Bertazzo em Passos
No ritmo do corpo e da vida
Ana Paula Sartor AndrĂŠ Moraes Bianca Iaconelli Emanuel Galdino Fabiane Abel Karina Costa Michele Vitor Natalia Dias
Bertazzo em Passos No ritmo do corpo e da vida
SĂŁo Paulo, Dezembro, 2009
Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 2009, que entrou em vigor no Brasil em 2009.
Universidade São Judas Tadeu Orientação Rose Castro
Título Bertazzo em Passos – No ritmo do corpo e da vida
Capa Eder Chiodetto – Espetáculo Mãe Gentil, 2000
Preparação W. Ferreira
Edição Ana Paula Sartor
Revisão Alan Ary Meguerditchian Andreza da Silva Julia Dietrich Michelle Ito Vinícius Romero
FOTO: MICHELE VITOR
Dados sobre a publicação Sartor, Ana Paula; Moraes, André; Iaconelli, Bianca; Galdino, Emanuel; Abel, Fabiane; Costa, Karina; Vitor, Michele; Dias, Natália Bertazzo em Passos – No ritmo do corpo e da vida
[2009] Todos os direitos desta edição reservados à Ana Paula Sartor, André Moraes, Bianca Iaconelli, Emanuel Galdino, Fabiane Abel, Karina Costa, Michele Vitor e Natália Dias.
FOTO: ARQUIVO ESCOLA DO MOVIMENTO
Prefácio
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Ivaldo por Ivaldo
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Pesquisar, aprender e transmitir
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O Método
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Projetos mais que sociais
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O outro lado
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Posfácio
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Bibliografia
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Os autores
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Prefรกcio
Ivaldo posa durante uma de suas aulas
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Quando oito jovens do curso de Jornalismo da Universidade São Judas Tadeu vieram a minha escola anunciando o desejo de fazer um relato sobre minha vida, interessados sobre a forma como esbocei e desenhei minha profissão e sobre os inevitáveis laços afetivos que modelaram minha personalidade, fiquei imediatamente seduzido pela oportunidade de organizar minhas memórias. Ser escolhido por jovens que representam o futuro e, de alguma forma, se espelham momentaneamente em seus pensamentos e atitudes, foi um grande prazer. Fui o escolhido no imenso leque de indivíduos que construíram sua identidade por meio de sua ação profissional. No processo de nossos encontros, criticas e autocríticas vieram à tona. O estranhamento de descrever meu percurso provocou muitas incertezas dentro das minhas certezas. Pensava constantemente: “Será que a definição de nossas vidas acontece somente após a morte?”. Acho que não. Decidi relatar minhas estórias como se as tivesse vivido na semana passada, como se fosse algo recente. Esta atividade foi difícil, já que alguns fatos referem-se às cicatrizes de um passado distante, alguns relatos representam sonhos desejados e, talvez, não consolidados. Todas estas dificuldades foram ultrapassadas de fronte ao frescor destes jovens, que se entusiasmaram paulatinamente com meus relatos. Aproveitei para juntar memórias, fatos, fotos e, até mesmo, para rever as metas que propus na minha juventude.
PREFÁCIO
Após estes encontros, percebo que nenhuma época é mais fácil de ser vivida do que outra. Dizer que no período da Ditadura éramos mais impetuosos que os jovens de hoje não é verdade. Talvez tivéssemos um calor fugaz e irrefletido. O que posso eu hoje, aos 60 anos, entender dos anseios dos nossos jovens? Talvez eles saibam viver cada momento como se fosse “ÚNICO”. Atitudes essas que, nos anos 60 e 70, eram desejadas por todos nós e bloqueadas por um racional exacerbado, fruto de nossas escolas mais conservadoras. O jovem hoje é menos poético? Talvez. Porém, é mais veloz em suas imagens associativas, navega pelo mundo da Internet e dança muito mais bonito que os jovens da minha época. Obrigado a todos eles!!! Ivaldo Bertazzo
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Ivaldo por Ivaldo
Queria que fosse eterno, 1988
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Movimentar o corpo para dar sentido ao movimento da vida. Aceitar-se como indivíduo, ter convicção de seus objetivos e usufruir do equilíbrio para buscar ideais. Crescer para si e, com isso, causar um impacto transformador na vida do próximo. Estas são características que definem a trajetória pessoal e profissional do coreógrafo paulistano Ivaldo Bertazzo. Para ele, a dança, como expressão da arte, é fundamental para transformar a sociedade. Cada gesto ou palavra de Ivaldo parecem lapidados. Todo movimento é calculado, o que denuncia a disciplina conquistada com anos de suor e dedicação. As mãos dão todo o sentido às frases que saem de sua boca. A direção e a amplitude dos gestos são capazes de oferecer a entonação e o significado correto de tudo que o coreógrafo fala. Enquanto o corpo comunica, os olhos misteriosos contam outra história, algo mais profundo e enigmático do que se percebe de imediato. O sorriso marcante e o rosto suave deste homem com ares de criança abrem as portas para algo sempre agradável. O irreverente profissional de carreira consolidada, dono de uma escola de dança e diretor de espetáculos de sucesso, conquistou seu espaço no mundo artístico ao criar, com ousadia, a própria técnica de dança, mais tarde chamada de Método. Ivaldo não procura cinturinha fina, corpos esteticamente perfeitos ou belas faces para desenvolver seu trabalho. O que ele deseja é ver no palco as diferenças entre cada pessoa. Mais do que isso, a expectativa é que o público se reconheça nos artistas que fazem um espetáculo, em vez de vê-los como estrelas
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Ivaldo encena espetรกculo Palmas do Deserto, em 1986
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inatingíveis. Sensível, inteligente e observador, é antes de tudo um cidadão comum que valoriza os semelhantes e, para isso, conta com a ajuda da arte. Nascido em 1949, o coreógrafo já acumula seis décadas de vida, embora a agilidade do seu corpo e os traços do rosto não demonstrem. Ivaldo viveu sua adolescência no cenário obscuro da Ditadura Militar do Brasil, época caracterizada pela falta de democracia, censura, perseguição e repressão dos que eram contra o regime autoritário. Apesar da situação, nada impediu que Ivaldo sonhasse, com os pés no chão, e lutasse para realizar seus objetivos.
A base da construção 17 Foi no bairro de Interlagos, zona sul de São Paulo, que Ivaldo viveu durante a infância. Nessa região, com ares de interior, o ativo menino, como toda criança, brincava e se metia em confusões. Mas aquele garoto parecia ter algo de diferente. Tinha alma de artista. Ao mesmo tempo em que corria e jogava bola nos arredores do autódromo de Interlagos, ele se encantava com as músicas de Mozart, Chopin, Beethoven, Tchaikovsky... Os responsáveis pelo contato inicial dele com a música clássica foram seus pais e tios, que incluíam nas atividades de domingo uma sessão de composições eruditas. Ouvir as sinfonias era tarefa obrigatória. Claro que, mesmo atraído pelas grandes obras de alguns dos principais compositores eruditos, andar de bicicleta,
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por exemplo, era naquela fase da vida muito mais divertido. Mas a insistência dos familiares acabou por aguçar os ouvidos de Ivaldo, que se habituou logo cedo a escutar o que a maioria dos amigos desconhecia. O resultado surpreendeu: - Acabei gostando!
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Nascido no bairro da Mooca, zona leste da capital paulista, o coreógrafo é filho de imigrantes, pai italiano e mãe sírio-libanesa, e cresceu em uma família numerosa. A figura materna da casa, Iracema, era uma pessoa afetiva, agregadora e estava sempre à frente do almoço de domingo, independente da quantidade de convidados. Bem-humorada e alegre, casou-se com um homem sério, rígido e possessivo. Quando terminou o curso e se formou enfermeira, por exemplo, o pai de Ivaldo criou conflitos para que ela continuasse a ser apenas dona de casa. A convivência entre o casal começou a ficar tumultuada e as desavenças se tornaram constantes. Ao ver que não existia outra opção, o casal optou pela separação, um momento difícil de ser compreendido pelos filhos, e que Ivaldo não gosta de comentar. Ele, particularmente, sentiu os efeitos do divórcio em seus estudos. Até então, o garoto era considerado um bom aluno. Havia frequentado durante a infância o grupo escolar do Estado, tanto nas séries primárias quanto no antigo ginásio. Mas passava a considerar a educação formal como algo que não lhe
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acrescentaria conhecimento. Começava a achar que os alunos não precisavam raciocinar. Decorar era o bastante. Com os pais ausentes, em casa não havia mais o contato que precisava e, na escola, faltava o movimento que Ivaldo buscava para dar novo sentido à vida. Quando se deu conta, já estava se afastando dos estudos. Para superar o conflito vivido, o menino se apegou a outras formas de conhecimento. Longe dos bancos escolares, ele queria descobrir o mundo. O idioma francês despertou seu interesse. Perspicaz, ele descobriu que uma vizinha nascera no país europeu e se aproximou da simpática mulher. Com os pés no Brasil, mas já com a ideia de um dia ir para o exterior, ele passava os finais de semana na casa da “francesa” para aprender o idioma. Depois do francês, o interesse passou a ser os palcos. Era lá que ele queria estar. Na verdade, ainda na fase da escola básica, Ivaldo montava peças com grupos de colegas. No entanto, nada se dá ao acaso. Por sorte, sua vizinha também era apaixonada pelas artes cênicas, mas seu companheiro não compartilhava do mesmo gosto. Foi assim que ela acabou convidando o pequeno Ivaldo para acompanhá-la até o teatro. Essa seria a primeira vez que ele veria as cortinas se abrirem e a iluminação incidir sobre o tablado, preparando o espaço para a interpretação de atores profissionais. Paixão, apreço, encantamento... não há palavras para descrever. O coração batia forte e muitas ideias passavam pela cabeça de Ivaldo. Seria esse o marco de um novo início...
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Ivaldo e Vivian Mamberti em passeata contra a Ditadura Militar, em São Paulo, 1971
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O nascimento da arte A adolescência de Ivaldo foi motivada pelo desejo de manifestar seu protesto por meio da arte. Naquela época, era preciso lutar pela liberdade de expressão, e foi isso que o jovem sonhador resolveu buscar. Nos anos 60, o cenário era de repressão e os que desobedeciam ao sistema eram punidos. Mesmo assim, milhares de jovens desafiavam o “poder”, arregaçavam as mangas e saiam às ruas para lutar por mudanças. Ivaldo fazia parte desse grupo de idealistas. A sociedade via com olhos espantados os novos rumos que o mundo tomava. Mortes, injustiça e crueldade foram traços marcantes que causaram dor e revolta. A Guerra Fria, a Guerra do Vietnã, a Revolução Cubana e a Ditadura no Brasil são alguns exemplos do que aconteceu nesse período. Enquanto muitos se limitavam a apenas assistir passivamente o que passava em todo o mundo, outros, inconformados, adotavam a rebeldia como comportamento. Os dedos em “V”, como símbolo de “Paz e Amor”, também eram uma forma que muitos jovens da época, os hippies, adotaram para “agredir” todos aqueles que acreditavam que guerras e a força bruta fossem a única alternativa para guiar as principais decisões mundiais. Eles, ao contrário, preferiam dar as costas aos valores estabelecidos, deixavam o cabelo crescer... eram parte de outra cultura que caracterizou aqueles anos. O garoto ousado e irreverente também
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usava colar, calça de flanela larga e sandálias, artigos confeccionados por ele mesmo. Era o seu jeito de se expressar. Ao mesmo tempo em que vivia de modo “alternativo”, ele passou a assistir mais e mais peças teatrais. Queria aprender. Já não lhe bastava somente apreciar, queria agora também participar. - Eu tinha um brilho e um encantamento por um universo que nem conhecia direito. Mesmo assim, já me sentia parte dele.
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Na ânsia de conseguir o que queria, como ver grandes espetáculos, ele não poupava esforços. Fazia amizade com bilheteiros e porteiros dos teatros, o que lhe rendia ingressos de graça. - Era cara de pau mesmo. Chegava, conversava um pouco e pedia os ingressos. Acabava conseguindo.
As idas ao teatro se tornaram tão constantes que Ivaldo, ainda com 14 anos, estava sempre rodeado de artistas. Influenciado pelas noites animadas e pelos novos amigos, abandonou de vez a escola. Independentemente de qualquer outra coisa, sem dúvida, aquele era seu mundo.
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Exercício de respiração com alunos da Escola do Movimento, em Visconde de Mauá, 1978
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Cidadãos Dançantes em cena do espetáculo “Pas-de-Deuses”, 1986
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Certa vez, Ivaldo foi assistir à peça Veredas da Salvação(1), dirigida por Antunes Filho, no Teatro Brasileiro de Comédia (TBC). As luzes acenderam e o jovem viu o ator Raul Cortez entrar em cena. A magia e a sinceridade com que o texto era interpretado encantaram Ivaldo. Dessa vez, saiu de lá querendo atuar. Era a gota d’água que faltava. O desejo pulsava forte e latente. Como na maioria dos adolescentes, a ansiedade falou alto e Ivaldo tentou realizar seu sonho de várias maneiras. Ele via espetáculos no Teatro de Arena, Oficina e Ruth Escobar. No Teatro Tupi, adorava o Alô Doçura, com os já consagrados atores Eva Wilma e João Herbert. Nesse espetáculo, a cada semana o casal vivia uma situação diferente no palco, e o diálogo era transmitido também para um programa da rádio Tupi. Os amigos artistas viam a vontade do garoto de se tornar ator. Chegaram a formar um grupo de teatro que, por falta de organização, não deu certo. Mesmo assim, essa iniciativa possibilitou ao então jovem ator Ivaldo conhecer novos nomes do cenário artístico nacional. No Bar Redondo, em frente ao Teatro de Arena, o adolescente conheceu, ainda no início da carreira, o cantor e compositor Chico Buarque. 1. Escrita em 1964, a peça Veredas da Salvação foi inspirada em um fato real ocorrido no ano de 1955, na cidade de Malacacheta, norte de Minas Gerais. O texto retrata um homem simples do campo que, esmagado pela miséria e sem esperança de dias melhores, encontra na palavra divina uma passagem mística religiosa, em que a angústia e os sofrimentos serão substituídos por felicidade e prazer.
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- Nesse dia, ele cantou, meio inseguro, “Pedro Pedreiro”. Mal sabia ele o que o destino reservava para o seu futuro.
Fez de tudo para ser ator. Chegou até a cometer ações no mínimo engraçadas na tentativa de estrear nos palcos. Em um desses episódios, procurou Cacilda Becker(2), ícone do teatro brasileiro, para pedir ajuda. Bateu na porta do camarim no momento em que ela estava se maquiando para entrar em cena com o espetáculo “A Noite do Iguana”, do dramaturgo americano Tenesse Willians. Na pequena sala estava também Walmor Chagas, marido da atriz. Ivaldo não hesitou em se ajoelhar aos pés dela e implorar por uma vaga no teatro. Cacilda, com seu ar de diva, pegou na mão do garoto, olhou no fundo dos olhos dele e disse, com o tom de uma mãe que dá um conselho ao filho: - Menino, tome tento, você é praticamente uma criança. Quais papéis terão para você em um teatro? Você tem que estudar. Se prepare e termine a escola, depois vá fazer um curso de arte dramática.
2. Cacilda Becker foi um dos maiores mitos artísticos do Brasil. Nascida em 1921 na cidade de Pirassununga, no interior de São Paulo, Cacilda começou como atriz amadora e se profissionalizou em 1948. Em 30 anos de carreira, encenou 68 peças, fez uma telenovela e dois filmes. Após sofrer um derrame cerebral, Cacilda morreu em maio de 1969.
