Entrelinhas: diálogos entre arquitetura e moda

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ENTRE LINHAS DIÁLOGOS ENTRE MODA E ARQUITETURA



ENTRE LINHAS DIÁLOGOS ENTRE MODA E ARQUITETURA


YASMIN NAVARRO CANABRAVA

orientação LUÍS ANTÔNIO JORGE

Trabalho Final de Graduação Faculdade de Arquitetura e Urbanismo Universidade de São Paulo São Paulo, 2018


este trabalho é dedicado à minha irmã, Juliana Martinetti, que me deu o apoio e a confiança para que eu pudesse seguir meus sonhos. Espero um dia poder fazer o mesmo pelo Enzo e pela Letícia.


Ao meu orientador querido, Luís, pelas conversas serenas e pelos ensinamentos; À Marta Bogéa e à Miriam Pappalardo, por terem aceitado o convite de participar dessa banca; Ao Yopanan Rebello, por me receber e pela conversa inspiradora, Ao meu amigo querido e mestre Adriano Bechara, pelos momentos de felicidade aprendizado no ateliê. Ao doce menino André Sahm, sempre disposto a partilhar seu conhecimento. Ao meu amigo Lucas Anghinoni, do encontro de sorte que os exílios voluntários nos trouxeram; Às parcerias, nada menos que maravilhosas da Ba, da Lou e da Helô. Às queridas Bianca e Géssica que me ensinaram a caminhar pra mais perto de mim mesma e dos outros, com leveza e sem julgamentos. Ao precioso Lucas Castro, pela percurso em parceria que se faz desde Goiânia. À Mari Mitsui, à Camila e à Thaís pelas sessões de terapia coletiva que nos fortalecem há quase dez anos. Aos presentes inesperados que foram as amizades da Cida e do Tomás, mais uma família que encontrei em São Paulo. Às queridas Lau e Mari Caires, amigas que me ensinaram sobre força, vontade e potência, mas acima de tudo, sobre a delicadeza que se esconde nesse balanço; À minha primeira família em São Paulo: Gui, Isa e Amauri. À minha amiga peixinha Paula, às alegrias da Gabs, à força da natureza que carrega Iohana, de quem eu tenho terna saudade; Às doçuras que carregam as queridas Ma e Jay;


Às risadas que dei com Lu Menezes, Chi, Napo, Ramps, Lu e Gi; Aos fabulosos Mica, Cauê e Jõao. Às amizades da Ana, da De, da Helenna, da Nat, da Gabi, da Tais, da Jess; À espontaneidade e genuinidade da Thaísa, À companhia das queridas Mano e Maria. Aos meus primeiros amigos na FAU: Mari e Thiago, com quem experimento da liberdade completa de ser eu mesma. À imensa admiração que tenho pelas minha amigas que o feminismo uniu: Ju, Rita, Tais, Bia e Dea; À companhia e à parceria da minha preciosa Rachel, meu primeiro amor; À extensão de família que me acolhe: Mi, Cláudia, Gil, Edith e Lenira; Ao meu irmão, Carlos, minha primeira amizade e com quem aprendo há vinte e dois anos. À minha irmã, Juliana, e ao meu irmãozinho, William, quem eu escolheria pra serem minha família mesmo se já não fosse; À minha vó Dina e ao calor do seu abraço; Ao meu pai, Carlos, que poupa as palavras, mas que, por gestos, sempre fez de tudo por mim e pelos meus irmãos; a ele, o meu eterno amor; E, principalmente à minha mãe, Mayra, com quem aprendi sobre o cuidado e sobre o amor. Sobre coragem e sobre acalento. Sobre sorrir e sobre chorar. A ela, toda a minha vida e minha eterna admiração; A todos esses e a todos os outros que possivelmente esqueci, ______________ O meu sincero agradecimento.



ÍNDICE 08 revisão crítica da relação entre moda e arquitetura

32 considerações sobre os ensaios

36 glossário de símbolos

38 ensaio suspensão

50 ensaio plissado

64 ensaio pregueado

78 ensaio engomado

92 ensaio entretela

106 ensaio sobreposição

120 ensaio arame

134 considerações finais

138 referências bibliográficas e ficha técnica


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REVISÃO CRÍTICA DA RELAÇÃO ENTRE MODA E ARQUITETURA

Entre a superf ície e a substância Uma revisão crítica da relação entre moda e arquitetura

“Na natureza do espaço estão o espírito e a vontade de existir de uma 1

certa maneira ”

1. KAHN, Louis. Silence et Lumière. Paris, Edition du Linteau, 1996, p. 20. Lima diz ter “retirado a frase de Kahn do seu devido contexto, isto é, o texto completo A ordem é.O texto completo de Kahn poderia ser compreendido como a busca de um “princípio essencial”, nomeado de Ordem pelo arquiteto americano, e que nortearia a fatura do objeto arquitetônico.”

Lima (2007) usa a frase de Louis Kahn para propor, em seu texto, o

2. Origin Middle English: from Old French abit, habit, from Latin habitus ‘condition, appearance’, from habere ‘have, consist of’. The term originally meant ‘dress, attire’, later coming to denote physical or mental constitution. Fonte: OXFORD dictionaries, encontado em https://en.oxforddictionaries.com/definition/habit

É fácil admitir o habitar que se faz na sua forma original: a do vestir.

habitar como o “ser” da arquitetura, reconhece como propósito do envoltório o seu preenchimento. “Uma casa desabitada é uma casa vazia. A forma está lá, à espera de que se cumpra a sua função”. O verbo habitar indica presença, ocupação e tem sua origem no termo habitus, do latim, que expressa “condição, aparência’’ e original2

mente significava “vestir-se, trajar-se” .

Se a arquitetura só se completa com sua ocupação, o mesmo pode se dizer sobre a roupa, que destituída de corpo que a vista é apenas matéria amorfa e insossa. Arquiteturas e roupas são formas animadas pela mesma vida. Constituem campos constantemente relacionados por compreenderem impulsos criativos de mesma origem, manipularem a mesma natureza e operarem ao redor de uma mesma razão: o corpo humano.

O campo de afinidades entre arquitetura e moda nasce em tempos remotos. As peles de animais que serviam para a cobertura do cor-


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po, 40 mil anos a.C., também eram usadas como revestimento da 3

estrutura bruta das habitações (LEITE, REBELLO; 2007). Além do vínculo de proteção, a atenção à escala também já se exprimia, por exemplo, na Grécia Antiga, onde o vestuário e a arquitetura foram concebidos em harmonia com as proporções da figura humana. As colunas gregas inspiraram a criação do chiton, a tradicional túnica de lã feita a partir um tecido único sobre o corpo de homens e mulheres. Com a aplicação de pregas e drapeados em cima de uma forma cilíndrica básica, os gregos ensaiavam uma forma de modelagem sobre o próprio corpo e o resultado era comentado a partir da comparação com as ordens arquitetônicas (dórico, jônico ou coríntio). (MIRANDA, 2011)

Vestimentas históricas revelam que vários trajes eram construídos ou ornamentados de acordo com referências arquitetônicas de cada período. Assim, roupas e arquiteturas, por partilharem qualidades estilísticas e estruturais, revelam tendências estéticas, fundamentos teóricos e tecnológicos de uma época. Miranda afirma que:

As criações (vestuário e os edifícios) quando vistos como parte de um contínuo histórico, são valiosos artefatos antropológicos que marcam importantes condições culturais e económicas, preferências estilísticas e também novos desenvolvimentos na tecnologia e nos materiais. (MIRANDA, 2011, p.93).

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3. “Vestígios de cabanas e tendas datados de 40 mil anos a.C. descritos por Berger contam sobre a utilização de troncos, galhos e ossos de animais como componentes estruturais e folhas, palha, terra e peles de animais para o revestimento da cobertura”


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Um exemplo dessa relação estilístico-formal é a tendência medieval à verticalidade, que pode ser observada nos sapatos pontiagudos, nas luvas, nos hennins (chapéus femininos cónicos) e também nos arcos ogivais e na envergadura das estruturas góticas, como as catedrais do século XIII, em Amiens, na França e Salisbury, na Inglaterra. (MIRANDA, 2011)

Nas referências inglesas que Bradley Quinn apresenta em sua análise (2003), ele revela que as mulheres da corte de Henrique VIII, por exemplo, vestiam adornos para a cabeça no formato de arcos Tudor, enquanto os homens usavam chapéus e capas que carrega4

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vam símbolos da arquitetura gótica. As trunk hoses e cod pieces as codpieces e tank hoses, desenho Janet Arnold

da era elizabetana eram imitações das colunas, dos contrafortes e dos pés das mesas do período. As roupas dos anos 1840, da mes-

4. Calções curtos e cheios, chegando à metade da coxa.

5. Seção triangular invertida, costurada na calça ao redor da virilha do homem.

ma forma, seguiam as curvas suaves dos arcos e das esquadrias arredondadas que predominavam na época. 6

Para além das semelhanças concernentes ao estilo, James Laver (1949) observou paralelos construtivos entre a estrutura metálica

do Palácio de Cristal de Sir Joseph Paxton para a Grande Exposição 6. James Laver (14 March 1899 – 3 June 1975) foi historiador, crítico de arte e curador histórico do museu Victoria and Albert entre os anos 1938 e 1959. James Laver foi inspiração para iniciativa de Pietro Bardi em reunir forças para criar uma “seção de costumes” no MASP.

de 1851 e a estrutura das crinolinas, que faziam parte das camadas interiores das vestimentas das mulheres.

“No Palácio de Cristal, uma rede aberta de vigas de ferro fundido, coberta com vidro, evidencia um edifício com um dos interiores mais


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abertos e expansivos do seu tempo. A mesma abordagem foi aplicada à construção do traje da mulher: como uma solução prática para pesadas camadas de saias ou crinolinas, os designers desenvolveram armaduras feitas com aros de metal para apoiar a abóbada em forma de saia da década de 1850”. (LAVER apud MIRANDA, 2011, p.95)

Embora as interseções sejam evidentes, Leila Kinney (1999) atenta para o fato de que poucos escritos sobre o design da moda têm surgido no domínio da arquitetura. Se as conexões de natureza funcional, estilística, tecnológica e construtiva conseguem ser enumeradas, por que a comparação ainda hoje surge com certo incômodo nos círculos arquitetônicos?

