O ROMANCE COMO DIÁLOGO EM JÚLIA, OU A NOVA HELOÍSA, DE J. J. ROSSEAU

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O ROMANCE COMO DIÁLOGO EM JÚLIA, OU A NOVA HELOÍSA, DE J. J. ROUSSEAU Romance as dialog in Julia or the new Heloísa, by J. J. Rousseau LYGIA CASELATO

Mestre em Filosofia pela Universidade de São Paulo Email: lcaselato@yahoo.com.br

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Resumo: O objetivo deste ensaio é analisar o romance Júlia, ou a nova Heloísa, de Jean Jacques Rousseau, com base no pensamento de Shaftesbury segundo o qual o romance é o diálogo socrático da modernidade. Para tanto, discute o romance filosófico e a crítica ao romance de aventura e às novelas de cavalaria no século dezoito, abordando autores como Montesquieu, Voltaire, Diderot. O romance em estudo, de acordo a teoria de Shaftesbury, pode ser entendido como um romance moral, ou um “romance de formação”, de caráter filosófico, por ter sua origem no diálogo socrático, enquanto as novelas de cavalaria e os romances de aventuras, aos quais se contrapõe, seriam mais literárias do que filosóficas, por derivarem diretamente da epopeia. Palavras-chave: Romance. Diálogo. Rosseau, Júlia, ou A nova Heloísa Abstract: The aim of this essay is to analyze the novel Julia, or the new Heloísa, of Jean Jacques Rousseau, based on Shaftesbury’s thought that the novel is the Socratic dialogue of modernity. In order to do so, he discusses the philosophical novel and the critique of the novel of adventure and the novels of chivalry in the eighteenth century, addressing authors such as Montesquieu, Voltaire, Diderot. The novel under study, according to Shaftesbury’s theory, can be understood as a moral novel, or a “formation novel,” of philosophical character, having its origin in Socratic dialogue, while novels of chivalry and adventure novels, to which it opposes, would be more literary than philosophical, for they derive directly from the epic. Keywords: Romance. Novel. Socratic dialog. Rosseuau. Julia, ou A nova Heloísa

Revista Mosaicum - Número 28 - Jul./Dez. 2018 - ISSN 1808-589X || eISSN 1980-4180


Os romances são os diálogos socráticos de nossa época. Nessa forma liberal, a sabedoria de vida se refugiou da sabedoria escolar. [F. Schlegel]

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O romance Júlia, ou a nova Heloísa, de Rousseau, constitui um importante marco na história da literatura ocidental, um dos primeiros romances filosóficos do século dezoito. Ao lado de outros filósofos, como Voltaire e Diderot, Rousseau foi um dos pioneiros na tentativa de elevar o romance, até então visto como um gênero baixo, a um gênero elevado, ao mesmo tempo filosófico e moral1. Historicamente, o romance surgiu entre os séculos 1 e 2 d. C., e permaneceu praticamente o mesmo até o século dezoito, como um como gênero literário composto de três principais subgêneros: a aventura, os périplos de viagem e as novelas de cavalaria. Essas narrativas inverossímeis, e repletas de imoralidade, por não seguirem uma regra clara ou clássica de composição, e por misturarem poesia e prosa, diálogo e narrativa, gracejo e seriedade, foram consideradas um gênero baixo (de pouca nobreza), inclusive pelos filósofos que, posteriormente, ao escreverem eles próprios os seus romances, e o elevaram a um gênero moral, como Rousseau, Voltaire e Diderot. No século dezoito, o romance era mal visto pelos eruditos e pelos homens de letras por três motivos: (1) por não ter regras, ou seja, por não ter raízes na Antiguidade; (2) por ser imoral, ou seja, por mostrar abertamente os hábitos corrompidos dos homens; (3) e por ser inverossímil, ou seja, por fazer acontecer muitas coisas que jamais poderiam acontecer de fato na realidade. Essas mesmas críticas já haviam sido endereçadas, no século dezessete, por clérigos franceses ao teatro de sua nação,2 e remontam na verdade às antigas críticas de Platão a Homero. Shaftesbury, filósofo inglês do século dezoito, também desqualifica os romances como “livros para mulheres”3, que “corrompem o público”4 e os costumes, ao afirmar o caráter fraco e “efeminado” de seus leitores, que se deixam seduzir e enganar facilmente por autores que, por sua vez, não passam de “impostores e contadores de histórias”.5 Na França, Voltaire identifica os romances como “contos de Revista Mosaicum - Número 28 - Jul./Dez. 2018 - ISSN 1808-589X || eISSN 1980-4180