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E lá foi ele. Esperto e de olho nas oportunidades, Ivaldo seguiu os conselhos da atriz. Sensível e atenta aos interesses do rapaz, a partir desse dia Cacilda Becker passou a permitir que ele assistisse o que quisesse. Porém, para que isso acontecesse, o jovem deveria retomar os estudos. Era mais um desafio para vencer. Outras pessoas também já haviam aconselhado Ivaldo a voltar para a escola. E já que era para estudar, procurou uma escola de arte dramática, mas logo foi desencorajado. Fazia as audições, mas não podia ingressar no curso por ser novo demais. O teatro era um sonho difícil de ser realizado. Ivaldo precisava se sustentar e, ao mesmo tempo, não queria se afastar do teatro. Sempre que acontecia a estreia de uma peça, o jovem ia aos centros acadêmicos de alguns colégios e universidades e vendia ingressos com descontos. Com isso, as apresentações eram um sucesso e ele ganhava uma comissão pelo trabalho. Na época, a iniciativa foi tão bem-sucedida que Ivaldo resolveu expandir o negócio. Pouco depois, passou a vender entradas em empresas, como no Banco do Brasil, atualmente um dos maiores do País. Em certa ocasião, quando foi oferecer ingressos na Gessy Lever, atual Unilever, conheceu um advogado que logo se tornaria um grande expoente da música popular brasileira. Era Gilberto Gil. O baiano ainda estava bem longe dos palcos, das músicas e das composições que, anos depois, o consagrariam. Mais uma vez, a arte cruzava os caminhos de Ivaldo.
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Coragem e determinação não lhe faltavam. Ivaldo tinha certeza de sua vocação artística. Ainda assim, por volta dos 16 anos, ele desanimou. Cansado, o futuro coreógrafo deixou temporariamente de lado a vontade de ser ator, voltou para os bancos escolares tradicionais e cursou o antigo Madureza, como era conhecido o ensino supletivo da época. Depois foi estudar no Colégio Indac (Instituto de Arte e Ciência), que para ele era um sonho, já que a instituição era referência na preparação de atores. Em uma época envolvida pela Ditadura, lá Ivaldo teve a oportunidade de conviver com pessoas interessantes e viu de perto a vontade dos jovens de fazer algo novo, diferente, inusitado. Os próprios professores alertavam os alunos contra a alienação promovida intencionalmente pelo governo militar. O lema divulgado na época era “esse é um país que vai pra frente”, e um dos sucessos mais executados nas emissoras de rádio dizia no refrão “Eu te amo, meu Brasil”. Enquanto centenas de pessoas eram assassinadas pelos militares, a sociedade de modo geral comemorava eufórica a conquista do tricampeonato pela Seleção Brasileira de Futebol na Copa do Mundo de 1970. - Os educadores sempre pediam que tomássemos cuidado com tanta emotividade. Enquanto pessoas morriam, a população brasileira cantava “A Copa do Mundo é nossa”.
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FOTO: ARQUIVO PESSOAL IVALDO BERTAZZO
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Ivaldo conhece as tradições da Índia em viagem ao país, 1999
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Na mesma época, outro fato marcou a vida profissional e emocional do agitado adolescente. Ele soube que viria a São Paulo a companhia de dança de Maurice Béjart, um dos grandes coreógrafos da época. Foi na apresentação do balé “Réquiem a Um Homem Morto”, que Ivaldo percebeu que também era apaixonado pela dança. Mais que pelo teatro... muito mais. O estilo contemporâneo do espetáculo o encantou e colocou fim às suas inquietações artísticas. Decidiu. Seria bailarino. - Nesse momento, todas as minhas dúvidas encontraram respostas. Era essa a peça que faltava em meu quebra-cabeça.
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Foi assim que Ivaldo procurou por Renée Gumiel, renomada bailarina e coreógrafa francesa, para ter aulas de dança. Não parou mais. No entanto, os desafios continuaram a surgir. Naquela época, dançar era uma atividade apenas para mulheres. Homens que praticavam balé eram considerados homossexuais. Como não queria sofrer esse preconceito, Ivaldo fazia tudo escondido. Para não levantar suspeitas, até o collant de dança ele lavava na casa de uma amiga. Por mais cuidado que tivesse em ser discreto com sua secreta paixão, seus pais acabaram por descobrir que ele estava dançando. Mas, para sua surpresa, eles nem se importaram. O brilho nos olhos do garoto intimidava qualquer preconceito.
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- Eu sentia medo do que meus amigos pudessem falar. Mas o amor e o meu empenho pela dança eram tão grandes que nada mais importava.
Ele ainda não sabia, mas essa paixão se revelaria eterna.
A estrela guia A busca pela dança foi intensa e imediata. O nome indicado para transmitir a ele a sintonia perfeita entre corpo, ritmo e música foi o de Marika Gidali. Na década de 60, ela foi responsável por ensinar um método de dança a Ivaldo, além de lhe apresentar um pedacinho de um universo repleto de possibilidades. Atualmente, Marika é dona de um dos balés mais conceituados do Brasil, o Ballet Stagium(3). Na companhia só havia meninas e Ivaldo logo se tornou o centro das atenções. Aplicado e dedicado, não foi difícil para o talentoso jovem conquistar uma bolsa de estudos que lhe abriu as portas para a oportunidade que marcou sua vida para 3. Fundado em 1971, o Ballet Stagium cresceu em meio ao cenário perturbador da ditadura militar. Sob o comando de Marika Gidali e Décio Otero, a companhia foi a primeira a utilizar músicas da MPB em suas trilhas sonoras. Suas criações utilizam vertentes universais da dança com aspectos tipicamente brasileiros. Essa característica trouxe sucesso para o Ballet Stagium, que atualmente é considerado uma referência em manifestações coreográficas.
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sempre: aprender a dançar. A autoridade e rigidez impostas pela professora serviram não apenas no aperfeiçoamento profissional, mas também na vida. Em constante transformação, o aprendizado auxiliava o jovem a escolher os caminhos que deveria trilhar. Ivaldo despendia toda a sua energia nas aulas de balé clássico. As incansáveis repetições, que buscavam os passos perfeitos, chegavam por vezes a esgotar suas forças físicas e mentais. Foram incontáveis assemblée, coupé, jeté e arabesque, até que o corpo encontrasse a perfeição. Cada bailarino, na dança, se transforma em um instrumento de trabalho dos coreógrafos, os maestros dos repertórios. Foi nesse cenário que, em 1971, o jovem fez sua primeira aparição na TV. Na ocasião, a escola de Marika foi convidada para fazer demonstrações de dança clássica em um programa chamado “Elucidações sobre Balé Clássico, Neoclássico e Moderno”. Ivaldo se apresentou ao lado da bailarina Geralda Bezerra, sua primeira parceira de dança. Na gravação, o estreante errou algumas “marcações”, principalmente no momento em que colocava a bailarina em seu ombro. No ar, ficou a impressão de que a magia da televisão acobertou todos esses erros, fazendo os devidos cortes. Os dois tinham sido impecáveis! A amizade com Geralda foi intensa durante os tempos da escola de Marika. – Lembro quando ele nos fazia passar clara de ovo no corpo para que fizesse massagem. Ele adorava! Quando começou a dar aulas, continuou a ser muito criativo. Sempre foi uma característica dele, conta Geralda.
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Apesar dos repetidos passos, Ivaldo já sentia a liberdade de expressão que a dança proporciona. Ainda em tempos de repressão política, não só as artes plásticas, mas também a música era um dos meios utilizados pelas pessoas para mostrar o que sentiam e pensavam sobre o “mundo”. Para Ivaldo, era fascinante aliar a dança aos ideais que estavam represados no peito de milhares de brasileiros. Mais do que isso, movimentar o corpo sobre os pés em forma de arte era conquistar sua própria identidade, única. A professora de dança Marika se recorda do contato que teve com Ivaldo desde o início das aulas. A aproximação entre eles se desenvolveu de forma harmônica e agradável, repercutindo uma amizade duradoura. De ensaio em ensaio, Marika foi aos poucos deixando de ser apenas a professora de Ivaldo. Um forte vínculo havia sido criado. Tempos depois, além de aluno, o jovem começou a trabalhar na secretaria da escola. O pouco que ganhava o ajudava a sobreviver. O dia a dia mudara. As aulas ocupavam todas as manhãs e, à tarde, era o trabalho que preenchia o seu tempo. Quando o sol se escondia, os cuidados com a alimentação e o descanso encerravam os dias de Ivaldo. Mesmo ainda enfrentando as dificuldades, o já dançarino conhecia vários outros profissionais que compartilhavam com ele o gosto e a dedicação pela arte. - Ele tinha um talento nato. Sempre quis fazer o bem para as pessoas. Essa característica está presente desde o início. Nasceu com ele!, reconhece a renomada dançarina e coreógrafa.
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Mas era preciso avançar ainda mais. Além das aulas de balé clássico, Ivaldo decidiu repassar seus conhecimentos sobre dança. Deixou o papel de aluno para assumir o de professor. Agora queria estar do outro lado do palco, ver seu trabalho refletido em outros bailarinos. O garoto, que neste momento já era quase um homem, passava a direcionar sua carreira para um novo caminho: seria coreógrafo. Incoerências da vida... logo ele, que um dia desprezou os estudos e pretendeu abandonar os bancos escolares, iria ser professor. No início da carreira docente, imprimia um ritmo acelerado às aulas. A inquietação e o imediatismo com que fazia as coisas impressionavam. Um dia, a mãe de uma de suas alunas o notificou que a filha não poderia mais frequentar suas aulas. O ortopedista havia proibido que a garota fizesse alguns movimentos realizados na dança. - Eu fiquei horrorizado. Adorava aquela menina. Decidi falar com o médico dela, vi uma radiografia e não entendi nada! Aí, decidi fazer Fisioterapia. Hoje, eu sou capaz de fazer essa leitura de cada um, mas na época achei que estava tudo errado.
O que seria uma razão para desmotivá-lo, ao contrário, serviu de estímulo. O problema ocorrido com a aluna foi o suficiente para que ele decidisse entender melhor o assunto. A obstinação do jovem coreógrafo era mesmo notável. Ele passou a assistir aulas do curso de Fisioterapia como ouvinte na Universidade de São Paulo – uma das mais famosas do Brasil.
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Sua rotina era enlouquecedora. Era preciso dividir o tempo entre as aulas com Marika, seu trabalho na escola e a faculdade. Além disso, precisava de força para administrar todas essas atividades. Havia dentro dele a necessidade de transmitir o conhecimento adquirido sobre dança para o maior número de pessoas possível. Ele não queria parar. Sentia-se mais satisfeito ao ensinar. - Para aprimorar meus conhecimentos, fiz vários cursos de dança. Não recusava nenhum tipo de aprendizado. Nessa época, já tinha aprendido até a técnica de dança do Gisele Jau, que estava na onda.
Algum tempo depois, ainda com apenas 22 anos, Ivaldo percebeu que a faculdade de fisioterapia não era o caminho que desejava seguir. Parou o curso. Depois de nove anos de aprendizado, busca pela perfeição e parceria com Marika, sua vida seguiria novos caminhos. - Ele se interessou por outras coisas, amadureceu e começou a trilhar o próprio caminho. Chega uma hora que cada um segue o seu rumo, conta Marika.
Para a dançarina e coreógrafa, Ivaldo foi muito mais que um aluno e, ela, muito mais que uma professora. Além do aprendizado e amizade, restou tudo o que criaram e desenvolveram em tantos anos de convivência. No início, ela nunca teria dito que ele era um dos alunos mais promissores. No entanto, quando ele
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começou a lecionar, ela percebeu que o rapaz levava jeito. Ivaldo sempre usava a criatividade para criar e inovar. - Eu lembro de uma vez, durante uma aula para crianças, quando ele colocou um livro em cima da cabeça de cada uma e pediu que elas subissem e descessem a escadaria. Na época, esse exercício era uma grande novidade. Ele criava muitas coisas desse tipo, ressalta Marika.
Em 1974, o coreógrafo decidiu que era hora de dar um grande passo em sua carreira. A paixão e a fixação pela dança cresciam. Nascia a Escola do Movimento de Ivaldo Bertazzo, e o obstinado e sonhador garoto nunca mais seria o mesmo. 38
FOTO: ARQUIVO PESSOAL IVALDO BERTAZZO
Pesquisar, aprender e transmitir
Dança Balinesa com o professor Made Djmat, Bali - IndonÊsia, 1975
PESQUISAR, APRENDER E TRANSMITIR
A Escola do Movimento, que acumula mais de três décadas de história, surgiu da mais intensa característica da personalidade de Ivaldo: a incessante busca pelo conhecimento. As pesquisas e contatos com profissionais mais experientes uniam-se, aos poucos, a técnicas e valores que ele adquiria em viagens ao redor do mundo, e que passaram a ser constantes em sua história após dois anos da abertura da Escola. O coreógrafo passou por lugares como França, Bélgica e Taiti. Neste último, aprendeu as danças da Polinésia, Tribal e Tamuaki. Já o contato com as danças Circular e Surfista aconteceu na Califórnia, um dos estados mais populosos dos Estados Unidos, onde ele também estudou canto. Com essas experiências, Ivaldo mostrou um caráter diversificado na escolha dos destinos. Apesar de todo o aprendizado acumulado nestas viagens, foi ao conhecer a Índia e a Indonésia que o jovem coreógrafo se encantou e decidiu se especializar. Nestes dois países, aprimorou seus conhecimentos profissionais e consolidou a vocação para a arte de lecionar. Ele já sonhava transpor sua carreira a um patamar elevado. Como para tudo na vida há um ponto de partida, a paixão pela Índia, que permearia a sua trajetória dali em diante, surgiu em um momento específico e inesperado. Foi durante uma de suas viagens a Paris que o coreógrafo ficou deslumbrado ao ver a apresentação de uma bailarina indiana. Seu indiscutível desejo pela dança fez com que fosse atrás dela nos bastidores do salão. - Na hora eu pensei: quero aprender isso! Nem sabia ao certo o que significava, mas queria aprender, conhecer melhor. Achava tudo aquilo encantador.
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Dança Balinesa com o professor Made Djmat, Bali - Indonésia, 1975
PESQUISAR, APRENDER E TRANSMITIR
Quando a encontrou, logo a questionou sobre a possibilidade de ensinar-lhe aqueles passos, caso ele fosse ao seu país de origem. Os olhos, bem riscados pela maquiagem e enfeitados com adereços reluzentes, penetraram com profundidade nos de Ivaldo e confidenciaram que não era tão simples assim, já que a dança é composta por códigos intrínsecos em movimentos de mãos, pés, face e cabeça. Ele nunca tinha visto nada parecido, mas começava a perceber que todos os gestos escondiam muitos significados. Os mudras, nome dado a cada movimento da dança indiana, são simbólicos, reverenciam deuses e demonstram sentimentos. Para realmente aprender a dança, Ivaldo deveria conhecer todos eles, o que não era nada fácil. A dançarina ressaltou que, além de longo, o aprendizado era sofrido, já que exigia muita disciplina. Para o brasileiro, o melhor seria buscar uma escola. A partir de então, a Índia tornou-se o seu roteiro preferido. Todo o conhecimento que ele desejava estava lá. Foram mais de 20 decolagens para o país asiático. O processo de especialização era difícil e dependeu, exclusivamente, da força de vontade e do foco definido pelo coreógrafo. Acostumado aos hábitos brasileiros e com fortes raízes italianas e árabes, o então jovem Ivaldo, com apenas 25 anos, sentia na pele o choque da diferença entre as culturas de cada lugar. - Tive muitas dificuldades, principalmente com a alimentação, muito diferente do que estamos acostumados aqui.
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Para dificultar a situação, que não era das mais confortáveis, durante os dois primeiros anos de estudo na Índia Ivaldo só podia participar de aulas com crianças de idades entre 12 e 13 anos. - Eles já conheciam as técnicas, cantavam, dançavam, tocavam instrumentos, treinavam percussão, faziam o diabo! E eu não sabia nada daquilo!