O MODERNO E O ORNAMENTO

Mary McLeod (1994), Leila Kinney (1999) e Mark Wigley (1994), em seus escritos, apontam razões que podem ter motivado esse afastamento. Com o intuito de iluminar a questão, serão reproduzidos aqui alguns dos fatos a que os autores recorreram para argumentar sobre o relacionamento conflituoso que a arquitetura, sobretudo a linha clássica da arquitetura moderna, manteve com a moda e os ecos dessa relação.

Voltemo-nos para um dos mais antigos registros da comparação entre arquitetura e moda, que aparece no livro quatro de Vitrúvio,

as crinolinas: as estruturas das saias


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pelo propósito de personalizar a imagem das colunas fazendo uso de analogias com o vestir.

“Na parte inferior, substituíram os sapatos por uma base. Colocaram volutas [...] como cachos encaracolados [...] trouxeram os frisos ao longo de todo o fuste, como se fossem as dobras dos vestidos usados pelas matronas” (VITRUVIUS, apud FAUSCH et al, pg. 41, tradução de João Gabriel Farias Barbosa de Araújo).

A menção não escapa da frequente associação que a moda e a arquitetura fazem com uma terceira variável: o gênero. Enquanto para Vitrúvio a ordem dórica representa a ‘proporção, força e graça do corpo masculino’, prenunciando uma antiga associação do masculino com a simplicidade, com a nudez e com a força bruta; o jônico e o coríntio se relacionam com a ‘esbelteza feminina’; induzindo a compreensão de que o feminino é a entidade vestida, velada e decorada. Esses foram valores repetidos por teóricos classicistas e que ganha­ ram força ao longo do histórico de suas menções. (MCLEOD, 1994)

“Uma vez abertas as portas da personalização das ordens, por Vitrúvio, a renascença perdeu o controle, permitindo até interpretações contraditórias. Assim enquanto Scamozzi faz eco a Vitrúvio ao chamar de ‘virginal’ a ordem coríntia, Sir Henry Wotton, alguns anos depois, considera-a ‘lasciva’ e ‘ataviada como uma cortesã’, não esquecendo de acrescentar que a moral de Corinto


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era baixa. Seja como for, a ordem coríntia sempre foi vista como feminina e a dórica como masculina, ficando a jônica no meio, como algo assexuado – um velho erudito ou uma matrona calma

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7. “As the mathematical image of a girl of corinth, whom I once sweetly loved” (Valery apud FAUSCH)

e gentil “(SUMMERSON, 2009, p. 11).

Os ecos são tão nítidos que, em 1920, Paul Valery ainda descreve 7

uma garota como uma coluna coríntia em L’éupalinos . Ainda que algumas dessas relações não fossem carregadas de valor, ao final do século 17, críticos e arquitetos passaram a discutir arquitetura junto a gênero e moda em tom moralista, como Christopher Wren, que em 1665 escreve em uma carta sobre sua insatisfação acerca da participação das mulheres no ofício, mulheres que “se metem na 8

arquitetura” . (MCLEOD, 1994)

Ainda sim, pode-se dizer que a moda apareceu apenas de modo intermitente nos escritos do fim do século 17 até meados do século 18, e não constituiu objeto de profunda investigação. No século 19, no entanto, esse cenário mudou bastante.

Em 1853, Isaac Singer criou a primeira máquina de costura doméstica (patenteada em 1851); em 1860, 110 mil máquinas de costura foram produzidas pela Singer Company só nos Estados Unidos. O número de mulheres trabalhadoras da indústria têxtil passava de 750 mil até o início da última década do século XIX. É nesse panorama do século XIX que assiste uma notável alteração nos modos de

8. “The woman, as they make here the language and fashions, and meddle with politics and philosophy, so they sway also to architecture;... but building certainly ought to have the attribute of the eternal, and therefore the only thing uncapable of new fashions.” (SCOR, p.192)


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9. Hoje em dia somos cientes que essa exaltação de Baudelaire tem seus problemas: a insistência no adorno para as mulheres, no papel de sedutora, ou de musa; nunca a mulher é considerada criadoras da sua própria arte. Mas, considerando-as em seu tempo, essas são passagens de muito valor para diversas áreas do conhecimento e que contribuíram muito para o entendimento do pensamento daquela época.

consumo (CALANCA, 2011). O uso em larga escala da máquina de costura, junto a introdução do algodão na indústria e o estabelecimento de lojas de departamento permitiram que as classes médias e baixas participassem mais do ciclo de mudanças da moda.

Diante dessas intensas mudanças compreendidas pelo século XIX, a moda passa a se apresentar como metáfora consistente de inovação e palco de ensaio para a formulação dos fundamentos que representariam a modernidade. (MCLEOD, 1994)

Baudelaire inclusive usou da moda para retratar a vida moderna (a moda feminina que, no seu entender, encompassava mais enfaticamente o ciclo de mudanças rápidas que determinava a mudança de estilos). Em seu texto “O Pintor da Vida Moderna” publicado em 1863, Baudelaire exalta a moda como um modelo artístico, ele argumenta que arte moderna deve se libertar das ideias clássicas de essência ou de verdade absoluta e diz: “a beleza é histórica, variável e passageira; apenas o superficial pode nos levar ao ideal, à poesia por dentro da história”. Baudelaire, nesse sentido, diz que a moda (feminina), com seus artifícios e máscaras, apresenta um meio para entender a natureza elusiva da vida moderna, representando, segundo suas palavras “uma sublime deformação da natureza, ou melhor, 9

uma contínua e rápida tentativa de sua reforma” . (BAUDELAIRE apud FAUSCH, p.44 , traduçao da autora)


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É importante atentar para ligação que se desenha entre roupa e “máscara”, “adorno”, “superfície”: é a mesma ligação que posteriormente se presta a justificar a negação da moda.

Contemporâneo de Baudelaire, Gottfried Semper concebeu uma complexo tratado teórico no qual tenta reconhecer os fatores materiais e técnicos que condicionam o estilo. Em seu tratado, Der Stil (“Style in the technical and tectonic arts, or, Practical aesthetics”), ao tratar do “adorno”, Semper o coloca como “um dos primeiros e mais significativos passos em direção a arte” (SEMPER apud FAUSCH, tradução da autora), em uma seção intitulada “O Mais Primitivo Princípio Formal da Arquitetura Baseado no Conceito de Espaço e Independente da Construção: o Mascaramento da Realidade pela 10

Arte” , ele afirma:

“Eu acredito que o vestir e as máscaras são tão antigas quanto a civilização humana e a alegria em ambos é idêntica a alegria que levou os homens a serem escultores, pintores, arquitetos, poetas, músicos, dramaturgos, em suma, artistas. Toda criação artística, todo prazer artístico pressupõe um certo espírito de carnaval, ou para me expressar de uma maneira moderna - a névoa de velas de carnaval é a verdadeira atmosfera da arte. A negação da realidade, da matéria, é necessária para que a forma surja como um 11

símbolo com significado”.

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10. Como a obra de Semper nunca foi publicada em português, os termos foram traduzidos pela pela própria autora.

11. Tradução de Francis Mallgrave: “I think that the dressing and the masks are as old as human civilization and the joy in both is identical to the joy in those things that drove men to be sculptors, painters, architects, poets, musicians, dramatists, in short artists. every artistic creation, every artistic pleasure presupposes a certain carnival spirit, or to express myself in a modern way - the haze of carnival candles is the true atmosphere of art. The denial of reality, of the material, is necessary if form is to emerge as a meaningful symbol”.


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O historiador de arte vienense muito influente sobre os pioneiros do movimento moderno, Alois Riegl, não contraria Semper. Em seu tratado de 1893, Stilfragen (The Problems of Style: Foundations for a History of Ornament) Riegl diz, inclusive que “é a vontade de decorar que é uma das mais elementares das vontades humanas, mais elementar até que a própria necessidade de proteger o corpo”. (RIEGL apud WIGLEY, 1994)

A partir daí, Semper propõe o conceito de “Bekleidung” (“Principle of Dressing” traduzido por Mallgrave do alemão kleidung, que significa “vestir”) que reconhece a importância do ornamento e incumbe a arquitetura da realização estrutural-simbólica de uma construção através do ato de “envolver”, “enclausurar”. Demonstrando a origem comum das palavras germânicas wand (parede, partição) e gewand (vestimenta, roupa), Semper, com seu “Principle of dressing”, faz a arquitetura não só análoga a moda, mas uma própria arte do vestir em seu princípio. A sua teoria da gênese da arquitetura propõe, também, que o elemento fundamental de origem da arquitetura tenha sido o tecido, matéria a partir da qual a arquitetura opera seu vestir. (MCLEOD, 1994)

Com a ressonância do discurso de Semper nos círculos alemães e vienenses, as referências a moda se tornaram frequentes. Um dos primeiros a usar desse paralelo foi Otto Wagner, que embora admitisse seu débito a Semper, repudiava a sua idéia da arquitetura


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como vestir. Para Wagner, o estilo que exprime seu próprio tempo é apenas uma questão material e técnica e, embora se argumente que muitos de suas criações sejam “ornamentadas”, Wagner diz em seu Moderne Architektur, abandonar o ornamento. Nesse caminho, Wagner não rechaça a roupa em si, mas sim a roupa ornamentada, no caso, a roupa das mulheres, propondo então um modelo completamente masculino de pensar a arquitetura e a moda, antecipando as proposições de Adolf Loss e de Le Corbusier. (MCLEOD, 1994)

Wagner em certa passagem de seu tratado chega a elogiar a compatibilidade que um terno proporciona ao homem e ridiculariza as roupas da época de Luís XV, impróprias para a atividade do homem moderno e para a vivência no espaço urbano. Em outra passagem da terceira edição o arquiteto lamenta a “falta de treinamento artístico das mulheres, que frustra metade da humanidade e alcança um resultado, em termo de roupas, sem dúvida insatisfatório”. Claramente, são as supostas utilidade e honestidade do vestir masculino que Wagner aplaude.

