do oficial e de Letícia. No primeiro caso, tem-se uma estrutura composta de três partes, sendo as agulhas que configuram o rastelo construídas de vidro, de modo a permitir aos observadores enxergar o processo de escrita. O aparelho de Letícia, por sua vez, compõe-se de duas partes: de um lado, a técnica artesanal de escrita, de outro a técnica industrial de captação da imagem. Nesse caso, enquanto as mãos escrevem costurando no pé, a câmera capta o processo de modo a permitir a “qualquer um (...) ver através do vidro como se realiza a inscrição

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6 Kafka, 1998, p. 64.


Acervo de Letícia Parente, sob cuidado de André Parente.

no corpo”. O rastelo do oficial desdobra-se, em Marca Registrada, no close da câmera em conjunto com a agulha e a linha manipuladas pela artista. A agulha de vidro, portanto, é a conjunção de enquadramento aproximado da câmera e agulha de costura manipulada pela artista. A complementaridade das técnicas artesanal, da costura, e industrial, da câmera, remetem diretamente à comparação entre o cinegrafista e o pintor realizada por Walter Benjamin em A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica, através da relação análoga entre o cirurgião e o mágico (ou curandeiro). No processo de cura de um paciente, o mágico e o cirurgião possuem comportamentos distintos: enquanto o primeiro impõe as mãos sobre o doente, preservando a distância natural entre os corpos, o segundo diminui consideravelmente essa distância, ao intervir diretamente no corpo do doente. O pintor e o cinegrafista corresponderiam ao mágico e ao cirurgião, respectivamente, posto que “o pintor observa em seu trabalho uma distância natural entre a realidade dada e ele próprio,

7 Benjamin, 1999, p. 187.

ao passo que o cinegrafista penetra profundamente as vísceras dessa realidade”7. Em Marca Registrada, chama atenção o enquadramento aproximado da câmera na sola do pé: não se vê nenhuma outra parte do corpo da artista a não ser as mãos, as pernas e os pés. Durante o processo de escrita, a sola do pé é enfocada, permitindo à câmera acompanhar os furos da agulha na pele. Enquadra-se o detalhe desse processo artesanal-industrial empreendido por um indivíduo em seu próprio corpo. Não há também sangramentos, pois é a camada

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mais espessa da sola do pé que é perfurada. Levando em consideração Preparação II, de 1976, outro vídeo de Letícia em que a artista aplica injeções em seus braços e pernas, percebe-se relação semelhante do olho eletrônico com o corpo autoperfurado. Outro exemplo é o de Sonia Andrade, que apresenta em um vídeo esse tipo de relação entre o corpo humano e o olho da câmera. No vídeo sem título de 1974, com uma pequena tesoura de unha (semelhante à que Letícia utiliza em Preparação I), Sônia corta do couro cabeludo mechas de cabelo, bem como pelos da vulva, das axilas e sobrancelhas, dos cílios, tudo filmado em close. Nesses trabalhos de Letícia e de Sônia, o enquadramento da câmera e a ação das artistas se articulam em um processo de penetração: um objeto pontiagudo age sobre uma superfície pequena da pele, captada pela câmera. O close da câmera é capaz de penetrar efetivamente as vísceras da realidade: a agulha e a tesoura atuam, desse modo, como prolongamento do olho eletrônico. Letícia Parente, ao comentar o ato de costurar a própria pele, observa que “há um costume popular na Bahia em que se borda muito com uma linha na palma da mão e na sola do pé”.8 É significativa essa apropriação: a artista resgata uma ação de sua terra natal, o

8 Parente, 2008, p. 76.

estado da Bahia, utilizando-a para registrar em sua sola uma expressão industrial. Nesse vídeo, portanto, há dois deslocamentos: o selo de garantia presente nas mercadorias é costurado no corpo humano, e o costume baiano é retirado de seu contexto original. O registro sobre a pele que define a nacionalidade do produto-Letícia é realizado, então, não a partir da lógica industrial, mas de uma atividade artesanal rotineira no local de nascimento da artista. Essa reafirmação do costume baiano através da ação da artista conjuga-se com a informação contida na expressão costurada: made in Brasil. Logo, a artista define seu pertencimento à pátria de duas maneiras distintas e associadas entre si: a ação reitera o hábito e a expressão confirma o local de sua “fabricação”. É significativo, porém, que o local de produção não seja a Bahia, mas o Rio de Janeiro: em 1975, no Rio de Janeiro, Letícia executa uma ação orientada para a câmera, ação que remete a uma atividade costumeira na Bahia, local de seu nascimento, 45 anos antes. Devemos considerar uma vez mais a capacidade de trânsito, tanto da expressão industrial quanto da mídia utilizada para a produção artística. Os três aspectos apontam para a distância entre o local de produção (e de nascimento da artista, do produto e do vídeo) e o lugar de circulação (o Rio de Janeiro, o mercado externo de consumo e o local de exibição). Com isso, a definição da origem de produção aparece, em Marca Registrada, intimamente relacionada ao distanciamento que se tem do local original. Desse modo, algo ou alguém pertence a algum lugar quando já não se encontra mais nele. Estabelece-se, com isso, uma ambiguidade para a localização: “sou de um lugar onde não estou”. Os deslocamentos geográficos que associam a ideia de origem à noção de trânsito aparecem em outros dois vídeos de Letícia: Nordeste (1981)9 e Telefone sem fio (1976).10 “Enquanto que a música de Caetano Veloso “No dia em que eu vim-me embora”, de 1967, é tocada ao fundo, Letícia interage com uma mala de couro na qual se encontram duas cobras escondidas em um lençol branco.”

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9 Vídeo colorido em Betamax produzido por Letícia Parente e Cacilda Teixeira da Costa. 10 Vídeo produzido por Letícia Parente em coautoria com o grupo de artistas formado por Ana Vitória Mussi, Anna Bella Geiger, Fernando Cocchiarale, Ivens Machado, Miriam Danowski, Paulo Herkenhoff e Sonia Andrade.


É interessante notar que a letra da música escolhida por Letícia narra um percurso, uma despedida da terra natal rumo à metrópole, à capital. O ir, o seguir e o atravessar que marcam a migração do personagem na letra de Caetano, quando associados ao título do vídeo de Letícia, Nordeste, remetem aos êxodos rurais que pontuam a história dessa região brasileira. A procura de melhores condições de vida e o sonho da metrópole são dois dos muitos aspectos que fazem com que milhares de nordestinos saiam de suas terras de origem e se dirijam à capital. Nesse vídeo, a palavra nordeste parece indicar a necessidade da migração, da busca e do caminho. A associação do título com a música produz, portanto, uma geografia singular, pois Nordeste se refere menos a uma região do que ao percurso que relaciona duas regiões, o caminho que une (e separa) dois lugares. Desse modo, Nordeste de Letícia é, em alguma medida, um ir embora, o trajeto que produz uma distância. O indivíduo solitário que segue em “No dia em que eu vim-me embora” associa-se também àquele descrito por Caetano Veloso em “Alegria, alegria”. Na realidade, as duas letras, ambas do primeiro LP do cantor e ordenadas, no disco, uma após a outra, parecem complementar-se, descrevendo um único percurso. Se “No dia em que eu vim-me embora” refaz o caminho do interior à capital, “Alegria, alegria” descreve seu caminhar já na cidade grande. O itinerário presente nas duas letras ressalta, sobretudo, um certo desprendimento do eu em relação ao contexto em que está inserido: “sem lenço, sem documento, nada 11 Em Verdade Tropical, no capítulo intitulado Alegria Alegria, Caetano Veloso comenta sua composição: “O esquema de retrato, na primeira pessoa, de um jovem típico da época andando pelas ruas da cidade (o Rio, agora), com fortes sugestões visuais, criadas, se possível pela simples menção de nomes de produtos, personalidades, lugares e funções (...) devia ser mantido pois era o ideal para os novos propósitos [a investida tropicalista] (...) “Sem lenço, sem documento” corresponde à ideia do jovem desgarrado que, mais do que a canção queria criticar, homenagear ou simplesmente apresentar, a plateia estava disposta a encontrar na canção.” Veloso, 1997, p. 166-167.

