A Estrela

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Após uma catástrofe ter transformado o Linde em um ambiente hostil e instável, todos os habitantes do mundo precisam aprender a viver em clãs isolados, dentro dos Limites Seguros. As rupturas fazem com que o mundo mude de forma repentinamente e os que não estão preparados podem perder-se para sempre. Durante uma violenta ruptura, Lan, uma garota que vive no clã de Sálvia, não resiste e acorda sozinha e sem mantimentos no meio do deserto. Logo a garota é resgatada, porém, por seu pior inimigo. Destemida e determinada a encontrar sua família, Lan percebe que a única forma de reencontrá-la e talvez encontrar uma cura para o Linde depende unicamente da aliança com um povo nada confiável.


Mesmo quando tudo estรก perdido, sempre sobra a esperanรงa.


O menino

C

omo uma fera que engole sua presa, aquela misteriosa névoa devorava o bairro lentamente. A noite havia chegado sem aviso, sem entardecer, sem lua, acompanhada por um véu negro que envolvia tudo na mais confusa escuridão. – Meu lho! Meu lho desapareceu! Por favor, ajudem-me a encontrá-lo antes que a Quietude surja – suplicava uma mulher, entre soluços, enquanto seus vizinhos abaixavam a cabeça e desapareciam entre a névoa, como fantasmas... – Covardes! Ele é meu lho! Vocês todos o conhecem! – apelou à compaixão de todos. A mulher foi à casa de sua melhor amiga enquanto enxugava as lágrimas​. – Naya, eu imploro! Não seja mais uma a me abandonar! – berrou, dando socos na porta. Partículas brilhantes começaram a utuar ao seu redor, desfazendo o medo da mulher, que rapidamente cobriu a boca e o nariz com o cachecol. – Ajude-me, por favor! – suplicou mais uma vez. Por m, a porta se abriu. Naya segurava uma lanterna e também protegia boca e nariz com um pedaço de pano úmido. – Entre. – Não! – gritou a mãe, histérica. – Não posso abandonar o meu filho! – Venha, salve a si mesma, como os outros – insistiu Naya, sofrendo pela amiga. – Não vou perdê-lo, está me ouvindo? Não vou perdê-lo! Naya sentiu pena da amiga e abraçou-a com força. Logo, sem conseguir olhar em seus olhos, afirmou de forma sincera: – As Partículas já desapareceram. Infelizmente, não há nada que possa ser feito. Sinto muito, é perigoso demais.


A mulher recusou o abraço da amiga e começou a tremer. – Ele... é só um menino – disse, com o rosto banhado em lágrimas. – Estava brincando no Bosque dos Mil Lagos e não voltou a tempo. Ajude-me, Naya, por favor. Você e sua lha conhecem esse lugar melhor do que ninguém. Eu imploro, você precisa encontrá-lo! – pediu mais uma vez, retorcendo a barra da saia. Na casa, apareceu uma moça de cabelos pretos e olhos dourados que havia presenciado a cena e estava claramente aflita. – Papai não teria permitido que esse pobre menino se perdesse – interveio a jovem. – Lan, seu pai... Antes de sua mãe conseguir concluir a frase, Lan saiu em disparada pelas estreitas escadas que levavam ao andar de baixo, molhou um pano grande em uma bacia de água e o enrolou ao redor da boca. – Lan! Não posso permitir que você se perca também! – gritou Naya, nervosa. – Lan! Laaaan! A lha ignorou-a totalmente, pegou uma lanterna e pulou uma das janelas que davam para o bosque. Começou a correr à toda velocidade, saltando troncos, obstáculos perigosos e lagos de areia movediça. Conhecia o terreno como a palma da mão, mas a névoa complicava o resgate. Lan olhou para os dois lados procurando o menino com desespero. – Ivar! Ivaaaar! Continuou correndo pela mata, decidida a encontrar o pequeno antes que ele se perdesse para sempre. – Ivaaar! – gritou de novo, o mais alto que era capaz. No entanto, o bosque estava envolvido em um silêncio sepulcral. Quando a ruptura da Quietude se aproximava, todos os seres vivos buscavam abrigo. Logo viu algo metálico brilhar na mata. Lan se aproximou e reconheceu imediatamente as coisas de Ivar: o típico jarro de cristal que os meninos‐ utilizavam para prender insetos e um estranho amuleto. Lan não quis perder mais tempo: pegou o jarro e prendeu o amuleto de Ivar no cordão de couro de sua pulseira. Começou a correr de um lado para o outro, entrando em terrenos escarpados, checando as copas das árvores e passando pelas margens dos lagos para ter certeza de que o menino não havia se afogado. Diminuiu o passo, porque estava chegando ao limite do vilarejo e sabia que não podia atravessar aquela fronteira. Avançou devagar, evitando entrar em contato com as nuvens de Partículas, e acabou encontrando um rastro. A luz fraca da


lanterna não era su ciente, mas, ainda assim, conseguiu seguir algumas pegadas até elas desaparecerem de modo inexplicável, como se o menino tivesse virado fumaça ou o bosque o tivesse sugado. – Que estranho... – murmurou, preocupada. Lan analisou aquele ambiente com atenção e então percebeu que as plantas soltavam uma espécie de líquido viscoso. Pareciam estar sangrando. Em princípio, pensou que pudesse ser seiva que as plantas expelem, mas, depois de analisar por instantes, viu que aquela substância tinha uma consistência muito diferente. A menina conhecia muito bem a ora daquele bosque e nunca havia presenciado algo parecido. De repente, o chão tremeu com força e as árvores começaram a cair, uma atrás da outra. Lan tentou adivinhar onde a seguinte cairia, mas não conseguiu de jeito nenhum. Assim, correu para se proteger atrás de um muro de rochas. Estava com muito medo. Fechou os olhos para se tranquilizar e entender a situação, mas o estrondo dos troncos que batiam no chão e a terra se abrindo sob seus pés não permitiam que ela pensasse com clareza. “As plantas sangram, a Quietude se desfaz pela segunda vez na semana, Ivar desaparece sem deixar sinais...”, pensou. “Nada disso faz sentido.” Tudo continuava tremendo ao redor, cada vez com mais força. Se aquele terremoto não parasse logo, destruiria o vilarejo todo. A menina reuniu toda sua coragem para enfrentar o horror de um bosque em ruínas. Porém, quando abriu os olhos, a imagem era muito diferente da esperada: viu a silhueta de um menino na névoa. – Ivar! – exclamou, cheia de esperança. Apesar de, em princípio, ela acreditar que aquilo era um delírio provocado pelo medo, o menino respondeu com um gesto, con rmando que realmente estava ali. Lan cou em pé e avançou alguns passos com di culdade, desviandose dos pedaços de rochas que se soltavam e da nuvem de Partículas, que se tornava mais densa, vibrando como pedaços de cristal que ameaçavam asfixiá-la. Quando chegou onde o menino estava, ele desapareceu. – Ivar? Lan pensou que talvez estivesse enlouquecendo, e então segurou com força o pano que cobria seu rosto até os olhos, para não enxergar o ataque das Partículas. Em seguida, um vento começou a soprar, e ela percebeu que a ruptura da Quietude era iminente. Pela primeira vez, viu-se sozinha no meio de uma ruptura, sem a ajuda da mãe nem a segurança que o vilarejo proporcionava. Uma rajada de vento a


empurrou, como se fosse uma folha. O planeta mudaria de forma a qualquer momento. A menina concluiu que nunca encontraria Ivar e que provavelmente morreria. Uma árvore enorme estava a ponto de se partir ao meio. O chão balançava cada vez com mais força. As Partículas emitiam um zumbido parecido com o de uma colmeia de vespas. Acreditou que tudo estava perdido, até que escutou o pequeno Ivar gritando do outro lado do Limite Seguro. Então, sem pensar duas vezes, lutou contra o vento para alcançá-lo. Nesse instante, o menino descobriu que não estava sozinho. Um arrepio percorreu seu corpo todo. Ele chorava desconsolado, como se o estranho que o agarrara pela camisa o estivesse machucando. A menina levou um grande susto. Aquela gura parecia indiferente ao que ocorria, como se estivesse no controle. Seus olhos cintilavam entre a névoa, iguais aos de um felino caçando à noite. Sem dúvida, era perigoso. – Um sequestrador! – concluiu Lan, lembrando-se das diversas lendas sobre raptores de crianças que os pais contavam aos lhos para que estes não cruzassem o limite. A menina sabia que atravessar a fronteira era se arriscar a não conseguir voltar, a perder-se, como seu pai, e a ficar sozinha, como sua mãe. A escuridão voltava com intensidade. Tudo continuava desmoronando. Era preciso tomar uma decisão. Ela olhou para Ivar; o menino, ao vê-la, tentou correr até seu encontro, mas o sequestrador segurou a mão dele e o impediu de escapar. Lan não era capaz de abandoná-lo; ele tinha apenas cinco anos. Assim, fechou os olhos, ​r espirou fundo e... deu um salto, cruzando a fronteira proibida. Do outro lado, as formas começaram a car mais claras. A imagem do bosque diluiu-se como água e tinta. Lan perdeu o equilíbrio e caiu em cima do desconhecido, que rapidamente a empurrou com violência. Nesse breve instante, os dois entreolharam-se, e a menina descobriu que o sequestrador tinha o rosto de um rapaz não muito mais velho do que ela, com traços per lados e serenos; seu olhar era de tal forma indecifrável que podia ser expressão de tristeza ou de satisfação e, como parecia a ​distância, suas íris brilhavam num tom prata intenso. O vento soprava tão forte que estava prestes a derrubá-los. Lan sentiu um formigamento, como se uma corrente elétrica passasse onde o sequestrador a segurava. Seu corpo todo cou tenso e fortes cãibras zeram com que se retorcesse de dor. Tentou escapar, mas estava presa. Então, descobriu uma pequena tatuagem em forma de estrela no dorso da mão do adversário, logo no início do polegar. A menina tinha certeza de que já havia visto aquele símbolo


em algum lugar, mas não estava conseguindo pensar com clareza. Sua mente dava voltas, sentiu-se aturdida. Abriu a boca para tentar dizer alguma coisa, mas... Tudo mudou. A luz abriu espaço na escuridão, as Partículas pararam de brilhar e se apagaram, a névoa se desfez como uma simples nuvem de pó arrastada pelo vento. Lan observou que a paisagem havia se transformado rapidamente diante de seus olhos. Em um instante, presenciou dois amanheceres e o pôr do sol, uma noite escura e um belo dia de verão. A temperatura baixava e subia em questão de segundos. Observou um oceano que não demorou a desaparecer para dar espaço a uma ​enorme cordilheira. Logo, no horizonte, surgiram campos verdes e desertos áridos, lamaçais e enormes placas de gelo, um vulcão borbulhando como água fervendo. Neve. Noite. Dia. Tudo mudava com muita velocidade. Lan viu o mundo em que vivia se transformando mais uma vez, como se fosse um grande quebracabeça. De repente, tudo parou. A menina fechou os olhos, recuperou o controle e ficou apenas “escutando” o silêncio: a Quietude. Quando voltou a abrir os olhos, temeu ver-se no meio do nada, sem um mapa que pudesse ajudá-la a voltar para casa; descobriu então, surpresa, a entrada do vilarejo. Lan caiu exausta no chão; a seu lado, Ivar estava inconsciente. Ela segurou sua mão com força, temendo que ele voltasse a desaparecer, e então olhou para o bosque com receio. Não havia nada ali, apenas árvores caídas e a calmaria que sucede a tormenta. Mais uma cãibra sacudiu seu corpo, fazendo com que ela se lembrasse que os dois quase tinham se ​perdido. As pessoas saíram lentamente de suas casas, agradecendo aos deuses por terem permitido que sobrevivessem a mais uma terrível ruptura​. ​Rostos aliviados e murmúrios incrédulos. Logo de cara, a mãe de Ivar reconheceu o lho deitado ao lado de Lan e, quando o viu despertar, abriu um enorme sorriso. – Ivar! – gritou, emocionada. Lan não estava entendendo nada. Continuou imóvel feito estátua, acreditando que havia morrido e que aquilo era apenas uma representação do que desejaria que acontecesse; mas era real. Ela havia cruzado o limite e, no entanto, continuava ali. Viu o menino abraçando a mãe com força e concluiu que tinha valido a pena. Sentiu vontade de sorrir, mas inexplicavelmente continuava sentindo medo. Estava confusa. Todos se reuniram ao seu redor e começaram a comemorar, como se ela fosse


uma heroína. Lan havia se tornado a menina mais admirada do vilarejo, mas não conseguia esquecer aquele olhar cintilante e ​perturbador. Quem era aquele sequestrador?


A Ferida

L

an entrou na casa, aturdida. Ainda tentava assimilar o ocorrido: a violenta ruptura da Quietude, as plantas sangrando, o sequestrador de crianças. Tudo aquilo era demais. – Lan! Oh, minha lha... Você está bem? – Naya cou feliz ao ver a lha inteira. – Pensei que tivesse perdido você! – disse, preocupada. – Pensei que... – Eu estou bem, mamãe... – respondeu a menina, com ar ausente. – Não faça mais isso, está entendendo? Não volte a fugir no meio de uma ruptura! – Sim, mamãe – apressou-se em dizer. – Estou bem, entendeu? Fique tranquila. Tudo passou... Além disso, já me perdi alguma vez? – perguntou​, fingindo calma. – Não, querida, eu sei que não. Mas basta uma vez para se perder para sempre, compreende? – respondeu enquanto acariciava seus cabelos. Naya olhou de perto o rosto da filha e sentiu-se aliviada. Havia retornado a casa, agora estava a salvo. A menina parecia muito com ela, tinha olhos grandes da cor do sol, que contrastavam com seus cabelos pretos como a noite; além disso, também tinha algumas qualidades do pai, como a determinação e o sorriso sincero, e ​contagiante. – Tenho me sentido muito mal, minha lha. Você sabe como as rupturas são perigosas e como é fácil se perder para sempre. Seu pai era um excelente Corredor... E, ainda assim, se perdeu. Não quero que isso volte a acontecer – comentou, assustada. – Nunca mais. Está me ouvindo? Lan ainda não havia revelado à sua mãe nada a respeito de sua imprudência ao cruzar o Limite, e não queria deixá-la preocupada contando que havia se atracado com um desconhecido, além de não poder explicar como havia chegado à entrada do vilarejo. Naya estava alterada e tinha coisas demais para pensar, por isso a


menina apenas assentiu em silêncio. Assim, soltou o nó do pano que tinha no pescoço e subiu a escada que dava para o segundo andar. Aquela era a típica casa de um clã. No Linde, as pessoas viam-se obrigadas a viver em comunidades muito pequenas, já que as constantes transformações geomór cas do planeta di cultavam a construção de grandes cidades. O clã de Sálvia não era o maior, porém, era um dos mais estáveis. Suas edificações tinham sido projetadas de modo a suportar os cinco estados da ruptura: a Brisa, a Névoa, as Partículas, os Tremores e o Vento. Todas as casas do povoado eram presas ao solo e, às vezes, escoradas em paredes de rochas. Os perigos que os habitantes do Linde tinham de enfrentar não eram poucos, e, para sobreviver, viram-se obrigados a criar estruturas capazes de suportar as constantes ​convulsões que o ​planeta ​s ofria. Outro mecanismo de defesa eram os Limites Seguros de cada povoado, que só podiam ser cruzados por Corredores ou Errantes, grupos aos quais, obviamente, Lan não pertencia. Quem se aventurava para o lado de lá da fronteira se perdia para sempre, de forma irremediável. Por isso, cruzar o limite era equivalente a morrer. Assim era a vida no Linde e, ainda que Lan estivesse cansada de todas aquelas regras e precauções, não podia fazer nada para mudar isso. Eram sobreviventes, e o menor descuido poderia ser fatal. A menina entrou em sua casa e fechou a porta. Esgotada, apoiou-se na parede e deslizou até se sentar, abraçando os joelhos. As cãibras já tinham passado, mas a cabeça doía e o corpo estava machucado. Olhou para o braço que o sequestrador havia agarrado e então percebeu que ainda levava o amuleto de Ivar no pulso. Era um pequeno círculo de metal dentro do qual uma agulha girava de maneira errática, parando às vezes em um dos quatro símbolos pintados: N, S, L e O. Era um objeto bonito, mas inútil. Sem dúvida, não pertencia àquele lugar. Em Sálvia, tudo o que era fabricado tinha uma utilidade clara. Com a confusão das pessoas ao redor do menino, Lan havia se esquecido de devolvê-lo. Ficou com pena de Ivar; se ela própria ainda estava assustada, nem conseguia imaginar como o pequeno devia estar aterrorizado. Ao se lembrar do ocorrido, cou nervosa e sentiu náusea. Precisava car calma, mas antes veri cou se tudo permanecia no lugar. Depois dos tremores, a desordem era grande. Infelizmente, era a segunda vez que algo como aquilo ocorria naquela semana, e tudo o que havia sido quebrado já estava no lixo. Veri cou se as janelas da casa não tinham sido trincadas e foi até o escritório para abrir uma bonita caixa de madeira cuidadosamente talhada. Dentro dela,


todos os tipos de artigos de jardinagem: um jogo de rastelos e pá de mão, uma enxada, dois tipos de alicate, tesouras, um raspador e um canivete. Alguns brilhavam como se nunca tivessem sido utilizados, mas era evidente que seu estado impecável se devia ao cuidado meticuloso da dona. Lan não teve pressa para escolher as ferramentas adequadas, que logo acomodou em uma espécie de cinturão de trabalho. Reparou em seu vestido. Ao correr pelo bosque, a peça havia sofrido vários rasgos. Lavou o rosto e escolheu, então, uma camiseta sem manga, de gola alta, e uma calça prática, com muitos bolsos. A menina aproximou-se da parede e esticou uma corda que soltava uma escada. Instantes depois, chegou à estufa improvisada que havia construído em cima do telhado de casa. Vista por cima, não era difícil confundi-la com o verde das árvores que cobriam a grande maioria das casas, mas, de perto, via-se uma estrutura assimétrica de madeira, repleta de cúpulas de um material cor de âmbar, parecido com o cristal, destinadas a proteger algumas das espécies de plantas e árvores jovens que vinha reunindo desde pequena. A menina escolheu dois frascos de sua estante de amostras e os prendeu no cinturão. Sabia que Ivar gostava dos elys, bichinhos pequenos, muito difíceis de capturar. Eram os únicos animais conhecidos que realizavam fotossíntese, e as crianças do povoado utilizavam-nos em algumas de suas brincadeiras. Era preciso apenas deixar que os animaizinhos entrassem em contato com a pele para que uma reação alérgica inofensiva colorisse o rastro de verde e azul. Lan queria fazer o menino sorrir e tinha certeza de que o presente o ajudaria a superar os maus momentos vividos durante a ruptura. Logo, ela sentou em uma caixa de terra com brotos recém-crescidos para comprovar sua evolução e, pela primeira vez, esboçou algo parecido com um sorriso. Trabalhar com as plantas era algo que a tranquilizava, fazia com que se sentisse perto do pai, já que ele havia trazido, de uma de suas viagens como explorador, a querida caixa de ferramentas. – Fico feliz que esta nova ruptura não tenha afetado muito vocês. Tive medo de que os tremores pudessem ter... De repente, calou-se. – Não pode ser! Não, não, não... A menina aproximou-se rapidamente do tronco de um pequeno arbusto e examinou a casca de perto. – Você também está sangrando – murmurou, assustada.


A substância que saía era, de fato, o mesmo líquido viscoso encontrado no Bosque dos Mil Lagos. – Não compreendo... – disse a si mesma. – O que está acontecendo? A menina pegou as pinças do cinturão e arrancou com cuidado uma das folhas cobertas por aquela substância. Em seguida, ligou a lanterna para examinar a folha de perto e mordeu o lábio, preocupada. Aquilo não tinha a menor lógica. – Como podem duas espécies diferentes, que crescem em lugares diferentes, sofrer os mesmos sintomas? – pensou em voz alta. – Se fosse um tipo de praga, primeiro o bosque inteiro seria afetado, e somente depois a estufa, que estava mais protegida. Lan pegou uma lupa rudimentar de um dos bolsos do cinturão e ajeitou a lente para obter uma imagem aumentada da folha. – É... quase transparente. Branco e azul. Viscoso... como um muco! – começou a descrever, enquanto anotava as primeiras impressões em um caderno. Ficou pensativa e deixou a lanterna em uma das estantes, junto com algumas garrafas de cristal que serviam de vasos. – E se elas estiverem morrendo? – Lan assustou-se. As plantas eram, além de alguns animais, o único sustento do clã. Se uma doença desconhecida acabasse com elas, ninguém sobreviveria. – Não pode ser! A menina guardou a amostra em um pote e massageou as têmporas para aliviar a dor de cabeça persistente; ainda se sentia um pouco fraca. Saiu da estufa para tentar se acalmar, respirou fundo algumas vezes e observou o telhado coberto de musgo de sua casa. O que mais gostava era de car deitada naquele tapete verde, observando as estrelas. Os telhados de Sálvia eram tão habitáveis como o interior das casas, todos cobertos pela vegetação selvagem do lugar, com um denso musgo, que os cobriam por completo, capaz de competir com o melhor dos colchões. Aquele era seu cantinho especial, o único lugar do mundo que conseguia fazer com que se esquecesse de que, na realidade, vivia presa em um pequeno povoado do Linde. Dali de cima, Lan conseguia ver a luz das estrelas entre os galhos das árvores. Deixou-se hipnotizar pela lua e começou a pensar no ocorrido. Os olhos do sequestrador continuavam marcados em sua memória, aterrorizando-a e seduzindo-a com seu estranho brilho. A menina não conseguia compreender por que ele queria levar Ivar. Uma coisa estava clara: aquele ser não pertencia a seu clã. Em uma comunidade tão pequena como a sua, todos se conheciam, e era


óbvio que um menino com as características dele havia se destacado entre todos os outros. Era um desconhecido, provavelmente de outro povoado, ou até um rundarita. Lan nunca tinha visto um, mas as histórias dos Errantes os descreviam como seres exóticos de pele avermelhada, os únicos capazes de viver em uma cidade de verdade. Lan tentou relaxar, fechou os olhos e pensou em seu pai. Fírel era um dos melhores Corredores que já existira, e correra distâncias maiores do que qualquer outra pessoa. A menina tinha muito orgulho dele, porque, graças à sua valentia, Sálvia tinha tomado conhecimento da existência do resto dos clãs. Além disso, em diversas ocasiões, havia se encarregado de importar sementes e objetos de muita utilidade para enfrentar as constantes​ rupturas da Quietude. Infelizmente, apesar de seu pai ter excelente senso de direção e de cavalgar em um wimo mais rápido do que qualquer pessoa, um dia, ele se perdeu e ninguém soube mais nada a seu respeito. – Onde você está, papai? – murmurou ela, nostálgica. Então, escutou que alguém a chamava. – Lan! – Papai? – perguntou ela, confusa. – Laaaan! – gritaram de novo. Ela cou em pé para identi car a voz; era Nao, seu melhor amigo. Lan desceu até encontrar o menino, que gritava de outro telhado. – Lan! Você precisa vir! Os Errantes estão aqui! – Errantes? – ela ficou interessada e tentou ver. – Estão aqui! Venha, venha! – Um minuto! Já vou, já vooou! – respondeu a menina, claramente emocionada. Lan deu um pulo no telhado da casa ao lado e começou a correr muito. Seu amigo fez a mesma coisa do outro lado da rua. As pessoas logo começaram a reclamar; muitos vizinhos detestavam as brincadeiras daqueles meninos e alguns até cavam nas janelas para impedir o avanço deles, com vassouras e baldes de água fria. – Já falei para não correrem pelo meu telhado! – gritou uma mulher malhumorada e gorda. – Desculpe, senhora Orlaya. Os Errantes voltaram ao povoado! – Não pretendo desculpá-la, menininha – gritou de novo. – Espere aí. Os Errantes? – perguntou, mudando rapidamente de expressão. Nao deu uma gargalhada e fez a amiga rir também.


– Acho que é melhor a gente pegar um atalho. Não somos mais tão pequenos – recomendou ela, quando, finalmente, conseguiu parar de rir. – Tem razão. Vamos pelas Pontes Trançadas – respondeu ele, com olhar travesso. – Mas... Sobre isso nem vou falar. Que coisa de criança – respondeu, na brincadeira. – É perigoso. Não podemos... – ela parou de falar ao ver que seu amigo não estava ali para escutá-la. Nao subia com agilidade felina pela raiz de uma enorme gueira, enquanto Lan olhava para ele, surpresa. Estava em forma, e era mais alto e mais forte que ela. Seu amigo havia deixado de ser menino, ainda que seu cabelo acobreado e os olhos claros como a água dos lagos conservassem a expressão infantil. – Está beeem! Espere por mim! – gritou ela. Avançaram pelas enormes raízes, saltando de galho em galho e deslizando pelos troncos cobertos de musgo que interconectavam aquelas árvores enormes. Haviam decidido dar a volta no povoado utilizando os caminhos que os colhedores escolhiam para recolher frutas. Dali de cima, a paisagem era realmente linda: diante de seus olhos, estendia-se uma selva que parecia não ter m, repleta de vegetação sem limite, cascatas e barrancos íngremes. Não fosse pelas mudanças repentinas que o planeta sofria, aquele seria, sem dúvida, um dos melhores lugares para se viver. Nao estendeu a mão para ajudá-la a descer, e depois desceu também com um salto calculado, mostrando mais uma vez sua esplêndida forma física. Por m, chegaram à rua central do clã, onde as fogueiras marcavam o ponto de encontro com os visitantes. – Nossa! – surpreendeu-se o menino. – Nunca tinha visto tantas fogueiras juntas. – Isso quer dizer que todos vieram. – Todos? – Normalmente, só entram no povoado os Errantes mais velhos, os líderes. Como há muitas fogueiras, imagino que, desta vez, todos tenham vindo – explicou, satisfeita consigo mesma. – Então deve ser algo muito importante – especulou Nao. Sem deixar de caminhar, Lan olhou de canto de olho para o amigo. Desejava contar a ele o que havia acontecido. Con ava nele e sabia que ele acreditaria nela, mas também que ele a repreenderia por ter corrido tal risco; atravessar o limite estava proibido, era perigoso demais, até mesmo para o valente Nao. – Você está pensando em alguma coisa? – perguntou, ao vê-la ​pensativa.


– Não, é que... O que aconteceu com o menino, você vai ver... tenho que explicar uma coisa. Eu não o encontrei. – O que quer dizer? – o menino não entendeu. – Ah, já sei. Ele encontrou você. Deixe-me adivinhar: Ivar estava brincando e deu um sustão em você. Hahaha! – Não, não é isso. – Lan olhou ao redor com nervosismo, havia muitas pessoas ali. – Eu entrei no bosque, estava escuro, tudo tremia, quei com receio de que ele tivesse se afogado em um lago, e então ouvi um choro, do outro lado do Lim... – Naoooo! Laaaan! – alguém chamou ao longe. – Mona? – perguntou o menino enquanto abria caminho pela multidão. – Caminho, abram caminhooo! Lan não chegou a terminar o que ia dizer, mas pensou que seria melhor assim, porque aquele não era o momento apropriado de contar o ocorrido ao amigo. – Finalmente encontrei vocês – comemorou uma menina com o cabelo preso em um rabo de cavalo. – Guardei um bom lugar para nós. – Obrigada, Mona, não perderia isso por nada no mundo – ​r espondeu Lan. Em um clã tão pequeno, os jovens eram poucos. Era difícil reunir um grupo de amigos mais ou menos da mesma idade, com os mesmos gostos e interesses, mas Lan, Mona e Nao sempre se deram muito bem. Mona era a mais jovem. Apesar de ter quatro anos a menos que Lan, era uma menina responsável, educada, muito carinhosa, e sempre se oferecia para ajudar os outros sem qualquer interesse próprio; por esse motivo, era uma das meninas mais queridas da comunidade. Nao, por sua vez, era pastor de wimos, apesar de sempre ter desejado ser um Corredor, como Fírel. Ajudava o pai com os negócios e tinha orgulho dele, mas acreditava que um dia teria uma oportunidade. Os wimos eram uma espécie de galgos do tamanho de um cavalo: tinham a silhueta esbelta e forte. Eram robustos para transportar todos os tipos de coisas nas costas sem diminuir a velocidade, o que os transformava em animais perfeitos para os Corredores – exploradores treinados para abandonar o povoado em busca de clãs próximos com os quais pudessem trocar todo tipo de informações úteis. Como era comum aos pastores, Nao nunca se separava de seu apito. Lan sempre achara fascinante o efeito que aquele pequeno objeto tinha sobre esses animais. Para um pastor de wimos, era o objeto mais valioso; não podia permitir que nenhum de seus animais se perdesse, por isso não podia se descuidar do apito. Graças àquele som, era capaz de reunir o rebanho e fazer com que os animais o obedecessem. Além disso, o apito costumava passar de pais para lhos, pois era uma espécie de


legado familiar valioso. – Já estão aqui! – comemorou Mona. – Não me lembro da última vez em que passaram por nosso clã – pensou Nao em voz alta. – Claro que não. Isso já faz mais de três anos, e você estava em casa, de cama por causa de um merecido resfriado. Foi no ano em que você decidiu brincar em um dos lagos enquanto nevava. Hahaha! – Que memória você tem! – surpreendeu-se o menino. – Eu me lembro de todas as visitas dos Errantes, porque sempre tive esperança de que eles me trouxessem notícias de meu pai. Nao e Mona entreolharam-se e permaneceram calados. Sabiam como Lan se importava com o pai, mas também sabiam que as chances de receberem notícias dele tinham acabado. Muito tempo já havia passado. Lan desfez o silêncio incômodo apontando para o primeiro dos Errantes​. – Olha! Ali está o Mestre Nicar – disse, encantada. Um senhor de rosto no avançou de modo solene entre as pessoas. O líder dos Errantes era calvo e tinha olhos azuis sérios, que impunham respeito. Um grupo de homens e mulheres de idades variadas o seguia. Lan, como as outras pessoas, olhava para eles com muita admiração. Os Errantes eram os únicos seres vivos capazes de caminhar sobre o Linde sem se perder. Ninguém sabia qual era o segredo deles; no entanto, como esse grupo reduzido de nômades viajava de um lado ao outro do mundo, evitando as constantes rupturas da Quietude, as pessoas acreditavam que eles tinham muitos poderes mágicos. Mesmo sendo seres humanos, como as outras pessoas que povoavam o Linde, alguns acreditavam terem sido escolhidos pelos deuses; outros achavam que eram capazes de se comunicar com o planeta; e outros pensavam que, se deixavam levar, sem se importar com o próximo destino. De qualquer modo, todo mundo admirava os Errantes. Eram sábios, contavam histórias magní cas e, às vezes, eles levavam utensílios, ferramentas, sementes e notícias de outros povoados. Não comercializavam conhecimento nem o que transportavam, as únicas coisas que pediam era ​comida e um lugar para se hospedar. – Nossa! – exclamou Mona. – Nunca havia visto tantos Errantes juntos. Lan viu aquilo como se fosse um sinal; continuou analisando as roupas e até a maneira como caminhavam. Em seguida, abriu um sorriso, provavelmente provocado pela esperança de receber notícias de seu pai, até que, de repente, sua felicidade desapareceu. Aquilo não fazia o menor sentido. Era impossível. Um dos Errantes tinha,


tatuado no dorso da mão, exatamente o mesmo desenho do ​s equestrador. O coração de Lan bateu apressado. Rapidamente, a menina procurou ter certeza de que aquele homem era o mesmo que vira no bosque, depois procurou o símbolo no resto dos Errantes. – Não... Não, não, não... – murmurou, negando com a cabeça. – Mas o que foi? – perguntou o amigo, confuso. Todos tinham a marca. – Não pode ser! Não pode ser... Não pode ser – repetiu mais uma vez. – Lan, você está bem? – preocupou-se Mona. – Deixe ela, deve ser algo mais raro do que um wimo de três cabeças. Hahaha! – riu Nao quando Lan saiu correndo. Lan abriu caminho entre as pessoas para se colocar perto das fogueiras e comprovou que Nicar, o líder, também tinha a tal estrela tatuada na mão. – Não entendo. É totalmente impossível – disse ela. – Os Errantes nos protegem, eles nunca fariam algo assim – tentou convencer a si mesma. Quando os visitantes pararam diante das gueiras, as crianças se colocaram na primeira la para não perder nenhum detalhe; o resto dos moradores do povoado cou em pé. Muito tempo desde o último encontro havia passado, e as pessoas do povoado estavam emocionadas. Nicar deu um passo à frente e mostrou a palma da mão para pedir a atenção dos presentes. – Amigos do clã de Sálvia – começou, em tom solene –, como sempre, agradecemos pela hospitalidade e pedimos que escutem com atenção, pois hoje viemos para falar de algo extremamente importante. Infelizmente, desta vez, não trazemos bons presságios, tampouco notícias de povoados vizinhos nem outro tipo de informação. Não se trata de uma visita de cortesia. As pessoas começaram a cochichar, nervosas. Lan decidiu escutar o que o velho tinha a dizer antes de chegar a alguma conclusão. Aquele Errante ia anunciar algo importante, algo que certamente explicaria tudo. – Como sabem, viajamos pelo Linde e conhecemos o estado de todos os clãs e das cidades deste planeta em mutação – explicou. – Todos sabemos que a estabilidade é um privilégio ao alcance de poucos e que, infelizmente, o planeta muda de modo cada vez mais rápido. Já comprovamos que ele não permanece calmo por muito tempo. Por duas vezes, vocês sofreram violentas rupturas da Quietude em apenas sete dias. A multidão permaneceu em silêncio. Normalmente, os Errantes traziam boas notícias, histórias curiosas e todo o tipo de mercadorias exóticas; não estavam


acostumados a escutar mensagens catastró cas daquele grupo de nômades a quem respeitavam e até veneravam pela sabedoria e conhecimento que tinham acerca do planeta. – Não queremos assustá-los. Devemos manter a calma e continuar sobrevivendo, como sempre zemos, mas é nosso dever informar a vocês que a Ferida está se tornando cada vez maior e que por isso o Linde, nosso querido e grande Linde, muda tantas vezes. A Ferida era a zona mais temida do planeta. Quando alguém se perdia, aquele era o último lugar a que se queria chegar. Era considerado um local obscuro, povoado por todo tipo de monstros e podridão, o lugar onde a Quietude se rompeu pela primeira vez. O epicentro de todos os problemas. Lan engoliu em seco e tentou relacionar as palavras de Nicar com o sequestrador, sem chegar a qualquer conclusão. Aquilo continuava não fazendo sentido. Para que um Errante desejaria sequestrar uma criança? Eram seus protetores, seus mestres, todo mundo con ava neles. Por outro lado, o fato de a Ferida estar piorando só podia signi car uma coisa: que, cedo ou tarde, todos se perderiam. – E o que podemos fazer, Mestre Nicar? – perguntou um dos homens do clã. O velho passou a mão na barba com preocupação, tentou escolher as palavras certas e então respondeu: – Sei que nos acostumamos a dar todas as respostas e agradecemos por nossos conselhos sempre terem sido bem considerados, mas, infelizmente, neste momento, nem mesmo nós sabemos o que ocorrerá. Só podemos pedir força e valentia – concluiu. – Então, não podemos fazer nada além de esperar o inevitável? – É claro que o mais certo nesta situação é reforçar as casas, encontrar meios cada vez mais e cientes para lutar contra as Partículas e, acima de tudo, não atravessar os Limites Seguros, exceto para o ​estritamente ​necessário. As pessoas caram desanimadas. Aquelas que haviam comemorado a chegada dos Errantes com risos e cantos, agora permaneciam com o olhar perdido no infinito, tentando assimilar aquelas palavras. – A Ferida... – murmurou Lan. – Não é muito divertido quando dizem que o planeta está morrendo, não é? – disse Nao de modo irônico, mas com o mesmo rosto triste dos outros. – Nunca foi divertido – respondeu a menina, dando um tapinha no ombro do amigo.


O sequestrador

S

empre que os Errantes visitavam o clã, eram feitos todos os tipos de festejos em sua homenagem, mas, naquela noite, ninguém queria cantar ao redor das fogueiras. As pessoas sentiam medo. As notícias que aquele grupo de nômades havia dado eram desanimadoras. Se a Ferida estava piorando, as rupturas aconteceriam com mais frequência, e chegaria um dia em que todos se perderiam. Lan continuava pensando no ocorrido. Mais uma vez, tentava entender como era possível que o sequestrador de Ivar fosse um Errante. Continuava sendo inconcebível que ele tivesse feito com que ela atravessasse o Limite Seguro em plena ruptura. Depois de pensar muito, nalmente chegou à conclusão mais lógica: talvez tudo tivesse sido um engano e aquele homem na névoa havia se passado por um deles. Era um maluco, um farsante, e por isso não estava entre os presentes. A menina observou os rostos preocupados de seus vizinhos e tomou a decisão de manter o ocorrido em segredo. Não achou conveniente colocar mais lenha na fogueira; afinal, o menino estava vivo. Depois de se despedir dos amigos, Lan pensou em voltar para casa com a mãe, mas então viu o pequeno Ivar na multidão, olhando para a palma da mão. Nesse instante, a menina lembrou-se que o sequestrador havia segurado o menino pela mão... e então encaixou as peças. Não havia espaço para dúvidas: era um Errante. Ninguém em pleno juízo tocaria um Errante. Era totalmente proibido. Na verdade, aquela era a única regra. Ninguém sabia como nem o motivo, mas entrar em contato com eles provocava a morte. Não era uma questão de respeito, nem uma tradição; era um mistério do qual aquele grupo de nômades


reclamava constantemente. No entanto, ali estava Lan. Além de ter voltado ao clã após ter cruzado o Limite Seguro durante uma ruptura, descobriu também que havia sobrevivido ao contato com um Errante. A menina lembrou do choque elétrico sentido quando o sequestrador a segurou. A dor tinha sido insuportável, como se centenas de agulhas pungentes se ncassem em seus músculos, e, se tivesse durado uns segundos mais, ela teria perdido a consciência. Esse era outro mistério a ser resolvido, mas naquele momento parecia ter menos importância do que o fato de ela estar viva. Agora, estava inquieta por ter certeza de que aquela sombra assustadora na névoa não tinha sido a de um farsante. Sua teoria desfez-se ao compreender que, ainda que a estrela tatuada em sua mão fosse falsa, a dor que produziu ao entrar em contato com sua pele era prova irrefutável de que se tratava​ de um Errante. A menina continuou observando o garoto até este olhar para o grupo de nômades. Lan procurou o sequestrador sem sucesso; e, então, de repente, reconheceu a silhueta dele junto à do Mestre Nicar. – É ele! – exclamou. O menino se segurou com força à saia da mãe. Em seguida, Lan tentou abrir caminho entre as pessoas para ter certeza de que não estava louca. – Não pode ser! – continuava sem acreditar no que via. – Está aqui... – disse em voz baixa. Primeiro, sentiu pânico, depois, controlou-se, mas sentiu o sangue ferver. Ninguém parecia suspeitar dele; até mesmo Mestre Nicar estava ao seu lado, conversando tranquilamente. Não se tratava apenas de um desprezível‐ sequestrador de crianças, também havia burlado uma das regras mais importantes dos Errantes. As pessoas perceberam a raiva de Lan sem saber para onde ela ia, nem quais eram suas intenções. Quando a menina estava a poucos metros do rapaz, ela o acusou com toda a fúria de que foi capaz. – Ele levou o Ivar! – gritou, apontando para o rapaz. – Eu o vi levando o menino para o outro lado do Limite! Rapidamente, alguns dos vizinhos tentaram segurá-la, enquanto os Errantes protegiam o rapaz. – É um sequestrador! Um dos homens mais fortes de Sálvia conseguiu segurá-la uns passos antes de ela se aproximar. – É um traidor. Um traidor que não merece pertencer ao seu povo! – gritou,


fora de controle. Seus vizinhos começaram a gargalhar. – Hahaha! De onde tirou isso, Lan? – Ele é um Errante – respondeu um senhor, indignado. A menina continuou vociferando, completamente descontrolada pela situação. – Que bicho a mordeu? – perguntou a senhora Orlaya. – Ela perdeu a cabeça – comentou uma outra menina. – Será coisa das Partículas? Lan virou-se para o homem que a havia prendido e, dando-se por vencida, disse: – Você me tocou! O jovem acusado permaneceu imóvel, olhando com fúria para Lan. A menina tomou consciência do perigo e deu alguns passos para trás. A multidão ficou em silêncio, desconcertada, e logo o escândalo se fez. – Isso é impossível – eles a recriminaram. – Você teria morrido! – Está maluca. Doida de pedra. O Mestre Nicar escutou com atenção e analisou a situação com cuidado. Em seguida, ergueu a mão para tranquilizar a multidão e disse: – Estamos todos nervosos. Lan gemeu de novo, remexendo-se. Começou a procurar por Ivar no meio das pessoas para que ele comprovasse o que dizia, mas sua mãe já o havia levado dali. – É a verdade! – insistiu. Logo, o sequestrador abriu caminho entre os companheiros que o protegiam e olhou para ela com muita atenção, como se aquela fosse a primeira vez em que a via. Lan deu-se conta de que o brilho prateado que saía de seus olhos no primeiro encontro havia desaparecido totalmente, apesar de o olhar continuar inquietante. A menina teve esperança de que o traidor confessaria tudo, mas o Errante limitou-se a dizer: – Nunca a vi na minha vida. Lan cou desanimada e então tentou, sem sucesso, encontrar alguma lógica no que estava ocorrendo. De joelhos no chão, observou, impotente, o Errante dar meia-volta e sair marchando. A menina olhou para as roupas gastas em tons de laranja e azul, para as botas, que pareciam mais velhas do que a terra que pisavam, e para o cabelo despenteado, totalmente preto, como era comum nos


Errantes. Não havia nada nele que zesse com que parecesse um traidor. O sequestrador havia se defendido e ainda a acusado de mentirosa. – E pensar que nós a considerávamos uma heroína – lamentou uma das mulheres. – Isso subiu à sua cabeça! – Está louca – concluiu um senhor. – Foram as Partículas. – Coitada. – Sua mãe tem passado muito mal. A comitiva de Errantes entrou lentamente em uma das tendas montadas perto das fogueiras e depois o homem forte a liberou. – Não faça besteira, está ouvindo? – advertiu ele. Lan bufou, revirando os olhos, e logo deu as costas a ele sem nada dizer. Tentou acalmar-se, mas não conseguiu. Coisas demais tinham ocorrido. Observou o rosto preocupado de Nao e de Mona, que haviam voltado à praça para ver a confusão. Viu também sua mãe, a ita entre as pessoas que voltavam a seus lugares, e se sentiu culpada por todo o ocorrido. Naya olhava para ela com decepção, e balançava a cabeça. Para Lan, aquele gesto foi pior do que qualquer bronca que pudesse ter levado. Ela só tinha a mãe, a quem amava mais do que tudo. Não tinha intenção de lhe causar problemas; sempre quisera que a mãe sentisse orgulho dela, mas, naquele momento, pensou que a havia decepcionado. A menina abaixou a cabeça, sentindo-se derrotada, apoiou-se em um dos troncos que serviam de assento e suspirou; ao seu redor já não havia quase ninguém, todos voltavam à segurança de suas casas para pensar naquelas notícias ruins dadas pelos Errantes. As últimas chamas de uma fogueira projetavam estranhas sombras nas árvores, enquanto desaparecia o som das pessoas conversando. Lan lamentou por todos terem acreditado que ela era uma mentirosa. Sim, era verdade que a “loucura do Horizonte” havia tomado conta de muitas mentes sadias, mas ela tinha certeza de que aquele não era o seu problema. Muitos anos antes, os habitantes do clã de Sálvia haviam descoberto que as Partículas que o solo soltava durante as rupturas eram letais. Algumas pessoas que caram expostas a elas sem proteção desenvolveram uma espécie de loucura que fazia com que perdessem o senso de direção e que cassem olhando para o nada. Às vezes, essas mentes envenenadas conseguiam cruzar os Limites Seguros dos povoados e perdiam-se para sempre, outras morriam depois de poucos dias ou ficavam cada vez mais loucas. Lan escutou alguém se aproximando e se virou rapidamente.


– Nao? Há quanto tempo está aqui? Eu não havia percebido. – Sinto muito, não tive a intenção de assustá-la – desculpou-se o menino, oferecendo a mão para ajudá-la a se levantar. – Você também acha que estou louca? – perguntou Lan, com o olhar perdido. – Claro que sim, sempre pensei isso – respondeu o amigo com um meio sorriso. – Estou falando sério – retrucou a menina, um pouco mais animada. – Se você diz que viu aquele Errante do outro lado do Limite, com Ivar, eu acredito. Tem de haver alguma explicação. – Sim, mas ainda não a encontrei. Não estou entendendo nada. Por que ele estava prendendo o menino? Por que me segurou daquela maneira? Não permitiu que eu corresse para um lugar seguro onde pudesse me salvar. Não... não faz sentido. Nenhum sentido! Um Errante nunca faria algo assim – disse, com os olhos marejados. O jovem permaneceu em silêncio e segurou a mão da amiga. Ainda havia ali alguns moradores apagando as fogueiras, e Lan permitiu que Nao a levasse para outro lugar. Durante o dia, no Colunado, era comum escutar uma algazarra de crianças brincando de esconde-esconde; de noite, aquele bosque se transformava em um dos locais mais tranquilos de toda a Sálvia. Era repleto de raízes aéreas que pendiam para se introduzir delicadamente na terra, transformando o lugar em um tipo de labirinto do qual uma pessoa não conseguia sair se não o conhecesse a fundo. Por sorte, tanto Lan como Nao haviam passado a infância correndo por aqueles campos. Para eles, aquele bosque tinha um encanto muito especial; fazia com que se lembrassem de todos os momentos que tinham passado ali, de todas as ​brincadeiras e aventuras. A menina apoiou-se em uma das raízes, e o amigo fez a mesma coisa do lado oposto. Pequenos pirilampos brilhavam ao seu redor, criando um ambiente relaxante. – Há algo que você não me contou, não é? – perguntou Nao, cruzando os braços. O menino conhecia Lan o su ciente para saber que ela escondia algo importante. As acusações que tinha feito eram muito graves, por isso devia haver um bom motivo. – Quando a ruptura acontece... – Lan começou a dizer. Nao não suportava ver a tristeza naqueles enormes olhos dourados, mas sabia que precisava se manter firme.


– Eu... cruzei o Limite... – confessou, por m, enxugando as lágrimas que corriam por seu rosto. – Você cruzou o Limite? – repetiu ele, sem acreditar no que estava ​escutando. – Pelo Grande Linde, Lan! – exclamou, assustado. Nao observou o rosto entristecido da amiga e esforçou-se para compreendê-la. – Você disse que aquele Errante estava segurando Ivar do outro lado. Foi por isso que você atravessou, não foi? – Senti medo, achei que ele fosse levá-lo. Tudo estava caindo, foi horrível – disse, entre soluços. – Pensei que fôssemos morrer, que nos perderíamos para sempre! Nao se aproximou e abraçou a amiga com força. – Fique calma – ele quis tranquilizá-la. – Não entendo. Por que aquele Errante mentiu? Por que disse que nunca me viu? – a menina tentava entender, molhando a camiseta do amigo com lágrimas. – Encontraremos uma explicação, eu prometo – disse Nao, secando o rosto com o pano que estava amarrado no pescoço. – Se for necessário, eu mesmo me encarregarei disso. Logo, os adornos metálicos que brilhavam em seus cabelos tilintaram sob o vento suave. – Oh, não! – disseram em uníssono, olhando com os olhos bem ​abertos. Instantes depois, apareceu a névoa, como um animal rastejante, querendo devorar a tudo. – Não pode ser – continuou negando a menina. Assustados, deram uns passos para trás e, quando perceberam que a Quietude estava prestes a se romper de novo, esforçaram-se para sair do Colunado. Percorreram o labirinto de raízes, tentando evitar a névoa, que cava cada vez mais espessa, e, por fim, chegaram ao povoado. Então Lan se lembrou do gesto de decepção da mãe e, sem esperar a reação de Nao, começou a correr rua abaixo para salvá-la. A menina só conseguia distinguir as silhuetas que se moviam entre as pessoas. Alguém deu sinal de alerta. O caos começou, e as pessoas se agitaram. – Mamãããeee! – chamou Lan, assustada. Não obteve resposta. As Partículas apareceram soltas como vespas brilhantes. Lan protegeu o nariz e a boca e então voltou a gritar desesperadamente. – Mamãããeee! A menina continuou correndo entre a névoa até que, por fim, ​escutou a mãe. – Lan!


Ela sorriu, ainda havia esperança. – Mamãe! Onde você está? – Aqui, minha filha! Procurou encontrar de onde vinha a voz e dirigiu-se até ela com ​r apidez. – Mamãããeee! – Laaaan! Sentia que cada vez mais se aproximava da mãe. Em poucos instantes, elas se abraçariam e se esconderiam juntas em qualquer lugar. – Mamããããeee! – Laaaan! O planeta inteiro começou a tremer, como se estivesse se partindo em dois. Não podia ser, a ruptura estava ocorrendo muito depressa. Lan correu o mais rápido possível, mas uma das construções ruiu a poucos metros dela, dificultando a passagem. – O que está acontecendo? As casas estão ruindo... – disse ela, tomada pelo pânico. Os tremores nunca haviam afetado o povoado daquela forma. – Onde você está, mamãe? – pensou em voz alta, olhando para os dois lados. – Mamããããeeee! – gritou de novo. Não obteve resposta. – Lan! – escutou alguém gritar seu nome. – Nao? Estou aqui! Consegue me ver? – Lan! Não se mexa! Chamarei um de meus wimos e daremos a volta pelos escombros pela outra rua! – Vá depressa, algo de ruim está acontecendo... E está acontecendo muito depressa! – gritou com todas as forças. Lan escutou a voz do amigo fundindo-se com o rugido de um vento forte. Ela sentia-se cada vez mais nervosa. Nunca havia passado por uma ruptura tão intensa. – Mamããããeee! Pela primeira vez, a ruptura não respeitava os Limites Seguros do povoado. Das construções desmoronando, caíam fragmentos de pedra, e Lan não conseguia fazer nada além de se esquivar. Por m, foi soterrada por uma montanha de destroços, os braços estavam arranhados e os joelhos sangravam. – Mamãããeee! – gritou, desconsolada, como uma menina pequena que pede a atenção imediata de seus pais. E então, silêncio.


Escuridão. Medo. – Mamãe? – murmurou em voz baixa. A névoa a cobriu com todo o seu manto de escuridão. As Partículas desapareceram no ar, como estrelas que haviam decidido voltar ao ​firmamento. E um grande vazio tomou conta do Linde.


Perdida

Q

uando tudo passou, Lan abriu os olhos com a esperança de ainda estar no povoado, mas, diante dela, só havia um deserto in nito repleto de dunas altas e areia fina como pó. A menina afastou algumas das pedras que a haviam coberto e tirou os galhos que estavam enroscados em seus cabelos. Sentiu uma forte dor de cabeça; estava ferida e tinha um corte bem feio na perna, mas que não parecia grave. Semicerrou os olhos e, quando as pupilas se acostumaram à intensidade da luz, conseguiu distinguir com total claridade a enorme planície que se estendia a seus pés. O horizonte diluía-se entre a bruma e o céu, onde brilhava um sol escaldante. Calculou que poucos minutos tinham passado, mas, ali, já era dia. Assim, a menina concluiu que a ruptura havia se estendido a um local muito distante, provavelmente até a outra ponta do planeta. – Oh, não... – lamentou consigo mesma. O pior de seus pesadelos tinha se tornado realidade: ela estava perdida. Apesar de aturdida, retomou o controle para ter certeza de que não havia nenhum perigo por perto. Tudo estava revirado, de seu povoado só restava uma árvore caída e duas casas em ruínas, semienterradas na areia. A visão era totalmente desoladora. No Linde, existiam porções de terra mais fortes do que outras. Esses fragmentos estendiam-se pela superfície como peças de um quebra-cabeça. Por isso, os clãs procuravam terrenos su cientemente estáveis para construir um povoado, e, a cada ruptura, aprendiam a de nir o Limite Seguro: o lugar a partir de onde tudo mudava. Lan cou em pé com di culdade e bateu a poeira da roupa. Havia sofrido


golpes, mas continuava inteira. Apesar do ferimento no joelho, conseguia caminhar sem problemas. Aquela ruptura havia sido muito mais violenta do que as outras. Não havia respeitado os limites de seu clã, e provavelmente de nenhum outro. Portanto, se sua mãe e seus amigos continuassem vivos, poderiam ter ido parar em locais diferentes. Todos tinham se perdido, mas ela não pretendia se dar por vencida tão rapidamente. – Mamããããeee! – gritou com todas as suas forças, apesar de estar afônica. – Mamããããeee! Não obteve resposta. Deu alguns passos ainda desorientada, até chegar às ruinas sepultadas na areia. Talvez ali encontrasse uma pista. Escavou com a intenção de liberar a porta principal do que parecia uma casa semienterrada, mas foi totalmente impossível. Quando retirava um punhado de terra, esta voltava ao lugar de antes com rapidez. A areia daquele deserto era tão na que entrava nas menores ssuras. Era a primeira vez que estava em um local como aquele, nunca havia tocado uma terra tão suave e quente. Durante alguns instantes, Lan observou como a areia passava entre seus dedos, e então se lembrou de que ainda estava com as ferramentas de jardinagem presas em seu cinturão. Pegou rapidamente a pequena pá e começou a desenterrar o que restava da construção. Depois de um tempo, quando começou a sentir os braços cansados, compreendeu que, mesmo se conseguisse entrar na construção, ali dentro só encontraria cadáveres. Assim, decidiu deixar as coisas como estavam e procurar seus amigos. – Naaaaaaoo! – gritou. Mais uma vez, o silêncio. – Moooona! Continuou gritando à procura de auxílio, chamando a mãe, os amigos, quem pudesse ouvi-la, até car rouca. Exausta, deitou-se na areia. Estava totalmente sozinha. Não sabia se a mãe ainda estava viva, se os amigos estavam perdidos, como ela, ou se haviam tido a sorte de se perder com mais pessoas. Parecia que já fazia muito tempo desde que seu amigo a havia abraçado, ainda que, na verdade, não tivessem se passado mais do que algumas horas. Lamentou não ter tido tempo de agradecer por acreditar nela. Nao sempre cava do lado dela. Até mesmo para uma menina do Linde, era difícil aceitar que a natureza podia acabar com tudo em um instante. – Onde quer que estejam... vou encontrá-los – pensou alto, com os olhos marejados.


