MANUAL DE NÃO-VIOLÊNCIA: um guia para a ação prática - Michael N. Nagler

Page 1

1

MANUAL DE NÃO-VIOLÊNCIA: um guia para a ação prática Michael N. Nagler

Para todos aqueles que têm a fé de que a humanidade pode ser redimida pela não-violência e a coragem para prová-lo. “A não-violência é o maior poder com o qual a humanidade foi dotada” Mahatma Gandhi

Tradução: Angelica Rente Revisão: José Yoshitake


2 Índice

UM

DOIS

TRÊS

QUATRO

CINCO

SEIS

Uma Introdução à Não-Violência Lutar, Fugir e o Terceiro Modo Os Usos da Não-Violência Satyagraha: um novo termo para um princípio eterno A Intenção Correta: cultivando uma alma não-violenta A pessoa não é o problema Cinco Práticas Básicas de Treinamento para uma Vida Não-Violenta Os Meios Corretos: Conhecer de Onde Estamos Partindo Quanta não-violência é suficiente? Quando Nada Mais Funciona Colocando a Energia Não-Violenta em Ação Proporcionalidade A Arte dos Acordos O Que Queremos, Realmente? Construindo Direito: o Segredo do Programa Construtivo Espreitando o Coração da Satyagraha Vendo os Resultados Reais Lidando com o Sucesso A Importância (ou Não) dos Números Quão Úteis são os Símbolos? A Não-Violência Pode ser Mal Utilizada? O Papel do Sofrimento na Satyagraha O Jejum na Satyagraha Assumindo o Controle O Que Aprendemos? Um Modo de Ser Um Movimento Varrendo o Mundo Destaques: uma referência útil Notas Sobre o Autor

3 4 5 6 8 8 10 11 11 13 14 14 15 15 16 19 19 21 22 23 24 25 26 26 27 28 29 31 33 36


3 UM

Uma Introdução à Não-Violência O século 20 nos deixou um legado dúbio. Por um lado, foi um tempo de muita crueldade e violência; por outro, e talvez mesmo devido a essas provações, testemunhamos manifestações de um novo tipo de poder — ou melhor, novos usos de um poder ancestral — que pode conduzir a humanidade a um futuro muito melhor. Desde que Mahatma Gandhi demonstrou o poder da não-violência durante o processo de libertação da Índia do governo colonial e Martin Luther King Jr. empregou-a para libertar as pessoas negras de algumas das opressões sofridas por elas nos Estados Unidos, incontáveis povos ao redor do planeta, de Manila a Moscou, da Cidade do Cabo ao Cairo e aos movimentos Occupy em todo o mundo, têm obtido variados graus de sucesso usando um ou outro aspecto da não-violência para afrouxar as amarras da exploração e da opressão. A prática da não-violência toca em algo fundamental da natureza humana, que tem relação com quem desejamos ser como indivíduos ou como povo. Gandhi afirmou, simplesmente: “A não-violência é a lei da nossa espécie” (1). Dra. Vandana Shiva, uma renomada líder da resistência rural na Índia, disse, em palestra recente, que, se não adotarmos a não-violência, colocaremos nossa humanidade em risco. Da mesma forma, o ativista curdo Aram Jamal Sabir declarou que, ainda que a não-violência possa ser mais desafiadora e requerer mais sacrifícios que a violência, “ao menos não perdemos nossa humanidade no processo” (2). Podemos contrastar isso com os índices assustadoramente altos de depressão, abuso de substâncias e suicídio entre os homens e mulheres a serviço do exército norte-americano atualmente. Como um deles contou a um documentarista: “Eu não gosto mais de quem eu sou. Perdi minha alma no Iraque”. Outro disse a um amigo meu, que estava a caminho do Oriente Médio como parte de uma equipe de missionários cristãos pacifistas, “Ainda sou assombrado pelas coisas que fizemos... Daria qualquer coisa para ser capaz de voltar atrás e desfazer algumas dessas coisas. Mas eu não posso. Posso, ao menos, agradecer a você de todo coração por fazer o que faz.” Através destas palavras, que são um testemunho da natureza humana, podemos vislumbrar tanto os custos de violarmos esse aspecto de nossa natureza, quanto o caminho para sua redenção. Assim, não é de se surpreender que, aqui e ali, a relevância da não-violência tenha começado a ser reconhecida pelas pessoas que buscam por uma nova história da natureza e do destino humanos, pelas pessoas que estão buscando por uma tão necessária imagem melhor da humanidade. Francamente, nossa visão de mundo atual e as instituições baseadas nela tomam a violência como norma e alterar este princípio básico pode levar a um salto na nossa evolução cultural. Poderia resolver ou nos mostrar como resolver nossos problemas econômicos, ambientais, pessoais e internacionais. Em resumo, o reconhecimento pleno da não-violência poderia reescrever a história do destino humano. Contudo, no momento, a maioria das pessoas não entende totalmente as dinâmicas da nãoviolência, se é que as compreendem de alguma forma. Poucos sabem do seu potencial ou exatamente como utilizá-la para libertar a si mesmo e a todos nós da ganância, da tirania e da injustiça. A não-violência pode estar incorporada à nossa natureza, como Gandhi disse, mas não poderá prevalecer em nossas vidas e instituições até que seja muito melhor compreendida. Episódios de não-violência brotam espontaneamente o tempo todo, mas