Foi apenas com a eclosão dos movimentos de reforma do vestuário feminino de 1880, em que as mulheres se engajaram por um vestir mais “racional”, que abolisse o espartilho e os saltos altos, que Otto Wagner e outros arquitetos se voltaram a pensar o vestuário feminino. Peter Behrens, Henry Van de Velde, Joseph Hoffmann, Richard Riemerschmid, Paul Schultze-Naumburg e Frank Lloyd Wright são al-

Vestido desenhado por Paul Schultze-Naumburg para a Reforma do Vestuário de 1880.


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guns dos que se envolveram com a formulação de roupas de linhas mais límpidas e fluidas para as mulheres daquele período. Proclamando suas criações como arte e não como moda, os arquitetos se mostraram preocupados em criar roupas que integrassem a mulher aos interiores domésticos também projetados por eles. As criações foram exibidas em uma exposição em 1900, mas as peças geraram pouco impacto na atenção do público em geral e menos efeito ainda no consumo dos itens.

“House Dress” design de Peter Behrens, 1901.

Mary McLeod arrisca afirmar que as roupas também pouco agradariam o mais crítico dos secessionistas, o arquiteto Adolf Loss. Apesar de muito interessado em moda, para Loss apenas o vestir masculino contemplava a funcionalidade e a perenidade que a arquitetura moderna deveria representar. No início do seu texto, “Ladies Fashion”, Loss já esclarece:

“aquilo que é nobre em uma mulher conhece apenas um desejo: que ela abrace o seu lugar ao lado de grande homem forte”

Esse entendimento de Loss faria parte do jogo social em que o homem ocupa a posição mais elevada e a mulher opera ao redor disso usando de subterfúgios para seduzir o homem. A visão de modernidade de Loos repudiava o adorno, a fantasia, a mudança e o erotismo da roupa das mulheres.


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Quando Loss se reestabeleceu em Viena, em 1896, trabalhou para Carl Mayreder, marido de Rosa Meyeder, pioneira do movimento de emancipação das mulheres na Áustria. Foi nesse período que Loos foi exposto às idéias feministas mais progressistas da época. Até certo ponto, Loss encorajou a emancipação na medida que essa

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12. Georg Simmel, em seu ensaio “Fashion“, de 1904, escrevia sobre o tema da liberação mulheres e progredia ao reconhecer que as mulheres também se vestem para agradar ela mesmas, e não apenas para agradar o homem.

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mudança se fizesse a partir do código do vestuário masculino , inclusive, ele mesmo ditava o vestuário masculino para as mulheres com quem se relacionava. (MCLEOD, 1994)

Quando escreve sobre a roupa do homem, em “Men`s Fashion” (moda dos homens), Loss fala que se vestir bem é se vestir de um 13

modo que stands out the least (“se destaca o mínimo possível”) . Resta a dúvida se a busca moral pela simplicidade e pelo funcional

13. Na Inglaterra de 1800 Brummel reformou o vestuário masculino, criando austero terno preto com a gravata branca de linho, para que não se atraísse observação alguma pela aparência externa, caracterizado o que foi chamado pelo psicanalista John Carl Flugel como a grande renúncia (”the great renunciation”) no vestuário masculino.

de Loss não teria ela mesma criado a máscara do anonimato e do apagamento para os homens.

14. “It seems justified to affirm: the more cultivated a people becomes, the more decoration disappears”

Em L’árt Décoratif D’aujourd’hui (“A Arte Decorativa”), de 1925, Le Corbusier reafirma a visão de Loss e concorda com o rechaço ao ornamento, colocando-o também como feminino e como primitivo:

“Parece justo afirmar que quanto mais culto é um povo, mais a 14

decoração desaparece”

Le Corbusier também acreditava que o moderno se expressava no colarinho branco e no terno de um homem de negócios, o homme

Capa da revista “Das Andere” Nº2 contendo um anúncio de uma loja de roupas masculinas com um design de Adolf Loos, 1898.


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type. A única divergência entre os adorados ternos de Le Corbusier e Loss é que o terno do primeiro estava ligado a produção em massa e do último a confecção meticulosa dos alfaiates ingleses.

Na busca por uma arquitetura verdadeira Le Corbusier propõe em uma seção da art decoratif uma demão de tinta branca: a Lei de Ripolin (“a coat of whitewash: the law of ripolin”) como um ato moral de devoção à pureza. A pintura branca seria, para Le Corbusier, o equivalente a nudez e a destituição de todo ornamento e fazia clara oposição ao “Principle of dressing” de Semper. Em vez de investir em uma dimensão simbólica que permitiria a expressão cultural e revelaria a verdade e o propósito do corpo, como na policromia grega (o que defende Semper), Le Corbusier acreditava que a tinta branca era a única que permitia à arquitetura não se esconder, se apresentar “nua”, livre de tudo que é supérfluo.

O modelo da “nudez”, masculina, de Le Corbusier, foi validado por muitos outros arquitetos modernos: Walter Gropius, Hugo Haring, George Howe, Bruno Taut e Marcel Breuer são alguns que também denunciavam a moda feminina e faziam alusão a roupa masculina para apontar atributos que deveriam ser emulados na arquitetura. A eliminação do design de roupas da Bauhaus é um caso revelador (KINNEY, 1999), tanto quanto a alegação de Gropius de que mulheres pensavam em duas dimensões, enquanto os homens conseguiam lidar com as três. (GLANCEY, 2009)


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desenho de Bruno Taut sobre a evolução do vestir das mulheres

Em suma, é seguro constatar que a roupa vestida pelas mulheres, no discurso arquitetônico europeu, esteve sempre associada à teatralidade, ao artifício, à frivolidade, à máscara e, sobretudo: ao ornamento. Essa é precisamente a origem da formulação que recusa a moda na arquitetura. Investidos pela missão de afastar o frívolo e o efêmero do exercício da arquitetura, os arquitetos modernos e seus teóricos buscaram manter a moda como símbolo do que se deveria negar. Mas por que o ornamento foi criminalizado? E quando ele foi feminilizado? O que veio antes?

A MODA DAS MULHERES PELAS MULHERES

Segundo a argumentação de Mary McLeod, apenas dois movimentos modernos na arquitetura fugiram da parametrização masculina ao falar das roupas: o futurismo e o construtivismo.

O futurismo, ao aplaudir o rápido ciclo de mudança associado à moda, celebrava o artifício e a máscara da roupa em sua retórica e em suas performances. Mas é o construtivismo que se destaca como maior exceção do grupo: as designers Liubov Papopva e Varvara Stepanova fizeram da reforma do vestir parte da revolução socialista que almejava, dentre outras bandeiras, mudar compor-

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15. Estilo lançado pela Coco Chanel, que usava roupas masculinas.

tamentos domésticos vinculados a papéis de gênero para alterar significativamente as formas de organização da vida cotidiana. Assim, elas buscavam pensar a roupa dos homens e das mulheres com base nas atividades desempenhadas, seja na profissão ou no esporte. Essa formulação resultou em desenhos funcionais e ao mesmo tempo coloridos e decorados que contrariavam distinções tradicionais de classe e gênero. (MCLEOD, 1994)

Como a própria Popova disse, ela tinha “uma falta de inclinação fundamental para fazer qualquer distinção entre os trajes masculinos e femininos’. Seu projeto arrojado, conscientemente andrógino, é um ícone “para a nova mulher soviética emancipada pelo bolchevismo, tirando as armadilhas da feminilidade burguesa e tornando-se uma trabalhadora produtiva igual aos homens”. (KIAER, 2017)

Em território europeu, a renovação das roupas tem início nos anos 1920, com a ascensão de um grupo de mulheres estilistas: Madeleine Vionnet, Jeanne Lanvin, Coco Chanel e Elsa Schiaparelli - “as mulheres agora controlavam a moda”, diz Mary McLeod, elas conquistaram a liberdade do vestir sem mimetizar os homens. Ao final dos anos 1920 o vestuário das mulheres já combinava as vantagens do masculino e do feminino. As criações da Chanel lançaram o estilo 15

la garçonne e criaram peças que eram ao mesmo tempo clássicas e românticas, práticas e fantasiosas.


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“Roupas para as mulheres de hoje“, desenho de Le Corbusier enviado para publicação na Harper`s Bazaar em Fevereiro de 1952.

A arquitetura passou por um processo de mudanças também, começou a apresentar nos anos 1930 uma nova ênfase nas texturas, cores e considerações a condições locais. O contraste com o rígido discurso anterior era evidente nas até mesmo nas casas do próprio Le Corbusier dos anos 1930 - Errazius, Mandrot, Methes, Maison de weekend - que faziam clara oposição ao aspecto homogêneo das vilas dos anos 1920.

“O universalismo do Movimento Moderno deu lugar a visões de modernidade mais modestas e contextualmente específicas, reconhecendo um leque mais amplo de diferenças. (MCLEOD, 1994, p.87)

É tentador se perguntar se as mudanças promovidas pelas mulheres tiveram alguma relação com tais alterações formais. De qualquer modo, em 1937, Le Corbusier em “Quand les Cathédrales” mostrava uma postura renovada, prestando homenagem ao vestuário feminino e se lamentando pelos trajes funerários que os homens carregavam.

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AS ROUPAS COMO SOLUÇÃO

16. Etiqueta de parede citada por Scott, 248.

Com o mesmo ímpeto de repensar o movimento moderno, Bernard Rudofsky em 1944 aproveitava para perguntar no título da sua exposição no MoMA: “Are Clothes Modern?” (“As roupas são moder-

17. “The most evident and widespread popular aesthetic form; one can argue about the quality of fashion, but not about its pervasiveness.” Giannino Malossi, “The Industry of Fashion,” (1998).

nas?”, traduçao da autora). Rudofsky, em uma associação de outra ordem, usava da analogia com a moda para questionar o projeto moderno em sua incompletude e falta de adesão.