velhas”, e Diderot os descreve como “um tecido de aconteci­mentos quiméricos e frívolos, cuja leitura [é] perigosa para o gosto e para os costumes”.6 Embora esses filósofos tenham condenado o romance como um gênero baixo, eles encontraram uma forma de “corrigir” o gênero, introduzindo nele algo de sua filosofia, e alçando-o a um gênero filosófico e moral. Eles argumentaram, em sua defesa, que o romance tinha, sim, quanto ao primeiro ponto (1), raízes na Antiguidade, por ser herdeiro do poema épico e, como ele, uma narrativa em verso, embora escrito em língua vulgar. Desde então, tornou-se comum considerar o romance, à maneira hegeliana, como a “epopeia moderna”. Ainda, porém, que esse argumento possa defender o romance contra a acusação de não ter regras, não responde à segunda acusação, de imoralidade, já que a própria poesia épica foi considerada imoral, como se pode ler nas críticas de Platão a Homero, nos livros III e X do diálogo A República. Quanto ao segundo ponto (2), a imoralidade, argumentaram que os prefácios moralizantes no início dos romances (como o de Cervantes nas Novelas Exemplares e o de Laclos nas Relações Perigosas) compensariam o seu conteúdo imoral. No entanto, esses prefácios moralizantes, e o “final infeliz”, ou a desgraça dos maus nos finais dos romances, ainda assim pareciam insuficientes, pois não passavam de meros adendos perfeitamente dispensáveis ao corpo da história, e praticamente ofuscados pelo tom imoral do resto do livro. Quanto ao terceiro ponto (3), a inverossimilhança, o uso predominante da invenção pelo romance ora foi justificado por sua intenção moral (como no Cândido, de Voltaire), ora substituído por uma representação fiel da realidade; nesse caso, porém, é necessário justificar mais uma vez a presença da imoralidade, que seguramente acompanhará um retrato fiel da sociedade moderna. Essa defesa do romance pelos filósofos franceses oferece, como se vê, um resultado apenas parcial, mas a consideração de Shaftesbury (retomada mais tarde por F. Schlegel, na Alemanha) segundo a qual o romance é o diálogo socrático da modernidade oferece, por sua vez, um argumento capaz de responder satisfatoriamente a todas as investidas. Revista Mosaicum - Número 28 - Jul./Dez. 2018 - ISSN 1808-589X || eISSN 1980-4180

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Quanto ao primeiro ponto (1), filiar o romance ao diálogo, um gênero ao mesmo tempo filosófico e moral, atribui a ele uma origem mais nobre do que a epopeia, justamente por ser um gênero filosófico e moral, ao contrário do poema épico, que é histórico e muitas vezes imoral. Quanto ao segundo ponto (2), a filiação do romance ao diálogo sinaliza que a sua verdadeira moralidade se encontra no fato de que, assim como o seu “modelo” socrático, ele é capaz de conduzir no leitor uma transição da ignorância à sabedoria, e de operar como o que mais tarde se convencionou denominar um “romance de formação”. Quanto ao terceiro ponto (3), o impasse entre a verossimilhança e a moralidade, indicado pelo fato de que mostrar os homens como realmente são revela necessariamente a sua imoralidade, pode ser resolvido com a ideia de que um romance de formação pode até representar cenas indignas, como as Relações Perigosas, de Choderlos de Laclos, contanto que tenha uma finalidade moral, já que, inversamente, é possível que represente cenas extremamente dignas, mas nem por isso seja moral, como a Ilíada, de Homero, segundo Platão. A necessidade de justificar o caráter inverossímil do gênero romântico fez com que os autores migrassem pouco a pouco da aventura para o romance moral ou romance de formação, e Shaftesbury foi um teórico dessa transição, antecipando na Inglaterra o que mais tarde Voltaire, Rousseau e Diderot realizariam na França. No século dezessete, a França já delineava os primeiros contornos do romance de formação, por meio do romance epistolar. As Cartas Persas, de Montesquieu, são um bom exemplo disso, e seguramente foram lidas por Rousseau como um modelo de romance epistolar. Elas não possuem, porém, o mesmo grau de romantismo da Nova Heloísa, e isso nas diversas acepções da palavra “romance”: a) como desígnio ou propósito didático de popularizar a filosofia (romanzo): as Cartas Persas são muito acadêmicas, enquanto a Nova Heloísa é mais popular, por ser uma história de amor. b) como o desejo por uma vida superior, ideal: pode-se dizer que Montesquieu permanece em seu aspecto negativo, ao se restringir a uma crítica da vida real, enquanto Rousseau é mais positivo, ao se expandir em uma exaltação do mundo ideal. c) como gênero dialógico ou dialogado: as Cartas Persas possuem tramas paralelas que, embora se entrecruzem ao longo do texto, enRevista Mosaicum - Número 28 - Jul./Dez. 2018 - ISSN 1808-589X || eISSN 1980-4180


