Flashes da Escola: Terras fotofabuladas com crianças

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Flashes de escola: terras fotofabuladas com crianças


CAMILLA BORINI VAZZOLER GONÇALVES

Flashes de escola: terras fotofabuladas com crianças

Projeto de pesquisa apresentado ao Curso de Doutorado Acadêmico em Educação, na linha de pesquisa Docência, Currículo e Processos Culturais do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Espírito Santo, como requisito parcial de avaliação em Exame de Qualificação I. Orientadora: Prof.ª Dr.ª Janete Magalhães Carvalho.

VITÓRIA 2021


Sumário Os relevos do caminho: agenciamentos, trajetos, percursos

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A luta para produzir pesquisas com as crianças e suas fotografias

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A terra-escola em suas transformações e o movimento nômade das crianças

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Fotografias e crianças: fabular a Nova Terra

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Carto(foto)grafias: fabulações do olhar e do sentir

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Referências

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Os relevos do caminho: agenciamentos, trajetos, percursos Pés que escorregam. Percorrem. Caminham. Fogem. Correm. Vejam só, uma criança que corre, outra que fabula, aquela que inventa, esta que resiste. - Cadê a criança que deveria estar aqui? - Não voltou para a sala, está no parquinho! - Precisamos ir buscá-la! - Venha cá! Ei, você! Precisamos ir para a sala! - Não vê que estou camuflado!

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Os relevos que as crianças produzem no território escolar mostram-nos um constante processo de re-des-territorialização. Os pés que tocam o chão produzem marcas, pegadas, rastros, relevos, frestas. Os corpos que se compõem, se misturam à terra e criam invencionices, que, como na agricultura, remexem o solo curricular, escavam, semeiam e mostram como o território está em constante movimento. Corpos sentem as nuances da terra, mãos experimentam as texturas das coisas, olhos comtemplam os movimentos e ouvidos entreouvem os ruídos harmônicos.

sementes e plantam o inimaginável. As árvores curriculares que, às vezes, imperam sobre as práticas pedagógicas sentem os corpos das crianças que sobem, se penduram pelos galhos, arrancam as folhas, cheiram as flores e comem os frutos. Não há um elemento mais importante, tudo é processo de criação curricular. Aparenta que, às vezes, a hierarquia do currículo perde o sentido quando as crianças forçam o pensamento e nos indicam que compor processos aprendentes na escola é da ordem do acontecimento, do agenciamento que atualiza virtualidades por diferenciação.

A escola é isso, uma terra que se reterritorializa e desterritorializa a todo o momento. Um eterno processo de produção de vida, de potência. É um vaivém de crianças e professoras que, em trânsito,

Invenção, criação, fabulação. Quem toca essa terra curricular perceberá logo as invencionices das crianças. Elas deixam suas marcas, pegadas, trilhas. Criam 5


produzem abalos, fissuras, descobertas, fabulações de outros mundos possíveis. Quem nunca parou um pouco e observou as imagens que são criadas nas escolas, assim, só por olhar? Olhou para os movimentos produzidos pelo pátio e acompanhou as invenções crianceiras das crianças e professoras. Ou nos momentos em sala de aula, e observou como as crianças se (des)organizam. As chegadas à escola e saídas dela, quantas risadas, reencontros e despedidas, correria e calmaria! E, assim, imersa nessas linhas que compõem o plano de imanência e o movimento de crianças e professoras no território-escola, pousamos o olhar sobre algum acontecimento e pensamos: O que levou aquela criança e/ou professora a produzir e fabular aquela situação? Quais foram as forças que agenciaram aqueles corpos para aquela criação? O que pode ter

levado o pensamento dessas crianças e/ou professoras para essa invenção? Ao atualizar uma virtualidade, qual mundo possível foi criado? Em que terra estamos pisando?

Nesse emaranhado de agenciamentos produzidos, olhar e sentir as imagens criadas torna-se uma aposta para pensar na instabilidade do território escolar e o movimento nômade dos currículos. Isso nos ajuda a refletir sobre a impossibilidade de pensar as práticas discursivas que aspiram à universalização e padronização das docências, das crianças, dos currículos e das escolas. Logo, é preciso refletir sobre os processos de captura a que a escola está sujeita, seja pelos órgãos federativos que tentam demarcar de terras curriculares, pelos leilões milionários que vendem apostilas para a produção de monocurrículos, pelas propostas curriculares que ambicionam que as escolas se tornem grandes latifúndios, seja ainda pelas práticas discursivas cotidianas que tentam uniformizar e padronizar as diferenças das crianças e professoras. 6


*

Aquele poderia ser um dia como qualquer outro, mas, ao caminhar, uma parede chamou-nos a atenção. Algo arrebatou o pensamento. Paramos um pouco. Silenciamos. Olhamos. Sentimos. Nela havia um amontoado de atividades iguais feitas para as crianças. As famosas bonecas russas: as Matrioskas, que se multiplicam sempre iguais, tais como o currículo massificado que aspira por decodificação de códigos universais. As pequenas diferenças produzidas pelas crianças, em suas cores e tons, são devoradas pela massificação e reverberam incessantemente por um modelo. Mas quem disse que essas virtualidades que aspiram por atualização não coexistem com as infinitas estratégias de captura das diferenças? Talvez essa seja a maior inquietude que essa fotografia provoca ao nosso olhar: onde está a saída para ver, sentir e atualizar esses mundos virtuais? É possível sair de uma representação do pensamento? Há saída? E, se sairmos, para onde iremos? É possível dizer? * 7


Consideramos, assim, que “o território é o primeiro de todos os agenciamentos” (LAPOUJADE, 2015, p. 40). Isso quer dizer que pensamos o território como um agenciamento coletivo, em que o grupo busca assegurar certa estabilidade e localização (DELEUZE; GUATTARI, 1995). Aqui podemos entender quanto as práticas cotidianas buscam um centro, uma constância. Não será difícil pensar nesses mecanismos que desejam controlar o incontrolável. É um movimento retilíneo por uma fila, um jeito de sentar-se na carteira, uma justificativa psicológica para um determinado comportamento, um eterno se senta na roda. Não corre, cuidado! Pare com isso! Venha aqui! Não mexe nisso! Olhe

para o quadro! Há uma infinidade de meios que buscam que o território se mantenha dentro de um controle estável e são justamente essas imagens de controle sobre o território que tentam afirmar a “estabilidade”, a padronização e uniformização das crianças, professoras, currículos e, consequentemente, o caminho retilíneo que todos devem seguir para a manutenção do território.

como tal conhecimento deve ser consumido pelas crianças, para que, assim, atinjam o que defendem como aprendizagem ‘essencial’-”

Isso quer dizer que há uma infinidade de mecanismos de controle sobre os corpos que sustentam a possibilidade de padronização do currículo e dos códigos alfanuméricos, para buscar codificar a potência vital das crianças. A busca por uma psicologização do comportamento das crianças tornase uma justificativa plausível para que instituições/editoras privadas “[...]

capturas das quais o nosso pensamento se vicia buscam certa retidão nas imagens de escolas, e, com isso, o nosso olhar é devorado pelos clichês. Nas trilhas labirínticas que traçamos pela escola, muitas são as possibilidades de pensar as imagens que são produzidas, mas poucas são as frestas que nos dão meios de sair de uma ordem do

refirmam incessantemente o que e 8

(GONÇALVES, 2019, p. 123). Sob essa territorialidade que busca certa manutenção, as imagens agem como “[...] uma espécie de ‘guarda-sol’ que nos protege do caos” (DELEUZE; GUATTARI, 2000, p. 260). Essas


olhar. Imaginemos as imagens que circulam dentro e fora da escola pelos canais midiáticos. Quais fotografias compõem os relatórios da educação infantil? Nas apresentações comemorativas, quais são os registros que sobressaem ao nosso olhar? Nas atividades produzidas pelas crianças, qual é o foco da câmera? Quais fotografias compõem os livros que circulam pela escola? Quando fotografamos a escola, as crianças ou as professoras, para qual direção a câmera aponta? De que maneira podemos produzir fotografias, onde a potência da vida infantil não pode ser codificada?

Alinhados a essas fotografias que tensionam o nosso pensamento para um modelo e para um território estável, também lembramos as imagens da escola que, do mesmo modo, anseiam por uma ordem e controle da vida. Quem nunca se inquietou com uma criança que resiste a sentar-se na roda, a andar na fila, a não fazer algo “proibido” ou que não silencia absolutamente durante uma atividade? Imersos nas linhas de vida que compõem o plano de imanência e os movimentos de re-des-territorialização, há corpos que, por vezes, gritam: “Pedimos somente um pouco de ordem, para nos proteger do caos” (DELEUZE; GUATAARI, 2000, p. 259).

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O olho vicia-se em olhar imagens que se replicam e, a partir do seu reflexo, se reproduzem. Há práticas discursivas que anseiam por uma escola-modelo. São as armadilhas capitalísticas que capturam as escolas, as imagens que tentam vender a ideia de uma massificação dos conteúdos, para sempre vender mais e mais, sustentando seus enunciados de uma rostidade (DELEUZE; GUATTARI, 1997) da professora e da criança. Uma imagem molar de crianças e professoras e seus modos de produção. Nesse sentido, Rolnik (2018, p. 70) nos convida a refletir: “O mundo converte-se, assim, num vasto e variado mercado, onde a subjetividade tem a seu dispor uma infinidade de imagens para identificar-se e com as quais estabelecerá uma relação de consumo que lhe permitirá recobrar o alívio fugaz de um quimérico equilíbrio”.


Espera-se a estabilidade da vida, dos corpos, das infâncias, das docências, dos currículos, das escolas. Um quimérico equilíbrio que nunca corresponde a uma vida em seus infinitos modos de produção e, do mesmo modo, dita registros fotográficos que circulam sobre a escola. “As imagens preenchidas pelo valor expositivo não demostram qualquer complexidade [...]. Falta-lhes qualquer tipo de fragilidade de que se pudesse desencadear uma reflexão, um reconsiderar, um repensar” (HAN, 2017, p. 35).

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*

Uma manhã ensolarada, crianças e professoras que fazem sempre as mesmas coisas [será?]: Corpos controlados. Esperam. Por quanto tempo? A professora, o que ela espera? Ela se ocupa? Ela foge? Quais fugas são possíveis à professora nessa espera? Uma criança espera, quieta? Suas mãos encontram um risco sob a mesa, seu dedo passa a percorrer aquele caminho: é uma pista? Para onde o seu pensamento é levado? Seu corpo encontra-se de frente para o espelho, olha-se, faz uma careta. O que vê? Sente o sol que entra pela janela. Quantas dobras o pensamento produziu naquele momento em que seu corpo estava controlado? Sentindo aquela imagem, fotografamos a superfície no desejo de também habitar aquela terra. *

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No entanto, conforme já dissemos, o território sofre processos de rupturas e abalos constantes que chegam de todos os lados. Terremotos e erupções que deslocam crianças e professoras de seus modos de produzir currículos. Crianças que fabulam e põem em suspensão a estabilidade do território escavam o solo e nos convidam a habitar uma Nova Terra. O território vai, assim, sofrendo seus abalos “da camada central à periferia, depois do novo centro à nova periferia, passam ondas nômades ou fluxos de desterritorização que recaem no antigo centro e precipitam para o novo” (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 88).

Olhar e sentir esses movimentos tornase um processo de afecção dos corpos que pisam a terra-escola, por isso precisamos provocar o olhar, tensionar para que vejamos outras virtualidades em meio a tanta massificação da vida. Refletir como o território está em movimento constante, do centro à periferia, do novo centro à nova periferia, é um eterno movimento da terra, por isso a “[...] desterritorização é o movimento aberrante da terra” (LAPOUJADE, 2015, p. 41). É preciso olhar: “Ora, o olhar, se insiste (e ainda mais se perdura, atravessa, com a fotografia, o tempo), o olhar é sempre virtualmente louco: é ao mesmo tempo efeito de verdade e efeito de loucura” (BARTHES, 2012, p. 102). Sentir as imagens e o território é, de alguma maneira, pensar nas suas fragilidades, é 12

enlouquecer o pensamento e buscar, nas linhas moleculares e linhas de fuga, o movimento aberrante da terra. É dançar com os movimentos que a terra produz e simultaneamente produzir abalos no território, pois “[...] não são os homens e os animais que se desterritorializam sobre a terra, é a própria terra que se desterritorializa através do homem e dos animais que nela se desterritorializam” (LAPOUJADE, 2015, p. 41). Essas rupturas produzidas fazem com que o território passe por processos de desterritorialização. O caos toma conta, abalos de todos os lados criam outras possibilidades para caminhar sobre a terra. Mundos inimagináveis passam a ser


atualizados. “A desterritorialização não é, portanto, um movimento do qual se toma distância da terra, mas sim aquele do qual se vai ter com ela e segui-la, através do qual se cavalgam as forças” (LAPOUJADE, 2015, p. 41). Esses movimentos aberrantes produzidos ajudam-nos a pensar múltiplas possibilidades de habitar outros mundos na escola e buscar nos processos de criação e fabulação das crianças. Contudo, em meio a tanto processo de massificação e vida e manutenção do território, é possível habitar a Nova Terra? Como sentir os movimentos aberrantes produzidos pelas crianças? As crianças têm muito a nos ensinar. Elas são cartógrafas, traçam mapas intensivos e extensivos, questionam os mecanismos de controle e fabulam outro mundo. E se elas fotografassem a escola? Quais terras poderíamos habitar com os seus olhares? Precisamos buscar, na fotografia das crianças, as brechas, fissuras, dobras que nos indiquem a instabilidade do território, na possibilidade de habitar essa Nova Terra. Problematizar o constante movimento do território-escola consiste justamente nas invenções e fabulações das crianças que fazem com que este território sofra abalos, fissuras, dobras. Assim, “[...] as territorialidades são, pois, atravessadas, de um lado a outro, por linhas de fuga que 13

dão prova da presença, nelas, de movimentos de desterritorialização e reterritorialização” (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 71). Por isso, mesmo que haja muitas linhas molares que anseiam pela manutenção do território, existem outras linhas moleculares que se entrecruzam pelo plano de imanência, buscando a diferença. Embora seja difícil separá-las, elas compõem a vida em suas ramificações duras, maleáveis e em devir, criação e fabulação. É importante considerar, como nos ensina Carvalho (2019, p. 48), com base nos estudos de Deleuze, que o “[...] molecular como processo pode nascer no macro, como o molar pode se instaurar no micro”. Por isso, não existe uma lógica de contradição


entre molar e molecular, “[...] pois esses mesmos tipos de componentes estão em jogo num determinado espaço social e podem funcionar em nível molar, de modo emancipador e, coextensivamente, em nível molecular, reacionários ou microfascistas” (CARVALHO, 2019, p. 48).