Em sua exposição, Rudofsky anunciava em um painel introdutório o aviso: “Atenção! Este NÃO é um desfile de moda ou uma reforma de vestuário”. Felicity Scott (1998) argumenta que a exposição, única na história do museu dedicada ao vestuário, implantou o traje como uma crítica à excessiva racionalização e à desatenção aos hábitos domésticos típicos do Estilo Internacional. Rudofsky entende o vestir como uma espécie de remodelação arquitetônica do corpo Fotografia do MoMA da exposição “Are Clothes Modern?”, de 1944.

humano, assim, ele propõe uma formalização do hábitos e comportamentos de rotina através da roupa: ele acreditava que mudar o relacionamento da roupa com o corpo traria uma mudança no modo com as pessoas se relacionam com os espaços que habitam.

“Uma mudança no vestir irracional para um vestir racional pode trazer uma mudança paralela em nosso entorno e vai permitir 16

melhores formas de viver.“


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A reformulação estética, em outras palavras, se moveria “de baixo para cima” em vez de “de cima para baixo”. A proposta de Rudofsky é no mínimo sensata se considerarmos que a moda sempre encontrou sua forma de permear a vida social, alcançando grande poder de assimilação pelo grande público, chegando até a ser chamada de “a forma estética popular mais evidente e difundida; pode-se argumentar sobre a qualidade da moda, mas não sobre sua pervasiv17

idade.” (MALOSSI, 1998)

A pergunta de Rudofsky, no entanto, pouco engajou e repercutiu. O fim da segunda guerra e as crises política, econômica e arquitetônica que se desenrolaram enfraqueceram o campo das analogias da moda no mundo da arquitetura. Uma reaproximação só seria vista 18

novamente a partir dos anos 1980 .

O TERRENO FÉRTIL DOS ANOS 1980

Os anos 1980 nutriram um ambiente plural onde o limite entre as dis-

27

18. Enquanto isso, são delineados alguns ensaios de conexão aqui no Brasil. Sabe-se que Lina Bo Bardi desenhava roupas e, nos anos 1950, o MASP recebe desfiles de marcas estrangeiras. Na mesma década, Bardi reuniu esforços para a criação de uma seção de costumes no museu e houve a elaboração, em 1952, de uma coleção de moda brasileira que se inspirava na fauna e flora, nas culturas indígena e afro-brasileira e em costumes populares além de apresentar uma proposta que estivesse em compasso clima e aos hábitos locais. Com intenção semelhante, Flávio de Carvalho lança a “Experiência nº3, em 1956, o vestuário ideal para o homem dos trópicos, o arquiteto sai às ruas com blusa de manga bufante, saia, meia arrastão, sandália e chapéu.Na década de 60, há de se destacar a intervenção performática do artista Hélio Oiticica com os parangolés, exemplo da arte ambiental que interage corpo-tempo-espaço através da roupa e do movimento.

ciplinas parecia se fazer menos visível e onde as culturas criativas se mesclavam num diálogo de enriquecimento mútuo. A revista inglesa Blueprint (1982), as exposições e publicações do grupo Nato - Narrative Architecture Today da Architectural Association, as revistas americanas Skyline e Metropolis se configuram como iniciativas que transitavam livremente entre os campos da arquitetura e da moda. (HODGE) Esse é cenário que se desenha em direção aos anos 1990, década que

19. As avaliações etnográficas e semiológicas dos rituais urbanos, a atenção pós-marxista ao consumo em vez da produção, o iconoclasmo feminista em relação às imagens prescritas da feminilidade e as teorias performativas da identidade derivadas da filosofia hegeliana e da psicanálise lacaniana renovaram o interesse pela moda. (KINNEY)


28

REVISÃO CRÍTICA DA RELAÇÃO ENTRE MODA E ARQUITETURA

20. Kate Nesbitt (1996) afirma que a tectônica aparece na crítica da arquitetura do fim do período modernista, e vem constituir um dos principais temas do debate contemporâneo, ao lado da semiótica, da fenomenologia, do deconstrutivismo e do regionalismo crítico e na crítica da arquitetura historicista pós-moderna, particularmente na contribuição de Kenneth Frampton.

assistiu o nascimento de escritos sobre arquitetura e moda também no âmbito acadêmico e inaugurou uma onda de interesse por outras 19

disciplinas, motivada por uma série de mudanças metodológicas .

Essa atmosfera é razão que permitiu a revisão crítica dos registros na arquitetura e a produção de grande parte da bibliografia que embasou a reflexão do presente trabalho. É a visão relacional que tornou possível identificar as descritas questões que a arquitetura moderna enfrentou com a adesão de seu projeto e esclareceu o

21. Hoje, reconhece-se a beleza das fachadas sedutoras de Herzog e de Meuron numa valorizaçao tardia ao que Jeffrey Kipnis chama de “astúcia do cosmético” na edição “60 + 84 Herzog & de Meuron 1981 - 2000” da El Croquis. Movimento necessário para que o cosmético possa fazer o retorno ao seu sentido original de onde ele foi deslocado: cosmético é aquele relativo ao cosmos [do grego: kosmtikos, do kosmos “ordem ou adorno”, que se relaciona com o entendimento do universo como um todo ordenado.

débito que o campo mantém com as mulheres. Isso só foi possível pela dissolução das dicotomias absolutas (aparência e realidade, superfície e substância) da crítica cultural pós-estruturalista (KINNEY, 1999) A partir daí se retoma a valorização do simbólico e da 20

21

tectônica em consonância com os antigos escritos de Semper.

ESTRUTURA E EXPRESSÃO

Entender que o ornamento não é um crime do qual alguém precisa 22

ser absolvido é o primeiro passo em direção ao reconhecimento da moda como um campo de criação e construção correlato à ar-

22. “Masking does not help, however, when behind the mask the thing is false or the mask is no good” Gottfried Semper; podemos refletir que a defesa incorre apenas sobre as obras de intenção vurtuosa e execução primorosa.

quitetura e sujeito a adversidades de mesma origem, sobretudo no que diz respeito ao fenômeno de comodificação inerente ao capitalismo. Ademais, saber que a moda e sua matéria, a roupa, apresentam estrutura é o outro avanço no caminho dessa aproximação. Nem o ornamento é um crime e nem a moda é puro ornamento.


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Nada é. Para Semper, “o ornamento e a forma da obra de arte estão tão intrinsecamente ligados que conceber algum deles em isolamento seria impossível”. (MCLEOD, 1994, p.49)

Semper nunca opôs o ornamento e o “Princípio do Vestir” (tradução livre da autora) ao comprometimento técnico implícito na racionalização da construção. Em um manuscrito póstumo publicado em 1884 intitulado “Outline for a System of Comparative Style Theory” [“Entwurf eines Systemes der vergleichenden Stillehre”] traduzido

29

23. “We must distinguish two different kinds of influences, which act upon the embodiment of an artistic work. The first class comprises the exigencies, of the work itself and which are based upon certain laws of nature and of necessity, which are the same at all times and under every circumstance. The second class comprises such vehicles, which we may call outward influences acting upon the performance of a work of art.” (Nexus Netw J – Vol.14, No. 1, 2012 p. 121)

para o inglês por Harry Francis Mallgrave, Semper discorre sobre o princípio que deve responder às “leis da natureza”, como ele denominou, razão que permitia ao simbolismo artístico existir (POERSCHKE, 2012):

Devemos distinguir dois tipos diferentes de influências que atuam na realização de um trabalho artístico. A primeira classe compreende as exigências da própria obra e que são baseadas em certas leis da natureza e da necessidade, as quais são as mesmas em todos os momentos e sob todas as circunstâncias. A segunda classe compreende esses veículos, que podemos chamar de influências externas atuando sobre o desenvolvimento de uma 23

obra de arte”.

Uma obra arquitetônica teria dentro de si, então, a convivência dessas duas entidades do campo estrutural e simbólico. “Apenas com com-

24. Em Der Stil, Semper coloca a tectônica como sinônimo de “carpintaria” (tekton = carpinteiro). Da mesma família são as palavras hylé (madeira do carpinteiro) e morphé (forma, idéia que o carpinteiro informa). Além disso, em um manuscrito não-publicado, intitulado Teoria da beleza formal (Theorie des formell-schönen), Semper conceitua tectônica como “arte cósmica de fabricação”.


30

REVISÃO CRÍTICA DA RELAÇÃO ENTRE MODA E ARQUITETURA

25. Renomados estilistas como Pierre Cardin e Roberto Capucci, arquitetos por formação, são também expoentes da criação das roupas ditas “arquitetônicas”.

pleta perfeição técnica, pelo uso apropriado e judicioso dos materiais e de suas propriedades” seria possível a criação artística transcender 24

o material e atuar no seu propósito social e cultural mais amplo .

Assim, as roupas e sua relação com a arquitetura estão para além das questões estilísticas e encontram analogias também em princípios construtivos. Yopanan (2000) diz que conceber uma estrutura é ter consciência da possibilidade de sua existência; é perceber a sua relação com o espaço e os sistemas capazes de encaminhar as cargas da forma mais natural; é identificar os materiais que, de maneira mais adequada, se adaptam a esses sistemas. “Não se pode imaginar uma forma que não necessite de uma estrutura, ou uma estrutura que não tenha uma forma”, afirma.

Admitindo premissas similares, o MIT desenvolveu, em 1982, através da curadoria de Susan Sidlauskas, a exposição Intimate Architecture, que apresentou as criações de oito estilistas conhecidos por seu vocabulário arquitetônico-construtivo: Gianfranco Ferre, Mariuccia Mandelli, Ronaldus Shamask, Issey Miyake, Yeohlee Teng, 25

Stephen Manniello, Giorgio Armani e Claude Montana .