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A convivência com a garotada era de certo modo engraçada. Os meninos gargalhavam com os erros de Ivaldo e se divertiam gritando: Olha o careca! Eles sabiam detalhes de técnicas que o coreógrafo ainda estava começando a aprender. O dedicado aluno tentava não se importar. Colocou na cabeça que era para isso mesmo que estava lá, e que todas as experiências faziam parte do processo. Ivaldo chegou a cogitar a ideia de investir em aulas particulares, mas sabia que era muito caro pagar um professor diariamente. Além do tempo precioso que não podia ser desperdiçado, ele tinha a oportunidade de conviver com a beleza exuberante e a cultura exótica da Índia. Aquele, sem dúvida, era o cenário perfeito para compreender que, se não era a hora certa, ao menos o lugar seria. Como se não bastasse, ele ainda tinha um outro obstáculo a vencer. O problema era que suas economias não lhe permitiam uma estadia ininterrupta no território indiano. Por esse motivo, durante oito meses Ivaldo lecionava no Brasil e, nos quatro meses restantes de cada ano, ia para a Ásia com o dinheiro
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Aulas de Katak com Rajindia Kankani, Nova Déli - Índia, 1984
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Estudos de biomecânica de cadeias musculares com Godelieve Striff, Bruxelas – Bélgica, 1986
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que conseguia juntar. Planejamento este que foi definido por Ivaldo desde seu primeiro embarque. Além dos conhecimentos artísticos, o jovem aprendeu muito sobre a sociedade indiana. Diversas características daquele povo se incorporaram à personalidade do coreógrafo quase sem nenhum esforço. Estudando na Índia, ele percebeu que o lado espiritual do país não é tão fantasioso como retratam os filmes, livros e reportagens. Na verdade, os indianos possuem muito conhecimento técnico sobre diversos assuntos, o que não tem ligação alguma com religião. No entanto, todas as vezes que voltava para casa, Ivaldo era questionado sobre a espiritualidade local. - Essa ideia me incomodava muito. As pessoas achavam que eu ia para lá fumar maconha e rezar para Krishna. A grandeza do que realmente pode ser oferecido pelo país é desconhecida.
O coreógrafo, que além da vocação indiscutível para lecionar, adquiriu bons conhecimentos sobre as tradições da Índia, faz questão de comentar as diferenças de intensidade cultural entre o Brasil e o país asiático. Didático, utiliza, inclusive, exemplos físicos. Dificilmente alguém próximo nunca o tenha ouvido falar que a grande quantidade de pessoas normalmente reunidas aqui, em estádios de futebol durante grandes partidas, caminha por lá a todo instante, no fluxo normal de pessoas, no vai e vem do dia a dia.
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Se comparada ao Brasil, a posição econômica da Índia é relativamente inferior, mas a cultura local é extremamente mais valorizada. Tradições são respeitadas e costumes são passados para diferentes gerações. Nas palavras de Ivaldo, a Índia é um lugar para aprender sobre cultura em todos os sentidos. Independentemente de ser culinária, dança, artes, costura ou turismo. Lá, as pessoas se dedicam a muitas coisas ao mesmo tempo e não param nunca. Ivaldo acredita que é justamente essa série de atividades que ensina o povo a viver em harmonia, algo que não se vê no Brasil. Isso tudo acontece em um país extremamente populoso, com uma quantidade muito maior de habitantes. Ivaldo já dançava estilos aprendidos anteriormente na França, Bélgica, Taiti e Califórnia. Por este motivo, se autodenominava bailarino. No entanto, a cada vez que chegava à Índia, um novo horizonte, com possibilidade de aprendizado de novas técnicas, se abria a sua frente. - Eu chegava lá e me sentia um “zé ninguém”, percebia sempre que ainda havia muito a aprender.
A cada viagem Ivaldo voltava com as bagagens lotadas de conhecimento cultural e profissional. A profundidade com a qual as técnicas eram abordadas contribuía com o aumento do interesse de Ivaldo, que não se cansa de elogiar a complexidade e respeito dedicado às profissões.
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Estudo de Teatro de Sombra com Santyo, Java – Indonésia, 1986
FOTO: ARQUIVO PESSOAL IVALDO BERTAZZO
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FOTO: ARQUIVO PESSOAL IVALDO BERTAZZO
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Estudo sobre máscaras balinesas com Pak Tangoo, Bali – Indonésia, 1986
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- Lá o ensinamento é completo. Eu voltava aleijado de tanto trabalhar e correr atrás de bons profissionais, capazes de transmitir o conhecimento que eu tanto buscava.
O coreógrafo já estava bastante íntimo da Índia quando, em férias, decidiu conhecer novos países e incluiu a Indonésia na rota. Ele não estava cansado das terras indianas, mas precisava expandir seus conhecimentos, explorar outros caminhos que completassem os que ele havia trilhado até então. Com uma beleza estonteante e paisagens compostas por muito verde e água, a Indonésia reascendeu uma antiga paixão em Ivaldo. A arte dramática. Foi nessa época que ele conheceu a história das máscaras que deram origem ao teatro e aprendeu, também, a construí-las. Essa experiência o ajudou a, tempos depois, criar os personagens de seus espetáculos. Durante este período, Ivaldo entendeu o que, de fato, era o teatro e o sentido do dramático. Ao entreter-se com este novo conhecimento, seu caminho cruzava com o de diversos atores de alto prestígio, das mais diferentes nacionalidades. Integrou a turma de Eugênio Barba(4) e trocou conselhos com Peter Brook(5). Assim como grandes nomes da cena teatral, esses diretores também enviavam seus artistas 4. Eugênio Barba é diretor de teatro italiano, fundador da Internacional School of Theatre Anthopology. Também fundou a Odin Teatret em 1964, na Noruega, que se mudou para a Dinamarca, em 1966. 5. Peter Brook é diretor de teatro e cinema britânico. É influenciado pelo trabalho de dramaturgos como Bertolt Brecht e Antonin Artaud. Propõe um teatro de caracterização psicológica dos personagens que torne visível a “invisível” alma humana.
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para estudarem na Indonésia por cerca de quatro meses. E Ivaldo estava ali. Entre os grandes. Como saldo das viagens, até hoje ele fala a língua local da Indonésia. Esse foi mais um entre todos os conhecimentos trazidos para sua vida ao longo dos anos.
A teoria transformada em prática
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Com todo o material recolhido em 20 anos de conexão com a Ásia, Ivaldo se deu conta de que era hora de mostrar, dentro de seu próprio país, todo o conhecimento adquirido. Era chegado o momento de passar adiante tudo o que ele havia aprendido. Mas para quem? Onde? Como? Com todos esses questionamentos em sua mente, o coreógrafo se lembrou de uma característica acadêmica curiosa da Índia, que até então não havia visto em nenhum outro canto do mundo. Pensou então que poderia lhe servir como ponto de partida. Nos centros de dança indianos, os alunos eram filmados com o propósito de induzir outros àquele mesmo ensinamento. Era um hábito local criar metodologias de ensino. Despretensiosamente, ele acabava de criar um novo Método, batizado com seu nome. Logo de início, a experiência de trabalhar seus novos conceitos no Brasil não foi nada fácil. Ivaldo contatou profissionais que já haviam participado de ensaios
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junto a ele. Pensou, então, que eles estariam mais dispostos a se diferenciar, com o objetivo de conquistar mais destaque no mercado das artes. Mas o coreógrafo encarou uma inesperada reação. Tão condicionados às técnicas tradicionalmente aplicadas no Brasil, estes bailarinos não demonstraram interesse pelo que Ivaldo tinha a ensinar. Esse episódio marcou o início tortuoso da estrada que Ivaldo pretendia percorrer. Viu-se perdido, mas com a determinação de sempre, insistiu. Partiu, então, para aqueles que já estavam na Escola do Movimento, fazendo aulas de balé e expressão corporal. Mas também não funcionou. Os alunos o bombardeavam com perguntas. O que seria e para que servia aquela mistura? Eles não demonstravam paciência para dedicar o tempo necessário ao aprendizado das técnicas. Era, de fato, algo muito diferente do que estavam habituados. Apesar da insistência e de sua personalidade marcante e determinada, ele teve que se adaptar às mudanças. Novamente, era necessário alterar o enfoque dado até então a sua ainda nova carreira acadêmica. Ele precisava de pessoas sem nenhuma predisposição a conceitos antiquados de movimento, que não tivessem corpos definidos por danças ou ginásticas massivas e homogêneas. Pensou na possibilidade de trabalhar com cidadãos comuns, que estudassem, acordassem cedo, enfrentassem o trânsito e saíssem do escritório às 18 horas. Esses, sim, eram parecidos com a simplicidade indiana, lugar em que todos podem ter acesso ao movimento do corpo em harmonia. Enfim, encontrou seu foco.
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No entanto, mais do que mexer com o corpo, para Ivaldo era importante atuar dentro da mente de pessoas comuns. A ideia era fazer qualquer pessoa acreditar na capacidade de dançar e ser mais do que imagina, usando os seus próprios padrões e levando em consideração as possibilidades do sistema locomotor humano. Ivaldo queria, justamente, fazer o público enxergar essa diversidade. Acabar com o que ele classifica como terrorismo no padrão corporal do bailarino. - Hoje, independente da pessoa que vem à Escola do Movimento, eu dou uma aula de percussão corporal. As atividades fazem o cérebro raciocinar matematicamente e, aos poucos, conferem bem estar ao corpo. O aluno morre de rir, porque são exercícios engraçados, movimentos diferenciados, que incluem exercícios para treinar boa
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postura, percussão corporal e treinamento de equilíbrio, entre outros.
Com esse Método diferenciado, ele logo começou a ser questionado se era verdade que todo mundo poderia dançar. - Claro que sim! O grande problema é que as pessoas acham, erroneamente, que irão se tornar bailarinos clássicos, que se equilibram nas pontas dos pés e fazem piruetas no ar. Bem diferente, o Método Bertazzo faz parte de um trabalho comportamental.
FOTO: ARQUIVO ESCOLA DO MOVIMENTO
O MĂŠtodo
Ivaldo aplica seu MĂŠtodo durante aula na Escola do Movimento
O MÉTODO
Batidas fortes, olhos observadores e movimentos amplos e disciplinados. A dinâmica ousada acendeu um brilho no olhar de Ivaldo, que começou a criar uma trajetória com características de tudo que havia presenciado na Índia. O novo estudo, acrescentado à bagagem do experiente coreógrafo, nasceu para analisar os movimentos do corpo dentro da diversidade das formas físicas. Seu objetivo era ampliar a visão e a capacidade de alcance dos membros sem necessitar de aulas de ginástica. O Método Ivaldo Bertazzo vai além do comum. O horizonte é o corpo e a sua mais perfeita imperfeição.
O primeiro passo 61 Até a criação do Método, Ivaldo passou por diferentes fases. Ele levou consigo as palavras carregadas de ensinamentos de vida da famosa atriz Cacilda Becker durante todo o seu caminho. Seguindo os conselhos da estrela dos palcos brasileiros, Ivaldo voltou a estudar e encontrou o que tanto buscava para o desenvolvimento, a disseminação e a aplicação de um novo conceito de vida, expressão corporal e dança. De ano em ano, o coreógrafo se enchia de novos conceitos artísticos, vindos de diferentes países. A sede pelo novo trazia formas inovadoras de ensino em sua escola, aberta em 1973. Durante as aulas de expressão corporal, os alunos aprendiam a se movimentar a partir de sons e ritmos diferenciados, sem um código definido.
FOTO: ARQUIVO ESCOLA DO MOVIMENTO
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Palco, Academia e Periferia encenado por Cidadรฃos Danรงantes, 1997
O MÉTODO
Ousado, o coreógrafo driblou as regras e lecionava o oposto do balé clássico. Atento ao inovador, Ivaldo logo percebeu que essa liberdade de movimentos, que permitia a participação de pessoas comuns, poderia acrescentar ainda mais qualidade ao seu Método. - Gente sem nenhuma experiência com dança chegava e logo perdia o medo de se expor e fazer alguma bobagem. Muitas pessoas têm vontade, mas não vão para a escola de dança porque acham que ficarão ridículas. Isso é um tremendo engano!
Os primeiros contatos com a expressão corporal foram apenas o início de uma longa trajetória. Inquieto e questionador, Ivaldo fez diversos cursos para aprimorar as técnicas de respiração, os trabalhos com o corpo e a dança contemporânea. Com o infinito brilho nos olhos, também foi conhecer pessoalmente estudos sobre fisioterapia e coordenação motora desenvolvidos por Godelieve Denys-Struyf e Pirre Beze, na Bélgica – especialistas nessa área. Neste momento, a seriedade e o aprofundamento nos estudos se misturavam as aulas descontraídas. Ao som de músicas russas e espanholas, seus dias de trabalho combinavam o lúdico com os movimentos coreografados, que caíam muito bem para seus alunos que não tinham muita intimidade com a dança. Um ano depois, em 1974, Ivaldo vivenciou um momento singular. O Brasil ainda passava pela Ditadura Militar, regime político que reprimiu muitos impulsos criativos da arte brasileira e desapareceu com quem contestava sua forma de agir.
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FOTO: DENISE ADAMS
Ivaldo aplica um dos exercícios do Método
O MÉTODO
Tanta rigidez criou uma tensão silenciosa na sociedade, que não sabia como fugir da pressão. Nesse contexto, cidadãos comuns procuravam pelas aulas de Ivaldo sem saber o que fazer. Ao mesmo tempo em que a realidade era sufocante, o coreógrafo mostrava para o mundo que o corpo pode ser livre. A partir daí, a especialização do Método foi uma consequência do espírito inquieto e perfeccionista do coreógrafo. Seu caminho passou a seguir por países nunca antes notados por outros profissionais da área. Após conhecer a Índia, ficou inebriado pela cultura rica do país e decidiu aplicar a sabedoria daquele povo em suas aulas. Surgiu o primeiro desafio do Método. A proposta inovadora fugia da dinâmica de trabalho de quem atuava na área da dança. A impaciência desse grupo para o aprendizado impulsionou Ivaldo a encontrar um meio de crescer sozinho. Por destino ou obra do simples acaso, as pessoas comuns cruzaram novamente seu caminho. Assim, donas de casa, professores, estudantes, advogados e secretárias serviram de palco para o nascimento de seu Método. Entre a vontade de lecionar e o receio dos desafios, Ivaldo não conseguia imaginar que o corpo procurasse se organizar para os gestos com algum tipo de movimento. - Levei muitos anos para transformar as características da dança e o aprendizado técnico em exercícios para o corpo humano. Tive que adaptar muitas técnicas para o perfil brasileiro.
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A consolidação do Método A reeducação de hábitos cotidianos serviu de base para o Método Bertazzo. Ao ensinar como se movimentar, a técnica libertava as articulações de pessoas que, no dia a dia, limitam os seus gestos. - Aprender a mexer as mãos por meio da dança indiana, por exemplo, amplia as possibilidades de manuseio dos objetos e a percepção motora. Durante as aulas, as pessoas aprendem também técnicas de respiração e até a maneira certa de pisar. São detalhes que fazem diferença.
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Na técnica exclusiva, o desenho do corpo de cada personagem da história profissional de Ivaldo é analisado a partir de hábitos rotineiros e da herança de gerações anteriores. Itens técnicos, como a percussão corporal, o ritmo, a vibração dos ossos e a sonorização, complementam o raio-x do corpo humano. Os exercícios são iniciados somente após a compreensão das características de cada indivíduo. - A avaliação começa pelos membros. Os braços e pernas são os instrumentos que fazem você se relacionar com o espaço.