no bolso ou na mãos, eu quero seguir vivendo”.11 O que o caracteriza, portanto, é menos uma localização fixa e absoluta do que um solitário e constante caminhar rumo a... Nesse sentido, estando na capital, o indivíduo não cessa de percorrer, seguir e atravessar. O vestido, o pé descalço, a letra de Caetano, a mala de couro e, principalmente, o título do vídeo localizam geograficamente o tema nele tratado: o Nordeste. Nesse trabalho, o caminhar, evocado pela letra da música e pelos pés descalços de Letícia puxando a mala no início da sequência, parece dialogar com o pé costurado de maneira artesanal em Marca Registrada. Pois, se em Nordeste a ênfase recai no caminhar, em Marca Registrada, focaliza-se o pé que percorre o caminho. Além disso, em ambos os trabalhos, verifica-se a remissão a lugares explicitamente determinados: o Brasil e o Nordeste. De um lado, o registro costurado na pele estabelece uma demarcação. De outro, o título evoca uma região. Enquanto o caminhar de Letícia é explícito em Nordeste, em Marca Registrada, é a linha de costura que segue e atravessa a sola do pé. Essa linha, que penetra a pele da artista, vem somar-se às linhas naturais existentes em seu corpo. O que Letícia cria, o território que demarca em sua sola do pé, sobrepõe-se, com isso, a outras linhas e nós existentes em seu corpo. A demarcação corporal realizada pela costura não define, com isso, apenas uma região: ela reparte e reorganiza o território de seu corpo, reconfigurando-o. À reconfiguração realizada pelo caminho trilhado pela costura, há o caminho que a artista percorre com os próprios pés. Os pés, como partes do corpo que funcionam como elo entre o indivíduo e a terra, atuam também como intermediários dos dois vídeos aqui analisados. O caminhar pressupõe o contato do pé com o chão. Nesse instante de contato, o pé descal-

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ço e costurado produz, como rastro, o registro de sua marcação (a primeira versão, a que estamos analisando aqui, de Marca Registrada começa com Letícia de pé e termina com a artista pousando a sola costurada no chão). Depois que o indivíduo realizou seu percurso, resta, sobre a terra, as marcas de seu passo. A cada passo, o indivíduo define a sua origem. Essa origem é deixada como pegada, como rastro e como marca. A origem, costurada na sola como selo de garantia, só pode ser registrada no solo caso haja passo. O passo gera percurso. A origem não define o percurso. O caminhar do indivíduo, seus passos e pegadas a definem. A origem, portanto, está atrelada ao caminhar, ao ir e ao atravessar. Já em Telefone sem fio a problemática da origem aparece a partir de duas operações. Em primeiro lugar, o vídeo exibe uma brincadeira do grupo de artistas, dispostos em círculo. A diversão da brincadeira12 reside justamente no desencontro das mensagens final e inicial: conforme a mensagem inicial é transmitida de ouvido em ouvido, ela vai sendo deturpada e deformada até se transformar em outra coisa distinta da original. Ao percorrer o círculo de ouvidos e bocas formado pelos artistas, a mensagem, conforme retorna ao ponto inicial, dele se distancia, sofrendo deturpações sonoras e semânticas. Quando, por exemplo, Sonia Andrade diz a seu parceiro do lado esquerdo, Ivens Machado, “Duchamp”, a mensagem que chega, por Letícia Parente no lado direito é “Feito à coxa”. Telefone sem

12 A brincadeira funciona do seguinte modo: um indivíduo escolhe uma palavra ou frase que servirá como mensagem a ser transmitida secretamente a seu parceiro sentado em seu lado esquerdo. Ao ouvir a mensagem, transmitida em seu ouvido pela boca aproximada do amigo sentado à direita, o indivíduo deve transmiti-la, do mesmo modo, a seu parceiro sentado à esquerda, tendo a brincadeira o seu fim quando a mensagem retorna ao indivíduo que a transmitiu inicialmente.

fio descortina, desse modo, o próprio processo de transmissão das mensagens, revelando as transformações produzidas nas informações. Como destaca André Parente, o grupo de artistas (...) brinca de telefone sem fio enquanto a câmera roda em torno deles e o espectador assiste ao processo de transformação da informação em ruído, revelando, por meio de uma brincadeira popular, uma das principais questões teóricas da comunicação (o ruído é parte do processo de comunicação e não apenas interferência).13 À passagem da informação efetuada pelos artistas, tem-se a instabilidade imagética produzida pela câmera que, em momento algum, fixa seu referente. Para captar o processo de transmissão das mensagens, o cinegrafista Davi Geiger fez com que a câmera girasse, acompanhando a brincadeira. O giro, desse modo, caracteriza o vídeo, fazendo com que os artistas apareçam do lado esquerdo da tela e desapareçam no lado direito. Essa circularidade presente tanto na brincadeira quanto no vídeo não está associada, portanto, à repetição de um gesto ou de uma informação. A circularidade está a serviço de uma não fixação, de uma deformação, de uma deturpação. Do mesmo modo como a mensagem, na brincadeira, não se fixa, a imagem invariavelmente apresenta movimento circular constante e ininterrupto. A câmera em constante imobilidade é um aspecto que aproxima Telefone sem fio do vídeo de Ivens Machado Versus, de 1974. Nele, Ivens e um ator negro estão bem próximos ao canto de um quarto, estando cada um encostado em uma parede desse canto. Eles permanecem parados e quem se move é a câmera, que oscila entre a imagem de Ivens e a imagem do ator. Essa oscilação, conforme o vídeo se desenvolve, vai-se tornando mais rápida e frequente até que, no paroxismo do gesto de Jom Tob Azulay, a imagem perde a nitidez enquanto

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13 Parente, 2008, p. 17.


funde os dois homens no mesmo enquadramento. Ivens e seu parceiro tornam-se, com isso, manchas da imagem videográfica, conforme o movimento da câmera se torna acelerado. As manchas produzidas pelo vídeo criam uma distância em relação ao referente que impede ao espectador reconhecer, como no início do vídeo, os indivíduos enquadrados. O que se enquadra, portanto, é o puro deslocamento.

Manoel Silvestre Friques (Senai Cetiqt, Rio de Janeiro, Brasil) é mestre em teatro pela UniRio; graduando em engenharia de produção na UFRJ; participou do XVI Congresso Internacional de Teatro Ibero-Americano e Argentino (Buenos Aires); de Teatralidade do Humano (Oi Futuro) e de Poéticas do Inventário (Fundação Casa de Rui Barbosa). Integra o grupo teatral Aquela Companhia, cujo repertório inclui as peças Projeto K, Sub:Werther e Lobo n. 1: [a estepe]. Participou das duas edições da exposição coletiva Projeto ApArtamento – SuperUso (2008/2009) e também Todos Juntos Misturados (2008), na Escola de Artes Visuais do Parque Lage. / manoel.friques@gmail.com

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Henry Matisse. O ateliĂŞ vermelho, 1911. Ă“leo sobre tela, 181 x 219 cm. Nova York, The Museum of Modern Art.


O trabalho de luto da pintura moderna* Ricardo Nascimento Fabbrini

O texto é uma resenha crítica do livro A pintura como modelo, de YveAlain Bois, de 1990, mas só recentemente publicado no Brasil (São Paulo: Editora WMF Martins Fontes; 2009). Analisa sua defesa de um “formalismo materialista” que se evidencia na leitura dos ensaios dessa coletânea dedicados ao exame cuidadoso de obras de Matisse, Picasso, Mondrian, Kobro, Strzemínski e Ryman, a partir de referências da linguística de Ferdinand de Saussure, da fenomenologia de Merleau-Ponty ou do pós-estruturalismo de Jacques Derrida. A resenha comenta ainda a questão da “morte da pintura moderna” mostrando que o “trabalho de luto” em certa pintura contemporânea não é necessariamente “patológico” como indiciam as pinturas de Robert Ryman. E conclui mostrando que Bois efetua rigorosa análise da pintura moderna e contemporânea evitando lugares-comuns, tanto as noções de influência e estilo como a genealogia linear adotados, em regra, por críticos e historiadores da arte. Teoria, formalismo, pintura moderna. É o segundo livro de Yve-Alain Bois editado no Brasil, sendo o primeiro * Resenha recebida em agosto de 2010 e aceita para publicação em setembro de 2010.