contram-se sempre no mesmo plano, sem estabelecer a tridimensionalidade do romance polifônico, tal como definido por Bakhtin7. d) como romance filosófico: as Cartas Persas parecem mais um pretexto para a dissertação, por isso em alguns momentos se assemelham a uma enorme digressão, enquanto a Nova Heloísa tem a estrutura de um diálogo socrático, em que a moralidade não é ensinada de maneira dogmática, como nos discursos oratórios, mas abre espaço para que o próprio leitor possa descobrir a importância do seu aprendizado. Esses quatro aspectos do romance filiam-no totalmente ao gênero do diálogo socrático: o diálogo é um gênero popular (1), Sócrates é um idealista (2), o diálogo pressupõe uma confrontação de perspectivas (3), e contém um ensinamento filosófico e moral (4). Além disso, A Nova Heloísa é um romance epistolar (composto de epístolas ou cartas), no qual não existe um narrador. São as próprias personagens que falam, agem, e revelam a situação em que se encontram, conforme se correspondem umas com as outras. A progressão da narrativa depende diretamente das personagens, e assim ocorre uma fragmentação do foco narrativo em diferentes vozes, como no diálogo. O romance epistolar é especialmente dialógico. O elemento unificador não aparece, as diversas perspectivas coexistem e não podem ser reduzidas a uma única visão de mundo. De acordo com Bakhtin, a pluralidade de vozes é o que há de mais característico no romance polifônico. A polifonia tem origem no diálogo socrático e em uma visão socrática do mundo segundo a qual “a verdade não se encontra na cabeça de um único homem”8, mas só pode ser descoberta pela confrontação de diversas perspectivas, mediante o diálogo. As diferentes vozes do antigo diálogo socrático encontram-se, assim, na origem do significado das diferentes vozes do romance polifônico moderno. O elemento filosófico capaz de elevar o romance a um gênero moral, segundo Shaftesbury, é o diálogo socrático. O diálogo é definido por ele como um “drama moral” em que o caráter moralmente perfeito de Sócrates, o “herói filosófico”, contracena com o caráter comum de seus interlocutores, com a finalidade de construir um aprendizado. Sócrates é o modelo da sabedoria; seus interlocutores, ao contrário, assim como as personagens que aparecem em seus exemplos (o carpinteiro, o sapateiro e o médico), “mostram a natureRevista Mosaicum - Número 28 - Jul./Dez. 2018 - ISSN 1808-589X || eISSN 1980-4180

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za humana mais distintamente e próxima da vida”;9 são os “personagens secundários”, que compõem um “espelho da época”, um retrato da sociedade e do senso comum. O papel de Sócrates é expressar a voz da razão, não a sua própria ou a de seu interlocutor, mas de uma razão universal, moral, que ultrapasse o limite da opinião individual. O papel do aprendiz, ao contrário, é expressar a voz da opinião, do senso comum, dos impulsos e das paixões. A partir do contraste entre essas duas posições, entre o “herói filosófico” e o “espelho da época”, o leitor pode ser levado a uma reflexão que, segundo Shaftesbury, converte o “espelho da época” em “espelho de bolso”; ele internaliza a estrutura do diálogo e descobre dentro de si as duas figuras que dialogam, a do aprendiz, em um primeiro momento, e a do próprio professor, em um segundo momento. A esse diálogo interno, Shaftesbury denomina solilóquio, uma representação interna do diálogo, o drama moral que torna uma pessoa capaz de criticar-se, de “rir de si mesma”, de reconhecer-se honestamente no espelho, conhecer a si própria e, em suma, descobrir sua própria ignorância. Esse passo é necessário a todo e qualquer conhecimento. Para Sócrates, Platão e Shaftesbury, o autoconhecimento é o princípio de todo e qualquer conhecimento. Essa é a importância dos diálogos como meio de formação, e a necessidade de que sejam retomados, de alguma maneira, na modernidade. No entanto, por mais que sejam excelentes modelos, por ensinarem a reflexão, não se pode mais escrevê-los na modernidade. “O diálogo está no fim”, diz Shaftesbury, tanto porque a figura de Sócrates, como um caráter perfeito, tornou-se inverossímil, quanto porque não se pode mais apresentar um espelho da época sem deixar seus modelos em situação muito desconfortável. O desconforto que os modernos sentem quando se vêem representados em um espelho faz com que suas tentativas de escrever ou desenhar de acordo com a época sejam meros arremedos do que seria um verdadeiro espelho da época. O filósofo moderno não pode se por no lugar de Sócrates sem parecer pedante. “Se representa sua filosofia como fazendo alguma figura na conversação, se triunfa no debate e dá vantagem à sua própria filosofia em detrimento da do mundo, pode estar sujeito a uma forte zombaria, e possivelmente será transformado em fábula”.10 Revista Mosaicum - Número 28 - Jul./Dez. 2018 - ISSN 1808-589X || eISSN 1980-4180