FOTO: ARQUIVO ESCOLA DO MOVIMENTO
O MÉTODO
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Ensaio do espetáculo Dança das Marés, Rio de Janeiro – Brasil, 2002
FOTO: ARQUIVO ESCOLA DO MOVIMENTO
O Mร TODO
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Ensaio de coreografia do espetรกculo Samwaad, 2003
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Inovador e complicado. A multiplicidade de tamanhos e a falta de padrões do corpo brasileiro foram grandes desafios para o coreógrafo, que achou na individualidade a solução. Enquanto alguns alunos precisam de contração muscular, outros necessitam de alongamento. Em sua essência, o Método Bertazzo busca mostrar como o corpo humano deve ser usado, respeitando seus limites e restrições, mas mostrando todas as suas capacidades. - Este é o segredo do sucesso. Não generalizar as pessoas, mas sim utilizar o Método adaptado para as necessidades de cada uma.
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No entanto, para os olhares profissionais fechados a outros tipos de aprendizado, seus primeiros espetáculos, com a coreografia baseada no Método, eram dignos de pesadas críticas. Isso porque em suas peças os palcos não contavam com celebridades e glamour, mas com uma diferente técnica de dança e pessoas comuns. Para surpresa de Ivaldo, o pensamento elitista e conservador logo mudou. O sucesso chegou à porta dos cidadãos dançantes, que preenchiam todas as cadeiras dos espetáculos. E algum tempo depois, os mesmo críticos que deram as costas para a ousadia de Ivaldo, agraciaram suas peças com elogios e aprovações. - Começaram a aparecer profissionais da área para aprender o meu Método. Eles demonstravam mais interesse e isso me deu forças para pesquisar ainda mais.
FOTO: ARQUIVO ESCOLA DO MOVIMENTO
Ivaldo ensina coreografia do espetรกculo Samwaad, 2003
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Ivaldo demonstra exercício de seu Método
FOTO: MARCIA ALVES
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A ambição de ter o seu Método validado por especialistas da área foi desaparecendo ao mesmo tempo em que o sucesso se firmava. Atualmente, Ivaldo é referência nos estudos corporais e é periodicamente indicado como fonte para trabalhos universitários do curso de Fisioterapia. A carreira sólida e o amor pela profissão também gerou seus próprios estudos e publicações. Algumas dessas inserções no mercado editorial consistem em livros desenvolvidos em parceria com instituições como o SESC, que contam passo a passo a aplicação do Método. Para executar tanto trabalho, Ivaldo tem uma equipe de seis fisioterapeutas, prontos para ajudar nas pesquisas e no apoio necessário no dia a dia. O quadro de profissionais também o ajuda na formalização de algumas situações, já que ele não terminou a faculdade no Brasil e sua graduação na Bélgica não é reconhecida em território nacional. Apesar do caminho de sucesso do Método Bertazzo, seu aprimoramento é complexo e trabalhoso, pois consiste nas novas descobertas da evolução da espécie humana, nas construções da coordenação motora e no deslocamento do homem no espaço. A análise do psicomotor fino, que só o ser humano possui, é também uma das bases de todo o seu estudo, já que com ele é possível descobrir formas de estimular uma pessoa com o que ela tem de melhor em seu próprio corpo.
O MÉTODO
Do técnico para o prático e barato, Ivaldo traz todo esse conhecimento para suas aulas, incluindo elementos da vida cotidiana. - Em uma das minhas aulas, por exemplo, eu ensino o aluno a usar o corrimão. Ninguém usa, as pessoas sobem as escadas sem segurá-lo. Você pode fazer trações maravilhosas subindo a escada, além de usar menos o joelho.
Existe ainda um projeto em andamento. Ivaldo acredita que o seu Método poderá um dia ser incorporado na grade curricular de algum curso universitário de Fisioterapia. Ele pretende também escrever livros que apresentem suas pesquisas e no que elas colaboraram para a reeducação do movimento de cidadãos comuns. 75 - Aula e dança estão interligadas na minha vida. Em diversas oportunidades tentei montar exercícios de organização motora, mas eles sempre acabavam passando para um nível artístico, uma forma de coreografia.
Esses passos, com o passar do tempo, mudariam a vida de centenas de pessoas.
FOTO: ERIC RAHAL
O MÉTODO
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Ivaldo explica Método em aula aberta, 2006
FOTO: PRISCILA PRADE
Projetos mais que sociais
Danรงarinos interpretam Mar de Gente, 2007
PROJETOS MAIS QUE SOCIAIS
Ir além do usual, ultrapassar as limitações costumeiras e impressionar o público sempre foram mais que aspirações para Ivaldo Bertazzo. Esses foram e são os objetivos que pautaram, e ainda pautam, toda a vida do coreógrafo. Com toda a experiência adquirida em escolas de dança, grupos de teatro, corpos de baile e nos aprendizados e vivências trazidos de suas viagens internacionais, Ivaldo montou em vinte anos de carreira, entre 1976 e 1996, cerca de 25 espetáculos(6), cada qual com a inserção de uma diversidade de linguagens artísticas. A estréia aconteceu com “Danças e Roda”, sua primeira coreografia, apresentada no teatro Galpão, em São Paulo. Nesse meio tempo, além dos espetáculos, Ivaldo trouxe para o Brasil profissionais que foram suas referências artísticas para compor o Método. As atividades foram desde festivais de arte e cultura indiana, a um seminário com 81
6. Entre 1976 e 1996, Ivaldo aplica seu Método em trabalhos com bailarinos profissionais e pessoas comuns, os “Cidadãos Dançantes“, nos seguintes espetáculos: Danças e Roda I (1976); Danças e Roda II (1977); Dédalo e o Redemunho (As quatro idades) (1978); Estudo Contido nº 1 e Deslize (1979); Grande noite de baile I (1980); Grande noite de baile II (1981); O baile da Ilha Fiscal e Superman (1982); Ouverture Brésilienne (1983); Anhangá Fugiu e Sur Urbano (1984); Entre duas portas (1985); Pas-de-Deuses, Palmas do deserto, 1000 dançando na Bienal (1986), espetáculos realizados em comemoração aos 10 anos de carreira do coreógrafo, inclusive com participação de Ivaldo nos palcos; O cavaleiro da rosa e Serra da boa esperança (1987); Queria que fosse eterno (1988); Oper-árias (1989); Raga – dança dramática (1990); Luz, calma e volúpia (1991); O perigo e a sorte andam juntos (1992); Cidadão Corpo (1996).
FOTO: EDUARDO MELLO
Apresentação de Noé Noé, no Teatro Tuca com a Cia. Teatrodança Ivaldo Bertazzo, 2008
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a presença da osteopata Godelieve Denys-Struyf, na ocasião do lançamento de seu primeiro livro sobre o Método. Em “Danças e Roda” estavam no palco, finalmente, os dançarinos profissionais e os “Cidadãos Dançantes”, pessoas de diferentes formações e vivências. Além das mesclas raciais, os mais jovens se misturavam aos idosos, e todos experimentavam o trabalho de conscientização do corpo e as possibilidades de movimento de que Ivaldo tanto falava. A dança pertencente a todos como forma de expressão estava ali, concretizada. Mesmo depois de conhecer o mundo, criar o seu Método, consolidar sua carreira artístico-profissional e trazer para os palcos pessoas amadoras, mas admiradoras da arte de dançar, a aposentadoria não fazia parte de seus planos – e até hoje não faz. Com uma energia interminável, Ivaldo não hesitou e começou a trilhar outros caminhos. Perspicaz, no fim dos anos 90, percebeu que havia uma nova possibilidade para dar vazão e continuidade ao seu trabalho de reeducação do movimento. Desta vez, os escolhidos foram os jovens, das camadas menos favorecidas da população. Lá foi ele, para mais uma longa e ousada caminhada. O coreógrafo notava que o corpo do jovem da periferia tinha características que representavam a formação do físico do brasileiro. Acostumado a lapidar os traços de seus alunos, descendentes de libaneses, italianos, portugueses, escoceses, árabes e japoneses, Ivaldo encontrou nos meninos dessas comunidades corpos mais mistos, que representavam várias origens e raças. É a miscigenação, herdada
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de uma mistura dos povos africanos, indígenas e europeus. Para ele, significou conhecer um corpo que não tinha acesso aos seus cursos e ao seu Método. - É um jovem negro, caboclo, café com leite ou o que quer que seja, mas é a verdadeira identidade do povo dessa pátria. Com esse trabalho, diferencio dois corpos brasileiros que não têm nada em comum nas formas de expressão e na
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tipologia, o que proporciona trabalhos corporais muito distintos.
O primeiro passo foi com o espetáculo “Palco Academia e Periferia (O penhor dessa igualdade)”, em 1997, desenvolvido em parceria com a unidade Pompéia do SESC (Serviço Social do Comércio), em
Atriz Marília Pêra protagoniza o espetáculo Além da Linha D’água, 1999
FOTO: ARQUIVO ESCOLA DO MOVIMENTO
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FOTO: ARQUIVO ESCOLA DO MOVIMENTO
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Cena do espetรกculo Folias de Guanabara, 2001
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São Paulo. Assim como nos trabalhos anteriores do coreógrafo, a instituição foi, de novo, palco de uma ideia desafiadora da mente pulsante de Ivaldo. Dessa vez, a curiosidade pelo diferente foi representada ao unir no palco bailarinos e músicos profissionais e gente comum, ou melhor, os “Cidadãos Dançantes” que, além dos alunos da Escola do Movimento, eram agora também representados pelos adolescentes e jovens moradores de regiões periféricas da capital paulista. Além de experimentar em corpos diferentes a aplicação de seu Método, testemunhou pessoas de realidades opostas, traços étnicos distintos e culturas popular e erudita misturadas. O verso “O Penhor Dessa Igualdade”, extraído do Hino Nacional do Brasil, certamente não fazia parte do nome do espetáculo de dança por acaso. Estavam em cena quase 190 pessoas, sendo 15 bailarinos, 36 “Cidadãos dançantes” que faziam parte da escola de Ivaldo, 10 músicos e os demais, as novas jóias que o coreógrafo resolveu lapidar. Eram crianças, adolescentes e jovens que integravam cinco diferentes projetos sociais(7) desenvolvidos Brasil afora. Além de dar vida à história que queriam contar a partir das coreografias de Ivaldo, eles musicaram o espetáculo com instrumentos de percussão feitos de sucata.
7. Lactomia, banda dirigida pelo produtor musical Jair Rezende e apadrinhada pelo músico Carlinhos Brown no Candeal, em Salvador; Bate Lata, projeto em Campinas (SP), São Paulo da Fundação Orsa; Funk’n Lata, dirigida pelo carnavalesco Ivo Meirelles da Escola de Samba Mangueira, no Rio de Janeiro; meninos da associação comunitária Monte Azul, da favela Monte Azul, em São Paulo, que trabalhavam diferentes manifestações artísticas; e jovens do grupo Treze de Maio, da bailarina e coreógrafa Penha Pietra.
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Além da heterogeneidade dos corpos, em cada espetáculo era inserido um novo elemento artístico. Em “Ciranda dos Homens... Carnaval dos animais”, de 1998, dança, teatro de bonecos e mímica davam forma ao movimento de homens e bichos. Música clássica e manifestações populares representadas por uma banda sinfônica, tocadores de pífanos e percussão também foram acrescentados. Os atores Marília Pêra e Roney Facchini se misturavam aos “Cidadãos Dançantes” e conduziam o espetáculo que pretendia “louvar, explicar e ironizar o homem brasileiro e a carnavalesca sociedade em que vive”, explicação descrita no programa da peça. “Além da Linha d’Água”, de 1999, foi um espetáculo em parceria com o projeto Comunidade Solidária, comandado pela antropóloga Ruth Cardoso. O desafio proposto era o de resgatar as expressões culturais características do sertão. Dessa vez, grupos musicais, de atores e corais vindos de comunidades da Bahia, Pernambuco e Sergipe traziam para o palco literatura de cordel e músicas do cancioneiro popular que se misturavam à poesia erudita para narrar nesse espetáculo do teatro musical a saga de uma nordestina que não queria morrer sem antes conhecer o mar. Foi a força das organizações do terceiro setor (ONGs – Organizações Não Governamentais), no início dos anos 2000, que conferiu a Ivaldo a oportunidade ideal para que ele aprofundasse seu trabalho com os jovens da periferia. Os projetos de arte-educação eram o chamariz principal dessas instituições. Em pouco tempo,
FOTO: PRISCILA PRADE
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Cena do espetรกculo Mar de Gente, 2007
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as ideias de Ivaldo caíram nas graças das ONGs que, em conjunto com a equipe do coreógrafo, selecionavam adolescentes para participar. No calor de viver a juventude e no furor de querer tudo ao mesmo tempo, integrar um projeto pode ter soado para aqueles jovens mais como uma atividade lúdica, um passatempo. No entanto, a crença em um trabalho sério por parte de Ivaldo e a fama de seus feitos fez com que os participantes logo percebessem que a diversão poderia se tornar algo muito maior. Desde o começo, Ivaldo sabia que o trabalho não seria fácil. Primeiro, porque achava que se nem o jovem abastado se interessava por arte, ainda mais por dança, imagine o da periferia, que em casa normalmente não tinha qualquer motivação. No entanto, havia no aparente desinteresse um paradoxo. Ao mesmo tempo em que não se interessavam por suas heranças culturais, os adolescentes procuravam essas instituições e escolas de teatro, dança e música. O coreógrafo acredita que, intuitivamente, esses jovens percebiam que a arte seria uma das formas de ajudálos a complementar o aprendizado escolar. O adolescente morador de periferia normalmente não tinha escolha, e até hoje não tem, quando o assunto é escola. Com a família sem recursos financeiros suficientes para pagar pelo ensino, a escola pública, com sua antiga fama no que se refere à falta de qualidade, é a única saída. Logo Ivaldo sacou que valer-se desse jovem como público-alvo resultaria também em um trabalho educativo. A
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preocupação com a formação educacional, inclusive, viria a ser a última e mais importante mudança no seu Método. Segundo ele explica, desenvolver o psicomotor, objeto de trabalho do Método, consiste em mais uma forma de despertar o jovem para sua interiorização e ajudá-lo a desenvolver raciocínio e capacidade de escuta, além de motivar o desejo de estudar. Esse tipo de trabalho agrega conhecimentos ao adolescente, tipicamente competitivo e que busca estar inserido o tempo todo em uma tribo. Ele pode aprender com o rigor da disciplina e tem também a chance de liberar uma agressividade mal trabalhada. Como estudar em escola pública não parecia tarefa fácil, a ideia era unir conhecimentos e ampliar as possibilidades desses jovens. Ivaldo enfatiza que, na prática, já se via alguns projetos sociais que trabalhavam o desenvolvimento dos efeitos motores nos processos mentais. Era o caso dos grupos que ensinavam percussão, os “bate lata”, que nas últimas décadas deram certo. Para o coreógrafo, todo esse trabalho significava ver seu conhecimento de psicomotricidade aplicado e expandido, colaborando para a melhoria da fonação, linguagem, organização vocal e respiratória desses jovens. No final, o resultado foi avassalador: mais do que isso, os escolhidos tornaram-se protagonistas de sua arte. Ainda na capital paulista, Ivaldo criou o projeto “Mãe Gentil”, que resultou em um espetáculo de mesmo nome. Foi a terceira parceria que fez com jovens
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FOTO: ARQUIVO ESCOLA DO MOVIMENTO
Jovens do projeto Danรงa Comunidade encenam o espetรกculo Samwaad
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da periferia por meio do Comunidade Solidária, programa social comandado por Ruth Cardoso(8), que foi aluna e amiga pessoal do coreógrafo. O trabalho, que envolveu 53 adolescentes entre 12 e 20 anos das regiões de Carapicuíba, Belém e Penha, pretendia discutir a identidade da cultura brasileira, justamente o que Ivaldo acreditava ter se perdido entre eles. Viu-se ali a diversidade da linguagem cênica por meio da música popular brasileira, representada pelo cantor maranhense Zeca Baleiro e outras influências, do forró a MPB. Na atuação, artistas tarimbados como Rosi Campos representaram personagens urbanos como uma dona de casa, um executivo, um funcionário público e um moto-boy. Até Jeca Tatu, simbolizando a zona rural, teve seu lugar em cena. Pensadores e poetas como Olavo Bilac, Monteiro Lobato, Euclides da Cunha, Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Hollanda também serviram de inspiração. A identidade da população brasileira, então, dominava o palco. A marcada realidade social do País de poucos ricos e muitos pobres e suas outras contradições, também.