A menina levou a mão à testa para fazer sombra aos olhos e tentou enxergar o mais distante possível. Não havia sinal de nada, exceto da aridez absoluta. Provavelmente, havia ido parar no pior lugar do mundo depois da Ferida. Não fazia ideia do que deveria fazer para sobreviver naquelas condições tão extremas, mas, ainda assim, decidiu tentar. Tinha que voltar para casa, a qualquer custo. Ficou em pé de novo para tentar adivinhar onde cava o norte em relação ao sol, a direção em que se espalhavam as dunas e outros elementos da paisagem. No entanto, não sabia o su ciente, por isso decidiu caminhar sem rumo certo, confiando que mais cedo ou mais tarde encontraria alguma direção. Sentia fome, sede e calor, muito calor. Lan pensou em seu pai, que provavelmente já tinha passado pela mesma coisa que ela. Fírel era um Corredor experiente e conseguia sair das situações mais perigosas com facilidade, mas, ainda assim, perdeu-se para sempre. Como ela podia querer encontrar seu lar se nem mesmo os exploradores mais experientes conseguiam? Sabia que era praticamente impossível, mas não podia fazer outra coisa. Se permanecesse parada, morreria de qualquer modo. Caminhou por horas, passando pelas dunas mais altas e analisando o horizonte em busca de sombra; no entanto, a paisagem parecia se repetir de vez em quando. Começou a sentir a boca seca e as pernas fracas e percebeu que precisava descansar. Lan deitou-se no chão; a areia ardia como fogo. Tinha certeza de que, se nada mudasse, não demoraria a perder a consciência. Mas algo fez com que recuperasse a esperança. No topo de uma duna, pensou ter reconhecido a silhueta de um grupo de plantas mexendo-se ao sabor do vento. A menina reuniu as forças que lhe restavam e convenceu a si mesma de que aquelas plantas faziam parte de um oásis. Estava desidratada, era sua última oportunidade. Temeu que fosse apenas uma miragem, mas chegou ao topo e descobriu que aquela espécie de arbusto era muito real, ainda que totalmente desconhecida por ela. Graças à estufa de seu pai, sabia, melhor do que ninguém, que se alimentar de uma planta com propriedades desconhecidas podia ser muito perigoso. Algumas podiam ter efeitos sedantes, outras podiam provocar alucinações, muitas podiam até ser letais. Mas que outra opção lhe ​r estava? Lan aproximou-se do arbusto e analisou as folhas com atenção. Eram suaves como plumas, tinham cores intensas que iam do verde ao vermelho, e dentro


delas não havia nenhum tipo de seiva. – É a planta mais rara – disse a si mesma. – Nunca vi nada parecido. A menina cortou uma das folhas e a levou à boca. Seu pai havia explicado que, quando se tratava de sobreviver, existia um método para descartar a maioria das plantas venenosas. Bastava encostar um pedacinho da folha na ponta da língua. Se depois de alguns minutos a língua não adormecesse, nem causasse ardor, nem qualquer outro tipo de efeito adverso, o mais provável é que a planta fosse comestível e não causaria problemas se fosse ingerida. Lan sentiu o gosto da folha, tentando extrair todo o líquido que ali pudesse haver, mas a planta estava realmente seca. – Não há como comer isto sem engasgar – pensou em voz alta. – Essas folhas só serviriam de decoração para o cabelo – disse, cuspindo o pedacinho que havia levado à boca. Observou o arbusto com atenção, então se lembrou de que muitas das plantas que cresciam em ambientes hostis adaptavam seu aspecto ao redor e às vezes protegiam a parte mais rasteira da vegetação. Assim, sem hesitar, cavou com uma de suas ferramentas na areia e arrancou um punhado de raízes. – Mas que diabo é isto? – perguntou, desconcertada. As pontas daqueles filamentos alojavam uma espécie de cristais com bolhas em seu interior. Lan comprovou a rmeza com os dedos e descobriu que, na verdade, eram macios e que podiam ser rompidos facilmente para que liberassem o líquido que guardavam. Rapidamente levou um daqueles cristais à boca e brincou com ele na língua. Tinha um sabor muito agradável, parecido ao da cana-de-açúcar que crescia à beira dos lagos de Sálvia, mas muito mais refrescante, com um toque cítrico. Quando se assegurou que o fruto daquela planta podia ser consumido, encheu a boca de cristais e mastigou-os intensamente. Sentia tanta sede que poderia comer todas as folhas; mas, como não sabia quando voltaria a encontrar uma daquelas plantas, decidiu pegar o resto e guardar no bolso. Depois de recuperar as forças, analisou a situação atentamente e decidiu descansar as pernas um minuto. Caminhava sem saber para onde, nem como sair dali, mas não pretendia desistir. Se racionasse os frutos e tivesse sorte de encontrar mais plantas, talvez pudesse continuar seguindo na mesma direção durante vários dias até encontrar um clã. Caminhou por muitas horas até o sol desaparecer no horizonte e a escuridão envolvê-la. Sem luz, era inútil continuar avançando, uma vez que corria o risco de andar em círculos; assim, deitou-se e procurou dormir um pouco. Não seria nada fácil tirar da mente todo o ocorrido daquele dia, mas, se quisesse continuar viva, era


preciso descansar. Na manhã seguinte, Lan despertou sentindo um leve tremor. As dunas pareciam recortadas pelo céu violeta. A brisa do amanhecer acordou a menina e renovou suas forças para que ela enfrentasse uma nova jornada. Devia aproveitar ao máximo aquelas primeiras horas do dia para avançar, antes que o sol chegasse ao ápice. Estendeu com muito cuidado a perna ferida, e então os restos de sangue ressecado esticaram a pele de seu joelho, causando tanta dor que ela não conseguiu conter um palavrão. Não tinha nada com que pudesse desinfetar a ferida, por isso voltou a abaixar a perna da calça e resignou-se a suportar a dor. Antes de car em pé, colocou na boca alguns dos cristais que guardava nos bolsos e tirou a areia das botas. Lan suspirou, lembrando que em Sálvia, à mesma hora de um dia qualquer, ainda estaria dormindo até não poder mais. Nao costumava acordá-la antes que o sol nascesse, já que ele treinava escondido de seus pais para se transformar em Corredor. Pensando bem, não sentia falta de ser despertada daquela maneira, já que o amigo sempre inventava alguma pegadinha, como quando colocou na cama da amiga dois lêmures de olhos verdes, que acabaram comendo um pedaço de seu travesseiro. Quando se levantou, a menina sentiu uma leve vibração na sola dos pés. Depois de um instante, observou uns sulcos estranhos na areia. Pareciam um tipo de pegada, como as marcas deixadas pelo arado. Lan pensou que deviam ser recentes, já que o vento não as havia desfeito, e então decidiu seguir as marcas para ver onde chegaria. Desceu a duna seguindo o rastro, caminhando até comprovar que havia cada vez mais marcas. Continuou sem saber o que seguia, mas pensou que, independentemente de quem fosse o responsável pelas marcas, o mais provável era que regressara de onde havia saído ou, na pior das hipóteses, buscara um lugar onde se esconder. Talvez fosse um Corredor, ou outro sobrevivente da ruptura a quem pudesse se unir. Depois de várias horas seguindo as marcas com atenção, observou algo que não percebera antes: aqueles sulcos apareciam conforme ela caminhava. – Isso é... impossível – disse, desconcertada. Pensou que podia estar enlouquecendo. As marcas começaram a se cruzar, formando todos os tipos de curvas sinuosas e figuras em ​zigue-zague. – Não compreendo – continuou dizendo.


Segundos depois, as linhas separaram-se, seguindo um mesmo caminho em paralelo. Cada vez avançavam mais depressa, e assim Lan teve de começar a correr para acompanhar o ritmo. De repente, um dos sulcos parou, exatamente entre os pés dela. A menina semicerrou os olhos para analisar a imagem, depois se agachou pretendendo observar de perto e... uma enorme fera negra de corpo grande surgiu furiosa da areia, serpenteando como um tufão! – Ruuuuuáááá!!! – rugiu o animal. Lan gritou, histérica. Pensou que seu coração sairia pela boca, que sua hora havia chegado. Desviou-se do monstro com agilidade e logo observou, atônita, quando ele entrou de novo na areia. Seria uma alucinação​ causada pelos cristais? Suspirou, convencida de que estava intoxicada, vivendo uma espécie de pesadelo. Mas então apareceram mais criaturas, saltando como um bando de peixes voadores que entravam e saíam daquele mar de areia. Três daqueles animais foram em sua direção, e ela começou a correr com todas as forças. Tinha de sobreviver, havia prometido a si mesma que encontraria o caminho de casa para unir-se à mãe e aos amigos. Os monstros continuaram avançando, levantando uma densa nuvem de pó ao seu redor. Novas marcas apareceram no chão. Lan compreendeu que aquelas linhas eram o rastro que deixavam as caudas deles quando passavam por dentro da terra, e que logo apareceria o restante da manada. – Corre. Corre! Correee!! A menina observou de perto o rosto de uma daquelas feras temíveis; estava coberto de escamas pretas e brilhantes, tinha olhos pequenos e uma mandíbula grande, uma fileira de dentes afiados como navalha. Continuou correndo o mais rápido que era capaz, até escutar um forte‐ rangido. Temeu que a Quietude fosse se romper de novo, mas logo depois‐ descobriu que o som vinha daquelas criaturas. Mastigavam pedras! Quando‐ saíam da areia, saíam com a boca aberta, como se estivessem ​comendo, deixando no caminho túneis subterrâneos que o vento não demorava a cobrir. Envolvida naquele barulho, Lan tinha cada vez mais di culdade para desviar das caudas perigosas dos come-terra. O estrondo já era muito alto, e não era possível ver mais nada poucos metros à frente, porque uma nuvem de poeira tomava conta de tudo. A menina estava morrendo de medo, sabendo que não podia fazer mais nada além de correr. De repente, uma das feras entrou em seu caminho e a acertou com a cauda, fazendo com que ela rolasse vários metros até as costas de outra de


suas companheiras. Lan segurou-se com força ao animal e tentou aguentar a dor, mas não conseguiu conter um grito. A criatura abriu a boca para entrar de novo na areia e então a menina se viu diante da morte. – Ai, não! Não! Não-não-não! Nãããooo! – gritou com histeria. Precisou tomar uma decisão rápida: saltou das costas de um animal para o rabo do outro até cair rodando no solo. Girou como um peão no meio da areia e do pó e viu passar por cima os corpos enormes dos monstros. Finalmente, como se fosse um sinal do destino, viu, surpresa, que o apito de Nao estava enroscado na pata de um dos animais. – Naaaao! – chamou Lan, cheia de esperança. – Naooooo!! Para variar, não obteve resposta alguma, mas continuou sem se dar por vencida. Lan cerrou os punhos e começou a correr à toda velocidade, até que conseguiu alcançar de novo o come-terra. Rapidamente, saltou em cima dele e se segurou como pôde. Sabia que o animal não demoraria a surgir de novo, por isso tateou o cinturão de trabalho para pegar a navalha, que, apesar de não ser muito grande, era bem a ada; estendeu o braço com a intenção de alcançar o apito do amigo. Depois de muitas tentativas, conseguiu aproximar-se o bastante para alcançar com a ponta dos dedos e cortar a corda. Conseguiu recuperá-lo! Lan tinha certeza de que um dia o devolveria ao amigo e não podia perder a oportunidade; levou o apito aos lábios com a certeza de que, se havia algum wimo por perto, ele iria ao seu encontro. Apitou tão intensamente que o monstro, incomodado, agitou-se com fúria, fazendo-a perder o equilíbrio e lançando-a no ar.


Encontrada

D

espertou com um suave vaivém: mexia-se ritmicamente, como um bebê no berço. Depois, abriu os olhos e piscou várias vezes com di culdade, deixando-se hipnotizar pela dança de cores que ondulavam livremente sobre sua cabeça. Quando percebeu que não estava sonhando, conseguiu entender o que avançava lentamente ao redor. A menina girou a cabeça e observou botas desgastadas caminhando ao lado de um animal de carga. Eram cor de terra e estavam cobertas pela barra de roupa laranja e azul. Um Errante! Lan tentou se recompor, descobrindo que estava em uma maca improvisada de bambu, levada por um wimo, e que sentia dor até o último o de cabelo. Os véus coloridos faziam o papel de guarda-sol, e ela os afastou, com todo o cuidado que seus braços doloridos permitiram, para perguntar: – O que aconteceu? O homem que a havia resgatado não se deu ao trabalho de responder. Ela continuava desorientada, mas insistiu: – Onde estou? A menina escutou o Errante suspirar irritado. Pela primeira vez, recordou-se do apito de Nao e compreendeu que ele havia salvado a sua vida. – Quem é você? Mestre Nicar? – tentou adivinhar. Com uma vara, o Errante fez o animal reduzir o ritmo e então respondeu​: – Eu resgatei você. Lan ficou calada, já tinha escutado aquela voz em algum lugar. – O sequestrador! – exclamou em pânico. A menina tentou sair da maca, mas seu ombro estava deslocado e o corpo estava repleto de hematomas. Sua aventura com os come-terra havia causado


estragos. – Deixe-me em paz! – gritou. – Está ouvindo? Não permitirei que me sequestre como fez... – Será que não me escutou? – ele a interrompeu. – Eu disse que salvei você. Lan grunhiu de novo, agitando-se com intensidade, e depois o acusou: – Já sei! Com certeza você provocou a ruptura. Solte-me! Tenho que encontrar a minha mãe e os meus amigos. Você é um maldito... Então, sentiu uma doce fragrância tomando conta de suas narinas. Estava cansada, muito cansada. Fechou os olhos lentamente e tudo voltou a car escuro. Seu corpo relaxou, e logo sentiu paz. Ao despertar, Lan tinha certeza de duas coisas: estava perdida e alguém a havia encontrado. Sua luta com os come-terra e a discussão com o sequestrador de Ivar provavelmente tinham sido um tipo de alucinação causada pelas Partículas, por uma insolação ou pelos cristais daquela planta desconhecida. Não fosse uma dessas coisas, ela não saberia explicar a rápida recuperação de suas feridas, nem por que estava em cima do colchão de uma tenda iluminada por um lampião. A menina desesperou-se e cou em pé. De fato, a maioria dos ferimentos havia desaparecido, e até seu ombro havia voltado ao lugar; ainda restavam alguns hematomas e uma contusão na perna direita que a obrigava a mancar. Lan olhou ao redor. A tenda era pequena, mas cabia o essencial: um colchão, um pequeno baú com alguns objetos e uma mesa apoiada na saliência de uma rocha. O incenso sobre a mesa liberava um agradável aroma, que fez com que se recordasse da fragrância que havia sentido antes de desmaiar. Descon ada, permaneceu alguns instantes em silêncio total, tentando escutar algo do lado de dentro. Não tinha certeza do que havia ocorrido, por isso precisava ser cuidadosa. Precisava descobrir quem a havia levado até ali e se também havia encontrado sua família ou algum outro habitante de Sálvia. A jovem vestiu-se apressadamente e calçou as botas, que estavam perto do baú. Quando estava prestes a seguir em direção à entrada da tenda, o som de passos e de vozes fez com que ela voltasse. Alguém se aproximava. Em princípio, a luz que aparecia pela abertura não permitiu que visse com clareza; a menina pensou que a gura daquela mulher era sua mãe. Seu coração acelerou, mas ela não demorou a descobrir que, na verdade, tratava-se de uma Errante de cabelos vermelhos e crespos. Vestia-se como os outros e mantinha a distância para não ser tocada.


– Finalmente, você despertou. – Onde estou? – perguntou, um tanto confusa. – Minha mãe e meus amigos também estão aqui? A mulher aproximou-se da mesa, onde deixou uma cesta com frutas e uma tigela de leite. Depois, respondeu com calma: – Sinto muito, mas só encontramos você, ferida no deserto. Foi uma casualidade; um dos nossos trouxe você aqui, mas não sabemos se há mais sobreviventes. Cabisbaixa, Lan sentou-se de novo na cama. Aparentemente, o pesadelo ainda não tinha chegado ao fim. – Agora, você está entre os Caminhantes da Estrela. Não deve se preocupar com nada. – Caminhantes? – Vocês nos chamam de Errantes. De fato, Lan nunca havia escutado um deles referir-se a si mesmo como Errante. – Mas... – Fique tranquila, o Guia responderá às suas perguntas. – O Guia? Está se referindo ao Mestre Nicar? Seu líder? A mulher arregalou os olhos e então respondeu sorrindo: – Vocês o chamam assim. Lan não sabia a quem se referia; mas, como aquela Errante não parecia ser uma ameaça, deixou-se levar pelas circunstâncias. – Neste momento, o Guia está reunido com alguns de meus Irmãos, por isso, peço paciência. Por enquanto, pode passear pelo assentamento ou continuar descansando, como preferir. A menina assentiu, agradecendo sugestão. Quando a mulher se afastou, Lan concluiu que tudo de que se lembrava havia acontecido mesmo. Depois da ruptura da Quietude, os come-terra a haviam arrastado pelo deserto até que ela perdesse a consciência, e logo caiu nas mãos do sequestrador de Ivar. A sorte não estava do seu lado. Lan olhou para a tigela de leite que a mulher havia deixado sobre a mesa e não hesitou em beber. Em seguida, atacou o cesto de frutas. Não fazia ideia do tempo que havia passado na cama, mas acordara com o estômago vazio. Com as forças renovadas, saiu da cama decidida a conhecer o ambiente. Apesar de o sequestrador ser um deles, os Errantes sempre a fascinaram, e, agora que tinha a chance de ver como eles viviam, não a deixaria passar.


Lan descobriu que, apesar de o local ainda ser isolado, já não estava no deserto. Como se fosse uma teia de aranha, os Errantes haviam formado uma trama de corda entre os troncos de um antigo bosque petri cado. Ali, tudo o que já havia vivido assumira o estado de fóssil. Os esqueletos de diversos animais continuavam impressos na rocha. Aquele lugar era triste e cinza, sem vegetação nem possibilidades de caça... mas pelo ​menos havia sombra. Caminhou sem querer chamar atenção, mas era inevitável que os olhares se voltassem para ela. Todos a cumprimentavam, ainda que ninguém ousasse se aproximar demais. A menina observou o aspecto dos homens, das mulheres e das crianças, que não eram muito diferentes dos membros de seu próprio clã, mas conseguiu distinguir uma série de traços: os Errantes tinham a pele bronzeada, devido às constantes viagens, e costumavam ser muito altos. Além disso, eram discretos como gatos, demonstravam uma atitude afável e tinham o controle da voz, utilizando-a para atrair os interlocutores, da mesma forma com que um contador de histórias se propõe a cativar quem o escuta. Geralmente, os Errantes eram pessoas calmas, mas às vezes era perceptível a preocupação re etida em seus rostos, evidenciando que, no m, eram tão humanos como os habitantes de qualquer outro clã. Lan percorreu o acampamento até chegar à grelha e começou a observar. Ali, um grupo de homens girava, em um espeto, uma espécie de lagarto sobre um bom punhado de brasas. Logo, passou pelo local onde cavam os wimos e as aves, e observou uma mulher de braços fortes ordenhando uma vaca de pelo comprido com um raro mecanismo enquanto seu lho, que não tinha mais do que sete anos, a ajudava a transportar os baldes que enchia pouco a pouco. A menina teve a impressão de que aquela comunidade era bem organizada, e todo mundo tinha uma função ali. Além disso, não se restringia aos Limites, porque era um povo nômade que mudava constantemente e, portanto, desconhecia qualquer tipo de fronteira. Eles não se importavam de passar a noite no meio do deserto ou nas montanhas geladas, estavam preparados para sobreviver em qualquer circunstância. Permitiam que o planeta os levasse de um lado a outro, e não se preocupavam demais com o que cava para trás. De certo modo, para Lan, parecia que essa capacidade de aceitar as coisas como elas eram, era verdadeiramente admirável. Continuou passando pelas tendas por um bom tempo, até ver um grupo de pessoas saindo de uma delas. A reunião havia terminado e os Errantes voltavam a seus afazeres. Entre as pessoas, uma gura se destacava: era o Errante que a havia capturado.


Lan estremeceu e tentou se controlar para pensar com clareza. Chegou à conclusão de que não valia a pena voltar a entrar em con ito. Agora, estava entre eles e não podia fazer nada. Ao ver que o Errante caminhava em sua direção, a menina desviou o olhar e desejou que ele passasse por ela sem parar. Ainda sentia calafrios ao lembrar do que sentira ao tocá-lo. Infelizmente, o rapaz parou a uma distância segura, mas próxima, e ​disse: – Fico feliz por vê-la recuperada. Lan cou muda. Era a primeira vez que o sequestrador dirigia a palavra a ela com simpatia. – Obri... obrigada – respondeu com cuidado, enquanto o analisava de cima a baixo, sem saber que atitude tomar. – Sabe de uma coisa? Deram-me uma grande bronca por tê-la resgatado, por isso espero que não volte a gritar comigo – disse ele. – Oh! Eu... – Sim, eu sei. Não precisa me agradecer – ele a interrompeu. – Está claro que, se não fosse por mim, você teria morrido no deserto. – Mas quem você pensa que é? – ela o recriminou, irritada. – Só digo que me arrisquei para salvar sua vida – ele quis esclarecer –, assim, o mínimo que posso fazer é pedir respeito. Não concorda? – Respeito? Quer que eu respeite um... sequestrador de crianças? – perguntou com desprezo. – Não sou um sequestrador. – Sei! Já deixou bem claro. O rapaz desviou os olhos, irritado, e pôs a mão no nariz num gesto de quem está pensativo, escolhendo as palavras com cuidado para evitar uma resposta muito dura. – Quer saber de uma coisa? Não preciso tolerar você – disse, por fim. – Eu digo a mesma coisa! Instantes depois, o rapaz voltou pelo mesmo caminho por onde veio, dando passos largos e agitando os braços, irritado. – Idiota arrogante – murmurou Lan. Rapidamente, a ruiva que havia conversado com ela apareceu, discreta como um gato. – Você está bem? A menina levou um baita susto. Apesar de a voz da mulher ser muito tranquilizante, seu modo de andar causava nervosismo em Lan.


– É... sim. Mais ou menos. Lan deu alguns passos para trás, obrigando a mulher a esquivar-se rapidamente. – Não o leve a mal. Ultimamente ele tem sofrido muita pressão. – Tudo bem... – disse, olhando para ela. – É um menino rebelde, mas não tem intenções ruins – insistiu, desculpando-se por ele. – Eu não diria a mesma coisa. – Você não percebe? Você o acusou em público. Ele tem medo. Logo, Lan se interessou pelas palavras da mulher. Aquilo a pegou desprevenida. – Medo? De mim? – perguntou, surpresa. – Das consequências de tocar em uma humana – explicou. – Mas ele... – Se o que você disse fosse verdade, ele seria expulso, entende? O castigo por entrar em contato com alguém como você é muito severo: ele seria abandonado à própria sorte em qualquer lugar – explicou. – Isso é cruel... – Bem, na verdade, nunca tivemos de abandonar ninguém. – Não entendo. A que você se refere? – perguntou, confusa. – Desde que os Caminhantes descobriram esse tipo de... maldição – disse, mexendo os dedos com ar tenebroso –, ninguém voltou a tocar em um ser humano que não pertença a nosso povo. Claro que houve um ou outro acidente, mas nunca de modo voluntário. Para nós, é uma questão de honra; respeitamos todos os seres vivos, somos tão conscientes de nosso poder que ninguém nunca ousou fazer. – Nunca? – Nunca – disse. – Portanto, jamais tivemos de castigar alguém de fato. – Mas ele... – começou a dizer, antes de se controlar. Nesse instante, Lan compreendeu por que o menino havia mentido em Sálvia. Se tivesse admitido que a tocou, teria se tornado o primeiro Errante a ser castigado. Ele teria sido abandonado em qualquer local, algo muito parecido com se perder depois de uma ruptura da Quietude. Teria sido sentenciado à morte pelos semelhantes. – O que você dizia? – É... nada. Nada. A mulher sorriu e disse: – Acredito que o Guia deve estar à sua procura. Se não se importa, levarei​ você


até a tenda. Vocês têm muito que conversar. – O Mestre Nicar? – perguntou, com um brilho nos olhos. – Com certeza! Quero conhecê-lo. Quando Lan entrou na tenda do Guia, primeiro prestou atenção às cores vivas dos tapetes e depois se dedicou a sentir o cheiro agradável da mistura de incensos. Claro que aquele era o local ideal para meditar e resolver todo tipo de problema, uma espécie de templo. – Espero que você se sinta à vontade entre nós – disse o idoso, surgindo entre as sombras. – Não tenho do que me queixar. Agradeço por ter me curado, e vocês me deram alimentos muito bons. Sorriu para o senhor de modo amigável, e então mais um Errante se aproximou dela. Estava a poucos centímetros de distância, algo que incomodava Lan, porque sabia que poderia tocá-lo só estendendo os dedos. Aquilo demonstrava que o Mestre Nicar não sentia medo dela, o que a menina interpretou como um gesto de confiança e procurou relaxar. – Peço desculpas por não dar a mão a você – ironizou o senhor. – Não se preocupe, eu entendo. Quando catávamos esterco em nosso clã, sempre dizíamos a mesma coisa. O homem estranhou o comentário e então percebeu ser uma brincadeira. Lan, quando se deu conta do comentário feito, desejou que se abrisse um buraco a seus pés. Aquela frase era totalmente inadequada. O que ela estava pensando para falar daquela maneira com um Errante? Com o próprio Mestre Nicar! – Eu... estou... – tentou se desculpar. – Eu sei. Você está nervosa – compreendeu o senhor. – Nós dizemos bobagens quando estamos nervosos, não é mesmo? Lan percebeu a ambiguidade em suas palavras. – Sim, creio que sim – respondeu, sem entender muito bem onde ele queria chegar. – Sabe de uma coisa? Sempre pensei que esse menino me daria problemas, mas sei que ele não seria tão louco a ponto de tocar um ser ​humano. – Menino? – O que trouxe você até aqui. – Ele não tem nome? O idoso soltou uma alta gargalhada. – Claro que não!


– Como assim? – Aqui, ninguém tem nome. Somos todos Irmãos, Caminhantes da ​Estrela. – Mas o senhor tem: é o Mestre Nicar – respondi. – Esse é um apelido que ganhei de seu povo para que eles me diferenciassem dos outros, mas aqui as pessoas me conhecem como o Guia. Quando eu morrer, meu sucessor também se chamará o Guia. É apenas um título. – Mas não entendo. Por que não tem nome? – Pelo mesmo motivo pelo qual não possuímos uma única terra. Acreditamos que nada nos pertence; sequer um nome. Nós respondemos, acima de tudo, ao grande Linde, e limitamo-nos a seguir sua vontade. – Quer dizer que esse menino... se chama Menino? – Exatamente, como todos os outros. Ainda que você possa chamá-lo como quiser. – Então... vou chamá-lo de Sequestrador – disse ela, sorrindo de modo sarcástico. – Era sobre isso mesmo que eu queria falar com você – disse o senhor. Lan sentiu um nó no estômago; teve a impressão de que aquele senhor tão simpático podia deixar a simpatia de lado a qualquer momento. De alguma maneira, a menina pressentia que aquela conversa, aparentemente trivial, era o início de algo muito mais importante. – Como eu disse, todos dizemos bobagens quando camos nervosos – repetiu ele, fixando os intensos olhos azuis. Lan concordou. – Por isso quero que você diga a meu povo que esse menino não tentou sequestrar criança nenhuma e, claro, que não a tocou. – Mas... – Menina, aquele jovem já burlou uma regra trazendo-a até aqui. Nós, os Errantes, não podemos cuidar de todos os seres humanos que se perdem depois da ruptura, entende? Não costumamos ajudar ninguém entre nós e pretendemos seguir sem fazer isso, apesar de termos aberto uma exceção no seu caso. Sua acusação daria espaço a um precedente horrível. – Mas o que quer dizer? – perguntou, surpresa e decepcionada – Só estou pedindo que mostre um pouco de gratidão e admita que está mentindo. Depois, vamos deixá-la na cidade de Rundaris e seguiremos o nosso caminho, como se nada tivesse acontecido. – Não menti! – exclamou ela, indignada. – Então, faça isso agora – sussurrou ele em seu ouvido, de modo ​ameaçador.


O mapa

L

an sempre pensou que os Errantes eram os seres mais perfeitos que existiam no Linde. No entanto, desde seu encontro com o Sequestrador e pelas palavras do Mestre Nicar, começava a pensar que eles não eram melhores do que os outros seres humanos. O próprio líder dos Caminhantes havia sugerido que ela mentisse. Lan sabia que insistir em sua culpa poderia acarretar muitos problemas àquele menino – algo que não importava para ela, pois ele merecia –, mas não conseguia deixar de pensar nos outros Errantes. Eram proibidos de tocar em um ser humano, nunca haviam quebrado essa regra e se sentiam orgulhosos disso. Além disso, por mais que tivessem um poder com o qual podiam dominar o restante dos clãs, nunca o tinham utilizado como arma. Tinham preferido mantêlo por perto, tendo-o como uma maldição. Essa forma de agir parecia a mais louvável, e era a mais eficiente para demonstrar suas boas intenções. A menina dirigiu-se à mesa que haviam preparado ao ar livre e sentou-se ao lado da ruiva, que havia se tornado sua anfitriã. – Você conversou com o Guia? – perguntou ela, mostrando o sorriso que sempre iluminava seu rosto. – Sim – Lan limitou-se a dizer. – Foi muito... interessante. – Tenho certeza de que foi – riu a mulher. – Não sei o que ele queria com você, mas tenho certeza de que lhe deu bons conselhos, não é? Para nós, ele é como um pai. Não sei o que faríamos sem ele. A menina assentiu e depois cou pensando. As pessoas daquele povoado‐ consideravam seu líder capaz de lhe mostrar o caminho. Não era um rei com mão de ferro, nem um mestre severo. Era um pai e, portanto, alguém em quem confiavam cegamente. Tinham certeza de que sempre seriam protegidos por ele.


– Alimente-se bem. Teremos vários dias de caminhada pela frente e, pelo que parece, teremos de enfrentar um bom número de tormentas e perigos. Lan continuava assustando-se com a atitude daquela mulher. Sabia que teria de sofrer todos os tipos de problemas e, no entanto, continuava sorrindo. Não tinha medo de nada, limitava-se a car calma com aquela expressão indelével de felicidade. – Vou tentar – respondeu. – O que você preparou? De repente, um dos homens que ela havia visto perto da grelha colocou seus alimentos em cima da mesa e respondeu com alegria: – Especialidade da casa! Rabo de lagarto com salada de cactos e queijo derretido de vaca peluda. – Vaca peluda? – repetiu a menina, arqueando a sobrancelha. – Sim, senhorita, mas não se preocupe... não encontrará nenhum pelo nesse prato – brincou o cozinheiro. Lan riu sem saber o que dizer e depois agradeceu com um gesto de cabeça. – Está tudo muito bem organizado. – Quando nossas reservas acabam, temos de improvisar. Por sorte, ontem à noite, conseguiram caçar um lagarto... ou algo parecido. – Sim. Que sorte... – concordou baixinho, olhando para o outro lado enquanto‐ se lembrava com saudade dos assados deliciosos que sua mãe ​preparava. – Vamos, não que assim. A carne de lagarto é muito seca, mas, com queijo, fica ótima. Você vai ver. – Assim espero! Antes de experimentar, Lan observou que o restante dos Errantes a havia deixado sozinha ao lado da ruiva. Ninguém queria arriscar-se a tocá-la sem querer, e até sua acompanhante havia se afastado o su ciente para que seus pés não se tocassem embaixo da mesa. A menina conformou-se e colocou um pedaço de carne na boca. Teve de admitir que, apesar de não ser delicioso, não era tão ruim quanto pensou que seria. Continuou mastigando enquanto observava o Sequestrador, que comia sozinho em um dos cantos. – Você não é a única que não gosta dele – disse a mulher, ao perceber que Lan não tirava os olhos do rapaz. Lan sorriu e depois ficou curiosa: – Por que ninguém se senta com ele? – Bem – suspirou –, digamos que... suas ideias são muito radicais – respondeu, escolhendo as palavras cuidadosamente.


– Radicais? – estranhou Lan. – Os Caminhantes da Estrela sempre seguiram regras muito concretas. Nós nos deixamos guiar pelo Linde sem nos importar aonde iremos, não acreditamos nas posses e mantemos tradições muito fortes. – E que problema ele tem com isso? Por acaso ele tem a intenção de mudar essas tradições? – Não exatamente. Esse menino acha que teríamos de “atualizá-las” conforme o tempo passa, só isso. – Atualizar-se de vez em quando é preciso – opinou Lan. A ruiva desaprovou o comentário com o olhar e voltou a sorrir. – Nós sempre pensamos que, se algo está bom, não há motivo para mudanças. – Nem mesmo para melhorar? – insistiu. A mulher negou com a cabeça. – Não corremos riscos desnecessários. Lan cou surpresa com a resposta. Os Errante eram, com toda certeza, o povo mais sábio do planeta. Mas algo lhe dizia que aquele jovem inconformado também tinha razão. Por mais estranho que fosse, Lan, pela primeira vez, sentiu certa afinidade com ele. A menina passou o resto do dia em sua tenda, pensando a respeito do ocorrido e deixando a perna machucada descansar. Sentia-se sozinha, apesar de estar cercada de pessoas. Por mais que fosse para seu próprio bem, a distância que os Errantes mantinham cava cada vez mais difícil de suportar. Pensou mais uma vez na mãe, em Nao e em Mona, e também em todos aqueles que havia perdido, e perguntou a si mesma se não seria mais sensato dar-se por vencida e se deixar levar como faziam os Errantes: esquecê-los. Mas sentia muita falta deles! Umas horas depois, a ruiva avisou que deveriam partir, e então teve de aprender a desmontar sua tenda. Lan cou surpresa com a e ciência daquele povo, uma vez que eram capazes de recolher tudo em questão de minutos. Saíram ao entardecer porque acreditavam ser preciso evitar o sol forte daquela região; e, se o Linde permitisse, chegariam mais depressa a terras mais fecundas, onde a mata crescia muito, como em Sálvia, e onde os bosques não pareciam esculturas. Apesar de gostar da companhia da an triã e do restante dos Errantes, queria chegar a um lugar onde pudesse car. Pertencia a um clã e não estava acostumada a viajar. Na verdade, nunca havia saído de Sálvia. Caminharam durante mais de uma semana, período em que tiveram de


enfrentar todos os tipos de adversidade; desde a escassez de alimentos, passando por caminhos intransitáveis repletos de feras noturnas que se aproximavam com a intenção de devorá-los. Distantes da aridez do deserto, encararam as chuvas. No começo, a menina pensou tratar-se de algo passageiro; mas, quando a água cobriu seus tornozelos, compreendeu que aquela não era simplesmente uma chuva de verão. Tiveram de continuar caminhando pelo campo até chegar ao pé de uma montanha. Decidiram então se proteger dentro de uma das cavernas. Era um espaço enorme, o teto muito alto, repleto de estalactites, e paredes recobertas de liquens. Parecia complicado assentar-se em um local daquele tamanho, mas os Errantes eram um povo de recursos. Até então, Lan nunca havia dado valor ao calor de uma boa fogueira. – É sempre assim? – perguntou a menina enquanto mexia em seus cabelos. – Não entendo como conseguem viver assim. – O que quer dizer com isso? – estranhou a ruiva. – Sem uma casa, sem um quarto, sem um lugar adequado para guardar as suas coisas e... não sei, sentir-se a salvo – tentou explicar-se. – Como você está vendo, tiramos tudo de que precisamos da natureza, e às vezes os clãs que visitamos nos dão presentes ou abastecem a nossa despensa. – Sim, mas... não sentem falta do conforto de um lar? – insistiu. – Este é o nosso lar! – respondeu a mulher, fazendo um gesto ao seu redor. – O Linde é a nossa casa. – Estou me referindo a um lugar seguro onde possam se proteger do frio e da chuva; onde possam ter certeza de que não sentirão fome, de que não enfrentarão os animais selvagens, nem... – Isso é muito chato – brincou a mulher. – Você acha? – perguntou ela, entendendo a ironia. Lan aproximou-se do fogaréu para que suas roupas secassem logo. A ruiva sorriu e explicou-se: – Nós não precisamos de nada disso, aceitamos o destino como ele é, como vem. Se formos até o norte e o Linde nos transportar até o sul, procuraremos outro caminho e seguiremos caminhando. Respeitamos o planeta, não queremos ser parasitas. Acreditamos que o grande Linde não é um animal que pode ser dominado, mas, sim, uma entidade superior a nós, que nos permite viver em sua superfície. – Mas vocês estão expostos ao tempo, à fome, à sede, inclusive aos come-terra! – Come-terra? O que é isso?


– Nada... é uma longa história – respondeu a menina. – Vamos, não se preocupe. Nicar quer deixar você em Rundaris. Ali, você estará segura. Nesse instante, Lan lembrou-se de todas as vezes em que havia sonhado em pisar naquela cidade mística. Diziam que era do tamanho de vinte clãs e que, provavelmente, era o lugar mais estável de todo o Linde. No entanto, a ideia de ser abandonada ali era difícil de assimilar. Ela só queria encontrar sua família e voltar para casa. Sem perceber a menina levou a mão ao cinturão de ferramentas, talvez o único objeto que lhe restava de seu lar. Sempre teve interesse pelas plantas. Quando era pequena, passava o dia brincando no bosque e, mais tarde, começou a cultivar um pequeno jardim sobre o telhado de sua casa. Havia escutado tantas histórias sobre o Linde e sua acelerada deserti cação que, para ela, as plantas eram tão valiosas como os animais e as terras de cultivo. Sabia que muitos remédios eram feitos a partir de seus extratos e isso a deixava fascinada. O fato de uma planta poder aliviar sua dor de cabeça ou induzir o sono era algo mágico e misterioso para ela, como as perigosas Partículas que todos temiam. – O Guia está pedindo que nos reunamos na entrada – sussurrou um jovem Errante à ruiva. – Vamos para lá – respondeu ela, amavelmente. – O que ele disse? – perguntou Lan, deixando de lado seus pensamentos​. – O Mestre Nicar nos chamou. – Nós duas? – Não, chamou o povo todo – explicou. – Certo. – Não se assuste, as Reuniões são algo que fazemos de vez em quando. O Guia divide conosco seus planos e pede conselhos. Além disso, também é um bom momento para solucionarmos outros tipos de problemas. Os Errantes eram seres tão organizados que a menina cou chocada ao saber que eles tinham algo a resolver. – Vamos, pode até ser divertido. Lan observou os Errantes mais jovens espalhando bolas de cristal colorido por toda a cova. Instantes depois, as crianças bateram nelas com varas de metal, fazendo-as soar como campainhas. A menina não entendeu para que servia aquela brincadeira, até ver os vaga-lumes da terra saindo em busca do som e fazendo brilhar as bolas de cores distintas. As bolas de luz não proporcionavam calor, mas, sim, uma iluminação relaxante, de tons azuis, verdes e dourados.


Os Caminhantes da Estrela sentaram-se em semicírculo ao redor do Guia, perto da entrada, a poucos passos da chuva que caía sem parar. No entanto, não permitiram que Lan casse muito perto, e ela permaneceu a dois metros da última fila para evitar qualquer tipo de contato involuntário. – Irmãos, se o Grande Linde permitir, chegaremos a Rundaris em dois dias – disse ele, dirigindo-se à multidão. – Como puderam comprovar, temos feito uma viagem muito tranquila... “Tranquila?”, pensou Lan. “Estamos andando no barro há dias!”, sentiu vontade de dizer. – Por isso acredito que conseguiremos sobreviver com nossas provisões – continuou. A menina deteve-se ao observar os Caminhantes. Apesar de, no começo, achar que todos tinham os mesmos traços, depois de passar muitos dias com eles, já conseguia distingui-los com facilidade. A maioria deles era alta, de pele morena e com belos traços, mas ela havia aprendido a identi car familiares parecidos uns com os outros, a identificar penteados típicos de jovens e todo tipo de... – ... Lan – escutou seu nome. A menina voltou à realidade e procurou de onde vinha a voz. – Lan, por favor, pode se levantar? – pediu o Mestre Nicar. – Oh, sim, claro – respondeu, desculpando-se pela falta de atenção. – Pode esclarecer, diante de todo o meu povo, o pequeno mal-entendido que aconteceu em Sálvia? – perguntou o senhor. – Mal-entendido? – sussurrou, tentando entender a situação. – Menino, fique em pé também – ordenou ele. O menino se levantou, sobressaindo-se entre os outros. Desde o dia de sua chegada, ninguém mais falava com ele. Lan e o Sequestrador se entreolharam rapidamente e então se dirigiram a Nicar. – Acredito ser oportuno aproveitar esta Reunião para solucionarmos juntos o problema – disse o senhor, dirigindo-se a seu povo. No início, a menina sentiu-se em uma cilada, mas não demorou a entender o que o senhor havia lhe avisado: ele havia pedido para que se desculpasse e, se acreditasse não ter nada a que pedir desculpas, que mentisse. – Menino – disse de novo ao Sequestrador –, é verdade que tentou sequestrar uma criança do clã dela? – Não, senhor, claro que não – respondeu ele, com a expressão séria. – Bem – sorriu o senhor. – Desculpe-me, mas me vejo obrigado a perguntar:


você entrou em contato com Lan ou com qualquer outro ser ​humano? Os outros Errantes esperaram com impaciência pela resposta do menino; no entanto, ele se fez de difícil, como se ainda estivesse decidindo se deveria confessar tudo. – Não – mentiu, por fim. – Eu não esperava outra coisa de um Caminhante. Havia chegado a hora de Lan, e ela ainda não sabia o que fazer. Se dissesse a verdade, eles castigariam o Sequestrador, mas tinha certeza de que ela também seria afetada. Por outro lado, se zesse o que o velho dissera, todos suspirariam aliviados e esqueceriam o assunto como se nada tivesse acontecido. Depois, eles a levariam à cidade de Rundaris e todos seguiriam seus caminhos. A menina acreditava que a segunda opção era a mais conveniente. Sua mãe havia lhe ensinado como ser uma sobrevivente em qualquer circunstância, mas ela odiava mentir; queria justiça. – Jovenzinha, você mantém a acusação? Não podia fazer isso, não podia permitir que aquele menino presunçoso saísse impune de seus crimes. – E então? – pressionou o velho. Tinha de dizer a verdade. – Mantém a acusação? – perguntou novamente. Silêncio. Lan olhou para o menino, odiando-o por obrigá-la a mentir. – Não – respondeu, por m. – Eu... na verdade... não sei o que vi – mentiu. – A Quietude estava se rompendo, tudo estava escuro, pode ser que as Partículas tenham me afetado... não sei – concluiu, dando de ombros. Os assistentes sentiram-se aliviados. Lan abaixou a cabeça, com vergonha. Ainda que por dentro sentisse o sangue ferver e desejasse atacar o Sequestrador, havia chegado à conclusão de que, se quisesse voltar a ver sua mãe, teria de mentir. Não poderia criar inimigos, não poderia correr nenhum risco. – Aqui, ninguém vai julgá-la. Não se preocupe, menina – apaziguou o Mestre Nicar. Lan tentou se controlar. – Bem, podem sentar – disse o senhor. A menina de Sálvia e o Errante entreolharam-se pela última vez. Os olhos dela estavam repletos de rancor, avisando que, apesar de ter permitido que ele saísse impune, algum dia se vingaria. Os olhos dele pareciam repletos de gratidão... à sua maneira. Como se, por tê-la resgatado do deserto, os dois estivessem quites. – Lan, peço desculpas. Você terá de deixar a Reunião.


A menina não entendeu a que Nicar se referia. – Como você sabe, algumas de nossas regras são muito estritas. Vou fazer uma leitura e não posso permitir que uma estranha esteja presente. – Claro, mas eu não... Lan sentiu-se discriminada, em princípio, e logo entendeu que aquelas pessoas não queriam compartilhar tudo com ela, ainda mais depois de confessar que havia acusado um deles injustamente. – É a tradição – disse o velho. A menina assentiu e depois seguiu sua anfitriã obedientemente. – Não leve isso para o lado pessoal – sugeriu a ruiva. Lan permaneceu em silêncio. Começava a entender por que o Sequestrador havia iniciado sua cruzada pessoal contra todas as regras e ​tradições. – Pode esperar aqui, serão apenas alguns minutos. A menina entrou na tenda e sentou na almofada. Depois, pegou alguns travesseiros para utilizá-los como encosto e fechou os olhos com a intenção de relaxar, mas foi impossível se esquecer dos acontecimentos; alguém havia sussurrado: “Traga a bola, por favor”. – A bola? Que bola? – perguntou, recompondo-se do susto. Na tenda, não havia mais ninguém. “Perguntaremos ao Grande Linde se estamos perto de Rundaris ”, voltou a escutar. – Mestre Nicar? – estranhou ao reconhecer a voz dele. Lan procurou em todo o quarto e não encontrou nem sinal do velho nem de qualquer outro Errante. Pensou que estava enlouquecendo, até que procurou fazer, com a navalha, uma pequena abertura em uma das paredes da tenda. “Não percebemos a presença de Partículas, assim é possível que o resto do caminho esteja livre de perigos”, escutou de novo, como se estivessem contando um segredo. Ela aproximou-se da abertura e observou Nicar de pé. Instantes depois, vários guardiões Errantes apareceram levando algo envolvido em um pedaço de lona e entregaram ao líder. Pensou que talvez os tivesse escutando, mas isso seria totalmente impossível. Eles estavam muito distantes, e a voz chegava com perfeita clareza. A menina sentiu curiosidade e prestou atenção à cena. O Mestre Nicar tirou o tecido com cuidado e pegou de seu interior uma espécie de bola de metal oxidado. “Vamos ver qual é o estado atual do Linde e, portanto, se poderemos seguir


nosso caminho”, escutou de novo, os lábios de Nicar movendo-se de modo sincronizado. Lan parou de tentar descobrir como conseguia escutar os Errantes e limitou-se a observar. Não entendia em que consistia aquele ritual, nem para que servia aquela bola metálica. O velho colocou a bola no chão e pressionou um dos círculos gravados em seu ponto mais alto. Em seguida, este começou a vibrar, como se dentro dele existisse um tipo de mecanismo. – Mas o que é isso? – ficou curiosa. Lentamente, a superfície da bola dividiu-se em diversas partes que depois se moveram de um lado a outro, tentando se encaixar. Lan esfregou os olhos para ver melhor; estava muito distante e não podia analisar todos os detalhes, mas aquilo mais parecia um quebra-cabeça. Logo se esqueceu das rupturas da Quietude e deduziu que aquele artefato misterioso era, na verdade, uma representação do Linde. Sentiu o sangue gelar. – Não é possível – murmurou, maravilhada. A bola continuou mudando até que, por m, parou e começou a vibrar. O Mestre Nicar estendeu as mãos e a manteve à altura dos olhos. – Não pode ser – continuou negando a menina. O Guia examinou a superfície do artefato durante vários segundos e depois sorriu, satisfeito. “Que assim seja”, escutou as palavras do senhor com um sussurro. “Rundaris será nosso próximo destino”, anunciou. Lan sentiu como se seu coração tivesse saído do lugar. Não era possível. – Um mapa! – disse em voz baixa. Ficou horrorizada com a ideia de que, em um planeta em mutação, alguém possuísse um mapa. Os clãs distintos do Linde sofriam, às vezes, as rupturas da Quietude, perdiam-se e morriam. Um mapa seria a salvação. Era inconcebível que os Errantes, a quem sempre considerara protetores deste mundo, possuíssem uma ferramenta como aquela e ​nunca a tivessem compartilhado. Lan sentiu os olhos cheios de lágrimas; aquela bola poderia trazer de volta o seu pai. Logo, o menino que ela tanto odiava virou o rosto e ela escutou o que ele disse, uma voz tão clara quanto a de Nicar: “Agora, você já sabe o nosso segredo”.


A cidade de Rundaris

A

tempestade que os havia obrigado a se refugir naquelas covas decidiu dar trégua. A reunião havia terminado horas antes e todos os Errantes estavam descansando em suas tendas; no entanto, Lan não conseguia dormir. Ainda não havia assimilado o ocorrido. Tentava entender por que o Sequestrador havia revelado o segredo mais bem guardado do povoado. Talvez visse nela uma espécie de aliada, ou será que só queria retribuir o favor por não ter sido delatado? De qualquer modo, saber da existência da Esfera lhe dava esperança, por mais que também complicasse as coisas. Os Errantes podiam caminhar pelo Linde sem se perder porque tinham um mapa. Era tão lógico que ela não sabia como não haviam pensado naquilo antes. As pessoas sempre tentaram justi car aquele fato citando a magia, os desígnios divinos, dons adquiridos de forma misteriosa ou uma sabedoria sobrenatural que estava além de sua compreensão; mas tais ​explicações eram balelas. Aquele povo nômade era formado por farsantes que se aproveitavam das pessoas, concluiu Lan, sentindo-se muito decepcionada. Assim, ajeitou o travesseiro e tentou dormir, mas, depois de uma revelação daquela importância, era impossível. Pela primeira vez, a menina sentiu que o mundo mudava de forma e também de conteúdo. Era como se tudo aquilo em que acreditara antes fosse uma enorme mentira. Lan continuou remexendo-se na cama até não aguentar mais; então saiu para dar uma volta. Apesar de ainda não ter amanhecido, a luz das estrelas encarregava-se de iluminar suficientemente o interior da caverna. Na entrada, cou admirando a lua cheia. Era branca como a neve, e seu resplendor alcançava todas as plantas silvestres que cresciam aos pés da montanha. Lan fechou os olhos e abriu a mão, com a intenção de sentir as


gotinhas de chuva sobre sua pele. Quando, nalmente, conseguiu relaxar, abriu os olhos de novo... e quase morreu de susto. – Mas que diabos você está fazendo aqui? – perguntou, observando o menino, imóvel como uma estátua, e parado a poucos metros dela. – Acredito que a mesma coisa que você – respondeu o Sequestrador, sem dar muita importância. Lan olhou para ele com olhar crítico, procurando não cometer nenhum engano. ​Continuava não confiando nele. – Não consegui dormir – disse o Errante, por fim. – Eu também não – respondeu ela. O menino se aproximou lentamente e, quando os dois estavam a poucos centímetros um do outro, disse: – No começo, pensei que você fosse uma menina tola como tantas outras que vivem em um clã – disse, com desprezo. – Dessas que nunca saíram de seus povoados e acreditam que o mundo gira ao redor delas. Têm uma visão muito limitada do mundo – explicou, provando a sua paciência. – Mas, quando mentiu em juízo, percebi que você é como eu. – Não me pareço em nada com você! – retrucou a menina. – Claro que sim, você é uma sobrevivente. Durante alguns segundos, o Errante manteve o olhar sobre ela sem nada dizer. As nas gotas de chuva molhavam seus cabelos e escorriam por seu rosto. Por um instante, a manga da blusa do menino roçou na mão de Lan, mas o jovem não se mexeu. O coração da menina cou acelerado. Ela estava acostumada a manter distância de todo mundo – e senti-lo tão perto a afetou. – Hoje em dia, todos somos sobreviventes – disse ela, por m, afastando-se dele. – Nem todos. Pode acreditar... eles, não – respondeu o menino, sinalizando para o assentamento. Lan olhou com estranheza e então analisou as palavras. – O Mestre Nicar, meu povo, os clãs... todos têm boas intenções – admitiu ele –, mas ninguém entendeu ainda que o mundo está dando seus últimos suspiros. – Isso é... – ... muito triste – terminou a frase por ela. – Eu sei, mas é assim. Vamos assumir de uma vez: não importa. O mundo está morrendo e nós desapareceremos com ele. – Lan sentiu uma sensação de perda, o mesmo que sentiu quando se separou de seus entes queridos. Aquela visão derrotista da


situação deixou a menina desconcertada. – Já não faz nenhum sentido viajar daqui até ali avisando aos clãs sobre o estado das coisas – concluiu ele. – É o que vocês fazem, certo? Seguem os desejos do Linde – disse a ​menina. – Eu, não – respondeu ele de forma intensa. – Mas... você é um deles. O menino não respondeu. – Não pode deixar de ser um Errante – insistiu Lan, mexendo as mãos perigosamente. O Sequestrador afastou-se com agilidade, evitando o contato com a menina, e depois afirmou, rangendo os dentes: – Posso até ser um deles, mas não tenho por que pensar como eles. A menina calou-se ao perceber a raiva que o jovem sentia. O Sequestrador entrou na caverna e começou a caminhar apressado. – Espere! – chamou ela. – Vá dormir, amanhã teremos um longo dia de viagem. Ela ainda tinha muitas perguntas para fazer. Teria gostado que ele tivesse esclarecido como ela pode ouvir a conversa de Nicar, por que havia revelado a existência do mapa, o que ele pretendi fazer com Ivar e acima de tudo, por que tinha arriscado tocá-la, mas entendeu que aquele não era o momento e nem o lugar para o interrogatório. No dia seguinte, Lan ajudou a recolher o acampamento sem deixar de pensar no assunto. Continuava descon ando daquele Errante, mas algo lhe dizia que ele não tinha intenções ruins. Por mais que a menina se lembrasse da noite anterior como um sonho no limite do real, ainda conseguia sentir o incômodo do menino. Os Errantes eram os de sempre, e a mulher ruiva continuava ajudando Lan com um grande sorriso; no entanto, Lan não conseguiu aproveitar a viagem. Olhava para aquele povo com outros olhos. Continuava ​decepcionada. – Você está bem? – perguntou a mulher. – Sim, só estou muito cansada – respondeu a primeira coisa que lhe passou pela cabeça. – Vamos, anime-se. Falta pouco para chegarmos à cidade. – Cidade... – murmurou a menina. Aquela palavra lhe parecia tão estranha, como alcançar a lua. – É impossível não ficar bem em Rundaris. Você vai ver! – procurou animá-la. Lan ngiu um sorriso e então procurou o menino entre a multidão. Apesar de os Errantes não serem um povo muito numeroso, o fato de todos usarem roupas


com cores parecidas di cultava a tarefa. Após muitas tentativas, deduziu que o jovem a estava evitando e deixou as coisas como estavam. Os Caminhantes da Estrela andaram por dois dias e duas noites sem parar para descansar. Seu Guia estava convencido de que, se mantivessem aquele ritmo, chegariam à cidade antes de a Quietude se romper de novo. Deram a volta na montanha onde haviam se escondido, depois passaram por um descampado e entraram em um bosque repleto de vegetação. No segundo dia, chegaram a um espaço de terra argilosa, que tiveram de percorrer até encontrar, finalmente, a zona vulcânica onde Rundaris ficava. – É... misteriosa – disse Lan ao ver a cidade se aproximando no ​horizonte. – Sim, essas colunas de vapor sempre deram um ar de mistério ao local. É mais uma das razões pelas quais o céu está sempre nublado aqui. A ruiva pediu à menina que a seguisse e passaram à frente da comitiva. Queriam ser as primeiras a entrar. Ao chegar a Rundaris, Lan ficou totalmente boquiaberta. Sempre pensou que as histórias contadas por seu pai na hora de dormir eram exageradas, mas agora se via obrigada a reconhecer que, na verdade, Fírel não havia contado tudo. – É incrível – murmurou, surpresa. – Eu disse, não disse? Lan deu alguns passos à frente, observando tudo o que havia ao seu redor, para ter certeza de que não estava sonhando. O burburinho de pessoas nas ruas cheias formava uma canção estranha cheia de vida. Era possível escutar as vozes de centenas de pessoas falando e gritando, o ruído dos carros e todo o tipo de cacarecos mecânicos, o barulho de um rio, bandos de aves e cães de guarda latindo para todos os gatos que tentavam roubar sua comida. Para alguém como ela, que vinha de um pequeno clã na selva, tudo aquilo parecia muito desconcertante, um tipo de caos ordenado. – Viajei pelo Linde durante muito tempo e posso garantir que esta cidade é o lugar mais curioso do planeta. – Não tenho dúvidas disso – concordou a menina. – Ela sentiu um odor forte. Tinha cheiro de sopa, enxofre e especiarias, mas também de jasmim, lavanda e outras muitas ores aromáticas que não soube identi car. Aquele era um lugar repleto de contrastes – É... é alucinante. – Alucinante? – Quero dizer que nunca vi tanta gente junta, entende? É como se... não sei,


é... – tentou explicar. – Inebriante – sugeriu a ruiva. – Sim, acho que é essa a palavra. A menina continuava deslumbrada com as construções muito altas de Rundaris. A arquitetura do local fazia lembrar as enormes sequoias onde os Errantes tinham se assentado quando a salvaram. Nunca havia visto casas de mais de três andares e, no entanto, ali havia construções tão altas que pareciam tocar o céu. Podia apostar que muitas delas tinham mais de vinte andares. A maioria das casas era encaixada em robustas colunas de rocha calcária interconectadas por complexas estruturas de metal. Apesar de muitos dos espaços serem aproveitados pela topogra a, ninguém ousava tirar o mérito dos seres que tinham conseguido erguer uma cidade como aquela no meio do nada. Lan observou um grupo de transeuntes, detectando todos os traços que a diferenciava deles. – Sempre pensei que em Rundaris as pessoas eram como nós. – São seres humanos – afirmou a ruiva. – Sim, claro que sim. Mas... – Não se deixe enganar pelas aparências. O lugar onde alguém vive pode de nir seu corpo. Como acha que quei bronzeada? Caminho o tempo todo embaixo do sol. Com os moradores de Rundaris, acontece algo parecido: seus tons de pele variam do vermelho-escuro ao amarelo-mostarda porque vivem em uma região vulcânica e seus corpos são tingidos pelo enxofre e por outros elementos químicos que se ​desprendem da terra. – Como as Partículas? – Hmmm – pensou, levando a mão ao queixo. – Mais ou menos. Lan observou aqueles seres totalmente maravilhada. Depois, cou tentando imaginar se também tinha um traço particular que a identi casse como membro de seu clã. Vivia em um local repleto de vegetação e muitos lagos, e, assim, podia ser que a umidade tivesse dado a ela alguma característica chamativa para os outros. – São pessoas muito distintas, você vai ver. Logo, uma criança que corria, suja de barro até os cabelos, parou na frente de Lan. Olhou para ela de cima a baixo, como se analisa um estranho, e então inclinou a cabeça, muito curiosa. – Quem é você? – perguntou, com sua vozinha. – Meu nome é Lan – respondeu, amavelmente. – Ran – repetiu em voz baixa.


– Não. Lan – corrigiu. – Foi o que eu disse... Ran. A menina deu-se por vencida e começou a observar a criança com atenção. Sua pele era da cor da argila e tinha pouco brilho, seus olhos se destacavam, como dois faróis que iluminavam seu rosto, e tinha os cabelos despenteados, como se tivesse se esquecido de usar um pente. – Você é uma Intocável? – Oh! Não. Sou apenas... – começou a responder, mas deduziu que era daquela forma que os Errantes eram chamados naquele lugar. Uma aglomeração de pessoas formou-se ao redor da menina e de sua amiga ruiva. – São Intocáveis – explicou uma senhora. – Mas essa menina não parece uma Intocável – retrucou o neto. – Veja a ruiva, com certeza é uma Intocável – acrescentou um homem baixo. – Eu acho que não! – discordou outra senhora. – Você vai ver – respondeu ele. Lan começou a se assustar. Pela primeira vez, sentiu-se na pele de um Errante. De certa forma, foi capaz de perceber que todas aquelas pessoas a respeitavam, como se tivessem um tipo de expectativa em relação a ela, mas não gostava de ser o centro das atenções. Outra criança apareceu entre as pessoas e se aproximou da ruiva, decidida a tocá-la. Lan se lembrou da forte dor que sentiu quando o Sequestrador segurou seu braço e então temeu pela vida do pequeno. – Parado! – ela o impediu, segurando-o pelo ombro. A criança e as outras pessoas ficaram sem reação. – Fiquem calmos, eu não sou uma Errante... uma “Intocável” – tentou acalmálos. O menino suspirou aliviado e disse: – Não queria tocá-la – sorriu com malícia. – Viram como eu tinha razão? – virou-se, orgulhoso de si mesmo. Lan revirou os olhos. Aparentemente, as crianças de Rundaris eram tão travessas quanto as de Sálvia. – Os Intocáveis! – exclamou uma mulher alegremente. – Eles voltaram! Os Intocáveis vieram nos visitar! – gritou um homem do fundo. Lan temeu que aquilo fosse apenas o começo de algo maior. Era esperado que as pessoas reagissem com o mesmo entusiasmo das pessoas de seu clã. A


multidão começou a murmurar enquanto as reverenciava com respeito. Apareceram os outros Caminhantes: o Guia, seu séquito e os outros Irmãos, incluindo o Sequestrador. Instantes depois, os habitantes de Rundaris caram maravilhados com a presença deles e lhes deram as boas-vindas, criando um grande escândalo. A menina tentou entender por que as pessoas daquela cidade linda veneravam um povo nômade quando, na verdade, deveria ser o contrário. “Se soubessem a verdade, eles os receberiam a pontapés, pensou. O Mestre Nicar tomou o controle da situação erguendo a mão. A gritaria diminuiu imediatamente, e as pessoas deixaram o caminho livre; ninguém queria entrar em contato acidentalmente com um dos Intocáveis. – Sacerdote Intocável! – ouviu-se alguém gritando na multidão. O Guia reconheceu aquela voz e parou. – Permita-me ser o an trião mais uma vez – disse um homem rechonchudo, enquanto tentava abrir espaço entre a multidão. – Claro que sim, Naveen. Fico feliz por vê-lo de novo – disse Nacar. – Qual é o motivo de sua visita, senhor? – perguntou o morador da cidade. – Eu gostaria de dizer que se trata de uma questão rotineira, mas infelizmente é muito mais do que isso. Peço que me leve imediatamente a Mezvan. – Claro que sim – concordou, decidido. O Guia virou-se, indicando a seu povo que aquela visita ele faria sozinho. Instantes depois, Naveen ordenou a seus companheiros que recebessem o resto dos hóspedes: – Preparem tudo o quanto antes! – Sim, senhor – responderam em uníssono. A comitiva de Errantes esperou na entrada, entregando aos visitantes todos os tipos de mercadorias e até brincando com as crianças, ainda que sempre mantendo distância. Enquanto isso, o Mestre Nicar, acompanhado de três de seus ajudantes mais fiéis, mais Lan e a ruiva, seguiu o anfitrião pela cidade. – Como pode comprovar, Rundaris não está passando por um bom momento – disse, dirigindo-se ao Guia. – O que está acontecendo, Naveen? – Há alguns dias, o vulcão tem se intensi cado, e está fazendo mais calor do que de costume. – Compreendo – disse, preocupado. – A vegetação não está preparada para resistir a temperaturas tão elevadas;


tememos que o rio de lava transborde de uma hora para outra. – Nossa! Isso seria um problema. – Por mais que tenhamos construído barragens e proteções, a verdade é que tememos que uma ruptura acabe com elas. – Mas as rupturas sempre respeitaram seus Limites Seguros, certo? – Vamos, Nicar – disse ele, olhando xamente em seus olhos. – Sabemos que a Quietude começou a invadir os Limites, em clãs como o de Sálvia, por exemplo... Lan abriu os olhos, surpresa, e rapidamente se intrometeu na conversa. – Como sabe do que aconteceu em Sálvia? – Bem, não gosto de alardear, mas... nossos Corredores são excepcionais, os melhores de todo o Linde, e há alguns dias eles encontraram sobreviventes em terras fora dos Limites... – Sobreviventes! – exclamou, esperançosa. Os olhos de Lan brilharam. Podia ser, então, que sua mãe, Nao e Mona estivessem vivos. Talvez até naquela cidade. – Quantos eram? Como se chamavam? Estão bem? – ela fez muitas perguntas, sem parar nem mesmo para tomar o fôlego. – Fique calma, jovem, calma. Você não deve se preocupar com eles, estamos tratando suas feridas e neste momento estão muito bem. – Sim, mas... preciso saber... – Chegaram três – apaziguou. – Um homem robusto de meia-idade, uma mulher grande que não para de falar de jeito nenhum e uma menina muito esperta. – De rabo de cavalo? – perguntou. – Como sabe? – Mona! – gritou de alegria com os olhos marejados. – Sim, acho que o nome dela é esse mesmo – confirmou Naveen. Pela primeira vez em muito tempo, Lan sentiu-se feliz. Sua amiga estava a salvo na cidade de Rundaris. Não conseguia acreditar, queria muito vê-la. Desejava poder abraçá-la e dizer o quanto sentia sua falta. A ela e a todos os outros. – Bem. Vamos parar de papo – disse o anfitrião. – Já chegamos. Escondida em um desfiladeiro muito alto, erguia-se uma enorme construção de pedra vermelha esculpida na encosta de uma montanha. Escadas imponentes levavam até a porta de entrada, que era de uma cor muito mais escura e, como o resto do palácio, decorada em ​baixo-relevo. “Impressionante”, pensou a menina. Nunca teria sido capaz de imaginar uma


construção como aquela. Em seu clã, as casas eram muito mais ​modestas. – Fazia tempo que não passava por aqui – disse Nicar, com ar ​nostálgico. – Não se preocupe, tudo está exatamente igual – assegurou Naveen, instantes antes de começar a subir a escada. Do lado de dentro, Lan prestou atenção em cada um dos detalhes que decoravam aquela construção parecida com um palácio. Na verdade, ela o havia comparado a um templo, antes de escutar os gritos que vinham de uma das últimas salas do corredor. – É importante, Mezvan! Agora, mais do que nunca! Com o olhar, Naveen pediu desculpas pela gritaria e depois ficou inquieto. – Não duvido, mas não posso fazer nada. Não temos mão de obra disponível, e ainda menos pessoal qualificado. – Temos consciência dos problemas que a cidade está enfrentando, mas não podemos abandonar o projeto! – retrucou o interlocutor. – Farei o que puder, amigo. Eu prometo. Ao chegar ao m do corredor, Lan nalmente pôde relacionar rostos e vozes. O primeiro era um homem magro e desengonçado. Seus cabelos estavam despenteados e ele parecia muito sábio. Ao contrário do primeiro, o segundo era de estatura considerável, corpulento, com uma expressão preocupada. Seus olhos acinzentados destacavam-se sem qualquer esforço em sua pele bronzeada, e sua barba branca não deixava dúvidas: era Mezvan, rei de Rundaris. O interlocutor do rei fez uma reverência de modo respeitoso ao ver que recebia uma visita inesperada e, depois de cumprimentá-lo com um meneio de cabeça, saiu da sala em silêncio. – Grande Mezvan! – cumprimentou Nicar. – Vamos, velho amigo, deixe de formalidade – pediu o rei –, o Sumo Intocável não precisa me tratar assim. O Mestre Nicar sorriu satisfeito. Lan tinha certeza de que se aqueles homens pudessem se tocar, teriam trocado um forte abraço. A amizade entre eles era muito evidente. – Entre – chamou aquele grande homem. A sala tinha um espaço simples, sem qualquer sinal de ostentação. No meio, passava um estreito canal de água decorado com todos os tipos de ores, que terminava em uma espécie de poço circular do qual, de vez em quando, escapava vapor. Um pouco mais afastadas, diversas cadeiras, todas do mesmo tamanho, que rodeavam uma mesa oval coberta por complexos canais de magma. Lan não conseguiu fugir à tentação de passar os dedos por alguns


manuscritos. – Mezvan, viemos trazer notícias do Linde, mas também viemos por um motivo mais... pessoal. – Pessoal? Explique-se – pediu o rei, pegando uma chaleira de ferro para enchêla de água. – Como vocês, acolhemos uma sobrevivente do clã de Sálvia. – O que aconteceu foi horrível – disse, enquanto destampava um pote para pegar um punhado de folhas secas. – Espero que não corramos o mesmo perigo. – Um de meus Irmãos encontrou Lan no deserto e não pudemos negar ajuda; mas, como sabe, não podemos permitir que faça parte de nosso povoado. – Eu sei! Eu sei – concordou. – Conheço as suas regras e tradições – disse com ar cansado, enquanto colocava as folhas na chaleira. – Sabe de uma coisa? Sou o rei da maior cidade do Linde e nem mesmo eu instaurei um código tão rígido como o seu. Nicar ergueu as sobrancelhas, considerando o comentário um elogio. – Se está me pedindo hospedagem... – Sim, é isso – interrompeu ele, com o rosto sério. – Eu... não poderia negar – concordou enquanto se dirigia ao poço. – Recolheram três vizinhos dela. O lógico é que ela que com vocês – explicou o Guia. – Sim, creio que sim – murmurou Mezvan –, mas não vou enganá-lo... na verdade, precisamos de mão de obra quali cada ou de pessoas fortes para construir mais proteções. E, sejamos sinceros – disse ele, abaixando o tom de voz – sua menina está um tanto... fraca. “Fraca?”, pensou Lan, indignada. – Sem ofensa – desculpou-se o rei ao ver sua expressão de desaprovação​. Lan mordeu a língua e depois se desculpou com o olhar. – É uma boa menina – disse Nicar, olhando xamente nos olhos de Lan, como se a advertisse para que não dissesse nada a respeito do mal-entendido com o Sequestrador. Lan corou. O rei submergiu, por alguns segundos, a chaleira no poço, revelando que dentro dele havia um perigoso fluxo de lava. – Bem – suspirou. – O que você sabe fazer, minha jovem? – perguntou ele enquanto colocava a infusão em copos pequenos de cristal. – Eu, bem... eu... – abaixou a cabeça, tentando encontrar algo que tivesse valor para aquelas pessoas. – Na verdade... sempre me dei bem com as plantas – disse finalmente, dando de ombros.


– É sério? Mezvan levantou a cabeça e a analisou de cima a baixo. – As plantas, não é? – repetiu, ainda desconfiado. – Sim, senhor. – Sabe de uma coisa? Acho que tenho o trabalho perfeito para você – disse o rei, enquanto oferecia a ela uma fumegante xícara de chá ​vulcânico.


O Verde

M

ezvan não teve nenhuma dúvida; ainda que a magrinha não pudesse ajudá-lo a montar as proteções, tinha certeza de que seria a solução de outros de seus problemas. – Um de meus homens vai falar com você na estufa – disse. – Não precisa se preocupar, tenho certeza de que você será recebida de braços abertos. Ao anoitecer, você se reunirá com os sobreviventes de seu clã no moinho. – Obrigada – agradeceu Lan. A ruiva aproximou-se da menina e disse: – Espero que tenha consciência de que acabaram de receber você na maior e mais estável cidade do Linde. Não perca essa oportunidade, ​entendeu? – Claro que não – assegurou ela. – Bem, então, nós nos veremos à noite. Nem pense em perder a hora! – advertiu de novo, dessa vez, mostrando um sorriso. Lan esforçou-se para retribuir o gesto, mas não conseguiu. Apesar de ter um novo lar, continuava sem se sentir em casa. Não conseguia parar de pensar na mãe e nos outros amigos. Agora que sabia que Mona estava sã e salva, sentia uma leve ponta de esperança dentro de si. Tentava imaginar se os outros também tinham sido acolhidos por outros clãs, já que, se isso tivesse acontecido, talvez voltassem a se encontrar. A menina suspirou, impaciente para abraçar Mona. Minutos depois, Naveen levou Lan pelo des ladeiro até chegarem ao início de um campo. Qualquer pessoa diria que o terreno diante dela era, na verdade, tudo o que restava de uma antiga montanha cortada. Lan pensou que as diversas rupturas sofridas pelo Linde haviam esculpido suas


paisagens, gerando diversas formas abruptas pouco naturais. Ela tentou imaginar se o antigo assentamento de seu clã havia se formado da mesma maneira. – Vamos, siga-me, é fácil se perder por estes caminhos. Lan aceitou o conselho do Guia e reduziu a distância que os separava; no m das contas, Naveen não era um Errante e, portanto, não fazia sentido afastar-se tanto dele. Depois, seguiram por um caminho transitável, ainda que meio confuso, uma vez que se ramificava de ​poucos em poucos metros. – Como pode ver, deixamos a cidade para trás. – Fez um sinal para trás. – Ainda que muitas das construções se apóiem na lateral das montanhas, a estufa está localizada um pouco mais acima, para evitar os gases que emanavam do vulcão. – Que curioso! – disse a menina, sem tirar os olhos da paisagem. – Foi uma das exigências do Verde – disse. – O Verde? – perguntou, sem entender. – Seu novo chefe. Lan se deu conta de que, pela primeira vez na vida, ia trabalhar para alguém. Sempre havia obedecido à mãe e, em diversas ocasiões, esteve a serviço de alguns de seus vizinhos, mas nunca tivera um superior que lhe desse ordens. – Não tenha medo. Ele é um homem exigente, mas muito amável. Você vai ver. Quando passaram pelo acúmulo de nuvens, Lan viu um céu limpo, entendendo naquele instante por que a estufa cava àquela altura. Logo, viu uma nova parte da montanha; era horripilante, parecia que um come-terra do tamanho da Rundaris a havia mordido. Por m, entre os pedaços de rochas, apareceu uma construção criativa que, sem dúvida, havia sido criada por um verdadeiro gênio da arquitetura. Não tinha forma de nida, mas parecia uma enorme gota de mel descendo pela ladeira; o esqueleto de vigas onduladas, que o revestia como um tecido, abrigava um conjunto de painéis de cristais de âmbar que lembravam a cobertura improvisada do telhado de sua casa. – Sei o que você está pensando. – É mesmo? – Todos se perguntam a mesma coisa: você quer saber que material é esse. – É... sim – assentiu. – Não parece o ferro que utilizam na cidade – ​observou. – É uma liga bem diferente, mas muito resistente. Como pôde ver, esta é uma zona vulcânica e, portanto – explicou, secando o suor da testa. – Graças ao canal de magma, temos conseguido fabricar fornos para trabalhar o metal e outros


artefatos que não vai demorar a descobrir. – Entendo, mas de onde sai a matéria-prima? Quero dizer... o ferro de uma mina não tem esse aspecto tão... tão perfeito – disse por fim. – Encontramos todo esse material encrustado nas montanhas, da mesma forma que aparecem fósseis de animais e plantas. Acreditamos que pertencia a um tipo de civilização antiga. – Civilização antiga? – ela se interessou. – Alguns acham que houve um tempo em que a Quietude era perpétua e o grande Linde era povoado por seres que haviam conseguido prosperar muito mais do que imaginamos. – Perpétua? – exclamou ela. – Isso é possível? Um mundo completamente estável? – perguntou, emocionada. – Quem sabe? – ele deu de ombros. – E o que aconteceu com eles? – Existem diversas teorias a respeito, ainda que a maioria aponte que abusaram do planeta até colocá-lo à beira de extinção. Então, começaram as rupturas, que acabaram com as cidades, o clima mudou rapidamente e... de nitivamente, o mundo cou de pernas para o ar. O mais provável é que sejamos seus descendentes. – Não estavam preparados – murmurou. – E nós, sim? – Bem, não. Eu quis dizer que... – ela tentou se explicar. – Eu compreendo, menina, estava apenas brincando. – Na realidade, acredito que temos nos saído muito bem – Lan defendeu-se. – Você não acha? Aprendemos a de nir Limites Seguros, os Corredores nos mantêm em contato com outros clãs, podemos dizer que quase não nos falta nada... – Sim, tem razão; os clãs estão cada vez mais bem preparados. Até pouco tempo, era muito raro que uma ruptura engolisse um... Lan abaixou a cabeça, desolada. – Oh, peço desculpa. Não pretendia insinuar que Sálvia... – Não é culpa sua – interrompeu ela. – Nosso clã estava acostumado com as rupturas. Éramos sobreviventes! Mas... a última não foi uma ruptura como as outras. – Balançou a cabeça, enquanto se lembrava, a ita. – Não respeitou os Limites, foi realmente devastadora. Naveen solidarizou-se com a dor da menina ao imaginar as implicações que algo daquele tipo causaria em sua cidade.


– Sinto muito. – É muito duro se perder, mas muito pior é saber que todos que amamos também se perderam. O silêncio tomou conta do lugar até que um vento suave fez balançar os enfeites metálicos dos cabelos de Lan. – Venha – ele chamou –, temos de voltar ao centro antes do anoitecer. Hoje, os moinhos girarão mais depressa do que nunca! A menina não sabia a que o morador de Rundaris se referia, mas se esforçou para esboçar um sorriso e continuou caminhando. Dentro da estufa, Lan sentiu-se em casa. Aquele lugar fazia com que ela se lembrasse de Sálvia: tudo era coberto de verde, e o ambiente tão úmido como o Bosque dos Mil Lagos. Para onde quer que olhasse, encontrava uma árvore abrindo caminho na mata que crescia junto com diversos açudes arti ciais; também havia cogumelos de todos os tipos e tamanhos, que faziam sombra a algumas plantas muito parecidas com aquelas que tinham servido de alimento a ela no deserto. – Acredito que não ficarei tão mal – pensou em voz alta. Tudo estava ligado por passarelas, e em todos os cantos era possível encontrar partes de engrenagens, peças e ferramentas, como se o local também fosse uma espécie de escritório e laboratório. Instantes depois, o desengonçado que discutia no palácio com Mezvan apareceu. – Você é O Verde? – Não, claro que não – respondeu, como se aquela fosse a coisa mais óbvia do mundo.O homem se aproximou de Lan visivelmente emocionado e apresentouse – Ah! Eu sou Embo. E você deve ser a nossa nova ajudante! – estendeu as mãos. – É... sim, creio que sim. – Muito prazer em conhecê-la, jovenzinha. Espero que saiba algo sobre as plantas, ou Mezvan terá de pagar – brincou. A menina cou surpresa com o fato de aquele senhor não se referir a seu rei como um governante a quem tinha de prestar contas, mas, sim, como uma espécie de irmão com quem contar sempre que precisasse. – Vamos lá! – exclamou Embo. – Esse conjunto de ferramentas é... é... – Valioso? – tentou adivinhar. – Não... é meu! – riu de novo. – Hahaha! Não me diga que é a filha de Fírel?


Não podia ser. Será que ele conhecia seu pai? – Sim! Sou eu, sim! – respondeu ela, emocionada. – Sabe onde ele está? – Oh... sinto muito, jovenzinha – desculpou-se, cando sério. – Não o vejo desde... na verdade, faz muito tempo. Eu queria perguntar a você sobre ele. Por acaso aconteceu alguma coisa com ele? – perguntou, preocupado. Lan abaixou a cabeça com expressão de derrotada. – Bem... ele se perdeu – respondeu ela, com a voz fina. – Puxa! Sinto muito, de verdade – lamentou Embo. – Seu pai era um bom homem. Lan agradeceu pelo comentário com um olhar. – Sabe de uma coisa? Ele pediu a mim para confeccionar este jogo de ferramentas especialmente para você – explicou ele, com um brilho especial nos olhos. – Eu... pensei que o senhor as tivesse comprado – confessou. – Oh, não. Claro que não. Essas ferramentas não podem ser ​compradas. – O que quer dizer? – O Verde é o encarregado da estufa e eu sou... um tipo de ajudante... – O senhor é muito mais do que um ajudante! – interrompeu Naveen. – Bem, na verdade, sou quem cuida da parte técnica, o responsável por desenhar as ferramentas que utilizamos aqui, os sistemas de irrigação e todo o resto – o homem fez uma breve pausa para respirar e logo continuou – é chato dizer, mas me sinto muito orgulhoso deste lugar. – Então, tudo isto é obra sua? – Sim. – É muito impressionante. – Você acha? – Claro! Você precisa ver a pequena estufa que construí no telhado da minha casa. Não tem comparação. É... minúscula! – disse, por falta de palavra melhor. – Puxa! – ele se surpreendeu. – Pelo que vejo, seu pai tinha razão. Lan tentou adivinhar que tipo de relacionamento aquele homem tivera com seu pai, mas ficou quieta. – Fírel me disse que quando você fosse maior, ajudaria a sua mãe a cuidar do Bosque dos Mil Lagos. Pelo que vejo, quando disse “minúscula”, você deu o primeiro passo. – Conhece esse bosque, senhor? – Oh, não, claro que não. Você sabe que, exceto os Corredores, os Intocáveis e os Perdidos, ninguém neste planeta tem permissão de viajar.


– Certo. Naveen pigarreou dissimuladamente, com a intenção de interromper a conversa e então se dirigiu à menina: – Lan, devo voltar à cidade – desculpou-se. – Espero que nos encontremos hoje à noite. – Claro que sim – respondeu o velho. – Eu mesmo me encarregarei de levar esta mocinha ao moinho. – Obrigado, Embo. Agradeço. A menina percebeu, naquele instante, que os dois se respeitavam. Por algum motivo que não conseguia compreender, aquele povoado respeitava muito O Verde e seu ajudante. Percorreram o local até subir ao andar superior. A menina teve a impressão de que a luz dourada que entrava pelos painéis de âmbar transformava aquele jardim simples no paraíso. Não teve tempo de contemplar com calma cada um dos recantos, mas aquela visita deixou uma marca inesquecível. – Já chegamos – disse Embo, estendendo as mãos de novo. – Acredito que O Verde terá uma boa surpresa. Mas, ao entrar, Lan surpreendeu-se. Que diabos o Sequestrador estava fazendo ali? – Mezvan cumpriu sua promessa, senhor. Ele nos enviou uma trabalhadora muito antes do previsto. – O Verde, que estava conversando com outro Errante, virou-se, interessado nas palavras de Embo. – E, como pode ver, não é uma moradora de Rundaris. Tanto a menina como seu novo chefe caram sem palavras. Ao mesmo tempo, o Sequestrador a observava sem acreditar. – Acho que isso não importa. Também não pertenço a este lugar – disse, por fim. Apesar de aquele homem ter alguns traços dos habitantes de Rundaris, estava claro que ele não era um deles. – Bem-vinda à nossa estufa. Espero que saiba algo sobre as plantas... ou vai acabar deixando-as aborrecidas – brincou. Lan percebeu que seu interlocutor não havia estendido a mão a ela. Seria também um Errante ou apenas mal-educado? – Não se preocupe, senhor. Eu adoro as plantas – respondeu ela. O homem avançou alguns passos e a observou de perto, como quem avalia se a nova mercadoria recebida se encontra em bom estado. – Pode me chamar como quiser, apesar de todos me conhecerem aqui como O


Verde. Do mesmo modo, deixo a seu critério o nome pelo qual chamará meu filho. “Filho?”, Lan pensou. – Pai – adiantou-se o menino –, Lan e eu... já nos conhecemos. – É mesmo? – ele se surpreendeu. – Sim. Na verdade, ela nos acompanhou durante todo o trajeto. – Então, perfeito – comemorou –, assim, ela não terá muitas di culdades para se adaptar a este lugar. O que O Verde queria dizer com aquilo? Por acaso estava insinuando que teria de viver com o Sequestrador? Não. De jeito nenhum. – Espero que se deem bem. Vocês passarão algum tempo juntos. – Eu... – começou Lan. – Não se preocupe, meu lho é um bom menino. Além disso, não acho que os Caminhantes ficarão por muito tempo na cidade; talvez duas ou três semanas. Quase um mês com aquele menino. Lan não sabia se conseguiria ​aguentar. – Rundaris é um clã muito grande – disse o Sequestrador. – Assim, devemos aproveitar para descansar e nos abastecer o máximo possível. – E sempre se agradece a visita de um filho – comentou O Verde. A menina queria saber como era possível aquele homem ser pai do Sequestrador; nesse caso, ele também teria de ser um Errante. – O sol está se pondo, por isso é melhor que Embo mostre as instalações‐ amanhã. Você dormirá aqui, conosco. E prepare-se para trabalhar bastante! – exclamou, cheio de energia. – Antes, tínhamos mais ajudantes – explicou o velho –, mas as constantes‐ rupturas da Quietude deslocaram a mão de obra para reforçar os canais de magma. Além disso, nossos últimos aprendizes não se deram bem; um se cansou do trabalho, o outro sofreu um acidente e o terceiro... bem, sinceramente, era um tolo. Lan ficou chocada com a sinceridade de Embo. – Vamos, não seja tão cruel – disse O Verde. – Era um bom menino, mas não estava pronto para este lugar; tinha medo de altura. “Altura? O que tinha a ver altura com regar as plantas?”, pensou Lan. – Bem, chega de conversa. Os Caminhantes da Estrela chegaram a Rundaris, e eu quero dar um forte abraço em alguns de meus velhos amigos. – Um abraço? – pensou a menina em voz alta, arrependendo-se no mesmo instante. – Claro, eu também sou um Caminhante.


– Mas... – começou, enquanto observava a recém-descoberta estrela tatuada no dorso da mão dele. – Não se engane pela cor de minha pele. Como a superfície do Linde, todo mundo muda em Rundaris. Lan e o Sequestrador entreolharam-se como se estivessem selando um pacto de silêncio no qual os dois se comprometiam a deixar para trás todo o ocorrido, ainda que fosse por apenas alguns dias. Se tinham de car no mesmo local, melhor que se dessem bem.


O moinho

A

o cair da noite, Lan e o Sequestrador chegaram à cidade acompanhados‐ pelo Verde e por seu ajudante. Os moinhos cavam no subúrbio de Rundaris, por isso tiveram de percorrer algumas de suas ruas principais. A menina continuava observando, surpresa, o agitado ritmo de vida daquelas pessoas. Os habitantes de Sálvia faziam longos passeios noturnos, saudavam uns aos outros enquanto escutavam o som de grilos. No entanto, ali todos pareciam apressados, ignoravam-se de propósito e era totalmente impossível identi car outro som que não o burburinho das ruas. Apenas alguns paravam para degustar a comida servida nas barracas de ambulantes. Muito oleosa para o gosto de Lan, ainda que desse o braço a torcer para o delicioso cheiro que fazia seu estômago roncar com força. A menina tentava imaginar se conseguiria se acostumar com toda aquela atividade intensa, pelo menos até conseguir arquitetar um bom plano para encontrar a mãe. Depois de saírem da cidade, chegaram aos pés de uma montanha negra coberta por marcas de lava solidificada e expelindo diversas colunas de vapor. – Estes são os moinhos? – Oh, claro que não! – respondeu Embo, dirigindo-se a uma abertura que os conduziria para dentro da terra. – Vamos, não tenha medo. São apenas túneis de lava. “Isso não me parece nada bom”, pensou a menina enquanto descia. No lado de dentro, encontrou um emaranhado de túneis iluminados por uma espécie de cristal encrustado na parede. – O magma gera esses canais quando sai para se transformar em lava. – Nossa!


– Não precisa se preocupar, estes túneis já estão fechados. – Tem certeza? – Certeza absoluta – riu –, é impossível que o magma passe de novo por aqui. Lan con ava naquele senhor desengonçado, mas estava claro que, em caso de ruptura da Quietude, aquele seria o último lugar onde estaria a salvo. Depois, percebeu que o Sequestrador não tirava os olhos dela e que, de vez em quando, esboçava um sorriso, como se estivesse se divertindo com todas as demonstrações de falta de conhecimento. – E o que são estes cristais? – perguntou maravilhada, enquanto passava a mão em uma das superfícies polidas. O Verde deu um passo à frente e intrometeu-se na conversa. – Quartzo – disse. – Quartzo? – Apesar de estes túneis serem caminhos mortos agora, ainda existem diversos canais subterrâneos que transportam lava – explicou –, por isso faz tanto calor aqui dentro. – Mas por que brilham? – Porque essas pedras transformam o calor em luz. Lan pensou no que o pai do Sequestrador acabava de explicar e lamentou que em seu clã não tivesse esse mineral. Ao caminhar junto ao Verde, conseguiu observar com mais atenção. Ela cou interessada pelo fato de o homem não vestir a roupa dos Errantes: em vez disso, usava um casaco grande, de bom tecido, apesar de puído, e botas de cano alto e solado no que faziam barulho quando caminhava. Agora que sabia que aquele era o pai do Sequestrador, começou a achá-los parecidos. Era difícil saber sua idade com aquela pele tão lisa e olhar tão profundo. – Quer dizer que eles são capazes de abaixar a temperatura e, além disso, de iluminar estes caminhos? – Lan continuou perguntando. – Isso! Se não fosse por eles, isto aqui seria um forno. – Então, estamos rodeados por caminhos de lava e bolsas de magma? – quis ter certeza. Estava cada vez mais assustada. – Exatamente. Ao perceber seu medo, o menino adiantou-se: – Não há nada que temer, este lugar está reforçado por inúmeras proteções. Mezvan encarregou-se de reconduzir a maioria do fluxo até o rio. Em princípio, Lan cou surpresa com o fato de o Errante conversar com ela, mas depois viu aquilo como uma gentileza, como se estivesse se esforçando para


deixar o clima mais agradável. Ainda assim, percebia que o menino mantinha certo grau de arrogância, como se tivesse sido obrigado a explicar algo evidente. – Obrigada – agradeceu, olhando-o com receio. – Mas desde quando há rios em Rundaris? – perguntou de novo, dessa vez dirigindo-se intencionalmente ao Verde, para evitar o filho dele. – É um rio de lava – explicou ele. – A estabilidade deu a esta cidade a oportunidade de desenvolver uma tecnologia com base no calor do vulcão e, sobretudo, na força do vapor. Graças a ela, temos conseguido canalizar o magma e transformá-lo em uma valiosa fonte de energia. Lan mostrou-se confusa. Novamente, não conseguia entender mais nada. – Na verdade, dispomos de todos os meios que simpli cam a nossa vida – disse Embo. – Como você deve imaginar, se não fosse por eles, como poderíamos prosperar? Tem ideia do quanto demoraríamos para construir um único prédio sem a ajuda desses artefatos? Controlar a força do vulcão foi um grande avanço! A menina pensou que aquelas pessoas tinham conseguido se sair bem de uma situação realmente complicada. Qualquer um sabia que viver perto de um vulcão era um obstáculo de difícil superação, mas eles tinham conseguido fazer com que a mesma temperatura que di cultava sua vida se transformasse na solução de todos os problemas. Percorreram o túnel durante mais alguns minutos. O Sequestrador caminhava com seu pai; sem querer, seu porte atlético e a perfeita coordenação dos movimentos destacavam-se entre o resto dos transeuntes. Antes, Lan tinha os Errantes como modelos de beleza, mas, agora que conhecia o segredo deles, arrependia-se do sentimento de admiração. Começava a sentir falta da robustez de seu amigo Nao e da falta de jeito de Mona. De alguma maneira, as características de seus amigos os tornavam mais humanos e, portanto, mais merecedores de confiança. – Existem mais túneis como este? – Sim. Mas, pela situação deles, apenas os utilizamos para chegar aos moinhos. Lan achou estranho que, para chegarem àquele lugar, tivessem de cruzar a montanha por meio daquelas galerias subterrâneas; no entanto, depois de ver a estufa e o resto da cidade, sabia que em Rundaris nada podia ser normal. – Vamos, os Intocáveis logo chegarão e não acho que vamos querer perder o discurso – Embo os apressou. Lan pensou nas palavras daquele senhor e logo concluiu que, provavelmente, os Errantes repetiriam a mesma coisa que explicaram em Sálvia: que a Ferida


estava piorando, que as rupturas eram cada vez mais fortes e que o mundo estava se desfazendo. “Com certeza o Sequestrador desfrutará da beleza”, pensou, amaldiçoando a atitude pessimista que assumiu na caverna. “É preciso admitir: nada mais importa. O mundo está morrendo e nós estamos desaparecendo com ele”, lembrou-se daquelas palavras com tristeza. – O que está pensando, jovenzinha? Está calada – perguntou O Verde. – Nada... não é nada – respondeu. Ao sair do túnel, apareceu uma enorme cratera em forma de cone invertido, rodeada por imensos montes de quartzo. – Mas... o que é isso? – Os moinhos – respondeu Embo, orgulhoso. – Impressionante. O homem sorriu, considerando aquilo um elogio. Os moinhos eram um lugar bonito. Aquela cratera de consideráveis dimensões havia sido adaptada para que as pessoas pudessem se sentar em uma espécie de escada, deixando livre a arena no centro para as apresentações que merecessem a atenção. Ainda assim, Lan achou curioso que as pás do moinho brilhassem com o calor que vinha da montanha, iluminando o local com um mar de cores relaxantes que iam e vinham a cada giro. – Então, os moinhos são um gerador? – Oh, não! – negou Embo. – Os moinhos retêm o calor e o transformam em luz, são uma espécie de farol. Também recarregam as pedras de quartzo, que depois utilizamos para iluminar nossa cidade – explicou com detalhes –, mas não armazenam nenhum tipo de energia. O gerador a que você se refere está em outro lugar. Se tiver sorte, é possível que esta noite possa vê-lo funcionando – disse, com ar misterioso e erguendo as sobrancelhas, de modo brincalhão. – É... sim, estou ansiosa – respondeu ela, temendo decepcioná-lo. – Vamos, os Intocáveis estão para chegar – disse, entusiasmado. – Vamos escolher um bom lugar, caso contrário, não teremos onde nos sentar. Lan seguiu Embo, que estava ansioso como uma criança; porém, ao unir-se à multidão, percebeu que nem O Verde nem o Sequestrador estavam com eles. Virou-se para procurá-los com o olhar, mas não conseguiu encontrá-los. Eles pareciam ter desaparecido como fumaça. Começou a analisar os recantos até distinguir suas altas silhuetas disfarçadas atrás das pessoas. Eles estavam longe da multidão, para evitar qualquer contato com os moradores​ de Rundaris. Naquele mesmo instante, Lan compreendeu o que signi cava ser um Errante.


A solidão que deviam enfrentar em situações tão cotidianas como uma simples reunião... Devia ser muito duro conviver com aquela maldição. Não poder tocar ninguém era algo muito difícil de controlar em um lugar tão ruidoso como os moinhos. – O que está fazendo, menina? Você está com a cabeça nas nuvens! – brincou Embo. – Venha, vamos. Sente-se – disse. Lan observou o menino pela última vez, e ele permanecia com o rosto sério ao lado do pai; depois, obedeceu ao ancião. Era noite e, como sempre naquela cidade, o céu continuava nublado. Apesar de a lua abrir caminho entre as nuvens, Lan cou surpresa com a total ausência de estrelas. Pensou que a maioria das pessoas nunca as tinha visto e sentiu-se ainda mais sortuda. Lembrou-se dos momentos longos que passava sozinha no telhado de sua casa, contemplando o firmamento​ sem outra preocupação. A luz dos moinhos de quartzo banhava os espaços com grandes intervalos intermitentes de luz laranja, azul, vermelha e verde. Era um brilho suave e relaxante como o da chama de uma vela. Lan observou o povo de Rundaris reunido naquela cratera e então se lembrou das fogueiras de Sálvia. Logo se entreteve observando o aspecto de seus habitantes, tentando classi cá-los em grupos. Achou curioso que muitos exibiam uma espécie de guarda-chuva de metal polido, algo em que já havia reparado ao caminhar por algumas ruas da cidade. Estava claro que eles pertenciam à classe mais abastada. A menina não sabia qual era a utilidade daqueles acessórios, já que não estava chovendo e àquela hora já não era preciso usar uma sombrinha, mas entendeu que só os mais ricos podiam usá-los. Do outro lado, estava a classe média, a mais multitudinária; por mais que não parecessem se preocupar com luxos desnecessários, todos usavam uma capa. “Deve ser moda”, pensou. Era insólito que os ricos se protegessem da chuva e do sol, ainda que a noite estivesse muito seca, e o resto das pessoas se empenhava em usar uma capa, apesar da alta temperatura. Começava a pensar que os moradores de Rundaris eram um tanto malucos. Para terminar, também havia um pequeno grupo de homens que nem traziam a sombrinha nem vestiam capas excêntricas. Em princípio, pensou que eram pessoas despreocupadas, mas depois viu que eram como “vagabundos”. Lan pensou em chamá-los de “Jaspeados”, porque não tinham cor uniforme de pele; não eram brancos, nem amarelos, a pele parecia ter sofrido um tipo de despigmentação. Outros exibiam um braço vermelho e outro amarelo-mostarda, uma face branca com pontos pretos e outra com pontos amarelos. Qualquer um


diria que sua pele estava se desfazendo, mas só estavam desbotando. – Quer uma bala? – perguntou o jovem que havia se sentado atrás dela. – Não, obrigada... – respondeu, observando o menino. Os cabelos loiros caíram soltos sobre um casaco com ombreiras, muito maiores do que o tamanho adequado, decorado com penas e provavelmente com tecido de pele de vaca peluda. Também portava um guarda-chuva metálico, mas que não brilhava nem um pouco, de tão oxidado, como a Esfera dos Errantes. Lan olhou para ele xamente, descobrindo que às vezes seus olhos se entortavam e que sua pele não o identificava como um dos Jaspeados. – Não se preocupe – sussurrou Embo em seu ouvido –, é o filho de Mezvan. – O quê? – exclamou. – Fale baixo! – Sinto muito – desculpou-se. – Não é um menino do mal, mas costuma meter-se em problemas. Ele tem um parafuso a menos – disse, revirando os olhos. – Você vai me ​entender. Lan virou dissimuladamente para observar o lho do rei, mas este parecia ter perdido o interesse em qualquer coisa que não fosse acompanhar com os olhos o que acontecia com as pás dos moinhos de quartzo. Quando todos se sentaram, escutou-se o soar de enormes sinos de cristal, e logo a cratera cou em silêncio. Sem exceção, todos caram atentos ao círculo central. Mezvan marcou presença com o passo rme e um sorriso escondido pela barba. – Cidadãos, os Intocáveis voltaram à nossa querida cidade para oferecer sua sabedoria e nos dar bons conselhos – sua voz retumbou nas paredes. A multidão assentiu. Pareciam ter se transformado em robôs, pois respeitavam seu rei mais do que se podia imaginar. – Eles percorreram um longo caminho para chegar aqui, por isso peço o máximo de respeito. Continuaram sem escutar nada além do som rítmico que emitiam as pás dos moinhos ao girar. As pessoas esperavam ansiosas. Em seguida, os Errantes saíram de um dos túneis de lava. A comitiva toda estava presente, com o líder na frente. Depois de todos entrarem na arena, aproximaram-se do Verde e de seu filho. O Guia ergueu a palma das mãos de modo teatral, para pedir a atenção dos expectadores, e então deu início a seu discurso. – Habitantes de Rundaris – dirigiu-se a eles com o tom rme de voz, mas não severo –, mais uma vez nós os visitamos para informar sobre o estado de saúde


de nosso querido planeta. Apesar de não trazermos boas notícias, pedimos força e coragem. Como ocorrera em seu clã, as pessoas prenderam a respiração. – A Ferida está ficando cada vez maior e... Nesse instante, Lan deixou de prestar atenção a Nicar. Já havia escutado o discurso antes e não desejava sentir de novo a tristeza que tomou conta dela na primeira vez. Além disso, agora sabia que os Errantes não falavam toda a verdade e, portanto, havia deixado de acreditar neles. Quem podia garantir que aquilo não era simplesmente um teatro, que não era uma mentira? O Sequestrador havia reconhecido que não podia fazer nada para consertar as coisas, por isso o melhor seria deixar-se levar e pensar na melhor maneira de encontrar a sua mãe. Lan distinguiu a ruiva no grupo de Caminhantes, mas procurou observar o Sequestrador. Apesar de sua arrogância, a menina tinha consciência de que havia um elo entre eles. De alguma maneira, todo o ocorrido havia afetado os dois igualmente. Por mais que não gostasse da ideia de trabalhar com ele na estufa, Lan convenceu-se de que aquela seria uma boa oportunidade para interrogá-lo e, quem sabe, até para pedir conselhos. Algo que havia cado claro era que os Errantes sabiam muito mais do que admitiam e que, se quisesse rever seus amigos, aliar-se a um deles seria vantajoso. O menino continuava parado. Lan sabia que, apesar de o Sequestrador não concordar com as ideias do Guia, ele se esforçava para interpretar o papel de Errante comprometido com a causa. A menina semicerrou os olhos para ver melhor e então observou os cabelos escuros, as roupas desengonçadas que lhe davam um ar desleixado, seu pescoço​, comprido como o de um cisne... De repente, escutou a voz dele sussurrando em seu ouvido: “Pare de olhar para mim”. Lan cou corada. Ele estava fazendo aquilo de novo! Como era possível que sussurrasse em seu ouvido estando tão longe? Como podia ter percebido que ela o observava? Engoliu em seco e abaixou a cabeça para disfarçar e não demonstrar que estava morrendo de vergonha. Depois, ngiu que estava interessada no que Nicar dizia e cruzou as pernas. – Terrível, é terrível... – murmurava Embo sem parar. O Mestre Nicar terminou seu discurso e, por m, sentou-se. Os habitantes de Rundaris continuavam em silêncio, tentando assimilar a informação. A luz banhava o espaço, cerceando os ânimos. As estrelas continuavam escondidas. O calor aumentava mais e mais. De


repente, uma enorme coluna de água surgiu com forte pressão entre os moinhos de quartzo. Ninguém prestou atenção, mas Lan levou um susto. – É o gerador – disse seu companheiro. – O maior gêiser da montanha desperta diversas vezes por dia, ativando a bomba hidráulica que... A menina parou de escutar o que o senhor dizia. Seu coração continuava‐ batendo depressa. “Pare de olhar para mim”, relembrou. Pouco a pouco, as pessoas zeram exatamente as mesmas perguntas que as de seu clã: o que tinham que fazer para se proteger? Como podiam evitar que a Ferida piorasse? E todos tiveram as mesmas respostas. Para Lan, parecia que os Caminhantes da Estrela haviam se transformado nos mensageiros do horror. Anunciavam que o mundo ia acabar e que ninguém podia impedir. As pessoas começaram a car em pé, pesarosas. A festa havia terminado antes da hora e todos queriam voltar para casa o mais rápido possível. Em Sálvia, as pessoas organizavam todos os tipos de bailes e festejos, e tinha certeza de que uma cidade como Rundaris também teria todos os tipos de atividades preparadas; mas a tristeza havia tomado conta dos moradores. A história se repetia. Não havia nada a comemorar. Um troar soou a distância. – Lan! – alguém gritou. A menina olhou para os dois lados. – Laaaan! – gritou alguém outra vez. – Mona... – murmurou Lan. – Finalmente encontrei você! – comemorou a menina. – Hahaha! – riu enquanto abraçava a amiga. – Mooona! – gritou, com lágrimas nos olhos. A menina apertou a amiga com tanta força que quase a deixou sem fôlego. – Pensei que você tivesse morrido – disse ela. – E eu pensei que você tivesse se perdido. Um relâmpago tomou conta da cratera, alterando o ritmo de luz marcado pelas hastes de quartzo. – Tem notícias da minha mãe? – apressou-se a perguntar, segurando seus ombros com firmeza. A menina desviou o olhar e negou com a cabeça. – Sinto muito... eu me perdi com a senhora Orlaya e Priez, o fortão; mas não se preocupe, com certeza a sua mãe está viva. Logo, logo vai encontrá-la – tentou consolá-la.


Lan sorriu, agradecendo o carinho, e depois olhou de novo em seus olhos. – Sinto muito, eu... sou uma mal-educada. Nem perguntei como você está. – Estou muito bem – respondeu, levantando as sobrancelhas. – Já me curei totalmente e cuidaram muito bem de mim aqui. Esta cidade é muito acolhedora, não acha? Lan percebeu naquele momento que a amiga ngia. Mona sempre procurava ajudar, era uma menina muito solícita; escondia seus sentimentos para não afetar os outros, ainda que, às vezes, precisasse ser consolada. A menina abraçou a amiga de novo, dessa vez com carinho, e disse: – Também vamos encontrar os seus pais, Mona. Eu prometo. Um último trovão anunciou a tempestade. Mona começou a chorar, mas suas lágrimas confundiram-se com as gotas da chuva e Lan não percebeu. – Chuva ácida! – exclamou Embo. – Rápido, meninas, temos de nos proteger imediatamente – , começando a caminhar apressado. Os moradores de Rundaris abriram os guarda-chuvas metálicos rapidamente, transformando a multidão em um amontoado de pessoas repleto de círculos brilhantes. Mona cobriu a cabeça com sua linda capa e disse: – Preciso voltar. Não quero deixar a senhora Orlaya preocupada. Lan concordou, fascinada com a força de sua amiga. – Continuaremos em contato, certo? – gritou enquanto caminhava entre as pessoas. A menina fechou os olhos da mesma forma que na caverna, sentindo as gotas escorrerem por seu rosto; a chuva ardia em contato com a pele e tinha cheiro de enxofre. Aquele era um dos maiores inconvenientes da proximidade de um vulcão. Quando abriu os olhos de novo, as pessoas de sua la tinham desaparecido e diante dela só estava o Sequestrador, completamente molhado. – Fique com ele, não preciso – disse, oferecendo um guarda-chuva. – Obrigada – respondeu, um tanto envergonhada. Sem mais palavras, o menino deu a volta e caminhou, evitando a ​multidão. Lan abriu o guarda-chuva e observou as hastes pela última vez. O céu estava encoberto. Com uma luz estranha. Um eco perturbador. Caiu a chuva ácida, os Errantes tinham voltado a corroer uma cidade com palavras envenenadas. E então, criou-se um dilema: valia a pena advertir as pessoas de que o Linde estava morrendo ou seria mais nobre esconder isso, para que continuassem vivendo na ignorância, ​porém ​felizes, até o fim?


Couraças

L

an acordou com os primeiros raios de sol. Apesar de estar feliz por ter voltado a dormir em um quarto próprio, com uma cama muito mais macia do que os colchões improvisados dos Errantes, demorou muito tempo para pegar no sono. Apesar de não saber o que aconteceria no resto da jornada, ela se sentia pronta para enfrentar seu primeiro dia de trabalho. Enquanto se preparava, a lembrança da noite anterior utuou em sua mente como se fosse um sonho: o quartzo, os moinhos, os Jaspeados, Mona, a chuva ​ácida... “Pare de olhar para mim”. – Acordem, preguiçosos! – escutou Embo gritando pelo caminho. Lan cou em pé com di culdade, aproximou-se de um espelho de corpo inteiro e se olhou com estranheza. Não havia prestado atenção a seu aspecto desde que a Quietude se rompera. Os obstáculos enfrentados nos últimos dias haviam causado marcas: seus cabelos estavam embaraçados e, ao ver as fortes olheiras sob seus olhos e os vincos nas bochechas, podia deduzir que havia perdido um pouco de peso. Ainda assim, sentia que seus braços e suas pernas continuavam em forma, e não havia perdido nem um pouco de sua vitalidade. Inspirou com força, enchendo os pulmões como se fosse possível se desfazer de todo o pessimismo e encher-se de energia. Quando se sentiu um pouco mais disposta, decidiu vestir as roupas que haviam deixado aos pés da cama e enfrentar o primeiro dia naquele local estranho. A vestimenta era formada por uma camiseta regata, calça cor de terra decorada com detalhes metálicos e coturnos com proteções. A vestimenta de Rundaris também aproveitava a abundância de metais. Enquanto prendia o cabelo em um rabo de cavalo alto, lembrou que Mona gostava de brincar de fazer penteados e que às vezes colocava enfeites em seu


cabelo. Queria novamente encontrá-la. Passar uma tarde a sós com a amiga, como antes. Além disso, com certeza naquela cidade havia enfeites e outros tipos de acessórios. Pensando assim, saiu do quarto sorrindo, em busca de... “Chegou tarde”, sussurrou o menino do outro lado do caminho. – Ah! Pare de fazer isso! – disse ela, irritada. O Sequestrador riu com malícia e depois os dois se encontraram no centro da estufa, onde Embo os esperava com todos os tipos de ferramentas de poda e um par de arnês. – Espero que você não tenha medo de altura, jovenzinha. – De jeito nenhum – disse, recordando-se de quando corria nos telhados em Sálvia, com seu amigo Nao. – Então, prepare-se, hoje vamos comprovar o estado das plantas do nível treze e depois... – interrompeu a si mesmo. Lan não ignorou a expressão do menino, como se soubesse exatamente o que o velho estava a ponto de dizer, e isso o aborreceria mais do que qualquer outra coisa no mundo. – Depois, o que faremos? – Bem... no momento, vamos nos concentrar no nível treze – mudou de assunto rapidamente. – É o mais alto – explicou Embo. – Veri caremos se esse último tratamento surtiu efeito antes de recolher algumas amostras. Tome, estas são para você – disse ele, oferecendo a ela óculos que ​pareciam mecânicos. – Tem lentes gradativas, visores polarizados com este anel de enfoque, você pode... Enquanto Lan escutava as instruções do senhor, olhou de canto de olho para o Sequestrador, que havia se afastado alguns metros e já estava segurando o arnês. Em seguida, Embo testou os fechos dos equipamentos e depois os prendeu a uma série de cordas elásticas. – Isso promete – disse ela, observando, maravilhada, a vegetação do último nível. – Não que muito ansiosa, vamos ver se você não vai cair – respondeu, chamando sua atenção. – Olha, não é a primeira vez que vou subir em uma árvore, sabe? Além disso, entendo um pouco sobre plantas e... Em princípio, o menino a ignorou conscientemente e deu um salto bem alto. – É sério, seu bobo – queixou-se Lan, irritada. Embo sorriu ao observar como os dois jovens lidavam com as árvores. Sem dúvida, aquele sistema de cordas, elásticos e arneses foi uma invenção muito


prática. Lan não demorou a escolher sua primeira vítima: um sândalo muito grande. Depois, escolheu a tesoura adequada e começou a trabalhar com muito afinco. – Puxa! Você leva a sério, não é? – perguntou o menino, da copa de outra árvore. – Eu gosto das plantas – respondeu de modo incisivo, ainda um pouco chateada por ter sido ignorada. – Eu também. – Sei... – disse, desconfiada. – Então por que parece estar fazendo um sacrifício? – Eu disse que gosto de plantas, não que sou apaixonado por cuidar delas. – Sei... você é uma das pessoas que gostam de encontrar tudo pronto, não é? Um senhorzinho – disse, irritada. – Na verdade, não – respondeu, seguro de si mesmo. – O que acontece é que acho que os experimentos que meu pai faz são uma perda de tempo. – Experimentos? Que experimentos? – ela cou curiosa. – Bem, não sei do que se trata, mas pelo menos o seu pai tenta, sabe? O rapaz olhou para ela com estranheza e, apesar de não admitir, sentiu-se ofendido. – Deixa pra lá... você não entenderia. É muito complicado para uma menina de povoado como você. – Ah, você está passando dos limites! – advertiu ela. O menino sorriu, parecia se divertir quando conseguia tirá-la do sério. Lan revirou os olhos e depois decidiu se esconder atrás dos galhos para evitar olhar para ele. “Irritadinha”, ele sussurrou de novo. – Pare de fazer isso! – Lan ordenou. Passaram a manhã toda trabalhando; iam de uma árvore para outra, recolhendo amostras, analisando espécies, podando e regando. Apesar de ser um trabalho cansativo, era o ideal para Lan distrair a mente. Além disso, aquele lugar fazia com que ela se sentisse em casa, quando cuidava para que tudo estivesse em ordem no Bosque dos Mil Lagos. A menina observou o Sequestrador a distância; graças aos óculos que Embo havia entregado a ela, conseguia apreciar de perto objetos que estavam muito longe. O menino parecia estar concentrado em sua tarefa, provavelmente levava as coisas mais a sério do que dizia. Ali dentro fazia tanto calor que o menino se vira obrigado a trocar as ​r oupas folgadas por uma camiseta regata. Lan observou


que ele tinha um corpo invejável. Provavelmente, a maioria dos Caminhantes estava em excelente forma, já que, no m das contas, não faziam nada além de caminhar de um lado para outro e enfrentar as condições mais extremas. Às vezes, tinham de escalar montanhas, subir em árvores, sair à caça ou carregar produtos ​pesados. Sem dúvida, era um povo muito ativo. O menino olhou para a frente, mas Lan foi su cientemente rápida para disfarçar. Nenhum sussurro, ele não a havia flagrado. Continuaram trabalhando até que O Verde surgiu do nada, flutuando no ar. – Mudança de turno. – O quê? – Vamos, jovem, você merece um descanso – disse o homem. Lan observou o pai do Errante com atenção. Estava usando roupas menos solenes e assim parecia muito jovial. Era um tipo estranho, olhava para as pessoas como se estivesse pensando em outras coisas; parecia viver em seu próprio mundo e prestava atenção apenas para conversar. – Sim, claro – concordou a menina, secando o suor da testa. Lan embainhou a tesoura no cinturão de trabalho como se ela fosse uma espada. O menino elogiou sua agilidade, e ela sorriu com ar de superioridade. Depois, colocou as últimas amostras que tinha colhido nos contêineres e começou a descer lentamente, mas a perna se enroscou e a descida foi um pouco menos elegante do que planejou. – Genial... – disse para si mesma, ao ver que havia cado de cabeça para baixo a poucos metros do solo. – Nossa! Pensei que você tivesse dito que já tinha subido muitas vezes em árvores – disse o menino. Lan mostrou a língua para ele com desprezo, estava claro que aquelas palavras não passavam de mais ironia. – Ajude-me a descer – reclamou a menina, enquanto observava o menino afastar-se tranquilamente. – Pedi que me desça! – continuou reclamando, indignada. – Vou pensar... – ngiu ele, coçando a barba. – Não, acho que vou deixar você pendurada mais um tempo. Para diminuir um pouco sua ​presunção. – Presunção?! Sim, claro. E quem diz isso é o senhor perfeito? – ela o recriminou. Naquele instante, Lan compreendeu que a tentativa de ofendê-lo também podia ser vista como um elogio. – Hahaha! Obrigado. Não sabia que você me achava perfeito. Vou buscar um


espelho para ver como sou perfeito – riu com bom humor enquanto se dirigia a uma das bicas das balsas para refrescar o rosto. Lan corou; não sabia ao certo se o sangue havia descido para a sua cabeça ou se estava realmente morrendo de vergonha. – Tire-me daqui – pediu ela, agora mais relaxada. O Sequestrador aproximou-se dela e perguntou com voz baixa: – Como se diz? De repente, Lan tentou segurá-lo pelo pescoço, mas o menino se afastou rapidamente e advertiu: – Não me toque – pediu com o rosto sério, mostrando que não estava brincando. A menina olhou para ele com intensidade, mas instantes depois percebeu que ele tinha razão. Havia se esquecido totalmente de que ele era um Errante. – Por favor – disse, com raiva, dando-se por vencida. – De naaaaada – respondeu ele, sorrindo enquanto cortava a corda com uma das tesouras. Lan caiu no chão. Rapidamente cou em pé e tentou recuperar o senso de direção. – Convencido – disse. – Eu escutei! – gritou ele, a distância. Enquanto isso, O Verde continuava trabalhando em um de seus exemplares preferidos. Havia presenciado toda a cena e, apesar de se manter fora da confusão, sorriu, divertindo-se com a vitalidade ​da​queles jovens. Depois de um breve intervalo, no qual aproveitaram para comer ​alguma coisa, Embo deu a eles uma nova tarefa: dessa vez, fora das instalações da estufa. – Substratos? – perguntou com curiosidade. – Sim... é... adubo – explicou o velho, desviando o olhar, como se tentasse esconder alguma coisa –, alimento para as plantas. A menina tentou interpretar sua expressão, mas não conseguiu adivinhar suas reais intenções. – Bem – aceitou. – E o que, exatamente, devo fazer? – Oh, não precisa se preocupar. Na verdade, é muito simples. Você já colheu cogumelos alguma vez? – Lan assentiu, mas descon ou de que ali havia algo escondido. – Na realidade, não é muito diferente. Embo caminhou até um dos armários de ferramentas, pegou uma espécie de couraça oxidada e levou até ela. – Mas... o que é isso?


– O equipamento de trabalho. – Sério? Preciso colocar isso? – Se eu faço, você também tem que fazer – disse o homem, pegando um segundo equipamento, esse ainda mais antigo que o seu. O velho a ajudou no preparo. Instantes depois, vestia uma espécie de escafandro de metal que mais parecia uma armadura de combate do que um equipamento de trabalho. Com todo aquele peso, era difícil coordenar​ uma perna com a outra, e seus braços eram obrigados a suportar peso demais para se mover com agilidade. – Não vou conseguir pegar cogumelos com isto – queixou-se ela, mexendo-se com dificuldade. Para sua surpresa, o menino também apareceu usando o mesmo equipamento. – Não se preocupe, não vamos colher cogumelos – disse, deixando o velho surpreso. O Errante usava uma armadura parecida, porém lhe caía feito uma luva; parecia feita com algum tipo de material muito leve e muitas de suas partes brilhavam como se fossem metais nobres. Todas as peças pareciam muito bem ajustadas a seu corpo, como se tivessem sido esculpidas sob medida, e a parte de cima tinha um design muito mais estilizado, com o visor de âmbar polido e o pescoço muito bem ​protegido por uma peça de couro. – Não é justo! – exclamou, indignada. O menino deu uma forte gargalhada e, depois, Embo se intrometeu: – O seu é um modelo antigo. É o que temos para os aprendizes – tentou explicar. – Se tiver tempo suficiente, pode fazer um para você. – O meu é um desenho feito sob medida e muito mais moderno – disse o menino –, mas não se preocupe... sua carapaça vai protegê-la. – Carapaça? – olhou para ele com desaprovação. – Não sou uma tartaruga, sabia? – Hahaha! Permita que Embo alivie um pouco o seu peso – disse, indicando algumas das partes mais pesadas e volumosas. Rapidamente, o senhor se aproximou da menina e começou a ajustar a armadura, seguindo as indicações do menino, para aliviar um pouco do peso. – Melhor assim? – Na verdade, sim – suspirou, aliviada. – Pelo menos, agora, posso exionar os joelhos – disse. – Bem, então vamos. Não temos tempo a perder – o menino a ​apressou.


Quando os dois saíram da estufa, O Verde desceu do nível treze e dirigiu-se a seu ajudante, tomado pela curiosidade. – Corrija-me se eu estiver enganado, Embo. Meu filho foi buscar ​s ubstratos? – Sim, senhor – respondeu, surpreso. – Tem certeza? – insistiu. – Substratos? Não entendeu mal em que consiste a tarefa, nem... – De modo algum – interrompeu ele. – Nossa! – exclamou, incrédulo. – Se não me engano, utilizou esse equipamento de trabalho apenas uma vez e jurou que nunca mais o usaria. – Pois é, mas o colocou. – Interessante... – disse o homem, coçando a barba. Lan e o Sequestrador percorreram um dos caminhos mais complicados até chegarem ao outro lado da montanha, onde se estendia uma enorme área de água contaminada pela chuva ácida. – Como vamos chegar ao outro lado? – perguntou a menina enquanto tentava encontrar uma solução sozinha. – Atravessaremos o alagamento – respondeu o Errante, como se fosse algo muito evidente. – Alagamento? – estranhou Lan. – Nossa! Eu diria que é um... Antes que pudesse terminar a frase, o Errante já estava entrando na água, deixando sua acompanhante perceber que a água lhe cobria até os joelhos. – Certo, você ganhou – deu-se por vencida. – Eu pensei que fosse muito mais profundo – disse enquanto caminhava. O Sequestrador a acompanhou com o olhar e depois disse: – Apesar da roupa, tenha cuidado: a água é ácida. Lan agradeceu pelo conselho e logo entrou no lago. Começaram a caminhar com cuidado, descobrindo que o líquido estava em uma temperatura muito alta. A água, com um tom verde da pátina cáustica, borbulhava, mostrando que, não fosse pelas couraças, seriam atingidos pela acidez do mesmo modo que os animaizinhos que utuavam em avançado estado de decomposição. – Que nojo – murmurou a menina. O Sequestrador olhou para ela, divertindo-se, e continuou abrindo caminho pelo grande lago até chegar ao outro lado. Quando chegou à borda, tirou uma das luvas e pegou um punhado de terra para analisar de perto. – Este é um bom lugar para encontrar substratos.


A menina o observou preocupada e disse: – Então, só precisamos pegar a terra? – Não. Claro que não. Isso seria fácil demais, não acha? – Riu alto, apontando para a ladeira que tinham adiante. – Temos de escalar. – O quê? – Lan assustou-se. – Eu... não sei escalar. – Claro que sabe, você passou o dia pulando de uma árvore para outra. – Mas isso é diferente. Muito diferente. Tínhamos arneses, cordas elásticas... e muitas outras coisas – disse. O menino olhou para ela xamente e, por alguns instantes, Lan considerou a possibilidade de que não estava entendendo algo. Mais uma vez, uma coisa bem óbvia para o Errante. – E para que acha que serve essa roupa? – perguntou, por fim. Lan calou-se, continuava sem entender. Em seguida, o Sequestrador girou algumas peças de sua couraça, ativando garras retráteis que até então estavam escondidas sob as luvas, botas e joelheiras. – Puxa! Eu também tenho isso? – perguntou ela, surpresa. O Errante apontou para uma das saliências do peito e ela não hesitou em apertá-la. No mesmo instante, apareceram as garras, estridentes como um garfo raspando no prato. – Hum... Estão meio enferrujadas. – Pois é – Lan disse. – Espero que aguentem! O menino abriu caminho para a amiga e depois ensinou a ela como prender as pontas na rocha. – Como pode ver, não é nada complicado. Lan assentiu e depois começou a subir sem muita con ança. Sentia-se como um urso subindo pelo tronco de uma árvore. Ainda assim, precisava admitir que, apesar de a roupa não passar de um monte de tralhas velhas, sua robustez lhe dava uma sensação de segurança. O Errante a seguia de perto, vigiando todos os seus passos. Quando estavam longe o su ciente do solo para sofrer lesões fatais no caso de uma queda, o menino parou e chamou a atenção de sua acompanhante. – Ei, veja isto. Está vendo? – Não vejo nada – respondeu Lan. – Normalmente, deveríamos subir poucos metros, mas os vários desprendimentos esculpiram a ladeira e está cada vez mais difícil conseguir substrato. Preste atenção, a parede da rocha mudou, sua textura está... ​diferente. A menina analisou a parede e comprovou que, de fato, a rocha rme pela qual


tinham subido estava agora coberta por enormes placas de pedra porosa. – Há pequenos furos – observou. – Sim, aí é onde ficam escondidos os zímbalos – explicou. – Zímbalos? O que é isso? – Os insetos que separam o nosso substrato. Lan ficou pensativa por alguns instantes, até que, por fim, ​comprendeu. – Separam? Está querendo dizer que... – Exatamente – ele a interrompeu. – Vamos pegar excrementos –con rmou, sorrindo e divertindo-se. A menina revirou os olhos e observou a parede de novo, dessa vez torcendo o nariz de modo desagradável. – É isso o que o Embo escondia... – Vamos, não seja tão fresca! Parecem corais. – Sério? Nunca vi um coral. E não acho que cheire tão mal! O menino aproximou-se dela, procurando não tocá-la, e mostrou um dos pedaços que havia acabado de retirar. – Está vendo? Ele se fossiliza muito depressa. Lan analisou o substrato, que parecia um fragmento de carbono azulado, repleto de furinhos e com centenas de cristais pequenos brilhando em sua superfície. – Está grudado na rocha. Só é preciso arrancá-los com as garras e ​g uardá-los na parte traseira de sua roupa. Lan veri cou que sua couraça também tinha o tal compartimento e depois começou a procurar o material nos diversos cantos. – Vendo dessa forma, Embo tinha razão: não é muito diferente de colher‐ cogumelos – brincou a menina. O menino sorriu de volta, e os dois continuaram com a trabalhosa​ ​tarefa. – Segundo meu pai, é o melhor adubo que existe – explicou. – Ele disse que é uma espécie de “multiplicador da vida” – continuou, com tom misterioso. – E o que isso quer dizer? – Não tenho nem ideia – deu de ombros. Logo escutaram um ruído, como se uma tempestade distante se aproximasse com rapidez; a parede começou a tremer ligeiramente. – Um desmoronamento! Cuidado! – gritou ele. Mas, naquele momento, Lan já havia recebido uma rocha enorme na couraça que protegia sua cabeça. – Você está bem? – perguntou ele preocupado.


– Sim, creio que... sim – respondeu ela, um tanto confusa. Uma nova tempestade de rochas caiu sobre a armadura da menina, fazendo com que ela perdesse o equilíbrio. – Laaan! – gritou o Errante, assustado. A menina conseguiu agarrar-se a uma das saliências da parede, mas continuava meio aturdida. – Aguente firme! As pedras continuavam se soltando da ladeira. Lan franziu o cenho, tentando olhar para baixo. Tinha medo de rolar naquele barranco; a saliência onde estavam podia cair a qualquer momento. Assustada, abriu os olhos de novo, comprovando que as garras de sua couraça haviam ​deslizado alguns centímetros. – Não... não vou aguentar... muito... mais – a rmou por m, com a respiração entrecortada. Estava perdida, o peso da armadura a impedia de saltar até onde estava o menino, e ele não podia segurá-la, por ser um Errante. As garras deslizaram mais alguns centímetros. A saliência não demoraria a ceder. – Não, não, não – disse ela. – Ei! Olhe para mim! – gritou o menino, tentando mantê-la concentrada. – Aguente! Tudo bem? Não vou permitir que... – E, sem terminar a frase, começou a balançar de um lado a outro. Logo, com agilidade de um felino, soltou as garras retráteis e saltou até conseguiu car cravado a poucos palmos do lugar onde ela estava. – Como você...? Para sua surpresa, o menino a segurou pela cintura com um rápido movimento e a apertou contra o peito, segurando-a com força. Instantes depois, a saliência desmoronou montanha abaixo. Ele acabava de salvá-la de uma morte certa. As batidas de seu coração quase a impediam de escutar o estrondo das rochas no chão. Não sabia se estava assustada por ter estado a ponto de despencar ou se porque se viu perto, muito perto, de um Errante. Ela havia se livrado da queda, mas agora tinha certeza de que morreria devido ao contato com aquele menino. Suspirou fundo, preparando-se para sentir a mesma dor horrível que tomara conta de seus músculos na ruptura de Sálvia. – Você está bem? – perguntou o Sequestrador com ar de preocupação. “Não sei”, pensou. Mas seus lábios não responderam. A menina esperou o arrepio, que dessa vez não chegou.


– Abra os olhos, Lan, não aconteceu nada – ele tentou tranquilizá-la. Enfrentando o medo, ela olhou para ele. Apesar de seus corpos estarem próximos, sua pele não estava em contato com nenhum ponto do corpo do Errante; apenas algumas peças da armadura estavam encostadas umas nas outras. Lan viu-se presa entre a parede e a couraça do menino. Seus pés descansavam sobre os dele. Sentiu alívio. Permaneceram assim, presos um ao outo, até conseguirem se ​r ecompor. – Vou subir. Esta ladeira não suportará nosso peso durante mais tempo – pensou o menino em voz alta. – Você não tem que fazer nada, apenas segure-se em mim, tudo bem? Lan não ousou discordar, então assentiu e logo se agarrou bem forte às costas dele. O medo desapareceu de repente; agora, sentia-se protegida, apesar de saber que, se não fossem as couraças, teria morrido. “Calma”, ele sussurrou em seu ouvido, fazendo uso de seu estranho ​poder. Alguns minutos depois, chegaram à parte de cima. Lan sentiu-se agradecida ao fato de o Sequestrador estar em boa forma, já que não tivera di culdades para carregá-la. Ela se recompôs e tentou se acalmar enquanto respirava com dificuldade. O menino sentou-se a seu lado e disse: – Parecido com colher cogumelos, não é? – brincou. Lan riu, quase sem forças, e impulsivamente desviou o olhar. Não sabia como agir, sentia-se desconcertada. Pouco a pouco, foi mudando a concepção que tinha dele. Já não era o mesmo Errante que uma vez considerou um traidor; agora, o menino que estava a seu lado com o olhar perdido no horizonte era alguém importante para ela. Por m, compreendeu tudo: havia quebrado as regras para salvá-la na ruptura e era o único Errante que havia ousado revelar o segredo do mapa. Seria ele valente ou fazia aquilo de modo inconsciente? Lan não sabia; ainda precisava da resposta de muitas outras perguntas, mas sentia que precisava agradecê-lo. Como um amigo ou, no melhor dos casos, o mais parecido a um amigo que um Errante podia ser para uma moradora de Sálvia. Ela observou a vista, que dali de cima, era magnífica. As montanhas se estendiam esplendorosas ao seu redor, donas da paisagem agreste. Respirava-se tranquilidade. As crostas formavam uma curiosa sequência parecida com a espinha de um réptil, e as nuvens de gases emanados pelo vulcão se limitavam a voar baixo, cobrindo a cidade de Rundaris quase por completo.


Tentou imaginar um mundo onde imperasse a Quietude, onde uma pessoa não se perdia nunca, por maior que fosse o caminho, e os povoados podiam crescer sem nenhum medo de limites ou fronteiras. Um lugar utópico, onde as famílias e seus amigos pudessem percorrer grandes distâncias apenas para se cumprimentarem, sem correr nenhum tipo de risco. A menina perguntou-se como havia chegado ali. Por que as coisas não podiam ser como eram na infância? Veria sua mãe de novo? Será que Nao estava vivo? Talvez o menino tivesse razão... Seria tarde ​demais para o Linde?


Os Caminhantes da Estrela

P

ara voltar à estufa, decidiram seguir por um dos diversos caminhos que rodeavam a montanha. Apesar de os dois não estarem feridos, o cansaço havia começado a prejudicar sua disposição, reduzindo consideravelmente a velocidade com que avançavam. Chegaram às instalações ao pôr do sol. O dia havia sido longo, mas se sentiam animados por terem cumprido o objetivo e porque o incidente em que Lan quase perdera a vida havia tido um nal feliz. Embo dirigiu-se a eles, aliviado, dandolhes calorosas boas-vindas. – Vocês voltaram! – comemorou. – Já estava começando a car preocupado; essas montanhas são muito traiçoeiras – murmurou, aliviado. – A verdade é que vocês me deram um baita susto! O menino colocou o equipamento no chão e disse: – Não se preocupe. Sofremos um pequeno acidente, mas não houve nada de muito grave. O senhor assustou-se, olhando rapidamente para a menina. – Oh, não se preocupe. Eu voltei inteira – Lan assegurou, procurando acalmálo. Embo suspirou e então ergueu as mãos, emocionado. – E os substratos? Conseguiram recolher o suficiente... O Errante colocou o conteúdo recolhido em uma caixa de ferro, deixando o senhor surpreso. – Incrível! Com essa quantidade, poderemos encher os diferentes níveis durante meses – disse ele, comemorando. – E não é tudo. Ela também fez um bom trabalho – reconheceu o ​menino. – É mesmo? – perguntou, com orgulho.


Lan procurou a aba certa de seu equipamento para abrir o compartimento, mas não conseguiu encontrá-la. Por m, o Errante aproximou-se e apertou o botão por ela. – Hahaha! – riu o senhor, emocionado. – Que maravilhoso! – exclamou enquanto segurava um dos substratos para analisá-lo de perto. O rapaz permaneceu a seu lado. Lan olhou para o rosto dele enquanto conversava com o senhor. Era tão alto que nem na ponta dos pés ela conseguiria car da mesma altura. Ficou olhando com ar pensativo; eles não tinham trocado palavras desde que decidiram retornar à estufa. O Sequestrador soltou algumas das peças de sua couraça. Tirou as luvas e os protetores de braço. Então, perguntou a Embo: – Onde está o meu pai? O senhor parou de sorrir e respondeu: – A verdade é que não sei... – admitiu, dando de ombros. – Ele partiu há horas para terminar um experimento em um dos jardins de fora, mas ainda não retornou. O rapaz passou a mão na mandíbula, em um gesto pensativo. – Há jardins exteriores? – Lan perguntou, estranhando e lembrando que nos arredores da estufa não havia nada, apenas terra e rochas. – Não exatamente. Nesta montanha, há pequenos bosques, redutos de vegetação que, graças a sua localização estratégica, conseguem subsistir apesar do clima tão pouco favorável. Às vezes, O Verde utiliza-os para fazer suas pesquisas – explicou o senhor. O menino tirou o restante da armadura e encaixou as peças até formar uma espécie de cubo que deixou no chão. – Estou cansado, vou tomar um banho. Embo, por favor, avise-me quando meu pai chegar. – Claro que sim – assentiu. Lan fez a mesma coisa, mas não conseguiu tirar sua couraça, que era desajeitada demais. – Deixe-me ajudá-la – ofereceu-se o senhor, de modo amável. A menina observou cabisbaixa as armaduras amontoadas no chão. Por mais estranho que fosse, ela sentia pena de ter de tirá-la. Ao cair a noite, Lan saiu de seu quarto, à procura de ar fresco, já que ali dentro o calor úmido sufocava. Foi até o mirante, que cava no telhado, e se sentou sobre os painéis de âmbar durante um bom tempo para contemplar o horizonte, que mudava de forma de vez em quando. Às vezes, era possível ver, a distância,


uma cordilheira que se transformava em enormes blocos de gelo, ou um belo mar azul estendendo-se até se transformar em um deserto repleto de dunas. A menina pensou que, às vezes, aquela paisagem desconcertante e mutante podia ser muito linda. Em Sálvia, nunca tivera a chance de presenciar algo como aquilo. O máximo que conseguia ver do telhado de sua casa eram as estrelas e o Bosque de Mil Lagos, mas nunca o horizonte de modo tão claro, já que sua mãe não permitia que ela se aproximasse demais do Limite Seguro. No entanto, naquele momento estava em uma montanha que dava a ela o privilégio de contemplar as constantes rupturas da Quietude às quais o Linde era submetido. Lan decidiu deitar-se da mesma maneira que fazia no telhado de sua casa e depois passou a observar as estrelas. Por um lado, sentia-se orgulhosa por ter sobrevivido ao deserto, ainda que com ajuda, por ter enfrentado uma longa viagem cheia de di culdades ao lado dos Errantes e, por encarar uma cidade desconhecida que não parava de surpreendê-la; mas, por outro, sentia-se extremamente sozinha. A toda hora, a todo minuto e a todo segundo tinha de lutar por sua vida, por seu futuro, por sua família. Não podia relaxar, não podia se entregar ao cansaço de tudo aquilo. Lembrou com carinho das aventuras que vivera ao lado de Nao, de quando tomavam banho de sol depois de um mergulho no lago, das experiências que imaginaram que viveriam quando ele se tornasse um Corredor e ela o acompanhasse em algumas de suas viagens, transformando-se, assim, em rebeldes que não temiam as fronteiras, seres livres. No entanto, sabia que aquilo era coisa de criança e que agora tinha de enfrentar a realidade. – Por que está tão séria? – escutou o menino sussurrando em seu ​ouvido. – Pare de fazer isso – ela o recriminou, como sempre. – O quê? – respondeu ele, muito próximo de seu ouvido. Pela primeira vez, o Sequestrador havia sussurrado em seu ouvido de verdade. Ela estava tão distraída que não percebeu que ele estava a poucos centímetros dela. – Nada, estou bem – respondeu, com poucas palavras. – Mas não parece – contrapôs ele, enquanto se sentava a seu lado, ainda mantendo certa distância. – É que... eu poderia ter morrido hoje. O menino observou o rosto dela, como se tentasse entender sua expressão, e então disse: – Não se preocupe, você vai se acostumar.


– A morrer? – perguntou ela, surpresa. – Hahaha! Não, claro que não... vai se acostumar com o perigo. – E por que deveria me acostumar com o perigo? – Porque quando uma menina de povoado, como você, sai de seu clã, começa a entender que o mundo é perigoso. A menina olhou para ele desconcertada, pois suas palavras não ajudavam nem um pouco. Na verdade, apenas aumentavam seu medo. – Você está acostumada a viver dentro de limites muito de nidos – continuou explicando. – Você se sente segura, vive rodeada de todos os tipos de comodidades. – Não é bem assim – respondeu ela. – Sem dúvida, você tem mais comodidade em seu clã do que eu tenho como nômade. – Nisso você tem toda razão. Hahaha! – riu ela, lembrando-se do acampamento improvisado nas cavernas e do prato de lagarto com molho de queijo. A expressão da menina mudou em seguida, e a alegria deu lugar a um gesto de preocupação; pensou consigo mesma: “Perigo...”. – Viver é estar em estado de alerta constante – re etiu o Errante, com o semblante sério, ainda que estranhamente sereno. Por um instante, o silêncio tomou conta do lugar, enquanto os dois analisavam como o horizonte mudava de forma sem parar. Escutaram o som do vento passando pelas estruturas metálicas da estufa e os grilos a distância. Lan pensou em sua relação com o Sequestrador. Estava feliz porque as diferenças entre eles estavam menores e se surpreendeu ao perceber que o rapaz parecia estar gostando de sua companhia. Por m, atreveu-se a interromper o silêncio incômodo fazendo a pergunta, sem rodeios, que se fazia desde o que dia em que se conheceram: – Por que você me tocou? – perguntou mudando sua expressão para mostrar que estava falando sério. O menino abaixou a cabeça com ar pensativo, como se tentasse encontrar as palavras adequadas. Por fim, confessou: – Pelo mesmo motivo de tê-la tocado hoje. Lan olhou para ele com estranheza, tentando entender os motivos pelos quais um Errante se arriscaria a desobedecer uma das regras mais rígidas de seu povoado.


– De toda forma... estava morta – explicou ele. – Eu não estava morta! – rebateu ela. – Claro que estava... – disse ele. – Estávamos chegando a Sálvia e eu havia partido diante da comitiva. Quando a ruptura começou a se manifestar, vi um menino perto do Limite Seguro de seu clã e então decidi ajudá-lo. Queria ajudar sem tocá-lo, mas então você apareceu... Lan percebeu amargura em suas palavras. – Ivar queria ir a seu encontro, mas eu não podia permitir... Nem você nem ele teriam sobrevivido no bosque. Se eu os deixasse ali, as Partículas teriam devorado a mente de vocês, se perderiam para sempre. Por isso eu segurei o seu braço: para protegê-la. Não tinham nada a perder, estavam condenados. Ainda que para isso eu precisasse desobedecer às regras dos Caminhantes, tinha de tentar. – Fez uma breve pausa. – E, se quer saber a verdade, eu não fazia ideia do que ia acontecer. Nunca havia tocado em ninguém! Eu não sabia se sofreríamos uma morte instantânea ou se sentiríamos uma dor forte e progressiva que poderia parar o tempo, mas não tinha outra opção – relembrou, angustiado. – Mas... – E hoje, na ladeira, aconteceu exatamente a mesma coisa. Acha que eu seria capaz de deixar você cair e quebrar todos os ossos? Não. Eu não sou assim. Não sou como eles. Isso não está em minha natureza. Eu tinha consciência de que, segurando você, estaria lhe dando outro tipo de morte muito diferente, mas ainda assim existia uma possibilidade... Talvez a couraça impedisse essa tal maldição. – Maldição? – Bem, para ser exato, não tem nada a ver com uma maldição. – Não entendi. – Existem muitas coisas que você não sabe a nosso respeito – suspirou ele. – Algumas delas, nem eu sei. – Não importa – resignou-se a menina. – De qualquer modo, ​obrigada. O menino sorriu pela primeira vez. Nunca alguém havia agradecido a ele daquela maneira. Sentiu-se bem por dentro, como se tivesse a certeza de ter tomado a melhor decisão. – Você salvou a minha vida – admitiu Lan, olhando para o infinito. Silêncio. Um longo silêncio. – ... duas vezes – completou o Sequestrador. A menina virou-se e fez uma careta para ele, mostrando que havia compreendido a ironia.


– Na realidade, três – corrigiu ela. – Três? – Sim, você também me salvou dos come-terra. Se não fosse por você, com certeza eles teriam me pegado. – Os come-terra? Ah! Você se refere às marmotas do deserto. Hahaha! Bem, na verdade, não foi tão difícil. Eu... só encontrei você desmaiada. Ao escutar o sino de um pastor, meu wimo começou a correr em sua direção. Além disso, esses pobres bichos não são tão perigosos como parecem, pode acreditar. É preciso evitar entrar no caminho deles, o que não é difícil, porque sempre aparecem umas marcas no chão antes de eles ​s ubirem à superfície. – Nossa! – surpreendeu-se Lan. – E eu pensando que você havia travado uma luta feroz com essas criaturas para me salvar da morte... – Sinto muito. Acho que estraguei o encanto, mas se prefere ter essa imagem... Hahaha! – riu o Sequestrador. Lan respondeu arregalando os olhos. – Olha, não é comum que um Caminhante salve a vida de uma humana, mas agora me sinto orgulhoso disso. Acredito que, com o tempo, meu povo possa esquecer de onde viemos. – E de onde você veio? – É uma longa história. A menina mostrou-se ansiosa para descobrir a origem dos Errantes. – Tudo bem, não estou com sono. Pode começar – pediu ela. – Como quiser. É uma história antiga que nos contam quando somos crianças para explicar nossas origens... e a maldição. – Hum... algo parecido com o que Naveen contou sobre uma antiga civilização? – Mais ou menos. Mas já vou avisando que os Caminhantes são a prova viva de que, por mais incrível que pareça, o que vou contar aconteceu de fato – avisou ele, de modo misterioso. Lan acomodou-se sobre uma das vigas e prestou muita atenção. – Dizem que há muito, muito tempo, o Grande Linde, antes chamado de “A Estrela”, era um planeta magní co, repleto de dons e de vida inteligente. Seu céu brilhava de maneira que a luz dos astros empalidecia diante de sua magnitude. Plantas, animais e seres humanos viviam em paz em um lugar lindo, do qual obtinham todo o necessário e onde, ainda mais importante, não existiam as rupturas. Lan abriu os olhos, totalmente interessada.


– Suas artes avançadas proporcionavam a eles uma qualidade de vida sem igual, e suas nações, governadas por reis, estendiam-se de costa a costa de forma arrebatadora, tão extensas que a vista não conseguia enxergar o m. Acantha era o nome da cidade mais próspera sobre a superfície de A Estrela, e nela viviam os seres mais sábios do planeta. Seu rei, o poderoso Pyros, governava com sabedoria aquela grande cidade, incentivando o desenvolvimento das especialidades e técnicas mais avançadas. Dizem que eram capazes de se comunicar a grandes distâncias, que reuniam pequenas doses de energia em contêineres minúsculos, que suas construções se elevavam até quase tocarem o céu e que podiam se deslocar em altas velocidades sobre grandes cavalos de ferro. Muitos até dizem que dominavam as forças da natureza, podendo provocar a chuva, a neve e o sol. Lan prestava atenção a todas as palavras do Errante, como se fossem um presente. Escutava a narração boquiaberta, como uma menina que se deleita com os relatos de um Errante à luz das fogueiras de Sálvia. – Aquela era uma época de paz e prosperidade, até que, um dia, tudo mudou. A Maldição alimentou-se da energia guardada no coração de A Estrela e condenou a humanidade para sempre. Dizem que os Caminhantes provêm dessa cidade, e que foi lá que a primeira e maior brecha que chamamos de “A Ferida” se abriu. Diante do olhar atônito dos moradores, o centro da cidade de Acantha foi abalado, como se um enorme monstro estivesse devorando todas as suas partes sem compaixão, a começar pelo núcleo. A maior parte dos cidadãos morreu no mesmo instante em que o grande aguaceiro surgiu, mas poucas centenas conseguiram sobreviver. De seu interior, o caos começou. Uma espessa nuvem de lampejos prateados amaldiçoou os poucos sortudos que ainda continuaram vivos. Lan levou a mão à boca, assustada. – As Partículas! – exclamou. O menino revirou os olhos, detestava ser interrompido. Em seguida, levou o dedo indicador diante dos lábios para pedir silêncio à menina. Lan abaixou a cabeça envergonhada, disposta a continuar escutando o relato. – Meus antepassados caram desesperados. Procuraram refúgio nas cidades mais próximas, mas elas estavam em um estado deplorável, algumas totalmente arrasadas. Apenas as cidades mais bem preparadas tinham conseguido manter vivos poucos sobreviventes. “Então, o rei Pyros e seus súditos ilustres analisaram a situação com atenção e


concluíram que os lampejos, – as Partículas, – que surgiam da Ferida eram mais perigosos do que qualquer outra ameaça que já tinham enfrentado. Logo compreenderam que presenciar o nascimento da Ferida havia feito com que eles se tornassem imunes a seus efeitos, mas também os havia transformado em seres malditos, em portadores do mal que podia afetar o restante dos seres humanos sadios – disse com voz rouca. – Não podiam permitir isso, por isso...” – Eles os mataram? – exclamou Lan, quebrando a promessa de manter-se calada. – Não, claro que não – negou o menino. – Eles nos marcaram – revelou, mostrando a estrela tatuada no dorso de sua mão. – Mas isso é só um... O Sequestrador pediu silêncio mais uma vez, e depois prosseguiu com seu relato: – Eles nos marcaram com uma estrela para que todos soubessem que deveriam evitar o contato físico conosco. O menino fez uma breve pausa. Apesar de Lan não dizer nada, dava para ver o quanto sofria com aquela história triste. – A Estrela – continuou ele – tinha recebido uma ferida mortal. Seu coração‐ batia mal, e a superfície do planeta sofreu as consequências, rachando suas placas em centenas de pedaços que começaram a se soltar sem ordem nem solução. Os sintomas caram evidentes; em princípio, ainda que com menos frequência, as rupturas da Quietude ocorreram, e com isso... a destruição da maioria das civilizações. Antes que fosse tarde demais, o rei ordenou a seus melhores mestres que desenvolvessem um mapa capaz de decifrar os contínuos deslocamentos e mostrar a forma mutante de seu querido planeta, sem outro m que não fosse localizar de novo a Ferida para criar em seu interior uma cura que alcançaria o centro da Estrela... acabando com os lampejos para sempre. – Cura?! Existe uma cura? – comemorou Lan, com os olhos brilhando. O menino olhou xamente para ela, deixando-a confusa, e depois balançou a cabeça delicadamente. – Não, é apenas algo que diziam no relato – suspirou. – Mas... como acaba a história? – Bom, o m sempre foi um pouco confuso para mim – admitiu, dando de ombros. – Dizem que o rei se prendeu dentro do mapa que os sábios criaram, mas morreu sem ver seu sonho realizado. – Dentro do mapa? Isso não faz o menor sentido! – exclamou ela, confusa, lembrando-se do tamanho e da forma da Esfera, o mapa que os Errantes usavam


para caminhar sobre o Linde. – Eu já disse – insistiu –, é apenas uma história. As esperanças de Lan desapareceram. – Não invente coisas. – Mas... mas... pode ser um tipo de pista, não sei. – Pista. Diga, o que pretende? Salvar o mundo? – brincou. – Deixe que ele continue como está, meu pai já cuida disso. A menina cou calada durante alguns segundos, tentando criar uma teoria à qual se apegar. – De onde surgiu a Esfera? O Sequestrador ergueu uma sobrancelha, surpreso com a tenacidade de Lan. – Hummm... acho que sempre esteve com os Caminhantes. Eles a encontraram há séculos em uma espécie de templo abandonado. Não tenho certeza, isso é algo que o Guia sabe e também seu séquito. Lan balançou a cabeça, decepcionada. – Vamos, assuma de uma vez. No planeta há a fronteira do Cataclisma e estamos presenciando os últimos respiros da vida. Não podemos fazer nada para consertar. – Não pode ser... – negou com a cabeça. – Tem de haver uma cura! Tem! Não é justo, não é! – disse por m, quando encontrou a palavra certa para descrever sua frustração. – Lan, infelizmente, este mundo não é justo para ninguém. Está repleto de perigos e sofrimentos, de ódio, de destruição, de mudanças e imprevistos... de instabilidade. – Mas... temos de... – A vida é assim, totalmente injusta. A única coisa que nos resta é compreender que, cedo ou tarde, tudo chega ao fim. A menina não conseguia reprimir a tristeza e derramou uma ​lágrima de dor. – Não – negou. O menino olhou para Lan e pensou em consolá-la com um abraço. Como podia pensar aquilo? Era impossível! – Meu pai – continuou ele – está empenhado em encontrar uma nova cura. E quer saber? Ele negou sua família e seu povoado para desenvolver algo totalmente impossível – disse, evidenciando certo nível de rancor. – Durante todos esses anos, não conseguiu nada! Limitou-se a cultivar plantas e a inventar muitas coisas inúteis. Como um único homem poderá encontrar uma solução, sem recursos e em condições precárias, se nem mesmo uma civilização


infinitamente superior à nossa conseguiu? – perguntou. Dessa vez, foi Lan que sentiu o desejo de segurar a mão dele para aliviar sua raiva, mas precisou controlar-se. – No começo, eu o admirava por isso, mas com o tempo descobri que de nada adianta tentar mudar as coisas, e que o melhor a fazer é limitar-se a viver em paz, sem pensar no dia de amanhã. A menina olhou para o rosto do Errante, que pareceu ter cado mais sério, com traços mais maduros. Em seguida, abaixou o olhar para a mão dele e analisou com atenção a estrela tatuada ali. – Eu... – começou ela, enquanto pensava sobre tudo o que ele havia dito. – Acho que... De repente, o menino empalideceu e seu corpo cou rígido como um bloco de gelo. Abriu os olhos, e então Lan viu que, ao redor de suas pupilas, muitos pontos luminosos começaram a brilhar e moviam-se como estrelas à deriva, flutuando no oceano. – O que houve? – perguntou impressionada, colocando-se rapidamente em pé para ajudá-lo. – Estou intoxicado – explicou ele. – As Partículas vivem dentro de mim. Meus olhos brilham porque elas detectaram um número maior do que o normal. – E o que isso signi ca? – perguntou, assustada, lembrando que seu olhar também brilhou na primeira vez em que o havia visto em Sálvia. O menino cou em pé e observou o horizonte, esperando ver mudanças na paisagem que comprovassem o inevitável. – Que a Quietude vai se romper – disse simplesmente. Lan respirou profundamente, tomada pelo pânico, enquanto se maravilhava com o esplendor daqueles lindos olhos cintilantes, repletos de tristeza e rancor; sem esperança.


O bosque sangrento

O

Verde entrou na estufa visivelmente emocionado. Algo havia acontecido do lado de fora e, por estar se sentindo muito feliz, desejava compartilhar sua alegria com o mundo o quanto antes. – Embo! Depressa! Chame o meu filho, ele tem de ver isso! – Mas o que está acontecendo, senhor? – Acho que um dos experimentos surtiu efeito – comemorou ele, ​animado. – O quê? Lan e o Sequestrador pareciam alterados. O Errante continuava com os olhos brilhantes. – Onde você estava, papai? A Quietude está a ponto de... – Não, filho! – interrompeu ele. – Rundaris continuará estável esta ​noite. – Mas... as Partículas... meus olhos. Os seus olhos! – exclamou ele, apontando para os olhos do pai, que também brilhavam intensamente. – Tudo bem, é uma ruptura de baixa intensidade; não passará os Limites. Podemos sair. Acompanhem-me, vou mostrar. Percorreram um caminho de arcos de rocha até chegar a uma pequena coluna que ocultava de modo eficaz o que havia do outro lado. – Embo... Lan... protejam as vias respiratórias – recomendou o Caminhante, oferecendo a eles dois panos umedecidos com uma ​s ubstância viscosa. Os dois obedeceram enquanto O Verde seguia avançando entusiasmado. Quando chegaram ao outro lado, caram maravilhados ao descobrir um pequeno bosque resplandecendo na noite. – Mas... o que é isso? – assustou-se o senhor. Lan olhou aterrorizada para o local, que parecia um bosque fantasma. As árvores emitiam um brilho intenso, como os galhos encobertos por uma


substância gelatinosa que dava a eles um aspecto muito estranho. – Não é possível – murmurou. A menina compreendeu de imediato que as árvores estavam sangrando da mesma forma que no Bosque dos Mil Lagos e tirou as próprias ​conclusões. – Estão morrendo – disse ela. – As plantas estão morrendo... – pensou em voz alta. Em seguida, a menina começou a conectar as imagens do bosque com a história que o Sequestrador acabava de relatar. Sem dúvida, aquilo indicava que o fim estava próximo. As árvores, as plantas, as ores... toda a vegetação daquele jardim estava sangrando. Morriam. Ela se perguntou quanto tempo demoraria para aquela nova praga se espalhar; se tinha certeza de alguma coisa era de que, sem vegetação, o planeta estaria condenado. – Vão morrer! – disse uma vez mais, sem tirar o pano da frente de sua boca. O Verde olhou para a menina com ar de preocupação e tentou ​tranquilizá-la: – Não estão morrendo. Estão se protegendo. A natureza é sábia e sempre encontra uma maneira de sobreviver à adversidade. – Mas... estão sangrando! – insistiu ela. – Não está vendo? Como em Sálvia. Estão... – Quer dizer que no seu clã também? – surpreendeu-se o Caminhante. – Venha comigo – convidou ele, com ar solene, estendendo a mão. O Sequestrador continuava assustado. Tudo brilhava ao seu redor, como se a lua tivesse emprestado todo o seu brilho e as Partículas utuassem em um baile parecido ao de vaga-lumes. – Está vendo? Lan negou balançando a cabeça. Instantes depois, descobriu um par de Partículas dançando perigosamente perto de seu nariz. – Aí – indicou o homem. – Continuo não vendo nada... De repente, a menina observou, assustada, uma Partícula pousando, como se fosse um floco de neve, sobre a superfície da planta. Lan ergueu uma sobrancelha, criando expectativa em relação ao que estava prestes a acontecer. A Partícula entrou na substância, parou de vibrar e finalmente se apagou​. – Incrível, é completamente... – Espantoso – adiantou-se O Verde. – As plantas aprenderam a se proteger. Elas desenvolveram uma espécie de antídoto.


– Mas como? – perguntou a menina. O menino e Embo reagiram aproximando-se de diferentes árvores com o propósito de ver de perto o que acabava de acontecer. – Há algumas semanas, uns exemplares da estufa começaram a soltar uma estranha substância transparente. No começo, pensei que fosse seiva, mas depois vi que era um composto muito diferente. Nesse instante, Lan lembrou-se de que havia vivido a mesma situação em Sálvia. – Assim como você, a primeira coisa que pensei é que as plantas tinham contraído um tipo de doença, mas logo descartei essa possibilidade. A estufa as mantém protegidas dos agentes externos e, além disso, em Rundaris, não existe vegetação su ciente para propagar uma praga com características desse tipo. Fiquei desconcertado, pensei que fosse perder todo o meu trabalho. Os dias passaram e z experimentos com diferentes tipos de adubos e técnicas, mas acabei me dando por vencido. Não era capaz de explicar tal fenômeno, estava fora do meu alcance. A única coisa que pude constatar é que ele não prejudicava as plantas; como você disse... elas “sangravam”. – Eu me lembro – disse Embo –, foi no dia em que isolamos o nível sete. – Exatamente. O menino ainda não havia decidido que atitude ter em relação àquilo. Seria verdade que seu pai havia alcançado êxito em um de seus experimentos? Ou, pelo contrário, será que Lan tinha razão e aquele era apenas um aviso a mais do colapso iminente do planeta? – A questão é que, ao comprovar que não trazia prejuízo nem para as plantas nem para nós... decidi trazê-lo para cá, para o lado de fora, para ver como reagiria – explicou, orgulhoso. – No começo, nada aconteceu. Injetei a substância em algumas das plantas e monitorei-as para comprovar se ela se reproduzia ou se replicava sozinha, mas nada aconteceu. Todas as minhas tentativas foram em vão... até esta noite. O menino se aproximou do pai com os olhos brilhando intensamente. – As Partículas – compreendeu o Sequestrador. O Verde assentiu e depois continuou explicando: – Na verdade, esta noite, a Quietude aproximou-se muito de Rundaris, o su ciente para que as Partículas chegassem até aqui e zessem essa substância ter reação. – ... Revelando seu verdadeiro poder – Embo completou a frase. Lan acreditava ser impossível explicar a sensação de felicidade que tomou


conta dela naquele momento. Ajoelhada, cou observando, totalmente distraída, como as Partículas continuavam caindo com rapidez em cima da substância que cobria as folhas das plantas. A substância prendia as Partículas, diluía e, por m, as apagava. O brilho delas se apagava. Apagava! De repente, a menina começou a dizer: – A... a... a... cura! – As palavras começaram a se atropelar. O Verde abaixou a cabeça, observando como aquela substância prendia um inseto pequeno, sem matá-lo. – Não é uma cura, Lan – respondeu ele, entristecido. – Talvez seja o primeiro passo para uma solução, mas, por enquanto... é apenas uma arma a mais para combater as Partículas – lamentou. – Ele as prende e as apaga. Só isso. – Claro que sim! Mas é que... – estava tão nervosa que não conseguia se expressar com clareza. – As Partículas surgem da terra... o rei de Acantha... os lampejos! Estou dizendo que... Os três olharam para a menina com estranheza, tentando entender o que ela pretendia explicar. – “Localizar de novo a Ferida” – começou a relatar com os olhos fechados, tentando se lembrar das palavras exatas da lenda – “para criar em seu interior uma cura que alcançaria o centro da Estrela... acabando com os lampejos para sempre.” – Os lampejos... – repetiu O Verde, antes de se dar conta de que aquelas palavras tinham saído da boca de uma moradora de Sálvia. Lan conhecia a lenda dos Caminhantes da Estrela! Rapidamente, O Verde olhou para o lho com suspeitas, e o menino respondeu a ele sem palavras, com um semblante mais sério e maduro do que o pai esperava. Consciente da decisão que seu lho havia tomado, e dos problemas que isso poderia acarretar, ele disse por fim: – Bem, como todos sabem, não sou a pessoa mais adequada para julgar a quem revelar nossa história, pois eu mesmo abandonei os Caminhantes para me dedicar a uma tarefa proibida – admitiu. – Mas lembrem-se de que o conhecimento sempre implica responsabilidade, e que tudo isso poderia causar mais de um problema se soubessem... – Também sei da história da Esfera; do mapa – Lan o interrompeu. – O quê? – ele se mostrou assustado. O homem voltou a olhar para o lho, que dessa vez tentou se fazer de desentendido. Ao mesmo tempo, Embo escutava boquiaberto, tentando seguir o


fio da meada. O Verde coçou a barba tentando se acalmar enquanto olhava para um e para outro, tentando decidir se deveria dar broncas ou elogiar a ​iniciativa. – O que você propõe é completamente impossível – con rmou O Verde. – A Ferida é vinte vezes o tamanho da cidade de Rundaris! E, ainda que conseguíssemos que toda a vegetação do Linde produzisse essa substância, não teríamos quantidade su ciente. Na verdade, nem sabemos se isso é realmente uma cura. O silêncio tomou conta do lugar por alguns instantes, até que a menina propôs algo que ninguém até então havia pensado em fazer: – Pode ser loucura, mas... talvez... não sei – duvidou de novo, com receio de dizer bobagens. – Pode ser que no Templo encontremos a solução. Vamos pedir a ajuda do Mestre Nicar! Talvez eles possam fazer algo – disse, cheia de esperança. – Os Caminhantes jamais permitirão que uma humana... – Pode ser que tenha razão – apoiou o menino. Lan surpreendeu-se. Era a primeira vez que o Sequestrador deixava de lado seu pessimismo de sempre para admitir que, talvez, existisse uma pequena possibilidade de evitar o fim do mundo. – Eles não precisam saber – Lan o interrompeu. O Verde voltou a passar a mão na barba, tomando uma decisão. – Estou de acordo, falarei com Mezvan e... com o Guia. O Sequestrador ergueu as sobrancelhas, impressionado. – Pai... há anos que o senhor não conversa com eles – disse. – Meu lho, abandonei os Caminhantes da Estrela para encontrar a esperança que eles tinham perdido e, apesar de o Guia não falar comigo desde estão, tenho certeza de que, no fundo, quer encontrar uma solução tanto quanto nós. É a nossa única opção. Os quatro permaneceram em pé, observando o belo bosque que resplandecia ali, absorvendo as últimas Partículas que ainda utuavam no ar enquanto os moradores podiam sonhar com a remota possibilidade de salvar o Linde de seu destino inevitável. O Verde decidiu não perder nem um segundo, e, na mesma noite, partiram até o palácio de Mezvan para convocar uma reunião de emergência com o rei e com o líder dos Errantes. – É importante, Naveen – disse a ele.


– Compreendo, compreendo... mas meu senhor está dormindo, não posso despertá-lo por algo que sequer... – É muito secreto... – interrompeu ele. – Está relacionado a um de meus experimentos. Na mesma hora, o homem abriu os olhos e nalmente compreendeu a importância​ do assunto. – De acordo – disse. – Acompanhem-me, por favor. Naveen conduziu-os por uma série de corredores de até chegar a uma pequena sala decorada com vitrais, ao lado da casa onde estava o rei. – Esperem aqui. Lan e o menino assentiram juntos. O Verde aproximou-se alguns passos do atendente e disse: – Eu... também queria que você convocasse o Guia. – O Mestre Nicar?! – exclamou ele, surpreso. – Puxa! Espero que seja algo muito importante – advertiu. – Sem dúvida, é. Naveen ficou nervoso e logo partiu para chamar seu senhor. Embo havia se sentado em uma das poltronas e se distraiu observando de perto um dos frascos pequenos onde a substância ficava armazenada. – Teremos de dar um nome a ela – disse a menina. – Por que tudo precisa ter um nome? – perguntou o Sequestrador. – Acho que isso facilita as coisas – respondeu, dando de ombros. O senhor levou um susto ao escutar os passos de todo o séquito avançando pelo corredor. Rapidamente se endireitou para receber os líderes que entravam na sala. Apesar de terem chegado cercados por vários ajudantes, apenas os dois entraram. O Verde cou em pé rapidamente. Lan não havia percebido que o homem estava bem nervoso. – Mezvan – ele o reverenciou. – Sumo Intocável – dirigiu-se ao líder dos Caminhantes fazendo um gesto respeitoso. – Vamos! Não precisa se rebaixar dessa forma – disse ele. – Não precisa me chamar como os seres humanos me chamam. Sabe que, apesar de tudo, sempre serei seu Guia. Então, O Verde sentiu-se bastante aliviado e esboçou um sorriso. – Mas é bom que não tenha me tirado da cama por uma bobagem qualquer –


disse o rei, repreendendo-o. – Pode acreditar, algo aconteceu... inesperado – disse ele, sem conseguir encontrar uma palavra melhor. Ao ter a atenção do rei de Rundaris e do líder dos Caminhantes da Estrela, O Verde pediu a seu ajudante que pegasse um dos frascos e o mostrou com muito cuidado. – O que é isso? – perguntou Mezvan, muito curioso. – Um antídoto. – Um antídoto? Para quê? – Para as Partículas – respondeu simplesmente. Rapidamente, o Guia abriu os olhos com admiração enquanto o rei examinava de perto o conteúdo do frasco. – Tem certeza? O que ele faz, exatamente? – interessou-se em saber. – Ele neutraliza as Partículas por completo. Ele as extingue... apaga – disse, olhando para Lan enquanto falava. – Já comprovou isso? – perguntou o Guia, ainda sem acreditar. – Sim. – E podemos saber onde vocês conseguiram isso? O Verde olhou para ele e respondeu: – As plantas o geraram. Não se trata de algo sintético. Surge da própria natureza. Naquele instante, alguém entrou na sala batendo a porta. – Pai! Pai! O que está acontecendo? O lho do rei apareceu, vestindo apenas uma calça puída e um casaco velho com ombreiras. – Pai? – chamou ele. Mezvan rolou os olhos e dirigiu-se a seu filho com tom condescendente​. – Nada, Timot, nada... volte para a sua cama, sim? – Pai... você sabe que não durmo mais na cama ostentosa há séculos – disse. – Agora vivo nos estábulos e possuo muito mais do que preciso, na realidade. O rei bufou entediado, como se aquela não fosse a primeira vez que escutava aquela história. – Então, volte a seu... “estábulo”, lho – corrigiu-se, tentando controlar a impaciência. – Claro que sim – aceitou. – Boa noite, pai. Boa noite, pessoal – despediu-se do resto das pessoas com uma mão enquanto cobria um bocejo com a outra. Antes de Lan responder, o rei interferiu e vociferou, mal-humorado:


– Suma daqui! Timot respirou fundo e desapareceu na mesma hora. Lan e o Errante‐ entreolharam-se confusos. Sem dúvida, aquele jovem mais parecia um personagem. – Peço desculpas, meu lho está... – conteve-se. – Vocês já sabem – disse, fazendo círculos com o dedo ao lado da orelha. Nem o Guia nem O Verde deram importância ao ocorrido, e continuaram conversando como se nada tivesse acontecido. – Bem, então... é uma excelente notícia. Um grande avanço! – elogiou Mezvan. – Poderemos aplicar isso em todas as classes de seres vivos. Não teremos que nos preocupar com as Partículas, nem sofreremos mais baixas pela loucura do Horizonte. – Exatamente, mas... há algo mais... – acrescentou O Verde com ar misterioso. – Algo mais? – repetiram, em uníssono, o rei e o Guia. – Bem, não enrole. O que acha que descobriu? – perguntou Nicar, olhando para ele com os intensos olhos azuis, suspeitando que ele ​escondia algo ruim. O pai do Sequestrador virou-se para pedir a seus acompanhantes que os deixassem sozinhos, e estes obedeceram sem hesitar, deixando o rei, o Guia e O Verde a sós. – O Templo. A cura, meu senhor. “A cura que apagará todos os lampejos” – disse. – Não brinque! – advertiu Nicar, remexendo-se com nervosismo em seu assento. Mezvan observou-o sem entender muito bem o que estava acontecendo​. – É apenas uma possibilidade... mas precisamos tentar! Talvez o Templo possa nos dar uma resposta. – Mas como se atreve? – gritou o líder dos Caminhantes. – Como ousa falar do Templo na presença de um morador de Rundaris? – recriminou furioso, referindo-se a Mezvan. O rei sentiu-se humilhado, franziu o cenho e, quando estava prestes a se meter na conversa, O Verde o conteve erguendo a mão. – Às vezes, é preciso burlar as regras por um bem maior. – E com que direito você decide quando deve burlar as minhas regras? – repreendeu de novo. – Meu Guia, quero que o senhor compreenda que não podemos fazer isso sozinhos. Precisamos da ajuda de pessoas como Mezvan. Ele sempre foi um bom


aliado e tem o direito de conhecer alguns de nossos segredos – procurou acalmálo, explicando-se da melhor forma. Mezvan agradeceu pelas palavras enquanto Nicar permaneceu pensativo​. – Não. Não posso permitir isso – disse ele, por fim. – Não estou pedindo permissão – respondeu, tornando o rosto mais sério. O Guia ficou boquiaberto, sentindo-se traído. – Lan tem uma teoria – explicou. – Ela acha que se conseguirmos visitar o Templo... talvez consigamos entender como era o mecanismo para aplicar essa valiosa substância e desenvolver uma cura. – Essa menina? – gritou ele, sem acreditar. – Está dizendo que a mesma humana que acusou seu próprio lho de tocá-la agora está tentando salvar o mundo? O Verde mostrou-se confuso, não sabia do que ele estava falando. Desconhecia qualquer coisa relacionada a tal acusação. – Meu Guia – interrompeu O Verde –, não faço ideia a que se refere, mas não quero perder a única chance de encontrar uma cura por falta de cooperação. Pode ser que seja loucura – admitiu –, mas sei que, graças ao mapa, os Caminhantes mais velhos peregrinaram até o Templo em mais de uma ocasião... e que nunca deixaram nada claro. – Claro que sim – disse ele. – Com ele aprendemos que devemos respeitar as decisões do Linde acima de todas as coisas. Que Ele nos mostra, que Ele nos guia. Ele... – Esperem! – interrompeu Mezvan. – Um mapa? De que mapa estão falando? – Da Esfera. Um mapa do Linde – revelou O Verde. Mezvan levantou-se bruscamente da cadeira, que caiu no chão, causando um grande estrondo. – Isso não é... possível – murmurou o rei, incrédulo. Depois de tudo o que havia sido revelado naquela noite, o Mestre Nicar deu a batalha por perdida e não se atreveu a negar. O Verde também se levantou de sua cadeira. – Sim, existe um mapa – repetiu. – O objeto capaz de guiar os Caminhantes pelo Grande Linde, nossa única esperança para chegar ao Templo... para desenvolver uma cura que devolva a Quietude eterna a este mundo. – Que bobagem! Não existe cura alguma! – exclamou Nicar, batendo na mesa com o punho fortemente cerrado. – Há milhares de anos, este planeta sofreu um cataclisma devastador que o deixou no estado horrível atual – relembrou ele. – Não é nenhum segredo o que sabemos. Agora, só temos de obedecer seus


desejos para impedir que... – A submissão só nos levará à morte certa – revoltou-se O Verde. – Se carmos de braços cruzados, sem fazer nada, chegará o momento em que não teremos alternativa. – Hum... – pensou Mezvan, alisando a barba. – E o que vocês propõem? O que precisam que eu faça, exatamente? Mestre Nicar mostrou-se decepcionado. O rei não queria apoiá-lo. – Queremos seus melhores Corredores – disse O Verde prontamente. – Nem pensar. – retrucou o rei – Somente eles são su cientemente rápidos e fortes para chegar às terras‐ remotas, onde fica o Templo, sem se perder. – Sinto muito, mas não podemos abrir mão deles. São eles que nos mantêm em contato com o restante dos povoados... e suas mercadorias. – Mezvan... talvez isso possa restaurar a Quietude – O Verde tentou convencê-lo. – Talvez – repetiu. – Você mesmo disse: são apenas hipóteses. Agora, o mais importante é estudarmos o mapa. Tenho certeza de que com ele poderíamos chegar a qualquer lugar. Poderemos voltar a conectar os clãs! Restaurar o comércio – continuou planejando o rei. – O Templo é sagrado – Nicar continuou discordando. – Não podem invadi-lo assim, do nada, seria uma completa falta de respeito. É o lugar que nos ensinou quem somos, o que somos. Não podemos mandar para lá uma tropa de Corredores para comprovar uma de suas hipóteses... – disse, fazendo uma breve pausa. – Além disso, não acredita que tem adotado uma postura muito arrogante ao achar que pode encontrar uma solução, sendo que todos nós fracassamos? – perguntou, por fim. O Verde não conseguia entender por que aqueles homens eram tão descon ados. Estava oferecendo uma esperança, mas eles limitavam-se a arrasála com argumentos muito vagos. Não havia tempo a perder; o Caminhante deu meia-volta e saiu sem se despedir. Irritado, deixou os líderes presos em uma discussão acalorada a respeito do ​direito de pegar o mapa. Enquanto isso, Lan, Embo e o Sequestrador esperavam no corredor, ansiosos para saber se O Verde havia conseguido o apoio dos Caminhantes da Estrela e dos cidadãos de Rundaris. Quando o menino viu o pai no m do corredor, percebeu que alguma coisa tinha dado errado. – O que disseram? Eles vão nos ajudar? – perguntou Lan, assim que o homem


se aproximou. O Verde parecia preocupado, tentando ganhar tempo para encontrar uma forma de dar a notícia sem deixá-los desanimados, mas seu filho se adiantou. – Qual é o plano? – perguntou. – Que plano? – estranhou a menina. – Eu... sinto muito – desculpou-se ele com expressão vaga. – Nicar não vai nos entregar o mapa, e Mezvan... acredita que temos apenas hipóteses, não quer se arriscar e não vai nos emprestar seus Corredores; agora, seu único objetivo é saber mais a respeito da Esfera. – Não pode fazer isso! – reclamou a menina, furiosa. – E agora? – perguntou o filho. – E agora... nada – respondeu o pai, caminhando em direção à saída. – Receio que tenhamos cometido um enorme erro contando ao rei sobre a existência do mapa. Eu vi a avareza nos olhos dele. Precisamos fazer alguma coisa, mas... não podemos entrar em uma aventura dessas sozinhos. Seria um suicídio. Além disso, encontrar o Templo sem o mapa é uma tarefa impossível. Demoraríamos anos, não estamos preparados. Depois de passar pela porta principal, o Sequestrador parou e disse: – Vamos roubá-lo! – O quê? – surpreendeu-se Embo. – Não podemos fazer isso! – exclamou seu pai. – A Esfera é o tesouro mais bem guardado dos Caminhantes da Estrela. – Além do mais, isso seria errado... – disse Lan. – Errado? Está falando sério? – perguntou o menino. – O que acha mais errado: roubar desses farsantes o objeto que escondem do mundo há séculos ou deixar escapar uma oportunidade, que talvez seja a única, de devolver a Quietude eterna ao Linde? Nesse instante, Lan lembrou-se de todo o sofrimento que a ruptura do clã causou em sua vida. Pessoas tinham morrido e muitas outras tinham se perdido para sempre. Rapidamente, entendeu que o Sequestrador tinha razão. Não podiam permitir que aquilo continuasse. – Admiro sua valentia, lho, mas... você sabe que não podemos fazer isso sozinhos. – Quando tivermos o mapa em nosso poder, meu pai, o mundo todo se renderá diante da prova.


Sobrevivente

odo mundo muda em Rundaris”, recordou Lan enquanto se olhava no espelho. Sua pele pálida havia ganhado um tom corado, e seus cabelos, antes pretos como a noite, haviam ganhado re exos avermelhados; apenas seus olhos dourados continuavam iguais. De nitivamente, a menina que via no espelho não era a mesma Lan que vivia com a mãe, rodeada de amigos e de plantas. Não era difícil ver que ela havia amadurecido e que, como a superfície do Linde, havia mudado. Já havia se passado um mês desde a reunião no palácio e as coisas não tinham melhorado; muito pelo contrário: estavam piores. A desavença entre o rei e o líder dos Caminhantes era conhecida por todos em Rundaris, ainda que muito poucos soubessem os verdadeiros motivos dos con itos. A existência do mapa tinha sido ocultada dos outros cidadãos para evitar uma revolta... ou algo pior. Depois de duras negociações, os dois lados estabeleceram um pacto para proteger a Esfera. Agora, ela era vigiada por muitos guardas, tanto habitantes de Rundaris como Errantes, e isso complicava ainda mais o plano do Verde, que não havia ficado de braços cruzados. Na estufa, eles se esforçavam muito para traçar um plano perfeito para se apoderar da Esfera. Aquela era, agora, a maior prioridade. Era a única maneira de curar o Linde e, ainda, de Lan voltar a ver sua mãe e seus amigos. Enquanto isso, os moradores de Rundaris e os Caminhantes passaram a vigiá-los. Brincavam de gato e rato. – Isso é extremamente perigoso – disse O Verde. – Eu sei – reconheceu a menina –, mas por acaso temos outra opção? O Errante não respondeu. – Já repassamos o plano centenas de vezes! Conheço todos os detalhes dele de

“T


cor e salteado. Tudo correrá bem. Lan e O Verde conversavam em um dos cantos mais agradáveis da estufa, um pequeno espaço rodeado de plantas trepadeiras onde algumas glicinas balançavam suavemente com a corrente que alimentava um dos geradores de vapor instalado por Embo. O Verde mostrou-se nervoso e admitiu: – De acordo, de acordo – aceitou com um gesto. – Deixarei essa tarefa com vocês, mas devem seguir minhas instruções a todo momento e deverão​ se retirar quando eu mandar. Isso não é coisa de jovens, entende? Não quero que arrisquem a vida. Devido à preocupação constante a que era submetido, o Caminhante parecia ter envelhecido muitos anos de uma só vez. Ele levava as coisas muito a sério. Sabia que a oportunidade era única, não queria colocar ninguém em perigo, muito menos seus entes queridos, entre os quais agora estava Lan. – Só precisamos esperar o momento certo para agir. Acredito que daqui a duas semanas os ânimos estarão mais calmos e, assim, a vigilância do acampamento também ficará mais relaxada. De repente, viram Embo aproximando-se com rapidez, trazendo cestos e pacotes do mercado. – O que foi, Embo? Aonde vai com tanta pressa? – Tenho notícias – respondeu ele, afobado. Dois outros Corredores voltaram. E não é só isso... encontraram outro sobrevivente, – avisou, olhando​ diretamente para Lan, que continuava atenta a todas as suas palavras –, outro habitante da Sálvia. Lan levantou-se da cadeira de repente, balançando a mesa sobre a qual havia xícaras de chá. – Para onde ele foi levado? – apressou-se em perguntar. – À enfermaria. Você terá de cruzar a cidade até encontrar... – Sei onde fica – interrompeu. – Obrigada, Embo, muito obrigada. – Lan... – tentou detê-la. – Pelo que parece, a viagem não foi muito fácil e ele está muito ferido. Não sabem se sobreviverá. A menina assentiu e saiu correndo da estufa. Lá fora, chovia; chuva ácida, como sempre. Lan desceu as mangas da camisa e transformou seu lenço em um capuz. A imagem da cidade, barulhenta, repleta de pessoas caminhando com seus guarda-chuvas metálicos, já se tornara comum. Ela sentia-se uma moradora de Rundaris, tentando sobreviver às constantes rupturas da Quietude, cada vez


mais destruidoras e próximas dos Limites Seguros. Os dias em que corria pelos telhados de seu clã já estavam tão distantes que pareciam ter ocorrido em outra vida, mas a chegada de um novo sobrevivente devolvia a ela uma ponta de esperança. Se, depois de tanto tempo, alguém havia conseguido sobreviver à ruptura que havia afetado Sálvia, talvez muitos outros habitantes tivessem tido a mesma sorte. A menina chegou a uma construção esculpida em uma parede natural de rocha maciça, pontuada por pedaços de ferro. A enfermaria era um tanto austera e tinha apenas três ou quatro andares, mas Lan já havia aprendido que as construções de Rundaris nem sempre eram o que pareciam. No interior da construção, descobriu um grande pátio repleto de tanques de água quente. Tudo estava tomado pelo vapor, e o musgo espalhava-se pelas paredes. Lan descobriu que as curas ocorriam no último andar, e então subiu até se deparar com um grupo de médicos que conversavam sobre o recém-chegado. Pareciam preocupados. – Posso vê-lo? – atreveu-se a interrompê-los. – O que disse? – Fiquei sabendo que os Corredores encontraram um sobrevivente de Sálvia. – Puxa! Como as notícias se espalham depressa! – exclamou um deles. – Você é Lan, certo? – perguntou outro. – A moradora de Sálvia que trabalha com O Verde. – Sim, sou – a rmou ela, enquanto tentava descobrir quem estava atrás da cortina. – Talvez possa nos ajudar – disse o médico, fazendo um sinal para que ela o seguisse. Lan sentiu o coração acelerar, pois do outro lado da cortina havia um corpo coberto por um lençol. Temeu pelo pior. O homem caminhou pelo espaço, aproximando-se do leito, e ela se sentiu aliviada; o cadáver não era de nenhum de seus amigos. – Ele chegou muito mal, está exausto. Tenho certeza de que ver um rosto conhecido fará com que melhore mais depressa. Chegaram em um quarto iluminado por grandes janelas e, ao fundo, viu uma única maca ocupada. – Não é possível – murmurou. Ela aproximou-se da cama, onde descansava um jovem com o corpo coberto de ferimentos. – Muitos de seus ossos estão quebrados.


– Nao... – disse seu nome, por m, cobrindo a boca com as duas mãos para conter a emoção. Seu amigo estava irreconhecível; tinha bandagens por todo o corpo, estava muito pálido e, pelo rosto, era possível ver que havia passado por diversos sofrimentos: sede, fome, calor escaldante do deserto e muito mais. No entanto, os cabelos que estavam para fora das bandagens não deixavam dúvidas: era Nao. – Quando ele despertar, ficará feliz. – É muito grave? Ele se chama Nao... é um menino muito forte. Posso fazer alguma coisa por ele? Talvez O Verde conheça alguns remédios de ervas que acelerem sua recuperação – a alegria de Lan a impedia de falar com clareza. – Fique tranquila, no momento, ele só precisa descansar. Quebrou muitas costelas, sofreu algumas feridas internas e uma fratura muito feia na perna. De repente, Nao remexeu-se na cama e, para surpresa de quem estava ali, abriu os olhos lentamente. – Você achou que poderia vir sozinha para Rundaris? – sussurrou o menino em tom de brincadeira, erguendo as sobrancelhas com dificuldade. Lan cou emocionada ao ver que seu amigo ainda tinha forças para brincar e logo começou a chorar em cima dele. – Tudo bem, está tudo bem... – ele a consolou com tapinhas suaves nas costas. – Eles terão que trocar as bandagens por sua culpa, senhorita pele-vermelha. – Estou tão feliz por saber que você está vivo! – exclamou ela, ignorando as brincadeiras do amigo e ainda sem parar de soluçar. – Também estou feliz por ver você aqui. Quando os Corredores me disseram que você e Mona estavam em Rundaris, não acreditei. – Tivemos muita sorte – disse Lan, lembrando os moradores do clã de quem ainda não tinha notícias, incluindo a mãe. A menina endireitou-se, saindo de cima do peito do amigo. – Mas... como você chegou aqui? Você se perdeu com mais alguém do povoado? Estava com seu wimo? Os Corredores de Rundaris demoraram muito a encontrar você ou foi logo em seguida? – Calma, menina desembestada! Não consigo responder a tantas perguntas de uma vez! Corredor? – brincou, enquanto tentava disfarçar a dor que sentia nas costelas. Lan secou as lágrimas com o lençol, ainda muito emocionada. – Tive a sorte de me perder com um dos wimos de meu rebanho... graças a ele, consegui chegar até a base de uma montanha nevada. Era tão alta que com di culdade dava para ver a ponta, mas seus bosques frondosos me zeram


acreditar que podia existir um clã ali perto. Vários dias depois, cheguei a um pequeno povoado, onde me alimentaram e cuidaram dos sintomas de enregelamento. Eles me trataram muito bem, mas eu não parava de pensar nos outros moradores de Sálvia, em minha família, em meus amigos... em você... – Nao permaneceu em silêncio por alguns instantes e respirou fundo antes de continuar. – Então, um dos pássaros chegou. – Que pássaros? – Não me lembro do nome. Mas eram pássaros mensageiros enviados por Rundaris. Nesse momento, quei convencido de que, se uma daquelas aves tinha sido capaz de encontrar um caminho, de se orientar pelo Linde, por que eu não conseguiria? Precisava tentar – disse, enquanto se endireitava na cama com muita di culdade. – Lan, sei que foi uma loucura... mas não podia me conformar com a ideia de que você havia morrido. Tinha certeza de que meus pais, Mona, você... – parou no meio da frase, com o rosto entristecido. – Eu estava guardando isto... – disse Lan, esforçando-se para mudar de assunto antes que voltasse a sentir vontade de chorar. – Que incrível! – exclamou Nao ao ver seu apito. – Onde você o encontrou? – É uma longa história, e, com a cara que você está, tenho certeza de que vai dormir antes de eu chegar no fim. – Hahaha! – riu o menino. – Descanse, Nao... agora você está a salvo. Lan voltou de noite à estufa. Havia passado horas ao lado da cama de Nao, observando o amigo dormir. Ainda não conseguia acreditar que ele continuava vivo. O movimento rítmico do peito dele na respiração fazia com que ela sentisse uma enorme felicidade; fazia muito tempo que não estampava um sorriso no rosto daquele jeito. Por m, os médicos a obrigaram a voltar para casa. Não havia comido nada durante todo o dia e, assim, foi até o sexto andar onde cava a cozinha. Tudo em silêncio, as luzes da estufa, apagadas; provavelmente, Embo já havia se deitado e O Verde devia estar trabalhando em um dos laboratórios. O espaço era grande e servia como refeitório. Pelas dimensões, Lan pensou que aquele lugar já devia ter abrigado muitos trabalhadores, ainda que, naquele momento, estivesse vazio. Havia várias mesas grandes e enormes janelas, através das quais as estrelas iluminavam o interior da sala. A jovem aproximou-se de uma das mesas e viu diversos pratos tampados. Embo havia deixado a janta preparada. Seu estômago roncou alto. Aquele


senhor se tornava mais e mais querido por ela a cada dia que passava. Sempre muito atento a tudo, dedicava-se à manutenção das instalações. Ele costumava dizer: “É preciso encontrar a felicidades nas pequenas coisas e agradecer ao Linde por tudo o que ele nos dá. Até mesmo a menor pedra de todas tem seu papel neste mundo”. Embo era especialista em montar aparelhos de todos os tipos com os materiais mais impensáveis. Conseguia transformar várias peças soltas em uma máquina capaz de preparar chá ou em uma máquina de pão. Não era difícil entender por que O Verde gostava tanto dele; além de ser um amigo el, também era um gênio. Lan pegou seu prato e sentou-se à mesa, em um canto, exatamente diante de uma das janelas com a vista mais bonita. Dali, ela pôde contemplar as luzes da cidade competindo com o brilho das estrelas, altas chaminés cuspindo fogo constantemente e enormes nuvens de vapor que se formavam diante de seus olhos. A menina aproximou-se do vidro e tentou distinguir um ponto em movimento iluminado pelas suaves cores das pás. Era o Sequestrador subindo pelo caminho que levava à estufa. Lan achou estranho, pois o rapaz deveria estar no acampamento dos Caminhantes. Depois da conversa entre O Verde com Mezvan e Nicar, haviam decidido que a melhor maneira de controlar a Esfera seria enviar o Sequestrador ao acampamento, ngindo que não concordava com os planos do pai. Lan estava recolhendo os pratos quando o menino entrou no refeitório. – Lan? – o Errante aproximou-se dela. – Escutei um barulho na cozinha e imaginei que podia ser você. – Estava sozinha... comendo um pouco. Não z tanto barulho assim! – respondeu. – Escutei você de lá do caminho – respondeu ele, pegando uma fruta e dandolhe uma mordida. – Isso é ment... – Lan decidiu não continuar. – O que está fazendo aqui? Podem ver você. O Sequestrador se sentou à mesa, no mesmo lugar onde, momentos antes, ela havia se sentado. Afastou a franja do rosto com um ar despreocupado e sorriu: – Tenho boas notícias. Estão dizendo que os Corredores encontraram mais um sobrevivente de seu clã. – Eu sei. O Nao. – Nao? Você o conhece? – perguntou ele, com curiosidade. – Claro, em Sálvia, todos se conhecem... não é tão grande como Rundaris – explicou ela. – Além disso, ele é o meu melhor amigo.


A menina cou olhando para o Sequestrador. Agora que estava sentado à mesa, o rapaz estava da mesma altura e ela pôde ver seus olhos escuros com mais clareza, olhos que se estreitavam quando ele sorria. – Puxa! Fico feliz em saber que esse menino é seu amigo – continuou o Errante depois de alguns segundos. – Isso quer dizer que talvez haja mais moradores de Sálvia por perto, não acha? Talvez a sua mãe... – Não acho que há mais pessoas por aqui – ela o interrompeu. – Depois da ruptura, Nao foi parar em outro clã, longe daqui, mas decidiu voltar a cruzar os Limites para procurar por outros moradores de nosso clã. – Sozinho? – ele se surpreendeu. – Bem... ele e um de seus wimos. Não é pastor, mas sempre treinou às escondidas para se tornar um Corredor. Está em boa forma física. – Mas... de todo modo, ele é maluco! Foi em busca da morte certa. Ainda mais nesta época, quando as rupturas acontecem com tanta frequência e não seguem nenhum padrão. Não entendo esse comportamento. É muito corajoso ou talvez... – o menino permaneceu em silêncio durante alguns segundos e observou Lan com atenção. – Deve ter um motivo muito​ ​forte, não acha? Lan desviou o olhar e afastou-se da mesa. – Sim – respondeu sem se virar, enquanto colocava os pratos dentro da pia. – Não acha que é motivo suficiente preocupar-se com o ​r estante do clã? O Errante ficou em pé sem dizer mais nada e caminhou até a porta. – Sinto muito, preciso ir. Lan mostrou-se surpresa. – Sentirão minha falta no acampamento – esclareceu. – Vou conversar com o meu pai. Você deveria pedir algum remédio para seu amigo; tenho certeza de que poderia ajudá-lo com algumas ervas. – Sim, obrigada... vou fazer isso – respondeu ela, apesar de o Sequestrador já ter se afastado. Lan bateu à porta e esperou com impaciência. Vários dias já haviam se passado, mas desde a chegada de Nao a Rundaris os médicos haviam dito que ele precisava descansar muito. Aquela seria a primeira tarde o cial de visitas e, claro, tanto ela como Mona queriam ser as primeiras a vê-lo. Lan esticou o pescoço para observar as torres distintas dos caminhos e passarelas protegidos por redes. O prédio onde a amiga trabalhava como voluntária era muito peculiar. Voltou a bater à porta, dessa vez com mais força, até que um menino, que devia ter a mesma idade de Mona, a convidou para


entrar. – Em que posso ajudá-la? – Vim falar com Mona. – Com Mona! – exclamou, surpreso. – Hummm... sim – respondeu ela, curiosa ao ver a reação. – Ela está aqui, não é? – Claro, venha comigo – disse, com um tom alegre. – Está na área das crianças, cuidando dos pequenos. O menino a levou a um pátio em que alguns moradores de Rundaris pareciam estar brincando com pássaros que iam e vinham de uma torre a outra. Mona havia explicado que, ali, eles criavam uma espécie de aves mensageiras chamadas kami. Os pássaros que moravam no Linde não conseguiam percorrer grandes distâncias, como diziam que conseguiam fazer na antiguidade. As aves não podiam emigrar porque os polos magnéticos mudavam constantemente de lugar e elas não conseguiam se orientar, por isso os pássaros costumavam obedecer, de forma natural, aos mesmos Limites Seguros de nidos pelos clãs. No entanto, em Rundaris, descobriram que os kamis tinham uma série de capacidades excepcionais e que, se fossem corretamente adestrados, podiam ser utilizados como mensageiros. Aqueles animais eram tão independentes que era extremamente difícil ensinar qualquer coisa a eles; mas o rei Mezvan, sabendo que muitos progressos poderiam ser feitos a ponto de deixarem de depender somente dos Corredores, havia se comprometido com o experimento e conseguido fazer com que as aves concluíssem algumas tarefas com êxito. Lan cou assustada com o tamanho das garras de alguns kamis e percebeu naquele mesmo instante por que seus adestradores, como o amigo de Mona, protegiam os braços com aquelas resistentes mangas de couro. – Espere um minuto, vou avisar Mona que você está aqui – o jovem tirou-a de seus devaneios. Eles haviam chegado a um espaço muito fechado e muito silencioso. Ao caminhar, o menino levantou uma nuvem de peninhas brancas que fez Lan começar a espirrar de modo escandaloso. – Aaaaatchim! – gritou, envergonhando-se no mesmo instante. Minutos depois, Mona apareceu usando um avental que descia até seus pés. – Lan! – cumprimentou a amiga. – Está tudo bem? – perguntou, sacudindo as penas que tinham grudado em sua roupa de trabalho. – Sim, trago boas notícias. Já podemos visitar Nao – avisou, enquanto apertava o nariz para diminuir a irritação.


– É mesmo? – Os médicos disseram que ele está muito melhor. Com certeza está impaciente à sua espera. Mona não conseguiu conter a alegria e lançou-se em direção à amiga para lhe dar um forte abraço. – Hahaha! Sabia que você caria feliz. Você acha que pode sair um pouco antes para...? – De repente, Lan percebeu que algo se movia em seu peito. Olhou e viu que no bolso central do avental de Mona, havia algo que não parava de se mexer. “Piu!” – Oh! – exclamou a menina, levando a mão à boca. – Eu me esqueci totalmente! Luna! – Luna? – É o kami de quem cuido – explicou, enquanto tirava o animalzinho de seu bolso. – Coitadinha, quase a matamos asfixiada. O passarinho era um recém-nascido, não tinha penas e parecia estar reclamando. – Aaaatchim! – Lan voltou a espirrar, assustando a avezinha. – Ela é muito novinha, foi encontrada perdida. Não nasceu em cativeiro, por isso as outras aves não a aceitam. Na maior parte do tempo, eu a deixo dentro do bolso para que que quentinha, e Rando disse que, quando ela car maior, talvez eu mesma possa adestrá-la. – Rando? – O menino que acompanhou você até aqui. Nós nos tornamos ​amigos. Rando, que estava a poucos metros dela, acenou para se fazer notar. Lan sorriu. Ficou feliz por ver que sua amiga estava se adaptando bem à cidade e, principalmente, por estar com a mente ocupada. – Aaaatchim! – espirrou de novo, afastando-se do pássaro, que olhava para ela com desconfiança. – “A fera olhou fixamente em meus olhos, estava sedenta de sangue, agitava-se sem parar, ansiosa para me morder. De sua garganta saiu um odor pungente, capaz de matar quem o respirasse. Atrás de mim, um profundo penhasco ameaçava me engolir. Eu estava encurralado e com meu wimo ferido. Só havia uma saída possível: lutar. Desa ei a criatura enquanto tentava alcançar a alforja, onde estava o meu chicote de três pontas...” – Que chicote de três pontas? Você não tem nenhum chicote! – Lan recriminou o amigo. – Os Corredores de Rundaris disseram que, quando o encontraram,


você só tinha uma colher de pau. – Uma colher de pau? Hahaha! – riu Mona, dando a volta na cama de seu amigo. – Lan – respondeu Nao, ajeitando o travesseiro. – Será que não consegue aproveitar uma boa história? Por acaso quer que eu conte a meus netos, um dia, que sobrevivi a uma ruptura com um wimo manco e uma colher de pau? – Então terá de inventar algo melhor! O chicote de três pontas não é a melhor opção. Mona continuou gargalhando, rolando no chão e contagiando a todos. Ao entardecer, Lan e Nao ficaram sozinhos no quarto. O jovem segurou a mão da amiga e confessou: – Tive muita sorte na ruptura. Um dos wimos chegou perto de mim, mas, quando fui tentar salvá-la, você já tinha desaparecido... com todos os outros. Sinto muito. – Não, não volte a pensar nisso. Você não tem culpa de nada. Não estávamos preparados para uma ruptura da Quietude tão violenta. Ninguém estava – disse a menina, sentindo o calor de seu amigo nas mãos. Para Lan, era confortante voltar a tê-lo a seu lado, mas percebera que não era como antes. Agora, o olhar dele era de um adulto consciente dos perigos que assolam o mundo, de alguém que, apesar de ter perdido a família, mantinha a esperança. – De qualquer modo, deveria ter permanecido no clã que encontrou. – Não, não podia fazer isso. E sei também que você não teria cado de braços cruzados – completou Nao. – Obrigada – ela sentiu-se bem com aquele comentário. – Mas acho que não teria sido tão corajosa como você. Estou vendo que você tem sangue de Corredor! Valeram a pena todas as madrugadas que passamos treinando – disse ela, tentando animar a conversa. – Ficou claro que sirvo para isso – disse o menino, piscando um olho. – Também estou orgulhoso de você. Sobreviveu à ruptura e chegou a Rundaris; é impressionante. – Na verdade, eu devo isso ao Errante. Eu me comportei muito mal com ele, acusei-o de traição e, no entanto, ele desa ou o próprio povoado e as regras para salvar a minha vida – pensou ela em voz alta. – O Errante? Está falando do Mestre Nicar? – Não, refiro-me ao Sequestrador – explicou. Nao estava confuso.


– Aquele que ia levar o Ivar embora? – Foi tudo... um mal-entendido. Na verdade, ele o salvou da ruptura e também a mim. Nao se lembrou do ocorrido em Sálvia. Logo se lembrou do Errante, com seu corpo esbelto e o olhar misterioso, chamando Lan de mentirosa. – Então... foi ele quem encontrou você no deserto? – Sim, foi isso que eu disse. Graças ao seu apito, Nao, um dos wimos da comitiva do Errante partiu à minha procura. Nao soltou a mão da amiga e desceu da cama. Precisava movimentar-se, entender o ocorrido. Lan colocou as muletas perto dele, mas, depois de alguns passos, suas costelas quebradas zeram com que ele se retorcesse de dor. Lan o segurou a tempo para não cair no chão. – Nao, você está bem? – assustou-se a jovem. – Não deveria se levantar desse jeito. – Não se preocupe. É que... não suporto passar o dia na cama, imóvel. Eu deveria começar a me levantar com mais frequência. Quero me ​r ecuperar logo. – Para mim, você está ótimo, mas aproxime-se da cama. Você é muito pesado! Vamos acabar caindo. Já estou imaginando a cena. – Hummm, não me importo – brincou ele. – Se você quebrar uma perna, poderá me fazer companhia. Lan deu uma cotovelada em Nao, que viu estrelas. De volta à cama, o menino confessou: – Não gostei desse Errante. – Pois deveria. O pai dele foi quem me acolheu na cidade. É um bom homem, um Errante muito excêntrico, mas, no fundo... tanto ele quanto o lho são os poucos que se preocupam de verdade com o estado do Linde. Fizeram muito por mim. Nao desviou o olhar, envergonhado por suas palavras. Em seguida, olhou pela janela com ar pensativo e disse: – Então, acredito que terei de agradecer a ele também. Apesar das rupturas que continuavam castigando o Linde, em Rundaris os dias transcorriam com relativa calma. Lan e Mona visitavam Nao sempre que podiam e faziam companhia a ele durante horas. O menino melhorou rapidamente graças aos cuidados e ao repouso, mas ainda não conseguia caminhar sem as muletas. Lan sentia-se mais forte ao ver que o amigo se recuperava um pouco mais a


cada dia; no entanto, a vida na cidade era exaustiva: o trabalho na estufa era cada vez mais difícil, O Verde fazia experimentos com a substância até cansar e seu lho, o Sequestrador, continuava in ltrado no acampamento dos Errantes para tomar conhecimento de qualquer novidade relacionada a Nicar, ao mapa ou a Mezvan. Lan subiu ao mirante com esperança de encontrar o Errante ali. Ultimamente, ela tinha a sensação de que ele a estava evitando, e, além disso, queria perguntar qual era a situação no acampamento dos Caminhantes. Porém ali em cima só encontrou O Verde, observando o céu com estranhos óculos-telescópio. A menina pigarreou para que ele notasse a sua presença. – Olá – cumprimentou o Caminhante. – Desculpe-me, não vi que você estava chegando. – Olá. Hummm... Você se importa se eu ficar aqui? – Claro que não, jovenzinha – respondeu com a voz tranquila. – Conte-me como está seu amigo. – Bem melhor. Já consegue car de pé, apesar de os ferimentos mais graves ainda não terem cicatrizado. – Fico feliz. O Verde ofereceu a ela óculos-telescópio parecidos e logo voltou a observar o rmamento. O vento soprava suavemente entre as vigas de metal. Lan colocou os óculos e descobriu que com eles conseguia ver o céu do dia como se fosse noite. Compartilharam desse silêncio até a ​menina começar a falar. – Você sabe o nome de todas as estrelas? – De todas? – surpreendeu-se o Errante. – Não, claro que não, isso seria impossível. Mas sei o nome das mais importantes e até algumas histórias. – Meu pai... – Lan começou a dizer – me deu o nome de uma estrela, é essa que brilha muito. – Sim, a Lan é essa. Seu pai escolheu um nome muito bonito. Além disso, é uma estrela da sorte. – Da sorte? – Tem uma das histórias mais famosas entre nós, até as crianças a conhecem. Se prestar atenção, verá que é a estrela mais bem protegida de todo o céu. Lan acertou as lentes múltiplas de seus óculos-telescópio até obter uma imagem em foco. – Está vendo todas as pequenas estrelas ao seu redor? A menina assentiu sem desviar o olhar. – Todas elas formam o “Cinturão de Ca”. Ca signi ca “protetor”. Diz a lenda


que antes eram duas estrelas iguais e que seu brilho podia ser visto em plena luz, mas, um dia, algo aconteceu e uma delas se decompôs em centenas de pedaços, dando lugar ao cinturão que protege a Lan, a estrela mais brilhante. – É uma história muito bonita. – Sim, e há muitas outras. Os Errantes conhecem a localização das estrelas no céu porque assim é mais fácil nos deslocarmos pelo Linde. É uma espécie de mapa. – Um mapa, como a Esfera – murmurou Lan. – Não entendo como seu povoado pôde ocultar algo tão importante do resto da humanidade – disse, sem perceber que estava pensando em voz alta. O Verde virou-se para olhar para ela. Não era fácil responder àquilo. – Pai! Embo! – o Sequestrador gritou dos andares mais baixos. – O que foi, filho? – perguntou ele, assustado. – Precisamos agir depressa – avisou ofegante, assim que chegou ao mirante. – Os Caminhantes... vão partir.


Fuga

L

an entendeu, naquele instante, o que signi cava aquilo. Se os Caminhantes partissem de Rundaris, o menino deveria acompanhá-los. – Quando? – perguntou O Verde. – Esta noite, talvez amanhã, ao amanhecer. – Mas então você... – disse a menina. Naquele momento, a presença do Sequestrador no acampamento era a única maneira de controlar a Esfera e, de todo modo, o Errante pertencia àquele povo. Lan ficou chateada. Nunca pensou que eles teriam de se separar, com a certeza de que passaria muito tempo sem se ver, talvez nunca mais. Além disso, se os Caminhantes abandonassem a cidade, o plano que tinham feito com tanto cuidado iria por água abaixo. O Verde franziu o cenho com preocupação. Por um instante, desconectou-se do mundo real e tentou pensar o mais rápido possível. Não era de estranhar nem um pouco que o Guia tivesse decidido levar o mapa dali, mas ele o maldisse por ser tão inoportuno. – Você deveria ter previsto! – Não temos tempo. É... – disse o menino. O Sequestrador observou o pai, claramente envergonhado. Havia feito tudo o que estava em suas mãos e, no entanto, o destino insistia em desa á-los de novo. Sem dúvida, ir contra a corrente não era nada fácil. – Não temos escolha – decidiu, por fim. – Agiremos esta noite. – Mas... – Concordo com seu pai – a rmou Lan, decidida. – É a nossa última oportunidade, precisamos nos arriscar... não apenas por nós mesmos, mas


também por todos os habitantes do Linde. Ou você acha que temos outra escolha? – perguntou, primeiro ao pai e depois ao filho. O Sequestrador assentiu levemente ao pai e então o plano foi o cialmente colocado em prática. – Depressa! Não temos tempo a perder – disse O Verde. – Embo! – chamou o ajudante pelo eco da escada. – Embo! Encha os jarros. Lan, despeça-se dos seus amigos... e siga o plano ao pé da letra – insistiu. Em seguida, o Caminhante virou para car frente a frente com seu lho. Ele olhou-o nos olhos, como se aquela fosse a última vez, e sussurrou em seu ouvido: – Você sabe o que tem de fazer. O Verde desceu a escada caracol rapidamente, deixando Lan e o Sequestrador sozinhos. – Não precisa fazer isso – disse ele. – De que diabos está falando? – Você pode ficar na cidade e afastar-se de tudo isso. É muito arriscado, o plano está por um o. Além disso, não temos certeza de que encontraremos o Templo, e pode ser que a substância não seja a chave. – Mas... precisamos tentar. É nossa única esperança. – Os guardas de Mezvan e Nicar não dormirão no ponto. É muito perigoso... – Não penso em me acovardar! Não penso em me esconder – disse Lan, magoada por perceber que o menino duvidava de sua capacidade de realizar a tarefa que lhe haviam dado. O Sequestrador aproximou-se dela, obrigando-a a voltar até a grade. Ali em cima, o vento soprava forte, agitando seus cabelos com força. Lan segurou-se em uma das barras para não perder o equilíbrio, e a proximidade do jovem ainda a intimidava. Naquele instante, lembrou-se por que continuava a chamá-lo de “Sequestrador”; sua altura, sua voz e aquele olhar impassível continuavam lhe causando medo, como no primeiro dia. – Só digo que... deveria se manter a distância – insistiu com seriedade. – Estaria mais segura na cidade, com Nao – disse por fim. E, sem desperdiçar nem mais um segundo, apressou-se escada abaixo... deixando-a boquiaberta. Por que ele queria se afastar dela? Por que havia sugerido que casse com Nao? A troco de que tudo isso? A menina havia se rendido aos cuidados do amigo e tinha consciência de que, nas últimas semanas, não tinha passado muito tempo com o Errante​, mas ela sempre


tinha a impressão de que ele tinha coisas melhores para fazer. Lan tinha certeza de que ele queria afastá-la do plano porque a considerava um obstáculo e não queria admitir. Incomodada, a menina deu um chute em uma viga, fazendo ressoar a estrutura metálica que envolvia a estufa. Quando tudo já estava mais calmo, começou a ver as coisas de outra forma: e se as palavras do menino fossem sinceras e ele só quisesse protegê-la? Lan estava tensa, esforçou-se para esquecer o ocorrido; aquele não era nem o momento nem o lugar para quele tipo de pensamento. A contagem regressiva havia começado. Lan caminhou depressa, mas procurou não correr para não levantar suspeitas entre os muitos vigilantes do rei que patrulhavam as ruas. Sentia-se observada. Não havia tempo a perder, mas, se naquela noite colocariam o plano em prática, precisava se despedir dos amigos. Sabia que provavelmente passaria muito tempo sem vê-los; aquela até podia ser a última vez em que se veriam. Chegou à casa de Mona, que agora vivia com a senhora Orlaya e Priez, o fortão. Provavelmente, era o que mais se aproximava de uma família de Sálvia. – Entre, Lan. Não que aí fora... hoje, os níveis de enxofre estão bem desagradáveis – comentou a mulher gorducha. – Obrigada, senhora Orlaya. – Não precisa agradecer, jovenzinha. Agora, precisamos ajudar uns aos outros em tudo o que for preciso, não acha? – Com certeza, sim – respondeu, recordando a falta de cooperação entre Nicar e Mezvan. – Sabe de uma coisa? Sinto tanta falta de Sálvia que até tenho saudade de quando você saía correndo pelo meu telhado. Hahaha! – riu alegremente a mulher. Lan sorriu e depois pigarreou para chamar a atenção. De nitivamente, não estava para brincadeira; corria contra o tempo. – Oh! Sinto muito, estou atrapalhando você, não é? Vou avisar a Mona – disse a mulher, compreendo que, mais uma vez, estava falando demais. Lan continuou em pé, observando aquela casa pequena. Era evidente que estavam cando sem espaço na cidade e por isso construíam casas cada vez menores. O teto era baixo, e algumas das paredes estavam ​enrugadas. Não havia muita iluminação, mas era bastante acolhedora. Segundos depois, Mona apareceu ao lado de Timot, o excêntrico filho do rei.


– Lan! – chamou ela. – Não pensei que você viria me ver hoje. – Sim... bom, foi algo inesperado. – Não tem problema. Timot e eu já terminamos. Lan arqueou uma sobrancelha. – Sou o responsável pelos sobreviventes de Sálvia – explicou o lho de Mezvan. – Vim ter certeza de que Orlaya, Priez e Mona não precisam de nada – concluiu, abrindo um amável sorriso. – Compreendo – disse a menina, descon ando do menino que todo mundo a rmava ter um parafuso a menos, mas que naquele momento parecia totalmente preparado para cuidar de Mona. Talvez fosse um espião de seu pai. – Quer beber alguma coisa antes de ver Nao? – perguntou a menina, alheia ao plano que tanto preocupava sua amiga. – Oh, eu... não posso car por muito tempo – desculpou-se Lan. – Na verdade, só queria conversar com você... em particular – disse, fulminando Timot com o olhar. – Tudo bem... entendi a indireta! – disse ele, tentando pegar Luna, o kami de Mona, que estava brincando com seus cabelos. – Estou indo, estou indo... O lho do rei pegou o casaco, que estava pendurado e vestiu-se (continuava sendo muito ridículo); depois, aproximou-se de Lan com o andar cambaleante e sussurrou em seu ouvido: – Se está pensando em escapar... cuidado. O Sumo Intocável está esperando por vocês, e meu pai tem um pequeno exército vigiando-os de perto. Lan não soube como interpretar aquela mensagem. Seria uma ameaça? Ou será que ele estava prestando apoio? Timot abriu seu grande guarda-chuva metálico e logo se despediu com um suave gesto. – Hmmm – murmurou a menina. – Ele tem nos ajudado muito – disse Mona. – É muito atencioso. – Não tenho dúvida – respondeu Lan, com receio. Mona pegou a mão da amiga e levou-a a uma das barracas. Todos os objetos que estavam do lado de dentro da casa pareciam ter sido remendados. Nada combinava... ali dentro se misturavam todos os tipos de estilos e materiais. Era uma espécie de lar improvisado. – Mona, eu... – tentou dizer, abaixando a cabeça com pesar. – O que foi, Lan? Vamos, não me assuste. – Eu... eu vou sair da cidade. – Por quê? – perguntou ela, entristecida. – Estamos bem aqui, são boas


pessoas. Além disso, não temos outra opção. Não podemos nem sair à procura de nossos pais. – Na verdade... talvez sim. – O que está dizendo? Não entendo – mostrou-se interessada. – Não posso falar disso, tudo bem? Apenas peço que con e em mim. Aconteça o que acontecer... aqui você estará a salvo. Lan abraçou Mona com força, como se estivesse se despedindo para sempre. Logo fechou os olhos para tentar guardar aquele momento em sua mente. – Quero ir com você – pediu a menina. – Nem pensar! Você precisa ser forte. Prometo que um dia você voltará a viver com sua família, e que reconstruiremos Sálvia. Mas... enquanto isso... espere aqui. – E Nao? – perguntou, sem entender. – Nao... – respirou fundo para concluir a frase sem hesitar –... ele também não pode vir comigo. É melhor que não saiba nada disso. No estado em que está, ele precisa descansar. – Mas você não pode abandoná-lo desse jeito. Nao a... – Mona controlou-se e reformulou totalmente o que ia dizer. – Nao... precisa de você. Você não imagina o quanto! O coração de Lan bateu acelerado. O que sua amiga estava insinuando?‐ Provavelmente, dentro de seu peito, algo que sabia havia muito tempo. De qualquer modo, era tarde demais para olhar para trás. Era preciso ser valente e enfrentar o destino, sem se importar com as consequências. – Sinto muito – disse. – Por favor, cuide de Nao por mim, de Priez e da senhora Orlaya, tudo bem? Eles precisam de alguém como você. Lembre-se de que eles também perderam seus entes queridos. Mona assentiu de modo obediente enquanto secava as lágrimas. Lan segurou seus ombros e disse, pela última vez: – E lembre-se: você não sabe de nada disso. Lan percorreu as ruas de Rundaris com os olhos cheios de lágrimas. Para ela, seria muito mais fácil ir embora sem se despedir do amigo, mas Nao não merecia algo assim e ela precisava vê-lo pela última vez. Eles tinham compartilhado muitos momentos bons, ela não podia ​abandoná-lo assim. A menina parou diante de uma tenda de equipamentos mecânicos que zeram com que ela se lembrasse de algumas ferramentas de seu pai. O sol estava se pondo, e o sistema de faróis de quartzo começava a iluminar as ruas com um


tom alaranjado fraco. Ela apoiou-se no cristal, precisava se acalmar. Analisou seu re exo e achou sua cara péssima; não queria dar uma impressão ruim para o amigo, por isso se ajeitou um pouco e tentou arrumar os cabelos sem sucesso. Quando chegou à enfermaria, decidiu ngir que aquela visita era como qualquer outra. Nao não sabia nada sobre o plano, e ela não queria deixá-lo preocupado. Estava decidida a se despedir dele sem que ele percebesse, mas, ao entrar no quarto, viu o Sequestrador de pé, ao lado do amigo. Lan hesitou, achou estar alucinando. O que ele estaria fazendo ali? A menina continuou avançando‐ até o Errante se virar, dando-lhe boas-vindas. Era verdade, e ele provavelmente havia revelado todo o plano a Nao para que este o ajudasse a convencer Lan a abandonar a missão. A menina aproximou-se nervosa. Nao e o Errante entreolharam-se e permaneceram em silêncio. Lan olhou para os dois, completamente desconcertada. – Vou deixar vocês sozinhos. Imagino que queiram se despedir – disse o Sequestrador, por fim. – Nao, conto com sua ajuda. Confio em você. – Não se preocupe, estarão no lugar combinado – respondeu o jovem, com firmeza. O Errante desapareceu em um piscar de olhos. Lan se virou para Nao, sem entender o que havia acabado de acontecer. – Do que vocês estavam falando? – Não precisa esconder nada de mim, Lan. Eu sei do plano de vocês. O pai dele veio me ver há alguns dias porque sabe que mantenho uma boa relação com os dois Corredores que me salvaram, os melhores de Rundaris. O Verde me contou todo o ocorrido e pediu um favor. – Um favor? Que tipo de favor? – Lan temeu a resposta do amigo. – Em seu estado, não pode vir conos... – Eu sei, eu sei! – grunhiu ele. – Eu gostaria de poder ajudá-los, mas tenho consciência de que eu atrapalharia – disse ele. – Só convenci os Corredores a ajudar vocês. Eles sabem encontrar água onde não parece ter, evitam todos os tipos de perigos e, o mais importante, correm mais rápido do que qualquer pessoa. Lan suspirou aliviada. Por um lado, seu amigo não correria perigo; por outro, o Sequestrador não o havia manipulado para convencê-la a abandonar​ a missão. – Lan – continuou dizendo, enquanto deixava as muletas apoiadas na parede e saía lentamente do quarto –, venha comigo. Preciso dizer algo a você.


Nao começou a caminhar devagar e dirigiu-se aos reservatórios do andar de baixo. A amiga cou feliz ao ver que ele já conseguia andar sem as muletas, ainda que mancando. Eles sentaram-se à beira de uma das balsas e então, seu amigo, compenetrado, ficou calado enquanto observava​ os brilhos coloridos. – Você já fez o bastante, não tem por que correr perigo – quis ​animá-lo. A menina sabia como seria difícil para ele ficar de braços cruzados. – Infelizmente, todos corremos perigo, em Rundaris ou não. Espero que o plano funcione ou as coisas ficarão muito difíceis. Lan contraiu os lábios para evitar o choro, aproximou-se dele e o abraçou com força. – Vai dar certo... – ela prometeu. A menina viu que havia anoitecido, então se levantou e começou a caminhar, mas Nao a segurou pelo braço. – Espere. O jovem ficou de pé e ofereceu a ela o precioso apito. – Não posso aceit... – Tenha muito cuidado, por favor. – Eu... – Acabei de conhecer esse Errante, mas ele me pareceu muito seguro de si. – Nao olhou xamente para ela. – Não me sobra outra opção, a não ser con ar nele... espero que ele saiba cuidar de você – disse, mostrando os olhos azuis, claros como a água dos lagos de Sálvia. Para Lan, parecia que o amigo tentava encontrar uma resposta em seu rosto, mas naquele momento ela tinha coisas demais na cabeça para pensar com clareza. – Preciso ir – disse ela, com nervosismo, quase com um sussurro. E Nao, ignorando as palavras, aproximou-se dela e a beijou. “Prometa que viverá para me devolver o apito.” Essas tinham sido as últimas palavras de seu amigo antes de ela sair correndo do prédio. O calor daquele beijo e a segurança que a envolveu naqueles braços havia feito com que se sentisse de novo em casa, mas Lan sabia que era apenas uma ilusão e não podia se apegar a ela. Estava anoitecendo. Estava na hora de colocar em prática o plano que Lan, O Verde e seu lho tinham preparado durante dias. Os três seguiram por caminhos diferentes enquanto Embo, o único que havia permanecido na estufa, observava as silhuetas afastado-se das instalações:


– Não falhem – murmurou, esperançoso. O Verde entrou decidido no palácio do rei. – Mezvan! – chamou ele. – Mezvan! Rapidamente, Naveen se colocou na frente dele, tentando prendê-lo em um dos corredores. – Mas o que pretende fazer? – perguntou. – Não pode se apresentar aqui sem solicitar uma reunião prévia, e muito menos chamar o rei com gritos. – O que está acontecendo, Naveen? – Mezvan escutou do outro lado do caminho. – Quem diabos me chama a esta hora da noite? Não foi preciso responder. O Verde se apresentou de supetão. – Você... – disse, revirando os olhos. – O que quer agora? – Preciso dos seus soldados para controlar os canais de magma. – Os canais? – perguntou, confuso. – Estão transbordando e já incendiaram boa parte do bosque próximo à nossa estufa. Ali está a substância que neutraliza as Partículas. O rei analisou O Verde com atenção, tentando detectar a mentira em seu rosto. Ultimamente, havia começado a descon ar dos Intocáveis, por isso se aproximou, sem vacilar, de uma das janelas e analisou, boquiaberto, o resplendor das chamas da encosta. – Guardas! O Verde percebeu a situação e reforçou a importância de atuar imediatamente: – Não podemos perder mais tempo! – Guardas! Naveen, alerte todos os guardas. É uma emergência! O Caminhante sentiu-se aliviado. Depois, o rei disse: – Precisamos dessa substância. Prometa que continuará com suas pesquisas e me informará a respeito de qualquer avanço, sim? O Verde assentiu e parou de prestar atenção nele. Havia acendido o pavio. Seu plano mestre acabava de começar. Sua missão: distrair o rei e seu exército. Enquanto isso, Embo sentia-se satisfeito com o trabalho que havia realizado. O brilho das chamas iluminava agora parte da montanha. Eles tinham descoberto que a substância que recobria as plantas era altamente in amável, mas não era prejudicial para a vegetação que protegia, já que, uma vez consumida pelo fogo, este se apagava. Ou seja: podiam incendiar o bosque sem que este fosse prejudicado, algo que não hesitaram em usar a seu favor.


O Sequestrador apresentou-se na barraca do Guia para colocar seu plano em ação. – Tem certeza, meu Guia? – perguntou, fazendo uma reverência com a cabeça. – Partiremos ao amanhecer? – Sim – respondeu Nicar, com a voz serena. O Guia aproximou-se alguns passos até apoiar a mão no ombro do menino. Em seguida, respirou fundo e disse: – Fico feliz por saber que escolheu o grupo certo. Não gostaria de perder você também – disse, em clara alusão a seu pai. O menino ngiu complacência e fez mais uma reverência. Instantes depois, um homem alto e robusto entrou na barraca e dirigiu-se ao líder, rígido como uma porta. – Quer que movamos a Esfera agora, meu senhor? O menino reconheceu o rapaz no mesmo instante; era o Caçador, um dos Caminhantes mais éis às regras e de quem ele discordava. Já tinham discutido diversas vezes, a ponto de as pessoas dizerem que eles nunca se entenderiam. Nicar analisou o Sequestrador, tentando ler seu pensamento, e respondeu, por fim: – Claro que sim. Ah! E deixe o menino acompanhar você. – O quê? – surpreendeu-se o homem. – Acho que já está na hora de vocês fazerem as pazes. Além disso, ele vai ajudá-lo muito. Lembre-se de que você continua sendo um Caminhante da Estrela, e que, apesar de suas ideias extravagantes, sempre esteve do nosso lado. – Mas, senhor... – tentou fazer com que ele entendesse. Nicar virou-se, ignorando seu apelo. O menino e o Caçador saíram da barraca e caminharam em silêncio pelo acampamento durante alguns minutos. O homem advertiu o rapaz: – Não me faça de bobo. Sei muito bem o que você quer e não permitirei que faça das suas. Em seguida, entraram em outra barraca. Havia cinco Caminhantes dentro dela. – Preparem a Esfera! – ordenou ele. Os cinco assentiram juntos e obedeceram sem reclamar. Primeiro, liberaram um cofre de bronze que estava encaixado sob uma mesa. Depois, o abriram com muito cuidado, usando uma enorme chave que estivera sob a proteção de um dos guardiões. Em seguida, envolveram a Esfera dentro de um pano de seda muito decorado, fecharam o cofre de novo, deram várias voltas na chave e o


carregaram em dois. – Vamos! – gritou. – Formação circular! Não podemos permitir que ninguém se aproxime demais. – Sim, senhor – responderam, em coro mais uma vez. O menino respirou fundo. Sabia que sua parte do plano era a mais arriscada, mas não pensou que teria de enfrentar seis dos Caminhantes mais bem preparados. Uma sombra entrou no acampamento sigilosamente. Ali dentro, a silhueta caminhou tentando imitar os movimentos dos outros Errantes. Quando a luz da lua iluminou seu rosto, os olhos dourados de Lan brilharam com intensidade. A menina estava vestida como um deles; a pele, escurecida pelo vulcão, passava despercebida na penumbra da noite. No dorso de sua mão, havia uma estrela falsa pintada, e seus cabelos compridos tinham sido cortados para que ninguém a reconhecesse. Apesar de a menina ter agora o aspecto de um Caminhante da Estrela, nada podia garantir que ela não seria descoberta. Passou entre as leiras de barracas com naturalidade, tomando o cuidado de não mostrar muito o rosto e, por m, foi à barraca que seu cúmplice secreto indicara. “É aqui”, pensou, sabendo que existia a possibilidade de ser uma ​armadilha. Analisou pela última vez o que estava prestes a fazer e então se deu conta de que ela era a peça-chave; se falhasse, faria o plano todo ir por água abaixo. Encheu os pulmões de ar com valentia e deu o último passo. Dentro da barraca, encontrou uma pessoa sentada de costas e logo conseguiu reconhecer. – Você! – exclamou. A ruiva virou-se e se animou, como um cãozinho decidindo o que fazer com um brinquedo novo. – Eu estava à sua espera – disse ela, com a voz sombria. A menina calou-se. Será que eles tinham sido traídos? Enquanto isso, o rei Mezvan organizou sua guarda, disposto a acabar com o terrível fogo que ameaçava destruir o antídoto para as Partículas. O Verde observava com atenção cada um de seus movimentos, calculando se o tempo que estava conseguindo seria su ciente para que seu lho e a menina concluíssem sua parte do plano. O Sequestrador manteve a formação até chegaram ao estábulo de wimos. Ali, ajudou o resto dos guardiões a carregar o cofre e se limitou a esperar pelo


momento adequado. – Abra mais uma vez – pediu o chefe a um de seus seguidores. – Não é preciso, senhor. – Eu decido o que é necessário ou não – ele o repreendeu. O guardião pegou rapidamente a chave, abriu o cofre e comprovou que a Esfera continuava ali dentro. – Certo – aprovou ele –, agora vamos vigiá-lo; atenção que a ameaça e... O menino viu sua oportunidade e deu um chute no cofre antes de o guardião fechá-lo de novo. – Mas que diabos está fazendo? O Errante empurrou um de seus companheiros e partiu para cima de outro. Naquele instante, o Caçador segurou-o pelo pescoço para estrangulá-lo, mas o rapaz soube reagir a tempo e escapou dando um chute no meio das pernas do homem. Sem hesitar, pegou a Esfera, que ainda estava envolvida no pano de seda. O Caçador gritou, desesperado: – Rápido! Prenda-o! Lan ficou boquiaberta. A ruiva, sua única amiga entre os Caminhantes, estava de frente para ela, segurando a verdadeira Esfera. – Foi muito difícil para mim fazer a troca. Proteja-a com a sua vida se for preciso e entregue-a ao Verde. Não erre; você é a nossa única ​esperança. O que O Verde podia ter dito àquela mulher para ela mudar totalmente de atitude? A ruiva era uma Caminhante fervorosa, a última pessoa que Lan consideraria capaz de trair seu povo. A mulher envolveu o objeto com um pano e o deixou com cuidado sobre a almofada. Lan abaixou-se para pegar o mapa e, quando o ergueu pela primeira vez, sentiu-se aliviada. Como se o poder que guardava aquele cacareco pudesse lhe devolver a sua mãe. Agora, só precisava sair dali com vida. – Obrigada – agradeceu com os olhos marejados. A ruiva fez cara de felicidade e disse: – Meu Guia havia criado uma armadilha ótima, mas... pela primeira vez, o rato se deu melhor do que o gato. A guarda de Mezvan tinha apenas vinte homens, ainda que a maioria fosse bem treinada. Todos seguiam seu rei cegamente e não hesitaram nem um segundo para se embrenhar naquele bosque cheio de lama carregando contêineres de água e todos os tipos de objetos para apagar incêndios. Enquanto


isso, O Verde continuava rezando para que seu plano fosse ​s uficiente. Lan caminhou pelo acampamento disfarçadamente, procurando uma das saídas que havia memorizado antes. Viu pela última vez as vacas peludas descansando nos estábulos, as barracas brilhando com a chama das velas dentro delas e o cheiro da mistura de incensos. Trair aquele povo não era uma tarefa fácil, mas era absolutamente necessária. – Vamos! Prenda-o! – escutou ao longe. A menina virou-se, reconhecendo o Sequestrador a distância. Enquanto isso, o menino teve a con rmação visual que estava esperando e continuou correndo como um louco. O plano parecia estar funcionando dentro do previsto: não havia nem sinal da guarda de Mezvan, e o menino havia roubado o chamariz de Nicar para distrair a atenção para longe de Lan, que segurava a verdadeira Esfera roubada pela cúmplice ruiva. O filho do Verde entrou nas ruazinhas mais estreitas da cidade para despistar o grupo de Caminhantes, mas, para seu azar, eles eram mais numerosos e mais espertos. Sabia que mais cedo ou mais tarde eles o pegariam, e ainda assim decidiu manter firme o plano formulado pelo pai. O menino escondeu-se atrás de um contêiner de lava com a esperança de despistar os perseguidores. Assim, permaneceu no mais profundo silêncio para não entregar onde estava. O Caçador avançou com rmeza. Olhava de um lado a outro, tentando não perder nenhum detalhe. Fazia tempo que queria dar ao menino o que ele merecia, e não perderia a oportunidade. Precisava pegá-lo para acabar com aquele jogo tolo de uma vez. – Sei que você está aqui! Não adianta se esconder! Silêncio. – Vamos! Podemos esquecer o que aconteceu. Sabe que o nosso Guia é muito compreensivo com esse tipo de coisa. Silêncio mais uma vez. O homem bufou, irritado, e então se dirigiu a um de seus ajudantes com voz sombria: – Nossa! Isso é um teatro puro. Capturem-no e vamos acabar com isso de uma vez, mas lembrem-se: antes de levá-lo ao nosso Guia, tenho contas a acertar com ele. O Sequestrador escutou a conversa de quem o perseguia e concluiu que não conseguiria mantê-los distraídos por mais tempo; sua missão estava concluída,


tinha de fugir. Tivera consciência, desde o começo, de que aquela Esfera era, na realidade, uma réplica malfeita, e então sorriu e pensou em Lan. Será que ela havia conseguido escapar com a verdadeira Esfera? A menina conseguiu escapar do acampamento sem chamar atenção, mas na cidade tudo havia se complicado. Continuava vestida como uma Errante, e as pessoas não paravam de fazer sinais e de se surpreender. O que um Intocável estava fazendo vagando àquela hora em Rundaris? Lan abaixou a cabeça para passar despercebida, e não reparou em um detalhe. – Oh! Sinto, senhorita, eu fui o culp... – disse o senhor. A menina arregalou os olhos ao descobrir a gravidade de seu erro. – Pelo Grande Linde! Eu a toquei! – exclamou o senhor, aterrorizado. – Toquei uma Intocável! – Não, na verdade, apenas resvalou em mim – tentou solucionar o problema. – Vou morrer! Toquei uma Intocável! – continuou gritando. – Oh... não! Não, não, não! – exclamou desconsolado. – Não se preocupe. O senhor não... Já era tarde demais, as pessoas já tinham se reunido ao seu redor para comprovar se o que o velho gritava era verdade. Ela havia falhado. Os gritos denunciaram sua localização. – Não é possível! – exclamou um dos presentes. O Caçador estava perto do alvoroço. – É uma farsante! – escutou de longe. O Sequestrador percebeu que estavam se referindo a Lan, por isso saiu de seu esconderijo e tentou chamar a atenção dos perseguidores. – Peguem-na! Por azar, a única saída conduzia, inevitavelmente, à rua onde Lan ​estava. – Oh, não! – disse. O Caçador observou a cena de longe, compreendendo o que de fato estava acontecendo. – Era uma armadilha – deduziu ao ver que a menina segurava um objeto muito parecido ao do menino. Era uma armadilha! Esqueçam ele, prendam a menina! – ordenou mais uma vez. Lan assustou-se e tentou atravessar a multidão. Agora, as pessoas sabiam que ela não era uma Caminhante, então ela podia empurrar quem estivesse à sua frente. Começou a chover.


Continuou correndo desesperada, tentando fugir de quem a ​perseguia. Era chuva ácida. Os moradores de Rundaris abriram os guarda-chuvas de metal. Ao longe, viu o menino e comprovou que estava bem. Perdeu a concentração durante alguns segundos e logo deu de cara com um dos guardiões Errantes. – Peguei você! – disse ele, impedindo-a de avançar. Lan contraiu a mandíbula com raiva, pensando rapidamente em qual seria seu próximo passo. Teria de improvisar. – Vamos, a brincadeira acabou – insistiu o guardião. Inesperadamente, a menina se deu por vencida e disse: – Certo, eu concordo – bufou. – Vocês venceram, mas... prenda-me se for capaz. – O quê? – estranhou ele. – Vamos... toque em mim! – ela o desafiou com a voz séria. O homem arregalou os olhos, totalmente desconcertado. – Mas... o que pretende? – murmurou. A chuva continuava caindo sem parar. Lan cobriu a cabeça com o capuz de sua roupa. – Se me prenderem, estarão condenados, não é? – continuou jogando suas cartas. – Serão castigados. Não podem me tocar. Os Caminhantes cerraram os punhos com raiva, reconhecendo que a inteligência da menina tinha sido maior do que a deles. Então, o Caçador sorriu e disse: – Não pense que vai se safar com tanta facilidade. Em seguida, o exército de Mezvan tomou as ruas. – Eles são como você – disse com malícia. Lan o xingou em silêncio e fez a única coisa que lhe ocorreu: en ou-se entre as pernas de um dos guardas e saiu correndo. – Vamos! Corra! É a única coisa que pode fazer! – disse o Caçador, sabendo que a menina não teria como escapar. Enquanto isso, o Sequestrador desfez-se da Esfera falsa, que não servia para nada, e começou a correr atrás dela. A guarda de Mezvan continuou em movimento, apesar de as pessoas que transitavam pelas ruas, as quais não podiam tocar, impedirem-nos de avançar com rapidez. De repente, escutaram uma voz no alto que pareceu familiar. – Laaan! Venha, suba! Sem parar de correr, a menina olhou para cima e viu seu amigo, Nao, de pé no


telhado de um prédio. Não conseguiu acreditar. Sem pensar duas vezes, a menina subiu uma escada para chegar até ele. – Mas, como...? – Não temos tempo para explicações – disse ele. – Vamos! E então, começaram a correr sobre os telhados, como antigamente. – Venha! – Lan gritou para o Sequestrador. Aquela situação era muito irônica: antes, ela corria sobre os telhados para não perder nenhuma palavra das mesmas pessoas das quais agora tentava fugir. Apesar de a ideia de Nao ter lhes dado vantagem, o exército conhecia a cidade como a palma de sua mão e possuía todo tipo de armas de longo alcance. Nao utilizou os braços e as pernas para deslizar e saltar de um lado a outro, sua especialidade, mas nem assim conseguia acompanhar o ritmo da amiga. Pouco a pouco, foi diminuindo a velocidade até que parou por um instante e ajoelhou-se para recuperar as forças. O menino respirava de modo ofegante enquanto levava a mão às costelas embaixo da camiseta e continha um gemido de dor. Lan o ajudou a car em pé e o Sequestrador nalmente os alcançou, saltando de um telhado a outro sob a chuva, evitando as echas que os soldados disparavam e desviando-se com agilidade das estruturas metálicas que formavam aquela cidade estranha. Como em Sálvia, alguns dos habitantes iam até a janela para ver o ​escândalo. – Não olhe para trás! – gritou o menino. Lan também se sentia no limite de suas forças; não tinha certeza se poderia aguentar o ritmo durante muito tempo, mas tinha de tentar. Eles já tinham ido longe demais para desistir agora, exatamente quando estavam a poucas ruas do Limite Seguro da cidade. A guarda de Mezvan perseguia-os por um lado, e a de Nicar, por outro. Estavam prestes a alcançá-los. De repente, um soldado de Rundaris disparou seu arpão, e a menina, ao esquivar-se do projétil, foi de encontro a uma abertura no alpendre. – Ai! – gritou. Nao não hesitou e entrou logo no espaço escuro onde sua amiga havia caído. – Você está bem? – Ai! Aaaaiiii! – queixou-se Lan, cando em pé. – Sim, mas com certeza ganharei um belo hematoma – reclamou ela. – Eles nos viram? – Acredito que sim – respondeu ele, preocupado, ainda com a respiração acelerada. O menino agachou-se e encostou as costas contra a parede, cerrando os punhos


para tentar conter a dor, e fechou os olhos, que se escondiam atrás dos cabelos molhados de suor. Estava tão pálido que Lan temeu que ele desmaiasse a qualquer momento, e então se aproximou, segurando​ sua mão. Nesse instante, o Sequestrador entrou em cena. – Os guardiões estão subindo por um prédio, logo vão nos alcançar – avisou. – São muito rápidos! Não sei se vamos escapar – lamentou Lan. – Você precisa ir até o Limite – disse Nao. – Eu só queria ter certeza de que tudo estava bem, de que conseguiria alcançar o ponto de encontro combinado com os Corredores – explicou, enquanto pressionava o lado esquerdo para esconder que a camiseta começava a car vermelha. – Está muito perto, só precisa chegar à passarela que se​dobra à direita. Lan desviou o olhar e por m compreendeu que não fazia sentido abandonar tudo agora. – Tudo bem – disse, separando-se chateada de seu amigo. Os dedos de Nao ainda estavam entrelaçados nos seus. – Obrigada por... por tudo – disse ela. A menina inspirou profundamente para recuperar as forças e dirigiu-se a uma pequena porta, a única que parecia haver naquele local. – Lan – chamou o Errante dessa vez. – O que foi? – perguntou ela, estranhando. – Seu cabelo... não fica ruim assim. Lan abriu a boca com a intenção de dizer algo, mas conteve-se. Estavam escondidos na penumbra e só era possível ver o formato de seu rosto. Não tinha certeza se o menino estava olhando xamente para ela, se estava tentando animá-la, se suas palavras eram sinceras ou uma brincadeira sem graça. Por um instante, ela sentiu-se estranha. Bem, ela mexeu em uma mecha de seus cabelos recém-cortados e pensou que o sacrifício valera a pena. Era a primeira vez que o Sequestrador dizia algo daquele tipo. O enfado por ter tentando convencê-la a se manter por perto desapareceu. Nao gritou: – Lan, afaste-se dele! A menina mostrou-se confusa. – Lan! Seus olhos estão brilhando! – disse o amigo. Nao cou em pé com muita di culdade e tentou se posicionar entre ela e o Sequestrador. Lan viu as pupilas prateadas do Errante brilhando intensamente na escuridão e levou as mãos à boca, completamente surpresa.


– Isso não pode estar acontecendo! – exclamou a menina. – O que está acontecendo? – quis saber Nao, já que nunca tinha visto os olhos de um Errante reagindo às Partículas. – A qualquer instante... – explicou o Sequestrador – a Quietude vai se romper. – Não posso permitir que você vá com ele, é muito perigoso! – disse o morador de Sálvia. – Não há como voltar atrás, Nao, é... – Tudo bem, darei a minha vida se for preciso para proteger você – disse o Errante. – Eu prometo. – Se não formos agora... será muito tarde – disse Lan. Nao olhou fixamente para o Sequestrador de forma desafiadora e disse: – Mas preste atenção... caso contrário, independentemente de onde você se esconder, vou procurá-lo por todo o Linde e acabarei com você. Uma brisa suave soprou. Nao compreendeu que o tempo estava contra eles e abriu o caminho. Rapidamente, o Sequestrador derrubou a portinha com um chute e saíram no telhado do primeiro andar. Lan já estava correndo quando se virou pela última vez para ver seu amigo retorcendo-se de dor na escuridão. Os guardas o haviam cercado, sua silhueta se tornava cada vez menor. Uma espessa névoa começou a engolir Rundaris lentamente. Chovia a cântaros, chuva ácida. A guarda da cidade empregou todos os tipos de redes e artifícios de longo alcance para derrubá-los, mas eles conseguiram se esquivar diversas vezes. Rapidamente, uma das pedras de quartzo bateu na cabeça de Lan, uma das que brilhavam dentro dos faróis, e ela deixou a Esfera rodar até o solo. – Oh, nãããooo! – lamentou. A menina tentou alcançá-la, ficando agarrada a um dos diversos canos. – Laaaan! – assustou-se o Errante. A menina esticou os músculos o máximo que pôde e por m conseguiu alcançar uma das escadas próximas. O Sequestrador já havia recuperado a Esfera e agora só queria ter certeza de que Lan estava bem. A menina aterrissou no solo batendo um ombro, mas conseguiu ficar em pé sem muita dificuldade. Instantes depois, uma flecha atravessou sua roupa. – Estou bem – aproximou-se de seu companheiro. Os olhos do Errante continuaram brilhando, cada vez com mais intensidade. Uma perigosa nuvem de Partículas surgiu do solo, voando como vespas iluminadas, e Lan cobriu-se com seu pano. – A ruptura é iminente.


As luzes das ruas apagaram-se de forma progressiva, deixando a cidade totalmente às escuras. A guarda de Mezvan protegeu as vias respiratórias e os Caminhantes da Estrela formaram um pequeno grupo, parecido com uma matilha de lobos esperando na noite; seus olhos brilhavam de modo assustador. – Estamos perdidos – disse a menina. Tudo começou a tremer e o caos tomou conta da situação. – Aqui! – escutaram ao longe. – Pai? O Verde e os dois Corredores de Rundaris apareceram no m da rua, como previsto. Os Corredores montaram em seus respectivos wimos, enquanto o pai do Sequestrador guiava um extravagante veículo a vapor desenhado por Embo. – Vamos! Entreguem a Esfera para mim. Temos de sair daqui o quanto antes! – Pai! – alegrou-se o Sequestrador. Lan e o menino correram pelo caminho dispostos a pegar o equipamento e desaparecer assim que possível, mas os guardas localizados nos telhados foram mais rápidos e lançaram suas boladeiras, prendendo os wimos e conseguindo derrubar O Verde e o restante dos Corredores. – Paaaai! Quando o Sequestrador chegou, pôde comprovar que, apesar de seu pai ter perdido a consciência, ainda estava vivo. Lan olhou xamente nos olhos do menino, pedindo a ele que tivesse coragem. Ele assentiu. Com muito cuidado, deixou o pai deitado no chão e pegou a bolsa de couro que levava amarrada nas costas. Em seguida, guardaram a Esfera ali dentro e comprovaram que estavam a poucos metros do Limite Seguro. Rapidamente cariam a salvo! Nem os Caminhantes nem os moradores de Rundaris se atreveriam a segui-los em plena ruptura. Por m, decidiram retomar o caminho e entraram no veículo, mas um dos guardas de Mezvan, que havia se adiantado ao resto, lançou-se contra Lan, segurando seu tornozelo e fazendo com que ela caísse. – Lan! – exclamou o menino, dirigindo-se furioso ao soldado. – Não! – gritou ela. – Não toque nele! – pediu. – Não faça isso! – avisou, consciente de que poderia matá-lo. Apesar das súplicas da menina, o Sequestrador avançou disposto a dar um forte chute no guardião quando, de repente, uma estranha sombra se entrepôs entre os dois. – Solte a menina – exigiu com a voz trêmula. – Nem pensar! – negou-se o soldado, segurando-a pelas costas.


O restante de seus homens colocou-se atrás dele. – Ordeno que a solte – insistiu. – Mas quem você pensa que é? Rapidamente, a sombra bateu com força duas peças de quartzo e por m relevou seu rosto. – Você! – Solte-a de uma vez – disse, abrindo seu guarda-chuva oxidado como se fosse uma espada. – Mas... seu pai disse que... – Meu pai é um tolo – disse, como se quisesse pronunciar essa frase havia muito tempo. O guardião pensou em soltar a menina, mas logo depois compreendeu que não tinha mais por que obedecer àquele homem, ainda que fosse o filho do rei. – Não – negou ele. Timot olhou para os dois, analisando a situação. Estava totalmente molhado, ajudando o Errante e a moradora de Sálvia a fugir da cidade de seu pai; ainda que não morresse na ruptura, estava perdido de qualquer modo. O lho do rei revirou os olhos, girou o guarda-chuva metálico e acertou um golpe forte na cabeça do soldado. Talaaán!, o som foi parecido ao de um sino. Rapidamente, a menina pegou do chão o saco com a Esfera e cou em pé, agradecendo a Timot o que ele havia feito por eles. – Até os meus soldados não me respeitam mais! – exclamou, ngindo-se indignado. – Se um dia eu herdar esta terra... muitas coisas mudarão. Lan saltou sobre o veículo e apressou o amigo. – Pode partir! Tinham de alcançar o limite antes que a Quietude se rompesse definitivamente. – Meu pai! – o menino se controlou. – Não posso deixá-lo. Lan olhou para ele com preocupação. O menino virou-se à procura do Verde e descobriu que este havia recuperado a consciência. Estava vivo, ainda que gravemente ferido no chão. O pai olhou xamente para ele e assentiu com a cabeça, como pedindo que partissem sem ele. O rapaz despediu-se pela última vez e atravessou o Limite Seguro com Lan, deixando para trás uma espessa nuvem de vapor. E, mais uma vez, a paisagem se transformou-se ao seu redor. Agora, o destino do Linde estava em suas mãos.


Entre a aurora e o gelo

F

azia muito, muito frio. Ainda era noite, mas já não havia rastro da ​cidade de Rundaris. No chão, estendia-se uma enorme massa de gelo que ameaçava rachar a qualquer momento. Sobre suas cabeças, brilhava a lua cheia, rodeada por um belo tom de verde; a aurora boreal. – Você está bem? – preocupou-se o menino – Sim... eu... só... – respondeu Lan, recuperando a compostura. – Só preciso descansar um pouco. Os acontecimentos tinham sido precipitados. Nada havia saído conforme o previsto. O Verde deveria ter recuperado a Esfera perto do Limite para fugir com alguns dos Corredores que tinham decidido desobedecer a Mezvan enquanto eles dois se escondiam com Embo. No entanto, Lan e o jovem Errante arcavam agora com toda a responsabilidade. Aquela havia se tornado a sua missão. Eles tinham o mapa, mas estavam completamente sozinhos diante de uma paisagem desanimadora. O menino ficou em pé e disse: – Não é muito inteligente car aí sentada sobre o gelo. Acredito que o melhor seja continuar avançando até encontrar terra firme. Lan suspirou, entediada, e sentiu falta do equipamento mecânico que tiveram de abandonar horas antes. Embo havia feito um belo trabalho criando um veículo capaz de locomover-se pelo deserto e por todos os tipos de terrenos escarpados, mas não havia contado que o peso poderia ser um impedimento na hora de avançar sobre o gelo. Infelizmente, foram parar em uma placa muito fraca, que se rachou assim que chegaram, engolindo o veículo e salvando-os por pouco. Lan envolveu o pescoço com o pano e logo vestiu a capa grossa que havia


utilizado para passar despercebida durante a incursão ao acampamento dos Errantes. Já não tinha nada de que se esconder. A guarda dos Caminhantes havia desaparecido junto com a cidade e provavelmente estavam muito, muito longe, talvez até em outra ponta do planeta. A fuga havia terminado. – É... esquisito, não é? – o menino tentou puxar conversa. – O quê? – Isso. Tudo isso – disse. – Digo a... não sei. – Deu de ombros. – Você e eu juntos, completamente sozinhos, perdidos... no gelo. Apesar de ele não ter conseguido se expressar com clareza, Lan sabia exatamente a que ele se referia. – Sim, acho que sim – respondeu de modo sucinto. Sentiu medo: de se perder, de fracassar, de decepcionar todos que haviam depositado esperança neles. Sua teoria baseava-se apenas em hipóteses, ninguém garantia que quando chegassem ao Templo tudo seria resolvido como num passe de mágica. Eles tinham se deixado levar por uma pequena possibilidade que outros haviam descartado, e isso os deixava inquietos. Lan decidiu mostrar-se forte; não queria ser um peso para o Errante, e por isso continuou sem pestanejar, enquanto em sua mente aparecia todo tipo de imagem: a perseguição, as lágrimas de Mona, o olhar preocupado do Verde e, principalmente, o beijo de Nao. Pressentiu que teria muito tempo para pensar em tudo aquilo. Caminharam durante muito tempo, mas continuavam sem avistar o nal da vasta extensão de gelo. O menino parou e abriu o embornal de seu pai. Dentro dele, havia uma série de cacarecos, os frascos que continham a substância, algumas provisões e, envolvida em um pano, a Esfera. O Sequestrador a pegou com cuidado, deixando-a no chão, diante de seus pés. – Você sabe como ela funciona? – perguntou Lan. – Acredito que sim. Já vi meu pai fazer isso centenas de vezes. – De qualquer modo, não parece muito difícil. – Não é – con rmou. – Só é preciso deixá-la em um lugar mais ou menos estável e apertar aqui – indicou o Errante, posicionando o dedo sobre o círculo gravado no ponto mais alto. – É só isso? – perguntou Lan, pensando que aquilo era fácil demais. A Esfera começou a vibrar com um forte tremor. Dentro dela foram acionadas duzentas engrenagens que controlavam aquela máquina ​complicada. – Agora é só esperar. Lan observou o equipamento maravilhada enquanto esquentava as mãos em


seu calor. O objeto começou a dar voltas em seu próprio eixo e depois recon gurou sua superfície como se fosse um quebra-cabeça incompreensível. Quando nalmente terminou, o tremor parou, e então o menino abaixou-se para pegá-lo. – Já temos nosso mapa! – É mesmo? Já? – inquiriu, desconfiada. – Sim, é muito fácil. Não é necessário nenhum tipo de mágica nem de ritual. De fato, se for retirada toda a solenidade acrescentada pelo Guia... não é lá essas coisas , não acha? – Eu... não diria isso. – Sim, mas está claro que perde parte do mistério. – Sim, acho que sim – admitiu, finalmente. O menino segurou a Esfera entre as mãos, tentando encontrar a localização exata deles para poder traçar a rota que os levaria até o Templo, marcado na superfície de metal com uma pequena estrela. – Devemos nos dirigir ao norte – concluiu, por fim. – Perfeito. E como pretende que eu saiba onde ca o norte nessa in nita‐ extensão de... nada? – ironizou, observando o inóspito deserto de gelo. O menino sorriu de modo confiante e finalmente disse: – As estrelas sempre mostram um caminho. O menino levantou a cabeça e olhou o rmamento. Apesar de o resplendor da aurora boreal cobrir a luz das estrelas mais fracas, o Sequestrador havia praticado a orientação estelar desde pequeno, por isso não foi difícil localizar-se com exatidão. Lan observou-o, recordando a conversa que tivera com O Verde, e se sentiu sortuda por estar com alguém que não estava tão perdido como ela. – É por ali – apontou para um lado. – Bem, pelo menos não teremos de voltar pelo mesmo caminho – respirou aliviada. Continuaram caminhando sobre o gelo, próximos o su ciente um do outro para conversar em um tom mais ou menos normal, mas longe o bastante para não se tocarem sem querer. – Está muito longe? – perguntou Lan. – Bem, tudo depende. – De quê? – É que... segundo o mapa, estamos do lado oposto ao do Templo, mas nada garante que a Quietude vai continuar estável até que cheguemos por nossos


próprios meios. – O que quer dizer com isso? – Nós, os Caminhantes, podemos nos orientar pelo Linde, mas não temos nenhum controle sobre ele. Temos consciência de que, por mais que sigamos pelo caminho adequado, o planeta pode nos levar de volta ao ponto de partida a qualquer momento. Nesse instante, o que ela menos queria era voltar a Rundaris. Estava tremendo de frio entre a aurora e o gelo, mas essa situação hostil era melhor do que voltar a pisar na cidade sem uma cura. Havia muitas pessoas a quem prestar contas. Ilusões desfeitas, esperanças perdidas. Uma promessa a cumprir. Lan segurou o apito de Nao com os dedos gelados. – Então... tomamos o caminho certo? – Não – negou totalmente. – Primeiro, vamos por terra rme, depois escolheremos o caminho – explicou. – O gelo é perigoso... Lan escutou aquela palavra e lembrou-se das divagações do menino no mirante da estufa. Para ele, tudo era perigoso. A vida era perigosa. Depois, lembrou-se da sensação que teve ao descobrir o Errante no Bosque dos Mil Lagos, com seus olhos brilhantes ameaçadores e Ivar chorando a seu lado. Sequestrador. Sequestrador. Sequestrador. Tinha de dar um nome a ele. Antes, ele lhe parecera perigoso. Letal. Um predador. Agora, havia se transformado em seu companheiro inseparável de aventuras. Como haviam chegado àquele ponto? Juntos. Sozinhos. Perdidos. Como aquela estranha aliança entre inimigos podia ter sido formada? Lan pensou no ocorrido e concluiu que sua vida havia mudado inesperadamente. “A vida não é perigosa, é imprevisível”, repetiu para si. Nunca pensara que sairia de Sálvia, que conheceria Rundaris, que caminharia por um deserto, sobre o gelo, sob a aurora boreal! E, no entanto, ali estava ela. Perdida. Viva. Ironicamente, andando ao lado de um Caminhante e, ainda, vestida como um deles. – Você precisa de um nome – disse em voz alta. – Não. Não preciso – negou ele. – Mas eu preciso. Não posso continuar chamando-o de Sequestrador. – Eu gosto. – É mesmo?


– Claro que não! – respondeu, indignado. – Foi o que pensei. Continuaram caminhando em silêncio por mais alguns metros, até que o menino não conseguiu mais evitar a conversa. – É verdade que ainda me chama assim? De Sequestrador? – Bem, só às vezes... na minha mente – envergonhou-se. Logo, o gelo no qual pisavam emitiu um som forte. – Espere. O que foi isso? – perguntou ele, achando aquilo muito ​estranho. – O quê? – Essa... luz. – Como vou saber? Pode ter sido um reflexo da aurora boreal ou... – Não – ele a interrompeu. – Foi algo muito mais... intenso. – Intenso? – olhou para ele de soslaio. – Não sei do que está falando – continuou, colocando as mãos perto da boca para esquentá-las de novo. – Hummm – grunhiu. – Vou pensar em um nome. – Já disse que não é necessário. – Sem um nome, você não é ninguém. – Claro que sou. Não preciso que me classi quem como uma coisa comum... – o menino parou no meio da frase. – Eu vi de novo! – Eu também – disse ela, assustada. – Que diabos era aquilo? – Não sei. Uma luz. Um brilho sob o gelo. – Não é nada bom, não é? O menino olhou para um lado e depois para outro, como se fosse um caçador checando sua posição. Depois, aguçou o ouvido e colocou-se em alerta com todos os sentidos. – Está ouvindo? – Não. – É como se fosse um... toc-toc. – Como se alguém batesse à porta? – Sim, mais ou menos. – Sinto muito, mas não escutei nada. – Bem... – deu-se por vencido. Continuaram caminhando durante muito tempo sem encontrar uma explicação para aquele fenômeno. A luz acompanhava-os sob o gelo o tempo todo. Tinha um tom rosado diferente, que variava até se tornar cor de âmbar. Aumentava sua intensidade de forma aleatória, brilhando às vezes como uma estrela no


rmamento e outras, como uma vela quente. Era como se a aurora boreal sobre suas cabeças tivesse uma irmã pequena que se deslocava sob seus pés, brincando com as sombras projetadas por seus corpos. – Não sei se conseguirei resistir a este frio por muito mais tempo – disse Lan, rangendo os dentes. – Vamos, não pare. Já estamos perto – tentou animá-la, irritado por não poder lhe dar um abraço para que ela se aquecesse. Toc-toc. Caminharam durante mais um tempo, mas os lábios estavam tão roxos e as extremidades tão congeladas que conversavam pouco. Caminhavam cada vez mais devagar. – Vamos, mais um pouco – disse ele. A menina caminhava arrastando os pés, temendo que, se os levantasse demais, seus ligamentos congelados se quebrassem como cristal. – Vou chamar você de Zambo – disse, com esforço. – O quê? Zambo? Que tipo de nome é esse? – irritou-se, tirando a camada de gelo que havia começado a se formar sobre seus cílios. – Parece o nome de um homem... velho. Não sei. Não gosto nem um pouco – disse o menino. – Hahahaha! – Lan riu. – Então, vou chamar você de... Humm. Deixe-me pensar. Alaris? O Sequestrador mudou de atitude, como se aquele nome não o desagradasse totalmente. A menina parou por um instante e disse: – Ah! Não. É um nome muito brega, não acha? – Ela descartou no mesmo momento. Toc-toc. Toc-toc. Lan coçou o queixo, pensativa. A luz que os acompanhava cou exatamente embaixo da menina, como se tivesse se movido para iluminar apenas ela. O Sequestrador observou-a hipnotizado. Estava linda, parecia uma peça de cristal esculpida por um artista. Sobre seu corpo, a luz verde da aurora caía como se fosse um manto, que se fundia com o tom de rosa vindo do outro lado do gelo. – Acho que já sei. Já sei como vou chamá-lo! Toc-toc. Toc-toc-toc. E então o menino entendeu. – Ande. – O quê? – Rápido! Ande! – ordenou.


– Só estou descansando um pouco... De repente, o gelo começou a rachar, formando o desenho de uma perigosa teia de aranha sob seus pés. Toc-toc. Tooc-toooc. Toooc-toooooc! Lan não conseguiu desviar os olhos do chão. Moveu-se com cuidado para não forçar ainda mais a rachadura e então perguntou, assustada: – O que está acontecendo? – Acho que é algum tipo de animal – deduziu ele, examinando a rachadura enquanto se distanciava. – Um come-terra? – Nesse caso, deve ser um “come-gelo”, certo? – Não é hora de brincadeiras – disse ela, reprovando o rapaz. O menino fez um sinal para que ela se afastasse enquanto ele observava o chão, que continuava se abrindo. Independentemente do que fosse, não podiam ignorar durante muito mais tempo o que estava prestes a sair para a superfície. Estavam no meio do nada, eram alvos tão fáceis que provavelmente não sairiam vivos dali. – Laaaan! Correeee! Um enorme monstro marinho apareceu causando um forte estrondo. O gelo voou pelos ares como se fosse uma perigosa chuva de cristais e a água inundou tudo ao redor. Apesar de aquele animal não ter garras, deslizava pelo gelo com grande habilidade, serpenteado como uma cobra pronta para pegar a presa: Lan. – Corre! Coorreee! Cooorreeeee! Quando o menino compreendeu que aquele estranho peixe não desistiria enquanto não a engolisse, tomou uma decisão drástica. – Mas o que está fazendo? – gritou a menina. – Não se vire! – Não quero partir sem... – Eu disse para você correr! Quando o monstro estava perto o su ciente, o menino saltou sobre ele, segurando-se com força em suas costas geladas como neve. Lan gostaria de poder gritar para o Errante chamando-o pelo nome, mas ainda continuava sendo o Sequestrador. Viu como o menino lutava uma batalha perdida contra aquele enorme peixe tenebroso de escamas brilhantes. Estava condenado a morrer engolido. Lan sabia que ele era um Errante muito obstinado e que não se renderia até ter certeza de


que estariam a salvo, mas não sabia qual era o plano. Se é que tinha um plano. Ela continuou afastando-se até escutar um baque; então se virou, caindo ao chão. Temeu ver o Sequestrador “espalhado” ali, mas o menino continuava agarrado à fera. – Mas o que está fazendo? Depois, o Errante fechou os olhos e tentou se concentrar. Havia desistido de lutar. Estaria rendido? Instantes depois, os olhos do monstro brilharam como dois faróis, e seu corpo começou a sofrer diversos‐ espasmos. As escamas que até então haviam brilhado com intensidade se apagaram e finalmente... ele morreu. Lan aproximou-se do menino para veri car se estava vivo. Quando o Errante abriu os olhos, esboçou um sorriso de orelha a orelha e então ela perguntou: – Está... morto? – Espero que sim – respondeu ele, enquanto se recuperava. – Mas... como você conseguiu? Era uma fera enorme! O menino respondeu: – Eu apenas o toquei. – Isso... foi genial! – Não pense isso. Na verdade, não tenho muito mérito. – Você me salvou... de novo. E não me diga que não tem mérito – disse ela. – Esse... bicho poderia tê-lo puxado para dentro da água para matá-lo afogado ou congelado! O Sequestrador respirou fundo. Recuperado, tentou aquecer-se esfregando os braços e mudou de assunto depressa: – Como disse que ia me chamar? – O quê? – Antes de sermos atacados por esse... bicho – disse ele –, você disse que já tinha encontrado um nome perfeito para mim, certo? – Eu... a verdade é que não me recordo – admitiu, abaixando a cabeça envergonhada. – É mesmo? Puxa! Pois você parecia muito decidida. Com certeza era um bom nome – disse ele. – O melhor. – E não se lembra? A menina negou com a cabeça. – Nem um pouquinho? – Nada.


O rapaz suspirou, resignando-se a continuar mantendo o nome de Sequestrador. Depois, os dois sentaram-se apoiando o queixo nos joelhos enquanto observavam o imenso oceano que os cercava. Naquele momento, navegavam Ă deriva sobre uma placa de gelo. Sem rumo nem destino. Aonde aquela balsa improvisada os levaria? O Errante preocupavase muito com a possibilidade de o gelo se derreter antes de eles chegarem em terra firme... e de ele ter de pular na ĂĄgua para nĂŁo tocar a humana.


Refúgio

N

o saco de pano de seu pai só havia comida su ciente para alimentar uma única pessoa durante três dias. O Verde não havia planejado se responsabilizar por mais ninguém. Apenas os bem preparados Corredores de Rundaris o acompanhariam, e tinham prometido levar todos os tipos de provisões em seus wimos. O Caminhante havia exigido que seu lho se mantivesse à margem. Não queria colocá-lo em perigo; nem ele, nem a menina de Sálvia. Era arriscado demais. No entanto, tudo havia dado errado, e agora Lan e o Sequestrador vagavam à deriva sobre um bloco de gelo que derretia aos poucos. O menino fazia todo o possível para sobreviver. Dividia a comida de forma que Lan sempre comesse o pedaço maior de pão e oferecia a ela a maior parte de suas roupas como abrigo, dizendo que os Errantes toleravam mais o frio. Isso estava longe de ser verdade, e a menina já tinha perguntado antes de aceitar o presente. O menino estava de pé em um dos extremos, procurando não se desequilibrar. Apesar de já ter amanhecido, Lan continuava deitada no solo sobre um monte de roupas úmidas. Havia caído de sono depois de uma odisseia de dois dias e duas noites sem pregar o olho, por isso descansava. Como precisava de uma fogueira e de um bom prato de sopa. O Errante observou-a por muito tempo e lembrou-se da promessa que havia feito a Nao. Em seus olhos, viu claramente como aquela menina era importante para ele, o medo que tinha de perdê-la. Começava a entender suas ameaças. Antes de conhecê-la, não se importava em manter amizades com ninguém, fosse Errante, morador de Rundaris ou de Sálvia. Era sempre sozinho. Mas, apesar de a menina ter lhe causado mais do que um problema, agora se sentia responsável


por ela e, sem querer, havia se transformado em seu protetor. Queria mantê-la a salvo e por isso queria avistar a terra rme antes de perder as forças completamente. O clima tornava-se, aos poucos, mais agradável, por causa do bosque de gelo, que diminuía. Por um lado, isso tornava mais fácil tolerar o frio, mas, por outro, os dois viam-se obrigados a se aproximar cada vez mais perigosamente um do outro. Ele tinha consciência de que o plano não havia saído exatamente como combinado, e era possível que morressem em poucas horas, engolidos pelas águas ou por conta do sol intenso, empenhado em derreter seu navio. Mas o Sequestrador ainda não se dava por vencido, e continuava olhando ao longe, à procura de uma costa próxima à qual se dirigir. – Pássaros! Lan acordou, totalmente desorientada. – O que foi? Por que está gritando? – perguntou, segundos antes de se lembrar de que estava prestes a morrer em alto-mar. – Pássaros! Há pássaros aqui perto – continuou comemorando o ​menino. A menina olhou para ele e logo entendeu: os pássaros não costumam se afastar dos clãs. – Quer dizer que... há terra firme? – Sim, aqui, em alguma parte. Só precisamos resistir e nos deixar levar pela correnteza – ele a animou. Passaram o restante do dia esperando chegar à praia, mas esta continuava não aparecendo. Além disso, uma densa bruma erguera-se e di cultava distinguir o que havia ao seu redor. “Esta calota de gelo não vai aguentar até o anoitecer”, pensou o ​menino. Apesar de, com a temperatura mais elevada, eles poderem se desfazer das roupas em excesso, a pedra de gelo havia derretido a tal ponto que os dois tinham de car sentados próximos um do outro, a apenas dois palmos de distância. Sem nada dizer, o Sequestrador ficou em pé e jogou-se na água. – Mas o que está fazendo? – Lan se assustou. – Não se preocupe. – Claro que me preocupo! Suba de novo, ainda podemos... – Se eu voltar pra cima da pedra de gelo, mais cedo ou mais tarde acabarei tocando-a e vou machucá-la, pode ser até que você morra. Não quero me arriscar.


– Mas... a água está gelada. E você está sem comer desde ontem! Não resistirá por muito tempo – insistiu para que ele voltasse à razão. – Nós, Errantes, conseguimos passar muitos dias sem comer, e a água gelada não nos afeta nem um pouco – mentiu descaradamente ​enquanto tremia. Uma onda balançou a placa de gelo, obrigando a jovem a se ajoelhar para manter o equilíbrio. Se as ondas continuassem fortes, logo ela estaria dentro da água com o menino. Segurou as poucas coisas que ainda restavam e fechou os olhos, tentando‐ manter a calma. Desejava, com todas as forças, que a costa aparecesse logo, para que aquele pesadelo tivesse m. E então, escutou o pio de um pássaro. Abriu os olhos e viu duas gaivotas voando baixo. Estavam perto. Muito perto. Lan sorriu, virou-se para o menino para lhe dar a notícia e... ele havia desaparecido. – Onde você está? – gritou ela, assustada. – Vamos, onde você está? Lan não tinha forças para continuar gritando e também não tinha um nome pelo qual chamá-lo. Desesperada, deu alguns socos na água. Entrou em pânico, sua respiração cou ofegante e ela sentiu que acabaria desmaiando a qualquer momento. Estava prestes a se atirar na água ​quando, entre a névoa, uma silhueta escura apareceu. Pensou ser a morte, mas, quando observou mais de perto, viu que se tratava de uma pessoa. Percebeu que estava sendo arrastada até a orla e, uma vez ali, a menina não conseguiu ver nada além de dois pequenos olhos rodeados por uma grande mata de cabelos grisalhos. Sentiu a areia úmida sob seu corpo. Alívio. No mesmo instante, pensou no Errante e procurou por ele desesperadamente ao seu redor. A silhueta revelou um homem de barriga protuberante e costeleta cheia, que agora procurava ajudar um corpo que flutuava sem se mover na margem. – Nããããoooo! – gritou com todas as suas forças. O homem não parou. – É um Caminhante! Não toque nele! – ela o advertiu. Quando estava prestes a entrar em contato com o corpo do menino, o salvador deu um passo para trás e hesitou, caindo sentado na areia. – O quê? Não é possível! – exclamou assustado. – É... um Errante. É um... um... E Lan perdeu a consciência. Quando acordou, estava totalmente seca, sem qualquer sinal de areia.


Continuava viva. Rapidamente procurou o menino e sentiu-se aliviada ao vê-lo dormindo tranquilamente em cima de um denso colchão. Lan levou as mãos ao rosto, sentia uma dor de cabeça muito forte, talvez estivesse até febril. Tentou car em pé; havia recuperado as forças, mas caminhava como um pato. Olhou ao redor e compreendeu que o homem os havia abrigado em sua casa. – Está acordada? – alguém perguntou. A menina reconheceu o rosto de seu salvador e agradeceu a ele com o olhar. O homem não parecia desejar nenhum tipo de agradecimento, só queria deixar de se preocupar com eles. – Não quero nem pensar pelo que vocês passaram... – lamentou. – Vocês precisam comer alguma coisa. O estômago de Lan reagiu ao comentário e roncou alto. O homem riu e foi para a cozinha. – Por quanto tempo dormimos? – perguntou Lan, sentando-se em uma cadeira de palha remendada. – Não muito – respondeu ele, tirando do forno uma bandeja repleta de biscoitos. – Algumas horas, talvez. A menina olhou para ele de cima a baixo, analisando se deveria con ar nele ou não. Ele vestia-se de modo extravagante, como se tivesse confeccionado a roupa com retalhos de outras peças, e sua casa era cheia de objetos trazidos pela correnteza. O Sequestrador, que havia despertado com o som das vozes deles, entrou no cômodo um tanto aturdido. – Lan! Você está bem... – comemorou, com a voz fraca. A menina assentiu e observou-o durante alguns minutos. Parecia abatido, apesar de não estar ferido. A menina considerou um ato heroico o que ele havia feito por ela, ainda que dessa vez não tivesse a intenção de dizer que ele havia salvado sua vida de novo, para que ele não ficasse muito convencido. – Oh! – emocionou-se o homem, fazendo uma reverência. – Espero que minha humilde casa tenha sido suficientemente confortável para você. – Certamente. Muito obrigado por nos salvar. – Ainda estão um pouco quentes, mas já podem comê-los – avisou ele, oferecendo os biscoitos. O Sequestrador e a menina não duvidaram nem um instante e começaram a comer, quase sem mastigar. – São um pouco... difíceis de engolir, mas eles têm muitas vitaminas. São ideais


para repor as forças – explicou, colocando um copo de água ao lado de cada um. Lan foi devorando um biscoito atrás do outro. – Não se preocupe... estão bons. Talvez um pouco salgados. O Errante estava com a boca cheia, mas também tentou dizer algo: – Obrigada, estão... cof! Cof! Deli... Cof! Cof! Deliciosos. Lan olhou para ele, pensativa. O rapaz continuava apoiado no batente de uma janela, com o saco de pano de seu pai preso no ombro. Bebia muita água para evitar que aquela pasta seca e salgada não o zesse engasgar de novo. Percebeu que ele parecia fraco, até um pouco pálido. A menina pensou que, naquele instante, o Caminhante podia se passar por um simples morador de Sálvia ou por um jovem trabalhador de qualquer outro clã depois de um dia de trabalho exaustivo. Sua aura mística parecia estar mais tênue. O homem riu satisfeito e então disse: – São biscoitos de gordura de peixe, aqui nós aproveitamos tudo. – Peixe? – surpreendeu-se Lan. – Vivemos na costa, portanto, nos alimentamos de animais marinhos. Aquilo parecia bem lógico para Lan. – Não se preocupem. Eu os z especialmente para vocês, podem comer quantos quiserem. O menino pegou mais dois biscoitos e continuou comendo sem sentir o gosto, enquanto analisava a paisagem pela janela. – Onde estamos exatamente? – Nas terras desertas de Unala – revelou. – Fazia tempo que não tínhamos a honra de receber um lho do Linde – disse, referindo-se respeitosamente à condição de Errante do garoto. O menino pensou sobre o que aquilo significava. De algum modo, agora representava o seu povo. O mesmo povo que havia acabado de trair. Ouviu-se o toque de campainha do outro lado da porta. – Oh! Unala já está aqui – alegrou-se. – Mandei a minha mulher para buscá-la. O homem pediu a eles que o seguissem e rapidamente se dirigiu à porta de entrada. Lá fora, Lan e o Sequestrador descobriram um povoado repleto de cabanas construídas com lixo e invadidas pela areia. Aquele era um clã muito estranho, tudo era bagunçado e parecia prestes a desmoronar. As casas eram mantidas de pé graças a ferros oxidados, cordas tão velhas que estavam a ponto de ceder e pedras de todos os tamanhos, amontoadas de forma improvisada. Assim como o vestuário de seus habitantes,


aquela cidade parecia ser construída com retalhos reaproveitados de outros clãs. Seria fácil encontrar uma porta de estilo rundarita cobrindo parte de um telhado, ou caixas de mercadorias salvianas empilhadas para formar uma escada. Era um lugar montado com todos os tipos de lixo, de aspecto decadente, ainda que estranhamente acolhedor. – Talvez não seja o povoado mais bonito do Linde, mas estamos orgulhosos por ter erguido essa cidade a partir dos tesouros que o mar nos oferece – disse a voz doce de uma mulher. Uma espécie de carro de três rodas dirigido por um homem parou na frente da casa; possuía uma estrutura muito fraca, fabricada com restos de metais retorcidos e decorada com várias campainhas. O veículo tinha dois andares. No inferior, havia um pequeno banco de aspecto claramente incômodo e, no superior, sobre o teto, havia uma cadeira de palha ocupada por uma senhora de olhos enormes e pernas muito compridas. – Unala, aqui estão nossos convidados. Espero que a cidade ofereça abrigo e o que mais precisem. A mulher recompôs-se e saiu com agilidade do carro. – Claro que sim, Obán. Havia anos que um lho do Linde não nos visitava – dirigiu-se ao menino, sem parar de olhar para ele. Era uma mulher jovem e muito alta, inclusive mais alta do que o Errante, de pele bem cuidada e olhos brilhantes; tinha cabelos escuros e trajava um vestido muito comprido, que acabava em uma saia de tecido com diversos retalhos. Tinha todos os tipos de adornos e penduricalhos, e a maioria era formada por conchas do mar e todos os tipos de miçangas – pequenos tesouros reciclados que alguém havia se encarregado de transformar em enfeites. Tinha os dedos compridos e uma silhueta chamativa. Seu quadril balançava de modo sugestivo de um lado a outro, e seus cabelos esvoaçavam ao sabor do vento. Lan pensou que sua beleza poderia ser facilmente confundida com os traços de uma Caminhante da Estrela. – O seu clã não cruza o nosso caminho há muito tempo – disse o Sequestrador. – Eu me lembro pouco deste lugar. Eu devia ser pequeno. A mulher aproximou-se tanto que parecia que ia tocá-lo, mas, claro, nunca teria se dado a tal ousadia. – Sim, é uma pena. Lan sentiu-se ignorada. Entendeu que, em um lugar como aquele, o Errante tinha sido algo realmente chamativo, mas Unala sequer havia olhado para ela. – Estavam na margem. Tive de retirar o rapaz com uma corda para não tocá-


lo – explicou o homem. – Que bom. Sem dúvida, você é o nosso melhor pescador de tesouros. “Pescador de tesouros”, pensou Lan repetindo a expressão. – Obrigado, matriarca. A menina con rmou suas suspeitas, por m. Aquela elegante mulher era a líder do clã. – Certo. Esta noite, prepararemos uma recepção adequada. Não precisam se preocupar. Cuidaremos de vocês como se fossem nossos filhos. O menino assentiu sem muita ênfase. Precisava descansar, estava ​esgotado. – Cuide da menina – referiu-se pela primeira vez a ela. – Ele virá comigo – disse, apontando para o Sequestrador. – O quê? – surpreendeu-se Lan. – Não se preocupe, ele ficará bem – Obán tentou acalmá-la. A menina não tinha forças para reclamar de nada. Além disso, o Errante não ofereceu resistência ao subir naquele carro desengonçado. A menina pensou por um instante e cou surpresa com o que estava acontecendo de fato: sentia ciúmes daquela mulher? De sua maneira delicada de andar e de sua voz encantadora? Por mais que soubesse que ele não podia tocála, sentiu um estranho nó na garganta, incontrolável. Não queria se separar do Sequestrador. De seu Sequestrador. “O sol forte deve ter feito mal para os meus miolos”, pensou. As campainhas soaram de novo e ela viu quando o menino se afastou, despedindo-se dela com um claro meneio de cabeça. Ele havia partido, deixandoa totalmente abandonada. Ela sentiu-se discriminada: eles a tratavam de modo diferente por não ser uma Errante. Lan abaixou a cabeça com resignação e logo seguiu o homem até o interior de sua cabana velha. – Você precisa descansar, mas antes permita que minhas lhas preparem um bom banho para você. De repente, uma mulher de rosto afável e cabelos despenteados segurou sua mão e lançou um olhar a ela, indicando que a seguisse escada acima. Foi levada ao piso superior. Lan observou tudo enquanto aquela mulher a despia com cuidado e levava sua roupa suja para um cesto, deixando-a apenas com uma pequena toalha para se cobrir. A mulher entrou em um quarto do qual se ouviam muitos barulhos, sem dúvida das filhas de Obán. Lan, por m, decidiu entrar e descobriu um banheiro de madeira com o teto inclinado; no centro dele, uma grande tina de barro, cheia de água.


– Oohhh! – exclamaram as meninas ao verem Lan cobrindo-se com o pano, sem jeito. – Que lindaaaaa – elogiou uma delas. A jovem sorriu, estava muito envergonhada. – Entre – convidou a mais velha. – Está bem quentinha! – Vamo, pode entá! Pode entá – disse a menor, mostrando um sorriso com alguns dentes faltando. A mulher estendeu a mão para que Lan entrasse na banheira. Lan aceitou. Ao sentir a água quente acariciando seu corpo, todas as preocupações desapareceram e esqueceu-se do pudor. Mexeu os dedos dos pés para ter certeza de que não havia perdido nenhum deles e sentiu como, pouco a pouco, seus membros entumecidos voltassem à vida lentamente. As três meninas continuaram rindo ao seu redor. Despejavam água quente sobre sua cabeça e ombros; com cuidado, exatamente como a mãe havia ensinado. – Como você se chama? – perguntou a maior. – Lan. – E quantos ano tem? Chegou nadando? – É... – respondeu. – Viu peixes? – interrompeu a outra. – E tubarões? Meu pai, uma vez, pescou um que tinha a boca assiiiim bem grande – disse, abrindo a boca com os dedos. Suas irmãs riram muito e então Lan percebeu que havia se tornado o novo brinquedo das meninas. – E vocês, como se chamam? – decidiu perguntar. – Eu sou Alian. – Sou Tali. – E eu, Nali, mas pode me chamar de Nal, mais curto – disse. – Posso chamar você de La? Como o seu amigo se chama? Você rói as unhas? Lan queria responder, mas as perguntas eram muitas, e cava impossível manter uma conversa. – Eu tenhu um gato – disse a menor. – Quer ver? Mamãe, posso pegá a Piltrafa pra ela ver? Posso? Posso? Possoooo? – Você tem bichinho de estimação? – Alguma vez já voou em um pássaro gigante? As meninas não deixavam de fazer perguntas sem dar tempo para Lan responder, mas ela não se deixou irritar, pois a água havia relaxado seus


músculos e acalmado seus nervos de modo eficiente. – Desculpe as meninas – a mulher pediu. – São muito curiosas. Nunca haviam conhecido uma pessoa de um povoado distante. – Quantos filhos você tem? – continuaram perguntando. – Filhos? – Lan sorriu. A mulher percebeu que a menina ficara surpresa e por fim tomou o controle da conversa. – Meninas! – ela as repreendeu com doçura. – Já chega de incomodar nossa convidada. Vamos, tragam uma roupa limpa e deixem-na descansar um pouco. Em seguida, saíram correndo do cômodo, causando um alvoroço com as risadas. – Peço desculpas de novo. São muito pequenas, e, como viram que você tem corpo de mulher, devem ter pensado que você e o menino são um casal. Acredito que isso é impossível, mas... elas o veem como alguém normal. Em nosso clã, as mulheres casam-se muito cedo. Além disso, também é a primeira vez que veem um lho do Linde e não sabem o que isso signi ca – suspirou. – Bem, vou deixála um pouco sozinha para que se arrume com tranquilidade. Não tenha pressa. Depois de agradecer pela hospitalidade, Lan observou a mulher partir sem fazer ruído e decidiu seguir seu conselho. A menina esticou-se dentro da banheira e então olhou xamente para o teto, onde se via todo tipo de penduricalho. “Filhos?”, relembrou, balançando a cabeça na água. Quando escureceu, ela foi levada à sala onde estavam reunidos praticamente todos os habitantes do clã. Era um espaço aberto repleto de pilhas de tesouros arrastados pela maré e que ainda precisavam ser classi cados. No centro, havia diversas mesas cheias de comida e bebida. Lan entrou no cômodo dando as mãos a duas das meninas que haviam preparado seu banho e com um grupo de crianças escandalosas que não paravam de brincar ao seu redor. Seus cabelos recém-lavados estavam ligeiramente ondulados, e neles brilhavam algumas pedrinhas de cristal que as meninas insistiram em colocar. Trajava um vestido simples de tecido no, da cor do mar, e sapatos muito leves. Depois daquele banho e com roupas tão leves, Lan sentia-se totalmente renovada, como se estivesse em um sonho. O Errante percebeu sua chegada. Olhou para ela encantado. Ela estava linda. Seus olhos da cor do sol brilhavam como nunca, seus lábios traziam um sorriso perfeito, e aquele vestido realçava graciosamente cada um de seus movimentos,


acentuando sua silhueta esbelta. Perturbado, desviou o olhar para controlar as emoções. Por alguns instantes, havia se esquecido de onde estava e até de quem era. Aquele sentimento de apego em relação a ela, a necessidade de protegê-la, aparecia cada vez com mais força; ele temeu que o que havia atribuído, no começo, a constantes situações de perigo às quais tinham sido expostos pudesse ser algo mais. Confuso, decidiu afastar os pensamentos de sua mente o quanto antes. Tomou um gole do forte licor que haviam servido a ele, e a queimação que tomou conta de sua garganta corroeu as entranhas, colocando-o de novo na dura realidade. A dor conseguiu fazer com que se distraísse por um momento, mas sabia que aquilo não ia terminar daquela forma. Lan sentia-se lisonjeada com todo o carinho daquela gente, apesar de detestar o assédio constante. Todo mundo queria conhecê-la, dar presentes e fazer as mesmas perguntas. Todos tinham curiosidade pela acompanhante do lho do Linde. Os homens apresentavam-no a suas famílias, as mulheres ofereciam alimentos e bebidas a ele. As crianças aproximavam-se e observavam com olhos espertos, como se ele fosse mais um dos animais marinhos desconhecidos que seus pais capturavam na costa. Foi uma reunião muito divertida, e, apesar de haver muitas pessoas dispostas a prestar todo tipo de ajuda, Lan sentiu-se sozinha. Viu então, ao longe, o misterioso menino sem nome. A matriarca não havia saído de perto dele nem um segundo. Depois de apresentá-lo a algumas pessoas de con ança, ela o havia colocado à sua direita e o mantinha entretido todo o tempo. Parecia muito interessada em qualquer coisa que o menino tivesse a dizer e aproximava-se mais do que alguém em pleno juízo se aproximaria de um Caminhante da Estrela. Até de longe aquela mulher continuava sendo muito bonita e, aparentemente, muito capaz de comandar um clã todo. Ali, tudo girava ao seu redor. Lan sentiuse deslocada; desde que Unala se apresentara na cabana, não havia conseguido voltar a falar com o Errante. E parecia que ele estava tão entretido com sua anfitriã que nem notara sua chegada. “Está tudo bem?”, escutou um sussurro, sobressaltando-se ao escutar a voz do Sequestrador. Apesar de aquela não ser a primeira vez que ele fazia aquilo, Lan não conseguia se acostumar com a estranha capacidade que ele tinha de falar com ela a distância. Tentou disfarçar ajeitando o vestido, e depois respondeu, movendo


os lábios: – Sim, não se preocupe. A multidão, ocupada com seus assuntos, não se deu conta das palavras rápidas, tampouco dos olhares que os dois haviam trocado. A única pessoa a reagir de alguma forma ao contato foi a matriarca, que se levantou para dar início à festa, dizendo, em tom solene: – Como sabem, temos a enorme honra de receber a visita de um lho do Linde. – As pessoas comemoraram emocionadas, e a matriarca pediu silêncio com um gesto delicado. – Seu conhecimento valioso pode nos ser de grande ajuda, por isso vou pedir a vocês que, por favor, digam algumas palavras como representação de seu povo. O menino mostrou-se claramente surpreso. Aquilo não estava combinado, ele nunca havia falado em público. Como qualquer Caminhante, sabia enfeitar as palavras para tornar a história mais interessante, mas não tinha ideia de como se dirigir a um clã inteiro. – Adiante – a mulher o chamou para dar um passo à frente. O menino respirou fundo e se preparou: – Em nome dos Caminhantes da Estrela – disse, dirigindo-se com um tom de voz sem força –, eu... eu... – Procurou Lan entre as pessoas, mas não conseguiu encontrá-la. – Eu... decidi explicar qual é o estado atual de nosso querido Grande Linde – continuou. As pessoas aplaudiram rapidamente e então continuaram prestando atenção. Por m, o menino viu o rosto de Lan, e isso fez com que casse tomado de segurança. – Não vou enrolar – foi em frente, aumentando a voz. – A Ferida piorou e por isso as rupturas ocorrem com cada vez mais frequência. Um murmúrio percorreu a sala. As notícias ruins sempre eram difíceis de assimilar. – Muitos acreditam que o Linde morrerá, que está dando os últimos suspiros – ele se referia a si mesmo, olhando xamente para a menina. – Mas... ainda temos uma última oportunidade – anunciou, tentando contagiar a todos com seu otimismo. Unala ergueu uma sobrancelha, interessada em qualquer solução que ele pudesse propor. Da mesma forma, o restante dos habitantes apegou-se à esperança que eles ofereciam. – Minha companheira e eu iremos a um lugar onde, talvez, possamos encontrar uma... cura – revelou seu plano.


O silêncio tomou conta da sala. Todo mundo estava boquiaberto. – O quê? – perguntou Unala. – Isso é... impossível – disse um senhor. – Uma cura? – murmurou uma mulher, cheia de esperança. O menino, para voltar à realidade, lembrou-se da queimação sentida ao beber o licor. Não podia dar falsas esperanças a ninguém. – Não vou mentir. Nossa missão tem muito poucas chances de dar certo e, de fato, teríamos morrido se não tivéssemos encontrado vocês. Mas... é uma possibilidade. Ela existe. E, como Caminhante, peço que se apeguem a ela, que continuem lutando contra as rupturas da Quietude e que nunca, jamais, se deem por vencidos. A felicidade tomou conta do rosto das pessoas, que começaram a aplaudir. O menino havia dado uma notícia triste, mas também lhes havia feito lembrar de que sempre havia esperança. Conseguira passar a eles algo aprendido com Lan: não devia se conformar, dar-se por vencido não era uma opção. Unala se aproximou do Errante e agradeceu pelo breve discurso: – Você falou como um verdadeiro guia; quero que saiba que tem o apoio de todas as pessoas de meu clã. Pouco depois, o jantar foi servido, composto, basicamente, por sopa de peixe, mariscos e todos os tipos de crustáceos. Logo depois vieram o baile, os jogos e outros divertimentos dos quais nem ele nem Lan quiseram participar. Tinham coisas demais em que pensar e, por mais que ver todas aquelas pessoas dançando fosse tentador, não tinham forças suficientes para participar da festa. O Errante, por m, conseguiu se aproximar de Lan. Naquele momento, as pessoas abriram espaço, por medo ou por respeito, afastando-se dele. – Você está bem? Deveria se retirar, estou vendo que está cansada – disse ele com ar de preocupação, enquanto se servia, sem muita emoção, pegando alguns crustáceos da bandeja. Lan observou as roupas dele, que não estavam manchadas de terra, como costumava acontecer com os Caminhantes. Naquele momento, ele vestia uma calça escura e uma camisa branca na que ressaltava a cor bronzeada de sua pele. Até mesmo seu cabelo escuro havia recuperado o brilho original. Apesar de as olheiras evidenciarem seu cansaço, Lan acreditava que o menino havia recuperado a elegância e o toque de mistério que sempre o acompanhavam. – Não se preocupe comigo. Podemos partir ao amanhecer – respondeu, por fim.


– Lan, dormimos apenas algumas horas e receio que o caminho que nos espera seja muito mais difícil do que imaginamos. – Mas... não temos tempo a perder. – Eu sei, mas é importante recuperar as forças. Além disso, Unala disse que demorará alguns dias para escolher os Corredores que nos acompanharão. A música continuava tocando ao redor deles. Levando em conta que poucas horas antes quase havia morrido afogado, aquela situação era muito estranha. O Errante arregaçou as mangas da camisa porque o ambiente começava a parecer sufocante. Em um dos bolsos, ele levava uma or que uma menina do clã havia dado a ele; acariciá-la com os dedos o relaxava. – É uma mulher muito bonita, não acha? – perguntou Lan, olhando para Unala, mas se arrependeu assim que falou. Aturdida, a menina soltou o copo e o líquido espirrou no Sequestrador. O Errante assustou-se com a reação tão brusca. Observou a jovem abanando-se com um guardanapo enquanto se aproximava de uma mesa para pegar uma garrafa de água gelada. O menino quis entregar a bebida a ela e, sem querer, a manga de sua camisa roçou no braço de Lan. Afastou-se rapidamente, apesar de ela não ter percebido, e de novo seu coração acelerou, dividido entre dois sentimentos completamente opostos. Uma parte dele queria se aproximar dela, mas a outra sabia que não podia. A estrela tatuada no dorso de sua mão fazia com que ele se lembrasse de que tal ideia era proibida. – Você deveria ficar aqui – disse. Lan virou-se e parecia confusa. Manteve a garrafa entre as mãos. – O que disse? – Você escutou. Talvez devesse... ficar aqui. – Nossa! Estou vendo que você toma decisões com muita facilidade – ela o reprovou, claramente indignada. – Não é isso. Só procuro analisar as opções da maneira mais objetiva​ possível – respondeu, olhando nos olhos dela. – Unala me disse que um dos kamis de Rundaris chegou até aqui e eles acreditam que podem enviá-lo de volta. Se... se você decidisse car, talvez um dia... poderia voltar para Mona e os outros, sã e salva. Lan abriu a boca com a intenção de contradizê-lo, mas preferiu calar-se. Ele estava voltando a fazer aquilo: ele a afastava de repente, como se ela fosse uma carga da qual pudesse se desfazer quando quisesse. O mais triste é que ela sabia que ele tinha razão. Ficar naquele clã seria o mais seguro e, se Unala tinha


alimento e seus melhores Corredores, para que precisariam dela? Provavelmente, Unala seria uma melhor companheira de viagem para o Errante. Lan ficou com os olhos marejados. – Lan – suspirou o Errante –, só quero que pense, entendeu? Rapidamente, uma mulher de olhos e sorriso brilhantes se aproximou de Lan e segurou em seu braço para chamar sua atenção. – Sabe de uma coisa? Desde que vi você entrar, eu me lembrei de uma pessoa. Seu rosto é muito familiar para mim – disse, sem parar de dançar. – É mesmo? – respondeu ela com muito interesse. – É como se tivesse visto esse sorriso bobo centenas de vezes. A mulher gargalhou escandalosamente e afastou-se, dançando. – Sorriso bobo? – zombou o Sequestrador. – Pare, não estou com bom humor para as suas ironias. Por um instante, Lan teve uma ideia estranha. – Minhas lhas estão procurando você – disse Obán, o homem que os resgatou na praia. – Acredito que querem fazer uma pergunta... A menina agora estava com os olhos arregalados, do tamanho de ​pratos. – Essa mulher... – disse, fazendo um sinal. – Ela disse que... disse que meu sorriso era fami... familiar – terminou a frase lentamente. – Não sei o que ela quis dizer . É enfermeira ou algo assim...na realidade, ela cuida dos afetados pelas Partículas. – Papai! – O quê? – surpreendeu-se o menino. – Papai... – disse Lan, incrédula. – Fírel! O nome dele é Fírel! Você o conhece? Tem ideia de... O homem surpreendeu-se com a menina e limitou-se a dizer com a voz baixa: – Pelo Grande Linde... Não é possível!


A Loucura do Horizonte

L

an havia passado a noite em claro, esperando o sol sair para con rmar suas suspeitas. Pela primeira vez, havia encontrado uma pista sobre o paradeiro de seu pai, e isso fez com que ela sentisse uma forte sensação de irrealidade, como se aquilo com que sempre sonhara não pudesse estar acontecendo. O coração batia com força, ela sentia alegria, mas também medo e confusão. Talvez Fírel estivesse vivo. Seu pai, seu querido pai. Ela lembrava-se dele como um homem valente, alguém que amava a esposa e a lha loucamente. Tinha um coração nobre e sempre tentava passar a sua alegria aos outros, mas e se tivesse mudado? Muito tempo já havia passado e muitas coisas tinham acontecido. Não queria perdê-lo outra vez. O Errante a seguia de perto, apenas poucos passos atrás. Sabia que para ela aquele reencontro era importante e não queria intrometer-se, mas temia que se tratasse apenas de uma infeliz coincidência... ou de algo pior. Todo mundo no Linde sabia que a Loucura do Horizonte ​envenenava a mente, roubava a alma. O Sequestrador observou Lan avançando nervosa, com os punhos cerrados; ele a conhecia o bastante para saber que ela estava se esforçando para manter a coragem necessária para enfrentar aquela situação, mas temia sofrer um terrível desgosto. – Chegamos – disse o homem que os resgatou. – É aqui? – perguntou Lan, como se precisasse de confirmação. O homem assentiu e então mostrou a eles uma leira de casas bem construídas, mas que, como tudo naquele povoado, pareciam estar ​prestes a ruir. – Podem me seguir e não façam muito barulho, por favor. O homem guiou os dois entre as casinhas de madeira até encontrar uma


galeria com um corredor enorme que ligava todas as casas. Era um lugar iluminado e decorado com murais coloridos, um lugar onde reinavam o silêncio e a tranquilidade. – Bom dia – saudou uma senhora, que carregava um monte de lençóis sujos. – Com licença – disse o homem. – Viemos visitar o Corredor. – Puxa! Ele não recebe muitas visitas! – alegrou-se a mulher. – Fica no m do corredor, a última porta. Não tem como errar. – Muito obrigado. A mulher continuou com suas tarefas e então o Errante quis saber: – Há muitos... afetados? – perguntou com cuidado para não ferir os sentimentos de Lan. – Muitos – respondeu Obán de modo sucinto. – Mas, por sorte, também contamos com muitos voluntários que se encarregam de cuidar deles. E cuidam muito bem. – E ele... – ... apareceu de repente – ele a interrompeu. – Faz muitos anos. Estava totalmente sozinho, havia se perdido. – O homem coçou a barba, relembrando, e continuou: – Pensamos que não sobreviveria, mas conseguimos estabilizá-lo. No começo, tinha momentos de lucidez e nos contava coisas com as quais não sabia se tinha sonhado ou vivido... por isso, deduzimos que era um Corredor. Por m, chegaram à última porta. Era de madeira, verde, e tinha um belo sol amarelo pintado nela. A menina levou a mão à maçaneta e a girou com cuidado. – Lan... – disse o Errante. A menina virou-se; não tinham conversado muito desde a noite ​anterior. – Não se preocupe, estou bem. O Sequestrador assentiu inquieto, ela forçou um sorriso. Lan respirou fundo, tentando relaxar todos os músculos do corpo. Lembrou-se de sua maravilhosa infância e depois se preparou para o que pudesse encontrar do outro lado. Sentiu um nó no estômago. Suas mãos começaram a tremer. Por m, abriu a porta, decidida, e viu um homem sentado de costas, olhando a paisagem pela janela. Seus olhos ficaram marejados. Será que aquele era seu pai? A menina aproximou-se alguns passos, analisando a casa com atenção. Era uma moradia branca e limpa, banhada pela luz que vinha do outro lado do quintal. Apesar de ter apenas a mobília, tinha todo o necessário para que uma pessoa levasse uma vida de repouso e descanso. Inspirava calma, paz.


– Papai? – chamou, com a voz fraca. A pessoa virou-se lentamente. Apesar de estar sentado, era possível ver que se tratava de um homem de porte atlético. – Papai? – repetiu enquanto sentia os olhos se encherem de lágrimas. Reconheceu aquele sorriso no mesmo instante; era como se estivesse se olhando no espelho. O rosto dele estava envelhecido, seus cabelos pretos, grisalhos e havia perdido peso, mas, de resto, continuava igual. Era Fírel, o melhor Corredor de Sálvia, seu pai. O homem cou em pé e aproximou-se de Lan para observá-la com atenção. Ele olhava para ela assustado, como se tivesse encontrado o mais valioso dos tesouros. Acariciou seus cabelos e passou os dedos pelas mechas. Seus olhos também ficaram marejados e acabaram derrubando uma lágrima sentida. – Papai... sou eu, Lan. Você se lembra de mim, papai? – perguntou entre soluços, abraçando Fírel com força. – Sua filha. – Lan... – repetiu o homem, esforçando-se para encontrar um pouco de clareza em sua conturbada mente. A menina sentiu o coração amolecer. Seu pai estava vivo, ela o havia encontrado! Naquele instante de total felicidade, pensou que todo o sofrimento por ele havia valido a pena. Separou-se com cuidado dele, e então Fírel segurou suas mãos com força; ela sentiu o mesmo toque quente de quando era criança. O homem deu a ela um sorriso mágico e depois, sem mais nada dizer, seus olhos se perderam no infinito e ​desviou a atenção para a janela. Ele soltou as mãos dela com delicadeza e inexplicavelmente a menina sentiu que alguém queria levá-lo para muito longe. O Horizonte o ​chamava. – Papai... – chamou. O olhar de Fírel se concentrou no vaivém das ondas. Parecia hipnotizado. – Lan... – sussurrou o pai. – Está aqui... tão perto... Lan – repetiu mais uma vez, como se estivesse analisando uma batalha, perdida de antemão, contra sua própria mente. A menina abaixou a cabeça, derrotada. Pesadas lágrimas acumularam-se em seus cílios, e então compreendeu que, na realidade, devia se sentir agradecida. Mesmo em um dos cantos mais escondidos de sua mente doente seu pai se recordava dela. A sombra de um pé de tamarindo protegia Lan do sol ardente do meio-dia. De seus galhos pendiam objetos de metal que se mexiam com a brisa do mar e


produziam um tilintar. Depois do reencontro com seu pai, a menina havia pedido que a deixassem sozinha por alguns minutos. Precisava pensar, assimilar o ocorrido. Ela sentou-se dentro de uma pequena embarcação partida em dois, que agora servia de área de brincadeira para as crianças. Havia apoiado a ​cabeça nas mãos e olhava xamente para os dedos dos pés descalços remexendo a areia de um lado a outro. – Papai... – murmurou para si. Encontrar seu pai naquele estado havia lhe deixado impressionada. Por um lado, comprovar que ele continuava vivo a deixava repleta de felicidade, mas, por outro, havia mostrado a ela uma realidade muito distante daquela com a qual sempre havia sonhado. Estava consciente de que a enfermidade provocada pelas Partículas havia tirado sua personalidade, suas recordações, sua alma. “Jovenzinha, esse homem deixou de ser seu pai há muito tempo. O que restou dele é apenas um re exo do que foi. Ao vê-la, reagiu por instinto, você faz parte dele e isso nenhuma doença poderá mudar”, recordou as palavra de Obán ao tentar consolá-la. Lan secou os olhos com a manga da blusa e então escutou o som de duas botas aproximando-se. Instantes depois, viu-se frente a frente com o Sequestrador, que havia se ajoelhado para ficar de sua altura. A menina olhou dentro daqueles olhos escuros, nos quais era possível ver pequenas Partículas re etindo a luz ao longe, esperando que uma nova ruptura ocorresse. Seu olhar era de compaixão. Aquele menino que tanto a confundia estava estendendo sua mão, de modo gurado. Estava a seu lado, apoiando-a de forma incondicional. – Está com fome? – perguntou ele, com a voz encantadora de um Caminhante. Lan não respondeu. O menino mexeu nos cabelos, pensativo, e confessou: – Certo, parece que você ainda está chateada comigo. Sei que ontem à noite fui um pouco grosseiro, mas... – Não, não estou chateada – ela o interrompeu. – É só que... encontrar meu pai me fez pensar e... quero que entenda que não penso em desistir. Não queríamos entrar nisso, mas agora já é tarde. Creio nesta missão com todo o meu coração e, apesar de reconhecer que tenho medo, pior seria se eu me rendesse e condenasse o pouco que me resta. Então... – Lan tentou controlar a voz, que havia começado a tremer... – não é algo que nem você nem eu podemos decidir.


O Errante permaneceu calado com ar pensativo até que decidiu afastar-se um pouco mais dela. – Venha, que em pé. Como vai fazer uma viagem tão grande se não recuperar as forças? Eles prepararam peixes, mariscos, frutos do mar... já sabe. Tudo com muito sal – tentou distraí-la. O comentário conseguiu fazer com que ela sorrisse. – Se não se apressar, eu vou comer tudo. A menina ficou em pé, sacudindo a roupa, e por fim respondeu: – Mas espero que tenham enchido bacias de água potável também – disse, fazendo um gesto acima de sua cabeça. – Hahaha! – o menino riu. Lan o observou, agora um pouco mais animada, e depois disse: – Sabe de uma coisa? Você é muito engraçado. Quando você ri, quase não é possível ver seus olhos – imitou sua expressão. – É mesmo? “A partir de agora, devo me esforçar mais”, pensou o jovem. Era preciso‐ manter a distância; em todos os sentidos. – Eu tenho um sorriso bobo... e você tem um olhar bobo – brincou a menina enquanto enxugava as últimas lágrimas. Os dias passaram com relativa calma. Naquele clã tudo acontecia devagar, as pessoas eram tranquilas e muito despreocupadas. Haviam preparado um bom banquete de pratos e escolhido os melhores wimos para carregar os mantimentos. Além disso, Unala, pessoalmente, estava colocando à prova seus homens para escolher aqueles que os acompanhariam em sua travessia. Enquanto isso, Lan e o Sequestrador haviam se dedicado a recuperar as forças, e agora apenas esperavam o momento certo para partir. Haviam consultado a Esfera diversas vezes e, apesar de o Templo continuar muito longe, sabiam que podiam conseguir alcançá-lo. Obviamente, não haviam revelado seu segredo a Unala, já que ninguém podia garantir que ela não reagiria como Mezvan ou qualquer outro líder cego pelo poder. Não. Ela, como todos os outros, acreditava que o filho do Linde era capaz de se orientar sozinho. Lan foi à casa de Obán com um instrumento chamado volta. Os aprendizes do ferreiro o haviam criado e, segundo lhe haviam contado, era uma excelente ferramenta de caça. O homem havia prometido a ela, entusiasmado, que a ensinaria a utilizá-lo, e, além disso, havia dado a ela duas novas facas, que agora levava presas a um


grosso cinturão de couro. Ainda se lamentava por ter deixado as ferramentas de seu pai na estufa, mas sabia que Embo cuidaria bem delas. Não pensou que sairia de Rundaris, havia planejado apenas se esconder durante um bom tempo, por isso não era um descuido, mas, sim, um acidente. A menina passou a tarde treinando com o volta até as lhas de Obán se aproximarem. – Sabe o que é um pescador de tesouros? – Sabe? – Sim, você sabe? Um pescador de tesoros? – insistiu a menor, imitando as irmãs. – Não... – respondeu ela, mas quis saber. – Estão aqui. Voltaram – elas a interromperam. – Os pescadores de tesoros. O homem embainhou seu volta e dirigiu-se à mais velha de suas filhas: – Que bom que os meninos voltaram – comemorou. – Trouxeram alguma coisa interessante? – Creio que sim, papai. – Sim, sim, sim! – Um montão de tesoros! – Tesouros? – perguntou Lan. – Assim nos referimos a tudo o que a corrente traz – explicou Obán. – Não costumamos cruzar o Limite, mas entramos no mar para conhecer as profundezas. Lan passou a tarde com as meninas, classi cando em montes tudo o que os pescadores haviam recolhido. Uma pilha para as coisas de ferro, outra para as de madeira, outra para os objetos pequenos e outra para os inúteis. Encontraram de tudo, já que, às vezes, a Quietude se rompia e apareciam fragmentos de clãs inteiros utuando em alto-mar. Portas, janelas, utensílios de cozinha, cadeiras, plantas arrancadas, retalhos, comida podre e até uma ou outra pedra de quartzo. A maioria dos ​tesouros podia ser reciclada, mas às vezes dava-se outro destino. Enquanto isso, o menino continuava organizando, juntamente com Unala, os mantimentos, os wimos e seus novos assistentes. Por mais complicado que fosse, o Sequestrador fazia o possível para permanecer longe de Lan. Queria dominar seus sentimentos, e a distância o ajudava nessa questão. Não sabia como podia acontecer, mas o que sentia pela menina se tornava cada vez mais forte; nunca havia sentido algo parecido. Era como travar uma dolorosa batalha consigo


mesmo. A razão dizia que aquilo era proibido e, no entanto, seu coração insistia em sofrer quando ela se afastava. Em poucos dias, voltaria a viajar com ela, e esperava que até lá aprendesse a se controlar. Ao longo da semana, Lan não havia deixado de visitar seu pai nem uma tarde que fosse. Sempre o buscava no mesmo horário para darem um passeio, e logo terminavam sentados no jardim, sob a sombra dos tamarindos. Apesar de Fírel ainda não a reconhecer, Lan aproveitava sua companhia. Havia sentido muito a sua falta e agora tinha a oportunidade de recuperar parte do tempo perdido. Naquele dia, Lan havia se aproximado de onde o Sequestrador brincava com um grupo de crianças com alguns de seus jogos e equipamentos de Errante. O menino havia traçado uma linha na areia para indicar que ali era proibido cruzar, e assim fazia com que ninguém se aproximasse demais e acabasse tocando-o. Depois, começou a fazer todo mundo rir com vários tipos de gestos e movimentos de mão. Fazia pedras aparecerem e desaparecerem, contava algumas de suas aventuras ligeiramente modi cadas para que cassem mais emocionantes e, por fim, divertia a todos. Lan observou-o emocionada e pensou que ele seria um bom pai. Por mais que sua atitude com os outros adultos fosse um pouco fria e distante, com as crianças ele gostava de brincar e sempre conseguia ganhar a confiança delas depressa. – Ele é um bom rapaz, não é? – disse a seu pai, sabendo que não obteria nenhuma resposta. Fírel estava concentrado em um ponto xo que brilhava no horizonte, possivelmente uma estrela tão brilhante que seria possível vê-la durante o dia. Era como falar com uma parede, em poucas ocasiões ele reagia às palavras de sua filha. – Tenho certeza de que encantou a todos. Lan continuou observando o menino; seu rosto brilhava de felicidade e ria com cada um dos comentários dos pequenos. Seu olhar resplandecia como se nalmente tivesse conseguido distrair a mente de todas aquelas preocupações às quais fora exposto durante os últimos dias. Não era estranho ver que as crianças gostavam dele; seu sorriso, sua voz, o movimento de seus braços... tudo nele era perfeito. Era um Errante. Parecia tão seguro de si mesmo! E, de repente, ela se lembrou, envergonhada, do ciúme que sentiu ao ver Unala conversando com ele na noite em que chegaram. Estava confusa a respeito do que sentia por um Caminhante da


Estrela, e isso porque, claramente, não podia permitir que alguém descobrisse sobre esses sentimentos. Nunca. Jamais. Tinha certeza de que o Errante a considerava uma menina tola do povoado que não parava de arranjar problemas e, ainda que dentro dela nascesse uma esperança sempre que ele a olhava, a menina repetia para si mesma que tinha de afastar aqueles pensamentos de sua mente. Talvez devesse se entregar a alguém que demonstrasse seu amor: Nao. Nada a impedia de aceitar o que o amigo oferecia. Um abraço forte e quente; sem proibições, sem uma maldição no meio. Rapidamente, ela sorriu de modo irônico. Em que estava pensando? Por que se dava ao trabalho de imaginar um futuro se o mundo estava perdido? Inspirou com força, devia se concentrar no que realmente importava. O Sequestrador tinha tudo sob controle; o saco de pano com a Esfera sempre cava a seu lado, Unala havia acabado de escolher seus homens, os wimos estavam prontos e as provisões de alimentos, armazenadas. Aquela era a última tarde, a despedida e, depois, como saber? Mais perigos, mais aventuras, o Templo... e talvez uma cura. Lan perdeu a noção do tempo, deixou que a brisa suave que soprava constantemente no clã acariciasse seu rosto e depois brincou com os dedos dos pés, que rapidamente foram encobertos por uma bruma espessa. – O que está acontecendo? – estranhou. De novo, olhou para o menino, vendo que as crianças tinham se calado e agora olhavam para ele assustadas. Os olhos dele haviam começado a brilhar intensamente. O Sequestrador virou-se assustado, pedindo a Lan que protegesse as crianças, já que ele não podia tocar nelas. A menina se levantou agitada, e abriu um dos recipientes que O Verde havia dado a ela. Rapidamente, despejou a substância nas mãos das crianças e pediu que elas a passassem na boca e no nariz. Assim, cariam protegidas das Partículas. A menina pegou duas crianças menores e pediu que o resto a seguisse. Começou a correr desesperada, abrindo caminho entre as pessoas. Naquele povoado, as rupturas costumavam aparecer de repente. Os sintomas iniciais eram mascarados pela bruma de um clã costeiro e, assim, quando detectavam a ruptura da Quietude, sempre era tarde demais e as Partículas já flutuavam no ar. Lan correu até a cabana mais próxima e bateu à porta com força. – Abra! Depressa! Vamos! Reuniu as crianças ao seu redor, repetindo o gesto para que elas tapassem a


boca também. Ao longe, viu que as Partículas se reuniam em uma espécie de nuvem mais densa do que o comum. O caos estava tomando conta do lugar. Por toda parte, era possível escutar gritos e batidas. As pessoas estavam perdendo o controle, como se, pela primeira vez, as Partículas não apenas nublassem a mente, mas também as tornassem mais agressivas. – Rápido! Abra a porta! – exigiu, batendo de novo. Uma mulher fraca abriu a porta assustada e, ao ver as crianças, não pensou duas vezes e as colocou para dentro. – Venha, menina, entre você também – disse ela. Lan negou com a cabeça e sussurrou: – Cuide delas. Logo se foi, perdendo-se em meio à bruma cada vez mais espessa, repleta de silhuetas que corriam de um lado a outro, tentando se esquivar de perigosas nuvens de Partículas, enquanto outras, já infectadas, perseguiam todos eles como se tivessem se transformado em terríveis predadores. As batidas do coração retumbavam com força nos ouvidos. Lan não escutou mais os gritos de pânico, como se seu cérebro tivesse decidido ignorar seu sentido de audição para que ela pudesse se concentrar em salvar o pai e encontrar o Sequestrador. Ele precisava de um nome. Mais uma vez, não soube como chamá-lo. – Papaaaaai! – gritou por m, com a esperança de que ele reconhecesse sua voz. Abriu caminho entre as pessoas, que, inexplicavelmente, tinham se acalmado e caminhavam cada vez mais devagar. – Papaaaai! Uma nuvem de Partículas passou a poucos centímetros dela, entrando em contato com algumas mulheres que, de repente, ficaram totalmente quietas. – Mas... o que está acontecendo? – murmurou, levando de novo a substância à boca. A bruma clareou com o vento, que soprava cada vez mais forte. Centenas de silhuetas estáticas apareceram de forma fantasmagórica e logo começaram a caminhar na mesma direção. Lan compreendeu horrorizada. – Estão tentando chegar ao Horizonte! Ela entristeceu-se na mesma hora por não ter podido fazer nada por eles e rapidamente reconheceu alguns rostos na multidão. Ali estavam o ferreiro, a


mulher que dançava contente na festa de boas-vindas, o homem que os havia resgatado e até Unala, que havia perdido toda a sua elegância e agora caminhava com o olhar perdido e a boca entreaberta, como se aquelas malditas Partículas tivessem roubado sua alma para sempre. Lan abriu caminho entre as pessoas enquanto chorava desconsolada. Aquele era o destino que esperava por ela no Linde se ela se rendesse, se não encontrasse uma cura a tempo. – Laaaan! – escutou ao longe. O menino ainda estava vivo. As Partículas não o afetavam. – Laaaan! – voltou a ouvir. A menina, por m, reagiu. Tudo começou a tremer. A terra desfez-se sob seus pés. O jardim de tamarindos estava agitado, como se a música de suas folhas fosse a encarregada de anunciar o desaparecimento do clã. Algumas das casas acabaram em ruínas. Precisava sobreviver, mas não podia abandonar o pai. Ela o procurou por todos os lados, não estava onde ela pensou. Tinha esperanças de encontrá-lo perto do Errante, mas o menino também o havia perdido de vista. Lan subiu com agilidade no telhado de uma das poucas casas que ainda estava de pé e viu, ao longe, o menino e seu querido pai: os dois estavam exatamente à mesma distância dela, mas em direções opostas. O Sequestrador continuava chamando-a perto dos arbustos; seu pai avançava juntamente com os outros afetados pela Loucura do Horizonte. O telhado desmoronou; Lan perdeu o equilíbrio. A menina caiu alguns metros, machucando as costas; no entanto, teve re exo su ciente para se segurar em uma saliência. Olhou para a frente, sem intenção de se dar por vencida, e descobriu o mar agitando-se ao longe com bravura, enquanto o povoado, agora reduzido a escombros, continuava mergulhado no caos. Gritou para aliviar a dor e depois sentiu o medo se apoderar dela. Uma brecha enorme havia sido aberta na terra: de um lado ficou o Errante e, do outro, Fírel. Ela já havia passado por muitas coisas, mas nunca se vira diante de uma situação como aquela. Tinha de tomar uma decisão horrível, a mais difícil de todas: escolher entre seus entes queridos, decidir quem viveria e quem morreria. Deveria continuar com o menino ou salvar o pai? A escolha não foi fácil. A menina fechou os olhos e... ​s implesmente pulou.


Cicatrizes

A

escolha estava tomada; no coração e na mente. Quando Lan abriu os olhos, ali estava ele. Deitado no chão, analisando o horizonte para entender o que havia ocorrido. Seu pai. O Sequestrador. Uma ​escolha difícil​. Compreendera que Fírel simbolizava o seu passado, e o menino, seu futuro. A seu lado, talvez o Linde tivesse uma última oportunidade. – Você está bem? – preocupou-se o Errante. Lan olhou para ele com os olhos arregalados e então desmoronou. O menino queria lhe dar consolo, mas mais uma vez precisou reprimir a vontade de tocá-la. – Você tem sido... – começou a dizer, tentando escolher as palavras adequadas –, você tem sido muito corajosa. – Abandonei o meu pai! – exclamou ela, furiosa consigo mesma. O menino ficou em pé e disse: – Não. Você deixou para trás o que restava dele para dar esperança ao resto dos habitantes deste planeta. – Sim... e isso partiu a minha alma ao meio! – disse com a mão no coração, como se quisesse arrancá-lo. – Quando ele desapareceu... eu... – murmurou, enxugando as lágrimas. – Minha mãe... eu o deixei para trás, eu o matei. Qual é o sentido desta viagem, se vou deixando pelo caminho todas as pessoas que amo? O Sequestrador compreendeu a dor da menina, mas não demonstrou. Tinha de ser forte, precisava consolar a amiga. – Lan – quis acalmá-la com um tom de voz relaxado –, você tem sido altruísta e tenho certeza de que seu pai sentiria muito orgulho de você. A menina continuou em silêncio por alguns instantes. No fundo, sabia que ele


tinha razão. Secou as lágrimas no vestido e continuou desabafando​. – E de que adiantou? Estamos como no começo – ela deu de ombros. – Você não vê? Não temos comida! Nem wimos. Nem contamos com os homens de Unala – lamentou-se. – Nada saiu como esperávamos, ​estamos... perdidos. O Errante levantou a cabeça para observar o céu. As nuvens tinham uma cor estranha, como se esfumaçassem a luz de uma forma muito distinta ao restante do Linde. Depois, olhou para a frente e observou um horizonte estático, uma Quietude perfeita. Nada mudava ao redor, nem mesmo a distância. Não tinha ideia de onde se encontrava. Seus pés pisavam a terra seca e compacta. O solo estava rachado, como se uma grande seca o tivesse tomado. As rachaduras formavam desenhos estranhos que o Sequestrador rapidamente comparou a cicatrizes. “Cicatriz”, pensou. – Talvez nem tudo esteja perdido. O menino pegou a Esfera de sua bolsa, deixou-a no chão com cuidado e ativoua, tentando encontrar sua localização atual. – Estamos... perto – murmurou. – Perto? – Bem, mais ou menos. Segundo o mapa, o Templo ca a poucos dias de viagem, mas... – O que foi? – O Linde fragmentou-se muito. Estamos perto do Templo, mas ainda mais da Ferida. – O quê? – ela assustou-se. O menino tentou acalmá-la com o olhar e logo explicou: – Ainda que tomemos o caminho mais afastado, não podemos ignorá-la. Não será fácil chegar ao Templo, a Ferida é... – Perigosa? – Muito pior – respondeu com o semblante sério. – É o caos, a escuridão... ali começou tudo, você entende? – O pior lugar sobre a face do Linde. – Exatamente – disse. Por m, cou em pé e analisou a paisagem. Estavam no meio do nada; Sálvia havia desaparecido, continuava sem notícias de sua mãe, havia deixado seus amigos para trás e abandonado o pai. Como a terra em que pisava, seu coração estava repleto de feridas que talvez nunca cicatrizariam. Compreendeu que não tinha mais nada a perder, que havia chegado bem longe, e então decidiu


adiantar-se à adversidade. – Não quero desistir agora – disse com coragem, surpreendendo o companheiro. – Você disse que meu pai estaria orgulhoso... faremos o restante do mundo sentir a mesma coisa! Então Lan começou a caminhar. Por mais que andassem, a paisagem era sempre a mesma: uma vasta planície rachada. Haviam passado a noite ao ar livre, sem qualquer abrigo, ainda que, por sorte, não chovera e a temperatura se mantivera estável. Lan caminhava olhando xamente para as rachaduras, que ressoavam sob seus pés, produzindo um som relaxante. Fazia horas que não conversavam, por um lado para guardar energia e, por outro, porque o Errante parecia ter se retraído. Seria sua imaginação ou ele caminhava cada vez mais afastado dela? – Temos comida e bebida su ciente para sobreviver? – perguntou a ele, com a intenção de quebrar o silêncio incômodo. – Não, de jeito nenhum – disse o Errante. – Contamos apenas com uma pequena garrafa de água e dois biscoitos de peixe. – Vai ser o suficiente. – Você acha? – perguntou ele, duvidando. – Vai ter de ser – respondeu, segura de si mesma. Shhhhh! houve um barulho. – O que é isso? – Um zumbido. – As Partículas? – Não. Lan percebeu que o menino estava certo, já que seus olhos não haviam brilhado. O som ficava cada vez mais forte. A menina começou a tremer. – Não tenha medo, pode ser que seja apenas o vento – ele tentou tranquilizála. Sshhhhhh! – Não é o vento. É como se... – ... milhares de animais vivessem aqui – o Sequestrador terminou a frase por ela. De repente, o zumbido tomou a forma de uma sombra, e eles viram -se‐ rodeados por uma espessa nuvem de insetos. Sentiram medo de ser devorados lentamente, mas os insetos passaram longe. Permaneceram durante alguns segundos na mais completa escuridão, sem ver nem escutar nada, desejando que


tudo aquilo terminasse logo e, de repente, fez-se o silêncio. Lan abriu os olhos, comprovando que os insetos haviam desaparecido com a mesma rapidez com que chegaram. – Mas... de onde saíram todos esses bichos? – exclamou, exaltada. – Da Ferida? Estamos tão perto assim? Nunca tinha visto tantos juntos. Tem algum no meu cabelo? Por um momento, achei que... – Ei, o que é isso? – o Errante interrompeu-a. Lan parou de sacudir a roupa e virou-se para onde o menino sinalizava. Utilizou a mão como viseira e perguntou: – É uma rocha? Uma enorme rocha havia aparecido a poucos metros deles. – As rochas não se movem. A rocha agitou-se e começou a tomar forma lentamente. Surgiram quatro patas e uma enorme mandíbula de dentes pequenos e a lados, como uma serra. Aquela estranha criatura tinha um corpo corcunda enorme, com uma coroa de compridos espinhos que se iluminavam, como se em chamas. Era aterrorizante. Ao redor daquele sorriso sarcástico, havia o rastro de milhares de insetos que havia devorado com seu focinho de pedra. – Fugiam dele... – compreendeu a menina, morrendo de medo. A criatura começou a se aproximar disfarçadamente, abaixada como um felino em plena caçada. – Lan... A menina encarou-o; aquele ser monstruoso tinha olhos, mas não tinha pupilas. – Lan... – voltou a chamá-la, tentando não aumentar muito a voz. – Sim? O Errante lançou a ela o saco com a Esfera e gritou: – Corra! Em seguida, o menino lançou-se com valentia para cima da fera, que corria mais depressa do que se esperava para um animal de suas dimensões. No último momento, esquivou-se, subindo agilmente nas costas dele para tentar pôr m à briga semelhante a que haviam ​começado com o monstro marinho. Lan havia saído em disparada, pois devia proteger o mapa, independentemente do que lhe custasse. Tinha uma importante missão a cumprir. Ou talvez não. O menino continuava lutando contra a fera, mas o plano não surtia efeito. O monstro de rocha parecia imune ao contato com um Errante.


A menina escutou os gritos do Sequestrador entre os rugidos da criatura e então parou de repente. Estava voltando a repetir o erro; agora, ia abandonar o Sequestrador. Não, de maneira nenhuma. Não permitiria. Convenceu a si mesma de que havia outras opções e então mudou de rumo. Por mais que o Errante se esforçasse em golpear seu adversário com o máximo de força, não conseguia atingi-lo. Parecia uma luta entre um gato e uma montanha. A criatura se agitou com força, fazendo o Errante cair de suas costas. Depois, aproximou-se da presa deixando aparentes diversas leiras de dentes e uma viscosa língua negra manchada de terra e coberta de insetos. O menino tentou encontrar seu ponto fraco, mas, antes de encontrá-lo, compreendeu que tudo estava perdido. Os olhos do animal começaram a brilhar como os de um Caminhante da Estrela. Também estava intoxicado! Se fosse humano, teriam tatuado uma estrela nele. O Errante sentiu o hálito podre da fera invadindo suas narinas enquanto o brilho prateado daqueles olhos o hipnotizava devagar e, de repente, algo bateu com força no rosto do animal. De longe, Lan empunhava o volta com destreza. – Ei, você! Cabeça-dura! – gritou. – Venha me pegar se tem coragem – a menina o desafiou. O menino parecia estar diante do pior dos pesadelos. Apesar de saber que não podia fazer nada para salvá-la, cou em pé, disposto a se colocar no caminho do monstro. O animal, então, acertou-o furiosamente com a cauda, arrastando-o pelo chão por diversos metros, até deixá-lo inconsciente. – Ele vai enterrar você – murmurou a salviana. Lan não queria deixar que o medo tomasse conta dela, por isso começou a correr em direção ao animal, que foi atrás dela. Parecia que logo se chocariam; mas, então, a menina desviou-se de repente para fazer com que ele a seguisse. Agora, era o monstro que perseguia sua presa, apesar de não saber que a menina tinha um plano. Quando Lan percebeu que não tinha como escapar, lançou o volta com o máximo de força para a frente e saiu do caminho com um salto. A menina rodou vários metros pelo chão, batendo os joelhos e ralando os cotovelos. Quando girou, viu como a arma que lançara havia se cravado com força no crânio do animal. Não estava morto, mas agora não conseguia controlar as extremidades de seu corpo. Lan havia cado parada a uma distância prudente para prever o próximo movimento do rival. A criatura recuperou as forças e partiu para cima dela de


novo, mas Lan foi mais rápida e deslizou por entre as patas do monstro, cravando a faca no solo para girar sobre si mesma e acabar sob a barriga dele. Agora ou nunca. A qualquer momento, aquela fera podia afastá-la com facilidade. Lan respirou fundo, identificou o ponto onde a pele parecia mais fina e então puxou um pedaço rasgando suas entranhas, enquanto corria até sua cauda, que não parava de acertar golpes perigosos, de um lado a outro. Enquanto o bicho se retorcia de dor, rugindo selvagemente, a menina‐ aproveitou para se afastar, tampando os ouvidos. Lan temeu que seus gritos tivessem chamado outros monstros da mesma espécie, mas nada aconteceu. A criatura berrou pela última vez e logo caiu no chão. Instantes depois, seus olhos se apagaram. O silêncio tomou o lugar de novo. Lan ergueu-se. Estava exausta, toda suja e um pouco ferida, mas sentia-se orgulhosa porque, pela primeira vez, salvara seu companheiro. Analisou o horizonte para ter certeza de novo de que não havia qualquer perigo a enfrentar, e então suspirou aliviada, já que não se via com forças de repetir o que tinha acabado de fazer. Lan aproximou-se do menino, que continuava inconsciente. Examinou as feridas; nenhuma parecia grave, mas certamente o golpe o havia deixado exausto. Tentou despertá-lo tocando-o com uma das pontas do volta, mas ele não reagiu e, assim, quando se conformou de que não conseguiria fazer nada a respeito, decidiu que passariam a noite ali. O céu voltou a escurecer, e por isso Lan procurou na bolsa do Verde para encontrar as redomas de vidro que as crianças Errantes utilizavam para chamar os pirilampos. Colocou a redoma no chão, como tinha visto fazerem, e então deu uma batida de leve no cristal com uma de suas facas. Uma doce melodia ressoou dentro do instrumento, entrando pela terra até encontrar pequenos insetos de luz, que começaram a surgir entre as rachaduras. Lan observou-os com curiosidade. Será que essa técnica funcionava em qualquer parte do Linde? Ficou com vontade de tentar em Sálvia, em sua casa, mas esta não existia mais. Sentiuse melancólica e suspirou. Deu uma olhada ao redor, a qualquer momento um novo perigo poderia aparecer. Lentamente, a fraca luz da redoma de vidro envolveu tudo em um véu de sossego mágico. A única coisa que continuava perturbando-a era o corpo sem vida do monstro caído, mas, como não podia fazer nada para se afastar dali, conformou-se e decidiu esperar que o menino recuperasse a consciência. A temperatura continuava estável, a paisagem, estática. Não se escutava nem


um murmúrio. Parecia uma noite muito tranquila. Lan pegou um daqueles biscoitos de peixe e deu uma mordida, deixando metade para o companheiro. Logo se colocou diante dele, afastando, assim, a imagem do corpo do monstro que a deixava tão nervosa. Ela olhou-o com curiosidade. Sua respiração parecia estável. Dormia como um bebê e ela pensou que, apesar dos ferimentos e do barro, os traços dele continuavam perfeitos. Ela havia se aproximado bastante e agora podia observálo sem temer que ele percebesse e risse dela. Analisou com atenção a forma dos cílios, do nariz e do sorriso. Os lábios ​estavam secos. Lan se endireitou para molhar a ponta do pano com um pouco de água, tentando não derramar as poucas gotas que restavam para o restante da viagem. Voltou a aproximar-se dele, dessa vez ajoelhando a seu lado e, com cuidado para não tocá-lo, umedeceu seus lábios com o pano. Em pouco tempo, eles recuperaram a cor original e provavelmente também a suavidade. Naquele momento, ela se lembrou-se do beijo de Nao, tão sensível e tão quente. Seu amigo oferecia a ela tudo o que uma menina podia querer. Suas famílias sempre pensaram que um dia acabariam juntos; no entanto, ela havia se afastado dele para embarcar em uma missão suicida. Sentiu-se uma tola, egoísta por não ter sabido dizer não, mas sabia que antes tinha assuntos a resolver com o rapaz que estava deitado no chão. Não podia ser tão difícil, qualquer pessoa teria chegado à conclusão óbvia: nunca cariam juntos. E, apesar de saber que as coisas eram assim, que não podia fazer nada para mudar... Seu coração acelerava ao pensar que, talvez, o Errante sentisse algo parecido por ela. A menina não conseguiu resistir e arriscou a vida aproximando o rosto o máximo possível ao do Errante. Queria que ele despertasse. Queria que ele abrisse os olhos e dissesse algo, ainda que fosse apenas para brincar com ela. Sentia falta de sua voz e do brilho de suas pupilas cor de prata. A tristeza do desejo impossível de cumprir tomou conta dela por completo, e então uma sentida lágrima escorregou pelo rosto, caindo nos lábios do menino. Lan afastou-se assustada. Secou as lágrimas e tentou se acalmar para parar de chorar, mas seus olhos não a obedeciam. Por m, a menina não teve dúvidas de que sentia algo muito forte por ele. Ao despertar, a primeira coisa que o Sequestrador viu foi o rosto de Lan, que dormia tranquilamente. Sua face estava rosada e os lábios tremiam, como se tentassem dizer algo nos sonhos. A última coisa de que se lembrava era da fera batendo nele com violência antes


de atacar Lan, mas agora via a menina respirando com calma. Pensou em se endireitar, mas a expressão no rosto dela era tão doce que ele cou com medo de despertá-la. Tão perto e tão longe. Por mais que tentasse com todas as forças, não conseguia fazer com que os sentimentos em relação a ela desaparecessem. Conversava muito pouco com ela, e estavam cada vez mais afastados um do outro, mas nem assim conseguia tirá-la de sua mente. Sentiu um impulso: queria beijá-la. O Errante inclinou a cabeça ligeiramente com a esperança de que Lan não se mexesse nem um milímetro e aproximou os lábios dos da menina para sentir seu calor. Era frio. De repente, percebeu que a estava colocando em perigo e se afastou. Tinha de ser forte, sabia que um simples beijo não a mataria, mas podia feri-la gravemente. Naquele instante, sentiu ciúme de Nao. Queria ter nascido um salviano, para não ter de carregar dentro de si aquela horrível maldição que o separava de alguém cada vez mais importante para ele. Angustiou-se ao pensar que ainda tinham muitos perigos dos quais escapar e que, independentemente do que ocorresse, continuaria sem poder protegê-la em seus braços. O menino levantou-se frustrado, e olhou para a frente. O horizonte estava limpo e a distância desenhava-se uma estranha gura geométrica. Era o per l de um cubo tão perfeito que só poderia ter sido feito por um homem. Encaixava-se com a descrição das antigas lendas: o Templo.


O Abismo

L

an levantou-se abrindo os olhos com di culdade. O Errante estava a poucos metros dela, como se hipnotizado pelo horizonte. – O que está acontecendo? Ninguém respondeu. A menina ergueu-se e viu a estranha forma geométrica que se encontrava do outro lado do penhasco. Era um cubo, grande e perfeito. – É o Templo, não é? O Sequestrador respondeu sem se virar: – Sim, é o que parece. Lan ficou em pé, repleta de entusiasmo. – E o que estamos esperando? Conseguimos! Não temos tempo a perder, temos de... O menino deu uma volta, mostrando os olhos brilhando como duas bolas de fogo. Lan cou sem palavras, nunca os havia visto brilhar daquela maneira. As partes escuras que utuavam em sua íris deram espaço a um brilho intenso. Um calafrio percorreu o corpo dela. – Outra ruptura se aproxima, não é? – perguntou, assustada. O Errante negou com a cabeça e, por fim, revelou: – Não, dessa vez é algo... muito pior: a Ferida está ganhando ​terreno. Lan avançou alguns passos e descobriu um enorme buraco negro. A Ferida estava aumentando e, onde antes só existia um deserto de terra seca, agora existia um abismo gigantesco. Uma vibração deixou Lan em alerta. Ela ajoelhou-se e encostou a orelha na terra. – Está ouvindo? – perguntou ao menino, concentrando-se no som que as


entranhas da terra emitiam. – É como se... como se o planeta estivesse se rompendo por dentro. – É a Ferida aumentando. O epicentro não deve estar muito longe. É impossível, não poderemos cruzá-la. Lan suspirou fundo sem desviar o olhar da Ferida. Levou as mãos acima dos olhos para fazer sombra e encontrou o fim da imensa cratera. – Depois de todas as coisas pelas quais passamos, não acredito no impossível – disse ela. A sensação perturbadora que aquele lugar provocava não podia ser descrita em palavras. Era uma escuridão completa, uma tristeza tão forte que chegava a ser palpável; como se toda a morte e a podridão que existiam estivessem em seus corações para deixá-los frios. Apesar de a Ferida estar coberta por uma espessa neblina preta, era possível imaginar os corpos das criaturas. Como se aquela abertura fosse, na realidade, um ninho de insetos grandes que se alimentavam das Partículas. Lan e o Sequestrador reuniram seus pertences e começaram a descer a ladeira com muito cuidado, procurando evitar qualquer contato com as diversas larvas que ficavam penduradas na rocha. Ali, todos os insetos eram do tamanho de um wimo. Centenas de ovos estavam grudados nas paredes, brilhando como se dentro dela houvesse lava ou Partículas. Passaram despercebidos pelos enormes besouros que sobrevoavam suas cabeças, mas, quando já estavam quase chegando à terra, uma impressionante tempestade de areia pegou-os desprevenidos. Protegeram-se como puderam, mas algumas das rochas que se desprendiam eram relativamente grandes, di cultando. Não conseguiam respirar normalmente, e a visibilidade era praticamente nula. Ainda assim, o Sequestrador não tirava os olhos de Lan, por menos que pudesse fazer para ajudá-la. Aquele vento forte soprava contra eles de todos os lados de uma vez. A areia cobriu-os totalmente. Tudo cou à escura, e eles começaram a tossir. A relativa calma durou apenas alguns segundos, até que algo começou a puxá-los. Lan esperneou muito forte, mas lutava contra um monstro incorpóreo. Era uma corrente de ar que os absorvia até o centro da Ferida. – Devoradoras! – exclamou o Errante enquanto procurava algo mais rme em que pudesse se segurar. Lan percebeu que o menino sabia o que estava acontecendo, mas, quando tentou perguntar, começou a escutar um zumbido ensurdecedor. Aquele ruído


lhe era familiar: outra nuvem de insetos, dessa vez muito maior e feroz. Lan e o Sequestrador lutavam contra a rajada de vento que os atingia, mas perderam o equilíbrio, rolando ladeira abaixo. O vento continuava sugando com força e arrastou-os por mais alguns metros pela terra. Por m, conseguiram se segurar em uma rocha. Lan recebeu o impacto de um entulho, seu rosto começou a sangrar, mas ela não se assustou, e ncou as duas facas com força, para se rmar mais ao solo e esperar que a nuvem de insetos alçasse voo. “Resista, Lan”, ela escutou como se fosse um sussurro. A menina entreabriu os olhos, mas o Sequestrador não estava por ali. Apesar de o vento tê-los afastado por vários metros, ele continuava a vigiá-la e, graças à sua habilidade de Caminhante, continuava comunicando-se com ela. A Devoradora parou de soprar e então tudo cou calmo. Lan não demorou a associar aquela estranha corrente sugadora com a respiração de um ser enorme – o planeta. Ela havia se sentido como um grão de poeira na corrente gerada pela inalação de um gigante. Apesar de estarem machucados, tinham problemas mais importantes com que se preocupar. O Errante abriu os olhos, aliviado, mas então se viu rodeado por feras fortes, com sorriso de dentes pequenos e afiados. Se enfrentar um daqueles monstros terríveis de pedra quase lhe custara a vida, lutar contra uma dezena deles seria totalmente impossível. Ainda assim, Lan respirou fundo e desenterrou suas facas. Lançou uma a seu companheiro e olhou para ele com coragem: se ia morrer... morreria lutando. O Errante empunhou a arma e desa ou o primeiro objetivo. Instantes depois, começou a correr com a intenção de repetir os movimentos de Lan para salvá-lo. – Nãããooo! – gritou a menina ao descobrir que o resto das feras estava se preparando para defender o companheiro, como se todos zessem parte da mesma manada. Lan quis partir para resgatá-lo, mas, de repente, uma nova criatura surgiu do solo. Era o maior come-terra que ela já tinha visto, e, como o resto dos animais que povoavam aquele lugar, seus olhos estavam acesos. Devido à intensidade com que o monstro surgiu, parte da ladeira ruiu, provocando um terrível deslizamento de terra. Em um piscar de olhos, o come-terra devorou o monstro que o Sequestrador ia enfrentar e depois tentou prender o resto. Lan e o menino aproveitaram a confusão para se esquivar e fugir dali depressa. Quando, nalmente, acreditaram estar a salvo, protegidos sob uma rocha enorme que formava uma pequena cova, e tentaram recuperar o fôlego. Agora, a


terra que pisavam era escura e emanava todos os tipos de gases perigosos, mas pelo menos não havia monstros à vista. – Quem diabos fez isso? – perguntou Lan enquanto se abaixava, exausta. A menina tirou o pano que cobria o rosto para tomar um pouco de ar e assim acalmar o coração, que batia com tanta força que parecia prestes a sair do peito. O Sequestrador apoiou-se na parede da rocha vulcânica e olhou para ela, confuso, pedindo que fosse mais específica. – Esse... vento. – Uma Devoradora. Uma corrente de ar que prende e... devora, que arrasta para dentro da Ferida – explicou, enquanto massageava o ombro dolorido. – Pelo que sei, só ocorre em rupturas próximas desta região. Os olhos do menino continuavam brilhando com intensidade. – Quer dizer que você já tinha passado por isso? – perguntou ela, ​s urpresa. – Não. Claro que não. Escutei algumas histórias de supostos sobreviventes. Mas... pensei que exageravam. – Então... já estamos a salvo? – Nem pensar. As Devoradoras repetem-se de tempos em tempos. Além disso, nós nos livramos desses bichos, mas tenho certeza de que era apenas uma manada desgarrada. No interior, deve haver centenas, talvez milhares deles. Acredito que eles se alimentam do veneno que toma conta deste lugar. Lan olhou para os olhos acesos do amigo e respirou fundo. Tinha de ser corajosa. – Quer um pouco de água? – perguntou o Sequestrador ao perceber que a havia assustado com aquela resposta. – Sim, obrigada – respondeu ela com a voz fraca. O menino ofereceu o cantil a ela e quis dizer algumas palavras animadoras, mas não conseguiu encontrá-las. – Acho que aqui estamos a salvo... por enquanto. Descanse um pouco – disse, calculando o caminho que ainda restava para ser percorrido. – Eu cuido de você. – Não acho que vou conseguir relaxar sabendo que esses bichos horríveis estão por aqui. – Não se preocupe! Tenho certeza de que, se eles souberem que você é a salviana cabeçuda que percorre o Linde, com seu vestido de senhora e duas facas, à procura de monstros para matar, fugirão desesperados – brincou ele. – Não me faça rir... Ai! Minhas costelas estão doendo. Lan tocou uma das feridas do rosto, que ardia muito. O Sequestrador aproximou-se dela e a examinou. Em seguida, quis limpar o sangue... mas no


mesmo momento afastou a mão. – Não se preocupe, estou bem – Lan agradeceu, um tanto confusa. O Errante afastou-se com mau humor e chutou uma pedra. O vento continuava soprando com força. Analisou desde a entrada o caminho que eles ainda tinham de percorrer e logo percebeu que o perigo que teriam de enfrentar dessa vez não vinha do solo, mas, sim, do céu: uma nuvem ameaçadora de Partículas aproximava-se depressa. Nunca havia visto algo parecido. Arrependeuse por não ter convencido Lan a car em Rundaris. Uma salviana não seria capaz de sobreviver a uma nuvem de Partículas tão densa. Seus olhos brilharam com ainda mais intensidade. – Lan! – gritou. – Rápido! Você precisa se proteger! Utilize a substância – disse, ficando de joelhos ao seu lado para amarrar o pano em seu rosto. A menina rangeu os dentes e respondeu: – Não! Temos apenas dois frascos. As Partículas começaram a vibrar como copos de cristal. – Não seja tola! Temos de chegar com vida ou... Uma rajada de vento levou embora parte da rocha que os protegia. A voz do menino desapareceu ao longe, como se algo a tivesse tragado. Lan procurou por ele, mas não conseguiu encontrá-lo. Observou aterrorizada a nuvem de Partículas, cada vez maior e mais brilhante, formando um tipo de redemoinho. Lan subiu na parede e empunhou de novo a faca. A terra logo cederia e, uma vez mais, era preciso tomar uma decisão. Por m, compreendeu que não fazia sentido arriscar-se e pegou, com di culdade, um dos frascos. Molhou a boca e o nariz com o líquido e depois cobriu as vias respiratórias. Instantes depois, a terra cedeu e, como seu amigo, Lan saiu voando. A menina sentiu que a substância estava se estendendo por todo o seu corpo, como se soubesse que devia se espalhar para poder revestir sua pele e protegê-la. Tudo girava ao seu redor. Era impossível distinguir algo além das formas e dos pontos brilhantes. De repente, o vento parou de empurrá-la, e ela começou a cair, a um lugar profundo, longe. E em um segundo a calma voltou. Silêncio. Uma garoa na começara a cair. Tossiu até se livrar da nuvem que havia se formado perto dela. Lan encontrou o amigo à beira de um lago, no qual borbulhava um líquido parecido com lava, mas toda a superfície estava revestida por uma pátina de Partículas reluzentes. – O que está acontecendo? – perguntou, assustada. O menino virou-se, desconcertado. Apesar de seus olhos terem se apagado, agora era o corpo inteiro que brilhava. Seu sangue parecia ter se transformado


em luz líquida e suas veias estavam marcadas como se fossem rami cações de uma árvore desenhada com fogo. – Não... não sei – respondeu ele, completamente assustado. – Precisamos sair daqui. – Como? Estamos no olho do furacão – disse Lan. O menino olhou para cima e comprovou que o vento não havia parado de soprar. Estavam no meio de um tornado de Partículas que arrastava todos os tipos de criaturas horríveis. Lan viu que algumas Partículas caíam do céu como ocos de neve e observou uma delas apagando-se sobre o dorso de sua mão, mas também descobriu um efeito inesperado: cada vez que a substância entrava em contato com uma das Partículas, esta se enfraquecia. – Temos de sair daqui o mais rápido possível – assustou-se. – A substância está terminando, não aguentaremos por muito tempo. O Sequestrador cerrou os punhos. Sentia-se estranho, como se as Partículas que corriam por suas veias estivessem tentando entrar em seu cérebro para tirar sua razão. Pressionou as têmporas para aliviar a pressão, mas não adiantou muito. Parecia que o corpo se nutria delas, da mesma forma que os monstros que tinham visto. – Vamos, siga-me! – O que vai fazer? O menino começou a correr em direção a um dos besouros e explicou: – Eles nos tirarão daqui. – Está cando maluco? – perguntou a menina, consciente de que não podia tocar um dos enormes insetos sem se intoxicar. – Pode confiar em mim. O Errante subiu em um escaravelho do tamanho de uma vaca e lutou com ele até o animal se deixar controlar. – Rápido! Esconda-se entre os ovos. – O quê? – Assim, estará protegida. Rasgue uma das bolhas e entre. Ainda não estão intoxicados. Lan não acreditou muito; parecia um plano suicida, mas não tinha outro melhor, por isso seguiu as instruções do Sequestrador sem questionar. Aproximou-se de um dos montes de ovos que pendiam do inseto e abriu uma das esferas. Depois de se livrar da viscosidade, comprovou que tinha o tamanho exato para abrigar uma pessoa agachada e entrou ali sem pensar​ duas vezes. O Errante obrigou o besouro a alçar voo e Lan descobriu, assustada, que o


animal empregava uma força muito grande para sair de seu interior. Segundos depois, deixaram para trás os monstros de pedra, os come-terra gigantes, as Devoradoras, a nuvem de Partículas e aquele turbilhão terrível. Por m, abandonaram a Ferida. Seguiam para o outro lado do abismo, onde os insetos alados punham seus ovos. Quando o escaravelho soltou o menino, o Sequestrador saltou para cair perto de Lan. Em terra firme, fugiram o mais rápido possível para evitar um encontrão com outro daqueles animais. – O que houve? – perguntou, incrédula. – Sobrevoamos a Ferida no lombo de um escaravelho gigante. – Foi nojento! – Mas continuamos vivos. – Sim... estou – olhou para as mãos e para o resto do corpo, coberto de Partículas desativadas que não demoraram a cair ao solo como se fossem cinzas – estou viva. O corpo do Sequestrador também havia se apagado. Seus olhos voltaram a ser escuros; as veias haviam deixado de brilhar. – Foi... estranho – pensou o menino, olhando para a frente, observando a bela figura do cubo.


O Cubo

C

aminharam sem parar durante muito tempo. Aquela paisagem desoladora parecia incapaz de abrigar qualquer tipo de vida. Os insetos haviam desaparecido e parecia pouco provável que voltariam a ver outro monstro. O ambiente estava mais deserto, parecia tudo um sonho. Não era nem dia nem noite, não fazia nem frio nem calor; não fazia sol, não se via a lua. O céu tinha um tom dourado perfeito e estava repleto de centenas de nuvens caprichosas que insistiam em desenhar todos os tipos de formas reconhecíveis. O cubo, cuja silhueta aparecia no horizonte, era tão grande que, por mais que avançassem, parecia ter sempre o mesmo tamanho. – Tem certeza de que essa coisa é o Templo? O menino permaneceu pensativo durante alguns instantes até dar de ombros e dizer: – Vamos perguntar à Esfera. Em seguida, o Sequestrador pegou o mapa de dentro da bolsa e o abriu. Ouviu-se um som, o equipamento mudou e, por m, as suspeitas se con rmaram: o cubo estava exatamente onde se supunha que o Templo estaria. Lan sorriu satisfeita. Pela primeira vez, acreditou que a odisseia estava chegando ao m. Estava exausta, sentia fome e sede; as poucas forças que restavam serviam para que se mantivesse de pé, mas, apesar de tudo, sentia-se feliz. Continuaram avançando por horas até que, por m, o cubo deixou de ser uma sombra contra a luz e se mostrou a eles com todo o seu esplendor. – É... é absolutamente incrível – comentou a menina. O Sequestrador não conseguiu dizer nada. Em um deserto in nito, de terra seca e repleto de cicatrizes, aquela enorme


figura geométrica se estendia de forma imponente. Mas o que mais chamava a atenção não era nem seu tamanho nem sua perfeita forma de cubo, e, sim, o fato de estar revestida de vida. – Você viu isso? – alegrou-se a menina. – É água! – comemorou, dirigindo-se rapidamente a um dos lados da construção. Lan bebeu água de um dos riachos que passavam pelas paredes do Templo e em seguida lavou o rosto. – É... é como se... Não sei, como se tivesse absorvido a vida em quilômetros... – pensou o menino. – Não – negou Lan, claramente recuperada. – Preste atenção. – apontou para a parede. – Nossa! Não é possível. É... – Sim, este lugar é feito de pedra, metal e... o substrato, hahaha! O mesmo composto que seu pai utiliza como adubo! – Um multiplicador de vida – disse o menino. – Claro! O cubo é construído‐ com um material que permite que os organismos vivam nele. Inclusive em condições pouco propícias, como as deste deserto. Lan convidou o Errante a recuperar as forças, afastou-se alguns passos e analisou o Templo por fora. Era da mesma altura de uma construção de Rundaris de dez andares, e eram necessários vários minutos para contornar cada lateral. As paredes do cubo não eram lisas; tinham diversas formas curvilíneas gravadas que se estendiam de um lado a outro, formando, às vezes, espirais e outros tipos de desenhos, aparentemente ornamentais. Nos sulcos, cresciam todos os tipos de ervas e pequenas plantas, algumas até davam frutos. Com o passar dos anos, a pedra tinha sofrido erosão, gerando todos os tipos de fendas pelas quais passava a água cristalina de vários riachos e das quais às vezes surgiam insetos: abelhas que administravam suas colmeias e todo tipo de animais pequenos que haviam se estabelecido naquele oásis enorme e repleto de vida, localizado no meio do nada. Por último, a menina olhou para cima, para o que podia ser considerado o telhado, porque ele fazia com que ela se lembrasse de Sálvia. Sua superfície estava coberta por uma espessa camada de mato alto e musgo brilhante que caía pelas paredes como se tentasse cobri-la totalmente. Olhando de fora, o Templo era um enorme cubo de pedra repleto de desenhos e vegetação ao redor, mas ficava claro que aquela construção era muito mais do que isso. – Por que construiriam um local assim? – perguntou a menina. Aquele lugar inquietante não combinava com a ideia pré-concebida de um templo qualquer,


então por que os Caminhantes da Estrela continuavam fazendo peregrinação até ali? Que segredos guardariam no local? O Errante percorreu um dos lados analisando com atenção todos os resquícios da parede. – Posso saber o que você está procurando? – Uma entrada! – gritou ele. Aquilo fez sentido, e ela se uniu a ele na tarefa. Os dois passaram muito tempo analisando os quatro lados visíveis do cubo, mas nada parecia indicar que pudessem entrar. – Está fechado – o Errante se deu por vencido. – Não entendo. O Nicar entrou, certo? – Sim, claro. Todos os guias de nosso povo chegaram aqui pelo menos uma vez na vida. – Então deve haver algum modo de... – Em que está pensando? Lan afastou-se alguns passos, pensativa, e logo perguntou a ele: – Há quanto tempo os Caminhantes não passam por aqui? – Não sei – respondeu ele, dando de ombros. – Décadas, creio eu. – Décadas?! – repetiu a menina, assombrada. Lan apontou para algumas partes da parede e então expôs sua teoria: – Quando escalamos a montanha com as couraças para recolher o substrato, você se lembra do que disse? Que era comum encontrá-lo nas curvas da rocha! – Sim, mas... não estou entendendo aonde você quer chegar. – Ainda que esta não seja a encosta da montanha, o desgaste do tempo criou diversas falhas em sua superfície e é possível que o substrato tenha entrado nesses buracos. – A porta! – compreendeu o Errante. – Exatamente. A porta de acesso ao Templo tem de estar tapada pelo composto, então não pode ser difícil encontrá-la. – Claro que não – sorriu ele. – Na verdade, sei exatamente onde está. – É mesmo? O Sequestrador assentiu e disse: – Já vi uma área azulada muito grande que me chamou a atenção porque não tinha forma. – A entrada! – exclamou Lan, abrindo um sorriso de orelha a orelha.


Rompido

Q

uando encontraram a porta, não foi difícil tirar o composto que a havia fechado. Era um substrato poroso e, portanto, fácil de romper, por isso utilizaram o volta e as facas para tirá-lo. Quando nalmente conseguiram abrir uma passagem, Lan não conseguiu se controlar e espiou para ver o que havia ali dentro. – Parece uma sala vazia – disse, decepcionada. O eco devolveu suas palavras de modo triplicado. O menino fez sinal para que ela se afastasse e então acertou um chute forte na parte que ainda estava em pé, deixando livre quase toda a entrada. Entraram com cuidado, já que não sabiam o que encontrariam ali dentro. Aquela era uma sala de enormes dimensões, mas muito mal iluminada. A luz passava apenas por pequenas ranhuras na parede e por um grande orifício que se localizava no meio do teto, projetando uma coluna luminosa que cruzava o Templo de cima a baixo. Analisaram o local, descobrindo diversos baixos-relevos e murais na parede. Alguns deles pareciam representar a lenda que os Caminhantes da Estrela contavam a seu povo. Emocionada, Lan levantou a cabeça para apreciar os desenhos. Agora tinha certeza de que tudo o que o Errante lhe havia contado ocorrera de fato, de que a história que aquelas imagens representavam era a de um povo azarado, de seus antepassados. Lan estremeceu. – Nossa! Isso é... impressionante! – admitiu o menino. – Agora sim se parece com um templo – pensou Lan em voz alta. Investigaram o espaço parando para examinar tudo o que chamava atenção. Encontraram uma escada comprida que começava apoiando-se em uma das


paredes e depois mudava de rumo e se direcionava a uma espécie de pedestal localizado exatamente no meio do Templo. O cubo era um lugar simples, estava decorado, e parte da vegetação de fora havia invadido também o interior. O musgo cobria de modo não uniforme algumas das paredes e até os riachos passavam pelas aberturas mais amplas, gerando um murmúrio relaxante que ficava mais forte com o eco. – Você viu isso? – perguntou Lan. – O quê? – Essa... máquina – ela não sabia ao certo como descrever o objeto. O Errante aproximou-se de um bloco de metal escondido entre as sombras, perto da escada, e tentou descobrir para que servia. – Parece uma das couraças de Embo – pensou. – É grande demais para ser uma couraça – disse Lan. – Tem forma humana, mas... parece ter sofrido um acidente; não tem a parte inferior do corpo... Rapidamente, a máquina abriu um dos braços e deu um soco forte no chão. Lan e o Sequestrador foram rápidos o bastante para se esquivar, mas tomaram um grande susto. – O que foi isso? – perguntou ela. – Não sei. Fora ativado quando nos aproximamos. Parece... um tipo de guardião – deduziu ele. O guardião era um tipo de robô enferrujado, coberto de poeira, musgo e todo tipo de vegetação. Escutou-se um ruído metálico dentro, muito parecido com aquele emitido pela Esfera quando se mexia nas engrenagens, e depois a máquina voltou a estender o braço. – Cuidado! – gritou o Sequestrador, querendo afastar Lan com um empurrão, mas controlou-se no último instante para não tocar nela. O soco quase alcançou os dois. – Mas que diabos... Antes mesmo de conseguir terminar a frase, a máquina tentou capturá-los de novo com sua mão de ferro. Eles afastaram-se alguns metros para que ela não os alcançasse. – Não tenha medo – o Errante tentou acalmá-la. – Está enferrujada e as extremidades inferiores estão quebradas, não consegue sair de onde está. Lan concentrou-se e comprovou que, de fato, onde esperava ver duas pernas mecânicas, só havia um monte de ferros retorcidos. O Sequestrador comparou o rosto de bronze daquele monstro com uma


máscara. Apesar de a máquina vibrar e conseguir controlar o braço direito, precisava de expressão e provavelmente de vida. Antigamente, talvez tivesse sido um bom mecanismo de defesa, mas agora, tão velho e coberto por ferrugem, só servia para assustar o desavisado que se aproximasse demais. A luz emitida pelos pequenos olhos daquele monstro metálico se apagou lentamente e suas garras voltaram a se apoiar no solo, como se o cansaço tomasse conta dele. – E agora, o que faremos? – perguntou Lan. – Não sei. – Temos de continuar procurando uma pista. – Sim, é o melhor a fazer. Mas, por precaução, não se aproxime muito dele – advertiu o menino, fazendo um sinal para o guardião. Tentaram encontrar um sentido para tudo aquilo, mas não chegaram a conclusão alguma. Por m, decidiram voltar a examinar de perto os murais e con rmaram que, de fato, ali era relatada a lenda dos Caminhantes. Uma bela cidade, construções altíssimas, de arquitetura requintada, pessoas de todas as raças vivendo em aparente harmonia... e depois a Ferida, a morte, os marcados com a estrela e o rei abatido. Tudo estava descrito da mesma maneira, menos no m, já que, depois da prisão do rei, aparecia um último desenho que o mostrava segurando a Esfera. – O que você acha que isso significa? – Não faço a menor ideia. Lan arrancou algumas frutas da pequena mata que crescia em uma gruta e levou-as à boca. – Você deveria ter prestado mais atenção quando contaram essa história a você. – Eu conheço a história de cor e salteado – respondeu o jovem, sem modéstia –, mas, como disse, o final não tem nenhum sentido. Lan olhou para ele desconfiada. O Errante imitou a menina e pegou um pouco de frutas. Comeu todas de uma vez, quase sem mastigar. Continuaram percorrendo o local. O chão era repleto de desenhos gravados, parecidos com os que viram do lado de fora, como se fossem pequenos caminhos para transportar a água ou para canalizar a umidade. Lan parou e exclamou: – Você percebeu? Tudo é perfeitamente simétrico. À exceção da vegetação, as paredes interiores são exatamente iguais. Como se uma fosse reflexo da outra.


– E os murais? – indagou rapidamente o menino, olhando para ela. – Apenas os murais e a escada são diferentes. É como se primeiro tivessem construído o cubo mais perfeito que conseguiram e depois o decoraram. – Que estranho... Lan avançou a passos curtos pensando em voz alta. – Gostaria de saber... para que serve? Ou seja, para que o desenharam? Normalmente, em um Templo, uma divindade é glori cada; no entanto, aqui não existe nenhum tipo de símbolo ou representação a se venerar. – Você sabe muito sobre templos, não é? – Cada clã tem seus deuses, e meu pai me contava histórias – recordou ela. – Talvez os primeiros Caminhantes não o considerassem um templo – pensou o Errante. – Talvez seja um artifício a mais, como a Esfera. – Isso não faz o menor sentido. – Por que não? Nicar e os outros guias transformaram o Linde em uma divindade, praticamente. Talvez venham para cá em peregrinação como se fosse um tipo de ritual, mas, na realidade, pode ser apenas... não sei, uma máquina, como esse guardião. Lan olhou para ele de canto de olho, com desconfiança, temendo que reagisse a qualquer momento e lhes desse novamente um soco. – Vamos imaginar que você tenha razão. Se for assim... para que serve? – insistiu a menina. – Como funciona? Se esse lugar pudesse devolver a Quietude perpétua ao planeta, já o teriam colocado em prática há muitos anos. Não acha? O Errante continuou dando voltas no assunto enquanto percorria o espaço lentamente. – Não sei – gritou do outro lado da sala, reconhecendo que estava tão perdido quanto ela. Depois, cou observando com atenção a última imagem do mural e reparou em um detalhe que antes havia passado despercebido. – Mas talvez... – Você encontrou alguma coisa? – emocionou-se a menina. – É só uma ideia. Está vendo? – Apontou para a imagem. – O rei Pyros segura a Esfera sob um raio de luz muito forte. Primeiro, eu o confundi com o sol, mas... – O que está querendo dizer? – Este lugar está iluminado apenas por essa abertura no teto, não é? A luz incide como uma coluna, portanto, pode ser que o rei esteja sob ela. – Mas se fosse assim...


– ... ele estaria neste pedestal – o Errante a interrompeu, fazendo um gesto. O menino aproximou-se da escada dando passos largos. Lan ​s eguiu-o. – Mas como quer que subamos até o alto? As escadas estão meio ​destruídas. – Vamos escalar – respondeu o Errante com firmeza. – Não temos arneses, nem couraças, nem mesmo uma corda para... – Vamos depender apenas de nós mesmos. Os dois subiram o lance de escada que ainda estava de pé. Para chegarem ao piso seguinte, teriam de dar um grande salto, por isso decidiram procurar outra solução. – Não vai saltar daqui, certo? – Hummm – pensou o Errante. – Espere por mim aqui. O menino desceu de novo com saltos rápidos e logo saiu apressadamente. Minutos depois, apareceu carregando alguns dos cipós que cobriam os muros do Cubo. – Trance-os com cuidado e verifique se são resistentes. – Mas... – Vamos! Depressa! Quando terminar, jogue-os para mim. – Mas como você vai... Antes de ela conseguir terminar a frase, o Errante já tinha saltado para o lado e cou agachado. Poderia ter caído no chão, mas sua excelente forma física permitiu que aguentasse o peso do próprio corpo sem problemas, conseguindo subir no andar seguinte. – Ainda está aí? – perguntou, em tom de brincadeira. Lan deixou de lado a surpresa com aquele movimento e obedeceu o companheiro. Segundos depois, havia amarrado a corda que, presa dos dois lados, serviria como um tipo de passarela. Depois de vencer a distância perigosa, subiram até o último patamar da escada para alcançar o pedestal, que era como um pódio de pedra circular, com uma estrela marcada na parte superior, cercado por centenas de sulcos, parecidos com os das paredes, que se ramificavam até se prenderem uns nos outros. A menina subiu ao pódio e olhou para baixo. “Uma queda daqui seria mortal”, pensou. – Para que serve isto? – perguntou Lan, tentando situar-se no estreito espaço que havia entre o pedestal e o Caminhante. – Acho que é bem óbvio – respondeu o Sequestrador, fazendo um sinal para o buraco semicircular no centro do pedestal. – A Esfera?


– É mais ou menos do mesmo tamanho. Faz sentido, não? – concluiu. O menino tirou a Esfera do saco de pano e a colocou com cuidado no buraco. Encaixou-se perfeitamente, como se nunca tivesse saído dali. – Confirmado: é mais uma peça do Templo. – Sim, é como se fosse uma chave ou... o motor da máquina. O menino ativou o equipamento apertando o círculo superior. Ambos esperaram, cheios de expectativa, e... nada aconteceu. – Puxa! Que decepção! – lamentou a menina. A Esfera estava se recon gurando de novo, mas nada havia mudado desde a última vez. O mesmo som, as mesmas vibrações; consultar o mapa daquele pedestal não mudou em nada. – E agora, o que faremos? – perguntou ela, baixinho. – Eu não... não sei – respondeu o menino, com ar de derrotado. A menina percebeu que o Errante estava prestes a desanimar. – Vamos! Não chegamos até aqui para nos rendermos agora, não é? – Claro que não, mas... eu não tenho mais ideia nenhuma. Sabe? Pensei que quando entrássemos aqui, surgiria a solução como em um passe de mágica. Esperava que este lugar nos mostrasse claramente como salvar o Linde e... não sei... que simplesmente seríamos capazes de ver algo que o resto dos Caminhantes não tinha visto – confessou. – Mas talvez tenha sido uma ilusão. – Não, claro que não. Você tinha esperança e precisa mantê-la até o m – tentou animá-lo. – E para que serve a esperança? Não existe, não se pode tocar. É apenas uma ideia, um sonho... uma mentira! É um eufemismo como qualquer outro. A esperança não passa de uma palavra bonita com a qual podemos maquiar a realidade – disse, numa atitude derrotista. A menina permaneceu calada, esperando que o Errante se acalmasse, e depois disse, com calma: – Signi ca muito mais do que isso. A esperança é acreditar além do que podemos controlar. É um sentimento, como a alegria, o medo ou o ódio, ao qual você pode se apegar principalmente nos momentos mais difíceis, quando sabe que não consegue fazer nada sozinho. Inclusive quando tudo está perdido, sempre resta a esperança. O Sequestrador olhou para ela sem acreditar. Apesar de ter perdido a família e quase ter morrido mais de uma vez, Lan mantinha a esperança. Ele admirava essa coragem e convenceu a si mesmo de que não podia se entregar. As palavras dela humana tinham tocado a parte mais profunda de seu ser; ela havia lhe dado


uma lição digna de um guia, de mestre. O Errante sentiu-se envergonhado. – Obrigado. – Obrigado? Por quê? – a menina ficou curiosa. – Por tentar abrir meus olhos sempre que co cego. Por estar do meu lado, como tem feito. Por me dar um motivo para seguir em ​frente... porque... Lan engoliu em seco, o menino havia se calado e olhava para ela xamente. Não havia terminado a frase. Era claro que estava falando com o coração. Nesse momento, a ideia de que o Errante podia sentir algo por ela não lhe pareceu tão absurda. Ela quis ler nos olhos dele as palavras que seus lábios não se atreviam a pronunciar, mas o menino se adiantou. – Obrigado por... por... – titubeou. – Por ter salvado a minha vida ontem... – continuou, deixando no ar o que estivera a ponto de dizer. – Você foi muito valente ao enfrentar aquela enorme rocha viva – reconheceu, tentando trocar de assunto. – Sim, claro – disse ela, quase sem voz, tentando não demonstrar decepção. Pensou que o menino diria outras coisas. – Finalmente eu consegui salvar você uma vez, pelo menos – disse, por fim, e tentou mostrar seu melhor sorriso. O Errante desviou o olhar dissimuladamente. Não tinha sido capaz de se confessar e não sabia como se dirigir a ela sem sentir vontade de abraçá-la e de protegê-la com sua própria vida. Suspirou e voltou a repetir a si mesmo quem ela era e de onde vinha. Sua vida não tinha nada a ver com a daquela salviana, o encontro deles tinha sido uma casualidade. Era um Caminhante sem nome e sem terra, disso não podia se esquecer. Distraída, Lan afastou o cascalho com a bota, jogando algumas pedrinhas em cima da cabeça do guardião. O eco das pedras batendo no metal reverberou diversas vezes pelo Templo. A jovem respirou fundo e se encolheu assustada, temendo ter despertado a criatura mecânica. Passaram alguns segundos e nada aconteceu. Nenhum ruído, nenhum tremor, nem zumbido. Nenhum mecanismo tinha sido ativado. – Ufa! – suspirou aliviada. O Sequestrador não disse nada, mas a censurou com o olhar. Precisava ser mais cuidadosa ou eles não conseguiriam sair vivos dali. – E o que mais podemos fazer? – Não sei... esperar, creio eu – respondeu ela. – Quem sabe? Talvez, ao anoitecer, este lugar nos mostre... – Você ainda não percebeu? – ele a interrompeu. – Aqui não existe nem noite nem dia. É assim...


– ... o firmamento está rompido – compreendeu ela. Nesse instante, o Sequestrador olhou para a Esfera. – O que está pensando? – Você disse bem. Talvez esteja rompido – repetiu. – Rompido? Era só um modo de dizer. – Muito tempo se passou – disse o Errante, como se tivesse entrado em um beco sem saída. – Não podemos fazer mais nada. – Mas... se a Esfera continua funcionando, por que este lugar não muda? – pensou em voz alta, tomada de otimismo. O menino pegou o mapa para analisá-lo de perto. Lan segurou-o. – É cada vez mais difícil para a Esfera se recon gurar, por isso os Caminhantes a utilizam muito pouco. Esse som quer dizer que mais cedo ou mais tarde também deixará de funcionar. É como se estivesse muito enferrujada e, como não conhecemos seu funcionamento exato nem o material com o qual foi feita, também não podemos tentar consertá-la. A menina passou a mão pelos diversos sulcos e cicatrizes que tinham se formado na superfície daquele antigo equipamento. Rompido. Tudo estava perdido. Lan e o Errante se sentaram, cada um de um lado do pedestal, apoiando as costas no pódio enquanto deixavam as pernas soltas no vazio. Ficaram assim, em silêncio, perdidos em suas divagações, iluminados pelo potente raio de luz que descia como uma cascata e projetava suas sombras no chão do Templo. Esperavam que algo acontecesse. Haviam chegado até o lugar mais escondido do Linde e não queriam se dar por vencidos, mas tinham concluído que não havia uma cura possível. O planeta estava condenado. Aquele maldito cubo... estava rompido.


Seu nome

O

bservaram durante horas os murais da parede, os desenhos do solo e o pedaço de céu que se mostrava por meio da abertura do teto. Sentados ali em cima, escutando os ecos relaxantes do Templo, parecia impossível esquecer o caos que os cercava. Por m, Lan pegou no sono e, sem perceber, seus dedos se afrouxaram, soltando o saco de pano dentro do qual estava a Esfera. Escutou-se um som, como de cristais se rompendo, provavelmente a campainha que utilizavam para chamar os vaga-lumes da terra. – Cuidado! – exclamou o Errante. Tarde demais. Quando o menino se deu conta, o mapa já estava rolando escada abaixo. – Oh, não! – gritou a menina. A Esfera bateu em cada um dos degraus, produzindo um som metálico estridente. O Sequestrador não hesitou e foi atrás dela, mas logo depois parou para observar que ela deixava um estranho rastro. – É... a substância – murmurou. O último frasco que restava havia se espalhado sobre o mapa. – Não... não, não. Não! – disse enquanto se apressava para descer a escada. A Esfera, por m, chegou ao chão e começou a rodar ao longo da sala. O menino correu atrás dela para evitar que batesse contra uma parede, mas, instantes depois, um forte som metálico anunciou o ​inevitável. O Errante aproximou-se da peça, com esperança de que não tivesse se rompido. Pegou-a com extremo cuidado e então ficou boquiaberto. – Não é possível – murmurou. Não tinha nem um risco, muito pelo contrário, a substância estava se estendendo ao longo de sua superfície enferrujada, devolvendo a ela seu brilho


original. A Esfera parecia ter sido feita de ouro, prata e cobre. Ela havia se curado. – Lan! Hahaha! – riu. – Lan! Isso é incrível! – O que foi? – A Esfera! Lan arregalou os olhos, surpresa. O mapa que o menino segurava agora brilhava como metal polido. – Ela se... reparou... – tentou explicar enquanto subia as escadas de novo. – O quê? – Veja isso, veja como é... como se a substância tivesse lhe restaurado o estado original. A menina aproximou-se o máximo que pôde para comprovar que o Errante estava certo. – Depressa! Volte a experimentar. Pode ser que agora o pedestal ​funcione. Sem demora, o Sequestrador colocou a Esfera no buraco, descobrindo, naquele instante, que agora se encaixava mais facilmente. Acariciou a superfície até chegar ao círculo superior, pressionou o botão e... o mapa começou a vibrar. Já não havia indícios de sons, parecia que todas as peças estavam perfeitamente lubri cadas e que as placas que deslizavam pela superfície se encaixavam suavemente umas nas outras. Quando a Esfera terminou de se recon gurar, os sulcos ao redor do pedestal caram iluminados com uma cor azul intensa que não demorou a se estender pelo resto da sala. E então o Templo inteiro começou a vibrar. – O que está acontecendo? – perguntou Lan, assustada. O menino seguiu com o olhar o brilho azul que percorria os dutos desenhados no solo e nas paredes. A princípio, não tinha certeza do que aquilo signi cava, mas, quando uma das rami cações invadiu uma abertura na parede revestida pelo substrato, compreendeu exatamente o que estava acontecendo. – É a substância... Está “curando” o Cubo da mesma forma que reparou a Esfera. – Curando? – repetiu Lan, incrédula. De repente, as paredes, o chão e o teto caram transparentes, deixando a paisagem do lado de fora à mostra. A menina continuou assustada. O Cubo havia se elevado ao ar alguns metros e agora flutuava como uma bolha. – Estamos... voando?! Consigo ver através das paredes. – Lan – chamou o menino –, olhe suas mãos! – disse, impressionado.


A salviana, ainda boquiaberta, descobriu que em suas mãos apareceram estranhas linhas de cor azul. – O que está acontecendo conosco? – assustou-se. Os desenhos lembram claramente os motivos com os quais o Cubo estava decorado. Continuaram se estendendo por sua pele até pararem à altura do cotovelo e, logo, começaram a brilhar com uma cor turquesa intensa. Tanto o Errante como Lan tinham, agora, o mesmo sinal. – Não sei, mas não dói. É como se o Templo nos tivesse marcado – respondeu ele, seguindo com seus dedos as linhas que percorriam um de seus braços. – Bem, de qualquer modo, não acho que esse seja o nosso maior problema – disse a menina, apontando para fora. Ao longe, a Ferida continuava exteriorizando todos os horrores: criaturas monstruosas, nuvens de insetos e Partículas dirigiam-se até sua posição. – Sentem-se atraídos pelo Cubo! Vieram até aqui! – exclamou, ​assustada. O menino observou mais uma vez o desenho do mural e então viu a chave. – Não está segurando. – O quê? – indagou Lan, sem deixar de observar as feras, cada vez mais próximas. – Não está segurando a Esfera. Olha – apontou para o mural. – O rei não está segurando – disse, claramente emocionado. – Está... acionando-a. – Não entendo. – É uma chave. O controle! De repente, algo acertou uma das paredes do Cubo. Lan estava a ponto de perder o equilíbrio, mas teve re exo su ciente para se manter aos pés do pedestal. Segundos depois, um enorme come-terra preso em chamas mordeu uma das pontas inferiores. – Fique calma – disse o menino. – Calma? – gritou. – Como quer que eu fique... Um novo golpe, dessa vez um golpe de cauda de uma espantosa criatura. Em seguida, as paredes transparentes do Cubo mostraram um monte de insetos enormes tentando atravessar os muros enquanto a nuvem de Partículas se espalhava ao redor. O menino imitou a posição das mãos do rei e então deslizou os dedos pela superfície da Esfera, deslocando algumas de suas placas como se as obrigasse a se recon gurar. Instantes depois, a paisagem começou a mudar rapidamente a seu redor. Já não havia rastro de monstros nem de Partículas.


– O que está acontecendo? – perguntou Lan, desconcertada. Através das paredes transparentes, puderam ver como o horizonte se transformava, da mesma maneira que em uma ruptura da Quietude. No entanto, eles não pareciam ser afetados. Continuavam suspensos no ar, como se estivessem a salvo no olho do furacão. As montanhas transformaram-se em oceanos, os desertos, em vulcões e a terra rachada, em um enorme campo verde. Diante de seus olhos, apareceram vastas extensões de areia e de gelo, de água e de fogo. O céu também mudava a uma velocidade incrível: dia, noite, amanhecer, entardecer, a aurora boreal. De repente, uma criatura de corpo grande e cor branco-acizentada lançou-se sobre eles com a boca aberta. Havia conseguido entrar no Cubo antes que este se erguesse no ar para levá-los para longe dali. Sua pele úmida deixava à vista veias que brilhavam com a cor do fogo, muito parecido ao ocorrido com o Sequestrador quando estava na Ferida. Lan quis se salvar, mas o pedestal era alto demais para saltar; com pouco‐ equilíbrio e com apenas duas facas, não tinha nenhuma possibilidade de sobreviver em uma nova investida do monstro. O Errante olhou para a criatura, sem nada poder fazer; ela enrolava-se na coluna que sustentava o pódio, subindo para tentar alcançá-los. No último instante, algo acertou o animal e o lançou contra uma das paredes. Era uma enorme mão de metal reluzente. A menina endireitou -se e conseguiu ver que a substância também havia curado o guardião, que agora lutava dentro do Templo contra aquele monstro terrível. Enquanto isso, a paisagem seguia mudando ao seu redor. Eles pareciam reconhecer o deserto cheio de cicatrizes, as terras desertas de Unala completamente devastadas e até, de longe, a silhueta de Rundaris. Um mar revolto. O monstro arrancou totalmente um dos braços do guardião. Uma enorme placa de gelo. O humanoide mecânico acertou um forte golpe na criatura, quebrando algumas de suas cristas e fazendo com que suas veias brilhassem com ainda mais intensidade. A névoa cobria tudo. Ambos deram início a uma briga violenta, até que o robô alcançou a mandíbula de seu adversário e apertou-a com força, tentando dominá-lo. Uma selva. A criatura girou furiosa até conseguir se livrar e tentou seu último golpe. O


guardião lutou com valentia, ferindo o monstro com gravidade. Um extenso campo de terra vermelha. Do animal, surgiu um rio de sangue brilhante. Um líquido viscoso repleto de Partículas. Quando o guardião soube que havia cumprido seu trabalho, deitou no chão e seu rosto voltou a perder a expressão. Dia e noite passavam tão depressa que parecia que alguém havia acelerado o tempo. E então Lan compreendeu tudo... e entrou em pânico. – Pare! O menino não reagiu, estava totalmente hipnotizado, como se a Loucura do Horizonte o tivesse afetado. – Vamos, pare! – insistiu Lan. O Errante virou-se sem entender: – O que foi? – Não está vendo? Você está provocando a ruptura da Quietude em todo este planeta! – O quê? – A paisagem está mudando para imitar a forma que você deu à Esfera. – Não é possível – ele assustou-se. O Errante comprovou que Lan tinha razão e então, sem hesitar, afastou as mãos da Esfera, como se temesse ferir alguém. Não queria ser o responsável pela ruptura, nem por todo o sofrimento que causaria. Silêncio. O Cubo vibrou de novo. Suas laterais voltaram a ser sólidas. Desceram a outro nível. – Você... você tinha razão – murmurou o menino, visivelmente afetado. Ao soltar a Esfera, a ruptura havia parado. – Mas... não entendo. Então, este lugar serve para provocar rupturas? Isso... isso não faz sentido algum. Ambos ficaram mudos. Não eram capazes de chegar a uma conclusão. – Não, não faz – concordou o Sequestrador, abatido. – Talvez... o rei não pretenda curar o planeta – pensou Lan. – Então, para que se preocupou em construir esta... máquina? Lan deu de ombros. Logo abaixou a cabeça e sentou-se em um dos degraus da escada. – Diz a lenda que queriam encontrar uma cura, certo? Restabelecer a Quietude perpétua.


– Sim. – Bem, vamos analisar a situação: a Esfera é um tipo de mapa que representa a forma do Linde. No entanto, o Cubo, outra forma geométrica exata, é um mecanismo capaz de mover as placas do planeta à vontade. – São equipamentos feitos com propósitos – compreendeu o Errante. – Um “lê” a configuração do planeta e outro a transforma. – Exato. – A única coisa que o rei fazia, aqui dentro, era devolver ao mundo seu estado original após cada ruptura – entendeu, por m, o menino. – Lutava com o Linde e reconfigurava-o. O Errante manteve-se pensativo e depois murmurou: – Assim... as rupturas aconteciam, mas tudo permanecia igual. Lan apoiou a cabeça nos joelhos, claramente decepcionada. – Com o tempo – continuou dizendo –, as rupturas tornaram-se cada vez mais violentas e descobriram que não adiantava travar um duelo com o planeta. E então... se renderam – concluiu, abatido. – Faz sentido – admitiu Lan, triste. – Como diz a lenda, “o rei se fechou dentro do mapa”, mas não na Esfera, que é muito pequena, e, sim, no Cubo. Outro tipo de mapa. Uma máquina gigante desenhada por seus mestres para recon gurar o planeta. – Finalmente encaixou as peças. – Mas... por mais que se esforçassem, de nada adiantava. Era ​apenas uma solução transitória, não impedia as rupturas. O menino bufou preocupado e massageou as têmporas. – O que podemos fazer? – Que decepção! – disse Lan. – Este lugar não se trata de uma cura, na verdade é... o contrário. Leva-nos de um lugar a outro; provoca rupturas. Então, o menino teve uma ideia. – Um momento. É isso! – O quê? – O Cubo nos leva de um lugar a outro. – Sim, e daí? – Lan ficou interessada. – Não percebe? Podemos recon gurar o planeta. Podemos levá-lo para dentro da Ferida! Lan não entendeu. – E de que adiantaria? Continua não sendo uma cura... – disse. – Vamos, Lan, abra seus olhos. Já temos uma cura! Nós temos algo de que os nossos antepassados precisavam. Essa substância pode... A menina havia descartado de cara essa opção, já que, apesar de os frascos


estarem intactos, não tinham quantidade suficiente para a Ferida. – Nós a perdemos – ela o interrompeu. – Você viu o que ela fez com o mapa? Ela o recuperou! – disse o menino, empolgado. – E com este lugar? – Sim, sim, eu entendo – tentou acalmá-lo. – Ela o “curou”. E daí? – Este lugar tem se deteriorado com o passar do tempo e os zímbalos têm se aproveitado dos buracos de sua superfície para enchê-los com seus excrementos. Lan lembrou-se do dia em que vestiram aquelas couraças grandes e foram buscar substratos. – Portanto, agora uma boa parte do Templo está construída com o que meu pai chama de multiplicadores da vida – explicou ele. – Por esse motivo, poucas gotas dessa substância bastaram para reparar todo o Cubo. – Quer dizer que... – Lan – ele dirigiu-se a ela, olhando xamente em seus olhos –, observe ao seu redor. A menina olhou para a frente e descobriu, perplexa, que a substância não parava de se multiplicar. As paredes agora estavam cobertas por aquele líquido viscoso, e o solo, completamente encharcado, emitia uma suave luz azul. O Cubo estava se enchendo lentamente e chegaria um momento em que vazaria por seu orifício superior. – Não é possível – murmurou. O jovem, que havia se levantado para olhar para a Esfera no centro do pedestal, tomou uma decisão: – Vou voltar a ativar o Cubo. – Está maluco? – Não, loucura seria ficarmos aqui sem fazer nada. Vou... vou levá-lo à Ferida. Lan calou-se. Naquele momento, pensou que aquela aventura não teria um final feliz. – Não podemos fazer isso – disse ela, levantando-se bruscamente para encarálo de frente. – Claro que podemos – respondeu o menino. – Temos a cura e podemos nos deslocar rapidamente até o centro da Ferida. Não precisamos de mais nada, precisamos tentar! – Mas, uma vez ali... está tudo contaminado! Será que não entende? Não sobreviveríamos... – disse. O menino abandonou a expressão alegre de repente e disse: – Não....


Lan permaneceu em silêncio e olhou para ele com preocupação. – Não... Lan – disse, cabisbaixo –, não sobreviveríamos. Por isso...eu irei sozinho. A menina arregalou os olhos. Que diabos ele estava insinuando? – Não posso permitir que você... – a menina se opôs à ideia. – Nem pensar! Deve haver outra solução, tenho certeza de que vamos encontrá-la. Só precisamos... – Compreenda, Lan. – Já disse que não – respondeu ela. – É a única maneira de... – Não vou deixar que você banque o herói de novo – ela o interrompeu irritada, temendo perdê-lo para sempre. E, de repente, o menino a tocou. Ela cou parada. O jovem afastou com delicadeza a mecha de cabelos que caía sobre seus olhos. Sentiu uma forte onda elétrica percorrendo seu rosto. A mão do Errante deslizou suavemente por sua face, acariciando-a, enquanto Lan permanecia imóvel, confusa. O menino olhava xamente para ela com o semblante calmo, mais seguro de si do que nunca. O que ele pretendia? – Perdoe-me – sussurrou ele. Em seguida, ele a beijou. Não tinha outra opção. Beijá-la talvez a deixasse inconsciente, mas não a mataria. No entanto, se permitisse que ela continuasse falando, sabia que ela encontraria uma maneira de impedi-lo de partir. Com aquele beijo amargo, na realidade esperava salvar sua vida. Lan sentiu o doce veneno da morte percorrer seus lábios. O beijo de um Errante doía como mil agulhas em chamas, mas havia desejado sentir o contato com sua pele por tanto tempo que conseguiu ignorar toda aquela sensação e isolar apenas o prazer do delicado toque. Seu primeiro e último beijo. Lan envolveu o pescoço dele com os braços e o menino a puxou contra seu peito. Por um instante, os corações dos dois se sincronizaram e bateram em uníssono, como se fossem um só, livres, além de qualquer proibição ou regra. Ele abraçou-a com ainda mais força. Lan lembrou-se da estrela que havia desenhado na mão para passar despercebida no acampamento dos Caminhantes e que havia se apagado com a chuva de Rundaris. Naquele momento, desejou que a estrela não fosse falsa, queria ter nascido uma Errante, apesar de ter de carregar uma maldição pela vida toda... só para que aquele beijo não terminasse nunca.


A menina percebeu que todos os músculos de seu corpo se contraíam e acreditou que seus ossos se quebrariam. As pálpebras agora pesavam como se fossem de ferro e sua mente cou totalmente confusa. Sabia que o Errante não ia matá-la, mas o odiou por livrar-se dela daquela maneira. Um calor fugaz tomou conta de seu corpo, e ela caiu desmaiada. O menino assustou-se. Segurou-a nos braços e desceu as escadas o mais rápido possível para tirá-la dali. A substância havia se multiplicado tão depressa que agora chegava a sua cintura. De repente, o Sequestrador sentiu algo estranho, como se estivesse perdendo as forças. O que estava acontecendo? Precisava seguir adiante, precisava salvá-la. Observou ao seu redor, a substância havia começado a subir por todo o seu corpo e estava apagando as Partículas dentro dele. O Errante amaldiçoou seu azar. Instantes antes de morrer, havia encontrado a cura para a sua maldição. Aquela substância talvez pudesse transformá-lo no que ele sempre desejara: ser normal! Capaz de abraçar seus semelhantes sem causarlhes perigo. Mas não podia pensar nele. Não devia fazer aquilo. Já estava decidido. Levou Lan para fora e deitou-a no chão com delicadeza, implorando aos céus para que ela continuasse viva. Depois, ajoelhou-se e contemplou seu rosto pela última vez. A menina abriu os olhos lentamente. – Não... faça isso, por favor – implorou Lan, com a voz fraca. O menino cou em pé e olhou para ela com ternura. Sentiu como se alguém estivesse apertando seu coração com força e que a qualquer momento pudesse ser impedido. Não aguentou mais, virou-se e começou a caminhar em direção a seu destino. “Sequestrador”, lembrou a menina. Ainda precisava de um nome. Não podia ir embora sem nome. Lan reuniu todas as suas forças e finalmente murmurou: – Ca... lan. O Errante parou a poucos passos da entrada e virou a cabeça para escutá-la de novo. – Calan... esse é o seu nome – disse ela, com esforço. O menino sorriu. Conhecia a lenda das estrelas. Calan, “protetor de Lan”. Não havia nome mais lindo. O menino ficou emocionado. – Obrigado... – disse, com a voz trêmula.


Em seguida, respirou fundo e fechou os olhos. Quando voltou a abri-los, o Errante decidiu que levaria com orgulho aquele nome até o momento de sua morte. Lan respirava com dificuldade, o rosto banhado em lágrimas. Não podia permitir que ele se fosse. Lutou com todas as forças para se manter consciente, mas seu corpo não respondia. Observou o menino se afastar, e então tudo deixou de ter sentido. Calan atravessou o espaço e subiu a escada com decisão. Quando chegou ao pedestal, manteve a Esfera entre as mãos e olhou para ela pela última vez. Havia pertencido, por muitos anos, ao povo errado. Os Caminhantes da Estrela, considerados os seres mais sábios do planeta, haviam sido expostos à força de vontade de uma simples salviana. Não tinha tempo a perder; ativou a Esfera e então o Cubo se elevou, tornandose transparente de novo. E tudo mudou ao seu redor. Noite e dia. Mar e gelo. O planeta estava se recon gurando do modo que ele imaginara para que a cura fosse direcionada à Ferida. Quando chegou ao epicentro das rupturas, encontrou apenas a escuridão e a podridão. Fazia um calor insuportável. Milhões de Partículas reuniram-se ao seu redor, voando como pedaços de vidro prestes a estourar. Seus olhos brilharam com intensidade... e então Calan ergueu a cabeça e deu seu último sussurro. Apesar da distância, Lan escutou a voz doce do Errante dizendo algo de que nunca se esqueceria. Quis sorrir, mas não foi capaz. Mais uma vez, ele a salvara. Dessa vez, ela e o restante do Linde tinham sido salvos. Sempre seria seu protetor. Tudo continuava mudando. Colinas que se transformavam em campos de trigo e rios que tinham o vermelho de um vulcão; nuvens que voavam tão rápido como o vento, estrelas, escuridão e, de novo, a aurora boreal. Lan presenciou três lindos entardeceres antes de a Quietude perpétua tomar conta de tudo... para sempre. E então deixou de sentir e tudo ficou escuro.


Curado

A

pesar de estar em um sono profundo, Lan escutou a melodia de vários chocalhos. Sua mente vagava por um mar de águas quentes e transparentes, tentando alcançar os raios de sol que penetravam no mar para sair à superfície e tomar ar. Música de novo. O tilintar de um sino. Entreabriu os olhos com di culdade e viu que, longe, havia uma leira de animais de transporte. Ao lado deles, as pessoas levavam estandartes grandes que ressoavam de modo melódico a cada passo. Sobreviventes. Aquela comitiva parecia estar formada por alguns dos mais sortudos que tinham sobrevivido às últimas rupturas da Quietude. De algum modo, haviam conseguido se reunir e caminhar juntos para um local seguro. Pela primeira vez sabiam que não se perderiam. A mente de Lan cou confusa de novo, escutou alguém se aproximando para molhar seus lábios com um pouco de água. Abriu os olhos com di culdade e não conseguiu reconhecer o rosto. Mais passos, mais gente. A multidão reuniu-se ao seu redor. Ela não conseguia dizer nem uma palavra com sentido. O tempo parecia desacelerado, seus ouvidos ignoraram o barulho das pessoas. Ela sentia-se vazia, incapaz de controlar o próprio corpo. De repente, percebeu que ela era erguida e as pessoas exclamavam algo. Estavam tocando nela, portanto, não eram Caminhantes. Uma mulher dirigiu-se a ela, mas a menina não conseguiu descobrir o que ela tentava dizer. A mulher sorriu arqueando as sobrancelhas e depois levou as mãos à boca. Surpresa. Lan pensou que estava sonhando. Vivia a cena como se


aquilo não fizesse parte dela, como se estivesse vendo tudo a distância. Não queria acordar, negava-se a aceitar o ocorrido. Fechou os olhos e deixou-se levar de novo pelas águas que tomavam sua memória. Ali, tudo era perfeito, não tinha com que se preocupar. Dormiu durante tanto tempo que muitos já tinham perdido a esperança de que ela voltaria a despertar. – Lan – chamou uma voz que lhe pareceu familiar. – Vamos, acorde – insistiu. – Tudo acabou, não há mais o que temer. Estamos aqui com você. Sentiu que alguém segurava sua mão. Era suave e quente. – Lan... Tinha um toque agradável. Como a de Naya, sua mãe. A menina abriu os olhos com di culdade, abandonando com esforço a sensação que tentava levá-la de volta àquele oceano infinito. O mundo real. Sua mãe. – Lan! Oh! Lan! – exclamou, abraçando-a com força enquanto molhava seu peito com lágrimas. – Pensei que a tivesse perdido, minha filha. Pensei que... Lan sentiu que seu corpo voltava a reagir. Em primeiro lugar, mexeu os dedos de uma mão e depois foi subindo até os outros membros. Endireitou-se com lentidão, olhando para a mãe, ainda sem acreditar. – Mamãe, também senti muito a sua falta. E se encolheu como uma menina carente. As duas choraram durante muito tempo sem nada dizer. Às vezes, mostravam felicidade. Às vezes, tristeza. Era um momento muito ​estranho. Lan, por fim, parou de soluçar e então perguntou: – Onde estou? A mãe secou os olhos com a saia de seu vestido e disse: – No palácio de Mezvan. Está aqui porque alguns dos sobreviventes que se dirigiam a Rundaris encontraram você em um bosque que ninguém tinha visto antes. – O quê? – tentou entender. – Um bosque novo? – Estão chegando notícias de todo o Linde, dando conta de que a vegetação está se desenvolvendo com rapidez no planeta, inclusive em lugares mais áridos. Está curado, querida, nosso amado Linde está curado graças ao que você e seu valioso amigo fizeram. Lan segurou a mão de sua mãe. Lembrar-se de tudo aquilo foi um baque e inevitavelmente seus olhos caram marejados de novo. Uma dor intensa apertou


o peito e ela sentiu que não conseguia respirar. – Já passou, minha lha – a mãe tentou consolá-la, abraçando-a. – Tudo acabou... A menina permaneceu com o olhar perdido no vazio. Calan. Calan. Calan. Não conseguia tirar aquele nome da cabeça, aqueles olhos prateados. Seu último sorriso. De repente, percebeu que a agulha do amuleto de Ivar, que geralmente girava de modo errático, agora apontava sempre para o mesmo lugar. Por mais estranho que fosse, não deu importância. Uma porta abriu-se. – Naya, finalmente encontrei você e... Era Mona, que estava sem o rabo de cavalo e parecia maior. Ela olhou para a amiga, boquiaberta. – Lan! – exclamou a menina. – Você acordou! A menina abraçou a amiga com toda a força e começou a chorar de alegria. Lan sorriu. Sua mãe, Mona... tudo parecia ter voltado ao normal. Uma silhueta que havia permanecido em silêncio, observando a cena, apareceu na porta. – Nao? – murmurou. O menino já conseguia caminhar sem mancar, apesar de ainda estar com curativos nas costelas. Aproximou-se da cama da amiga e lhe deu um beijo na testa. – Você é mais corajosa do que eu pensei – disse em um tom brincalhão, que fez com que ela se lembrasse na mesma hora do ​Sequestrador. Lan olhou para ele em silêncio até que reagiu estendendo a mão. – Você cumpriu sua palavra – disse Nao, aceitando o apito que a amiga devolvia. Quando tudo se acalmou, Lan soube que a última ruptura havia devolvido o mundo a seu estado original e que as pessoas logo compreenderam que seu sofrimento nalmente havia terminado, que a Quietude perpétua havia se restabelecido no Linde. Agora, os sobreviventes se reuniam para formar novos clãs e alianças. Já não seria necessário marcar Limites Seguros, qualquer um poderia percorrer o planeta sem medo de se perder. Seria um mundo novo, sem ​fronteiras. Apesar do ocorrido, Mezvan e Nicar haviam aprendido muito com aqueles jovens. Lan e o Sequestrador desa aram a autoridade deles por um motivo importante. Eles mostraram que nunca podemos nos dar por vencidos e que


tudo deve ser questionado. Ao entardecer, uma brisa suave entrou pela janela do quarto, remexendo as cortinas delicadamente. Lan despertou do sono e viu-se totalmente sozinha. Ficou em pé com dificuldade e caminhou até a varanda. O ar fresco acariciou seu rosto e seus olhos, que quase já não tinham mais lágrimas para chorar. Dali de cima, podia ver as construções de Rundaris que haviam cado em pé depois das últimas rupturas. Observou o horizonte, estático pela primeira vez. Quietude. Tudo continuava em seu lugar, apenas as nuvens se moviam lentamente. Sentiu orgulho. Depois, paz. Havia recuperado a família, havia reencontrado os amigos, havia visto o pai pela última vez e salvado o Linde. E então murmurou o nome da única pessoa que havia perdido: – Calan. A menina respirou fundo ao se lembrar de suas últimas palavras: “Lan, perdoe-me por ter lhe causado danos, mas, como sempre... precisei salvar sua vida. Se eu não a tivesse beijado, teria sido impossível ir contra a vontade de seus olhos dourados. Perdoe-me por não ter percebido antes que eu a amava e que isso não ia mudar, por mais que me distanciasse de você. Por favor, perdoe-me por tudo e lute pela sua vida. Nunca perca a esperança... amo você.” Lan escutou o vento assoviar, e então respondeu: – Eu também amo você –, alimentando a esperança de que o menino que havia sequestrado seu coração tivesse encontrado uma maneira de sobreviver.

FIM


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