“A exposição”, disse Miyake, “prova que a moda não precisa mais ser separada dos outros campos de design. Na melhor das hipóteses, é consideravelmente mais do que um ofício. Deve representar seu tempo. Que o M.I.T. ter encenado este espetáculo valide a moda


ENTRE LINHAS | DIÁLOGOS ENTRE ARQUITETURA E MODA

e inspire estudantes aqui a se tornarem não só engenheiros elétricos, mas também engenheiros da moda’’

26

Estrutura é uma noção presente em todas as áreas do conhecimento e representa um sistema de elementos que se interrelacionam em favor do desempenhar uma função. A noção de estrutura é parte integrante do inconsciente coletivo e todo ser humano nasce com a intuição estrutural que ao longo da vida pode aperfeiçoar, mesmo que empiricamente. Manipulamos, antes de qualquer coisa, a estrutura de nosso próprio corpo. (REBELLO, 2000)

Ressaltar similaridades em um mundo descontínuo nos permite considerar as formas fora do isolamento, encontrá-las nas zonas de fronteira, numa relação de contiguidade com as formas de outros campos. O ensaio que se pretende, então, busca conscientemente usar da estrutura e da expressão para criar roupas que se expandam das suas características planas para se tornarem atraentes formas tridimensionais e, principalmente, que se apresentem de forma sutil, propiciando ao usuário que ele se torne agente do seu envoltório.

É diante dessa proposta que este trabalho se insere, devedor de todas essas reflexões e gerador de uma vontade que se pretende ensaiar aqui e se fazer ao longo da vida: unir a substância à superfície e reconhecer a grandeza dessas duas entidades na forma de todas as coisas.

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26. ‘The exhibit,’’ said Mr. Miyake, ‘’proves that fashion no longer has to be separated from the other design fields. At its best, it is considerably more than a craft. It must represent its time. That M.I.T. has staged this show validates fashion and may inspire students here to become not electrical engineers, but engineers of fashion.’’


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CONSIDERAÇÕES SOBRE OS ENSAIOS

CONSIDERAÇÕES O trabalho contemplou o desenvolvimento de sete roupa completas, cada uma com suas respectivas peças. Cada roupa é marcada por uma forma de aproximação com o material, buscando estabelecer uma conversa entre sua forma e as possibilidades estruturantes de seus elementos. Essas estratégias construtivas e seus desdobramentos constituem abordagens familiares ao campo da arquitetura.

O ponto de partida foi o artigo escrito por Marta Bogéa, Yopanan Rebello e Ricardo Oliveros para Au, na edição 133 de 2005, em que os autores registraram alguns paralelos estruturais entre criações da arquitetura e da moda. O artigo enfatiza a relação que nasce no aspecto material, ao admitir a equivalência de funcionamento que a malha de cabos estruturais da arquitetura mantém com a trama dos fios dos tecido, casos em que a condição estruturante se dá pela ortogonalidade das partes. É dentro dessa ótica que privilegia a construção das roupas que surge o ímpeto de criação desse ensaio.

1. malha de cabos; The work of Frei Otto and his team 1955-1976, Alemanha IL 17 1977 in BOGEA, Marta. OLIVEROS, Ricardo. REBELLO, Yopanan. Artigo na aU de Edição 133 - Abril/2005. [http://au17.pini.com.br/arquitetura-urbanismo/133/arquiteturas-estruturas-e-moda-22714-1.aspx]. 2. malha ortagonal de fios que dá da estrutura ao tecido.


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Inevitavelmente, relações de procedimento também foram abordadas. Essas são semelhanças mantidas por questões que envolvem a visualização do projeto e a transposição do plano para o espaço. Projetar na arquitetura por maquetes e modelos ou por cortes e plantas está para projetar na moda pelo manequim ou pelos desenhos de planificação, ou seja, a correspondência está no modo de operar as linguagens em visualizações que privilegiam ora o tridimensional, ora o bidimensional. Miranda (2011) afirma que

“os processos criativos podem ser muito idênticos, ambos começam um projeto bidimensional para que depois seja convertido, criando complexas formas tridimensionais” (MIRANDA, 2011, p.93)

As experiências conduzidas, então, trabalham a partir do tecido plano e reproduzem os procedimentos da modelagem (plana e tridimensional - moulage), do corte e da costura.

O tecido plano é o conjunto de fios tramados em ângulo reto, o que tece em sentido longitudinal - urdidura ou urdume - e na largura - a trama.

A modelagem é a etapa desenvolvida pelo modelista, requer noção apurada da relação do volume com seu plano correspondente e envolve a comunicação o projeto por meio de desenhos técnicos

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34

CONSIDERAÇÕES SOBRE OS ENSAIOS

bidimensionais em escala ou tamanho real, com indicações das operações que devem ser feitas pelos cortadores e costureiros na etapa de montagem ou pelo piloteiro na montagem da peça piloto. Miriam Pappalardo discorre sobre o processo em sua tese “Vestindo Geometrias”, quando explica:

“a modelagem, no vestuário, parte do princípio que deve vestir um corpo - volume - que tem formas orgânicas, sem linhas predominantemente retas e ortogonais visando vencer o desafio da tridimensionalidade e perseguindo a vocação de envolver - revestir - um volume irregular, são feitos recortes, pregas, pences, nervuras, franzidos ou molezas, contrariando as relações cartesianas”

Enquanto método, a modelagem pode ser trabalhada a partir do plano para o volume (modelagem plana) ou do a partir do volume para o plano (modelagem tridimensional ou moulage). Além disso, hoje, é também possível trabalhar a modelagem dentro de programas computadorizados que simulam a interação do plano com o volume simultaneamente.

A modelagem bidimensional ou plana consiste em um método geométrico de construção das peças (moldes) que relaciona as formas anatômicas do corpo humano para construir diagramas em papel. Esses diagramas são representações das medidas do corpo humano e do projeto de roupa planificados.


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Como guias referenciais de modelagem plana foram utilizadas as apostilas de curso do SENAI elaborado pela Ana Maria Pereira Ramos e o material didático do SENAC para modelagem plana feminina. Esses são livros que instruem a execução, tornando possível a reprodução dos processos.

A linguagem da modelagem plana opera através de diagramas que se constroem a partir das medidas do corpo e do desenho da roupa. As medidas do corpo são sistematizadas na forma de tabelas: as tabela de medidas, ferramentas representativas dos indivíduos-tipo de uma população, que servem a produção em série industrial da roupa.

Na modelagem tridimensional, a moulage, em vez de se fazer os moldes no papel, os moldes são feitos sobre um manequim especial para esta finalidade. O tecido é moldado, alfinetado, riscado e cortado para reproduzir o modelo desenhado previamente. Com esta técnica é possível visualizar o resultado da modelagem enquanto ela está sendo feita.

O fenômeno de modelar no próprio corpo é antigo, remonta às elegantes vestes da antiguidade. Os gregos, por exemplo, seguiam o que James Laver chama de “princípio do mediterrâneo”, que consiste no uso de peças de tecido predominantemente retangulares de diferentes tamanhos que eram modelados, dobrados e enrolados no corpo seguindo algumas regras.

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36

CONSIDERAÇÕES SOBRE OS ENSAIOS

As referências para os trabalhos de moulage fazem parte de uma bibliografia que explica a história da processo, aponta os expoentes que dominaram a técnica, e trazem instruções de como operar pelo método. Fazem parte desse grupo: Moulage: Arte e Técnica no Design de Moda, por Anette Duburg e Rixt van der Tol; Draping for Fashion Design, de Hilde Jaffe e Nurie Relis; Draping for Apparel Design, de Helen-Joseph Armstrong.

Usando das técnicas da modelagem, as roupas foram feitas de acordo com um manequim feminino e tabela de medidas tamanho 40. A escolha do suporte foi resultado de questões relativas à disponibilidade e não foram feitas peças para outros tamanhos apenas por uma limitação de prazo.

Os desenhos que acompanham a apresentação de cada roupa foram desenvolvidos na intenção de auxiliar o entendimento da construção das peças. Eles são esquemas de procedimento e não apresentam valores absolutos, mas proporções de desenho, relativos às linhas de construção que variam de corpo para corpo (medidas do carrure, do busto, da cintura, do pequeno quadril e do quadril, veja na ilustração ao lado).

A partir dessas considerações, a exposição das peças é feita nas páginas seguintes. linhas de construção do corpo


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linha do carrure linha do busto

linha da cintura linha do pequeno quadril

linha do quadril


glossário de símbolos


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linha de costura linha grossa pontilhada

limite do tecido linha contínua

linha de corte linha pontilhada laranja

linha de dobra linha pontilhada

linha de construção linha fina laranja

sentido do f io linha contínua com setas nas pontas

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01. 40


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ensaio |

SUSPENSÃO

41


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ENSAIO |

SUSPENSÃO

1.

Souza (2006) e Saltzman (2004) concordam que, ao pensar a estrutura da roupa, a sustentação é importante e se processa de diversas maneiras. O apoio nas partes extremas superiores do corpo, como ombros e cabeça, é uma das soluções mais 1

aplicadas. De mesmo importância é o traçado da modelagem , que redesenha a anatomia de forma a encaixar reentrâncias e saliências. A aderência entre roupa e pele é favorecida pelo atri2.

to que surge entre os dois elementos, da mesma forma como acontece com as estacas de fundação com o solo. Assim, vale apontar também o papel desempenhado pelas propriedades do próprio tecido, com suas rugosidades e aspereza.

A densidade do tecido é também fator relevante para a composição da forma. No arranjo da roupa apresentada, a escolha de um tecido denso de caimento pesado como crepe pascally foi fundamental para que se atingisse a silhueta desejada que fizesse contrastar peso e leveza no ponto de içagem. O tecido apresenta dupla face, com uma lado fosco e outro acetinado, fator que se revela pela fenda frontal por ocasião da dobra da roupa sobre ela mesma.

Embora constitua uma peça única, podemos entender a estru2

tura da veste dividindo-a em duas partes : a superior, acima da linha do quadril e a inferior, abaixo da linha do quadril.