Pousar o olhar sobre os acontecimentos da escola e refletir nas múltiplas possibilidades de mundos que podemos habitar, pensar sobre a territorialidade da escola e também problematizar qual(is) imagem(ns) do pensamento é (são) produzida(s) pelas relações de força que compõem o plano de imanência. Por isso, é preciso considerar que “[...] o plano de imanência não é um conceito pensado nem pensável, mas a imagem do pensamento, a imagem que ele se dá do que significa pensar, fazer uso do pensamento, se orientar no pensamento” (DELEUZE; GUATARRI, 1997, p. 53).

Nesse sentido, as imagens de escolas dançam e bailam nessas linhas que compõem o plano de imanência, e justamente refletir sobre o cruzamento dessas linhas e suas relações de força aponta-nos a importância de pôr nas nossas problematizações a força do olhar das crianças nas pesquisas sobre os currículos.

É evidente que há uma infinidade de planos que aspiram à atualização, mas é preciso considerar que “[...] a imagem do pensamento só retém o que o pensamento pode reivindicar de direito. O pensamento reivindica ‘somente’ o movimento que pode ser levado ao infinito” (DELEUZE; GUATARRI, 1997, p. 53). E quem pode definir o infinito? Quem ousa afirmar que tais práticas cabem nas escolas em detrimento de outras? Quais imagens de pensamento povoam o tempo de vida nas escolas? Quais currículos podem ser atualizados pelos registros das crianças? Que processos de desterritorialização a escola experimenta? Que tipo de fotografias as crianças podem produzir nas escolas? 14


A escola, em seus movimentos de re-des-territorialização, mostra-nos como há vida coletiva que cava o solo, sente o ar, se aquece com o sol e produz a Nova Terra. Um território que escapa a tudo que está dado, controlado, demarcado. A Nova Terra que se produz cotidianamente pelas bordas, pelas fronteiras, na periferia, pelos caminhos inimagináveis onde os corpos escapam a qualquer padronização sufocante, é capaz de deixar a vida fluir aos grandes estratos de captura. Eis então o que seria necessário fazer: instalar-se sobre um estrato, experimentar as oportunidades que ele nos oferece, buscar aí um lugar favorável, eventuais movimentos de desterritorialização, linhas de fuga possíveis, vivenciá-las, assegurar aqui e ali conjunções de fluxos, experimentar segmento por segmento dos contínuos de intensidades, ter sempre um pedaço de uma nova terra. (DELEUZE; GUATTARI, 1996, p. 24) [grifo nosso]. Se a Nova Terra é produzida ao mesmo tempo que os mecanismos de controle sobre os corpos, produzindo outros estratos, somos convidadas a pensar: De que maneira podemos fazer circular essa imagem menor da escola que compõe a Nova Terra para a educação infantil? A fotografia surge no desejo de vasculhar essas terras que são criadas pelas crianças nas escolas. Uma aposta estética e política de afirmar a escola pública como potência de produção de currículos diferenciais que escapam a qualquer tentativa de aprovisionamento latifundiário. Produzir a Nova Terra tem a ver com fazer uma aposta nas produções de crianças e professoras e afetar-se aos mundos possíveis que elas atualizam.

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Embora as virtualidades sejam atualizadas a qualquer momento, não conseguimos antevê-las ou antecipar o que vai acontecer, pois elas são da ordem do acontecimento, do devir. Quando uma virtualidade é atualizada, ela já está no plano real, e, em algum lugar, outras virtualidades se atualizam. Por isso, é preciso afirmar que a escola se metamorfoseia a cada instante. São marcas que ficam impressas nas paredes, riscos que tracejam desdobramentos pelo plano de imanência, cheiros que dão sentido às experiências, sons que bailam ritmados, luzes que estampam outras marcas e intensidades

que movimentam a terra-escola. O olhar, assim, busca as nuances, talvez algo não visto, mas sentido: um detalhe, um acontecimento, uma loucura, uma virtualidade que se atualiza e se realiza no plano de imanência e, em seguida, se vai, porque outra virtualidade atravessou um corpo buscando composição, atualização, e outra, e outra... Tais como nômades, as virtualidades tentam tensionar o pensamento para compor no plano atual, pois “[...] todo atual rodeia-se de círculos sempre renovados de virtualidades, cada um deles emitindo um outro, e todos rodeando e reagindo sobre o atual” (ALLIEZ, 1996, p. 49). É claro que, nos processos de afecção às imagens, sempre há uma camada que provocava mais o olhar: um corpo, uma luz, uma sensação, um movimento, uma fabulação, uma dobra. Queremos pensar com as crianças possibilidades de cartografar a Nova Terra que elas criam e problematizar a escola e os currículos mediante sua perspectiva. Isso seria possível? Como pensar a escola e os currículos com base no pensamento das crianças? Ou no seu registro fotográfico? De que maneira, poderíamos afetar-nos pelos mundos que elas criam e também dobrar o nosso pensamento? É possível criar mundos e currículos por meio da fotografia? A força está em pensar nos mundos possíveis que são fabulados, nessa Nova Terra e nos movimentos aberrantes que o território produz. Refletir como há uma infinidade de planos que se podem atualizar, ou não. A 16


potência das fotografias, nesse sentido, está em pensá-las como um elemento para problematizar o movimento da terra-escola. Como nos permitimos experimentar as fotografias? Damo-nos conta de que a experimentação fotográfica atravessa o processo de sua criação, mas que também afeta os corpos que se põem a fabular por meio delas? Propor, portanto, a multiplicidade do plano de imanência que se produz, cria e fabula é pensar assim: Não nos encontramos mais diante de um mundo individualizado constituído por singularidades já fixas e organizadas em séries convergentes, nem diante de indivíduos determinados que exprimem o mundo. Encontramo-nos agora diante do ponto aleatório dos pontos singulares, diante do signo ambíguo das singularidades, ou antes diante do que representa este signo e que vale para vários desses mundos, e, no limite, para todos, para além das divergências e dos indivíduos que os povoam (DELEUZE, 2009, p. 118). O movimento do território é produzido pelos corpos que cavam a terra, dobram o pensamento para outros possíveis, criam outros percursos. As fotografias podem ajudar-nos a pensar a problematizar o movimento da terra. Queremos habitar essa Nova Terra produzida e fabulada pelas crianças. Essa pode ser a grande força que a fotografia, pode

trazê-la para pensar a educação: produzir imagens que raspem, dobrem, rasurem as imagens clichês que buscam a massificação dos currículos e a rostidade das professoras e das crianças. É preciso entender que a rostidade não está ligada às aparências, mas aos modos como a máquina capitalística molda o homem de acordo com certos padrões 17

universais. Para David Lapoujade, refere-se a uma situação em que o homem – visto pelo ângulo do rosto – se expressa de acordo com uma determinada formação social, agindo sempre “[...] em conformidade com as palavras de ordem” (LAPOUJADE, 2015, p. 267), preso em agenciamentos limitados, como nos retratos e com suas molduras predefinidas.


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Um dia para ouvir histórias. Biblioteca preparada, crianças eufóricas, minicolchonetes espalhados pelo chão, professoras acompanhando as crianças. Logo que chegam, as crianças espalham-se pelo espaço, ocupam cada fresta. Querem ouvir, fabular e criar com as histórias. Deitam-se pelo chão. Respiram um ar diferente naquele espaço. Podem ser apenas crianças. Sem cobrança. Sem atividade. Um momento para o encontro com a arte literária. Uma professora quer, do mesmo modo, deleitar-se com as histórias infantis. E, do mesmo delas, esparrama-se pelo chão. Querem fabular juntas, atualizar múltiplas virtualidades e habitar mundos possíveis. * 18


Com fotografias produzidas pelas crianças, precisamos refletir: Para onde vai a docência? O que é uma aula? Como as infâncias compõem a escola? Quais currículos são criados? De que maneira podemos habitar essa Nova Terra na educação infantil? Ao tensionar o pensamento sobre esse tempo, podemos refletir sobre a maneira como “[...] os vaga-lumes desapareceram na ofuscante claridade dos ‘ferozes’ projetores [...]. Desapareceram nessa época de ditadura industrial e consumista em que cada um acaba se exibindo como se fosse uma mercadoria em sua vitrine, uma forma justamente de não aparecer”” (DIDI-HUBERMAN, 2011, p. 30-38).

É uma vida que se tece nas linhas que se entrecruzam ora como um novelo molar de massificação da vida, ora como alguma virtualidade que é atualizada pela diferenciação. Não é possível pensar a vida como um plano cartesiano, cujas forças são sempre cooptadas pelas tramas capitalísticas. Há uma multiplicidade de planos que se entrecruzam, e é evidente que os dispositivos de enunciabilidade e visibilidade (DELEUZE, 1998) tensionam o pensamento para a manutenção de uma imagem clichê. Entretanto, 19

quando o pensamento passa por uma diferenciação, uma violência, um rasgo, ele dobra-se, atualiza uma virtualidade, cujo mundo compossível a outros corpos passa do plano virtual para o plano real. Aproximar a fotografia da educação é pôr em suspensão as imagens que dão visibilidade e enunciabilidade a um modo cartesiano de pensar a vida. É resistir aos mecanismos de violência, controle e força e fabular uma escola em suas conexões rizomáticas. Por isso, é preciso refletir sobre as relações de saber e força que tensionam o espaçotempo escolar e problematizar quais imagens são atualizadas a todo o momento e de que forma elas podem (ou não) provocar em nós outros movimentos de pensamento.


Essas imagens são registros de instantes em um emaranhado de linhas que produzem a terra-escola. As fotografias são para nós uma aposta de pensar quanto a escola é produção de diferença, de multiplicidade, de

uma vida que cria, fabula, inventa, resiste. “Tais imagens podem nos [...] fazer pensar, refletir, suscitar debates, voltas ao real, ou contrário, escapes no imaginário” (SAMAIN, 2012, p. 25).

O que a foto de uma criança pode provocar no nosso pensamento? A escola como uma grupalidade está em constante processo de expansão. Corpos que anseiam por composição, habitam o espaçotempo escolar e criam um corpocoletivo intenso e fabuloso. Aproximar a fotografia da educação corresponde ao desejo de pensar a multiplicidade de olhares das crianças sobre a escola, afetarse pelos mundos possíveis que elas podem registrar com a fotografia e, mediante essas imagens, pensar essa Nova Terra que pode ser habitada. Nesse sentido, defendo a tese de que as experimentações fotográficas produzidas em um centro de educação infantil traçam, no plano de imanência, fabulações e invenções que transgridem a lógica de aprisionamento dos corpos. Assim, desejamos problematizar de que maneira as fotografias das crianças podem agenciar pensamentos na fabulação e invenção da Nova Terra. A possibilidade de fazer as fotografias circularem pelo centro de educação infantil mostra-se como um meio para refletir sobre criações e fabulações das crianças e como o território-escola produz sempre novos relevos com as suas invenções.

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Além disso, reconhecemos a importância de pensar uma pesquisa com as crianças. E as fotografias fotofabuladas pelas crianças tornam-se a possiblidade de habitar a Nova Terra. São nessas imagens fotográficas que fazemos a nossa aposta de pensar uma pesquisa com, pois é o modo de sentir, viver, fabular, inventar e descobrir a escola que elas poderão revelar e a infinidade de mundos possíveis que compõem a vida. O que mais desejamos é que essas fotografias circulem no pátio, nos corredores, nas salas de aulas, em espaços de formação de professores e, nesse encontro, a terra-escola fabule. Apostamos, assim, na possibilidade de produzir uma carto(foto)grafia, ou seja, alinhando metodologicamente à cartografia a fotografia.

Problematizaremos como as imagens de escolas e as fotografias podem suscitar no pensamento outros modos de pensar os currículos, as ensinagens e as aprendizagens. Gilles Deleuze, Félix Guattari, Barthes e Suely Rolnik serão nossos intercessores teóricos, ajudando-nos a refletir modos diferenciais sobre a escola e os currículos e, assim, a problematizar os movimentos aberrantes da terra, na possibilidade de habitar a Nova Terra na educação infantil.

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A luta para produzir pesquisas com as crianças e suas fotografias Esta revisão é de alguma maneira um desejo de pensar a força das pesquisas que apostam nas crianças e seus modos de produzir, criar e fabular o mundo. Pesquisadores que lutam contra as próprias certezas acadêmicas e buscam, com as crianças, meios, métodos, criações, cartografias, problematizações para pensar a escola. Pesquisas que apontam a potência das crianças e suas criações nos caminhos infinitos, para trilhar suas aprendizagens e habitar outros mundos. Ademais, crianças que resistem aos processos de contenção de seus corpos e fabulam a Nova Terra.

Escrevemos, portanto, com a força dos trabalhos selecionados, buscando, desse modo, “[...] lutar por uma nova terra, lutar por um povo por vir” (LAPOUJADE, 2015, p. 261). A luta pela nova terra está no desejo do pesquisador em fazer uma aposta estética e política nas fotografias das crianças e buscar, nessas produções, a força da diferença, da fabulação e da criação de mundos. Afinal, são as crianças, o povo por vir, que agenciam o território escolar, desterritorializam a terra e traçam linhas de fuga inimagináveis. Povo por vir que já está aqui.

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Portanto, interessa-nos nas seleções dos trabalhos buscar pesquisas que façam uma aposta nos modos de produção das crianças e apontem de que forma elas agenciam forças na escola, deslocam o pensamento dos professores, apontam a multiplicidade de mundos que podemos habitar e, de certa maneira, como os seus registros nos inquietam e simultaneamente nos mostram a possibilidade de pensar a escola nas produções que fabulam e acontecem no encontro, em comunidade. Nesse sentido, as fotografias produzidas por elas mostram-nos quanto a representação não interessa a esse povo por vir; são fotografias que deslocam o nosso pensamento, agenciam os modos como temos pensado a pesquisa com as crianças e geram em nós mais dúvidas do que certeza sobre a pesquisa com as crianças e os currículos.