8. Ruth Cardoso foi antropóloga e lecionou na Universidade de São Paulo. Nascida em 1930, em São Paulo (SP), casou-se em 1953 com Fernando Henrique Cardoso, ex-presidente do Brasil. No entanto, nunca gostou do título de primeira-dama. Durante o mandato de seu marido, fundou o programa Comunidade Solidária, que busca combater a exclusão social e a pobreza. Em decorrência de problemas cardíacos, faleceu em junho de 2008.
PROJETOS MAIS QUE SOCIAIS
Depois da montagem em São Paulo, o espetáculo “Mãe Gentil” desembarcou no Rio de Janeiro em turnê e, em seguida, o projeto subiu o morro. Foi a vez de meninos e meninas da Favela da Maré serem aplaudidos por pais, mães, tios, irmãos e avós. Deles ou não.
Maré alta Envolvido com esse projeto, Ivaldo não teve dúvida e embarcou para a cidade maravilhosa. A metodologia, agregada exclusivamente a esse perfil do jovem, seria testada e aprimorada de maneira mais intensa de 2000 a 2002, no complexo da Maré. Cerca de 60 meninos e meninas, com idade entre 10 e 18 anos, que integravam o Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré (CEASM), ONG que desenvolve um trabalho sociopedagógico nessa comunidade, deram vida à dança e aos movimentos criados por Ivaldo. O corpo formava os desenhos geométricos característicos de suas coreografias para representar cultura e sociedade no espetáculo “Mãe Gentil” (2000). O ousado projeto de arte-educação do paulistano ecoou morro abaixo, rendeu duradouro sucesso e muitos outros espetáculos, como “Folias de Guanabara” (2001) e “Dança das Marés (2002)”. Estava formado o “Corpo de Dança da Maré”. Em “Folias de Guanabara”, os corpos da Maré se movimentavam ao som de cantores populares, de uma orquestra de cordas e de intervenções de
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música eletrônica, em um enredo que misturava ilusão e realidade. Dois deuses aborrecidos pelo universo que os cercava resolveram recriar o mundo. Além de representado na própria cena, o cotidiano da comunidade do Complexo da Maré era revelado em um telão. “Dança das Marés”, em 2002, foi escrito pelo médico Drauzio Varella e representou o jovem de forma mais plena. O espetáculo retratava a experiência da transição da infância para a adolescência em meio às dificuldades da vida na favela. A música clássica, o forró e o funk foram misturados à música oriental. Quando finalmente os jovens do morro desceram ao asfalto para mostrar que dificuldades financeiras nada tinham a ver com capacidade artística, o trabalho que dependia de patrocínio para ser desenvolvido, assim como em qualquer outro projeto e nos desenvolvidos em anos anteriores por Ivaldo, precisou ser interrompido exatamente pelo final da parceria financeira com uma instituição privada. Essa difícil ruptura pode ter posto água abaixo o sonho que esses jovens viveram durante aqueles anos. Mas certamente cada momento lhes serviu de pontapé para entenderem que tinham a capacidade de realizar maiores empreitadas durante a vida que tinham pela frente. Durante esses três anos de sucesso no Rio, Ivaldo vivia na ponte-aérea, pois ao mesmo tempo em que desenvolvia o projeto com os cariocas, mantinha em São Paulo sua escola. O término do trabalho no Rio fez com que Ivaldo voltasse para casa, mas não para descansar. No ano seguinte, em 2003, o coreógrafo montou,
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na capital paulista, o Projeto “Dança Comunidade”, com jovens da periferia da cidade. Os cinco anos seguintes foram inteiramente dedicados a esse desafio.
De volta à terra da garoa Com um projeto cada vez melhor estruturado, 50 novos jovens e 15 arteeducadores de Cidade Tiradentes e Ermelino Matarazzo, no extremo leste da cidade, a Campo Limpo e Jardim Monte Azul, no extremo sul da cidade, tinham à disposição professores, psicólogos, nutricionistas, médicos, fisioterapeutas, sexólogos e assistentes sociais que passaram a fazer parte do time de preparação. A partir deste momento, refeição, acompanhamento psicológico e cursos de formação eram aliados à música, dança e exercícios fisioterápicos. O funcionamento do Método continuava a ser categoricamente observado e atividades diferenciadas completavam a formação dos participantes. Aulas de origami, arte japonesa da dobradura de papel, serviam como exercício de organização de raciocínio e auxiliavam a melhorar a concentração do jovem irrequieto. Mais do que a aplicação do Método, esse projeto tinha o intuito de formar multiplicadores de sua metodologia para, quem sabe, o despertar da profissão ou para promover inserção cultural. “Samwaad – Rua do encontro” (2003/2004) e “Milágrimas” (2005) foram os primeiros espetáculos gerados por esse trabalho.
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FOTO: ARQUIVO ESCOLA DO MOVIMENTO
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Estreia do Samwaad no Sesc Belenzinho (SP), 2004
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As influências do samba e as décadas de estudo da cultura indiana desabrocharam em uma ousada coreografia que simulava uma cobra em movimento no espetáculo “Samwaad”, que significa “harmonia”, em hindu. A incrível dança veio para consagrar ainda mais os projetos de Ivaldo. Músicos sintonizaram a cítara indiana e o odissi com os característicos tamborim e pandeiro brasileiros. Uma dançarina indiana dividiu a cena com um casal de passistas de escola de samba, para mostrar que a partir dos extremos culturais de cada um, há pontos em comum capazes de conectar todas as classes sociais e diferentes povos para que interajam. O trabalho resultou no livro “Espaço e Corpo - Guia Método Bertazzo”, realizado para registrar como foi desenvolvido o projeto até a produção do espetáculo, além de contar com depoimentos dos jovens e de profissionais de diferentes áreas envolvidos no trabalho. “Milágrimas”, em seguida, emocionou pela mistura das culturas brasileira e africana. Mais do que a dança, a montagem envolveu canto e muita interpretação, enriquecida pelo talento de cada bailarino. Além do mais, o apartheid na África e o preconceito social no Brasil eram temáticas explicitadas na coreografia e encenação. “A cada mil lágrimas sai um milagre”, dizia um dos versos da canção do espetáculo. Em 2007, o espetáculo “Mar de Gente”, que contava a história da evolução do ser humano, significaria uma fase de transição do projeto. Juntos há mais de cinco anos, trabalhando cinco dias por semana, oito horas por dia, e fazendo muitos espetáculos, não dava mais para caracterizar o projeto como um trabalho social.
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O sucesso, inevitavelmente, levou à profissionalização dos bailarinos. Uma nova estrada se abriu para os participantes. Trinta desses jovens de comunidades carentes foram de integrantes de um projeto de dança a bailarinos com direito ao registro profissional de ator (DRT) e a carteira de trabalho assinada. Para ser honesto, Ivaldo descaracterizou o seu trabalho como social e foi para o segundo setor. Para muitos, a posição de Ivaldo perante os projetos que desenvolveu causou certo espanto e soou como hipocrisia. Porém, ele é categórico quando fala a respeito de seu envolvimento nos trabalhos. No Brasil, as pessoas costumam relacionar projeto social com caridade. O coreógrafo, no entanto, deixa claro que esse não é o seu papel. O processo de composição dos trabalhos desenvolvidos por Ivaldo é diferenciado. Os participantes são apresentados a uma metodologia, aprendem com equipes extremamente capacitadas e se preparam para o futuro na dança. - Eu vivo desse trabalho. Não há motivo para não cobrar. Eu acho hipocrisia. A transparência dos meus projetos sempre foi muito nítida e isso nunca foi um problema para mim.
O coreógrafo fala com veemência sobre o assunto porque já foi retalhado. Ele acredita não estar sozinho e usa como exemplo alguns grupos de teatro, dança e música que começaram com a bandeira social e hoje viajam para o exterior,
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trabalhando como profissionais. Carlinhos Brown inspirou a transformação de trabalhos sociais em atuação profissional. Quando inventou o timbal que, segundo Ivaldo, é um instrumento que está entre a sucata e verdadeiramente uma boa percussão, começou a profissionalizar meninos e meninas de comunidades da Bahia, os “Timbaleiros”, e colocá-los em bandas como contratados. - Uma das coisas mais prazerosas da vida é poder gerar emprego remunerado para um ser humano. Eu sempre insisti para que esses trabalhos não fossem voluntários. Jamais! O trabalho social consiste em construir inclusão social e oferecer mercado de trabalho para o jovem. O fato de tê-los levado para o profissional deveria servir de espelho para as pessoas refletirem. Todos os trabalhos que se aprimoram deveriam
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ser profissionalizados. As pessoas precisam entender a diferença entre inclusão social e assistencialismo. Vai ficar somente no social até quando?
Mais tarde, parte dos jovens, agora profissionais, formou a “Cia. de Teatrodança Ivaldo Bertazzo”, que excursionou pelo País com o espetáculo “Mar de Gente”. Entre 2006 e 2007, Ivaldo trabalhou com dois outros espetáculos: “Anatomia do Desejo”, em que é retomado o trabalho com os “Cidadãos Dançantes” e “Tudo que gira parece a felicidade”, resultado de outro trabalho que envolvia 100
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adolescentes residentes em locais de vulnerabilidade social na cidade de São Paulo, o projeto “Cidadança”. Neste trabalho, Ivaldo apenas supervisionou a aplicação do Método confiada a Inês Bogéa, bailarina durante 12 anos pelo grupo Corpo e que acompanhou a trajetória de Ivaldo por quatro anos quando foi crítica de dança do jornal Folha de S. Paulo (de 2000 a 2003), além de ter se formado em sua metodologia. Bailarinos da Cia. de Teatrodança Ivaldo Bertazzo também participaram do projeto como monitores. - Quando conseguimos discutir com os jovens valores estéticos e éticos e seus significados, ficou claro que o valor de projetos como esses vai bem além dos espetáculos produzidos, ressalta a bailarina.
103 Como resultado desses trabalhos, os “Cidadãos Dançantes” de ”Anatomia do Desejo“ e os jovens da periferia de “Tudo que gira parece a felicidade” dançaram no mesmo palco com os espetáculos integrados. Além disso, os jovens do “Cidadança” que participaram de um projeto de curta duração (10 meses) foram lançados ao desafio de dar continuidade ao trabalho, seja em apresentações pontuais, criação de coreografias ou assistência a projetos sociais de dança. Felizmente, mais tarde, alguns deles transformaram essa experiência em algo maior.
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Apresentação do Milágrimas, Sesc Pinheiros (SP), 2006
FOTO: ARQUIVO ESCOLA DO MOVIMENTO
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Palco Academia e Periferia (O Penhor Dessa Igualdade) (1997) No espetáculo, bailarinos profissionais e gente comum que se interessava pela arte de dançar dividiam o palco ao som do músico Naná Vasconcelos e de jovens integrantes de projetos que utilizam a música como inclusão social. A ideia do espetáculo era destacar características da cultura e sociedade brasileira - o erudito e o popular, amadores e profissionais, pobres e ricos.
Ciranda dos Homens... Carnaval dos Animais (1998) 106
Com a participação dos atores Marília Pêra e Roney Facchini, o espetáculo mostrou, mais uma vez, a diversidade brasileira. Por meio dos corpos diferentes, Ivaldo criou um teatro de bonecos e misturou com dança e pantomima (arte da mímica). Para completar a riqueza de culturas, o coreógrafo utilizou textos de grandes autores brasileiros, como Oswald de Andrade, Manuel Bandeira, Vinicius de Moraes e Carlos Drummond de Andrade, entre outros.
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Além da Linha d’Água (1999) A poesia e a música popular brasileira foram o pano de fundo deste espetáculo, que buscou retratar a luta do nordestino com a seca. A atriz Marília Pera interpretou uma mulher forte, que liderava um grupo de brasileiros que deixou o sertão em busca do mar.
Mãe Gentil, espetáculo montado em São Paulo (1999 / 2000) e no Rio de Janeiro (2000) Com os elementos artísticos trabalhados no espetáculo, Ivaldo colocou em discussão a identidade da cultura brasileira, justamente o que acreditava ter se perdido entre os jovens. A atriz Rosi Campos e o cantor Zeca Baleiro, entre outros grandes nomes da música brasileira, compunham o elenco. O espetáculo foi montado com jovens moradores de periferia de São Paulo e, posteriormente, com jovens residentes na favela da Maré, no Rio de Janeiro.
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Folias de Guanabara (2001) A atriz Rosi Campos, mais uma vez, protagonizou um espetáculo de Ivaldo, agora ao som dos cantores Elza Soares e Seu Jorge. Com eles, sobem ao palco cerca de 60 jovens da favela da Maré. Eles formavam, desde a chegada do projeto de Ivaldo ao Rio, o Corpo de Dança da Maré. No espetáculo, o real se torna lúdico e a ilusão vira realidade. Enquanto dois deuses recriam seus mundos, um telão exibe imagens do cotidiano e das pessoas que moram no Complexo da Maré.
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Dança das Marés (2002) Escrito pelo médico Drauzio Varella, o terceiro espetáculo montado por Ivaldo com jovens da Maré retratava a experiência da transição da infância para a adolescência em meio às dificuldades da vida na favela. A música clássica, o forró e o funk foram misturados à música oriental.
Espetáculo Noé, Noé no Teatro Tuca, em São Paulo, com a companhia de dança, 2008
FOTO: ARQUIVO ESCOLA DO MOVIMENTO
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FOTO: PRISCILA PRADE
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Ivaldo em momento de descontração com alunos do Dança Comunidade
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Samwaad – Rua do Encontro (2003/2004) Inebriado pela cultura indiana, Ivaldo inseriu a sua companhia nos palcos brasileiros para mostrar que mistura boa é a de raças. Durante o espetáculo, cerca de 50 jovens realizaram a ousada coreografia que simulava uma cobra em movimento. Um a frente do outro, de braços entrelaçados, remexendo o quadril e o tronco. O sári, tecido utilizado pelas indianas, também ganhou espaço. Os imensos panos eram agitados de acordo com o balanço da música, uma mistura de samba com a dança típica da Índia. Sucesso de público, Samwaad foi o começo da consagração do projeto Dança Comunidade. O espetáculo, que passou pelos Estados de São Paulo, Rio de Janeiro, Paraná e Minas Gerais, foi visto por mais de 130 mil espectadores e arrebatou, em 2004, o Prêmio Prince Claus Fund, concedido pelo instituto holandês de mesmo nome. A instituição apoia projetos que fortalecem a relação entre cultura e desenvolvimento. Samwaad também foi apresentado no exterior. Primeiro, em Paris, na França, onde representou o ano do Brasil na França. Em seguida, na Holanda, em um festival profissional de dança.