Matisse e Picasso, em 2000. Pesquisador de instituto privado ligado à Universidade de Princeton, posição que já foi ocupada por Erwin Panofsky, o autor foi coeditor do jornal Macula, e dos periódicos Rohbo, com Jean Clay – que publicou em 1968 dossiê pioneiro sobre Lygia Clark – e October, com Rosalind Krauss, Hal Foster e Benjamin Buchloh. É considerado por certa crítica autor “neoformalista”, fruto de sua formação estruturalista nos anos 60, na França, com Julia Kristeva e Tristan Todorov – que o colocaram em contato, com os linguistas russos; e da assimilação, na década seguinte, do formalismo de Clement Greenberg, nos Estados Unidos. Na introdução dessa coletânea de textos escritos entre 1981 e 1988, publicada originalmente em 1990, Yves-Alain Bois explicita não um método, mas sua prática enquanto crítico e teórico da arte. Nesses ensaios sobre arte moderna recusa, na intenção de autor, tanto o “consumo apressado de teorias” quanto “o vazio da atitude antiteórica”. Não visa assim aplicar teorias, mas mobilizar conceitos a partir das exigências suscitadas pelas obras investigadas. Na interpretação de Matisse, Picasso, Mondrian, Newman ou Ryman, reserva-se, portanto, “o direito de reter partes de um dado sistema sem ter de aceitá-lo

1 Bois, 1994, p. XVIII.

em sua totalidade”.1 Seu intento, em outros termos, é tomar as formas artísticas não como ilustrações de teorias, mas como “modelos em si mesmos”, ou seja, explicitar a

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modalidade de pensamento que dada pintura constitui, lição apreendida, segundo o autor, de Roland Barthes e Hubert Damisch. Pressupondo que a história das estruturas e das formas artísticas seja sempre ideológica, Bois rejeita tanto a “análise sociopolítica direta da obra de arte”, marca dos estudos culturais das universidades norte-americanas, voltados para as questões de gênero, quanto a “desconfiança da interpretação” que o autor atribui ao formalismo greenbergiano, do qual foi-se distanciando no curso do tempo. Em suma: o autor defende um “formalismo materialista” voltado para a especificidade do objeto que envolve não apenas a condição geral de seu “ambiente”, no termo do autor, mas também os detalhes mais insignificantes de seus meios de produção, como os da ordem da fatura e dos materiais da pintura. No primeiro ensaio, que tomo como modelo, Bois caracteriza o “sistema Matisse” a partir da noção de “arquidesenho”, análoga ao conceito de arquiescritura de Jacques Derrida: “Matisse”, diz o autor, “é desconstrutor”.2 Segundo essa hipótese, assim como a arquies-

2 Idem, ibidem, p. 78.

critura é anterior à hierarquização entre discurso e escrita, originando, na língua de Derrida, a “diferença” – que estaria na raiz das oposições da metafísica ocidental –, o arquidesenho seria anterior à oposição entre desenho e cor. Matisse não teria resolvido, mas “ignorado” ou “esquecido” essa antinomia que remonta à querela do século XVII entre poussinistas e rubinistas, com profundas consequências para a produção pictórica do século XX: “No meu caso – dizia Matisse, evitando subordinar um termo ao outro – pintar 3 Idem, ibidem, p. 68.

e desenhar são uma só coisa”.3 Em análise perita, o autor mostra ainda que esse “sistema” se constituiu com base no modo singular como o artista se apropriou da pintura de Signac, Gauguin e Cézanne. Os confetes coloridos de Signac abriram-lhe “o segredo da expressão por meio da cor”, embora rejeitasse a vitalidade tátil das pinceladas pontilhistas que, recobrindo todo o plano, acabavam por homogeneizá-lo. Com Gauguin apreendeu que é possível acentuar a cor pura sem ter que dividir as pinceladas, embora lamentasse que esse artista não construísse o espaço por meio da cor. De Cézanne assimilou a crítica à perspectiva e ao volume por meio da técnica da modulação, da representação do espaço pelo desdobramento do volume em planos; embora recusasse sua resistência aos planos chapados de cor. Feito de apropriações parciais, o “sistema Matisse” – que se constituiu ao longo das décadas, como mostra Bois detidamente, mediante análise de obras singulares – consiste em compartimentar a tela em superfícies coloridas. Sua composição madura decorreria do “espaçamento” enquanto “modulação de quantidades de superfície de cor” em função da escala do quadro; ou, dito sem meias-tintas, de planos amplos de cor ativados por arabescos ou padrões. No arquidesenho, em síntese, o desenho não confina a pintura, tampouco essa o rasura; mas, em sentido inverso, a linha operando não como contorno, mas como ornato, torna “expressivas” as superfícies coloridas. Sua pintura é assim all over, uma vez que elimina a hierarquia entre concepção e realização – outra versão da antinomia entre

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desenho e pintura –, haja vista que Matisse concebe simultaneamente os elementos da composição no próprio ato de realização da obra. Não se pode por isso, a seu respeito, falar em disegno como projeto, mas em realização alla prima, pois tudo está em jogo ao mesmo tempo na “ética agonística” do artista. No segundo ensaio, sobre Picasso, Bois parte da afirmação do crítico e marchand DanielHenry Kahnweiller, em 1920, de que a “verdadeira” apropriação da arte africana pelo artista não se deu na “fase negra” – ou em Les Demoiselles d´Avignon, de 1907, na convenção da crítica – mas após seu contato, em 1912, com a máscara grebo da Costa do Marfim. Picasso teria percebido nos olhos e boca protuberantes da máscara o caráter diferencial do signo, ou seja, que uma forma pode ser vista ora como nariz, ora como boca; ou ainda, que “um conjunto de formas opera às vezes como cabeça, às vezes como violão” como 4 Idem, ibidem, p. 111.

comprova o relevo Violão, do mesmo ano, em barbante e cartão.4 Esse relevo mostraria que o interesse de Picasso pela máscara grebo resultava não apenas da morfologia dos signos, mas de sua função no interior de um dado sistema. Por isso, elege Bois como referência de sua análise da “semiologia cubista” de Violão à obra de Ferdinand de Saussure, embora Kawnweiler não tenha mencionado em seus textos o Curso de linguística geral, de 1916. Essa referência, no entanto, se justificaria, pois basta lembrar que Roman Jakobson associava – depois de conhecer “pessoalmente” o “Curso” de Saussure – a linguística à pintura cubista, mobilizando a noção de arbitrariedade do signo em sua interpretação da ênfase atribuída por Picasso e Braque não aos objetos em si, mas às relações entre os objetos. Bois ressalva, contudo, os limites das analogias (ou das referências adotadas), ao mostrar que embora Kahnweiller admitisse a natureza diferencial do signo, ele não considerava a diferença entre significado e referente defendida por Saussure, o que o fez acreditar que a pintura abstrata por “não possuir um referente

5 Idem, ibidem, p. 118.

no mundo” careceria de significados.5 Por fim, Bois conclui o ensaio afirmando que é preciso valorizar a lição de Kahnweiller sobre o relevo Violão, em prejuízo da tese da opticalidade (ou superficialidade) dos pappiers collés de Greemberg, que intentou inscrever o cubismo em uma narrativa da pintura baseada, como se sabe, na solução de um só problema formal: o da conquista da planaridade da pintura. Depois da análise dessas obras-chave de “totens da modernidade”, Bois examina a questão da morte da pintura. Recorda que essa ideia integrou o imaginário das vanguardas artísticas do século XX, como evidencia a busca do grau zero na pintura pela primeira geração de artistas abstratos. Evoca, nessa direção, o quadrado branco sobre fundo branco da pintura suprematista de Malevitch; os painéis monocromáticos de cores primárias de Rodchenko; a “última pintura”, nigromante – cruz negra sobre fundo negro – de Ad Reinhardt; e a pintura neoplástica de Mondrian, que postulava o fim da pintura por meio de sua dissolução na “esfera da vida-como-arte”. “No entanto – indaga Bois nesse ensaio de