4 utilizá-la segura e efetivamente — e, sem dúvida, usá-la para uma mudança duradoura — requer conhecimento e planejamento. Lutar, Fugir e o Terceiro Modo A não-violência parece rara, até mesmo uma exceção, e seu potencial — talvez mesmo sua mera possibilidade — é rigorosamente ignorada pelos legisladores. A violência, ou dano deliberado a outra pessoa ou à sua dignidade básica, é tão comum que parece onipresente, especialmente quando incluímos, como é necessário fazermos, a violência estrutural: a exploração ou dominância embutidos num sistema. Mas a aparente ubiquidade da violência e a raridade da não-violência acabam por ter mais a ver com o modo pelo qual enxergamos o mundo do que com como ele realmente é. O modo pelo qual praticamos a ciência desde o início do século 20, por exemplo, tende a enfatizar o materialismo, a separatividade e a competição, levando a uma imagem da “natureza sanguinária em dentes e garras”. Foi apenas recentemente que a ciência passou por uma mudança notória em direção a uma visão mais equilibrada, não só da natureza humana, como também da natureza e da evolução em geral. Este desenvolvimento tem um enorme significado para a não-violência, mas ainda precisa ganhar terreno na visão de mundo vigente (3). Outra razão para que não sejamos mais conscientes das instâncias da não-violência e motivo pelo qual ela, muitas vezes, parece ineficaz ou terminar em consequências decepcionantes, como no Egito e na Síria, é que a cultura moderna não nos prepara muito bem para compreender uma força positiva, não material. Por certo, a palavra não-violência é, em si, parte do problema. Não-violência sugere que a coisa real, a condição padrão, é a violência, e que a não-violência é apenas sua ausência — da mesma forma que muitas pessoas ainda pensam que paz é meramente a ausência de guerra. Este modo de entender distorce a verdade e limita artificialmente nossas opções. Se não estivermos conscientes da não-violência, tenderemos a acreditar que as únicas respostas possíveis a um ataque são nos rendermos ou lutarmos para nos defender: a resposta de lutar-ou-fugir. Na perspectiva da não-violência, isto, na verdade, não é uma escolha. Ambas as abordagens — permitir passivamente que violência seja utilizada contra nós (ou outra pessoa) ou reagir de forma violenta — apenas servirão para aumentar o grau de violência. Nossa escolha real não está entre essas duas expressões de violência. Ao contrário, é a escolha que se abre quando não queremos adotar nenhuma destas duas posturas. Então, queremos confrontar a violência com uma alternativa, com o que Andrew Young, citando uma antiga canção spiritual, chamou de “uma saída para a falta de saída” (4). A não-violência nos oferece uma terceira via possível e natural para além do impasse lutar-oufugir. As descobertas da relatividade e da realidade quântica feitas no século 20 nos mostraram que nada é tão separado quanto parece. Similarmente, há agora um grande corpo de evidências que mostram que a empatia e a cooperação são, na verdade, as forças dominantes na evolução, que seres humanos e outros primatas estão equipados com “neurônios espelho” que nos possibilitam partilhar do que outra pessoa está sentindo, que o autossacrifício pode produzir recompensas intensas ao sistema nervoso — e, é claro, que a não-violência é uma ferramenta extremamente eficaz para a mudança social (5). Contudo, por mais natural que a não-violência possa ser, não há como negar que a empatia e o cuidado em relação ao bem-estar de alguém que está contra nós não são fáceis de atingir. Pode ser uma luta e tanto, mas é encorajador lembrarmos que essa luta é, em si, a fonte do poder não-violento. Como King afirmou: “A expressão ‘resistência passiva’ frequentemente dá