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ENSAIO | SUSPENSÃO

3. o tecido apresenta maior resistência no sentido do urdume, depois da trama e depois do viés.

A parte superior da roupa se sustenta pelo apoio perpendicular sobre os ombros e pela aderência lateral da modelagem justa sobre o tronco. A modelagem próxima ao corpo aumenta a

4. medida de cava a cava, tendo como referência a parte mais profunda da cava.

superfície de contato entre os componentes, possibilitando a ancoragem lateral ao mesmo tempo em que comprime o corpo por pressão, usando da reduzida, porém existente, elasticidade 3

dos fios da trama .

Já a porção inferior se dobra sobre a parte e cima atingindo a altura da linha da cintura ao ser içada em um único ponto por um cabo isolado que se estende a partir do ombro esquerdo. O tirante de suspensão resiste à tração aplicada pelo peso da parte inferior da roupa e ao erguer a peça coloca o perímetro do quadril lado a lado com a circunferência reduzida da cintura, criado o contraste da proximidade e do afastamento em relação ao corpo.

O acesso se faz pela lateral, através de um zíper invisível que se 4

estende do carrure até a linha do quadril.

detalhes 1 | fenda

detalhes 2 | ombro

detalhes 3 | ponto de içagem



46

1 A modelagem se divide em seis partes principais que desenham as linhas do corpo de forma próxi-

ma. Deve-se unir primeiro as partes inferiores às superiores, depois as três partes da frente e depois as três partes das costas.

revel (peça de arremate) recebe reforço com uma entretela colante.

busto

cintura projeção da dobra pequeno quadril

quadril

dobra inferior

todas as partes de cima devem ser unir às partes de baixo

dobra superior pequeno quadril

quadril

FRENTE | DIREITA

FRENTE

FRENTE | ESQUERDA


2 Unir frente com costas e colocar os revéis como acabamento da parte de cima. Em baixo, como

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acabamento, deve ser feita uma barra.

para que o fio permanecesse no sentido do urdume tanto na parte de cima quanto de baixo do vestido, foi preciso dividir a modelgagem em duas porções superiores e inferiores.

busto

cintura projeção da dobra pequeno quadril

quadril

dobra inferior

dobra superior pequeno quadril

quadril

COSTAS | ESQUERDA

COSTAS

COSTAS | DIREITA


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02.

52

ENSAIO | PLISSADO


ENTRE LINHAS | DIÁLOGOS ENTRE ARQUITETURA E MODA

ensaio |

PLISSADO

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54

ENSAIO | 1.

PLISSADO

Yopanan (2000) afirma que existem três elementos que caracterizam a rigidez de uma peça estrutural: seu comprimento; a deformabilidade do material definida por seu módulo de elasticidade (E); e a forma de sua seção transversal, dada pelo momento de inércia (I).

esquema para dobras em uma folha de papel. In: Botel-

A geometria dos elementos no desenvolvimento do objeto ou da

ho, Manoel Henrique Campos Concreto Armado, Vol 1 Ed. 8.

arquitetura é aspecto relevante para a estrutura. Rebello (2000) afirma que “a forma (do material) é muitas vezes mais determinante da sua resistência que a própria resistência do material”, assim, “quando a forma de uma peça estrutural é bem elaborada, ela se traduz em ganho na sua capacidade resistente’’ (p.28).

O momento de inércia avalia a rigidez do material ao verificar sua resistência à flexão em relação ao eixo que passa pela linha neutra. É medido pelo afastamento das áreas em relação a essa linha de referência (BOTELHO, MARCHETTI). Assim, esse afasta1

mento das áreas aumenta o momento de inércia .

Esse é o caso da conformação em dobras característica do plissado. De forma análoga ao que acontece nas cascas da arquitetura (BOGEA, OLIVEROS, REBELLO; 2005), o plissado confere resistência ao tecido pela geometria. O momento de inércia do tecido sem dobras é próximo a zero, pois as áreas estão praticamente no eixo da linha neutra. Ao ser dobrado, o tecido obtém o afastamento necessário para alcançar rigidez e manter a forma.


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56

ENSAIO | PLISSADO

2.

O tecido utilizado para a confecção da roupa foi o chiffon. 2

Depois de plissado , ele foi modelado diretamente sobre o manequim. O uso da modelagem plana para essa peça foi inviável, pois seria muito difícil prever com precisão as dimensões resultantes do trabalho da dobra, principalmente porque foi um processo manual. Assim, apenas depois do volume adquirido com as dobraduras, foi possível manipulá-lo claramente no espaço. Os desenhos a seguir mostram uma alusão do que seria a planificação da roupa, considerando o tecido plissado como um tecido plano.

O parte superior, o colete, se apoia completamente nos ombros do corpo e a costura da lateral é feita em curva, forma que o plissado ajuda a evidenciar e manter (detalhe 1). O processo do plissado foi feito manualmente. Em um cano de PVC, o chiffon foi enrugado com ajuda de um fio que separava as dobras de forma quase regular. depois, o tecido enrugado foi aquecido com ferro por cerca de uma hora para assentar as dobras.

A parte inferior, a saia, se apoia pelo cós abotoado na circunferência da cintura. Pelo fato da cintura comumente apresentar uma circunferência menor que a do quadril, na média dos corpos femininos brasileiros, esta se constitui como um frequente ponto de ancoragem para roupas.

O acesso da parte de cima é feito pela frente abotoada ao centro. A parte de baixo se abre/fecha por um botão único localizado no cós. Não há costura lateral que fecha a peça na direção de seu comprimento, para evitar a deformação do plissado. detalhe 1 | curva lateral



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ENSAIO | PLISSADO

TOP

carrure

busto

cintura

p. quadri

quadril

FRENTE

FRENTE MONTADA

carrure

busto

cintura

p. quadr

quadril

COSTAS

COSTAS MONTADA


il

ENTRE LINHAS | DIÁLOGOS ENTRE ARQUITETURA E MODA

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SAIA

1 A saia é feita a aprtir

de retângulos que envolvem as pernas a partir da linha da cintura. O retângulo de tecido plissado fica por cima e o retângulo de tecido liso por baixo.

2 Pregas são feitas

nos retângulos para dar volume. A localização dessas pregas foi decidida no processo de moulage e tem suas posições indicadas no esuqema ao lado.

TECIDO PLISSADO

TECIDO PLISSADO CÓS

TECIDO PLISSADO TECIDO LISO

DO

TECIDO LISO 3 Um tecido é colocado

sobre o outro e os dois são unidos pela colocação do cós.

ril

MONTAGEM




62





03.

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ENSAIO | PREGAS


ENTRE LINHAS | DIÁLOGOS ENTRE ARQUITETURA E MODA

ensaio |

PREGAS

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ENSAIO |

PREGAS

Na confecção dessa peça, o tecido também é trabalhado de forma a aumentar o momento de inércia (I) do elemento. Da mesma forma como acontece no tecido plissado, a geometria se torna ferramenta para alcançar rigidez. Podemos comparar o 1

tecido pregueado a uma laje nervurada . 1. “As minúsculas nervuras transformam a membrana original em um novo sistema estrutural no qual a rigidez prevalece. É como o enrijecimento pelo uso de nervuras em substituição às lâminas maciças da catedral de St. Mary’s na Califórnia, Estados Unidos (1966-71), de (Pier Luigi) Nervi, que transformam a lâmina original em uma eficiente casca”. In BOGEA, Marta. OLIVEROS, Ricardo. REBELLO, Yopanan. Artigo na aU de Edição 133 - Abril/2005. [http://au17. pini.com.br/arquitetura-urbanismo/133/ arquiteturas-estruturas-e-moda-22714-1. aspx].

2.

Resgatados os mesmos argumentos levantados na roupa anterior, essa manipulação do tecido, nesse caso o tafetá, apresenta a 2

particularidade de contar com costuras que fixam as pregas em seus espaçamentos igualmente distribuídos.

A costura da prega atua como um cabo estabilizante do sistema de vincos, impedindo que as dobraduras se abram ao serem tracionadas pela pressão da modelagem justa ao corpo. O artigo “Malhas: estruturas em moda e arquitetura” aponta essa explicação quando exemplifica casos em que cabos isolados podem auxiliar na manutenção da forma de uma malha de cabos: “A volumetria de arestas e as mudanças de direção são viabilizadas por cabos ou costuras, elementos que dão a devida tração nos vértices, construindo as dobras” (BOGEA, OLIVEROS, REBELLO; p. 77)

O vestido se sustenta pela associação do apoio dos ombros com a aderência da modelagem pregueada sobre o tronco. Como apenas metade da faixa do tecido recebe dobras, é possível construir o contraste entre a porção pregueada e justa,


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ENSAIO | PREGAS

superior, com a porção lisa e afastada, inferior. A rigidez da parte

3.

superior se evidencia na extensão dos apoios do ombro para além do corpo (detalhe 1), construindo um balanço. A exposiçao Skin+Bones: Parallel Practices in Fashion and Architecture [pele + osso: práticas paralelas em arquitetura e moda] do Museu de Arte Contemporânea de Los Angeles (MOCA), evidencia em seu conteúdo a execução de balanços como uma estratégia formal e estrutural que os dois campos compartilham, colocando o balanço do vestido de lã de Yohji yamamoto ao lado do Instituto de Arte 3

Contemporânea de Boston, projetada pelo Diller Scofidio + Renfro .

Ilustrações do catálogo da exposição Skin+Bones: Parallel Practices in Fashion and Architecture.

detalhe 1 | balanço

detalhe 2 | execução das pregas

detalhe 3 | pregas no tecido



ENSAIO | PREGAS

y/4

y/4

y/4

y/4

dessa roupa foi feita a partir de uma peça retangular. As proporções são demonstradas ao lado.

y

1 A modelagem

2 A porção central da

peça recebeu pregas de 1 cm de altura com distanciamento de também 1cm.

3 O resultado é

aludido ao lado. A representação desse resultado não é uma planificação.