São fotografias que agenciam o pensamento, nada representam, não descrevem nada, mas registram uma intensidade, uma luminosidade, um objeto, um afeto, um amor, uma saudade. São fotografias produzidas por mãos pequenas e com pensamentos que fabulam mundos imensuráveis. Crianças que manejam a câmera, o celular ou o tablet e registram algo que as afeta e pode afetar outros e outros corpos. Nesse sentido, realizamos a busca na Biblioteca Brasileira Digital de Teses e Dissertações, utilizando os seguintes descritores: crianças, fotografias e escola, selecionando um total de 205 trabalhos, no recorte temporal de 2015 a 2020. Após a leitura completa dos resumos e dos títulos, identificamos que 145 dos trabalhos recorrem à fotografia como um elemento de ilustração das suas pesquisas, como uma estratégia de metodológica de coleta/produção dos dados. Em 18 pesquisas, a fotografia é utilizada para discutir algum conteúdo disciplinar, como as disciplinas geografia, ciências, matemática e educação física. Nesses trabalhos, as fotografias aparecem como um elemento de descrição e representação de algum conteúdo, e não como um elemento de produção e reflexão sobre os modos de pensar das crianças: 17 trabalhos são pesquisas histórias; em 2 pesquisas, as fotografias foram produzidas pelas professoras; em 8 trabalhos, o documento não estava disponível; e em outros 8, repetiu-se a busca. 23


Considerando, portanto, esses elementos de descarte, selecionamos sete trabalhos para leitura completa, sendo seis dissertações e uma tese. Nessas pesquisas, a fotografia aparece como um modo de pensar as pesquisas com as crianças e são estas as protagonistas na produção das imagens. Os pesquisadores problematizam como crianças, produzem no centro de educação e recorrem aos seus modos de inventar, criar, fabular, para discutir o seu campo de problematização.

Para esta revisão, traremos como nossa reflexão o modo pelo qual as pesquisadoras apostam na criança como protagonista, lugar que elas ocupam no centro de educação, e de que maneira as suas fotografias ajudam a pensar uma escola que escape aos mecanismos de controle que aspiram por diminuir a sua potência vital de criação e fabulação. Isso nos ajudará a pensar como as produções das crianças, no centro de educação, dão possibilidades de criar currículos, aprendizagens, fabulações que fazem com que território-escola passe por processos de desterritorialização. 24


A pesquisa de Baiersdorf (2017) apontou como o trabalho com as crianças, por vezes, se torna desafiador diante dos discursos e das práticas que classificam e homogeneízam a vida. A pesquisadora objetivou “[...] analisar, segundo a ação social dos alunos, a experiência de educação integral em uma escola pública de Ensino Fundamental – Anos Iniciais” (p. 172). Para isso, acompanhou as práticas pedagógicas e o cotidiano das crianças que ficavam integralmente na escola.

Nesse sentido, traremos como ponto disparador das nossas reflexões a maneira pela qual as pesquisas apostam em uma pesquisa com as crianças e seu protagonismo. Pensar a força das crianças diante das práticas pedagógicas cotidianas que classificam e homenageiam tornase um elemento de luta para as pesquisadoras. Lutar por outro modo de pensar a pesquisa com as crianças e, ao mesmo tempo, apontar quanto a potência vital das crianças, por vezes, é contida pelos instrumentos que controlam seus corpos, mas, mesmo assim, elas criam fissuras no território e constroem outros mundos para habitar.

Nos percursos que ela trilhou pela escola, havia sempre uma aposta de composição com as crianças, uma aposta em acompanhar os modos pelos quais as crianças criam e inventam na escola. Ao acompanhar o cotidiano, a pesquisadora encontrou-se com algumas crianças que a levaram a algumas reflexões e problematizações.

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Joel, Daniel e Raimundo são algumas das crianças que desafiam o sistema de ensino, convocam as professoras a pensar as próprias práticas, tensionam o sistema escolar, burlam os mecanismos de controle, “não aprendem”, dizem “eu não gosto de nada na escola” (BAIERSDORF, 2017, p. 289). “Examinando o que eles criticavam em sua escola, encontramos rastros de uma experiência escolar desejada e que se manifestava com atitudes contrárias ao ensino ministrado” (ibidem, 2017, p. 285). Rastros de uma vida que aponta a busca pela Nova Terra. Rastros de uma vida que gosta da escola, dos amigos, dos professores, dos

encontros. São crianças que apontam e criticam os modos pelos quais a escola se compõe e, a um só tempo, dão pistas de como podemos produzir outra escola. E são as fotografias e as narrativas das crianças que dão possibilidades de ver as práticas culturais que elas produzem e de sentir o que criam e o que esperam da escola. A pesquisadora destaca: “Mesmo que as fotos nada dissessem sobre suas experiências, continuaríamos apostando na possibilidade de mapear através delas conexões entre a escola e os temas geradores, à espera de serem descobertos” (BAIERSDORF, 2017, p. 168). As fotografias, desse modo, tornaram-se disparadoras de enunciados e fizeram com que a pesquisadora descobrisse os afetos que estavam na escola, na localidade, pela casa, pelos lugares que elas habitam, pela natureza, pelos animais, pelos brinquedos. Evidenciou que, “[...] por traz dos registros fotográficos, havia as histórias de peraltices, descritas como brincadeiras. Eram rememoradas nos relatos de quando as amizades haviam sido iniciadas ou na explicação sobre a circunstância em que as fotos foram produzidas” (p. 332).

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O encontro das crianças com a fotografia produziu nelas meios, caminhos, percursos, para pensar nas infinitas possibilidades de produção de uma vida na escola. A autora destaca “[...] que as imagens capturadas e convertidas em narrativas sobre dignidade pelas crianças da Capoeira mostraram-se autênticas produções culturais, revelando autorias transgressoras das relações sociais de opressão” (BAIERSDORF, 2017, p. 359). Diante das fotos produzidas, “[...] as crianças compartilhavam uma expressão curiosa e alegre, endereçada ao mundo de hoje. Suas narrativas estiveram abertas para a produção de outra realidade, imaginativamente requerida e transformada ludicamente” (ibidem, 2017, p. 359).

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As fotografias, desse modo, revelaram alegria e magia pela vida, mesmo diante de uma realidade dura. Os relatos das crianças e as fotografias produzidas por elas indicaram outras possibilidades de viver a vida. A pesquisa, portanto, aponta-nos a força das crianças, para pensar outros meios e fabular a vida, mesmo diante das linhas que tentam assegurar a estabilidade do território.


*

O que vê o menino no carrinho? O que vê o fotógrafo que registra o encontro do menino com o carrinho? Não vemos os seus olhos, nem o do menino nem o do fotógrafo, mas podemos sentir a emoção, a curiosidade, o mundo que se pode criar no encontro. Quantos meninos observando um carrinho não temos na escola? Escondidos atrás de uma mesa, o que querem nos dizer? *

28 Dani olhando seu carinho (BAIERSDORF, 2017, p. 333)


Beling (2017, p. 42) objetivou “[...] investigar o que as crianças da préescola revelam acerca das práticas pedagógicas que experienciam no contexto de uma escola pública municipal de Educação Infantil de Santa Maria/RS”. A autora faz uma aposta no trabalho com crianças e, para isso, destaca como a metodologia com as crianças tem sido produzida pelos pesquisadores, de diferentes maneiras. Nesse sentido, Beling (2017, p. 43) afirma que “[...] o campo de pesquisa com crianças ainda traz muitas limitações quanto à escolha teórico-metodológica e a elaboração de ferramentas que superem a visão do adulto sobre a criança”. Com isso, ela aponta a importância “[...] de pesquisas que considerem as crianças como sujeitos de experiência, capazes de opinar e comunicar sobre

situações que fazem parte da sua vida” (ibidem p. 43). Aproximar-se das crianças e de seus modos de produção ajuda-nos a pensar no seu protagonismo no espaço escolar. Vale destacar que “[...] as crianças se mostram ativas e criativas durante os momentos de brincadeiras e interações, até mesmo, quando a rotina escolar lhes pede passividade” (BELING, 2017, p. 87). Sensibilizar o olhar e o sentir com as crianças refere-se, portanto, a pensar como elas driblam os 29

mecanismos de controle e criam outros modos de composição.


Esses modos de classificar as fotografias das crianças apontam como cada criança registra imagens ante aquilo que as afeta. A pesquisadora destaca que o espaço mais fotografado foram os brinquedos da pracinha. Segundo Beling (2017, p. 83), este é “[...] um lugar de experiências e brincadeiras e interações, de diversão de contato com a natureza, e nos levam a refletir sobre a importância desses espaços nas escolas de Educação Infantil”.

As fotografias, nesse sentido, fazem uma aposta estética e política de composição com o pensamento das crianças, buscando, no seu protagonismo, os afetos com a escola. Ademais, Beling (2017, p. 81) esclarece: “Os registros fotográficos feitos pelas crianças foram divididos em quatro grupos: os que revelam detalhes; os que registram pessoas adultas e crianças; os que mostram o encanto em explorar a máquina; os que mostram espaços ou brinquedos da pracinha”.

Há de se destacar, nesse sentido, como as crianças indicam o desejo por espaços de liberdade, criação e fabulação. Os pátios ou pracinhas trazem a experiência de criar para além das tramas e rotinas que compõem a escola. Com as fotografias nesse sentido, Beling (2017) teve a possibilidade de investigar com as crianças as práticas pedagógicas cotidianas e os registros da pracinha, os quais evidenciaram quanto as crianças buscam pela liberdade, e não por espaços que controlem a sua força vital.

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*

Sombra, grama, folhas, brinquedos. Quantos espaços de liberdade há na escola? O que sente a criança, ao deparar com esse espaço e produzir o registro fotográfico? Quantas brincadeiras, descobertas, aventuras, fabulações ela experimentou? O que sente o corpo, ao registrar uma lembrança? Será que a criança, ao realizar o registro, se vê correndo pela tela da câmera? Que mundos ela poderá fabular?

Pracinha (BELING, 2017, p. 83)

*

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Na pesquisa de Ciardella (2019), as fotografias das crianças foram o elemento principal na de produção de dados de pesquisa, pois “[...] na busca por métodos de investigação que possibilitasse o conhecimento e a valorização da infância e da criança elegeu-se a fotografia como instrumento metodológico capaz de convidar as crianças a elaborar, investigar e criar representações acerca das suas experiências escolares” (CIARDELLA, 2019, p. 8). Foi assim que, por meio dos registros fotográficos, a pesquisadora encontrou meios, caminhos, percursos, para produzir os dados da sua pesquisa, que objetivou “[...] contribuir com elementos para aprofundar as reflexões sobre o currículo proposto para o Ensino Fundamental de nove anos visto na relação com as infâncias, tomando por base aquilo que as crianças escolhem como elementos identificadores da escola e de suas práticas” (CIARDELLA, 2019, p. 8).

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Nesse sentido, ao propor uma pesquisa com as crianças, é necessário problematizar como carregamos práticas cotidianas por meio da visão do adulto, e não dos modos pelos quais as crianças produzem no mundo. Ciardella (2019, p. 170) conclui que, “[...] independente da autorização ou validação dos adultos, as crianças estão realizando o tempo todo pesquisas sobre os contextos nos quais estão inseridas”. Isso nos ajuda a pensar como as crianças criam e fabulam mundos, independentemente dos processos que buscam constantemente rotulá-las ou controlá-las.

Na produção dos dados, Ciardella (2019) identificou que precisaria aproximar-se das crianças antes das produções fotográficas e, para isso, encontrava-se com as turmas e permanecia com elas nos momentos de intervalo. A pesquisadora destaca que essa aproximação mostrou a necessidade de pensar sobre a importância de ser um “adulto atípico”, no intuito de sair de um lugar de autoridade e controle sobre as crianças e ocupar um lugar onde as crianças pudessem “[...] dividir seus olhares, suas formas de entender e agir no mundo” (ibidem, p. 54). Com isso, destaca que “[...] conseguimos acessar dados muito particulares sobre o que fazem ‘por trás dos adultos’ e, até mesmo, impressões que circulam entre eles sobre os adultos da escola” (ibidem, p. 62).

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As fotografias produzidas pelas crianças dão pistas sobre essa produção e as conexões que criam fogem das tramas escolares que tentam aprisioná-las. São fotografias de detalhes, de elementos da natureza, das outras crianças, dos professores, das atividades impressas nos cadernos, da vista da janela, das brincadeiras, das “coisas quebradas da escola”, dos brinquedos, dos espaços físicos da escola. As fotos revelam a produção das crianças em todos os cantos, desde as salas de aula com fotos atividades produzidas nos cadernos até as fotografias dos espaços de brincadeira livre pelo pátio. Os espaços de liberdade das crianças estão nas fotos que tiravam das brincadeiras, nas sequências de imagens de algum brinquedo, ou de um buraco na fechadura. Fotografias que foram revelando os sentidos de escola e de currículo vivido e produzido pelas crianças.

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*

Uma aranha no buraco da fechadura.. Uma escuridão Abre-se uma fresta.. O que se vê? Um olhar que busca ver outros mundos! Um sentir que habita mundos em devir.. *

“Esconderijo da Aranha”, criança do 1.º ano (CIARDELLA, 2019, p. 114).

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um lugar de protagonismo diante dos modos de criar e produzir no mundo. Nesse sentido, a pesquisadora objetivou “analisar as percepções das crianças de cinco anos sobre a Escola de Educação Infantil” (ibidem, 2019, p. 14). Para isso, identificou que “[...] é preciso ter interesse pelo que se passa entre as crianças, procurar o significado nelas e não nos adultos. O desafio metodológico desta pesquisa foi em desenvolver um olhar e uma escuta atenta e sensível ao diálogo com as crianças” (ibidem, 2019, p. 38).

A pesquisa de Machado (2019) aponta que as concepções de infância e criança têm se modificado ao longo do tempo e tais reflexões “[...] resultam em novas formas de se entender e tratar os sujeitos infantis” (MACHADO, 2019, p. 21). Isso corresponde a dizer que as crianças têm saído de um lugar de passividade e passado para ocupar

A pesquisa, nesse sentido, aponta a importância de aproximar-se das crianças para pensar meios para problematizar a escola mediante suas percepções. 36


Nesse sentido, a pesquisadora destaca que é preciso mostrar que as crianças são capazes de refletir sobre aquilo que vivem e experimentam na escola, que elas indicam o próprio modo de aprender, nos apresentam as suas potencialidades e podem tornarse investigadoras e propositoras de alternativas. Para tanto, além das rodas de conversa e das aproximações com as crianças, Machado (2019) destaca que fotografias serviram para “[...] que as crianças sentissem este compromisso e o protagonismo delas na produção destas imagens” (ibidem, 2019, p. 45).