6 Idem, ibidem, p. 289.

1986 – o fim da pintura, de fato, adveio?”6 Pergunta, portanto, sobre as possibilidades da pintura depois do fim das vanguardas artísticas, e do abandono de seus pressupostos tais

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como o “historicismo”, enquanto concepção linear e teleológica da história da arte; e o “essencialismo”, entendido como a convicção de que haveria uma essência da pintura “de certo modo esperando para ser revelada”.7 Afirmar que a pintura continua viva significa-

7 Idem, ibidem, p. 277.

ria negar que depois da crise do imaginário vanguardista, “a maioria das pinturas” acabou reduzida à condição de mercadoria, ou seja, à morte na vida. Defender, por outro lado, que a pintura chegou ao fim – nas não no sentido intentado pelos artistas de vanguarda que acreditavam que de sua morte adviria uma sociedade baseada na eliminação da diferença entre arte e vida – seria admitir simplesmente que no mundo contemporâneo, “na era das mídias, dos jogos de computador e do simulacro não é mais possível pintar”; no sentido de autores como Jean Baudrillard.8

8 Idem, ibidem, p. 291.

Evitando essas “armadilhas”, Bois recorre à versão de Hubert Damish para a teoria dos jogos. Dissociando de modo estratégico um jogo genérico (como o xadrez) de cada partida desse jogo, o autor argumenta que é preciso distinguir uma dada partida (como a da pintura moderna) do jogo de mesmo nome (como o jogo da pintura). Não se pode, portanto, confundir o fim do jogo – se aceitamos que um jogo possa ter fim – e o fim de uma partida desse jogo. A questão, contudo, torna-se mais complexa se considerarmos que a partida da “pintura modernista” foi a do fim da pintura, como comprovaria o xeque-mate dado à pintura de cavalete por Mondrian e Malevitch. Restaria saber, assim, que nova partida é essa, que passou a ser jogada depois que “o fim do fim chegou”, na expressão de Bois; pois para certos críticos, adverte o autor, essa “volta à pintura” nos anos 80 – depois da desmaterialização da arte na década anterior – deve ser pensada na chave do “luto maníaco” pelo fim da pintura moderna. O trabalho de luto não é, contudo, para Bois, necessariamente patológico, como indiciaria a pintura de Robert Ryman analisada, ciosamente em outro ensaio. Em O tato de Ryman, o autor mostra que sua pintura evidencia, no plano da fatura, que a pincelada ou matéria pictórica da arte abstrata instituiu-se como código histórico. Em sua pintura não teríamos, assim, uma reação antimodernista (ou pós-modernista) como no neoexpressionismo alemão, na transvanguarda italiana ou no graffiti-prainting anglo-americano em voga nos anos 80, que tomavam a pintura moderna como um “gigantesco erro histórico”, mas uma reflexão consciente sobre o “fim da pintura e a impossibilidade de se chegar a ele” no período das vanguardas. No grafismo delicado de sutis variações tonais de Ryman teríamos, assim, a “dissolução carinhosamente adiada” do vínculo com a pintura moderna, pois em suas obras “o fio infinitamente esticado, nunca é cortado”.9 Sua vitalidade decorreria,

9 Idem, ibidem, p. 279.

dessa forma, da “desconstrução” (e não da negação) da tradição da pintura construtiva das vanguardas. Em uma pincelada: a “pintura pode não estar morta” – conclui Bois –, pois persiste um “desejo de pintura” em “trabalhos de luto” como os de Ryman, nos anos 60 e 70, que “não foi inteiramente programado pelo mercado nem a ele subordinado”; diferente do que ocorreria no “regozijo pelo assassinato” ou na “orgia do canibalismo” próprio ao citacionismo ou revivalismo pós-modernista de boa parte da pintura dos anos 80. Porém, pondera o autor, “as previsões são feitas para dar errado”.10

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10 Idem, ibidem, p. 295.


Destaque-se que esse trabalho de luto (Trauerarbeit) ou de perlaboração (Durcharbeiten) da tradição da pintura moderna – nas expressões de Freud – não é efetuado apenas por Ryman, mas também pelo próprio autor nos quatro ensaios que completam a coletânea. Em dossiê sobre arte construtiva examina as diferentes interpretações dos membros do movimento De Stijl – Mondrian, Van Doesburg e Rietveld – das noções de “elementarismo” enquanto busca do específico da pintura e de “integração das artes”, como superação da arte na vida; em justa reparação historiográfica, analisa o “unismo”, vanguarda polonesa dos anos 20 e 30, de Kobro e Wladislaw Strzeminski; em estudo meticuloso da pintura New York City, de 1942, mostra que Mondrian não atingiu, malgrado o artista, o “nivelamento” da superfície pois a pluralidade de suas tiras de cor repuseram a problemática, anterior ao neoplasticismo, da profundidade da pintura; e, por fim, atém-se ao efeito de desestabilização da percepção produzida pelos campos vastos de cor modulada, cortados por faixas verticais nas pinturas de Barnett Newman tomando como referência a fenomenologia de Merleau-Ponty. Acentue-se, portanto, a relevância dessa publicação no país, ainda não devidamente saudada, que supre grave lacuna editorial. Trata-se de análise rigorosa, rara porque erudita – como atestam até mesmo suas cerca de cinco centenas de especiosas notas – que escapa aos lugares-comuns da crítica, tais como as noções de influência e estilo, e à genealogia linear oferecida, em regra, pelas histórias da arte. Se há um senão à edição é só a impressão baça do texto e imagem que turva a visão, apesar da elegância discreta do projeto gráfico.

Ricardo Nascimento Fabbrini (USP, São Paulo, Brasil) é professor de estética do Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. É autor de O espaço de Lygia Clark (Atlas, 1994) e A arte depois das vanguardas (Editora da Unicamp, 2002), além de artigos sobre estética, arte moderna e contemporânea em revistas acadêmicas. Possui graduação e licenciatura em Filosofia (1986) e Direito (1983); mestrado (1991) e doutorado (1998) em Filosofia na USP. / ricardofabbrini@usp.br

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Gordon Matta-Clark: desfazer o espaço* Elena O’Neill

Resenha da exposição Gordon-Matta-Clark: Desfazer o Espaço, no Paço Imperial, no Rio de Janeiro, de 6 de maio a 25 de julho de 2010, chama a atenção para alguns aspectos que dialogam com a história, a arte e com a arquitetura. Espaço, forma, ação. As obras de Gordon Matta-Clark no Paço Imperial colocam a questão * Resenha recebida em julho de 2010 e aceita para publicação em setembro de 2010.

da entrada dos trabalhos nas salas de exposição, como essa entrada modifica seu valor e o risco de que os prive de sua vitalidade; também incitam a pensar a tensão entre a escrita da história da arte reduzida a seu aspecto estético e a escrita da história da arte como exame das condições de possibilidade das obras. Oferecer resistência à tentação de apagar tensões e contradições pressupõe entender a complexidade do processo, as articulações críticas e poéticas dos trabalhos de Matta-Clark com seu contexto (principalmente em Nova York, mas também em Santiago de Chile e várias cidades europeias), com o momento histórico (a década de 1970), com a arte e a arquitetura. Um primeiro nível dessa fricção está presente no choque entre, por um lado, os textos, desenhos, fotografias e vídeos de Matta-Clark e, por outro, a tentativa do espaço de exposição de apropriar-se da obra e produzir uma determinada ideia de arte (questão problematizada por Matta-Clark na intervenção no Museo Nacional de Bellas Artes em Santiago de Chile). Se bem é possível pensar a escrita da história da arte em relação à inserção das obras no espaço, é oportuno lembrar o que Matta-Clark afirma na entrevista com Judith