5 a falsa impressão de que este é um tipo de ‘método não-faça-nada’, no qual a pessoa que resiste aceita o mal silenciosa e passivamente. Mas nada está mais longe da realidade. Pois, ainda que o resistente não-violento seja passivo no sentido de que ele não agride fisicamente seu oponente, sua mente e emoção estão sempre ativas, constantemente buscando persuadir seu oponente de que ele está errado.” (6) Sentir raiva frente à injustiça e temer o mal são respostas humanas naturais. A questão não é se temos o “direito” de nos sentirmos com medo ou ultrajados, mas como podemos usar o medo ou o ultraje para mudar uma situação mais efetivamente. Como Gene Sharp, um proeminente acadêmico da não-violência, apontou, a primeira coisa que as pessoas oprimidas devem fazer é superar o medo paralisante que as mantém submissas (7). No Chile, por exemplo, os meios constitucionais eram suficientes para depor Augusto Pinochet em 1989 e terminar o longo pesadelo nacional da ditadura militar, mas primeiro a população teve que superar seu medo, o que deu a ela o poder criativo para a ação. Sem dúvida, teremos que nos esforçar para agirmos contra nossos sentimentos “naturais” muitas vezes, mas isto acabará por se tornar um hábito. E quando podemos expressar nosso medo ou raiva como uma energia criativa, a força criadora da não-violência está em nossas mãos. Emocionalmente, não estamos nem correndo de medo, nem atacando em fúria; estamos resistindo com amor. Em termos da nossa intenção consciente, nem estamos tentando “vencer”, nem com medo de perder; nosso objetivo é crescer, se possível, até mesmo juntamente com aquele que se opõe a nós. Os Usos da Não-Violência Todas e todos nós já utilizamos a energia não-violenta incontáveis vezes em várias de nossas interações, sem nomeá-la desta forma. Nos vemos a ponto de fazer uma crítica feroz a alguém e pensamos: “Bem, acho que já fiz isso também, algumas vezes” e, ao invés de criticarmos, dizemos algo gentil. Engolimos nossa impaciência quando a pessoa à nossa frente na fila demora mais do que achamos necessário. Um amigo meu, para intensificar nossos exemplos, apertou a mão de um rapaz que queria roubar seu carro, perguntou ao assustado jovem se precisava de dinheiro e o dispensou. A não-violência, como uma energia fundamental, opera todo o tempo, como a gravidade. Tendemos a usar o termo apenas quando algum tipo de conflito irrompe, especialmente entre populações e seus governos, mas a coisa em si está trabalhando sem ser notada em muitas outras áreas e pode ser usada em qualquer situação, de revoluções nacionais a interações pessoais. Assim, ainda que meus exemplos neste livro se foquem preferencialmente em pessoas que se encontram inseridas em algum movimento de insurreição, todos nós podemos nos beneficiar ao compreendermos a dinâmica desta força. Qualquer pessoa confrontada por uma das muitas formas de violência em nosso mundo (seja ela uma força evidente ou uma desigualdade embutida em um sistema) e se sinta chamada a afirmar sua dignidade humana contra ela, pode se beneficiar ao assumir uma postura não-violenta em relação a todos os seres viventes. Minha esperança é de que este livro, juntamente com vários dos outros recursos listados no seu final, possa auxiliar ativistas a compreenderem os princípios básicos que subjazem à dinâmica da ação não-violenta; porém, com um pouco de imaginação, qualquer pessoa pode usar estes princípios em sua vida cotidiana. Eles podem se tornar seu modo de viver. Tal guinada rumo à não-violência requer, primeiramente, que superemos nossa atual imagem de nós mesmos como seres separados, materiais e competitivos. Imagine se buscássemos por