4 Como sequência,

se executa-se uma dobra na linha central (indicação) para dividir a roupa em frente e costas.

x/3

COSTAS

FRENTE

FRENTE

COSTAS DOBRAR

dobra


ENTRE LINHAS | DIÁLOGOS ENTRE ARQUITETURA E MODA

5 corte do decote da frente e das

costas, a abertura é permitida pela colocação de uma pence próxima a altura da cintura.

73

6 corte na altura do carrure que

permite a projeção da ombeira e a formacão da lateral da roupa que se curvará sobre o corpo.

7 depois, unem-se as partes da

frente a das costas por uma costura simples, se executa a barra e o acabamento do ombro.

corte do decote

x

dobra

carrure

carrure

pence

cintura

pence fechada

cintura

quadril

quadril

barra

FRENTE FRENTE / COSTAS

FRENTE FRENTE

corte do decote

dobra

x carrure

carrure

pence

cintura

pence fechada

cintura

quadril

quadril

barra

COSTAS COSTAS

COSTAS COSTAS






78



04.

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ENSAIO | ENGOMADO


ENTRE LINHAS | DIÁLOGOS ENTRE ARQUITETURA E MODA

ensaio |

ENGOMADO

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82

ENSAIO |ENGOMADO

Uma das formas mais tradicionais de se enrijecer um tecido é pelo uso de gomas. Associar a malha de cabos a uma solução endurecedora é uma forma de intervenção na superfície têxtil que lida com o módulo de elasticidade (E) do conjunto. O módulo de elasticidade é resultante da relação entre tensão e deformação, e indica assim a deformabilidade de um material mediante a aplicação de determinada força.

Bogéa, Rebello e Oliveros apontam no Pavilhão de Portugal, de Álvaro Siza, um exemplo de estratégia correspondente: “A camada de concreto que assegura a estabilidade de forma da malha de cabos da cobertura [...] de certo modo ‘engoma’ os cabos e obtém a rigidez necessária - além, naturalmente, de construir a vedação”

O material utilizado como goma para a preparação do tecido foi a termolina leitosa, embora se possa utilizar também clara de ovo, cera, maizena ou outros tantos. A incorporação da goma ao tecido (algodão) permitiu a realização de formas rígidas e de cortes retos, além de ter dispensado a execução de barras e acabamentos nas margens, já que a termolina evitou o desfiamento dos fios.

O resultado foi a elaboração de uma roupa de duas peças, uma 1. Pavilhão de Portugal, de Álvaro Siza.

blusa e uma saia. A blusa segue um desenho retilíneo que muda


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84

ENSAIO | ENGOMADO

de direção abruptamente ao envolver o corpo. Para tanto, foi preciso dividí-la em seis partes que tangenciam o corpo. Essa peça se apoia nos ombros e tem seu acesso previsto pela lateral abotoada.

A saia apresenta uma dobradura que constrói um afastamento do corpo na altura do quadril. A dobradura se mantém pela rigidez do tecido e também pela costura que prende parte da dobra enquanto a outra parte fica suspensa. O acesso se faz pelo zíper lateral da abertura que se estende da cintura ao quadril.

detalhes 1 | processo

detalhes 2 | cantos retos

detalhes 3 | maquete têxtil



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ENSAIO | ENGOMADO

TOP

margem de costura virada para dentro

margem de costura sobreposta para fora visualização da montagem do top

1 Unir as partes

pela margem de costura.

DIREITO

ESQUERDO

FRENTE

ESQUERDO

TRÁS

DIREITO

dob


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SAIA projeçao da dobra

bra

COSTAS

FRENTE

visualização da montagem da saia

porção da dobra presa por uma costura zig-zag

dobra solta e afastamento


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05.

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ENSAIO | ENTRETELA


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ensaio |

ENTRETELA

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ENSAIO |ENTRETELA

Enquanto a goma cria uma superfície rígida pela mistura, a técnica explorada nesta seção estuda a associação do tecido (crepe) com outros tecidos de módulo de elasticidade diferentes (entretelas).

Para a execução da forma foram usados duas entretelas. Considerando o tecido crepe como o mais deformável entre os componentes (“módulo de elasticidade inferior”), podemos dizer que as entretelas se dividem em “entretela de módulo de elasticidade média” e “entretela de módulo de elasticidade superior”. (ver aplicação na página seguinte)ww

Quando as entretelas são coladas no tecido, ele muda seu comportamento e passa a resistir mais aos esforços da manipulação. A partir daí, são executadas as dobras retas que se contrapõem às linhas orgânicas do corpo e criam efeitos de luz e sombra.

detalhe 1 | processo

detalhe 2 | pence

detalhe 3 | processo


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ENSAIO | ENTRETELA

Operação explorada pela arquitetura e a moda, a dobra é ferramenta que une superfícies ao mesmo tempo em que as divide, curva um plano em direção a outro, organizando o espaço que eles ocupam. (QUINN) 1. Igreja da Pampulha Igreja da Pampulha, Oscar Niemeyer. Foto de Felipe Arruda In < www.archdaily.com.br/br/895363/ cascas-de-concreto-fundamentos-de-projeto-e-exemplos>

A rigidez adquirida pelo material também permite também o desenho de superfícies curvas e plásticas como a que aparece no top e que funciona de forma análoga à cascas finas e curvas 1

de Niemeyer na Igreja da Pampulha .

A roupa se divide em duas partes: a parte superior (top) que se fecha por colchetes localizados na parte traseira central e que, quando fechado, se apóia e oferece apoio aos seios por pressão e pelo atrito. A porção inferior (calça) é acessada pelo zíper da abertura lateral que se estende da altura da cintura até o quadril e encontra apoio na cintura, como em casos anteriores.

detalhe 4 | dobra

detalhe 5 | dobra

detalhe 6 | curva



TOP

1 Colar a entretela

no verso do tecido (deixando 1cm de margem de costura de todos os lados) e depois costurar o tecido da frente com o forro.

forro entretela

tecido

CALÇA entretela 3 repetir o processo com os moldes da calça,

tecido

mas sem adicionar forro. O molde de entretela deve ser 1cm menor de todos os lados para que se deixe uma margem de costura.

CÓS

dobra

entretela mais flexível dobra entretela menos flexível

dobra

FRENTE | INTERNO

COSTAS| INTERNO

x2 espelhado

x2 espelhado


2 Unir as partes pela margem de costura.

FRENTE SUPERIOR

COSTAS SUPERIOR

FRENTE INFERIOR

COSTAS INFERIOR

busto

4 fechar as pences, costurar as partes esquerda-frente com esqueda-

costas e direita-frente e direta-costas, lembrando de posicionar o zíper am alguma das laterais. Depois, fechar o centro, lado direito com o lado esquerdo e costurar o cós.

TECIDO | FORRO

5 dobrar nos lugares indicados posicionando o vinco para o interior

ENTRETELA

da calça. A visualização externa é mostrada a seguir.

TECIDO

cintura

cintura

quadril

FRENTE | EXTERNO

quadril

COSTAS| EXTERNO




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06.

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ENSAIO | SOBREPOSIÇÃO


ENTRE LINHAS | DIÁLOGOS ENTRE ARQUITETURA E MODA

ensaio |

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SOBREPOSIÇÃO


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ENSAIO | SOBREPOSIÇÃO

O pensamento que construiu essa roupa é derivado do raciocínio da peça anterior: associação de tecidos de módulos de elasticidade diferentes. Neste caso, a incorporação não se esconde, ela é parte do resultado visual externo. Além disso, a associação que se faz aqui não trabalha a superfície inteira, mas seções de seu plano.

Associar o tecido mais deformável (tule) aos segmentos de um tecido menos deformável (couro sintético), gerou uma relação complexa em que porções do conjunto, extremamente maleáveis, são seguidos abruptamente por parte mais resistentes. O conjunto de tecidos, no geral, apresenta maior resistência no sentido do comprimento das linhas do que transversalmente a elas. Esse constitui um comportamento análogo ao da madeira, material anisotrópico, ou seja, elemento cujas propriedades mecânicas se alteram conforme a direção, no caso, essas propriedades dependem da disposição das suas fibras.

detalhe 1 | tecido

detalhe 2 | tecido sendo cortado a laser

detalhe 3 | resultado do corte


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1.

ENSAIO | SOBREPOSIÇÃO

A máquina a laser permitiu o corte preciso de vários segmentos de plano no couro. As formas recortadas definiram a volumetria 1

da roupa e determinaram as áreas de maior resistência .

Outro fruto da associação é a relação visual com o próprio corpo, permitido pela transparência do tule e pela opacidade do couro. O conjunto constitui uma superfície de tecido que ora vela e ora revela o corpo.

O apoio da parte superior da veste se faz pelos ombros e, como o tule utilizado apresenta elasticidade considerável, o apoio é permitido também pela pressão da peça junto ao tronco. 2.

Essa também é a razão pela qual não foi necessário propor acessórios de abertura e fechamento para auxiliar o acesso. Para se vestir a peça é preciso apenas esticá-la e depois ela retorna ao seu comprimento original e se acomoda ao corpo. Isso só é possível porque o estiramento ocorre no sentido transversal às linhas, o sentido menos resistente, em que predominam as 2

propriedade do tule .

A saia, parte inferior, tem menos área de tule na região da cintura, por isso foi previsto um abortamento para facilitar o acesso. De forma lógica, o apoio também se fez pela cintura.



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ENSAIO | SOBREPOSIÇÃO

1

depois de feitos os cortes no couro, as seções foram coladas no tule, segundo as indicações.

TOP

busto

FRENTE E LATERAIS

busto

cintura

COSTAS


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cintura

SAIA

quadril

FRENTE cintura

quadril

COSTAS

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07.

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ENSAIO | ARAME


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ensaio |

ARAME

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ENSAIO |ARAME

A alternância abrupta de módulos de elasticidade é levada mais adiante. Os segmentos são reduzidos a linhas que são materializadas por fios de arame costurados na superfície do mesmo tecido de chiffon já utilizado anteriormente.