1 In Moure, Gloria Gordon Matta-Clark. Works and Collected Writings. Madrid: Ediciones Polígrafa, 2006.

Russi Kirshner, em fevereiro de 1978.1 Segundo Matta-Clark, ele tenta criar e expandir, de modo artístico, a ‘mitologia’ do espaço, ainda que ele mesmo não tenha certeza do que ‘espaço’ significa. Por outra parte, distinguir entre experiências ópticas, experiências visuais, espaços inventados e figurações sem apagar nem abolir distâncias e diferenças entre obras e espaço de exposição possibilita um espaço vivenciado, dinâmico e variável em vez de uma base rígida para nossa experiência; um espaço resultante do processo da percepção, constituído pelo fluxo de sensações e processos intelectuais do cruzamento vacilante entre homem e mundo em vez de encenação estável para arranjos variáveis. É inegável a quantidade de informação, textos e trabalhos (desenhos, fotografias e vídeos) presentes na exposição. Alguns dos fotoplastiks expostos apontam para uma rede

Sem título (Anarquitetura), 1974.

complexa de relações, como Splitting, Conical Intersect, Office Baroque, Circus-Caribbean

Gordon Matta-Clark: desfazer o espaço Elena O’Neill (páginas 178-181)

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Orange.2 Essas colagens, além de situar-se entre vazios que desorientam e representações reconhecíveis, entre esforço físico para fazer os cortes e pautas de movimento que desafiam nossa verticalidade, mostram o processo inverso dos cortes nos prédios. Por outro

2 Matta-Clark também intervinha nas películas, cortando e colando fragmentos de celuloide, fazendo impressões das colagens em Cibachrome a partir de 1977.

lado, esses fotoplastiks não tentam interpretar uma realidade. São formas e conteúdos condensados resultantes de uma insatisfação com a norma, que não podem ser verificados, que tornam visíveis movimentos oculares e corporais; remetem a um processo visual e mental que ativa um real ainda invisível: constituem uma realidade com suas próprias condições. Em vez de criar ficções para serem contempladas, exigem o esforço de tornar-nos visual e mentalmente ativos. Ao mesmo tempo em que se desmonta o espaço unificado e estático, se constitui o espaço arquitetônico dinâmico “construído” por Matta-Clark nas intervenções. Mas, por se tratar de unidades estruturadas a partir de uma ação, a operação de desfazer/refazer também toca o aspecto material da arquitetura e da linguagem. O que aponta para os textos da série Anarchitecture e o confronto físico com a complexidade dos limites do espaço humano. Os fotoplastiks se destacam pela ruptura com o quadro clássico da fotografia e por oferecer uma superfície descontínua. Porém, a tensão existente entre moldura e superfície descontínua, resultante dos cortes e ensamblagem de fragmentos de fotografias montados como colagem, nos desafia a pensar o sistema de forças existente entre trabalhos e arquitetura: mais uma vez, olhemos para a série de fotografias da intervenção no Museo Nacional de Bellas Artes de Santiago. Essa inadequação age como cunha que permite desgrudar os trabalhos dos muros, em ressonância com o esforço físico de fazer os cortes e colocá-los na rede de relações e forças esboçadas em desenhos tanto como nos comentários dos “atores”, documentados nos vídeos. Descolar os trabalhos dos muros libera um espaço dinâmico, acúmulo de experiências vividas inerentes ao homem ativo, em movimento, que se recusa a ser dependente de formas e convenções dadas. A dupla démarche de desfazer/refazer, pensada como “construção”, restitui uma experiência psíquica: canaliza o fluxo da imaginação, anima as camadas mais arcaicas da psique, ativa um espaço estático tornando-o dinâmico. O homem está no centro da reflexão sobre o espaço, a arte é a medida da liberdade de expressão de uma sociedade: NOT THE WORK... THE WORKER.3

3 Art-card de Gordon Matta-Clark. “Não o Trabalho... O Trabalhador”.

Os trabalhos de Matta-Clark são mais complexos do que os cortes nos prédios e que a soma das partes: são também as relações entre as partes. Realidades formais e materiais, blocos de sensações que ressoam com algumas forças do mundo devem ser lidos um em função dos outros. Não devem ser considerados apenas documento ou registro, nem entendidos como dispositivos de memória que produzem memórias anônimas, nas quais desaparecemos como sujeitos. A exposição contém trabalhos que estabelecem inúmeras relações em torno de um vazio estruturante e dinâmico utilizando o marco de pensamento e visão existente, que dialogam tanto com o cubismo quanto com os artistas da década de 1970, com as estratégias e jogos de linguagem duchampianos, com a escrita automática do surrealismo; fazem uma leitura crítica de Para uma Arquitetura de Le

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concinnitas ano 11, volume 2, número 17, dezembro 2010


Art-card de Gordon Matta-Clark. “Lidando com nada mais complexo que os limites do espaço humano”.

Corbusier, ressoam com a definição de Adolf Loos de arquitetura, mostram o impacto da construção do World Trade Center, problematizam a propriedade privada, discutem semelhanças e diferenças entre forma e espaço nos subterrâneos, dialogam com a história da cidade, entendem a cidade como palimpsesto... Desfazer o espaço é um nome tímido, frente ao qual corremos o risco de perder a oportunidade de tirar a arte e a arquitetura de seus lugares estáticos, de interrogá-las, de vê-las como ação. De criar um espaço sem necessidade de construí-lo.

Elena O’Neill (Rio de Janeiro, Brasil) é graduada pela Facultad de Arquitetura, Universidad de la República, Uruguay, mestre pelo PPGARTES/UERJ, doutoranda em Historia social da Cultura pela PUC-RIO. / eoneill@uol.com.br

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Hélio Oiticica – Museu É o Mundo* Beatrice Martins e Luciana Grizotti

Resenha da exposição Hélio Oiticica – Museu É o Mundo, montada simultaneamente no Paço Imperial e na Casa França-Brasil, Rio de Janeiro, de 12 de setembro a 21 de novembro de 2010 e incluindo ocupações pela cidade do Rio de Janeiro, a saber: Praça do Lido, Parque do Flamengo, Praça XV, Central do Brasil e Centro Cultural Cartola – Mangueira. Hélio Oiticica, suprassensorial, campus experimental. Para quem nunca havia tido contato com a obra de Hélio Oiticica (e * Resenha recebida em outubro de 2010 e aceita para publicação em novembro de 2010.

também para quem já a conhecia) a exposição Hélio Oiticica – Museu É o Mundo foi um deleite sensorial e experimental; afinal, não é todo dia que podemos vestir parangolés, caminhar por penetráveis e ainda mexer em bólides. A exposição aconteceu simultaneamente no Paço Imperial e na Casa França-Brasil, no Centro do Rio de Janeiro. O trânsito de pessoas na Praça XV é muito intenso e variado, aproximando assim Hélio Oiticica do público que ele procurava sensibilizar. Todos que se permitiram vivenciar as obras de Oiticica saíram de lá de alguma maneira tocados pelas vastas experiências sensoriais proporcionadas. Eram cerca de 90 obras distribuídas entre os espaços. Obras famosas como Núcleos, Bólides, Metaesquemas e Parangolés atraem a atenção quase que imediatamente. São ícones do trabalho do artista, que muitos visitantes só tinham visto nos livros de história da arte. Parte da exposição que ocupou o Paço Imperial era guiada por textos do próprio artista que, além de abordar as obras, explicitam seu caráter experimental e lúdico. Durante todo o circuito podia-se perceber relação muito estreita entre o artista e o título de suas obras, como se, para Oiticica, os títulos dos trabalhos fossem um aspecto fundamental deles, parte da obra. Já as obras que estavam na Casa França-Brasil têm caráter mais sensorial. A exposição tinha início no Paço Imperial, que contou com maior número de obras, como em ordem crescente de vida e de produção, até chegar à Casa França-Brasil onde estavam,

Macaleia, 1978. Paço Imperial, 2010. Foto: Jovita dos Santos.

por exemplo, Éden e o parangolé Capas feitas no corpo para experimentar, sentir, tocar e vivenciar.