Machado (2019) ressalta que as fotografias produzidas pelas crianças correspondem a espaços em que elas se sentem felizes, em especial o pátio. Problematiza que “[...] as crianças optaram por fotografar o que acreditam ser positivo nas suas relações com a escola [...], a fotografia para elas teve um papel de ilustrar a ‘felicidade’ na escola” (ibidem, 2019, p. 70). Isso nos ajuda a pensar como as fotografias abrem brechas, fissuras e possibilidades para pensar as relações de afeto com a escola, com os currículos. As crianças, ao transitarem com uma câmera, buscam espaços que dão possibilidade de liberdade, espaços para fabular e habitar outros mundos. Querem registrar os momentos de brincadeira e mostrar quanta vida há no movimento potente do seu corpo.

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Nesse sentido, Machado (2019, p. 84), conclui “[...] que as crianças têm muito a nos dizer. Elas sentem a necessidade de mostrar suas ideias pré-estabelecidas [sic] ao mesmo tempo em que querem e estão dispostas a compartilhar, aprender, interagir. Uma é diferente da outra, com um manifesto anseio de serem ouvidas [...]”. Além do mais, mostrar os mundos que as afetam e produzem.


*

O menino que fotografa o brinquedo.. O brinquedo que fotografa no corpo do menino.. Quanta intensidade, fabulação, acontecimentos.. Liberdade para brincar.. Liberdade para inventar.. Liberdade para criar.. Liberdade para fotografar.. *

38 O brinquedo (MACHADO, 2019, p. 67)


Lima (2015, p. 21) buscou “[...] verificar a potencialidade do uso da fotografia no processo de aprendizagem da criança em idade pré-escolar”. A pesquisadora destaca a importância de introduzir as tecnologias educacionais (TE) no trabalho pedagógico com as crianças e, nesse sentido, aposta na “[...] fotografia como um dos meios de expressão de linguagem das crianças, inserindo a tecnologia do dia a dia, desde o uso de máquinas fotográficas, celulares para fotografar até os computadores” (LIMA, 2015, p. 35). Com isso, a inserção das TE nas práticas cotidianas com as crianças possibilita que se aproveitem as tecnologias que elas mesmas já utilizam fora do ambiente escolar e, ao mesmo tempo, deem oportunidade de aproximar dos equipamentos àquelas crianças que não têm acesso às tecnologias. À vista disso, fotografar a escola proporciona uma possibilidade de expressão de linguagem das crianças e também uma intimidade com o mundo tecnológico em que estamos inseridos. Assim, a aproximação da criança com o equipamento tecnológico e as fotografias produzidas por elas possibilitam pensar o lugar de protagonismo que elas podem ocupar nas práticas pedagógicas cotidianas. Isso porque “[...] transformar as crianças em autoras 39

de suas fotografias foi um fator interessante e novo para elas, pois no cotidiano escolar estavam acostumadas em [sic] serem retratadas em suas atividades escolares pela professora” (LIMA, 2015, p. 77).


Lima (2015) destaca que as crianças se envolveram nas produções das fotografias e, majoritariamente, preferiram produzir selfs de si mesmas, de seus colegas e das professoras. Para a autora, as fotografias produzidas pelas crianças comprovam que passa pelo fotógrafo a interpretação do real. Isso quer dizer que o olhar do fotógrafo sobre o mundo é construído e é resultado dos filtros culturais que podem ser caracterizados pela sua sensibilidade, bagagem cultural e história de vida. Fotografar, portanto, não caracteriza apenas o fato mecânico de registrar um momento; as fotografias produzidas pelas crianças apontam os modos pelos quais elas produzem no mundo.

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Pensar como as crianças produzem no mundo possibilitou que Lima (2015), ao realizar rodas de conversas com as crianças com base nas fotografias produzidas por elas, concluísse que “[...] a interpretação da criança em relação às imagens fotográficas é bem diferente das interpretações do adulto. Elas não se preocupavam se suas análises estavam corretas e sim, expressavam de forma natural o que estavam sentindo” (Lima, 2015, p. 90). As fotografias, assim, tornaram-se meios para ver com os olhos das crianças.

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Branca de Neve Mascarada se Olhando no Espelho (LIMA, 2015, p. 99).

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*

A menina que vê o reflexo no espelho. A fotógrafa que carto(foto)grafa o seu reflexo. Dois mundos refletidos que se entrecruzam.. se dobram.. se fotografam *

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RADECK (2019, p. 15) parte deste princípio: “[...] desenvolver pesquisas com crianças devese, em certa medida, pela compreensão de que não se podem tomar decisões estritamente baseadas na opinião de adultos quando quem vai usufruir do resultado é a criança”. Nesse sentido, a autora luta por produzir pesquisa em que as crianças apontem os modos pelos quais criam, interagem e podem modificar o espaço escolar, objetivando, assim, “[...] analisar de que maneira as percepções das crianças sobre as relações educativas da sua escola podem auxiliar (ou não) na melhoria da instituição de educação da qual fazem parte” (ibidem, p. 15).

As crianças, portanto, ocupam um lugar de centralidade em suas problematizações, e, para além de pensar na criança como protagonista na sua relação educativa, a pesquisadora discute a importância de trazer o mundo da criança para a produção dos dados. Nesse sentido, destaca que, ao incluir instrumentos tecnológicos para a coleta/produção dos dados de pesquisa, “[...] assumese que nossas crianças pequenas fazem parte de uma cultura digital, onde o celular, o tablet e computador estão entre os recursos utilizados por elas, podendo, inclusive formalizar as possibilidades de recolha e análise de dados” (RADECK. 2019, p. 41). As fotografias, assim, tornaram-se uma possibilidade para registrar as afecções com a escola, e a pesquisadora orientou que 44


fotografassem o que gostam na escola e o que não consideram tão legal. Radeck (2019, p. 54) destaca: “A busca pelo melhor ângulo, o ponto a ser fotografado, as trocas entre as crianças, as dúvidas que elas tinham sobre a sua foto, fazem parte de um processo de interação resultando em dados para pesquisa”. Com base nas produções das crianças e nos modos pelos quais elas criam espaços de interação e enunciam as suas percepções sobre a escola, ora destacando aquilo de que gostam, ora evidenciando os processos pelos quais as suas potências são capturadas.

Nesse sentido, a pesquisadora conclui que, ao incluir a percepção das crianças, é possível investir na reorganização do espaço escolar, como também pensar de modo efetivo na formação de professores, pois, como as opiniões das crianças, elas destacaram a necessidade de ampliar espaços que privilegiem o movimento e o contato com a natureza, além de espaços que “[...] possibilitem o faz de conta, contribuam com a construção de relacionamentos saudáveis, atentem-se para a funcionalidade e estética de espaços e objetos, incluam recursos tecnológicos como o tablet”” (RADECK, 2019, p. 110). E, por fim, “[...] SIM, é possível melhorar a escola a partir da opinião das crianças” (ibidem, 2019, p.110). 45


RADECK (2019, p. 54)

*

Pequenos pés escondidos que caminham para algum lugar! Quais percurso já trilhou? Por onde caminhou.. Fotografou o percurso! Para onde foi? Quem sabe!? * 46


Campos (2017) buscou discutir a infância, a hipervisualidade e ensino de artes e culturas visuais. Para tanto, seu objetivo foi “[...] refletir sobre a produção de fotografias e audiovisuais na educação infantil” (Ibidem, p. 6). A pesquisa discute que as telas, câmeras e tevês fazem parte da vida das crianças e, ao mesmo tempo, problematizam como as crianças são afetadas pelas produções midiáticas que são veiculados pelos equipamentos. Diante do bombardeio de imagens que as crianças recebem, Campos (2017, p. 46) destaca que a “[...] presença da arte contemporânea na educação passa a ser urgente, com o objetivo de mostrar um contraponto”. Considerando, desse modo, a importância de aproximar as crianças de outros produções imagéticas, o pesquisador destaca que, quando se abre “[...] espaço para práticas artísticas como o desenho ou a fotografia, abre-se, também, espaço para outra forma de expressão que se constitui em um tempo diferente, que não exige respostas imediatas, efêmeras e conclusivas tão presentes nos diálogos” (CAMPOS, 2017, p. 46). É a possibilidade de criar outros mundos, permitir-se experimentar a vida em suas múltiplas possibilidades e apostar nas crianças como protagonistas 47

de seu processo de aprendizagem. É produzir imagens que espacem uma massificação e se abram para aquilo que afeta o pensamento das crianças. Por isso, é importante pensar a pesquisa com as crianças, reconhecendo os modos pelos quais elas criam e produzem no mundo. Todavia, Campos (2017) problematiza que, nas relações que estabelecemos entre criança e adultos, é comum que expliquemos como as atividades devem ser executas e destaca que evidenciamos a forma certa de fazer. Ele salienta: “Ainda é difícil reconhecer nas salas de aula o pensamento de fazer junto com a criança, permitindo-se o educador a compartilhar do tempo e da satisfação da brincadeira da criação artística” (ibidem, 2017, p. 49).


Apesar de o trabalho de Campos (2017) trazer problematizações sobre as artes visuais, o pesquisador faz uma aposta em pensar com as crianças e seus modos de pensar, destacando: “Mesmo com a forte presença do mercado que procura massificar, homogeneizar e padronizar a constituição das culturas infantis, a presença de formas alternativas de estar no mundo serve para a criação de novas relações das crianças consigo mesmas e com os demais” (CAMPOS, 2017, p. 59). Nesse sentido, as fotografias tornam-se uma aposta para pensar as produções das crianças, reconhecendo-as “[...] como autores das imagens que veem na sala de aula, causando assim um deslocamento da posição de espectadores e consumidores, para produtores ativos, que desde

crianças são protagonistas, produtores de culturas infantis, compartilhadas com seus pares, sua turma, escola e região” (CAMPOS, 2017, p. 52). As fotografias passam a servir de experimentações com as crianças, em que elas realizam os registros e posteriormente essas imagens são projetas para pensar o universo das imagens e das fotografias com elas. Apoiado em suas problematizações, Campos (2017) conclui que é importante “[...] investir em produções audiovisuais com crianças de outros grupos sociais, étnicos, etários, de outros hábitos e, portanto, produções que mostrem outras formas de estar no mundo e outras relações com a imagem” (CAMPOS, 2017, p. 100).

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Sala de aula! Plantas? Onde estão as carteiras, a chamada, os murais? Vasos, janela! Semente que germina. Terra que nutre! Criança que fotografa!

Fotografias das crianças. De perto e de longe na sala de aula (CAMPOS, 2017, p. 70).

Fotografia que semeia.. *

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Depois da leitura dos trabalhos selecionados, identificamos que todos as pesquisas reconhecem a importância de produzir pesquisa com as crianças. Além disso, evidenciam a importância de pensar com elas as práticas pedagógicas cotidianas, pois, como discutido por Baiersdorf (2017), Beling (2017), Ciardela (2019) e Machado (2019), é necessário que os adultos se aproximem das crianças e suas produções para pensar a escola, os currículos e suas aprendizagens. Pensar uma pesquisa com as crianças e de que modos elas criam, produzem e fabulam o mundo não apenas trata de uma descrição daquilo que fotografam ou dizem. É preciso permitir-se afetar-se aos mundos que elas criam. Pensar com, criar com, fabular com, devir com, fotografar com as crianças. É assumir que elas habitam outro

mundo mais intensivo, capturam os detalhes, registram fotografias em que seus corpos sentem a liberdade para viver, criar, amar. Todas as pesquisas destacam que o lugar em que as crianças preferem produzir as fotografias é de espaços em que elas sentem liberdade: é sempre a pracinha, o parquinho, a brinquedoteca. E aproximar-se das produções das crianças em busca da Nova Terra perpassa pelo desejo de afetar-se por aquilo que afeta o

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corpo das crianças e prolonga-se nas fotografias.

Nesse sentido, o trabalho com as crianças caminha para outras possibilidades, quando assumimos que os dados de uma pesquisa estão nos modos como criam e pensam o mundo. E, em um mundo que almeja pelo controle dos corpos, dos currículos, das crianças, aproximar a educação da fotografia produzida pelas crianças é uma afirmação de composição com a intensidade da vida infantil, é acreditar na força inventiva das crianças que lutam pela nova terra e por um povo por vir.

Lima (2015), Radeck (2019) e Campos (2017) trazem para a problematização a questão das tecnologias educacionais (TE) na educação e a maneira como as crianças estão imersas no mundo da tecnologia. Todavia, os pesquisadores concordam que, apesar dessa aproximação das crianças com os aparelhos eletrônicos, nem sempre disponibilizamos o equipamento para que elas produzam as fotografias sem um compromisso ou protocolo a ser seguido. Dar acesso às crianças as máquinas fotográficas e/ou câmeras para produzir as fotografias produz nas relações entre adultos e crianças um compromisso político em produzir, junto, uma ética no trabalho com as crianças e uma estética da existência nas fotos que elas produzem. 51


A terra-escola em suas transformações e o movimento nômade das crianças Há quem acredite que os pés que tocam a terra pisam solo firme. Existem também aqueles que, quando encontram um obstáculo no caminho, vislumbram que dar a volta por ele é suficiente para seguir e ir adiante. Caminhar sob o solo pode aparentar certa estabilidade, uma segurança. As linhas molares que tentam sedimentar a terra aspiram a um modelo, a grandes latifúndios, a uma conformidade social – uma máquina territorial (DELEUZE; GUATTARI, 2010) que visa garantir a solidez da terra. Quem olha e sente as imagens de escola pode acreditar que o território é sempre o mesmo: aquele momento de entrada e saída da escola, a pedagoga ao portão, as professoras aguardando nas salas, as crianças seguindo o caminho riscado no chão pelas repetidas vezes que seus pés marcam a superfície; ou os momentos de roda entre crianças e professoras, músicas, histórias, combinados, chamadinha, em que corpos ficam sentados e compactam o solo; as atividades que, muitas das vezes, se repetem a cada ano, mãos e pés de crianças carimbados nas folhas A4, copie seu nome como na ficha, marque com círculo a 52

letra “R”, pinte de amarelo o triângulo. São imagens que aparentemente se repetem e buscam condicionar o território a um modelo, a um formato, a uma terra segura para ser habitada. Há, assim, práticas discursivas que apostam que a terra é um grande latifúndio molar. Sob essa ideia de padronização da vida, a força vital das crianças também é capturada, normatizada. Não será difícil perceber quanto as crianças são projetadas para um futuro inalcançável ante um modelo idealizado. Aspira-se para elas a um mundo mais justo, mais ético. Ditam-se os conhecimentos, as linguagens mais importantes, e, com esses monocurrículos, apontamos qual caminho devem seguir. Para assegurar essa padronização, a psicologia do comportamento é


incorporada às práticas pedagógicas, e as crianças são rapidamente enquadradas em etapas do desenvolvimento cognitivo. Ancorados nesses modelos, os currículos são pensados para as crianças; afinal, acredita-se saber exatamente qual terra elas precisam habitar. Aos currículos cabe apenas seguir uma lista de conteúdos ou uma pista de corrida que, de tanto marcá-la no chão, é possível seguir sempre aquele percurso; às crianças cabe seguir a demarcação e uma próxima etapa. O controle sobre os corpos das crianças está na quantificação daquilo que aprendem; para os currículos está no território curricular que foi compactado para que todos pisem ao mesmo tempo e do mesmo modo. Nas escolas, esses regimes de controle transcorrem de forma permanente, e estão, na “[...] avaliação continuada, o abandono de qualquer pesquisa da Universidade, a introdução da ‘empresa’ em todos os níveis de escolaridade” 53