A associação de dois componente em busca de um material moldável e resistente é um estratégia análoga à formulação do concreto armado, que combina as propriedade do aço e do concreto.

A partir de uma modelagem muito simples (um retângulo) é criada um envoltório extremamente plástico e moldável, uma peça que evidencia sua constante transformação.

detalhe 1 | costura do arame junto ao tecido e a uma entretela solúvel.

detalhe 2 | imersão do conjunto na água para que a entretela solúvel desapareça.

detalhe 3 | resultado final do conjunto, com tecido e arame só.


ENTRE LINHAS | DIÁLOGOS ENTRE ARQUITETURA E MODA

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ENSAIO | ARAME

detalhe 4 | moulage costas

detalhe 5 | contraste baixo-cima

detalhe 6 | moulage frente

O apoio sobre o corpo se faz novamente pelo ombro e a aproximação na região da cintura tem seu papel na sustentação. O acesso é feito por um zíper lateral colocado convenientemente do lado que não apresenta manga.

A parte inferior é uma calça construída em duas camadas que faz contrastar fluidez com a feição escultórica da parte de cima.



ENSAIO | ARAME

1 Tomar um retângulo

carrure

DO BR A

de tecido grande o suficiente para cobrir o tronco e prender os arames ao longo de seu compimento, espaçando-os de 1cm em 1cm com costuras zig-zag.

busto

2 Dobrar o retângulo na

metade.

cintura

pequeno quadril

3 Envolver o corpo a

partir de uma dobra nos ombros como a imagem a seguir, de modo cobrir o corpo da linha do busto até a linha do quadril pelo menos.

quadril

4 Fazer o corte que separa

a manga do tronco e retirar os excessos de tecido que estão para além das costuras indicadas.

5 O restante da roupa

carrure

cintura

pequeno quadril

quadril

A BR

busto

DO

deve ser ajustada no próprio corpo, usando da plasticidade que os arames proporcionam.


6 moldes da calça e das camadas sobrepostas.

7 unir as partes pelas margensa de costura, colocar o cós. Esquema da montagem feita a seguir








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considerações f inais 1. Do conto “Funes, O memorioso “de Jorge Luis Borges.

O percurso que se desenhou nessas páginas não premeditou seus resultados, foi fruto de uma experimentação desprendida, por isso, agradeço ao Luís, que me garantiu a calma e a confiança para eu

2. Rafael Moneo, The Solitude of Buildings, Aula Magna, Kenzo Tange Visiting Professor Chair, Harvard University Graduate School of Design, 1985.

me debruçasse sobre a minha vontade de fazer. Experimentar do mundo de criação de roupas, com a intenção de investigar questões que me despertavam fascínio, foi um exercício de reconhecimento. Reconhecimento de similaridades. “Pensar é esquecer diferenças, é 1

generalizar, abstrair…” ,notar que práticas distintas se desenvolvem a partir da fontes comuns possibilita o trânsito mais livre do conhecimento e vivenciar essa experiência pela prática possibilita um aprendizado mais autônomo.

A intenção desse trabalho nunca foi a de esgotar o seu tema ou de responder todas as perguntas que o tema envolve. A proposta se materializa no processo de busca e, pelo menos pra mim, agente direta dessa experimentação, termina por evidenciar a moda como um campo correlato a arquitetura, de onde podemos tirar valiosos ensinamentos. Para ilustrar, desenho então alguns exemplos de como o trabalho me fez refletir os ensinamentos que a arquitetura pode extrair da moda.

Esses ensinamentos passam pela vivência de três liberdades. Primeiro, a liberdade da forma. A moda permite uma liberdade muito ampla no que diz respeito à experimentação da forma, que


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tem a ver com liberdade de manifestar o específico. A roupa é vestida por um só, envolve o singular e a expressão do indivíduo. Por isso, constitui um campo sem grandes limitações formais e pode, portanto, ser palco para a experiência plástica pura, tão cara ao exercício da criatividade. A arquitetura, por outro lado, não pode ser nos conceder plenamente essa desprendida experimentação. Embora seja um campo da realização da forma também, a arquitetura é matéria do plural, e envolve uma série importante de limites que revelam um cuidado com as presenças que um edifício deve contemplar. "Os arquitetos deveriam perceber que a arquitetura, o trabalho no qual eles estão envolvidos, suas obras, é uma complexa realidade que inclui muitas presenças; por essa razão, o imediatismo-fantasia não é possível. Todas essas presenças são refletidas no múltiplo espelho que é o edifício”; Rafael Moneo, em sua aula magna de 1985 em Harvard, trata dessa missão virtuosa e cuidadosa que nos solicita a equalizar o coletivo dentro da arquitetura, continua: "A habilidade de acomodar as múltiplas presenças inerentes ao edifício deveria ser a chave com a qual o arquiteto condense disparidade na singular presença autoportante dos edifícios.”

2

A segunda liberdade experimentada por esse exercício é a liberdade da manipulação. A moda oferece uma oportunidade prática de materializar idéias em uma escala possível, mais próxima das dimensões que a mão domina e fruto do conversa direta com

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

o material. Esse é um aspecto muito proveitoso para a prática da arquitetura, é uma abordagem que favorece a interlocução constante e direta entre projeto e produto, plano e espaço. Conseguir realizar um objeto do começo ao fim foi uma experiência reveladora da importância de cada etapa e da consciência total do processo.

A dita consciência do processo é a deixa que nos leva a terceira, última e mais importante liberdade permitida por essa experiência: a liberdade do conhecimento, derivada do reconhecimento das similaridades, já mencionado. Reconhecer o que há de comum entre as coisas do mundo promove o intercâmbio, a troca, a comunicação. A função da linguagem é essa mesma, o Luís diz: "criar continuidade em um mundo descontínuo”. Assim, criase uma veículo de comunicação e se possibilita a verdadeira assimilação que permite a todos participar, um dos pilares do ensino democrático, permissivo e inclusivo. Tome a noção de estrutura, por exemplo: encará-la de frente nos leva para uma razão muito simples aportada por todos. Da mesma forma, o exercício de fazer as roupas primeiro e depois explicar a sua estrutura permitiu uma abordagem muito intuitiva de sistemas estruturais, promotora de uma assimilação notadamente eficaz. Em outra instância, também relativa ao conhecimento, a moda nos faz refletir sobre a constituição de seu ensino, muito mais acessível do que a arquitetura. É notável que a moda consegue se fazer


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muito mais permissiva e próxima na sua relação com o usuário. É um campo sobre o qual todos exercitam um olhar, uma forma de apropriação, uma comunicação em sociedade, talvez por isso, o conhecimento que circunda o campo também se faz mais permitido ao longo da vida. O fato do seu "saber fazer" ser historicamente resguardado por mulheres é outra ponderação em si. Seja qual for o motivo dessa aderência e abrangência da moda, já apontada por Rudofsky na exposição do MoMA, a verdade é que ela constitui um fenômeno que no mínimo merece o reconhecimento e a atenção da arquitetura, que também enfrenta o desafio da legibilidade de seu discurso e da apropriação de sua obra.

O experimentar dessas liberdades constitui a potência desse trabalho. Fazem parte do processo de se reconhecer no outro. A exemplo do que a revisão histórica nos trouxe, por exemplo, podemos concluir que conhecer o outro é conhecer a nós mesmos, as questões que fogem à nossa vista estão evidentes no olhar contíguo. Assim, o trabalho visa construir pontes de compreensão e de associação, menos como ideias fixas e mais como bases para a relação. Esta tentativa está de acordo com a valorização da experiência como ferramenta de abertura ‘para aquilo que não somos” (Merleau-Ponty, 2005, p. 156), colocando-nos em contato com a alteridade e com o novo, o inédito, o único, que “exige de nós criação para dele termos experiência” (Merleau-Ponty, 2005, p. 187).’ (REIS, 2011)

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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FICHA TÉCNICA

PAPPALARDO, Miriam Andraus. Costurando geometrias. Ensaio experimental em busca de iguais diferentes. 2015. Dissertação (Mestrado em Design e Arquitetura) - Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2015. doi:10.11606/D.16.2016.tde-07032016-153112. Acesso em: 2018-07-02. POERSCHKE, Ute. Architecture as a Mathematical Function: Reflections on Gottfried Semper. Nexus, 14. Pennsylvania, 2012. QUINN, Bradley. The Fashion of Architecture. Oxford: Berg, 2003. RAMOS, Ana Maria Pereira. Cnpj, S. S. S. Modelagem Industrial Feminina, SENAI - SP - S/ CNPJ. REBELLO, Yopanan Conrado Pereira. A concepção estrutural e a arquitetura. Editora Zigurate. Sao Paulo, 2000. REIS, Alice Casanova. A experiência estética sob um olhar fenonológico. Arq. bras. psicol., Rio de Janeiro , v. 63, n. 1, p. 75-86, 2011. Diponível em <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttet&pid=S1809-52672011000100009&lng=pt&nrm=iso>. acessos em 11 set. 2017. SCHOR, Naomi. Reading in Detail: Aesthetics and the Feminine. Routledge, 2013. SCOTT, Felicity. ™Primitive Wisdom∫ and Modern Architecture. Journal of Architecture 3. 1998. SOUZA, S. C. de (1997). Introdução à tecnologia da modelagem industrial, SENAI/ CETIQT. SUMMERSON, John. A linguagem clássica da arquitetura. 5„ ed. São Paulo: Martins Fontes, 2009. WIGLEY, Mark. White Out: Fashioning the Modern. In Deborah Fausch et al., eds., Architecture: In Fashion, 148-268. New York: Princeton Architectural Press, 1994.


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ficha técnica do ensaio Fotografia Géssica Hage

Fimagem Tomás Ceschin

Modelos Louise Lenate Marianne Mitsui

Maquiagem Thaísa Miyahara

Produção Rachel Wagner Bárbara Camucce Gabriela Kimura Heloísa Ribeiro Sofia Tomic

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