Hélio Oiticica – Museu É o Mundo Beatrice Martins e Luciana Grizotti (páginas 182-186)

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Nessa exposição encontravam-se além do vídeo Invenção da cor: um passeio por um penetrável, um labirinto com paredes em cores quentes e texturas no chão, diversas obras que propõem o jogo entre objeto, pessoa e reflexo em espelho, como o núcleo NC1, que propõe o relevo espacial com grafismos em madeiras penduradas e por Metaesquemas: primeiras tentativas de Oiticica de romper com o quadro. “Porque o espaço é pintura. Então Metaesquema é isso: uma coisa que fica entre. Que não é pintura, nem desenho, mas na 1 Oiticica, Hélio. Citado em uma das paredes da exposição.

realidade uma evolução da pintura.”1 A declaração “o espaço é pintura” desvelava-se verdadeiramente quando o espectador se deparava com os vários penetráveis espalhados pela exposição. Em meio a todo o seu experimentalismo, Oiticica procura transcender a pintura. Seus Bólides, além de objetos de cor, são chamados pelo próprio artista de “transobjetos”. Os Metaesquemas são espaços de cor que remetem a espaços arquitetônicos. Já os Parangolés são a antiarte por excelência: a obra no corpo e o corpo na obra. Ao mesmo tempo, ao caminhar pelos Penetráveis não se pode ignorar a sensação de estar andando Metaesquemas adentro. Sendo assim, para o artista os trabalhos são maquetes pelas quais as pessoas adentram a obra, uma imersão no universo com a exploração dos cinco sentidos do corpo humano. Acostumados com exposições cujas obras que convidam à intervenção acompanham placa solicitando “não toque a obra”, torna-se normal o receio diante da possibilidade de tocar e intervir. À pergunta “Pode mexer?” seguia-se a surpresa perante um dos monitores respondendo positivamente. Em Rhodislândia pisam-se pedras, passa-se por tecidos, podendo tocar um piano localizado no centro da sala. A junção de todos os aspectos do trabalho com sua sensibilidade aguçada perante coisas cotidianas, como pisar pedras, torna-se prazeroso exercício da percepção e da liberdade de poder tocar aquilo que, normalmente, dentro de um museu, não poderia ser tocado. Seguia-se, como se fosse continuação de Rhodislândia, a instalação Tropicália. São pequenos penetráveis com cores e texturas diferentes, sobre um chão de areia. Ao fundo uma enorme gaiola com um papagaio vivo dentro: é o penetrável PN2 A pureza é um mito. Tropicália é como um pedaço do Brasil, tropical como o Brasil com casas, praias e pássaros. O espectador que visitou a exposição em dois momentos diferentes se surpreendeu ao deparar-se com uma corda impedindo o acesso a Tropicália. A explicação? “Esta obra está interditada em virtude de decisão judicial obtida pela Prefeitura do Rio de Janeiro. Exibila sem os pássaros seria uma traição ao seu autor.” Justamente os papagaios de PN2 A pureza é um mito, que tanto transmitiram a sensação de Brasil. Obras como Seja herói, seja marginal denunciam seu envolvimento com marginais. Marginal no sentido de quem vive de fato à margem. (É do conhecimento de todos a relação do

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artista com o Morro da Mangueira). Mais do que levar a arte para o povo, o artista clamava a participação do povo na arte. Oiticica fazia a tradução do construtivismo internacional para um construtivismo favelar. “Só o experimental é o que interessa (...) não é nem dizer 2 Hollanda, Heloísa Buarque de; Pereira, Carlos A. M. Patrulhas ideológicas. Rio de Janeiro: Ed. Brasiliense, 1980.

que eu parei de pintar... não foi isso, eu acabei com a pintura. É totalmente diferente.”2 Já na Casa França-Brasil e, logo de início, todos eram convidados a entrar passando pelos tubos azuis de plástico do Penetrável da Gal. Bela maneira de imergir na obra de Oiticica: vivenciar essa materialidade da cor. Em seguida encontrava-se o famoso Éden, e o espectador-participador era convidado a tirar os sapatos antes de entrar nesse verdadeiro jardim sensorial com o chão coberto de areia e carpete, onde diversos penetráveis proporcionaram um momento de liberdade e de experimentação do corpo. Em Ninhos caminha-se sobre livros e revistas, espuma, colchões, folhas... E tem-se a sensação de estar pisando o que não devia. Mito é estrutura de madeira em forma circular, que lembra uma espiral; Canabiana, uma tenda amarela com cacos de tijolo, ao lado de Lololiana, uma tenda azul com folhas; mais adiante, Iemanjá, uma tenda branca com água. Em virtude da relação dos trabalhos de Oiticica com seus títulos, atentamos aqui para os nomes dos penetráveis. A relação entre as drogas, e mais uma vez o marginal, também se faz presente aqui. O Éden é campus experimental em que as experiências humanas são permitidas e, para o artista, é a personificação do conceito de “suprassensorial”: transformar processos de arte em sensações de vida. Nele, o participador irá elaborar dentro de si mesmo suas próprias sensações. Conversar com um dos monitores foi outro aspecto interessante da exposição: a monitoria experimental. Ali o monitor não era alguém que detém a verdade, mas alguém que estimula um raciocínio acerca da experiência de cada um na exposição. As discussões geradas

3 experienciasnolabirinto.blogspot.com

pela percepção do espectador são ainda postadas em um blog3 e discutidas por outros monitores; dessa forma, novos discursos podem ser construídos e debatidos. É ainda na Casa França-Brasil que está o penetrável Capas feitas no corpo, possibilidade de criar seu próprio parangolé e vesti-lo. A exposição conta ainda com dois vídeos do artista, Agripina é Roma Manhattan e Brasil Jorge, além do penetrável PN 27 “Rijanviera”. E, apesar de ser um espaço menor, foi lá que a obra de Oiticica pôde ser realmente experimentada. Dos diversos penetráveis espalhados pela cidade do Rio de Janeiro, o PN 16 (ou PN Nada), que está localizado na Praça XV é o que mais chama atenção. Num labirinto completamente negro, Oiticica propõe ao espectador o encontro consigo mesmo, em um deslocamento da vida real fora desse labirinto. O intrigante é que, ao sair da obra experimenta-se de fato a sensação de desorientação, como se o mundo lá fora tivesse sido colocado em segundo plano.

Hélio Oiticica – Museu É o Mundo Beatrice Martins e Luciana Grizotti (páginas 182-186)

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Ao longo de todos os trabalhos de Hélio Oiticica apresentados nessa exposição é possível perceber a problematização do conceito de arte tido como absoluto na época. Hélio trouxe para o museu objetos e materiais da vida cotidiana, explorou o corpo através de seus cinco sentidos e levou o museu para as ruas, da mesma forma que trouxe as ruas para o museu. Talvez por esse motivo o título da exposição seja Museu É o Mundo, com é maiúsculo; uma constatação que se faz verdadeira após a vivência que ela propõe.

Beatrice Martins (UERJ, Petrópolis, Brasil) é graduanda em História da Arte pela UERJ. Bolsista da revista Concinnitas. / bea.volgari@gmail.com

Luciana Grizotti (UERJ, Niterói, Brasil) é graduanda em Artes Visuais pela UERJ. Bolsista da revista Concinnitas e graduada em Comunicação social / Publicidade e Propaganda pela Universidade Estácio de Sá. / lugrizotti@gmail.com

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concinnitas ano 11, volume 2, número 17, dezembro 2010

Parangolés sendo vestidos pelo público. Paço Imperial, 2010. Foto: Beatrice Martins.


Abstracts

Abstracts

The giant of crossroad

Widening the relation between art, myth and life, this present research proposes a reading

Mônica Maria Linhares Castrioto

about the historical development of Mario Cravo Jr’s Exu dos Ventos, analyzing the creation,

Pages 6-23

transfer between gallery and public space, conflicts, consecration and conservation – paralleled with the narrative of Èsù Yangí’s creation myth. Art criticism, art and socity, african’s myth in the art.