A ausência de um verdadeiro contraste entre o herói filosófico e os caracteres secundários faz com que o diálogo deixe de exercer sua função didática e assuma uma adulatória. Para purificar o gênero, é preciso transformá-lo. Dessa transformação surgirá, para Shaftesbury, o romance filosófico, que transforma o romance moderno, de decadente que era, em um gênero elevado. Se no diálogo antigo havia um embate entre o caráter perfeito do herói filosófico e o caráter comum dos caracteres secundários, na modernidade o herói, incapaz de se apresentar como caráter perfeito, aparece como anti-herói; contamina-se com o caráter do interlocutor de Sócrates, expressando o senso comum. O espelho da época, impedido de representar a realidade, aparece disfarçado de ficção. Essa ficção, por sua vez, acolhe a figura do caráter perfeito, que se tornara impossível, e transfere com isso a função do herói filosófico a um personagem secundário — geralmente um amigo do herói, da mesma idade que ele, porém muito mais sábio, e bom conselheiro. Esse amigo desempenha o papel da razão em seu embate contra as paixões, vividas pelo anti-herói. O romance é o gênero em que a figura do anti-herói contrasta com uma “ficção da vida privada” proveniente do “espelho da época”, mas diferente dele, promovendo o aprendizado socrático (o conhecimento de si) e a modificação do caráter originalmente impulsivo e passional do anti-herói em um caráter solidamente equilibrado e temperado para a vida em sociedade. Esse é o caráter do “romance de formação”, em que o herói é na verdade o anti-herói, o qual comete primeiramente algum deslize para depois se submeter ao aprendizado (por exemplo Raskolnikov, de Crime e Castigo, de Dostoievski), da mesma maneira que o interlocutor de Sócrates. O romance de Rousseau tem sua narrativa estruturada da seguinte maneira: Júlia é uma jovem camponesa filha de nobres, e seu amante um jovem burguês, contratado por sua mãe para seu preceptor (o romance é uma referência à história de Abelardo e Heloísa, narrado em “História das minhas calamidades”, de Abelardo). O livro começa com a carta em que o professor confessa o seu amor pela aluna: “É preciso fugir-vos, Senhora, sinto-o bem: deveria ter esperado bem menos ou, antes, teria sido preciso nunca vos ter visto. Mas que fazer hoje? Como agir? Prometeste-me amizade, vede minha perplexidade e aconselhai-me”. O amante entrega seu coração Revista Mosaicum - Número 28 - Jul./Dez. 2018 - ISSN 1808-589X || eISSN 1980-4180

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à amada e, junto com ele, o direito de decidir sobre o seu destino: “Não vejo, Senhora, senão uma maneira de superar a dificuldade em que me encontro: é que a mão que nela me mergulha dela me retire, que minha punição assim como minha falta me venha de vós e que, pelo menos por piedade para comigo, vos digneis proibir-me vossa presença”. Mas Júlia também havia se apaixonado por seu professor, e diante de sua confissão, não pode fazer outra coisa senão confessar-se também. Diz ela: “Tudo fomenta o ardor que me devora, tudo me abandona a mim mesma, ou antes, tudo me entrega a ti; a natureza inteira parece ser tua cúmplice, todos os meus esforços são vãos, adoro-te a despeito de mim mesma”. E, mais adiante, depois de ter entregado seu coração, entrega também seu destino ao amante: “para evitar minha perda, deves ser meu único defensor contra ti”. Paralelamente, Julia escreve a sua prima:

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Oh! quantas coisas aconteceram desde que partiste! Tremerás ao saber que perigos corri por minha imprudência. Espero ter-me liberado deles, mas vejo-me, por assim dizer, à mercê de outrem: cabe a ti devolver-me a mim mesma. Apressa-te pois em voltar.