6 uma terceira via nas relações internacionais em situações deploráveis como em Ruanda ou na Síria, por exemplo, enquanto a comunidade internacional acreditava que suas únicas opções eram bombardear alguém (lutar) ou não fazer nada (fugir). Todo um amplo leque de opções se abriria se atores estatais iluminados entendessem o que realmente é a não-violência nos âmbitos da lei internacional, da mediação e da diplomacia, das comissões de reconciliação e assim por diante. Atores não-estatais ou da sociedade civil poderiam fazer ainda mais — como intervir não-violentamente enquanto parte externa de um conflito — e estão começando a perceber isso. Não há uma forma rápida e fácil para nos tornarmos não-violentos. É preciso um esforço constante e é um desafio para toda a vida. Aprender sobre ela é muito útil, mas é apenas o princípio. Aprender juntamente com a prática é muito mais efetivo. Felizmente, a não-violência oferece muitas formas de criarmos mudanças positivas permanentes ou de longa duração que nos permitirão reconstruir as instituições sociais em bases mais humanas e sustentáveis. Nem todas estas abordagens precisam ser confrontativas, como veremos. Cada um de nós, qualquer que seja nosso momento de vida ou relação com o ativismo, pode levar à frente este grande “experimento com a verdade”, para parafrasear Gandhi, de acordo com nossas próprias capacidades e com as situações que enfrentamos. Já que o princípio ou energia da não-violência pode ser aplicado de formas diferentes por diversos praticantes e em várias ocasiões distintas, eu me concentrei aqui no princípio da energia em si, sem tentar descrever, com muita frequência, como ele pode ser melhor aplicado. Com uma boa infraestrutura e um pouco de imaginação, podemos adaptar o princípio a qualquer situação existente e, é claro, exercitar as nossas próprias melhores práticas, uma vez que os princípios básicos estejam assimilados (8). Satyagraha: um novo termo para um princípio eterno Ler a “história” pode nos dar a impressão de que a vida se desdobra em uma série de competições, conflitos e guerras. Mas, já em 1909, Gandhi apontava que a história que temos praticado é “um registro de cada interrupção do trabalho constante da força do amor, ou da alma... A força da alma, sendo natural, não é notada na história” (9). Note que Gandhi não usa a palavra não-violência aqui, que ainda não havia se tornado corrente (como tradução de ahimsa), e que ele rejeitou o termo dúbio “resistência passiva”. Por volta deste período ele havia inventado outro termo, satyagraha (pronunciado sat-YÁ-gra-ha), que significa, literalmente, “agarrar-se à verdade”. A palavra é, por vezes, usada para significar a nãoviolência em geral, como nesta citação, mas por vezes ela significa a não-violência na forma de luta ativa, resistente. Ao cunhar o termo, baseado na palavra sânscrita sat, que significa “verdade” ou “realidade” (assim como “bem”), Gandhi tornou bem claro que ele via a não-violência como a realidade positiva da qual a violência é a sombra ou negação. Consequentemente, a não-violência estava predestinada a prevalecer a longo prazo: “O mundo descansa sobre um alicerce de satya, ou verdade. Asatya, que quer dizer mentira, também significa não-existente, e satya, ou verdade, também significa aquilo que é. Se a mentira sequer existe, sua vitória está fora de questão. E a verdade, sendo aquilo que é, nunca pode ser destruída. Essa é a doutrina da satyagraha, em resumo” (10). Ainda que satyagraha literalmente signifique “agarrar-se à verdade”, ela é com frequência traduzida, não inapropriadamente, como “força da alma”. Todos temos esta força dentro de