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Milágrimas (2005) Foi a realização de um incrível encontro entre a cultura brasileira e a africana. Com a participação de 41 jovens, com idades entre 14 e 29 anos e vinculados a diversas ONGs, Milágrimas foi baseado em uma das maiores manifestações culturais da África do Sul, a Isicathamiya. Na terra brazuca, o show ficou por conta dos gloriosos sambas de Dorival Caymmi e de Dona Ivone Lara, além da música de Itamar Assumpção. A sensibilidade da dança e da música atraiu a atenção dos olhares perspicazes dos críticos. O espetáculo chamou a atenção ainda para o Apartheid vivenciado pela África e também para o preconceito social existente no Brasil. 112 Tudo que Gira Parece a Felicidade (2006/2007) O espetáculo foi resultado do projeto Cidadança, no qual Ivaldo confiou a transmissão de seu Método à bailarina Inês Bogéa, sob sua supervisão. O desafio era fazer dos jovens participantes multiplicadores do Método, seja em projetos solos, novos espetáculos e coreografias ou nas atividades de dança e expressão da ONG em que participavam.
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Mar de Gente (2007) Mar de Gente chega aos palcos com a concretização do projeto social Dança Comunidade. Os participantes que chegaram como jovens amadores da arte de dançar atingem essa nova fase como profissionais, com carteira assinada e todos os direitos garantidos ao trabalhador. Já nas graças do público, o espetáculo contou com uma estreia e uma temporada badalada. O pano de fundo foi a evolução do ser humano. O som ficou por conta de músicas folclóricas húngara, romena, tcheca, egípcia, russa e cigana.
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FOTO: ANA PAULA SARTOR
O outro lado
Zumb Boys, grupo formado por ex-alunos de Ivaldo, se apresenta em CEU da capital paulista, 2009
O OUTRO LADO
Muitos dos jovens que tiveram seus caminhos trilhados com a ajuda de Ivaldo Bertazzo hoje são parte insolúvel de duas histórias: a do coreógrafo, e a dos próprios, a quem Ivaldo apresentou horizontes que não se mostravam claramente possíveis em meio à difícil realidade da periferia brasileira. Mais do que acreditar que aqueles meninos e meninas eram “Cidadãos Dançantes” em potencial, Ivaldo fez com que eles acreditassem em si mesmos e os conscientizou de que eram agentes transformadores da sociedade em que vivem. O coreógrafo uniu a vocação para lecionar a uma responsabilidade social que não lhe fugia da mente em cada contato com projetos independentes de educação artística Brasil afora. Não é difícil notar em uma conversa com Ivaldo que de nada teria valido sua carreira, não fosse a ocasião favorável em que criou a próprios punhos o seu Método e passou tudo que aprendeu adiante. De frente para quem recebeu de braços abertos essa oportunidade profissional e de vida, percebe-se uma cabeça erguida, com olhar na direção do horizonte e uma sensação de saber que se é capaz. Como se diz em clichê, “isso não tem preço”. Mas talvez tenha: o preço do reconhecimento. Ivaldo lidou com críticas, enfrentou preconceitos e dificuldades de aproximação. Não desistiu, sabia que o fim justificaria os meios, e hoje os vê justificados. Foram longos anos de aprendizado mútuo, porque não se sai de uma experiência como esta da mesma forma como se entrou. O coreógrafo viveu isso. Seus aprendizes viveram junto a ele. E se estes não tomaram o rumo inicial que o mestre lhes havia planejado, é porque souberam ir além: incorporaram
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na alma as lições, e as aplicam onde quer que estejam, seja qual for a atividade em que se engajaram. O coreógrafo procura, ainda, quem queira seguir seus passos na posição de sucessor. No entanto, seu legado não cabe em um só ser, mas em vários. O resultado de seu trabalho são vidas transformadas. Entre histórias tão distintas, soa em uníssono um sincero “muito obrigado”.
Aprender, e criar os próprios passos
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Aos 12 anos, veio o interesse pela capoeira, e ele faz parte dos que consideram esta arte uma dança. Em decorrência dela, seus atabaques, berimbaus e pandeiros, o ouvido apurou-se. Ele é capaz de perceber uma sonoridade quase sagrada vinda das mais genuinamente brasileiras notas musicais. É aqui que começa a história que envolveu Márcio Greik Lima Ferreira ao mundo dos movimentos artísticos corporais, e a Ivaldo Bertazzo. Antes mesmo de esse encontro acontecer, aos 15 anos de idade, Márcio começou a fazer outra dança, a de rua, atividade quase natural para quem se envolve com arte na periferia de São Paulo. O estilo está presente nas comunidades,
Os Zumb Boys em apresentação de dança de rua, 2009
FOTOS: ARQUIVO PESSOAL MÁRCIO GREIK
O OUTRO LADO
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nos guetos e em rodas, que se juntam sem ter muitas opções de diversão em razão das quase escassas condições financeiras, e que ali mesmo ditam as regras do remelexo. Pela experiência adquirida em tão pouco tempo de prática, Márcio foi indicado para dar aulas de dança para jovens carentes de Ermelino Matarazzo, onde mora, por meio do Projeto Samaritano, criado por uma ONG local. Nele, os chamados arte-educadores ensinariam o que sabiam sobre vários tipos de expressões culturais. Ali, o garoto ouviu pela primeira vez o nome de Ivaldo Bertazzo. Era o Método criado por este cara que ele seria pago para aprender, e ensinar. 120
–O projeto inicialmente procurava pessoas para dar aulas. Fui indicado, mas no começo não sabia muito bem o papel que teria que desempenhar; tudo era novidade. Com o passar do tempo, e da quantidade de aulas que eu me dispunha a fazer para aperfeiçoamento, entendi a profundidade do artista Ivaldo Bertazzo. Além do Método, eu aprendi dança clássica indiana, música, origami... Com tudo isso unido à minha experiência com dança de rua, que trabalhou minha concentração, comecei a perceber a importância da formação completa de um artista que se dispõe a lecionar.
De fato aquilo tudo mexeu com a cabeça do garoto de apenas 15 anos, que convivia com profissionais de 30 ou mais. Dos sete módulos que compõem o
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Método Bertazzo, Márcio completou quatro, e por isso pôde dar um passo a frente como professor: tornou-se docente do Método durante o projeto Cidadança e envolveu-se educacionalmente com mais de 100 jovens carentes. E os palcos... ah, esses não dava para abandonar. Prontificou-se sem pestanejar quando ouviu nos corredores do projeto a ideia de outros colegas de criar um grupo de apresentações, que recebeu, mais tarde, o nome de Companhia Dança Teatro Ivaldo Bertazzo. Em quatro anos, os dançarinos criaram e levaram ao público dois grandes espetáculos aos quais o nome de Ivaldo é sempre associado com sucesso: Samwaad e Milágrimas. A partir daí, ele viu o bolsa-auxílio e os vales-transporte e refeição transformarem-se em salário. Estava incluso socialmente. Foi graças à dança que teve a oportunidade de viajar ao exterior. Conheceu a França e a Holanda por meio dos palcos. Mas ao voltar, Márcio deparou-se com a fadiga. Já não conseguia mais dar conta de seus outros projetos paralelos, ligados à capoeira, à dança de rua e às pesquisas recém-iniciadas sobre percussão corporal. O ano era 2006 quando o bailarino decidiu abandonar os projetos de Ivaldo, mas não o sonho de garoto de viver da dança. Entrou para outra companhia, a Omstrab, que já havia demonstrado interesse em tê-lo em seu corpo de baile. Além desse, um outro convite, que de certa forma não o deixava se desligar totalmente de Ivaldo: a programática Inês Bogéa, junto ao produtor Luiz Nogueira, o queria em Fábrica de Cultura. Este, seguindo os passos da inclusão social, também queria ver jovens carentes no palco, a fim de tirá-los de situações de marginalidade social
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com o auxílio do Governo do Estado de São Paulo. Márcio aceitou engenhar-se em ambos. Já tinha plena noção de suas possibilidades e talento. Nesse período, a relação direta com Ivaldo estremeceu. Ficou “estranha”, como Márcio define. O renomado coreógrafo tem o costume de proteger seus bailarinos, dando-lhes conselhos e uma estrutura qualificada pelos integrantes como excelente. No entanto, houve um momento em que o aprendiz não conseguia mais ter uma visão geral do que é estar envolvido por completo nos projetos. Com o Cidadança, ele apenas executava sua arte, enquanto em seus projetos atuais, ajuda até nas técnicas de luz e som. Para ele, há dois lados: se você se dedica só à dança, trará mais resultados, e quanto a isso confirma que Ivaldo está coberto de razão em proporcionar somente dança aos mestrandos. Mas fazer tudo ao mesmo tempo desenvolve o profissional de forma mais gradual. E era isso que ele queria. Hoje tudo “está bem”, diz um Márcio feliz, que teve a presença ilustre de Ivaldo em uma apresentação de sua mais recente companhia de dança de rua, a Zumb Boys, criada com outros colegas da época do Cidadança: Edeilson Francisco de Lima e os irmãos, Pablo Vieira Arari e Vinicius Silva Costa. Há sete anos, eles se reuniram e tiveram a ideia. Porém, apenas há dois deram os primeiros passos para transformar o sonho em realidade. Quando souberam que a Secretaria de Cultura de São Paulo havia aberto um edital, viram que era a hora certa. Desenvolveram então o projeto por completo e enviaram ao órgão em
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busca da verba oferecida, que lhes daria a estrutura necessária. Logo no primeiro ano, 2008, conseguiram incentivos para montar um espetáculo, apresentado em diversas unidades do CEU (Centro Educacional Unificado) da capital paulista e em salas da famosa galeria Olido. No ano seguinte, excursionaram com ela pelo interior do Estado. Em 2010, os amigos montarão cursos com o dinheiro já conquistado. Em todos esses casos, as dificuldades apareceram, como já era de se esperar. Na vida desses meninos, nada mesmo havia sido fácil até então, porém a força de vontade que aplicaram nas atitudes os levou aos ganhos, e certamente grande parte dessa persistência teve origem nos ensinamentos de Ivaldo. Hoje, já conseguem “tirar o próprio dinheiro, que é pouco, mas suficiente pelo fato de contarem com poucos integrantes”, diz Márcio. E qual teria sido a reação do clássico Ivaldo ao assistir à dança das ruas? - Foi muito bacana. Ficamos felizes por ele ter ido. Ele criticava este estilo, dizia que era muito “quadrado”. Quando desenvolvemos a coreografia, aplicamos muito do que ele ensinou, do Método, para conferir mais movimento à dança. E ele pôde ver isso. De forma geral, toda a experiência ao lado do Ivaldo foi muito boa. O jovem precisa enxergar sempre o lado do prazer, mas também o das consequências pelo que faz. É preciso ensinar as pessoas a buscarem o que desejam. Eu aprendi esses dois lados, e ainda tive a oportunidade de passar isso adiante. Sou grato a ele.
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FOTO: ANA PAULA SARTOR
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Del, Mรกrcio e Vinicios, integrantes do Zumb Boys, se apresentam em CEU da capital paulista, 2009
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Dom familiar
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Transformação, motivação e oportunidade. Essas são as palavras que representam a participação de Ivaldo na vida dos irmãos Pablo Vieira de Arari (20) e Vinicios Silva Costa (18). Nascidos em São Miguel Paulista, periferia de São Paulo, ambos iniciaram o gosto pela arte com o break, mais conhecido no Brasil como dança de rua. Os primeiros passos foram percorridos na ONG Nova União da Arte, local onde Pablo iniciou seu contato com a capoeira aos oito anos, enquanto Vinicios começou pela dança de rua aos 14 anos. Em 2003, Pablo soube que aconteceria uma audição para participar de um projeto, que para ele tratava-se de dança de rua. Na verdade, a seleção dos candidatos era para um dos projetos de Ivaldo: o “Dança Comunidade”. Com a determinação de investir em sua carreira profissional, Pablo realizou todos os testes da audição e, para sua surpresa, foi selecionado. No início, confessa que ficou decepcionado, pois não era isso que desejava, mas não desistiu e, assim como Ivaldo, acabou se apaixonando pelas técnicas e ensinamentos do coreógrafo. - Eu cresci na academia do Ivaldo. Fiz alguns espetáculos, gostei muito, me identifiquei e comecei a investir nisso. Hoje eu vivo pela dança.
Pablo participou de todas as apresentações do Dança Comunidade: “Samwaad – Rua de Encontro” (2004); “Milágrimas” (2005); “Mar de
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Gente” (2007); e “Noé, Noé” (2008). Para a realização desses espetáculos, foi preciso muito treino, disciplina e postura. O dançarino teve aulas de origami, arte japonesa da dobradura de papel, exercícios de organização e raciocínio. Além disso, aprendeu todas as técnicas da dança indiana. Para Pablo, todo o esforço foi recompensado, já que com as apresentações viajou para várias cidades de São Paulo e também para outros estados, como Rio de Janeiro, Paraná e Minas Gerais. Somam-se a essas experiências as viagens internacionais para a França e a Holanda, em 2005, com a peça “Samwaad – Rua de Encontro”. Em 2007, com os espetáculos “Mar de Gente” e “Noé, Noé”, Pablo já era um profissional contratado pela Companhia Teatro Dança Ivaldo Bertazzo. 127 - Viver tudo isso foi uma grande faculdade. Tive a oportunidade de conhecer diversos lugares e aprendi um pouco mais de cada cultura com que tive contato. Adquiri excelentes conhecimentos, tanto pessoal como profissionalmente.
O dançarino sempre teve o apoio de sua família. No início, o avô não concordava muito, porque achava que a dança não era uma profissão que levaria o neto a ter um futuro bom, estável para manter-se. Porém, quando Pablo foi realizar sua primeira apresentação, o teatro estava lotado. Quando o espetáculo acabou, ele pode ver o seu avô sentado em uma das cadeiras o aplaudindo. Para ele, a cena foi emocionante.
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- A partir desse momento, percebi que era isso mesmo que eu queria.
Seu último trabalho profissional com Ivaldo foi a apresentação realizada na edição 2009 do Criança Esperança, atração produzida pela Rede Globo. Hoje, Pablo mora sozinho e conquistou a própria independência. Para ele, a oportunidade de trabalhar junto com o coreógrafo foi fundamental, pois agora tem uma profissão e consegue o próprio sustento. Com a experiência adquirida, o dançarino já conseguiu realizar cursos de balé e dança contemporânea. Agora, quer se especializar na dança para dar aulas e, assim, seguir o caminho de seu mestre. 128
- Eu quero sempre poder viver da dança, seja da maneira que for.
A convivência entre Ivaldo e Pablo não poderia ser melhor. Professor e aluno tiveram momentos difíceis, como nos ensaios caracterizados pela rotina pesada e pelos treinamentos puxados. O dançarino conta que Ivaldo sempre esteve presente ao seu lado o apoiando e ensinando. Pablo afirma ainda que os ensinamentos e aprendizados do coreógrafo serão levados para sempre em sua vida e que sua técnica é correta, pois ensina o aluno a ter uma postura e movimentar-se corretamente.
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- Devo muita coisa a ele. Ivaldo é como um pai para mim.