Anthropophagy heritage

This essay is an excerpt from my dissertation entitled Arte crítica, contexto público e ação

in contemporary poetics

poética no cotidiano and intends to think the modernistic cultural anthropophagy heritage

Rubens Pileggi Sá

and the achievements of neoconcretism ‘60s as a way to contemporary art practice. The

Pages 24-39

search result is a poetic exercise, where the text becomes an active element, relating the performance of the body with the different layers of action. Political, poetic, experimentation.

Art and mediation:

This article intends to present a piece of the history of mediation, noticing that the

perception requests involvement

relationship between the viewer and the artwork involves mechanisms that have been

Vera Rodrigues de Mendonça

determined by the logic that guides the object exhibition. Such mechanisms, embedded in

Pages 40-55

today’s curatorial projects, reverberate in the history of each viewer, creating uncounted meanings not always provided by the institutions and artists. Contemporany art, mediation, perception.

Notes about the collage as form

When thinking about the artistic structure of the text - which seeks to monitor the work

Isabel Almeida Carneiro

process and at the same time constitute itself as part of the work - was an elaborate scheme

Pages 56-75

that allows the flow between the plastic work and written work. Thus emerged a system of fragments, which tries to encompass the whole into parts, as each note is a fragment which corresponds to a relevant point of my artwork and the concept of collage. Collage, fragment, game.

Feeling inside out:

The word bólide reveals, by itself, part of the relation developed by Hélio Oiticica concerning

interiority and externality

the space. The artist seems to have named like this these objects produced between the

in Oiticica’s Bólides

years of 1963 and 1967 in order to highlight two aspects. First, the light that comes from

Carla Hermann

the color that fulfills them, and second, the relation between theses objects and the space.

Pages 76-87

These connections are explored in the present article under the concept of the informe, thought by Yve-Alain Bois and that organizes the way the bólides were structured using the materials that are wasted in the everyday in order to build the idea of adversity pursued by Hélio Oiticica. Hélio Oiticica, bólides, space.

Abstracts

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The present article summarizes my Master’s dissertation entitled In transit: uma reflexão

Transitory spaces

sobre ações artísticas em espaços de passagem. Starting from my own actions, it tries

Jacqueline de Moura Siano

to investigate new ways of thinking artistic practices in public spaces. I look forward to

Pages 88-102

understand melancholy and hope as active principles of my artistic actions, which invades daily urban routine, attempting to capture the flow itself, between spaces, images, beings and objects, always in continuous transformation. The main objective is to extend the possibilities to act artistically and to understand the potential of the artistic actions – inseparable of life itself. What I do propose is poetical interventions in public spaces of transit, aiming at subtle changes on habits developed in our relations with these spaces and all the elements that cross them. Routine, melancholy, hope. The article looks at videos of Bill Viola to special treatment from the artist to nature

Bill Viola: the nature of things

reserves in general. Conducted between 1960 and 1970, these are available in the collection

Gilles A. Tiberghien

of new media from the Centre Georges Pompidou.

Pages 112-119

Bill Viola, art and nature, video and landscape. The paper focuses on the work of Eduardo Kac as a poet and a performance artist, in the first

Eduardo Kac and the

years of the 1980s’. It reports his connection to the Gang group, in Rio de Janeiro, and the

writing of the body in space

poetic/performatic interventions carried out by him in the period. Based on Maria Beatriz

Bianca Tinoco

de Medeiros, Paul Zumthor, Gilles Deleuze and Félix Guattari, it also analyses in which way

Pages 120-127

these initial works show questions about the body that goes by the subsequent production of the artist. Eduardo Kac, performance art, contemporary art. This article proposes a reflection upon the re invention of the body city relationships

Contemporary art, body and city:

through contemporary art, electing two choreographical installations as examples that

interwoven existences

evidence said proposals.

Danielle Milioli and

By setting down concepts such as of place, non place, re singularization, de

Emyle Pompeu de Barros Daltro

territorialization, de construction, with the productions Little Fragments of Invisible Deaths

Pages 128-134

and Impermanences by artist Vera Sala, the authors of the text take their place upon the lines of this creator interpreter, traveling the maps suggested by the works at issue. Body, city, contemporary art. The text examines some contemporary art works by three artists working in Porto Alegre

Disindividualized bodies,

who use the language of photography: Vilma Sonaglio, Bianca Araújo and Richard John. This

disabled faces

paper investigates how these artists problematize the issue of Identity from the point of

Niura Legramante Ribeiro

view of the portrait concept proposed by John Tagg as “description of an individual” and as

Pages 135-145

“social inscription” of the body. Portrait, identity, photography.

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concinnitas ano 11, volume 2, número 17, dezembro 2010


The invention and street:

In this article we took some objects that have been selected/photographed once by Gabriela

the appropriation and

de Gusmão Pereira in her book Rua dos Inventos to think about some poetical proceedings

reinvention of objects precarious

in the way those objects are designed and used. We also intend to analyze them in view of

Ludmila Brandão and Rosane Preciosa Pages 146-157

the complexity of the contemporary art. Invention, popular aesthetics, art.

Origins, registers and displacements

In this article, the video Marca Registrada (Letícia Parente, 1975) is analyzed from its

in Marca Registrada

relations with the Brazilian economic context of the 70´s and with international industrial

Manoel Silvestre Friques

development. Marca Registrada is also related with Franz Kafka´s novel In the Penal Colony,

Pages 158-171

relation from which was possible, also with the reading of Walter Benjamin´s The work of art in the age of Mechanical Reproduction to conceive the video as glass needle composed by the artisan technique of sewing and the process of captation/exhibition of electronic images. Letícia Parente, performance art, videoart.

The mourning’s work of

The text is a critique of the book Painting as Model by Yve-Alain Bois (1990) only recently

modern painting

published in Brazil (São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2009). It analyzes the author’s

Ricardo Nascimento Fabbrini

defense of a “materialist formalism ‘which is evident in reading the essays of this collection

Pages 172-177

devoted to a careful examination of the works by Matisse, Picasso, Mondrian, Kobro, Strzeminski and Ryman, drawing on Ferdinand de Saussure’s linguistics, Merleau-Ponty’s phenomenology or Jacques Derrida’s post-structuralism. The review also comments on the issue of “death of modern painting” showing that the “work of mourning” to some contemporary art is not necessarily “pathological” as indicated by the paintings of Robert Ryman. The review is concluded by showing that Bois makes a rigorous analysis of modern and contemporary painting avoiding cliches, both the notions of influence and style, as the linear genealogy adopted, as a rule, by critics and art historians. Theory, formalism, modern painting.

Gordon Matta-Clark: undoing space Elena O’Neill

Review of the exhibition “Gordon Matta-Clark: Undoing Space” in Rio de Janeiro, the article draws attention to some aspects discussing history, art and architecture. Space, form, action.

Pages 178-181 Hélio Oiticica –

This is a review about the art exhibition “Hélio Oiticica – The Museu Is The World”, that

The Museum Is The World

happened simultaneously at Paço Imperial and Casa França-Brasil, Rio de Janeiro, from

Beatrice Martins and

September 12th to November 21st. The exhibition also showed artistic occupations around

Luciana Grizotti

the city of Rio de Janeiro, namely: at Praça do Lido, Parque do Flamengo, Praça XV, Central

Pages 182-186

do Brasil and Centro Cultural Cartola, in Mangueira. Hélio Oiticica, supra-sensory, experiment exchange.