(DELEUZE, 2010, p. 226). Não será difícil imaginar modelos de escola, de crianças e de currículos. São as imagens clichês que nos assombram e dizem respeito a essas estratégias de controle dos corpos. Por isso, “[...] talvez não seja exagero sugerir que, para entender uma determinada sociedade, devemos olhar não apenas para as imagens que produz sobre si mesma, mas também para sua própria relação com a fotografia e a produção de imagens” (ZYLINSKA, 2019, p. 11). Se pararmos para pensar um pouco sobre as imagens de escolas, de alguma maneira


aquelas que sobressaem em nosso pensamento assumem uma rostidade. São imagens que atravessam os tempos e buscam insistentemente afirmar quanto a escola é lugar de um pensamento uniforme, cujas crianças são representações de um mesmo modo de aprender, as professoras um mesmo jeito de ensinar e os currículos como os conteúdos massificados. Há, portanto, uma imposição sobre as maneiras de ser, quando a subjetividade precisa se enquadrar em um modelo. E, sempre que algo escapa, a rostidade é convocada para que a multiplicidade se organize. Nesse sentido: “Os rostos não são primeiramente individuais, eles definem zonas de frequência ou de probabilidade, delimitam um campo que neutraliza antecipadamente as expressões e conexões rebeldes às significações conformes” (DELEUZE; GUATTARI, 1996, p. 36).

É patente que, em um mundo carregado de regimes de verdade, dentro de uma sociedade de controle, raspar as imagens clichês e produzir outra coisa não é uma tarefa fácil. Ainda mais porque essas imagens clichês tendem, a todo o momento, manter-se em evidência. Há uma tentativa constante de rostificar as crianças no jeito de ser, de brincar, de criar, de aprender, de falar, de amar. Todavia, é preciso considerar que há uma infinidade de outras linhas virtuais que

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se entrecruzam no plano de imanência e produzem uma vida. Isso nos leva a pensar: “[...] O espaço escolar não se refere a um local de passagem e transição (do passado ao presente), nem a um espaço de iniciação ou socialização (da família para a sociedade). A escola é um meio sem um fim e um veículo sem um destino determinado” (MASSCHELEIN; SIMONS, 2013, p. 35).


Por isso, precisamos considerar que, por mais que se aspire a certa linearidade e padronização das escolas, sempre há uma indeterminação que “[...] torna possível a manifestação da diferença enquanto liberada de toda subordinação” (DELEUZE, 2018, p. 246). Assim sendo, para problematizar a escola, os currículos e as infâncias, é preciso transpor uma lógica universalista e tensionar o pensamento sobre os movimentos de liberdade que são criados e fabulados. Por isso, precisamos habitar a terra, relacionarse com ela e lidar o tempo todo com seus processos de territorializações, desterritorializações e reterritorializações.

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Percorrer a terra é assumir a sua natureza nômade, seus movimentos aberrantes, terremotos, erupções, escavações, rotação e translação; é sentir as suas variações, suas ondas, seus abalos; é tornar-se sensível às imagens; é sensibilizar o olhar e, no movimento nômade da terra, deslocar-se para a Nova Terra, convocando os povos por vir (DELEUZE; GUATTARI, 2010); é, de certa maneira, viver na fronteira, o que corresponde a “[...] viver simultaneamente em espacialidades e temporalidades diferentes no presente da vida cotidiana, por isso mesmo é viver além... (CARVALHO, 2009, p. além...” 108); é recusar viver mediante uma linearidade progressiva e apostar nos movimentos aberrantes da terra; é apostar


em movimentos nômades que deslizam sob a terra e desterritorializam o pensamento; é fabular a Nova Terra com as crianças e apostar nas fotografias como meios para transpor uma lógica de heterogeneidades e afirmar a força da diferença nas escolas. Talvez as crianças sejam as grandes visionárias da Nova Terra; elas são especialistas em produzir zonas de liberdade, criar e fabular outros mundos. Elas raspam a imagens clichês, questionam as prescrições, interrogam o controle e nos mostram como a Nova Terra pode ser habitada. Elas são um conjunto de potência devindo, borrando os dispositivos de controle, já que sua marca são as intensidades

que as compõem. Nos devires que criam em seu imaginário, as experimentações que degustam e as linguagens que fabulam, experimentam as intensidades

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dos signos em seus corpos. São cartógrafas e criam mapas intensivos e extensivos que forçam o território à produção de outros mundos possíveis. Elas balançam a terra, riscam o solo, cavam buracos e tais quais os ramículos do rizoma criam conexões inimagináveis, lembram o inesperado, ensinam-nos que a intensidade da vida está em desterritorializar a terra.


*

A mão que toca a massinha toca o pensamento. O currículo que se enrola, se espicha, se quebra, se transforma, se dobra pelas mãos das crianças mostra-nos a força da diferença na produção de vida. A criança, sentada à mesa com o corpo controlado à espera do final do dia: cria mundos com a massinha. *

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A marca das crianças são as intensidades em que vivem com seus corpos, por isso podem entrar em diferentes sintonias e delas sair, além de realizar diferentes conexões em que vivem, pois para elas não há fronteiras, são corajosas ao experimentarem a vida. Elas nos lembram o tempo todo que ser criança não é questão de faixa etária, é questão de intensidade, de experimentar a vida pelo tempo aion. Habitam diferentes mundos concomitantemente, criam territórios que daqui a pouco se dissipam e logo fabulam outro e outro. É o movimento nômade da terra que está aqui e acolá, que inventa e fabula no encontro entre os corpos, pois o nômade se espalha, ramifica, irradia, seu movimento é de expansão. Para ele, “[...] é a desterritorialização

que constitui sua relação com a terra, por isso ele se reterritorializa na sua própria desterritorialização. É a terra que se desterritorializa ela mesma, de modo que o nômade encontra aí um território […] Ele é o vetor de desterritorialização” (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p. 56).

força da diferença para pensar a escola como um espaçotempo coletivo, que está sempre em processo de

des-territorialização.

As crianças aceitam habitar a terra como uma aventura que se compõe em devires, permitem que seu

corpo descubra as experiências, explorando o ambiente e os percursos que compõem o seu pensamento. São ousadas a viver viagens nômades, capazes de transportar para diferentes universos incessantemente, ao sabor de suas experiências cognitivas e afetivas. Elas adentram os grandes latifúndios curriculares, criam novos caminhos, dobramse em meio às linhas molares que tentam conter os seus corpos, ensinam-nos a 58


O pensamento, das crianças flui pela intensidade do seu corpo, elas pensam falando. Em suas experimentações, embarcam em paixões, em aventuras, nas novidades, nas aulas que produzimos com elas, nas tintas que oferecemos, nas cores das paredes, nas imagens dos desenhos infantis, nas conversas dos adultos, nas luzes que iluminam a sala e na luz do sol que adentra por uma fresta, no movimento do ventilador, na gota d’água que pinga na torneira, nas estampas das roupas. A criança é o que se liga nos trajetos que produz; inventa a própria língua, expressando aquilo que sente e vê; recusa-se a compor com as mesmas proposições de currículo estáveis e uniformes, arrastando-os para outras percursos, abrindo outros caminhos e habitando em outras terras. 59

Para o adulto, é difícil compreender o pensamento das crianças, já que preferimos os caminhos a seguir, gostamos de sedimentar e compactar o solo; as crianças, ao contrário, preferem os percursos, cartografam os próprios caminhos, produzem a si mesmas, constroem as próprias linguagens, assinalam seus conhecimentos movimentando o corpopensamento em afetos e afecções. Elas produzem e caminham pelo terreno movediço, equilibram-se, pulam, saltam e, quando algo tenta controlar seu corpo, remexem a terra e produzem outra coisa.


Entretanto, a criança cronológica tornar-se-á adulto um dia, enquadrar-se-á nesse agenciamento maquínico de subjetividades que a sociedade e as instituições nos impõem, mas o devir-criança é a resistência a esses agenciamentos, e a criança sobrevém ao adulto, que ri do inesperado, que se afeta por signos simples, que passa a cartografar outros modos de existência, se permite afetar e ser afetado pelos encontros, pelos trajetos moleculares, “é o próprio devir que é a criança [...] a criança não se torna adulto; [...] a criança é o devir-jovem de cada idade” (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p. 70). Portanto, o devir-criança não é uma questão de fingir ou imitar uma criança, mas de tornarse criança para “[...] inventar novas forças ou novas armas” (DELEUZE; PARNET, 1998, p. 5), pois “[...] as crianças são rápidas 60

porque sabem deslizar entre” DELEUZE; PARNET, 1998, p. 27). Apostamos que o devir-criança é potência para pensarmos a infância, em que aspiramos a uma produção de agenciamentos que extraem do fundo da imagem dogmática do pensamento a diferença, inventando novos mapas para nossos processos curriculares. O devir-criança, portanto, é um ato revolucionário, uma atividade cartográfica de se afetar e ser afetado, de se permitir trilhar percursos moleculares diante dos fluxos molares presentes nas escolas; de aprender com as crianças e fabular com elas currículos nômades e aventureiros que desejam trilhar e fazer com que a terra se movimente. Sendo assim, apostamos que, para construir


relações com as crianças, é preciso fazer emergir em nós o devir-criança, para sensibilizar-se aos mundos que elas criam e para ser possível habitar a Nova Terra que elas fabulam. Por isso, é preciso afetar-se nas imagens que elas produzem, cartografar com elas fotografias de escolas que raspam os dispositivos de controle, cavam na terra outras apostas de produção de vida nas escolas, apontam quão movediço é o terreno que pisamos. Logo, as manifestações de liberdade produzidas por elas podem ser sentidas no turbilhão de agenciamentos que compõem a escola, cujo caos corta o plano de imanência, desloca o pensamento e nos convida a observar outra coisa, um cheiro, um risco,

um som. Mas os corpos estão tão controlados e vigiados, que essas virtualidades que, a todo o momento, se atualizam passam despercebidas. Pôr em circulação fotografias pelas tramas que tecem as linhas de vida da escola é quase que “[...] sacudir os corpos de professores e estudantes como forças coletivas” (CARVALHO, 2019, p. 1056). É deixar que as fotografias das crianças desloquem o nosso pensamento e a terra-escola sofra abalos no encontro com esses registros. Por isso, precisamos problematizar de que maneira as fotografias das crianças forçam o nosso pensamento para uma postura política ativa perante a vida. Carvalho (2019, p. 1056), com base nos estudos de Rolnik, nos esclarece que, [...] tanto no campo macropolítico como no micropolítico, os corpos atuam de modo reativo ou ativo. O modo reativo significa professores com uma postura individual, o que resulta em acomodação ao colonialismo capitalístico, visto tratar-se de uma postura de dentro-do-sujeito, sem uma visão política mais ampla. O modo ativo, entretanto, pode ser suscitado pela mudança de perspectiva deflagrada por outra estética da experiência de educar e de se educar contra o conservadorismo, o que só é possível como acontecimento coletivo. Por isso, é preciso refletir quanto a escola é espaço de produção de vida, onde crianças e professoras movimentam o território escolar e criam outro 61


modo de pensar os processos de educação diferenciais, mesmo diante da contenção de seus corpos. Pode até ser que, nesses regimes, “[...] a criança já não poderá ser pensada separada do aluno” (KOHAN, 2003, p. 95). Mas como cartógrafas que são, elas sempre rompem com o que as vigia e as controla, indicam sua insatisfação e criam mundos, fabulam. Nesse sentido, pensamos que há uma infinidade de virtualidades que habitam espaçotempo escolar, esperando atualização, desterritorializando a terra, criando movimentos aberrantes e mostrando o movimento nômade da terra. A questão é esta: De que maneira podemos habitar a Nova Terra a partir das fotografias das crianças?

Provocar o pensamento sobre as múltiplas possibilidades de produção curricular com as crianças é problematizar como as práticas cotidianas não conseguem se enquadrar em discursos que classificam, prescrevem, uniformizam e massificam os modos de produção daquelas que criam e fabulam na escola. É discutir como os movimentos curriculares comuns tensionam as tramas da maquinaria capitalística, que aspiram à manutenção das imagens e do individualismo de um currículo massificado e verticalizado. 62


É preciso afetar-se em algo que nos atravessa, parar um pouco, ouvir o silêncio e movimentarse. Cada imagem é povoada por intensidades, acontecimentos, agenciamentos cujas atualizações podem furar os “clichês visuais” e permitir que outros mundos sejam habitados. Assim, “[...] a imagem se transforma inteiramente, sai de seu quadro, passa em outra coisa,

embora permaneça nela mesma” (LAPOUJADE, 2015, p. 299). É claro que cada corpo, em seus processos de subjetivação e individuação, atualiza imagens que se alinham aos mundos que afetam o seu corpo, ou seja, são da ordem do pensamento clichê e também da criação e da fabulação. Por isso, queremos que fotografias das

crianças circulem pela escola, e com essas imagens menores pensar os mundos possíveis que podem ser fabulados. Fabular mundo-escola com as intensidades das crianças e cartografar os currículos que elas criam, sentir com elas a instabilidade do território escolar.