Parece que a dança está no sangue dos irmãos. Com Vinicios não foi muito diferente. Aos 13 anos, o garoto foi a uma festa de final de ano da ONG Nova União da Arte e viu uma apresentação de dança de rua. O espetáculo agradou tanto que a partir daí o menino já estava decidido a se inscrever na instituição para fazer parte das aulas no ano seguinte. Na ONG Nova União da Arte, conheceu um professor de dança de rua que trabalhava com Ivaldo e já transmitia alguns ensinamentos do coreógrafo aos seus alunos. O profissional usava as técnicas do Método Bertazzo no aquecimento de seus alunos antes das aulas. Em 2006, quando Ivaldo desenvolveu o projeto “Cidadança”, Vinicios iniciou seu contato com a companhia do coreógrafo. Para entrar no projeto, Vinicios teve que enfrentar muitos obstáculos e também diversos concorrentes. Ele concorreu com mais de mil jovens de diferentes ONGs de São Paulo para apenas 100 vagas oferecidas pelo Cidadança. O professor do dançarino o indicou, mas o mérito é todo dele. Para ser classificado, foi preciso responder um enorme questionário, ler um texto na frente de todos, cantar uma música, fazer uma coreografia e, por último, improvisar uma dança. No projeto Cidadança, aprendeu o Método de Ivaldo, fez educação do movimento, aula de sociabilização, de cidadania e de fisioterapia. Vinicios
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participou do espetáculo “Tudo Que Gira Parece a Felicidade” e ficou junto do coreógrafo durante um ano. Foram 11 meses de preparação e um mês de apresentações. Além disso, participou junto com seu irmão Pablo da edição 2009 do Criança Esperança. Atualmente, integra a Oficina Cultural Oswald de Andrade e apresenta em 2010 um espetáculo que falará sobre a vida de Villa Lobos. Vinicios afirma que a sua participação no Cidadança é gratificante porque Ivaldo é uma pessoa bacana e tem um trabalho reconhecido. Além disso, diz que nunca imaginou que um dia poderia ter essa oportunidade. - Já tinha assistido a dois espetáculos do Ivaldo e achei muito interessante, me emocionou.
130 Para o dançarino, a maneira com que o coreógrafo ensina seus alunos é diferente. A pessoa se apega a ele e, ainda por cima, aprende brincando. A forma com que Ivaldo aplica o Método chama a atenção de Vinicios. Para ele, a energia de Ivaldo é transmitida nas aulas, quando ele exemplifica os movimentos com seu próprio corpo. - Me sinto honrado. Essa oportunidade chegou, eu abracei e aconteceu toda essa mudança em minha vida.
FOTO: ARQUIVO PESSOAL PABLO DIEGO DE ARARIPE
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Pablo em apresentação de dança de rua, 2009
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Rápida passagem, longa experiência
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Edeilson Francisco da Silva, o Del, começou a se interessar por dança de rua aos 15 anos. Em 2004, um dos assistentes de Ivaldo Bertazzo foi até a oficina em que ele dançava à procura de novos talentos para uma audição do projeto Dança Comunidade. Persistente e encantado com a possibilidade de aprender uma nova vertente da dança, que até então lhe parecia distante a ponto de julgar inatingível, o adolescente deu o melhor de si e foi um dos selecionados. Passou, então, a conviver com o mestre que lhe oferecera um Método. Ao longo dos anos em que conviveu com Ivaldo e seus demais aprendizes, Del participou do espetáculo “Samwaad – Rua de Encontro”. Nos ensaios, aprendia muito mais que técnicas. O trabalho o ensinava a buscar condições de vida que o dirigissem a novas oportunidades. Viajar e conhecer o interior de São Paulo e a Cidade Maravilhosa eram algumas delas. Apesar disso, para estar à altura do exigido por Ivaldo, eram necessárias até oito horas diárias de ensaio, sem espaço para fins de semana ou feriados. Del sentia-se cansado. Além disso, outros deveres sociais começaram a surgir em sua vida, obrigando-o a auxiliar no sustento da casa junto aos pais. Mais um caso de necessidade, tão comum na sociedade brasileira, que acaba por tirar os jovens de caminhos aos quais teriam mais sucesso. O jovem saiu da companhia para colocar a “mão na massa“. Deu aulas, participou de oficinas, gerou o próprio dinheiro e repassou a outros o que aprendeu com seu mestre. É essa mesma a lição que Ivaldo
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quis passar, e Del assimilou: a arte de transmitir conhecimento. Atualmente, o bailarino trabalha na Fundação Tilio Setuba e possui 25 aprendizes. É impossível ver o dançarino no palco e não enxergar nele os mesmos passos de Ivaldo. O artista afirma que antes não tinha nenhuma noção de palco, iluminação, percussão, fisioterapia ou reeducação do movimento do corpo. - Foi um passo fundamental para que eu fosse inserido ao mercado da dança. Ivaldo é até hoje uma ótima referência, independente da vertente artística em que atue.
Sonho realizado 133 Desde criança, Silvana de Jesus Santos tinha um sonho: ser bailarina. Como atividade complementar aos estudos, passava horas e horas dançando no Centro Nossa Senhora Aparecida, ONG da União de Vila Nova, localizada no bairro de São Miguel Paulista, onde mora. Nunca tinha tido contato com Ivaldo Bertazzo, até coincidentemente sua vida mudar de forma muito parecida com a de Del, que depois viria a se tornar seu amigo. Em uma tarde de ensaios, Guto apareceu. Assistente do famoso coreógrafo, o profissional estava em busca de jóias ainda não lapidadas para a companhia do mestre. Ela foi selecionada, e ali se abria um novo horizonte para sua vida pessoal e profissional.
FOTO: ARQUIVO PESSOAL SILVANA DE JESUS SANTOS
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Silvana no destaque em cenas do espetáculo Noé, Noé! Deu a louca no Convés
O OUTRO LADO
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Apesar de, no início, não saber se era isso mesmo que queria, e de reconhecer que dançar era o que mais lhe dava prazer, acabou “deixando rolar”, já que também tinha planos pré-definidos de vida, como viver da Educação Física, que naquele momento era seu objetivo de graduação. Entendeu aos poucos que havia sido escolhida para estar em uma das maiores companhias de movimento do Brasil. Cada ensaio, passo, coreografia, aula e conversa com pessoas mais experientes a faziam sentir-se um ser humano mais forte. Foi assim por cinco anos e meio. Pela habilidade desenvolvida e demonstrada, Silvana foi convidada a ministrar oficinas no Método Bertazzo. Recebia para isso, até então, apenas auxílio que incluía lanche, material didático, transporte e bolsa de estudo. Com o passar dos anos, seus passos se profissionalizaram, ela chegou a integrar o quadro fixo da companhia e teve até carteira assinada. Foi uma das pessoas que experimentou na pele o que Ivaldo chama de inclusão social. No final do ano de 2007, Silvana pediu para sair da companhia. - Não conseguia conciliar a faculdade, que decidi iniciar, com os inúmeros ensaios. Decidi priorizar os livros também ao perceber que, por conta de uma crise mundial que acarretava a falta de patrocinadores, Ivaldo dispensaria alguns alunos.
Para não abandonar de vez a dança, fundou com mais cinco bailarinos a companhia Batakerê, além de trabalhar com outro grupo, o Omstrab, que mistura percussão, dança e teatro. Silvana ainda mantém contato com o seu mestre.
O OUTRO LADO
Em agosto de 2009, foi convidada por Ivaldo a participar do programa Criança Esperança, projeto social transmitido pela Rede Globo. - Devo 80% de minha experiência profissional ao aprendizado que tive com Ivaldo e pretendo levar essa bagagem cultural para o resto da vida, onde quer que eu esteja e seja qual for a minha atividade. Essa iniciativa não mudou a minha vida, mas acrescentou. O conhecimento que eu tinha não foi jogado fora depois que conheci o Ivaldo. Na verdade, minha visão foi ampliada com relação a tudo. As oportunidades estão à nossa frente e o que devemos fazer é aproveitá-las. Eu aproveitei.
A pequena maresia carioca Do alto do morro eles têm uma vista privilegiada. A baía de Guanabara se ilumina a partir dos primeiros raios de sol pela manhã e o mar, de tão azul, se confunde com o céu. Do alto do morro eles têm a visão do cenário turístico mais requisitado de quem vai ao Rio de Janeiro: a praia, o sol, as ilhas e o fim de tarde. Do alto do morro, como qualquer brasileiro, eles têm a ginga, o jeitinho, o ritmo e a certeza da luta diária por uma vida melhor. Do alto do morro, assim como o sol traz as alegrias todos os dias, os problemas sociais revelam as tristezas, as incertezas e os medos. Esse morro é conhecido também como Maré, mas, diferente daquela que
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traz o movimento do mar, a maré de lá é cheia de imperfeições, repleta de nuances capazes de modificar ou estagnar de vez a vida de qualquer um. Ali, no meio das casinhas sem reboco e tampouco uma fiação de energia adequada, a violência pode tomar conta. Nas favelas que integram o Complexo da Maré, o povo vive, mas o tráfico manda. Afinal, trata-se do maior conjunto de habitações ilegais da cidade do Rio de Janeiro. Onde a lei não tem voz, o crime se alastra, vira pluralidade e atinge todos os cantos. Apadrinhado pelos problemas sociais (falta de emprego, saúde e educação), ele ganha força e pode influenciar muita gente. Ser a maioria na Favela da Maré é optar pelo caminho mais fácil. Isso quando se tem a ideia de dinheiro rápido para pouca capacitação profissional e que, de uma forma ou de outra, as atenções locais estão sempre voltadas para esse tipo de trabalhador informal, o conhecido traficante. Ser minoria, e há sim essas minorias, é o que é difícil na Maré. Nas favelas não existem apenas pessoas que optam pelo modo de trabalho criminal. Grande parte luta e encara suas vidas com muita perseverança e honestidade. Lidar com esses problemas e enfrentá-los de frente sem se desviar do caminho correto, muito mais do que uma questão de índole ou base familiar, pode ser analisado como uma vontade de ser ajudado. Oportunidade para quem quer auxiliar no desenvolvimento intelectual e motivacional dos habitantes da classe baixa é o que não falta no Complexo da Maré.
O OUTRO LADO
A dificuldade maior está sempre em encontrar essa pessoa que ajudará. Ivaldo foi um desses anjos da guarda que conseguiu guiar uma série de estrelas perdidas, como um pastor que revela ao seu rebanho que o essencial não é ser conduzido, e sim aprender a pensar e andar com as próprias pernas. A pequena Rose, um dos principais diamantes que Ivaldo lapidou na Maré, pode ser considerada um exemplo vivo de que a tal minoria pode, sim, ser capaz. Dançarina de nascimento e bailarina de profissão, a menina já usava sua saia toutou cor de rosa desde muito cedo, acompanhada sempre de sua maria-chiquinha nos cabelos e de uma meia rosa-bebê que cobria toda a dimensão da perna. Como se a dança viesse junto com seu DNA, a pequena garotinha não parou mais. Aos 10 anos, entrou para o Centro de Estudos de Ações Solidárias da Maré (CEASM), uma ONG de auxílio aos jovens da favela, para aprimorar suas técnicas de dança. Filha de um professor que aos fins de semana ganha a vida como músico e de uma dona de casa, Rosimere Silva de Barros, como é seu nome completo, sempre ouviu muita música em seu lar, já que além do pai, dois dos seus três irmãos trabalham como musicistas. Música essa que sempre deu o ritmo aos seus passos e coreografias, um ritmo adquirido em casa e aperfeiçoado nas aulas da ONG. A vida da garota, que nasceu em um carnaval, sempre foi a dança. Pela manhã ia à escola e, na parte da tarde, seguia para o CEASM, na rua acima da sua casa. Para estar, ali Rose tinha que se dedicar muito aos estudos. Não havia tempo para ser atraída aos piores caminhos que morar em uma favela pode oferecer.
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– A violência existe, mas eu não tinha muito tempo para vivenciar e sofrer com isso. Tive amigos que participaram do crime e morreram, inclusive o Emerson. Ele fazia parte da companhia do Ivaldo Bertazzo, mas infelizmente voltou ao tráfico logo depois que o projeto terminou e acabou morrendo também.
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Quando Rose tinha apenas 14 anos de idade o coreógrafo Ivaldo Bertazzo, até então desconhecido para a garota, chegou ao CEASM com o intuito de fazer audições com jovens para um projeto social que resultaria na criação do espetáculo Mãe Gentil. Ivaldo foi até a Maré pessoalmente recrutar matéria-prima para moldar e Rose foi uma das escolhidas por ele. A menina nem se dava conta de que estava pisando em solo sagrado e que essa atitude mudaria sua vida para sempre. Ali, conheceria alguém que poderia chamar de mestre. Os ensaios aconteciam todos os dias com o auxílio de uma equipe com quatro ensaiadores e a presença de Ivaldo sempre aos finais de semana, a princípio, e diariamente quando a estreia do espetáculo estava próxima. Foi assim, durante os treinamentos do que viria a se tornar um show, que Rose começou a descobrir quem era o homem engraçado que saía de São Paulo para passar ensinamentos aos jovens da Maré.
Rose interpreta prostituta em Noé, Noé! Deu a louca no Convés, no teatro Tuca, em São Paulo, agosto de 2008
141 FOTO: ARQUIVO PESSOAL ROSIMERE SILVA DE BARROS
O OUTRO LADO
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– Eu estava na idade de formar minha identidade. Ele me fez amadurecer, abrir os olhos para a cultura, me interessar pelo teatro e me dedicar sempre mais. Também aprendi a repassar aos outros tudo o que ele me ensinou. Multiplicar seus ideais. Conhecê-lo acrescentou muito para o meu crescimento pessoal. Se eu não tivesse participado do projeto, não seria quem sou hoje.
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No projeto, Rose conhecia pessoas de estrema influência cultural para sua vida, como foi o caso do cantor e compositor Zeca Baleiro. Para ela, era mágico sair de um lugar cheio de artistas e, de certa forma, abrir totalmente o leque de possibilidades de aprendizagem como bailarina. Nessa época, ela ganhava R$ 300 como bolsa-auxílio do projeto, mas para uma garota de 14 anos isso já era muito. O importante era aprender e estar cercada de pessoas influentes. Trabalhou com Sergio Rosa, Rose Cândido, Jô Soares e até o médico e escritor Dráuzio Varella dava o ar da graça no projeto para saber mais sobre as histórias dos meninos da Maré. Nessa fase do projeto social, Rose participou de três espetáculos coreografados e imaginados por Ivaldo: Mãe Gentil, Folia da Guanabara e Dança das Marés. Durante o Folia da Guanabara, a menina teve a oportunidade de conhecer uma pequena parte do Brasil, veio a São Paulo e foi até Salvador. Na última viagem, a da capital baiana, Rose presenciou um dos momentos mais emocionantes de sua jovem carreira.
O OUTRO LADO
– Aconteceu um blecaute no momento em que um dos cantores se apresentava com os bailarinos, mas isso não afetou a gente. Dançamos no escuro e o cantor fazia a música à capela. Estava tudo no tempo certo e quando acabou a plateia gritava bis. Foi inesquecível.
O momento era muito bom e a pequena bailarina não queria acordar do sonho. A cada ano que passava ela se perguntava se tudo aquilo iria continuar. Foi assim durante três anos e, em um determinado momento, aconteceu o que ela mais temia. Os projetos chegaram ao fim. Ivaldo tinha que voltar a São Paulo e se dedicar inteiramente ao futuro de sua escola de dança. Agora chegara a hora do mestre descobrir se ensinou bem os seus pupilos, aqueles que tinham aprendido toda a essência dos aprendizados de Ivaldo seguiriam com as próprias pernas os caminhos impostos pela vida. Além de serem os instrumentos de trabalho da bailarina, as pernas que dançam e encantam com movimentos de um misto entre destreza e beleza, serviram para Rose caminhar sozinha. E ela realmente fez isso. Prosseguiu sem medo de olhar para trás. Rose continuou os ensaios diários com a companhia formada por seus amigos, afinal todo o esforço empregado em três anos não podia terminar daquela forma. Desistir não passava pela sua cabeça. No próprio CEASM foi iniciada uma série de aulas de dança com vários professores de excelente qualificação, talvez até oriundos da motivação de
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Bertazzo com os meninos da Maré, mas que terminaram muito cedo por falta de recursos financeiros. Mesmo assim, eles continuavam a ensaiar sozinhos, um ajudava o outro a executar determinado salto com perfeição ou representar um difícil movimento da melhor forma possível. Era uma espécie de cooperativa de jovens dançarinos com o intuito único de aprender e realizar seus sonhos. – A gente ensaiava todo dia, sozinhos, sem nada, no tempo em que podíamos. Chegamos até a ser chamados para algumas apresentações de dança. Nos dedicávamos, mas acabávamos sofrendo por falta de dinheiro.