Abstracts

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Sobre Concinnitas A revista Concinnitas é publicação semestral do Instituto de Artes da UERJ, criada em 1996 e, a partir de 2005, vinculada ao Programa de Pós-Graduação em Artes (PPGartes). O termo Concinnitas, extraído dos tratados de Leon Battista Alberti, refere-se a uma teoria arquitetônica baseada no equilíbrio, refletindo política editorial de independência acadêmica e rigor científico, mas também disponibilidade para novas proposições artísticas e debates teóricos. O objetivo de difundir conhecimento faz da revista um espaço de incentivo à pesquisa e à produção no campo da criação, da fruição e da reflexão sobre arte e cultura. Assim, Concinnitas pretende responder à necessidade de formação de artistas, docentes e pesquisadores, bem como do público em geral, atendendo à demanda crescente de profissionalização, aperfeiçoamento e especialização, e contribuindo para melhorar qualitativamente a produção, a pesquisa e o ensino. Como objetivo da revista consta ainda a criação de conexões estreitas entre pesquisa, extensão e ensino universitários não só pelo estímulo à produção e à pesquisa discente, mas, sobretudo, por meio de seu processo de produção. Desde 2003 a publicação passou a Projeto de Extensão, constituindo um laboratório editorial, do qual participaram, até 2005, alunos de graduação, mas que, com a vinculação ao Mestrado, conta também com alunos de pós-graduação. Concinnitas tem seu conteúdo acessado livremente no site: www.concinnitas.uerj.br

Estrutura 1) Dossiê – Todos os números pares (junho) de Concinnitas têm seus dossiês organizados por um professor-pesquisador do PPGartes, que convida ensaístas de âmbito nacional e internacional e apresenta proposta a ser avaliada pelo conselho editorial. Os números ímpares (dezembro) têm seus dossiês organizados a partir da indicação do colegiado do PPGartes, que seleciona seis dissertações dentre as defendidas no último ano. 2) Ensaio – Um artista é convidado pelo conselho editorial, e seu trabalho é encartado no miolo da edição. 3) Artigos – São recebidos da comunidade acadêmica e artística e avaliados pelo conselho editorial (peer review), composto por pesquisadores das áreas de artes plásticas e visuais. 4) Entrevistas – De iniciativa dos editores, mas também enviadas por colaboradores, as entrevistas podem ser com artistas, críticos, historiadores e teóricos da área de arte e cultura; 5) Traduções – Indicadas pelo conselho editorial, devem ser artigos de referência para a comunidade acadêmica e artística. 6) Resenhas – Críticas de livros publicados e de exposições ou eventos na área de arte e cultura, além de revisões de artigos relevantes.

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Normas para publicação Concinnitas recebe artigos, entrevistas e resenhas: 1. O texto deve ser inédito (nas línguas portuguesa ou espanhola). 2. O texto será submetido à avalição de um consultor membro do conselho editorial ou de um consultor ad hoc (peer review). 3. O autor é responsável pelo conteúdo do texto e deve garantir exclusividade até o recebimento do parecer do conselho editorial. 4. O autor de texto publicado deve cumprir período de dois anos para nova submissão de proposta. 5. O autor deve transferir os direitos autorais do texto para a revista Concinnitas imediatamente após a aprovação. 6. O texto aprovado e publicado não poderá ser republicado em período de até dois anos. 7. O texto aprovado será divulgado no site (www.concinnitas.uerj.br > arquivo > artigos em espera). Aqueles não publicados imediatamente após aprovação poderão ser publicados na edição seguinte, conforme autorização do autor. 8. A seleção dos textos de cada publicação será feita pelo conselho editorial, baseando-se na aprovação e na data de recebimento. 9. Somente os textos que cumprirem as normas de publicação serão avaliados. 10. Os artigos e entrevistas devem ter até 40.000 caracteres com espaço, editados em word, sem hifenação, sem tabulação de parágrafo e com entrelinha dupla. 11. As resenhas devem ter até 10.000 caracteres com espaço, editadas em word, sem hifenação, sem tabulação de parágrafo e com entrelinha dupla. 12. O texto deve ser enviado por e-mail (concinni@gmail.com). 13. A folha de rosto deve conter: - nome do autor com a vinculação profissional e/ou universitária - e-mail e endereço pessoal e/ou profissional - título em português e inglês (até seis palavras) - resumo em português e inglês (até 500 caracteres com espaço) - três palavras-chave em português e inglês 14. Currículo resumido em forma de texto (até 500 caracteres com espaço). 15. As notas devem vir no final do texto, numeradas em algarismos arábicos. 16. O texto deve conter bibliografia seguindo as normas da ABNT. 17. Devem ser enviadas até três imagens, com legendas, que não devem ser inseridas no corpo do texto (embora seja desejável a indicação de seu posicionamento). As imagens devem ser digitalizadas e enviadas por e-mail (concinni@gmail.com) em formato jpg, colorida, 300dpi, tamanho mínimo 12 x 18cm.

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Universidade do Estado do Rio de Janeiro Reitor Ricardo Vieiralves de Castro Vice-Reitora Maria Christina Maioli Sub-Reitora de Graduação Lená Medeiros de Menezes Sub-Reitora de Pós-Graduação e Pesquisa Mônica Heilbron Sub-Reitora de Extensão e Cultura Regina Lúcia Monteiro Henriques Diretor do Centro de Educação e Humanidades Glauber Almeida de Lemos Instituto de Artes Diretor Roberto Conduru Vice-Diretora Vera Beatriz Siqueira Coordenador de Pós-Graduação e Pesquisa Rodrigo Guerón Mestrado em Artes Coordenadores do Programa de Pós-Graduação em Artes Luiz Cláudio da Costa e Aldo Victório Área de Concentração Arte e Cultura Contemporânea Linhas de Pesquisa Teoria e História da Arte; Processos Artísticos Contemporâneos; Arte, Cognição e Cultura Corpo Docente Aldo Victorio, Cristina Salgado, Isabela Nascimento Frade, Jorge Luiz Cruz, Leila Danziger, Luiz Cláudio da Costa, Luiz Felipe Ferreira, Marcus Alexandre Motta, Maria Berbara, Maria Luiza Fatorelli, Liliane Heynemann, Ricardo Basbaum, Ricardo Gomes Lima, Roberto Conduru, Roberto Corrêa dos Santos, Rodrigo Guerón, Sheila Cabo Geraldo, Vera Beatriz Siqueira Coordenador de Graduação Marcelo Campos Cursos Bacharelado em Artes Visuais; Bacharelado em História da Arte; Licenciatura em Artes Visuais Corpo Docente Aldo Victorio, Alexandre Vogler, Cristina Pape, Cristina Salgado, Denise Espírito Santo, Ericson Pires, Isabela Nascimento Frade, Jorge Luiz Cruz, Leila Danziger, Luis Andrade, Luiz Cláudio da Costa, Luiz Felipe Ferreira, Marcelo Campos, Maria Berbara, Maria Luiza Fatorelli, Maria Lúcia Galvão, Nanci de Freitas, Regina de Paula, Ricardo Basbaum, Ricardo Gomes Lima, Roberto Conduru, Roberto Corrêa dos Santos, Rodrigo Guerón, Sheila Cabo Geraldo, Vera Beatriz Siqueira Coordenadora de Extensão e Cultura Denise Espirito Santo Agradecimentos Adriana Schneider, Bill Lundberg, Dária Jaremtchuk, Evelyne Azevedo, Gilles A. Tiberghien, Gilton Monteiro, Isabela Nascimento Frade, Jorge Luiz Cruz, Leila Danziger, Liliane Heynemann, Luis Andrade, Luiz Cláudio da Costa, Maria Beatriz de Medeiros, Maria Lúcia Galvão, Maria Luiza Fatorelli, Martha Telles, Nanci de Freitas, Regina Melim, Regina Vater, Ricardo Basbaum, Roberto Conduru, Roberto Corrêa dos Santos, Rodrigo Gueron, Simone Michelin, Sonia Gomes Pereira, Valerie Cassel Oliver, Valzeli Sampaio, Vera Beatriz Siqueira, Viviane Matesco

Revista Concinnitas Universidade do Estado do Rio de Janeiro Instituto de Artes Rua São Francisco Xavier 524, Pavilhão João Lyra Filho, 11o andar, bloco E, sala 11.007 Maracanã, Rio de Janeiro, RJ, 20550-013, Brasil Telefone: (55-21) 2334 0423 / 2334 0912 www.concinnitas.uerj.br / concinni@gmail.com

Os textos (8/13), títulos (12/13), notas e legendas (6/8) desta revista foram compostos em ITC Officina Sans e ITC Officina Serif. Papel offset 90g/m2 (miolo) e cartão supremo alta alvura alcalino 250g/m2 (capa)




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