Pensar a força da fotografia nas linhas de vida que crianças e professoras experimentam na escola é um desejo de provocar o olhar com imagens produzidas por seus corpos em outras intensidades, outras temporalidades. É, do mesmo modo, refletir de que maneira os currículos atravessam zonas de contágio e podem habitar mundos inimagináveis. É apostar nas infâncias como “[...] intensidade, um situar-se intensivo no mundo; um sair sempre do ‘seu’ lugar e se situar em outros lugares, desconhecidos, inusitados, inesperados” (KOHAN, 2007, p. 95). Quais efeitos a fotografia de uma criança pode produzir na terra-escola? De que maneira as fotografias das crianças podem funcionar como uma máquina de guerra e fabular a Nova Terra? 63


Todavia, é preciso entender que não há um dualismo cujas forças tangenciam o controle e outras que aspiram à diferença. Essas relações estão sempre em conexão, contagiando-se. Precisamos, ao perscrutarmos essas relações de força, problematizar as fotografias produzidas por crianças e refletir como estas podem nos ajudar a pensar os currículos produzidos na escola. Por isso, precisamos entender que estamos sempre experimentando processos de desterritorialização. O próprio rizoma, por vezes, pode comportar processos de redundância que são o próprio decalque. Uma multiplicidade tem os próprios estratos que se enraízam em unificações e totalizações. Mas o inverso também é verdadeiro: [...] O decalque já produziu o mapa em imagem, já transformou o rizoma em raízes e radículas. Organizou, estabilizou, neutralizou as multiplicidades segundo eixos se significância e de subjetivação que são os seus.. Ele gerou, estruturou o rizoma, o decalque já não reproduz senão ele mesmo quando crê reproduz outra coisa. Por isso ele é tão perigoso. Ele injeta redundâncias e as propaga (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 31-32, grifo nosso). Desse modo, o currículo transforma-se. Mas é inevitável que o anseio pelo currículo impregnado pelas imagens clichês decalcados impere nas relações escolares. O decalque é codificado e decodificado pelas imagens produzidas por crianças e professoras. 64

A aposta de pensar uma pesquisa com é buscar nas fotografias essas conexões de força que atravessam os corpos, nos convidam a habitar a Nova Terra e apontam o movimento do currículo que atravessa de uma atividade decalcada e fabula outro mundo.


Nesse sentido, o entre ou meio não se referem a algo unitário ou ao meio que passa constantemente de um meio para outro, mas são os meios que passam um no outro. É um movimento nômade que está aqui e acolá, se inventa e fabula, movimenta a terra, que se desterritorializa e territorializa e desterritorializa e... e… e... pois o nômade se espalha, ramifica, irradia, seu movimento é de expansão, porque para ele “[...] é a desterritorialização que constitui sua relação com a terra, por isso ele se reterritorializa na sua própria desterritorialização. É a terra que se desterritorializa ela mesma, de modo que o nômade encontra aí um território […] Ele é o vetor de desterritorialização” (DELEUZE; GUATTARI, 1997. p.56).

São currículos que fazem morada em múltiplos espaçostempos, habitam as salas de aula, os corredores, o refeitório, as brincadeiras pelo pátio, se expandem para fora da escola e para dentro dela. O currículo, assim, atua como nômade, ele transita em todos os lugares, está nas imagens clichês e também nas imagens fabuladas das crianças. Por isso, é sempre um caminho entre, pelos meios, uma experimentação que se expande molecularmente e pode traçar linhas de fuga, cujas atualizações furam os clichês e apontam outros possíveis.

Nas relações que crianças e professoras estabelecem, elas criam agenciamentos e fazem com que o currículo derive para processos que não se podem prever: é o devir que pede passagem. É preciso refletir sobre os modos de produção da escola e como as imagens fotografadas pelas crianças podem caminhar de um clichê a uma diferenciação, sofrendo momentos ora de captura, ora de 65


criação, invenção e fabulação, e podem novamente ser capturadas a qualquer momento. Isso quer dizer que há um constante movimento pelo território-escola. Por isso, não podemos assumir a imagem do território como um desenho com seus contornos, preso a identidades fixas, em uma suposta estabilidade que se mantém firme contra ameaças externas. O próprio território está em constante movimento, ele é um lugar de passagem de forças e fluxos em trânsito. Isso quer dizer que ele não é um simples local onde o acontecem os fatos; o território constrói-se de forma dinâmica, mas ao mesmo tempo

que ele é atravessado por um emaranhado de forças, ele mantém a sua organização. Com Deleuze e Guattari (1995), pensamos o território como um agenciamento coletivo, em que o grupo busca assegurar certa estabilidade e localização. Todavia, esse território sofre abalos, fissuras, linhas de fuga que o entrecruzam e faz com que o homem, por exemplo, saia do seu território, sofrendo, assim, a desterritorialidade, ou seja, deslocando para outro ponto, e, nesse deslocamento, há a reterritorialização. “As territorialidades são, pois, atravessadas, de um lado a outro, por linhas de fuga que dão prova da presença, nelas, de movimentos de desterritorialização e reterritorialização” (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 71). A noção de território aqui é entendida num sentido muito amplo, que ultrapassa o uso que fazem dele a etologia e a etnologia. Os seres existentes se organizam segundo territórios que os delimitam e os articulam aos outros existentes e aos fluxos cósmicos. O território pode ser relativo tanto a um espaço vivido, quanto a um sistema percebido no seio da qual um sujeito sesente ‘em casa’. O território é sinônimo de apropriação, de subjetivação fechada sobre si mesma. Ele é o conjunto de projetos e representações nos quais vai desembocar, pragmaticamente, toda uma série de comportamentos, de investimentos, nos tempos e nos espaços sociais, culturais, estéticos, cognitivos (GUATTARI; ROLNIK, 1996, p. 323). 66


O território, portanto, é um agenciamento1 e ele extrapola todos os

Todos esses elementos coexistem com outras forças que agenciam o território nos encontros e desencontros que se criam, e m s e u s r i t m o s d e v e l o c i d a d e e l e n t i d ã o produzidos pelos corpos, nos sons, cheiros, trajetos, ranhuras e forças que circulam pelo território e fazem com que sobrem abalos e fissuras. Pelas linhas de força que atravessam e constroem o território, especificar os elementos que o constroem não é suficiente para conhecê-lo. É preciso movimentar o pensamento para afetar-se nos elementos que se conectam, assumindo as múltiplas camadas ou platôs que o agenciam, nas suas linhas duras, maleáveis e em devir e as relações que elas estabelecem entre si. Por isso, “[...] não nos interessamos pelas características; interessamo-nos pelos modos de expansão, de propagação, de ocupação, de contágio, de povoamento” (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p. 20).

espaços geográficos. Isso nos ajuda a entender que tudo pode ser agenciado e também pode ser desterritorializado e reterritorializado. Por isso, o territórioescola constrói-se com as forças que o compõem – isso quer dizer que ele antecede as bases e alicerces do prédio. Ele se constrói por meios das forças que concebem a escola, nos dispositivos de enunciabilidade e visibilidade que constituem a maquinaria social. Isso quer dizer também que o território-escola também se organiza com sua arquitetura e a vizinhança que o recebe.

1

“Todo Todo agenciamento é, em primeiro lugar, territorial.A primeira regra concreta dos agenciamentos é descobrir a territorialidade que envolvem, pois sempre há alguma: dentro de sua lata de lixo ou sobre o banco, os personagens de Beckett criam para si um território. Descobrir os agenciamentos territoriais de alguém, homem ou animal: ‘minha casa’. (...) O território cria o agenciamento. O território excede ao mesmo tempo o organismo e o meio, e a relação entre ambos; por isso, o agenciamento ultrapassa também o simples ‘comportamento’ (...)” (DELEUZE; GUATARRI, 1997, p. 218).

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Nesse sentido, o território é composto por imagens de escolas que, do mesmo modo, são atravessadas por linhas duras, maleáveis e em devir. Todavia, como já mencionamos, o olhar se vicia, congela ante as mesmas fotografias de escola que se repetem, um hábito do olhar que marca repentinamente as práticas cotidianas. Todavia, quando lançamos a olhar o território-escola pela potência de vida em devir das crianças, podemos assumir o desejo de sair, escapar desse olhar viciado e problematizar a força política ativa da escola mediante os registros fotográficos das crianças.

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Nessa dinâmica, é preciso pensar sobre as intensidades que compõem os corpos e de que modo elas podem impregnar as imagens de seus significados nos seus processos de individuação e subjetivação. Isso nos ajuda a pensar como “[...] as possibilidades fotográficas são praticamente inesgotáveis. Tudo que é fotografável pode ser fotografado. A imaginação do aparelho é praticamente infinita. [...] o fotógrafo caça, a fim de descobrir visões até então jamais percebidas (FLUSSER, 2009, p. 32). É evidente que essas fotografias transitarão por uma imagem decalcada, mas podem passar por processos de diferenciação e ramificar-se para outros possíveis. É preciso assim discutir a força da fotografia no centro de educação infantil, pois precisamos assumir que as intensidades de vida que atravessam os corpos são variadas e, portanto, a produção dessas fotografias tende ao infinito. Todavia, mais do que isso, visualizamos a força de fazer a fotografia circular e movimentar o pensamento de crianças e professoras na produção de uma comunidade expansiva que pode habitar a Nova Terra.

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Fotografias e crianças: fabular a Nova Terra

As fotografias podem suscitar em nós a possibilidade de criar, fabular e habitar outros mundos e também sustentar a manutenção de um pensamento uniforme, uma imagem clichê. E, quando aproximamos a fotografia da escola, o que ela produz no nosso pensamento? E se as fotografias fossem produzidas pelas crianças? Fazer uma aposta nas fotografias com as crianças é refletir o modo pelo qual elas podem agenciar outras composições curriculares, ver algo não visto, sentir uma intensidade que pode atravessar outros corpos. É refletir como “[...] o acontecimento nos faz ver aquilo que uma época tem de intolerável, mas faz também emergir novas possibilidades de vida” (LAZZARATO, 2006, p. 12). No encontro com um signo, uma linha de fuga, damos passagem a outros modos de sentir, ver e agenciar forças que movimentam o território. Mas é claro que o mundo

impregnado das imagens clichês busca suprimir modos diferenciais de criar e fabular, aspira evidentemente que as mesmas fotografias sigam refletindo. No entanto, mesmo que as tramas capitalísticas se esforcem incansavelmente na manutenção de uma imagem clichê, “[...] o mundo regular homogêneo da representação envolve singularidades a partir das quais ele se desdobra e se desdobra como diverso” (ZOURABICHVILI, 2016, p. 126-127). Contudo, é preciso dizer que perscrutar essas imagens não é uma tarefa fácil, pois, quando aproximamos a fotografia da educação, as imagens clichês vêm de sobressalto, cujas

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explodir no rosto de quem a olha” (BARTHES, 2012, p. 105).

representações indicam certa linearidade e padronização. Não será difícil imaginar as imagens que estão impressas nos livros didáticos, as imagens das salas de aula, das filas ou dos refeitórios, as fotos que buscam compor o relatório de avaliação das crianças na educação infantil. Se talvez alguma fotografia escape a algumas normativas estéticas, pode ser que busquemos alguma narrativa clichê para aquela imagem. “A sociedade procura tornar a Fotografia sensata, temperar a loucura que ameaça constantemente

É necessário, assim, pensarmos o clichê. Deleuze (2007, p. 31), com base em Bergson, esclarece que “[...] não percebemos a coisa ou a imagem inteira, percebemos sempre menos, percebemos apenas o que estamos interessados em perceber, ou melhor, o que temos interesse em perceber, devido a nossos interesses econômicos, nossas crenças

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fotografia da escola, podem vir de sobressalto imagens de salas de aula com as carteiras enfileiradas, ou as filas de entrada e saída para as aulas, imagens de crianças na coordenação, ou de crianças pelo pátio. De modo geral, há um tipo de imagem que representa a escola, a docência, os currículos e as crianças. São essas imagens que circulam majoritariamente.

ideológicas, nossas exigências psicológicas”. De maneira geral, percebemos apenas clichês. É a busca do pensamento por certa centralidade, na manutenção de determinado território, cujos esquemas sensório-motores ditam certa maneira de se comportar, o que esperar, o que reproduzir, sob a lógica de uma poderosa organização da opressão (DELEUZE, 2007). Isso quer dizer que “[...] a imagem clássica do pensamento, a estriagem do espaço mental que ela opera, aspira à universalidade. Com efeito, ela opera com dois ‘universais’, o Todo como fundamento último do ser ou horizonte que o engloba, o Sujeito como princípio que converte o ser em ser para-nós” (DELEUZE; GUATTARI, 2012, p. 51).

Ademais, mesmo que alguma imagem desloque um tipo representação, pode ser que busquemos alguma narrativa para exemplificar e inserir aquela imagem no contexto escolar. É um componente direcional que busca o centro do território. Nesse caminho, podemos ser surpreendidos com imagens de crianças e professoras brincando, acompanhadas de uma

Esse componente direcional (DELEUZE; GUTARRI, 1997) corresponde àquele pensamento que, em meio ao caos, busca a direção do centro, do ponto, de uma representação, algo que seja possível suportar ou aprovar. Se aproximamos a

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narrativa que tenta estabelecer justificativas pedagógicas ou psicológicas para aquele momento e fotografias de momentos de fila. Caso alguma criança não se ponha no seu lugar, rastreiam-se elementos para justificar o seu comportamento; e, se lançamos o pensamento para outras provocações, logo algo direciona o pensamento a uma ideia padronizada.


*

Quem pode afirmar que os corpos estão sempre controlados e os currículos são sempre decalcados, cartesianos? Se a fotografia nos pode ajudar a pensar nesses agenciamentos, é preciso olhar e sentir as linhas de vida que essas fotos podem suscitar no pensamento. Essa poderia ser uma fotografia de um passeio qualquer organizado pela escola. A menina presa pelo cinto de segurança queria algo a mais, aspirava ver outros mundos. A menina quer fabular? Quais currículos podemos encontrar no encontro com a fotografia? *

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Usualmente operacionalizamos as fotografias, imagens capturadas em meio a um turbilhão de agenciamento, e, mesmo assim, “[...] nos esforçamos para fixar nele o ponto frágil para o centro” (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p. 123). É uma vontade de explicar as imagens, racionalizá-las e enquadrá-las em representações clichês, mantendo o território no centro. Por isso, “[...] os clichês visuais não têm outro efeito senão suscitar por associações clichês linguísticos naquele que olha” (DIDI-HUBERMAN, 2017, p. 37). As imagens, assim, não nos dizem nada, pois, no encontro com elas, é que precisamos nos dar ao trabalho de lê-las,, ou seja, decompô-las, dobrá-las, distanciálas, fabulá-las dos “clichês

Requer de nós um deslocamento do pensamento; um caminhar nômade pela terra. Sendo assim, “[...] o trabalho da arte é, portanto, jogar com a ambiguidade das semelhanças e a instabilidade das dessemelhanças, operar uma redisposição local, um rearranjo singular das imagens circulantes” (RANCIÈRE, 2003, p. 34). Por isso, é um equívoco acreditar que, quando registramos um momento do cotidiano por meio da fotografia, há alguma coisa isenta de neutralidade ou uniformidade: “[...] A superfície já está investida

virtualmente por todo tipo de clichês com os quais tornase [sic] necessário romper” (DELEUZE, 2007, p. 19). Se, no encontro com a fotografia, deslocamos o nosso pensamento, produzimos outra coisa sem metáforas, “[...] faz surgir a coisa em si mesma, literalmente, em seu excesso de horror ou de beleza, em seu caráter radical ou injustificável, pois ela não mais de ser ‘justificada’, como bem ou como mal” (DELEUZE, 2007, p. 31). Nesse sentido, precisamos considerar que “[...] cada fotógrafo é vedado à sua maneira. Os

linguísticos” que suscitam enquanto “clichês visuais” (DIDI-HUBERMAN, 2017). No entanto, romper com um clichê não é uma tarefa fácil, pois “[...] é muito difícil criar uma imagem pura, não manchada, apenas uma imagem, atingindo o ponto em que ela surge em toda sua singularidade sem nada guardar de pessoal, nem de racional” (LAPOUJADE, 2015, p. 291). 74


caminhos tortuosos do fotógrafo visam driblar as intenções escondidas nos objetos. Ao fotografar, ele avança contra as intenções da cultura [...]. Decifrar fotografias implica, entre outras coisas, o deciframento das condições culturais dribladas” (FLUSSER, 2009, p. 29).

No encontro com as fotografias, talvez paremos um pouco para nos perguntar: “[...] O que meu corpo sabe da Fotografia?” (BARTHES, 2012, p. 17). Neste mundo carregado pelas telas, por imagens que transitam na palma da nossa mão, Barthes (2012) nos ajuda a pensar sobre a fotografia. Para o autor, a foto pode ser objeto de três práticas (ou emoções ou intenções): “[...] fazer, suportar, olhar” (BARTHES, 2012, p. 17). A primeira é o fotógrafo ou operator, aquele que opera a câmera, é o seu corpo que sente aquele momento e, por processos de afeção com a imagem, registra aquela intensidade, “[...] ele olha, limita, enquadra e coloca em perspectiva o que ele quer ‘captar’ (surpreender)” (BARTHES, 2012, p. 18). O segundo é o spectator, que somos todos nós, que compulsamos pelas fotos impressas nos diferentes canais de comunicação; são aqueles que veem a imagem e buscam analisá-la. O Spectrum corresponde a tudo aquilo que foi fotografado, coisas ou pessoas, cujo sinônimo de algum é “o retorno do morto”. Esta expressão ganha força nos estudos de Barthes (2012), quando ele problematiza que, ao ser fotografado, aquele modelo sofre uma paralisia e a

Precisamos, assim, considerar que há intensidades subjetivas que atravessam os corpos, o que ajuda a entender que “[...] a vidência do fotógrafo não consiste em ‘ver’, mas em estar lá” (BARTHES, 1984, p. 76). Trata-se de pensar como a câmera se torna um aparelho para ver o mundo por meio de outros olhares, que trazem as suas marcas, os seus processos de subjetivação e individuação. Que esse olhar que vê e sente pela câmera está também impregnado de clichês, mas também de devir, invenção e fabulação. A questão é: o que nos faz escapar de um clichê? Ao sentir e ver uma foto, para onde o nosso pensamento é levado? O que a fotografia de uma criança pode nos sinalizar para a produção de vida na escola?

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emoção daquele momento único não pode voltar, apenas pode ser lembrado. Nesse sentido, Barthes vai propor “[...] uma teoria do corpo fotografado como spectrum e do detalhe fotográfico como punctum” (DIDI-HUBERMAN, 2020, p. 157). Se o spectrum corresponde ao que existe de fúnebre na fotografia, corresponde aquilo que já passou. Punctum é um detalhe, é aquilo que fere, corta, estilhaça. “Sinto que basta a sua presença para mudar a minha leitura, que se trata de uma nova foto que eu olho, marcada a meus olhos por um valor superior. Esse ‘detalhe’ é o punctum (o que me punge)” (BARTHES, 2012, p. 46). Punctum, unctum, portanto, corresponde a um detalhe, uma particularidade que varia de pessoa para pessoa e abala spectrador ferido; studium “[...] equivale à busca da significação, abordagem ‘aplicada’, cultural e até mesmo científica da fotografia” (DIDI-HUBERMAN, 2020, p. 157). Em outras palavras: studium corresponde a uma configuração que cada pessoa reconhece facilmente na fotografia, em virtude do seu saber e da sua cultura, ou seja, posicionase mais ao lado do fotógrafo; já punctum se põe ao lado do espectador.

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Pensar a fotografia depois dessas conceituações ajudanos a refletir as camadas que compõem as imagens que criamos, fabulamos e reproduzimos. As linhas de força que ora operam na captura do pensamento ao mesmo tempo podem romper, escapar, furar, rasgar o clichê. Nesse sentido, “[...] o que as imagens querem não é o mesmo que a mensagem que elas comunicam ou o efeito que produzem, não é sequer o mesmo que elas dizem querer. Como as pessoas, as imagens podem não saber o que querem devem ser ajudadas a lembrá-lo através do diálogo com outros” (MICHELL, 2017, p. 185).

a terra. “Por mais fulgurante que seja, o punctum tem, mais ou menos virtualmente, uma força de expansão. Essa força é frequentemente metonímia” (BARTHES, 2012, p. 49). Para o autor, há detalhes ou pontos que sobrepõem a imagem, dando um novo olhar e valor à foto, algo único àquele olhar. É um detalhe que sobressai ao seu olhar, chama a sua atenção e afeta aquele corpo de modo subjetivo; “[...] punctum é, de certo modo, entregar-me” (BARTHES, 2012, p. 47). entregar-me É como se, ao sentir um acontecimento na escola, as crianças que fotografam pudessem ver, registrar, eternizar e permitir que aquela intensidade habite em outros corpos. Pudessem produzir outros sentidos e criar modos outros de problematizar a escola, os currículos, as docências e as infâncias. Fazer circular essas fotografias é buscar outros focos de vida que podem ganhar visibilidade, ou, em outras palavras, que alguma força tensione o território e aponte a possibilidade de habitar outros mundos. As imagens são “[...] poços de memórias e focos de emoções, de sensações, isto é, lugares carregados precisamente de humanidade” (SEMAIN, 2012, p. 22).

É necessário, portanto, pensar nessas relações de força que a fotografia pode agenciar o pensamento, se studium busca um acerto comportamento ético, punctum “[...] pode ser mal-educado” (BARTHES, 2012, p. 47): ora como um movimento de captura, ora como picada. Nesse sentido, o conceito barthesiano de punctum ajuda-nos a refletir sobre as forças que movimentam

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*

Precisamos reconhecer que, ao vermos essa fotografia, logo identificamos: sim, é uma sala de aula! Visualizamos muitos elementos clichês que a caracterizam: se pudéssemos citar alguns, poderíamos destacar as carteiras em formato de filas, as crianças com seus cadernos em um eterno cópia a cópia, os adereços colados nas paredes. Mas há outras camadas que compõem essa fotografia. É possível ver e sentir para além dos clichês? Até podemos supor que as crianças apenas (re)produzem os comandos da professora na atividade infinita colada no caderno, mas o que importa aqui é pensarmos como romper com um clichê e produzir uma dobra no pensamento. *

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A fotografia, então, reúne e regula intermináveis pensamentos. É uma multiplicidade que nos faz dobrar sensações e deveres, cujos agenciamentos se organizam em um jogo de forças na produção de subjetividade e singularidades. Cartografar a fotografia com a escola, as docências, as infâncias e os currículos correspondem a compreender que há planos que se entrecruzam e se transformam em alguma outra coisa, sem direção e espaçotempo definidos. Isso nos ajuda a pensar como a escola transborda em infinitos acontecimentos.

Isso posto, é preciso entender que há uma subjetividade no olhar, quando não há como estabelecer limites para os sentidos que as imagens podem provocar nos corpos, nem muito menos assumir o que nos podem dizer, tampouco vislumbrar quais movimentos nômades poderão ser criados. A força da fotografia está nas lacunas que ela nos deixa, na insuficiência de dizer tudo. É um studim que, preocupado com a cultura e a ética, busca representar uma realidade e, a um só tempo, um puctum que escapa e se desterritorializa. Nesse sentido, a força da fotografia está na sua precariedade que a torna maior que um determinado contexto (ENTLER, 2012). 79

E, para nós, são essas lacunas, os meios, as dobras que nos mostram a força das fotografias na pesquisa com as crianças. É assumir que cada fissura no território se abre em possibilidades infinitas para pensar os currículos e que as escolas é uma aposta na fabulação dessas fotografias. Isso pode suscitar pensamentos, e criações de vida podem prolongarse, para que outros mundos sejam habitados. Por esse motivo, afirmamos que, no encontro com as fotografias e a escola, a docência, as infâncias e os currículos, podemos fabular, pois a criança embaralha os percursos. O pensamento dogmático, que porventura venha de sobressalto, é dissolvido, e criamos outros


mundos que se cruzam. É, de alguma maneira, assumir que “[...] todas as virtualidades inscritas no programa, embora se realizem ao acaso, acabarão se realizando, necessariamente” (FLUSSER, 2009, p. 65). necessariamente A questão está justamente em pensarmos de que maneira as fotografias podem agenciar o pensamento e produzir rupturas, picadas, rasuras, dobras em uma imagem do pensamento carregada de clichês. Nesse sentido, assumir os elementos conceituais que nos ajudam a pensar a força da fotografia como uma prática ética, estética e política, para problematizar a escola, o currículo, as docências e as infâncias, corresponde a pensar nos desdobramentos que podem suscitar no pensamento fotográficas produzidas pelas crianças. É, de alguma maneira, tentar romper com um clichê e deixar-se enlouquecer um pouco como o punctum,, produzir rupturas no território entre aquilo que está dado e o que podemos fabular.

um constante processo de sair do centro, criar dobras, questionar, deslocar e desterritorializar o pensamento em outros mundos. E, se, no encontro com uma fotografia, buscamos a representação, mais distantes estamos da fotografia da diferença, ou seja, dos esvaziamentos dos clichês, da repetição. É preciso cuidar para não cair na mesmice repetição.

Todavia, conforme já dissemos, não é uma tarefa fácil furar ou romper um clichê, não há método para isso; é preciso uma “longa preparação” (DELEUZE; PARNET, 1998). É 80


A fotografia nunca é paralisia, ela traz a capacidade de viajar sem sair do lugar. Por isso, nosso interesse é fazer fluir uma sensação para que seja possível transpor a lógica do sujeito cognoscente e contagiar-se por imagens fotográficas produzidas pelas crianças que nos podem ajudar a problematizar a escola e os currículos. Não nos interessa um pensamento ontológico sobre a fotografia, interessa-nos pensála como um dispositivo aberto à criação, um tipo de resistência que se abre à criação e à fabulação. Assim, o movimento que a fotografia nos convida é compor a diferença e deixar-se atravessar pelo sensível, pelo devir. Fabular, perder-se e descobrir no risco algo ainda não visto ou dito. É

perder-se pela terra com as fotografias produzidas pelas crianças, escapar daquilo que prende o pensamento a uma representação e buscar a força do pensamento nômade para habitar a Nova Terra. Nesse sentido, aprendemos com Deleuze e Guattari (2021, p. 51-52): [...] é fácil caracterizar o pensamento nômade que recusa uma tal imagem [estatal ou clássica] e procede de outra maneira. É que ele não recorre a um sujeito pensante universal, mas, ao contrário, invoca uma raça singular; e não se funda em uma totalidade englobante, mas, ao contrário, desenrola-se num meio sem horizonte, como espaço liso, estepe, deserto ou mar. Estabelece-se aqui outro tipo de adaptação entre a raça definida como ‘tribo’ e o espaço liso definido como ‘meio’ (DELEUZE; GUATTARI, 1997: 49).

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Desse modo, romper com os “clichês visuais” é, de certa maneira, “desobrigar” o olhar de uma repetição, ou daquela compreensão clichê de que a fotografia é uma representação da realidade. Devindo com a fotografia, buscamos o ponto “entre” o “meio”; é abandonar as certezas e as significações e experimentar a vida em seus múltiplos dobramentos. Por isso, não se trata de imitar o outro, mas de entregar-se ao movimento e fabular outra terra, devir, dobrar, criar...

e criadas. Fabulações fotográficas que rompem com a compreensão ou afirmação clichê e desterritorializam o campo das convicções, ironizam com as nossas certezas, e escavam outras possibilidades do que vemos e do que não vemos. É buscar, nas fotografias das crianças, a força dos agenciamentos coletivos na escola e de que maneira podemos compor uma escola onde a diferença aponte a possibilidade de

Desejamos afastar-nos das questões que buscam uma representatividade, mas buscar cartografias que são criadas nas singularidades, nas diferenças e nos pequenos movimentos que não nos obrigam a provar nem definir nada. Um movimento nômade com as fotografias que vasculham as dobras

habitar a Nova Terra.

e redobras e podem ser atualizadas 82


Carto(foto)grafias: fabulações do olhar e do sentir O fotógrafo, quando vai a campo, leva, em sua caixa de ferramentas, a câmera, lentes, rebatedor e difusor de luz, seu olhar, seus afetos. Com esses equipamentos, ele prepara-se, sente, olha e faz (*)grafia da superfície. Você pode até supor que capturar uma imagem corresponde a um registro de um instante que acontece e, ao posicionar a câmera, escolher certa luminosidade e dar uma focalização diz respeito apenas a algo meramente técnico ou mecânico. “O fotógrafo, como um acrobata, deve desafiar as leis do provável ou mesmo do possível; em última instância, deve desafiar as do interesse: a foto se torna ‘surpreendente’ a partir do momento em que não se sabe por que ela foi tirada” (BARTHES, 2012, p. 38).

Portanto, (*)grafar uma imagem não corresponde a esse registro instantâneo em que o fotógrafo estava, de certa maneira, determinado a ver. Há uma infinidade de linhas e forças em trânsito que atravessam o seu corpo. Mas a questão que nos inquieta talvez seja: Quais (linhas)grafias a fotografia revela? 83


Nas linhas de vida em que as fotografias são produzidas, há uma infinidade de forças e fluxos que tensionam o pensamento e fazem com que aquela imagem, carregada de potência afetiva, seja revelada. Mas é claro que aquela fotografia não se mostra plenamente para aquele que olha. Por isso, a fotografia nunca revela tudo nem revelará, pois os planos imagéticos que a compõem extrapolam uma percepção visual, uma vez que a memória, as temporalidades, os devires, os afetos e os perceptos tensionam o pensamento para fabular outros sentidos, habitar outros mundos. A fotografia, assim, é muito mais do que um simples produto ou o ato do fotógrafo em registrar a superfície. Não. Apostamos que a fotografia tem seus contornos éticos, estéticos e políticos, em que o corpo do cartógrafo produz deslocamentos para afetar e ser afetado e, é claro, também sofre movimentos de capturas de si no 84

mundo. A lente fotográfica, assim, registra fragmentos de ver e sentir, produzidos na passagem de afetos e nos movimentos de captura. Com isso, a fotografia aponta outras linhas em que, no registro de uma imagem de superfície, se une ao corpo do cartógrafo e faz com que a carto(foto)grafia revele os sentidos produzidos nos encontros com outros corpos. Em outras palavras: “Ora, a partir do momento que me sinto olhado pela objetiva, tudo muda: ponho-me a ‘posar’, fabrico-me instantaneamente um outro corpo, metamorfoseio-me antecipadamente em imagem” (BHARTHES, 2012, p. 18-19).


Talvez esta seja a grande questão para pensar nas carto(foto)grafias: De que maneira a fotografia pode revelar sentidos? Cartografar as imagens corresponde a pensar que elas não captam coisas, objetos, mas acontecimentos. E como isso é possível? Cartografar fotografias trata “[...] menos de narrar o acontecimento, que de testemunhar um aconteceu que excede o pensamento, não só por seu excesso próprio como porque é próprio do aconteceu em geral exceder o pensamento” (RANCIÈRE, 2003, p. 121).

Por isso, quando os corpos são atravessados por acontecimentos, pouco importa questionar: O que aconteceu? De que maneira chegamos a esse ponto? Quando começou? Quando algo acontece no plano de imanência e atravessa os corpos, criase outro modo de pensar as imagens de superfície, e a sua intensidade é (*) grafada de alguma maneira, pois “[...] um agenciamento, nesse sentido, é uma verdadeira invenção” (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p. 94).

85


*

É curioso pensar como crianças e currículos, de alguma maneira, aspiram à mesma coisa, querem criar, desatar as tramas que os prendem e buscar composições inimagináveis. Quem poderia imaginar que a história contada pela professora e projetada pelo retroprojetor se tornaria secundária diante do equipamento daquele luminoso? Seus corpos queriam tocá-lo, sentir a sua intensidade, sua energia. Fabularam perguntas e problematizações dos efeitos que aquele equipamento produziria em seus corpos-pensamentos. As crianças querem compor, experimentar, explorar; os currículos querem habitar mundos e afirmar que os conhecimentos estão em todos os lugares. * 86


As carto(foto)grafias são, de certa maneira, o desejo de pensar em um método que busque pelos acontecimentos, em que os corpos também queiram sentir as linhas de vida e as virtualidades que compõem as imagens em suas camadas. Nesse sentido, há simultaneamente uma vontade de tensionar o pensamento com a fotografias, utilizando-as “[...] como condição para que o outro deixe de ser simplesmente objeto de projeção de imagens pré-estabelecidas e possa se tornar uma presença viva, com a qual construímos nossos territórios de existência e os contornos cambiantes de nossa subjetividade” (ROLNIK, 2006, p. 2).

importante, mas, para sentir e olhar os acontecimentos, é preciso que ele recorra aos processos de afecção que transpassam em seu corpo. Por isso, não estamos aqui buscando uma interpretação ou representação para as fotografias, mas o que ela suscita em nossos pensamentos, seja do operator, seja do spectator (BARTHES, 2012). Nesse sentido, um elemento importante que o cartógrafo carrega em sua caixa de ferramentas é o desejo de levar o pensamento a zonas intensivas, na tentativa de agenciar vibrações, afetos, movimentos de velocidade e de repouso. Funcionando como ““afectologia, as pesquisas transformam o poder de afetar e de ser afetado; procedem a deformações inorgânicas; fogem da insegurança das formas construídas (clichês orgânicos); e lutam para permanecer no nível das intensidades instáveis (corpo sem órgãos)” (CORAZZA, 2013, p. 48). Em outras palavras: ““No No encontro, os corpos, em seu poder de afetar e serem afetados, se atraem ou se repelem repelem.. Dos movimentos de atração e repulsa, geramse efeitos: os corpos são tomados por uma mistura de afetos (ROLNIK, 2016, p. 31).

Nossa aposta metodológica está na cartografia, aliando-a à fotografia como um dispositivo para registrar olhares e sentidos. Por isso, a fotografia é muito mais que uma imagem fixa: ela é carregada de agenciamentos, camadas, que nos ajudam a pensar a escola e os currículos. Nesse sentido, cabe-nos perguntar: O que o pesquisador cartógrafo pode levar em sua caixa de ferramentas? É claro que a máquina fotográfica é um instrumento 87


Cartografar esses movimentos de atração e repulsa corresponde a pensar que os corpos no encontro com as fotografias, como operadores e/ou espectadores, podem agenciar uma infinidade de virtualidades, atualizá-las, ou talvez não seja o que mais interessa a esse momento de pesquisa cartográfico com as fotografias. Por isso, é preciso entender que, ao produzirmos uma fotografia, estamos mergulhados em meio a um turbilhão de agenciamentos. Dessa maneira, podemos afirmar que existe uma multiplicidade de planos que se entrecruzam, são linhas – molares, moleculares e de fuga – que se dispõem em movimentos imanentes e produzem o movimento da terra.

As linhas molares, moleculares e de fuga entrecruzam-se pelo plano de imanência. Ao produzirmos e/ou nos afetarmos por uma imagem, estamos impregnados por essas linhas que nos constituem. Sendo assim, cabenos pensar sobre elas: “A primeira espécie de linha que nos compõe é segmentária, de segmentação dura [...] espécies de direções, que nos recortam em todos os sentidos” (DELEUZE; PARNET, 1998, p. 146). Atravessando as linhas molares, as linhas moleculares são “[...]mais flexíveis [...]. Elas traçam pequenas modificações, fazem desvios, delineiam quedas e impulsos: não são, entretanto, menos precisas; elas dirigem até mesmo processos irreversíveis” (DELEUZE; PARNET, 1998, p. 146). Nessas linhas, ocorrem microdevires que, ao se romperem completamente, podem tracejar linhas de fuga, as quais surgem na ordem do acontecimento, sendo imprevisíveis e com direção desconhecida. Tornam-se, assim, potência criativa de outros modos de existência. “A linha de fuga é uma desterritorialização” (DELEUZE; PARNET, 1998, p. 49). Como uma desterritorialização, as linhas de fuga cortam o plano de imanência, cujas linhas molares e moleculares estão em processos cambiantes. “Isto significa que a linha de fuga é sempre transversal, que é quando ligadas transversalmente que as coisas perdem sua fisionomia, deixando de ser pré-identificadas por esquemas prontos” (ZOURABICHVILI, 2009, p. 61). São elas que criam problemas, um conceito, uma dobra e deslocam o pensamento para fabular currículos, docências e escolas. 88


A cartografia, como método, constrói-se durante a pesquisa, quando levamos em conta todas as linhas de poder e saber que rodeiam e compõem o plano de imanência. Isso corresponde a pensar que o cartógrafo revela os caminhos da pesquisa por meio das imagens que afetam o seu corpo nesse tracejar afetivo. Nesse caminhar, o desenho da pesquisa faz-se concomitantemente aos movimentos de transformação das paisagens. Por isso, no método cartográfico, tudo é traçado no e/ou por meio do plano de experiências no emaranhado de agenciamentos que surgem entre aqueles que percorrem e mergulham no campo de pesquisa. Ao caminhar e afetar-se pelas imagens que compõem a escola, “[...] o cartógrafo deve pautar-se numa atenção sensível, para que possa, enfim, encontrar o que não conhecia, embora já estivesse ali, como virtualidade” (KASTRUP, 2009, p. 49), que ganha existência, ao atualizar-se. Interessa-nos, assim, movimentar o pensamento com a força das fotografias produzidas pelas crianças, e os modos pelos quais elas, ao transitarem pela terra, produzem outros possíveis para pensar, com as suas fotografias, as escolas e os currículos. Estas fotografias podem agenciar o pensamento e fazer com que os “clichês visuais” sejam rompidos com o exercício metodológico da fabulação, dando passagem a macro e micropolíticas ativas para pensar os currículos. “É por isso que nossas fabulações devem se inserir no mundo para se tornarem reais. Fabulamos na medida exata em que as representações imaginárias ou delirantes podem se fazer passar por reais” (LAPOUJADE, 2010, p. 98). 89


Portanto, não é possível fixar um tipo de leitura para a fotografia. Abrimos passagem ao movimento nômade da terra que, no encontro entre as imagens, singularidades e subjetividades, pode proporcionar fabulação escolas e currículos, a qual se tona meio e método de atualização das virtualidades em passagem que, se atualizadas, tornam possível fabular os currículos nômades. No entanto, às vezes, “[...] é preciso cerca de cinco mil vaga-lumes para produzir uma luz equivalente à de uma única vela” (DIDI-HUBERMAN, 2011, p. 58). Por isso, é necessário lançar menos luzes para ver as sombras, as quais são diminutas, criadas pelas crianças e professoras, já que, “[...] no cosmos das coisas, há aberturas, inúmeras aberturas desenhadas pelos virtuais. Raros

são aqueles que as percebem e lhes dão importância; mais raros ainda aqueles que exploram essa abertura em uma experimentação criadora” (LAPOUJADE, 2017, p. 44).

acontecimentos que moldaram, e continuam moldando, o presente” (BOUGE, 2011, p. 23).

Quando fabulamos, criamos um devir-outro, que envolve a passagem entre categorias, formas de existência e corpos distintos. Dessa maneira, os elementos estáveis, no nosso

cabem em “clichês linguísticos”. É possível, desse modo, fazer da fabulação uma produção coletiva (ROSEIRO, 2019), em que os próprios encontros com as fotografias produzem a fabulação, a escrita literária. Assim, lembrando

caso as fotografias, são postos em “desequilíbrio metamórfico” (BOUGE, 2011, p. 21). Nesse sentido, a fabulação também funciona como experimentação do real por meio das “[...] intervenções no universo de seus ambientes políticos, institucionais, naturais e materiais” (BOUGE, 2011, p. 22). Há um confronto entre o presente e o passado, “[...] já que o mundo em que vivemos é produto de uma história complexa de 90

Os corpos, assim, quando fabulam e inventam, criam relações que não

os princípios da fabulação como resistência e invenção de um povo menor (DELEUZE; GUATTARI, 2017), vimos, no encontro com as fotografias, os currículos e as docências de ensaios de fabulações. Fabular para furar os clichês e produzir escola, docências e currículos na diferença.


Portanto, desejamos problematizar, com as fotografias, as relações de poder e saber nas escolas e os currículos. Buscamos, por meio da fabulação, possibilidades de atualizar as virtualidades, desterritorializar o pensamento, furar os clichês e dobrar os currículos e as docências. Daí, apostamos na fabulação como um método e, como tal, efetua uma escrita mais próxima da literatura. Cabe ressaltar que “a fabulação criadora nada tem a ver com uma lembrança mesmo amplificada, nem com um fantasma. Com efeito, o artista, entre eles o romancista, excede os estados perceptivos e as passagens afetivas do vivido” (DELEUZE; GUATTARI, 2000, p. 222).

Isso quer dizer que as carto(foto)grafias buscam fabular o olhar e o sentir das crianças e professoras de um centro de educação, recorrendo às fotografias como possibilidade para pensar sentidos de escola e de currículos. Nesse sentido, em sua caixa de ferramentas, crianças e professoras levam sua máquina fotográfica, seus afetos, olhares e sentidos. Os registros produzidos pelos seus corpos e postos em circulação dentro do centro de educação podem produzir zonas de intensidade que, ao fabularem outras virtualidades, podem ser atualizadas. Quando os corpos fabulam, podem agenciar outros sentidos, sensibilizar o corpo para habitar outro mundo e criar outras cenas, que, em composição, deslocam o pensamento para problematizar a escola, os currículos, as infâncias e as docências.

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Com as carto(foto)grafias, aspiramos fabular mundos em uma escrita coletiva de si no mundo, uma aposta coletiva para atualizar virtualidades que, por diferenciação, podem afetar outro corpo e outro e criar múltiplas possibilidades, para afirmar a escola e os currículos como produção na diferença. Para tanto, criaremos zonas de afeção com as fotografias registradas por crianças e professoras, buscando, nos silêncios, nos sorrisos, nas falas e nas conversas, possibilidades para fabular outro mundo.

a atualização desses acontecimentos, mas “[...] a incerteza pessoal não é uma dúvida exterior ao que se passa, mas uma estrutura objetiva do próprio acontecimento, na medida em que sempre vai nos dois sentidos ao mesmo tempo e que esquarteja o sujeito segundo esta dupla direção” (DELEUZE, 2009, p. 3).

As fotografias, assim, misturaram-se às linhas de vida que transitam pela escola. Elas estariam

Por isso, as carto(foto)grafias são visualizadas como uma produção

pelas paredes, nas salas de aula, nos espaços de formação de professores, em momentos com as crianças. Como um elemento de produção coletiva da escola, é possível fabular um mundo que, na condição de virtualidade, pode atualizar-se. O corpo da cartógrafa tentaria, assim, afetar-se com essas fabulações, tentando, do mesmo modo, sentir e olhar os mundos que podem ser produzidos pelas

coletiva que pode ser fabulada, que pode lançar no nosso corpopensamento a habitar a Nova Terra.

fotografias das crianças. Nunca sabemos como será 92


*

Um momento de brincadeiras pelo pátio, crianças e professoras agenciam sentidos, produzem imagens, fabulam, movimentam seus corpos. Cada corpo produz vida na diferença. Ao fundo da fotografia, visualizamos professoras e crianças que brincam e inventam no pátio do centro de educação infantil. Mas o menino aspirava a outras composições, desejava produzir com seu corpo outras intensidades. Desloca-se assim do pátio movimentado e posiciona-se no centro do alvo pintado no chão. A fotografia choca-nos, inquieta o nosso corpo. Carto(foto)grafar a vida na escola é prescrutar com a câmera os sentidos que atravessam os corpos e revelar virtualidades que se atualizaram, na possibilidade de habitar a Nova Terra. *

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