7 nós e, sob as circunstâncias adequadas, ela pode se apresentar para todos nós, com resultados surpreendentes. Isso pode ser mais bem notado no chamado momento não-violento, no qual a “força irrefreável” da não-violência de uma das partes confronta o aparente compromisso imutável com a violência da outra. Este momento sempre levará ao sucesso, algumas vezes de forma evidente e imediata, outras mais ao longo do caminho. Por exemplo, em 1963 em Birmingham, Alabama, manifestantes negros, inspirados pela intenção de “conquistar nossa liberdade e, enquanto fazemos isso... libertar nossos irmãos brancos”, nas palavras de um dos líderes, se encontraram bloqueados inesperadamente por uma fileira de policiais e bombeiros com cães e mangueiras. Os manifestantes se ajoelharam para orar. Depois de um tempo, eles ficaram “espiritualmente intoxicados”, como David Dellinger relembra. Eles se levantaram como se alguém tivesse dado um sinal e, firmemente, marcharam em direção à polícia e aos bombeiros. Uma vez que chegaram ao alcance dos ouvidos deles, alguns disseram: “Nós não vamos recuar. Não fizemos nada de errado. Tudo o que queremos é nossa liberdade. Como vocês se sentem fazendo essas coisas?” (11) . Ainda que o comissário de polícia, um notório segregacionista, gritasse repetidamente: “Liguem as mangueiras!”, os bombeiros sentiram suas mãos paralisadas. Os manifestantes marcharam decididamente em frente, passando através das linhas da polícia e dos bombeiros. Alguns destes homens foram vistos chorando. Gandhi, que viu isto funcionando várias e várias vezes, deu uma bela explicação para como essa transformação acontece: “O que satyagraha faz, nestes casos, não é suprimir a razão, mas libertá-la da inércia e estabelecer sua soberania sobre o preconceito, o ódio e outras paixões mais básicas. Em outras palavras, se pudermos colocar de uma forma paradoxal, ela não escraviza, mas impele a razão a se tornar livre”. O que ele chama de “razão” aqui é melhor descrita como a consciência inata de que estamos todos conectados e de que a não-violência é a “lei da nossa espécie”. Como notamos, essa é uma consciência latente em todos nós, um estado humano natural, ainda que possa estar temporariamente obscurecida pela névoa do ódio. A princípio, devemos ser capazes de despertá-la em virtualmente qualquer pessoa, caso tenhamos tempo e conhecimento suficientes. Uma vez desperta, ela automaticamente toma precedência sobre as “paixões mais básicas”. Assumir que os seres humanos têm potencial para serem não-violentos — e para responderem à não-violência quando ela é oferecida — implica em aceitar uma imagem muito melhor de nós do que aquela que é apresentada pelos meios de comunicação de massa e pela cultura atual em geral, mas, devido a essa mesma cultura, não podemos esperar que nosso potencial não-violento se manifeste por si mesmo. Para trazê-lo à tona devemos, primeiramente, tentar compreendê-lo melhor e cultivarmos o hábito de usá-lo criativamente em nossas relações, nossas instituições e nossa cultura. E então, para usá-lo em situações de conflito intenso, como a que ocorreu em Birmingham, há dois ingredientes básicos que fazem com que a mágica nãoviolenta funcione: 1. Abordamos a situação com a intenção correta. Não estamos e não precisamos estar contra o bem-estar de ninguém. 2. Empregamos os meios corretos. Meios equivocados, como a violência, nunca poderão, a longo prazo, resultar em fins corretos. A fonte de nosso empoderamento e força na satyagraha está nas nossas intenções corretas e no uso dos meios corretos. Não importa quão boa seja a causa, não a abordaremos corretamente se operarmos a partir da raiva, da inveja ou da ignorância. Notemos que os


8 manifestantes de Birmingham questionaram: “Como vocês se sentem fazendo isso?” Em outras palavras, eles creditaram aos oponentes alguma consciência moral e, assim, ajudaram a despertar essa consciência — para o benefício de seus próprios oponentes. Da mesma forma, obviamente, não estaremos empregando os meios corretos se nos rendermos à violência. Vamos analisar cada uma destas diretrizes a seguir. *** DOIS

A Intenção Correta: cultivando uma alma não-violenta As escrituras de todas as tradições espirituais do mundo sustentam a “unidade fundamental da família humana sobre nosso planeta Terra”, nas palavras do Parlamento das Religiões do Mundo de 1993 (12). Então, não é de se surpreender que os mais conhecidos líderes nãoviolentos — Aung San Suu Kyi, Khan Abdul Ohaffar Khan, King e, logicamente, Gandhi — tenham recorrido a suas respectivas fés para inspirarem-se. Com frequência, também, eles recorreram às práticas espirituais propostas por estas fés para fortalecerem-se na visão e na ação não-violenta frente a ameaças ou abusos. Quer tenhamos uma afiliação religiosa ou não (e, hoje em dia, é comum não termos), acessar os recursos profundos da não-violência requer alguns indícios de que estamos, como nas palavras de King na Carta da Prisão de Birmingham, “atados numa só peça do destino”. Deve haver algum senso de unidade mesmo em relação a nossos oponentes, alguma confiança de que eles podem ser alcançados, não importa quão hostil seja seu atual estado de espírito. Devemos saber que dispomos de recursos internos que tornam a dependência de armas, números ou dinheiro desnecessária e que há um padrão significativo para a existência, de tal forma que todos os problemas podem ser resolvidos sem danos essenciais a quem quer que seja. A pessoa não é o problema De uma perspectiva não-violenta, “a saída para a falta de saída”, não mais pensamos em uma disputa com num jogo de soma zero, no qual, para que eu ganhe, você tem que perder. Não sou eu contra você, mas você e eu contra o problema; há uma forma segundo a qual ambos podemos nos beneficiar e mesmo crescer. Essa habilidade de transformar uma discussão em uma sessão de solução de problemas, uma disputa em uma experiência de aprendizagem e, finalmente, um sentimento de alienação em uma consciência da unidade, beneficia todas as partes e cria um forte atrativo em direção a uma resolução criativa para todas as pessoas envolvidas. É por isso que, para um ator da não-violência que busca não perder nunca de vista a possibilidade da reconciliação, é tão importante “liquidar o antagonismo, não o antagonista” (13). Nunca estar contra as pessoas, mas apenas contra os problemas. Nem sempre é fácil cultivar essa intenção, mas há um modo particularmente útil de fazê-la funcionar: não devemos nunca tentar humilhar ou aceitar humilhação, pois ela prejudica a todos. É extremamente difícil para qualquer pessoa viver com vergonha ou humilhação e, quando alguém nos ameaça com violência, esta pessoa sente uma pequena fisgada de vergonha por usar esse método, mesmo que seja inconsciente. Quando nos oferecemos para mudar o teor da conversa em direção à não-violência, contudo, estamos dando à nossa contraparte uma saída. Essa intenção é reconhecida por um dos melhores termos para não-


9 violência que eu conheço em qualquer língua, alay dangal, ou “oferecer dignidade”, que foi cunhado durante a Revolução do Poder Popular das Filipinas, em 1986. Da mesma forma, o profeta Muhammad uma vez disse a seus seguidores que eles deveriam ajudar a todos, mesmo a um opressor. Quando perguntaram a ele como poderiam ajudar um opressor, ele respondeu: “Impedindo que ele oprima” (14). Isso nos dá uma referência bem útil para mantermos em nossas mentes: quanto mais respeitamos a humanidade de nosso oponente, mais efetivamente podemos nos opor à sua injustiça. Por sorte, na satyagraha nós não somos forçados a escolher entre os princípios e as estratégias; a longo prazo, os meios corretos (como a não-violência) nos levarão aos fins corretos (como a justiça). Isso nos mostra uma característica reveladora da não-violência. Em contraste com, digamos, uma campanha militar, o recurso básico do qual a não-violência depende é ilimitado. Quando ofereço respeito a você, eu não reduzo meu próprio suprimento dele. A violência, por outro lado, nos foca nas coisas materiais que são escassas e impermanentes, criando um senso de competição e medo. Nossa intenção, ao separar pessoas de problemas, é de manter a dignidade da outra pessoa, assim como a nossa própria, tanto como método, quanto como objetivo da satyagraha. Como Gandhi disse, “a real não-cooperação é não-cooperação com o mal, não com aquele que o comete”, e ele sustentou esta distinção mesmo frente ao teste mais duro que a não-violência pode enfrentar: defender um país de uma invasão massiva por parte de um inimigo determinado. Em 1942, enquanto a Índia, com as mãos atadas pelos britânicos, temia a invasão dos exércitos japoneses, ele indicou como isso poderia ser feito: Se fossemos um país livre, poderíamos agir não-violentamente para impedir os japoneses de nos invadirem. Da forma atual, a resistência não-violenta poderia começar no momento em que os japoneses desembarcassem. Desta maneira, os resistentes não-violentos recusariam qualquer ajuda a eles, mesmo água. Pois não é parte de seu dever ajudar qualquer pessoa a roubar seu país. Mas se um japonês tiver se perdido e estiver morrendo de sede e buscando ajuda como ser humano, um resistente não-violento, que não deve considerar ninguém como seu inimigo, deve dar água a ele. Supondo que os japoneses obriguem os resistentes a dar água a eles, estes devem morrer resistindo (15). Esta visão ousada se tornou realidade quando as tropas soviéticas invadiram a Tchecoslováquia para suprimir as reformas em 1968. Sabendo que a resistência armada seria inútil, os criativos tchecos corajosamente desobedeceram aos toques de recolher e a todos tipos de ordens, mas confraternizaram com os soldados soviéticos e tentaram não alimentar raiva por eles, como pessoas. Como resultado dessa resposta inesperada, três exércitos do Pacto de Varsóvia, totalizando meio milhão de soldados, foram incapazes de recuperar o controle do país por oito longos meses. Juntamente com a coragem e o senso de humor dos cidadãos tchecos, havia sua habilidade de separar as pessoas da política, ou o mal do seu perpetrador, o que proporcionou a eles um grande sucesso, contra todas as avassaladoras evidências. Hoje, chamamos essa estratégia de “defesa de base civil” que, em conjunto com a manutenção da paz por civis não-armados, forma o equivalente não-violento à defesa militar. A atuação mais profunda da não-violência deve envolver o (re)despertar da humanidade do oponente, já que toda violência começa com a falha ou recusa em se considerar a outra pessoa como totalmente humana. Mesmo um torturador, ainda que seja muito desafiador lembrarmos disso, é uma pessoa — uma pessoa que, por ignorância ou insensibilidade, acha


10 que é apropriado torturar outra, mas que, ainda assim, é, no fundo, uma pessoa. Assim, mesmo alguém tão desumanizado a ponto de fazer tal coisa tem um desejo de voltar a ser humano. Apelamos a este desejo quando mantemos a humanidade da outra pessoa em vista, e é por isso que a resistência não-violenta tem sido conhecida por ser vitoriosa mesmo quando há uma oposição fortemente armada e altamente determinada (16). No mínimo, a nãoviolência nos protege dos efeitos corrosivos de alimentarmos a raiva e a desumanização. Não nos esqueçamos de que nossa libertação pessoal da raiva e do medo advinda da prática da não-violência é um benefício nada pequeno. Um elemento importante na nossa intenção de tratar qualquer agressor como ser humano é evitar rotulá-lo. Os rótulos despersonalizam e é esta a razão pela qual os soldados os utilizam tão frequentemente para superarem a natural aversão psicológica a matar alguém. Uma pessoa verdadeiramente não-violenta jamais irá despersonalizar, humilhar ou desumanizar outra, mesmo — ou especialmente — enquanto resiste. O que King disse sobre a injustiça — que a injustiça em qualquer lugar é uma ameaça à justiça em todos os lugares — se aplica igualmente à nossa dignidade: degradar alguém degrada a todos nós. Indo mais longe, devemos mesmo trabalhar na direção da amizade e da reconciliação, compreendendo que, como disse Abraham Lincoln, “a melhor maneira de destruir um inimigo é torná-lo um amigo”. Cinco Práticas Básicas de Treinamento para uma Vida Não-Violenta A tentação de envergonhar alguém que está se comportando mal — ou seja, de tentar fazer com que se envergonhe de si mesma e não daquilo que está fazendo — pode ser muito forte. Oferecer dignidade para alguém assim, reconhecer que esta pessoa tem um ponto de vista, não nos ocorre naturalmente. Mas esta atitude pode ser cultivada. Aqui estão alguns elementos de um programa de treinamento em não-violência através do qual podemos nos empoderar como indivíduos e cultivar a intenção correta (17). 1. Evitar as grandes redes e os principais canais de mídia. Quer percebamos, quer não (porque esse desenvolvimento foi gradual), a comunicação de massa, hoje em dia, está saturada de violência e da imagem degradante da humanidade que a violência implica. Inúmeros estudos mostram que essas imagens violentas entram em nossas mentes, ainda que a desaprovemos, e nos tornam marcadamente mais violentos e agressivos. Normatizar a mídia requereria uma grande campanha. Felizmente, há alternativas hoje em dia através das quais podemos acessar informação e entretenimento (algumas estão listadas no final deste livro). Através delas, estamos menos suscetíveis a ver o mundo como um lugar violento e a nós mesmos como impotentes para transformá-lo. Podemos reduzir seguramente a zero nossa exposição à mídia de massa comercial, comprometida com os interesses corporativos e de poder estrutural. 2. Aprender sobre não-violência. Para preencher o espaço deixado quando evitamos a mídia, nada melhor do que uma maior apreciação e conhecimento da não-violência, que, como vimos, não é uma mera técnica, mas incorpora em si toda uma visão de mundo, uma cultura inteira. É muito útil simplesmente aprender a identificar a nãoviolência operando ao nosso redor. O aprendizado formal, através da leitura de livros como este e outros listados na nossa bibliografia, adiciona outra dimensão. Um modo potente de acessar a cultura não-violenta é praticando-a com atenção plena. 3. Adotar uma prática espiritual se você ainda não tiver uma. A meditação, que não precisa estar conectada a nenhuma religião em particular, é extremamente útil a quem se pretende não-violento, ou a qualquer pessoa (18). Ela é um grande instrumento de humanização, porque nos coloca em contato com os recantos mais


11 profundos da nossa própria humanidade, que é, simultaneamente, a das outras pessoas. Precisamos de alguma forma de autodisciplina, seja ela sancionada por uma religião ou não, e muitos atores não-violentos hoje em dia obtiveram acesso seus recursos e sua visão internos através da meditação, da prece ou de outras práticas espirituais. 4. Ser mais pessoal em relação às outras pessoas. Em suas interações diárias, dê às pessoas sua atenção plena. Dedique-se a conversar com o cobrador do pedágio (se não houver uma fila longa de carros atrás de você); telefone para alguém, ao invés de mandar uma mensagem — ou, melhor ainda, encontre essa pessoa para um café. Use a tecnologia para se conectar com as pessoas, ao invés de para distanciar-se delas. Estes hábitos, aparentemente pequenos, podem mudar a tessitura das nossas vidas, nos ajudando a desenvolver a compaixão e a ver a humanidade nas outras pessoas enquanto, é claro, as ajudamos também. 5. Encontrar um projeto e ser ativo nele. Qual é sua contribuição única? Onde o mundo mais precisa de você? Que projeto você vê como factível e crítico para promover uma mudança essencial em nosso sistema presente? Alguns estudos têm mostrado que aqueles que são ativos são mais otimistas, e vice-versa. Influenciamos a nós mesmos grandemente a partir daquilo que fazemos, talvez tanto ou mais do que nos influenciamos ao explicarmos as razões porque o fazemos. Estes passos ajudam a nos preparar para uma vida não-violenta. Mesmo sem o passo 5 eles fariam diferença no mundo, porque o modo pelo qual vivemos afeta o mundo ao nosso redor, mesmo se não fizermos mais nada. Mas nós faremos algo mais. *** TRÊS Os Meios Corretos: Conhecer de Onde Estamos Partindo Quando pediram ao popular mestre budista vietnamita Thich Nhat Hahn que explicasse seu conceito de “Budismo Engajado”, ele respondeu: “Budismo Engajado é apenas Budismo” (19). Ninguém pode se manter fiel aos valores espirituais hoje em dia sem trabalhar ativamente para expressá-los em nosso mundo conflituoso. Contudo, ainda que seja bom ter em mente que os valores em si são um bom empurrão na direção correta, devemos manter nossas ações subsequentes no rumo, como pilotos hábeis que conhecem os perigos do terreno do conflito e sabem como mobilizar as forças da não-violência para enfrentá-los. Quando devemos utilizar a não-violência, e de que forma? Esta é a questão que consideraremos a seguir. Quanta não-violência é suficiente? Os conflitos aumentam quando não são resolvidos e, se forem negligenciados, podem rapidamente sair do controle. Do ponto de vista da não-violência, a intensidade de um conflito não é necessariamente uma questão de quantas armas ou quantas pessoas estão envolvidas (a mesma métrica serviria tanto para uma briga entre pessoas que se amam quanto para uma batalha entre nações); se trata, primariamente, de quão longe a desumanização chegou. Se alguém não escuta mais, está xingando ou rotulando você, provavelmente já é tarde demais para petições.


12 Em termos de saber como responder, podemos pensar, convenientemente, na intensificação do conflito em três estágios que pedem por um diferente conjunto de respostas. Chamemos estes três estágios de Resolução do Conflito, Satyagraha (resistência ativa não-violenta) e — esperamos que seja rara, mas ajuda sabermos que esta possibilidade existe — Sacrifício Final (ver figura). Os Três Estágios da Intensificação do Conflito

Intensificação do Conflito “Fazer ou Morrer”

Desumanização

Resistir Negociar Resolução do Conflito

Satyagraha

Sacrifício Final

Tempo

Estágio 1: Resolução do Conflito. Seria lindo se cada conflito fosse respondido rapidamente, enquanto ainda não há uma desumanização séria no ambiente. Aqui, as diferenças podem ser resolvidas usando as bem conhecidas ferramentas de resolução de conflitos ou a Comunicação Não-Violenta. