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© Um Artista Da Luz Vermelha, 2020 © Substânsia, 2020 © Yuri Marrocos, 2020 Acompanhamento dramatúrgico: Murillo Ramos Ilustração: Raísa Cristina Revisão: Madjer Pontes Acompanhamento gráfico: Talles Azigon Projeto gráfico, diagramação e capa: Daniel Firmino
Enigmas habitam outros enigmas. É preciso loucura e coragem para enfrentá-los.................................................... 10 1. O Cu................................................................................................ 21 2. João Acácio................................................................................ 23 3. O Gato.......................................................................................... 26 4. O monstro.................................................................................... 28 5. O assassinato............................................................................. 30 6. Roberto Carlos........................................................................... 34 7. Solidão Ruidosa......................................................................... 36 8. Would you spit on me?........................................................... 41 9. Toxoplasmose .......................................................................... 43 10. Posso chamar de saudade a cuspida que você não me deu?.......................................... 45 11. 25 anos de teatro enfiados na bunda.............................. 48 12. Punheta....................................................................................... 49 13. Vai dar certo.............................................................................. 50 14. Dócio como um cão............................................................... 53 15. O cuspe....................................................................................... 55
À minha mãe
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Enigmas habitam outros enigmas. É preciso loucura e coragem para enfrentá-los.
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Apresentação para um acontecimento de autoria de Yuri Marrocos Por Aluísio Ferreira de Lima1 Este é o homem que a polícia está caçando. Ele é Roberto da Silva, o Bandido da Luz Vermelha. Sua identificação só foi possível através de levantamentos, comparações e análises de impressões digitais encontradas em diversos locais de assaltos, principalmente nas mansões das ruas Ágata e Rafael de Barros, na Zona Sul de São Paulo. A epígrafe que inicia essa apresentação foi retirada do jornal Notícias Populares, da edição do dia 7 de agosto de 1967, e tinha como complemento um retrato falado de João Acácio Pereira da Costa, que usava uma identidade falsa. Naquele momento, o polêmico jornal, que circulou em São Paulo entre os anos de 1963 e 2001, narrava o ápice da tragédia que construíra em suas 57 edições2 publicadas e dedicadas ao “Bandido da Luz Vermelha”. O mesmo jornal voltaria a colocar Luz Vermelha na capa em 27 de agosto de 1997, com a chamada “Luz Vermelha está solto”: [o] Bandido da Luz Vermelha, está finalmente de volta às ruas. Depois de cumprir 30 anos e 4 dias de prisão, o bandido deixou a Casa de Custódia de Taubaté, ontem, às 6h da tarde. Finalizando a tragédia iniciada nas páginas da edição de 1967, (quando a revista anunciou o “nascimento” e transformou o Bandido da Luz Vermelha na versão paulista de Jack, o Estripador), com a edição de 1
Doutor em Psicologia Social pela PUCSP. Professor do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Ceará – UFC. Líder do Paralaxe: Grupo Interdisciplinar de Estudos, Pesquisas e Intervenções em Psicologia Social Crítica da UFC. Bolsista de Produtividade CNPq. E-mail: aluisiolima@hotmail.com 2 De 23 de outubro de 1967 a 3 de janeiro de 1968.
7 de janeiro de 1998, com a notícia da morte de João Acácio Pereira da Costa, aos 55 anos. João Acácio havia sido assassinado pelo pescador Nelson Pinsegher, de 46 anos, que foi preso e confessou ter atirado contra o peito do Bandido da Luz Vermelha com uma espingarda3. João Acácio foi assassinado em menos de cinco meses de liberdade, após o cumprimento de 30 anos de “prisão/tratamento”, entre a antiga Penitenciária do Estado de São Paulo4, localizada no bairro do Carandiru, e o Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico de Franco da Rocha5. Sua liberdade havia sido amparada por laudos médicos de cessação de periculosidade, produzidos pelos psiquiatras Charles Louis Kiraly e Norberto Zollner Júnior, além do despacho do desembargador Cunha Bueno. Desde o primeiro crime no Sudeste até a notícia da identificação de Roberto da Silva como o Bandido da Luz Vermelha, foram mais de cinco anos de perturbação pública, com dezenas de assaltos, estupros e homicídios na capital paulista, seguidos de mais 30 anos de prisão em um manicômio e alguns meses até sua morte. Durante esse tempo, muito se falou sobre o enigma João Acácio Pereira da Costa. Foram produzidas reportagens livros e filmes sobre sua vida. Algumas narrações romantizaram sua existência, pois a personagem construída por João Acácio era reconhecida como vaidosa, sempre vestindo cores vivas, chapéus, lenços de caubói cobrindo o rosto,
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Nelson Pinsegher cumpriu a pena em liberdade até sua absolvição por legitima defesa de terceiro, em 10 de novembro de 2004. 4 Inaugurado em 1920, esse presídio chegou a abrigar mais de oito mil presos, sendo considerado à época o maior presídio da América Latina. Foi nesse lugar onde ocorreu o conhecido “massacre do Carandiru” (cuja intervenção da Polícia Militar, para conter uma rebelião, causou a morte de 111 detentos), em 2 de outubro de 1992, sendo desativado e parcialmente demolido em 2002, substituído pelo Parque da Juventude. 5 Antigo Manicômio Judiciário, inaugurado em 31 de dezembro de 1933 e que “em 1965, sabe-se que apenas 7 médicos eram responsáveis por 1.300 pacientes e o laudo dos exames médicos de todos os internos era o mesmo, a saber: esquizofrenia paranoide” (COSTA, 2017, p. 153). Para maiores informações acerca dos usos das concepções de normal e patológico como forma de administração social e as barbáries ocorridas nos interiores dos manicômios brasileiros, consultar: LIMA, A.F. Metamorfose, anamorfose e reconhecimento perverso. FAPESP/EDUC, 2010 e ARBEX, D. Holocausto brasileiro. Geração Editorial, 2013.
perucas. Passava-se por músico; era apaixonado pelos artistas da Jovem Guarda. Outras narrações criaram um divisor de águas para a cultura da megalópole, que embora já tivesse evidente a desigualdade social e a violência urbana, nos anos de 1960 era vista como romântica e provinciana, e passou a ser vista como uma cidade insegura, onde nem os ricos poderiam dormir em paz. Existiram narrações, ainda, que tentaram resgatar a condição mundana do Bandido da Luz Vermelha, a partir da história de vida e morte de João Acácio. Sabe-se que ele viveu uma vida sem vida, uma vida de merda. Ele é a história de um fracasso anunciado. Sua vida é sua ruína. Ele é objeto e o instrumento da violência perpetrada em si e nos outros. João Acácio é a história do fracasso de nossas instituições, a começar pela família e terminando nas “políticas de segurança, justiça e cuidado”. João Acácio cresce com infância e juventude violentas, onde o estupro e a morte faziam parte do dia a dia. Reproduz aquilo que viveu na sociedade em que estava inserido, invadindo espaços privilegiados onde imaginava ser possível ignorar as dores do mundo de forma segura. Mas os espólios de suas ações não o tornam mais rico. Tudo foi gasto com supostas superficialidades, tipo aquelas que dizem para consumirmos diariamente. Foi preso em um momento onde nem o próprio nome ele pôde usar. É encaminhado da prisão para o manicômio, pois se não fazia uso da razão e era levado pelos seus sentimentos sombrios em seus crimes; não poderia cumprir pena como criminoso, precisava de tratamento. Recebeu tratamento no manicômio judiciário que hoje em dia é chamado de Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico, em um dos momentos mais infelizes de nossa história: a Ditadura Militar. Difícil imaginar como alguém poderia suportar 30 anos no inferno. Mais difícil ainda é conseguir cogitar a produção de laudos de cessação de periculosidade para alguém que ficou a maior parte de sua vida convivendo com a loucura em sua forma mais insuportável. Estive naquele ugar, durante minha graduação em Psicologia. Na época, era apenas um
expectador, observando e tentando enquadrar aqueles homens nas categorias que aprendia nos manuais de psicopatologia, homens em grande maioria com olhos que não brilhavam e corpos que pareciam esvaziados de qualquer sentido. Vez ou outra, ainda sonho com os fragmentos do terror que presenciei, vendo de fora, protegido e em liberdade. Não consigo (ou não tenho coragem) de pensar em como seria sobreviver naquele lugar, em como poderia manter um mínimo de sanidade. Sair do manicômio judiciário, sem qualquer mediação na vida de João Acácio (reduzida ao personagem “Bandido da Luz Vermelha”, mesmo após o cumprimento da pena), mostrou-se outra alternativa de fracasso. Sou paulista e havia crescido atravessado pelo medo do Bandido da Luz Vermelha, ao contrário de Yuri Marrocos, autor desse livro. João Acácio foi o Bicho Papão de minha juventude, e ainda consigo lembrar minha reação ao ler a notícia de sua liberdade no jornal Notícias Populares. Eu trabalhava como cobrador de ônibus na época e era assíduo leitor do jornal, ou seja, estava acostumado com o que hoje chamamos de fake News veiculadas no Notícias Populares (conhecido como o jornal que se você ousasse torcer as páginas teria que lidar com o sangue que iria escorrer), mas fiquei chocado com a foto que apresentava um homem moído pela instituição, reduzido a nada. Aquele homem era o temido Bandido da Luz Vermelha? Não. Para mim aquele era apenas o João Acácio, apenas um homem. E foi esse homem que retornou para o Sul do país, o local onde estavam suas origens. As dificuldades de convívio familiar fizeram com que acabasse morando com o tio, cujas denúncias de abusos em sua juventude eram conhecidas. Pouco tempo depois, ele morre, justamente após uma tentativa de retomar a personagem que o tornou único. João Acácio morre para que o Bandido da Luz Vermelha se torne imortal. Calma! Não estou defendendo nenhuma das versões da vida de João Acácio. Penso que a síntese apresentada por Yuri Marrocos no decorrer desse livro é certeira, importante e pactuo com ela: “João Acácio
era um assassino, um estuprador. Não se esqueçam disso. Não deixem que eu os convença do contrário”. Entretanto, eu não poderia deixar de assinalar que o Bandido da Luz Vermelha é um daqueles enigmas que habitam outros enigmas. Do mesmo modo, acredito que os enigmas não são fáceis, é preciso coragem e loucura para enfrentá-los. Dito isso, posso entrar na proposta do livro que o leitor ou a leitora tem em mãos. Yuri Marrocos aceita a condição de enigma e, João Acácio, talvez justamente por conta disso, consegue abrir espaço para “pensar em novas narrativas sobre sua vida”. “Você pode cuspir na minha cara?”, lemos no início do acontecimento escrito por Yuri e intitulado “O Cu”. Prefiro chamar de acontecimento as linhas que este jovem autor nos apresenta, porque o que segue após a pergunta é aquilo que se realiza de modo inesperado, algo que produz uma viva sensação. É uma voz vinda de outro lugar. Um sussurro. Um grito. Esse acontecimento organiza as palavras de uma forma que desorganiza nosso pensamento mais racional, é uma experiência para os sentidos. O acontecimento pode ser lido em voz alta, mas mesmo em silêncio é possível escutar os sons de cada palavra. O acontecimento aproxima-se da loucura. No início, a primeira indagação do acontecimento parece absurda, em outros a saliva parece querer pular da boca, por fim a secura impede que qualquer coisa seja expelida. Engana-se quem pensa, nesse instante, que isso deve-se ao próprio João Acácio. Longe disso. A narrativa circular do acontecimento coloca em cena o próprio autor, o gato, o João Acácio, o Nelson Rodrigues, o Roberto Carlos, a Dona Ratinha, o monstro (você, eu?), além dos fantasmas de Samuel Beckett e Antonin Artaud que, embora não citados em nenhum momento, assombram a estética da obra. Yuri consegue convocar o João Acácio de todos nós, aquele que nos atravessa. Ele fala de desejo, de sonhos, de desilusões, de fracassos, de docilidade, de miséria, de morte, de vida, com a consciência, a inconsciência ou a inconsequência de alguém que sabe e diz: “sempre
achei que as coisas deram errado para mim de uma forma mais interessante que para o resto do mundo: eu sempre sofri melhor que vocês”. A potência do acontecimento que Yuri entrega em suas mãos, nesse momento, consegue trazer à tona uma outra mirada para o Bandido da Luz Vermelha. Ele ensina que “a morte e a vida não têm nada a ver. A morte não se inspira na vida”. E se recordarmos a trajetória de João Acácio veremos que é isso mesmo. Foram 55 anos de mortes, de si e dos outros, que embora tenham afetado profundamente, nunca puderam inspirar nenhuma vida. O livro de Yuri Marrocos é violento, é político, é desalojador. O autor não apenas desloca as narrativas acerca de João Acácio ao introduzi-lo em outra dimensão, como também reposiciona outras várias narrativas, cujas cruezas escapam ao exercício de enquadramento. Somos lançados em um imenso caos, mas também ficamos ancorados em narrativas que correspondem a esse caos, que não formam um corpo a partir das partes, mas outra coisa que não tem nome. Yuri não aceita que narrativas, corpos ou experiências se tornem transparentes e passíveis de racionalização. Quer desordenar a busca de prazer que o próprio acesso ao acontecimento pode e parece prometer. Parece ser esse o objetivo. Ele apresenta a ruína que o teatro proporcionou em sua vida. Faz isso com imagens produzidas pelas palavras. Embora isso ainda pareça impreciso, pois o que conta no acontecimento dele não são as próprias imagens, mas o que acontece entre as imagens. Ocorre uma certa esquizofrenia da narração, tal como escreveu Uno Kuniichi (2014), ou seja, quando fala, não é certeza de que seja a voz dele que fala, do mesmo modo que não é certo que o que ele escuta seja o que diz, nem que seja a própria boca quem fala com aquela voz, embora escutemos cada palavra ao ler e continuemos com o seu eco após terminar o acontecimento.
Sem dúvida, é um privilégio escrever essas impressões em forma de apresentação do primeiro livro de Yuri Marrocos. Privilégio maior é acompanhar a inventividade e a autenticidade de tudo o que esse jovem ator, autor e pesquisador se propõe fazer. Murillo João Ramos Acácio Pereira da Costa: Um Artista da Luz Vermelha é um presente para leitores e leitoras e inaugura, certamente, um projeto de vida onde as fusões, forças, violências, vibrações, experimentações e tantas outras coisas que escapam às palavras serão o material para novos acontecimentos como esse.
Fortaleza, 28 de dezembro de 2020.
REFERÊNCIAS ARBEX, Daniela. Holocausto brasileiro: genocídio: 60 mil mortos no maior hospício do Brasil. São Paulo: Geração Editorial, 2013. COSTA, Maria Izabel Sanches. Política de Saúde-Política de Segurança: Manicômio Judiciário, entre o hospital e a prisão. Revista do Arquivo, São Paulo, Ano II, Nº 5, outubro de 2017. p. 144-160. LIMA, A. F. Metamorfose, anamorfose e reconhecimento perverso: a identidade na perspectiva da Psicologia Social Crítica. São Paulo: FAPESP/EDUC, 2010. UNO, Kuniichi. A gênese de um corpo desconhecido. São Paulo: n-1 Edições, 2014.
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Murillo João Ramos Acácio Pereira da Costa:
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1. O Cu Uma poltrona antiga vitoriana em madeira maciça. Letreiro onde se lê “Um Artista da Luz Vermelha” rolando para trás. Luz vermelha saindo do cu do intérprete.
Boa noite. Você pode cuspir na minha cara? Vamos aqui considerar que. Éeeer. Vamos considerar que esse lugar (pausa) que estamos seja um apartamento. Um comum. Não muito caro, porque não temos dinheiro. Alguns poucos móveis, bem pontuais. Meio velhos, porque foram usados. Então considere que tem muita coisa no chão, como uma briga. Eu estou com a cara inchada e você está com pressa para ir a algum lugar, pode ser de avião, de táxi, não sei, mas tem pressa aí. Então, se fosse assim, eu pediria deitado no chão uma cuspida. Você me daria? (silêncio) Murillo João Ramos Acácio da Costa: um artista da luz vermelha. E sua eloquente intimidade com o sucesso. (o artista suspira como se um cansaço crônico o esmagasse. Na maneira de falar do artista, existe uma polidez, uma preciosidade, parece apto a ser ouvido, algo de harmônico que depois se perde. É importante que se perca. Uma deterioração contínua até sua última palavra)
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Mas também falo pelas minhas derrotas. (silêncio) O sangue é o vermelho da vida. O vermelho é a cor da coragem. A boca é uma carne crua. O cu é vermelho, encarnados e cruéis desejos são vermelhos. (introdutório; com altivez) Esse momento que podemos chamar de tudo, inclusive de teatro, tem manchas vermelhas em todo corpo, uma varíola em forma de lanterna, que não sabemos o que fazer com ela. (silêncio) Então, quando peço para alguém cuspir em mim ou peço para cuspir em alguém é que estou tentando dizer que tem alguma coisa em estar vivo que me interessa. É algo que atropela os mais nobres sentimentos que um Artista da Luz Vermelha como eu pode ter. (harmônico, dado a poeta) Algo que podemos chamar de amor, já que não existe outra palavra para isso, ou o oposto dele, que é o nosso verdadeiro mistério. Mas eu não quero falar do que não aconteceu porque o que continua acontecendo me diz mais respeito. E eu espero ser claro quando eu falar que… (silêncio)
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2. João Acácio (aqui se fala resignante, não com tom policialesco, mas com um distanciamento de atmosferas, uma secura?) João Acácio não compactua com nenhuma visão a seu respeito e toda minha intimidade com ele parte de uma ótica extremamente pessoalizada, a minha pessoa em conjunção a pessoa dele é o que me interessa nesse momento. Não me proponho colocá-lo em uma vitrine para que todos nós possamos observar essa triunfante babaquice em que resumiram a vida dele. E a minha. (silêncio; resignado:) Também não me disponho enterrar esse espetáculo com a pá da idolatria e do fanatismo. João Acácio era um assassino, um estuprador. Não se esqueçam disso. Não deixem que eu os convença do contrário. Na verdade, estou interessado o suficiente para pensar em novas narrativas sobre sua vida. Seus crimes eram espetacularizados: a cor vermelha, a indumentária sempre copiada dos Beatles ou de Roberto Carlos, a devoção ao Bandido da Luz Vermelha estadunidense, as cartas que deixava escritas para as vítimas e para a polícia. (silêncio) João Acácio agia sempre pela madrugada, das 4 às 6 da manhã, quase sempre chegando de taxi, elegante. Cortava a energia dos gran-
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des casarões que assaltava, e por isso usava sua canonizada lanterna vermelha. João, se manteve soberano por longos seis anos até ser pego pela polícia por uma descuidada digital na janela quebrada. Condenado por 4 assassinatos, 7 tentativas de homicídio e 77 assaltos, o Bandido da Luz Vermelha foi preso com uma pena de 351 anos, 9 meses e 3 dias. (uma leve risada) Eu penso: que porra é 9 meses e 3 dias depois de 351 anos? (uma risada facínora) João Acácio Pereira da Costa enganava a polícia se passando por quatro assaltantes diferentes: o bandido incendiário que tocava fogo nos corredores das casas para provocar pânico e acordar os moradores, o bandido mascarado que roubava joias, o bandido macaco, por usar um macaco de carro para abrir as janelas, e o Bandido da Luz Vermelha, apelido que ganhou por usar uma lanterna de aro avermelhado que comprou em uma antiga loja de departamentos. Após cumprir os 30 anos previstos em lei, foi libertado na noite do dia 26 de agosto de 1997 e retornou para a cidade de Joinville, cidade onde nasceu, e lá manteve uma certa popularidade, pois tinha obsessão em vestir roupas vermelhas e quando alguém lhe pedia um autógrafo, ele simplesmente escrevia a palavra “Autógrafo” e, nos dias de hoje, já é possível comprar sua assinatura pelo Mercado Livre. (silêncio) Temo aqui não conseguir fazer a distinção correta entre a Vida de João Acácio e o Espetáculo Novelesco que ele se tornou por conta da mídia.
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O cacho de banana só caiu sobre a minha cabeça quando notei que João e O Bandido da Luz Vermelha eram excludentes entre si. E eu quero desvendar essa quimera que foi obra do Bandido da Luz Vermelha. Ou a minha.
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3. O Gato Mas não vim aqui falar sobre a atmosfera de sua decadência. A proposta não é essa. Não tenho mais ou menos ou exatamente a mesma perversão dele. (silêncio) Eu já estou falando de outra coisa. Estou vivo, em boa saúde. (tosse) (fala rápido) Estou aqui bebendo minha vodka com gelo invisível apostando no meu cavalo invisível estou aqui prontificado dentro da minha carne e você me olha como um gato atropelado olharia para alguém gritando SOCORRO (volta a fala normal) É assim que um gato atropelado pediria socorro? (para alguém) Você já atropelou um gato, não é? (pausa) Você tem muita cara de quem já atropelou um gato numa noite muito bêbado. Mas você não chegou nem a ver o gato. Você não tem certeza. Não seria possível descobrir o nome do gato. Só sentiu a truculência do carro esmagando as costelas de alguma coisa. Imaginou que fosse um gato. Não parou para olhar.
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Não teve tempo, tinha algum canto para chegar, alguém em algum lugar precisava de você, não foi? Detalhe: eu não sou contra carros!!! Vivo pensando que tudo que eu conheço sou capaz de dirigir. Posso dirigir um carro, posso bater um carro, posso dirigir minha vida e um espetáculo. Posso derreter o aço que edifica esse teatro e construir um carro para você, se preferir. Se for essa a sua vontade.
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4. O monstro Mas ninguém quer ser visto como atropeladores de gatos. Principalmente. Toda vez que ia ao bar, sentava no canto mais escuro, ficava na penumbra. Pedia água, suco, nunca álcool, porque o corpo é a casa despida da gente, alguém me disse isso uma vez, não lembro quem. E por isso nunca pus uma gota de álcool na boca. Já você, bebe que nem um monstro. Se um monstro bebesse, ele seria você. E você teria raiva desse monstro, dessa história, dessa visão de mundo bêbada. Você odiaria o barulho de quando ele engolisse. Você está bêbado, não é? Bêbado. (silêncio) Você sentado na janela, me percebia. Pediu uma cerveja. Você vai estranhar as pessoas que não bebem no bar. O que elas fazem lá? (silêncio)
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Me leva para a tua casa, eu disse. Um apartamento médio, fazia o tipo pequeno-mas-com-vista-para-a-cidade-inteira. Na vista: arranha-céus sinistros, terrenos baldios, pequenas vilas. Meu nome? Dei o falso. (murmura) Roberto, meu amor. Não o Carlos, por azar. Hã? Você pergunta: O quê? (repete resoluto) Azar. Entendeu?
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5. O assassinato Quando falei da ideia de trazer João Acácio para o teatro, me falaram: Mas ele arruinou a vida de tanta gente. Medo, medo, medo. Eu respondi: Eu também arruinei a vida de muita gente. Então falaram que João é desprezível, irrelevante, não há dramaturgia que dê jeito. E eu disse que também sou desprezível, clichê e que estou apaixonado pela vulgaridade na dramaturgia. Daí falaram que o Teatro não é lugar para isso. Então dissertei sobre o Teatro ser o meu acidente de percurso, que se for perigoso eu quero, que se for chato e intragável eu quero mais ainda. Por fim, me perguntaram: Por que João Acácio? (longa pausa) Então assumi: Porque estou apaixonado por João Acácio. Sempre estive. Desde pequeno, quando os programas policialescos o transformaram num artista pop. Os mesmos programas que hoje minha mãe assiste enquanto almoça. Sempre me passou pela cabeça sua lanterna vermelha, sua maneira de perturbar os grandes labirintos da comoção nacional. Sempre o admirei. Sempre quis ser ele.
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(encara fixamente para alguém da plateia) Após cumprir os 30 anos máximos de reclusão previstos em lei, João foi liberado do manicômio judicial. Os laudos psiquiátricos, feitos de última hora, opinavam que “os seus episódios psicóticos anteriores tinham sido de natureza benigna (sic)”, e que ele era “absolutamente capaz de retornar ao convívio social”. João foi assassinado com um tiro de espingarda durante uma briga de bar. João Acácio, o bandido que não respeita a liberdade individual nem a propriedade, morreu em Joinville, onde, segundo o homem que o abrigou: Abre aspas. Se orgulhava dos crimes cometidos e os contava em detalhes sórdidos para quem quisesse saber. Fecha aspas. O algoz do Bandido alegou ter efetuado o disparo para salvar a vida do irmão, que fora agarrado e ameaçado com uma faca depois de um desentendimento por causa de um assédio sexual cometido por Luz Vermelha contra a mãe e a mulher do algoz. A obsessão pelo vermelho caiu por terra quando dentro de seu corpo se percebeu que não havia sangue, mas todo seu líquido plasmático era cinza da cor de um pescoço encardido, sujo de três dias atrás. Acredita? (silêncio) Pois não acredite, porque era sangue mesmo, não tinha nada cinza. (longo silêncio)
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Seus olhos estão vermelhos. O que estava fazendo lá fora? (pausa rápida) Você veio por qual rua? Você correu perigo vindo para cá? (rápida) Seu carro tem airbag? Quer dizer, seu carro tem airbag suficiente? Você tem seguro de vida? E seu carro? Tem seguro de vida? Gasolina? (sério) Sabia que combustível fóssil faz mal ao planeta terra? Ah, você não se importa. (pausa) É que eu gosto muito do meio ambiente. Eu também sou vegana. Eu jamais poderia ter atropelado um gato porque eu não sei beber. Não que somente pessoas bêbadas atropelem gatos, mas é porque eu também não fumo. (autoirônico) O que estou falando é que eu não mataria esse gato porque eu me importo com a vida animal e sou contra a indústria da carne. Eu sou vegana. Sou limpo, sou clean, careta, juro. (autoirônico)
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Sou único. Sou pedra rara. Faraó na pirâmide. O mundo não passa da extensão do meu umbigo. Poucos de mim foram feitos. Eu gosto mais quando dizem que eu sou um gênio. Eu concordo, e sempre acho que existem pessoas mais geniais do que eu, só que não falo nada porque se forem à procura dos verdadeiros gênios vão encontrá-los e de repente não vou ser mais tão genial se for comparado. Acredito muito nessa história toda que eu inventei especialmente para mim de que essa angústia e amargura que vai crescendo de mim faz parte de um brilhantismo a qual eu sempre estive destinado. Não me aprofundo nessas questões porque todas essas conquistas são tão pequenas em perspectiva que me cerco delas. Mas continuo não me seduzindo por coisa pouca, estou bem certo de que tudo muito pouco não é para meu bico. Eu quero grande, quero grandiloquências, com licença, estou aqui: sou eu, divino no meu carro vermelho, despenteado, ouvindo minha Jovem Guarda, você é capaz de perceber nossa diferença crucial?