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O tempo passava e com ele as necessidades de uma criança mudavam à medida que ela se tornava adulta. Agora não bastava mais brincar, dançar e ser feliz, era preciso ganhar dinheiro e ajudar nas contas de casa. Rose, então, parou de ir aos ensaios com os amigos e resolveu investir seu tempo em outro ramo. O que ela não sabia, no entanto, era que essa fuga seria por pouco tempo. Com o desejo de ajudar sua família e seguir da melhor forma com a vida, Rose começou a trabalhar na cozinha de um restaurante e já tinha planos de montar seu próprio negócio de buffet com a ajuda de amigos. A sociedade entre os jovens consistia na elaboração de kits de festas e cestas de café da manhã. Esse pequeno comércio estava começando a dar certo. Eles já prestavam serviços fixos em alguns restaurantes e hotéis de Copacabana.
O OUTRO LADO
Era trabalho das seis da manhã a uma da madrugada todos os dias. As poucas horas de sono e o desgaste físico e mental impostos pela nova rotina tiraram a alegria da eterna bailarina. Os pais a sentiram muito cansada e sem aquele gosto bonito de se ver que ela exibia sempre que dançava. Estava na hora de uma luz no fim do túnel aparecer, ou até mesmo uma estrela guia reaparecer em sua vida. Foi então que em uma segunda-feira mais do que normal, Rose ficou sabendo que Ivaldo faria audições para bailarinos que gostariam de ingressar em sua companhia de dança em São Paulo. Seria um trabalho com carteira assinada e benefícios, para realizar diariamente tudo o que mais gostava. Era um sonho, mas a garota, já com 21 anos de idade em março de 2008, ainda estava na dúvida, não queria trocar o certo pelo desconhecido. – Me falaram que eu tinha dois dias para enviar meu currículo e, em seguida, saber se havia sido aprovada para participar da audição. Enviei tudo na última hora e depois descobri que tinha passado nessa primeira fase. Foi aí que vim para São Paulo fazer a audição.
No teste havia mais de 60 bailarinos, gente da melhor qualidade no quesito dança e que, a princípio, assustaram a pequena carioca. Mas parece que Ivaldo via algo a mais na menina. Tanto esforço acabou dando certo. Rose foi a única bailarina
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do Rio de Janeiro a entrar na Companhia do coreógrafo. Se sobravam alegrias de um lado, por conseguir realizar um grande feito, pelo outro as dúvidas tomavam conta da bailarina. Ir ou não ir? Aconselhada pelos pais, ela resolveu arriscar e vir morar e trabalhar em São Paulo. Largou a sociedade, a família e o namorado Roterdan, que conheceu durante o projeto de Ivaldo na Maré e hoje é cabo da aeronáutica. Veio com uma mão na frente e outra atrás, no bolso uma passagem só de ida e no coração a vontade de vencer. Atirou no escuro para aprender mais com um grande mestre. – Vim porque gosto muito de dançar e, principalmente, porque gosto muito do Ivaldo, do Método e do trabalho dele. Acho que se não fosse pelo Ivaldo talvez eu não viria. Foi
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por causa dele que larguei tudo.
Quando chegou a São Paulo, não tinha para onde ir, mas recebeu o auxílio de um amigo, também da companhia, que lhe abrigou em sua casa em Taboão da Serra, na Grande São Paulo. Seu nome é Rubens e ele acabou se tornando colega de casa em São Paulo. Eles juntaram mais algumas pessoas e passaram a dividir o aluguel de uma casa no bairro da Vila Madalena. Pelo jeito, de uma forma ou de outra, a vida de Rose foi se encaminhando na cidade que não para nunca.
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– Agradeço a Deus todos os dias por ter me dado esta oportunidade. Eu sou feliz com as pessoas à minha volta e com tudo o que estou aprendendo. Estou feliz com o Ivaldo, que nunca é a mesma pessoa e sempre está te dando coisas novas. Então vale a pena, quanto tempo for, participar ao lado dele.
Desde 2008, agora na Companhia de Dança Ivaldo Bertazzo, Rose participa de inúmeros espetáculos idealizados pelo artista ou até mesmo programas de TV que tiveram a coreografia e corpo de balé do grupo. No espetáculo Noé Noé! Deu a Louca no Convés, no qual teve a oportunidade de voltar a sua terra natal para se apresentar, a bailarina encara a personagem de prostituta e mostra que, além de saber dançar, um bom artista deve ter capacidade de expressar tudo aquilo que a arte pede. Números de dança na TV não faltaram, foram muitos especiais da Rede Globo como o Show da Virada e o Criança Esperança. Neste último, por exemplo, dançou à moda indiana ao lado da atriz Juliana Paes (que vivia na época a personagem Maya na novela Caminho das Índias). Ali Rose mostrou ao Brasil inteiro que, muito mais que olhares representados da forma mais enigmática possível, a dança oriunda do país do rio Ganges é, acima de tudo, uma questão de delicadeza com os passos e, principalmente, com toda uma tradição.
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Esse mais de um ano e meio que passou na companhia de dança do coreógrafo foi importante para sua vida profissional. Ela não se arrepende em nenhum só dia de ter deixado o Rio para buscar seu sonho em outras terras. No segundo semestre de 2009, como Ivaldo queria mais tempo para se dedicar a sua Escola do Movimento, a companhia se desfez e hoje em dia os bailarinos só são chamados para trabalhos esporádicos. – Nesse tempo fora da companhia eu vou me dedicar aos estudos, começar uma faculdade de dança ou de fisioterapia e tentar crescer um pouco mais. Porque quando a gente está trabalhando é dedicação total e acaba não sobrando tempo para se dedicar a outras coisas. Mas não vou deixar de fazer aulas do Método dele na Escola
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do Movimento.
A menina, ainda com 14 anos de idade, que começou no projeto social de Ivaldo lá na favela da Maré, nunca imaginou chegar onde chegou. Parece que ser a minoria (a honesta) serviu para muita coisa, abriu portas e ajudou a trilhar um caminho único. As vidas são sempre mudadas, mas tudo vai depender de quem dá aquele toque mágico de força e otimismo, aquele que pode te empurrar ao abismo, mas estará lá embaixo esperando para te salvar no caso de acontecer alguma coisa. Essa pessoa na vida da já experiente bailarina Rosemeri Silva de Barros foi, sem dúvida alguma, Ivaldo Bertazzo. Não por ter dado uma
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oportunidade nova de vida, nem ao menos por ter dado um emprego, mas sim por ter ensinado valiosas lições. Rose aprendeu com Ivaldo toda a essência de levar o conhecimento a outras pessoas. Isso se tornou uma característica tão forte que ela acabou desenvolvendo um projeto para ensinar dança as crianças de escolas públicas. Nesse projeto, ela utiliza o Método Bertazzo e toda a teoria aprendida com o professor. – Existe uma relação de amizade, sei que se eu precisar de socorro vou pedir a ajuda dele e ele vai me ajudar. Porque eu o tenho como mestre.
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FOTO: MICHELE VITOR
Posfรกcio
Com as mรฃos, Ivaldo dรก sentido ao que fala
POSFÁCIO
Mar de Gente, em 2007, foi um marco na história de Ivaldo com a dança, tanto pela chance de fazer de jovens de comunidades esquecidas dançarinos profissionais com uma promissora perspectiva de futuro, quanto de ter formado com eles o seu corpo de baile. Depois de dez anos dedicados a projetos sociais para adolescentes, também foi o ano em que o coreógrafo voltou aos palcos, depois de 25 anos, para participar de Kashmir Bouquet, 36º espetáculo encenado por ele e 92 alunos da Escola do Movimento, seus Cidadãos Dançantes. As apresentações aconteceram no Teatro Tuca, em São Paulo. Os jovens que formam a Companhia Teatrodança Ivaldo Bertazzo subiram ao palco em 2008, em São Paulo, e no ano seguinte, no Rio de Janeiro, para apresentar “Noé, Noé!, Deu a Louca no Convés”. Nesse meio tempo, a Companhia fez ainda participações especiais em outros espetáculos. O fim da temporada de “Noé, Noé” não significou pausa para Ivaldo: além de coordenar sua Companhia e as aulas de sua Escola, apresentou também em 2008 a série “Corpo em Movimento” no Fantástico e participou como jurado técnico do quadro Dança dos Famosos, em 2009, no programa do Faustão, ambos na TV Globo. Atualmente o coreógrafo escreve um livro que consiste em uma síntese do Método, os “problemas e formosuras” do corpo, como ele mesmo define, da espécie humana. A partir de uma lista de 400 exercícios preventivos, a intenção de Ivaldo é que o manual de dicas seja utilizado na complementação do ensino formal, ou seja, auxilie a trabalhar a psicomotricidade e ajude as escolas a ampliar
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a concentração da criança, expondo os seus desejos vocacionais. Ele também espera que o livro seja aproveitado em centros de aprendizados artísticos e em empresas como uma prevenção para lesões. Somado a isso, claro, o lado artístico não poderia passar em branco. Ivaldo já esboça as idéias de seu próximo trabalho nos palcos, um espetáculo que vai usar de poesia e humor para falar dos problemas da manutenção do corpo humano no envelhecimento. A atriz Maitê Proença, parte de seu corpo de baile, e dois cantores ainda não definidos, integram o elenco do espetáculo de dança. Pausa não faz parte dos planos de Ivaldo Bertazzo. Definitivamente.
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Referências Bibliográficas Ivaldo Bertazzo – Dançar para Aprender o Brasil. Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Artes do Instituto de Artes da UNICAMP para obtenção do título de doutora em Artes / Bogéa, Inês Vieira, Orientadora: Professora Doutora Cássia Navas Alves de Castro – Campinas, 2007. Espaço e corpo: guia de reeducação do movimento / Bertazzo, Ivaldo; Bogéa, Inês Vieira – São Paulo: SESC, 2004. Tenso equilíbrio na dança da sociedade / Organização: Carmutte Campello – São Paulo: SESC, 2005.
Os autores
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Ana Paula Sartor, 22 Natural da cidade de Santo André, Ana Paula se mostrou carismática desde a infância. Quis ser modelo e investigadora, mas aos 14 anos descobriu que o que queria, realmente, era ser jornalista. Desde sempre, tem o hábito de ler compulsivamente, de rótulos de pastas de dentes a livros dos mais diversos assuntos. Atualmente, Ana Paula atua como assessora de imprensa e pretende seguir na comunicação corporativa. No entanto, não abre mão de um bom jornalismo literário e de colaborar com projetos sociais que têm o objetivo de tornar o mundo um lugar melhor. Esta é Ana Paula Sartor, uma jornalista que costuma pensar mais nos outros do que em si mesma.
158 André Moraes, 25 Natural de São Paulo, por pouco André não se torna um administrador de empresas. Depois de ter se formado na área técnica de Administração de Empresas realizou o sonho ao ingressar no curso de Jornalismo. Iniciou sua carreira na área como estagiário no time de editores da Clipping +, uma divisão da Máquina da Notícia, agência de comunicação corporativa integrada com grande nome no mercado da Comunicação. Realizando sua trajetória de crescimento profissional, hoje é Trainne da empresa em outra divisão, Relações com a Mídia. André pretende buscar oportunidades na área de Comunicação Corporativa, na qual tem se especializado.
OS AUTORES
Bianca Iaconelli, 21 Das grandes “certezas” da infância, uma se concretizou: a de ser jornalista. Nunca, quando perguntada sobre o que seria quando crescesse, respondeu outra coisa. Repórter de impressos de circulação nacional desde o primeiro mês de graduação, que começou aos 17 anos, trabalha com variedades, entretenimento e cultura, pois acredita nas mais diversas possibilidades de transmitir informações de qualidade. Paulistana, sonha trabalhar com TV. Como a profissão tem por base dar créditos a qualquer acontecimento, são quatro os nomes a quem dedica seu jornalismo: Zacarias, Tania, Iracema e Gabriel.
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Emanuel Galdino, 22 Pernambucano de nascimento, mas paulistano de coração, herdou o fascínio pelas palavras do avô, repentista paraibano que lhe ensinou o verdadeiro significado da cultura popular. Aos 9 anos, ganhou de aniversário da mãe uma máquina de escrever portátil e não parou mais. Escreveu tanto que hoje termina o seu primeiro livro. Jornalista por convicção, e não por opção, trabalha desde 2006 em uma revista técnica mensal sobre processos industriais e avanços tecnológicos. Agora só lhe falta, portanto, plantar uma árvore e ter um filho.
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Fabiane Abel, 23 Paraense de nascença, mas sul-mato-grossense de criação, sempre gostou de histórias , tanto que, desde pequena, sentia que sua própria vida serviria de enrendo para uma grande aventura . A mãe a queria advogada, ela queria conhecer o mundo e fazer reportagens. Aos 17 anos, saiu da pacata Três Lagoas, e começou a rascunhar seu próprio roteiro de vida. Em São Paulo muitos foram os percalços e em alguns momentos quase que a história teve fim. Hoje, com novos capítulos, a narração continua em busca de um final feliz. Quando se descobriu jornalista, teve a certeza de que poderia mudar o mundo com suas palavras. A Deus agradece por toda força e inspiração.
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Karina Costa, 25 As brincadeiras da infância sempre foram as de rua. Era o que fazia sentido no pouco estímulo da vida na periferia, em São Paulo. Salvação para a escola que ensinava a copiar? Os gibis e o brincar de ser professora. Quando foi ver o mundo, descobriu que mais do que sonhar, é realizar. Um dia, então, cismou que podia ser jornalista. E se o dinheiro um dia faltou, a motivação não. E se a batalha foi longa, dura e cheia de percalços, a esperança foi maior. E se cada lágrima, dor, centavo e tudo que teve de deixar de ser, fazer e estar foi um peso, valeu a pena carregar.
OS AUTORES
Michele Vitor, 28 Apaixonada pela arte de contar histórias, Michele Vitor se identificou com o jornalismo cedo. Falante por natureza e amante dos livros, resolveu aos 19 anos que não seguiria a engenheira, presente em seus planos de menina, para se dedicar ao jornalismo, sua verdadeira paixão. E esta foi a escolha certa. Com o ingresso na faculdade realizou vários trabalhos, entre eles, jornalismo impresso, online, radiojornalismo, TV e comunicação corporativa, o que reforçou seu encanto pela profissão. Atua em assessoria de imprensa no atendimento a empresas de diferentes setores, como o automotivo, imobiliário, gastronômico e econômico. Simultaneamente, produz textos veiculados em sites e revistas.
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Natália Dias, 21 Natural de Guarulhos, Grande São Paulo, Natália é apaixonada pelo jornalismo e acha que precisa viver duzentos anos para aprender a profissão em sua plenitude. Começou sua carreira no ano de 2006, no site Aqui Notícias, cobrindo os acontecimentos da sua cidade natal. Mais tarde, mudou seu foco para a comunicação corporativa e atuou na assessoria de imprensa da Infraero, nos bastidores da crise aérea. Atualmente, trabalha com empresas do ramo automotivo e ambiciona se especializar na área de relações públicas.
Paulistano da Mooca, Ivaldo Bertazzo começou a dançar aos 16 anos. Depois de muitas viagens, aprendizados e aperfeiçoamentao de seu conhecimento, ele incorporou as danças étnicas e a cultura de vários países em seu trabalho. Iniciou diversos projetos voltados para a periferia, colaborando para a formação de cidadãos em locais como o Complexo da Maré, no Rio de Janeiro, e a ex-Cracolândia, em São Paulo. Essa incrível trajetória, com detalhes ainda desconhecidos pelo público, pode ser conferida nas páginas de “Bertazzo em Passos – No ritmo do corpo e da vida”.