A prima responde: Teu medo modera o meu quanto ao presente, mas o futuro me assusta e se não podes vencer-te não vejo mais do que a infelicidade. Ai de mim! quantas vezes a pobre Chaillot me predisse que o primeiro suspiro de teu coração determinaria o destino de tua vida! Ah! Prima! ainda tão jovem, será preciso já ver tua sorte determinada? [...] Todavia, com referência ao que me assinalas, não terei nem um momento de descanso enquanto não estiver ao teu lado, pois, se temes o perigo, ele não é totalmente quimérico. É verdade que a prevenção é fácil, duas palavras à tua mãe e tudo está acabado; mas compreendo-te, não queres um expediente que acabe com tudo: queres realmente retirar de ti o poder de sucumbir mas não a honra de combater.

Começa então o combate da razão na busca por reprimir ou regrar a paixão. A ideia deste ensaio é mostrar que o romance é a narrativa desse combate de origem socrática. Júlia é a heroína que entrega seu coração ao amante e sua razão à amiga. Como todo herói moderno, ou anti-herói, ela comete um erro, e somente depois de reconhecê-lo poderá ser guiada em direção ao caminho correto. Não é à toa que geralmente o nome da personaRevista Mosaicum - Número 28 - Jul./Dez. 2018 - ISSN 1808-589X || eISSN 1980-4180


gem que assume o papel desse guia remete diretamente o sentido à racionalidade, por contraposição à paixão que caracteriza o herói. A inseparável prima de Júlia chama-se Clara, clareza, claridade, assim como o amigo do herói em Crime e Castigo chama-se Razumikin, de razum, que em Russo significa razão. O herói encarna o sentimento e como ele caminha às cegas, enquanto a razão é o guia personificado na figura do amigo. Em Júlia ou Nova Heloísa a razão não se refere somente ao entendimento, à ciência, mas também à virtude e à moral. Os amigos, ou a razão, mostram o caminho da virtude. Assim como Júlia, também seu amante tem um amigo que é seu guia. Há nesse romance duas personagens que falam a voz do aprendiz, e outras duas que encarnam o sábio, ou o dáimon. Julia é chamada “a pregadora” e seu amante “o filósofo”; são eles que buscam a religião (ela) e a filosofia (ele). Coerentemente, Clara é o guia da virtude e Eduardo guia da sabedoria, do conhecimento. O sábio Wolmar (que se casa com Júlia depois de ela ter se entregado ao seu amante) seria ele próprio o modelo da sabedoria completa, se não desvinculasse a virtude da religião. Mas é isso que, no desfecho do romance, não o torna trivial: se Wolmar fosse crédulo, não precisaria também de um guia, pois estaria no cume da perfeição; e Júlia também não exerceria a função de dáimon em relação às crenças de seu marido, fechando o círculo do aprendizado social.

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NOTAS 1 Tema do curso de pós-graduação ministrado pelo prof. Dr. Luís Fernando Franklin de Matos: “O romance filosófico no século dezoito”, no departamento de Filosofia (FFLCH – USP), no 1º semestre de 2000. 2 Cf. May, G.: Le Dilèmme du Roman au 18e Siecle. Paris: Presses Universitaires de France, 1963. 3 Shaftesbury, Characteristics of men, manners, opinions, times. New York: Edição facsímile de 1711. Georg Olms Verlag. Hildeheim, 1978. Vol. II, 3, p.272-3. 4 Idem, Vol. III 3, p. 344-5. 5 Idem, III 3, p. 346. 6 Diderot, D.: “Elogio a Richardson”. In: Obras II. Estética, Poética e Contos. rganização, tradução e notas: J. Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 2000, p. 16. 7 Bakhtin, M., Problemas da poética de Dostoiévski. Tradução de Paulo Bezerra. Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1997. 8 Idem. 9 Shaftesbury, Characteristics of men, manners, opinions, times. New York: Edição facsímile de 1711. Georg Olms Verlag. Hildeheim, 1978. Vol. 1, p. 195. 10 Shaftesbury, Characteristics of men, manners, opinions, times. New York: Edição facsímile de 1711. Georg Olms Verlag. Hildeheim, 1978. Vol.2, I, 1.

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