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6. Roberto Carlos Você que vive de: Cabarés, De apostas, De cachaça aos muitos E de Roberto Carlos, seu jeito é todo de quem gosta de Roberto Carlos. (pausa) De você não sinto pena. Piedade é brega. Quando assassinaram João Acácio não suportaram ter alguém como ele aqui na terra. Como eu? O que me difere dele? O que te difere dele? A peste do bandido, a peste do artista, a peste dos pacientes psiquiátricos. (cantarola Roberto Carlos) Estamos falando de loucura aqui? Quando aproximamos a criminalidade de loucura, estamos mais inclinados a dizer que os loucos são criminosos do que acreditar que a criminalidade é uma face da loucura. Será? Qual a diferença real, a diferença material entre tratamento com eletrochoque e a pena de morte sob a cadeira elétrica? A dose? A diferença entre o sistema de saúde mental e o sistema penal é só a voltagem?
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(silêncio) Eu também gosto de Roberto Carlos e também já teria matado (pausa). Estamos falando que o que nos difere então dos assassinos é a coragem ou não de matar? É isso? Resumindo tudo em uma matemática bem chula: estamos todos dentro de uma oposição barata que vai do “perigo à sociedade” ao “perigo a si mesmo”. Você está em qual extremo dessa régua? Canta Roberto Carlos com uma mordaça sadomasô na boca. (pausa longuíssima)
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7. Solidão Ruidosa Eu estou em qual extremo dessa régua? Mas vou ser sincero, já cheguei a acreditar que eu seria um guia, um guru apontando minha lanterna para toda uma nova geração. E que eu seria adorado, querido e, acima de tudo, temido, pela minha personalidade forte que une o melhor da pompa com o pior da neurose. Mas eu tive o mesmo fim que a maioria dos meus amigos. O mesmo destino fatal da minha geração. Hoje estou cercado de gorilas que me afagam e me vomitam o tempo todo numa masturbação de egos infindável onde ninguém goza. (pausa) Se decido ressuscitar João Acácio aqui não é porque ele foi um gênio incompreendido. Talvez ele fosse. Mas também foi um assassino, um sanguinário. Não quero arquitetar para João o título de bom samaritano desviado. Você não está errado em sentir asco da sua pessoa. Mas eu pergunto: o que faremos com esse asco? Se ele é um assassino, então mande-o para a prisão? Ou então o colocamos como louco e empurramos para um hospício? Daí seremos eternamente essa gigantesca massa amorfa de pessoas sem nome onde decidimos pela vida uma das outras dentro dessa aritmética incorruptível?
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(sério) Isso te basta? (silêncio) Quando o príncipe Harry, o grande príncipe inglês, se veste com um uniforme nazista em uma festa à fantasia a duas semanas de um grande evento de memória ao holocausto, ele não é louco, apesar da falta de ética do seu ato. A suástica vermelha e preta no seu braço é, no máximo, uma gafe, coisa de príncipe, é um rapaz espirituoso. Quando o (ironia) maior dramaturgo brasileiro, Nelson Rodrigues, apoiou os militares da ditadura, ele não chegou a ser visto como criminoso apesar do gesto facínora. Aaaaaaaaaaah, coisa de gente antiga, mancada, até um grande artista tá suscetível a tolice. (certa tensão, sorriso) Depois fico pensando se cheguei a isso que nós convencionamos como normal, como se tratasse de uma medalha que se conquista e se põe no peito. Digo a você que eu, depois de tantas vezes esmurrado pelas mais variadas mãos, maldito por todas as bocas, que não me basta ser uma pessoa sem nome. E, talvez por isso, eu não seja tão diferente de João Acácio. Se no teatro eu consigo ser ouvido: Está aqui diante de vocês: Minha solidão ruidosa, Minha estética libertina, Meu silêncio pré-calculado. 37
Então que vocês estejam aqui para ouvir nada. Não me sinto capaz de chegar a conclusão alguma. Faço todos saírem daqui sem saber se odeiam ou se entendem João Acácio. Se me odeiam ou se me entendem. E sempre tem aquele que vai sair: Nossa, OUTRA peça sobre a loucura, dramaturgia vulgar, gatos atropelados, cuspes, cadeiras elétricas, pior espetáculo que eu já vi. E sim, é tudo o que me importa: É fama, queridos, É esse sucesso que compensaria todas minhas faltas morais e descréditos subjetivos. Eu que não vou ser uma pessoa sem nome porque você é incapaz de entender que eu habito a sua penumbra e você foi ver o seu amor hoje, ganhou uns beijos, deu uma trepada maravilhosa, enxugou seu pau e eu ocupado pensando nesse grande momento, o MEU grande momento que nunca chega, inteiramente confinado imaginando o Nelson Rodrigues apoiando os milicos ou o príncipe Harry se fantasiando de nazista. (fala baixo e devagar) — Nazista. (compassivo) Será se um dia eu vou comprar um sítio depois de passar vários sufocos, vou falar: Cansei, da cidade, essa loucura urbana, uma overdose por esquina, quero ir pro mato, criar bicho, dizer que tô toda trabalhada no daime, admirar no espelho meus pelos embranquecendo, criar uma rede 38
social para meus gatos sem nem saber usar redes sociais e começar a falar para todos os meus amigos: Sabia que no cigarro existem mais de 5.315 substâncias e cerca de 4,7 mil nocivas? (pausa) Sabe, seu pulmão não aguenta, esse seu pulmão chinfrim, pulmãozinho mequetrefe. Vou deitar na cama com meu namorado e sofrer quando estiver velho demais para ele. Perdoarei quando ele me trair e não vou conseguir traí-lo porque estarei cansado e nenhum outro homem me interessaria. Vou tentar trair ele também, mas não vou conseguir porque estarei frígido, e vou gostar toda vez que ele chegar, vou sentir inveja de seu sotaque britânico quando fala inglês por causa daquele seu intercâmbio e coisa e tal e vou chorar sem lágrimas toda vez que ele for e garanto que vou esperá-lo por 351 anos, 9 meses e três dias inteiros e eu lerei sozinho Nelson Rodrigues enquanto espero sua vinda, lerei os grandes artistas que estão sempre morrendo ou então apoiando genocídios políticos e regimes nazifascistas; então vou saber que tudo que eu sempre procurei estava dissipado em cada pequena procura e daí então finalmente entenderei Nelson Rodrigues: (ator em cena/ arroubos teatrais) (luzes se apagam/ letreiro para onde se lê “Um Artista da Luz vermelha” dessa vez parado) (foco de luzes espalhados desordenadamente pelo palco) Nelson Rodrigues, em Beijo no Asfalto: “(repetindo para si mesmo) — Nunca mais. Quer dizer que. Me chamam de assassino e. (com súbita ira) Eu sei o que “eles” querem, esses cretinos! (bate no peito com a mão aberta) Querem que eu duvide de mim mesmo! Querem que eu duvide de um beijo 39
que. (baixo e atônito, para a cunhada) Eu não dormi, Dália, não dormi. Passei a noite em claro! Vi amanhecer. (com fundo sentimento) Só pensando no beijo do asfalto! (com mais violência). Perguntei a mim mesmo, a mim, mil vezes: — se entrasse aqui, agora, um homem. Um homem. E. (numa espécie de uivo) Não! Nunca! Eu não beijaria na boca um homem que. (Arandir passa as costas da mão na própria boca, com um nojo feroz) Eu não beijaria um homem que não estivesse morrendo! Morrendo aos meus pés! Beijei porque! Alguém morria! “Eles” não percebem que alguém morria?” (pausa) (ator descansa, como saindo de um espetáculo)
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8. Would you spit on me? Mas eu não quero falar do que não aconteceu, porque o que continua me acontecendo me diz mais respeito. Quero lembrar de quando era criança e morava a alguns quarteirões onde era o antigo hospício Dr. Suliano, no bairro do Jóquei Clube. Quando criança, esse manicômio funcionava na boca de todos como uma espécie de Homem do Saco honorário: era tudo um “você vai para o Suliano” ou “os doidos do Suliano tão vindo te pegar”. A minha vizinha, Dona Ratinha, egressa do manicômio, ganhou a fama entre nós de “Dona Ratinha da casa dos Ratos”. Ela sempre me oferecia bolo, mas nunca me deixavam comer por causa dos supostos ratos. Uma vez eu comi escondido seu bolo e acho que essa foi minha primeira transgressão. (silêncio) Quando João Acácio foi preso, e depois mandado para o manicômio, como D. Ratinha, ele precisou lidar com abusos rompantes contra os direitos humanos dessas instituições de encarceramento, como D. Ratinha. Saiu do hospício degenerado, como D. Ratinha, moído, como D. Ratinha, como se tivesse sido cavado por dentro, como D. Ratinha. Mas diferente da saudosa Dona Ratinha, ele continuou uma celebridade, um artista de uma grande companhia, uma imagem extremamente desgastada midiaticamente. Eu pergunto: você aceitaria a fatia de bolo da Dona Ratinha sabendo dos ratos? Você anda meio ocupado com a política nacional, com as peças de teatro da cidade e com as ecofilosofias que não percebe a inoperância do
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nosso sistema de saúde mental: você (pausa) cuspiria no caixão de João Acácio, porque, acima de tudo, ele era um assassino e estuprador? (pausa) Porque ele era um. Você vai me cancelar porque para você estou romantizando um assassino, ou torcendo essa ideia ao máximo até que escorra um pouquinho de estética, quem sou eu para falar sobre índices de criminalidade, sobre prisões & manicômios? Mas reverenciamos os ingleses porque eles cospem nos seus inimigos públicos, nos anormais, nos aberrantes, com toda polidez e sotaque britânico da sua repugnância. João Acácio dos dias de hoje ainda estaria no Dr. Suliano? Será? (pausa) Você cuspiria no meu túmulo também? Você me daria o prazer dessa cuspida como se fosse o dilúvio lavando meu corpo? Would you spit on me? Não é assim que os britânicos falam? (Com sotaque britânico) Você construiria pitagoricamente um argumento que buscasse ferver toda a violência de Um Artista da Luz Vermelha dentro de uma panela de conveniências? Mas não te causa uma crise ética ter tanta fúria, essa fúria pública e midiática, contra uma celebridade? Essa mesma fúria inflamada que atirou na cabeça de João Acácio?
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9. Toxoplasmose João Acácio, dizem, tinha uma lanterna, que também poderiam ser dois faróis. (pausa) É isso que vemos antes de morrer? Seja a lanterna de João, os faróis do teu carro? É isso que significa “Vá em direção a luz”? (suspeita) Você vai dizer que os gatos morrem quando eu te perguntar sobre atropelamento. Depois você vai me perguntar sobre assassinato, sobre minha alcunha, sobre a calamidade pública que foi O Bandido da Luz Vermelha. E eu vou dizer: As pessoas também morrem. Uma vez eu soube de uma senhorinha que morreu assim: assistindo televisão. Só os seus ossos foram encontrados mumificados e a televisão continuava ligada. Outra pessoa morreu porque prendeu um espirro e seus olhos voaram para longe dos globos oculares e outra porque pegou toxoplasmose de um gato de rua. E não estou falando que os gatos devem morrer por causa da toxoplasmose. Ou que os gatos são bonzinhos demais para não morrer. Estou falando que a morte e a vida não têm nada a ver. A morte não se inspira na vida. Eu não sou digno da morte porque sou sanguinário ou maluco. Porque você também é.
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Estamos falando que o que nos difere então dos assassinos é, em tese, uma sentença? Estar ou não dentro desse exoesqueleto que é a opinião pública, tão falha, tão esquizofrênica, tão fisiologicamente corrompida. E o mais importante: Quem media essas sentenças? Quais os interesses de quem media essa sentença?
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10. Posso chamar de saudade a cuspida que você não me deu? Desculpe-me por eu não lhe agradecer de joelhos por você ainda não ter abusado da minha cara. Realmente deve ser um enorme privilégio para mim ser querido nessas condições. Você vai me fazer acreditar que estou velho e gordo demais e que não há nada pior do que ser velho e gordo demais para uma bicha do meu porte, essa bicha velha do terceiro mundo, latino maricona. (com alguma afeição) Porque você sabe que Deus ama mais você do que eu. Você é jovem, bonito, tem menos marcas de vida. Você tem um lugar dentro da estrutura hierárquica do amor de Deus. Sabe, né? Deus tem seus preferidos. Deus abandona quem não reza. Você que é novo ainda não tem idade para não rezar. Aposto que sua mãe nem sabe que você não reza. Mesmo assim Deus te ama. Qual sua idade mesmo? (resposta) Tem cara de ter mais. Já está acabado. Parece um velho. (pausa)
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Você tem cara de um bebum no Alcóolatras Anônimos. Quer dizer, você tem cara de um bêbado vomitando na calçada do AA. E fuma que nem uma criança. Você fuma como se tivesse 9 e bebe como se tivesse 80. Você tem noção disso? Mas eu te entendo, honey. Eu também precisava me sentir imundo para que eu tivesse algum tipo de inspiração. Como se a inspiração fosse um comitê, uma festa, um parto. Eu sentia que nunca escaparia desse ego paranoico, dessa pulsão assassina. E da sua boca eu ouvi que nunca seria um artista genuíno. Mas essa foi uma das maiores mentiras que já me possuiu, a minha maior doença: a de acreditar que se eu parasse de sofrer, meu trabalho perderia alma. E que eu estaria nu, sem a carcaça do martírio que me vestia o corpo inteiro. E quando eu estava perto de descobrir isso eu te pedi uma cuspida. Aquela que você me dava que enchia minha garganta de espuma e eu nunca sabia se engolia aquela sua baba ou se era engolido por ela. (pausa) E você me negou. (pausa) Eu te pedi uma cuspida e você me negou. A coisa mais imunda de ti me foi proibida. Essa coisa que você dá até pro chão, que não te faz falta alguma, esse cuspe que não é nada, entende? Não significa nada e nem o mais repugnante de ti eu pude ter.
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Posso chamar de saudade a cuspida que você não me deu? (pausa) Eu te escandalizei quando pedi uma cuspida?
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11. 25 anos de teatro enfiados na bunda. Eu, completamente afogado na minha inaptidão para a vida, como se eu tivesse enfiado todas minhas opções na bunda. 25 anos de teatro enfiados na bunda. Aqui nas paredes dessa galeria vocês encontram diversos utensílios vinculados aos vinte e cinco anos de teatro de um Artista da Luz Vermelha. (não há nada: vinte e cindo anos de nada) Aqui estão as bulas de remédios que conferia a estrutura psiquiátrica responsável pelo artista o encargo legal de sua recuperação. (não há protocolo) Aqui está fotos desse ator iniciante quando era somente um artista autoproclamado underground, com a cara cheia de espinhas, cigarro barato e um copo de cerveja. (não há fotos) Aqui está uma réplica do banheiro onde ele se trancou e ligou o gás. Assim como morreu o bandido da luz vermelha estadunidense: câmara de gás. (a câmara de gás, infelizmente, é real) (risada)
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12. Punheta E você sabe que não há autenticidade maior que copia os States. Sua vida, seu progresso, sua cosmogonia vendida em McDonalds, em qualquer coisa que construímos para que cheguemos todos à esta mesma conclusão falida: de que a vida vale a pena. E eu digo que não vale. Quero dizer: essa fé tosca na vida é a custo de muitas outras vidas que não se enquadram nessa fé. Digo de novo: se os suicidas, os loucos e os delinquentes não estão dentro da sua luta, então não me diz respeito. Comigo, andam os desesperados, os histriônicos, os batedores de carreiras. Não vou virar mais um batedor de punheta para o príncipe Harry. (silêncio) Não, mas não é essa punheta que você está pensando. A punheta geopolítica que falo. A punheta do capitalismo financeirizado ou a punheta da milícia global, da nova ordem mundial que estou me referindo. Ainda bem que a Rainha Belinha II ainda não proibiu essa punheta. Ela até me falou que gosta. Certo, mil desculpas. Eu posso ficar aqui caladinho enquanto vocês me detestam por romper o pacto silencioso onde todos nós odiamos nazistas — (pausa) menos os fantasiados (pausa) — e lutamos pelo que é certo e fingimos não estar sufocado por tanto cigarro barato e progressismos fajutos. Eu não quero descumprir meu papel de ator e vocês, por favor, continuem como público, vocês estão ótimos.
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13. Vai dar certo Nesse momento que podemos chamar de tudo, inclusive de teatro, quero evocar aqui da minha memória o momento quando esmurraram a minha cabeça em frente à praça: lembro cegamente daquele muro: estava escrito: vai dar certo. Andei pensando nessa cidade que em suas dobras de caminho anuncia sempre um “certo” futurístico, a cidade arruinada onde a felicidade é sempre uma renúncia. A alegria é sempre um porvir, nunca um agora. Adianta persistir. (pausa) O que é que vai dar certo? Na verdade, o que é que ainda não deu errado? Eu sofri, querido. Eu mesmo virei um Artista da Luz Vermelha porque sempre achei que as coisas deram errado para mim de uma forma mais interessante que para o resto do mundo: eu sempre sofri melhor que vocês. (silêncio) Quando eu percebi que eu já estava velho demais para morrer jovem e virar esses gênios adolescentes que se matam aos 27, eu prometi que tudo que eu mais quero na vida é assinar um contrato com a Rede Globo, fazer uma ou duas novelas, depois anunciar para todos os jornais que eu quero voltar ao teatro, que o teatro é meu lugar, e que todo mundo fique pensando o quanto eu sou bucólico, clássico, despretensioso com a fama, um erudito complete.
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Ainda na escola de teatro, comecei a me empurrar para todo tipo de canto que precisasse de um ator. Comecei a pensar na possibilidade de peças, teatros lotados e conversas sobre o rumo da arte. Pensava em você sempre como um estrangeiro, “O que pensará ele de mim encenando os grandes clássicos?, O que achará ele me vendo beijar outros meninos que nunca me interessariam de verdade?”, É isso que me importa, o meu único compromisso comigo mesmo é arrancar dele o arrependimento. E quando eu me vi dentro de uma fantasia completamente sem fôlego brincando com crianças dentro de um shopping, escangalhado dentro de um mickey para entreter um monte de menino catarrento e famílias fabulosas. Eu percebi que. (pausa) O teatro me arruinaria para sempre. Mas não quantitativamente. Cada dia uma olímpiada. O teatro arruinou só um ângulo de mim, um canto entre duas paredes do meu corpo. O teatro catalisou em mim uma destruição a qual eu sempre fui fiel. O teatro me liquidou como grandes fascistas caem por uma multidão de estudantes, grandes seleções de futebol perdem em plena final de Copa do Mundo, como grandes casamentos morrem por conta de uma amante e como grandes assassinos terminam, com um tiro na cabeça ou numa câmara de gás. É claro, o teatro ceifou todos os excessos que eu nunca fui capaz de arcar. Enterrei com uma pá de cal o que eu perdi, e guardei o que ficou como um amuleto que você nunca será capaz de entender. (pausa)
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E você aí se vangloriando por causa do seu gato atropelado. O gato que você imaginou que fosse um gato. Porque não parou para olhar. Não teve tempo, tinha algum canto para chegar, alguém em algum lugar precisava de você. Essa é a nossa diferença crucial: você tinha algum canto para chegar. (ator em cena/ arroubos teatrais) (luzes se apagam/ letreiro para onde se lê “Um Artista da Luz vermelha” dessa vez parado) (foco de luzes espalhados desordenadamente pelo palco) Nelson Rodrigues, Beijo no Asfalto: “Ciúmes de você. Tenho! Sempre. Desde o teu namoro, que eu não digo o teu nome. Jurei a mim mesmo que só diria teu nome a teu cadáver. Quero que você morra sabendo. O meu ódio é amor. Por que beijaste um homem na boca? Mas eu direi o teu nome. Direi teu nome a teu cadáver. (Aprígio atira, a primeira vez. Arandir cai de joelhos. Na queda, puxa uma folha de jornal, que estava aberta na cama. Torcendo-se, abre o jornal, como uma espécie de escudo ou de bandeira. Aprígio atira, novamente, varando o papel impresso. Num espasmo de dor, Arandir rasga a folha. E tomba, enrolando-se no jornal. Assim morre) Arandir! (mais forte) Arandir! (um último canto) Arandir” (pausa longuíssima) (luzes)
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14. Dócio como um cão. Então, quando peço para alguém cuspir em mim ou peço para cuspir em alguém é que estou tentando dizer que tem alguma coisa em estar vivo que me interessa. (pausa) Eu respondi que se estamos naufragando de repente não importa quem é quem, não importa os saques, os assassinatos. Se estamos todos dentro dessa nobre atividade que é a sobrevivência, se a sobrevivência é a nossa única herança, não vou estar dentro dessa cratera social da sanidade. E por mais que você nunca tenha voltado para mim, eu que engoli com toda minha serenidade as tuas ofensas. Me lembro de você como alguém que cresceu comigo. Alguém que presenciou meus desastres, esteve à mercê das minhas catástrofes, e depois sentiu ciúmes de mim, um ciúme cinematográfico, porque eu cresci tanto e tão rápido que… Eu sei que enquanto sobrevivíamos um ao outro, Enquanto eu me jogava de um lado para o outro como uma gaiola sem rumo, você passava, para dizer que: “Estou procurando por alguém, Alguém, ando procurando,
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Você viu? Você vê?” E eu sentia estranhas contrações nas suas palavras Quando você procurar por mim — Eu sei que você vai, sem suspeitas, sem testemunhas, dócio como um cão — Eu te conheço Vou dizer: Lembra aquela cuspida que te pedi? (pausa) Pois é. (pausa) Estou celebrando essa cuspida que você não deu, transformando ela em teatro para todo mundo olhar pensando que eu estou dando uma volta por cima sendo que eu nunca estive tão longe de te superar, nunca fui bom em superações, as coisas em mim se acumulam como uma toxina nas minhas moléculas, mas vou dizer mesmo assim que: Estou cuspindo em outros rapazes, descobri em mim uma soberba até então inexplorada, essa coisa vã que é estar feliz pela sua tristeza, encontrei alguma coisa em estar vivo que me interessa, algo que atropela os mais nobres sentimentos que um artista da luz vermelha como eu poderia ter. Eu não vou mais cuspir em você.
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15. O cuspe Então considere que tem muita coisa no chão, certamente foi uma briga. Pelo chão eu vou ficando e fiquei. Você pode ter 9 anos ou 80 anos. Você pode ser uma criança desaparecida, a última vez foi vista brincando perto de um açude. Você pode ser também um velho guardado a todo custo das intempéries do tempo. Eu vou te visitar no asilo em que você apodrece ou no açude que você se afogou. Eu estou com a cara inchada de chorar e você está com pressa para algum lugar e meu desespero não te importa. Você não existe mais além do que eu ainda consegui manter de você Então, se fosse assim, eu pediria deitado no chão uma cuspida. Não mais para você. Qualquer outra cuspida de qualquer outra boca me é relevante.
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Se eu te pedisse uma cuspida agora
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você me daria?
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agradecimentos
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Queira eu ou não, a minha velha inquietação não é suficiente para que este livro aconteça, e muitas pessoas me apareceram como um copo d’água durante a sede ao longo desse processo. A esses encontros, o meu amor. À minha família, pela coragem de me amar. Aos meus amigos, pela rebeldia compartlihada. À Editora Substânsia: Tallez Azigon, Daniel Firmino e Madjer Pontes, agradeço pela assistência, olhares e interesse. Ao professor Edilberto Mendes por me fazer acreditar na dramaturgia como possibilidade de mundo. À Secretaria Municipal da Cultura de Fortaleza (SECULTFOR) pelo apoio e estímulo. Agradeço a Raísa Cristina por me emprestar seu país, por desenhar com tanta força e maestria a minha linguagem. Agradeço a Manada Teatro, Monique Cardoso e Juliana Veras por engatinhar no processo comigo, colocar pregos, pintar paredes e construir verdades em coletivo. À Murillo Ramos, por me deixar fazer parte de seus 25 anos de teatro, sua vida, sucesso e desastres. Por me dizer todos os silêncios e me sussurrar todos os gritos.
À Seu Teodoro e Dona Tigrinha, por terem conhecido João Acácio e terem me transbordado com histórias até então desconhecidas. Agradeço a Vitor Pordeus, Diego Landin, Olga Nogueira e Yuri Tripodi, por serem esses e essas artistas que fazem nossos olhos brilharem. Ao Aluísio Lima e toda a turma do PARALAXE, por me ensinarem a única psicologia que eu seria capaz de exercer: a do combate. À todas, todos e todes que fazem da luta antimanicomial uma prática cotidiana. A palavra gratidão ainda não tem nome, mas agradeço a quem tocou e foi tocado pelo Artista da Luz Vermelha, e juntos construiremos essa palavra com todas as minhas lanternas. Yuri Marrocos
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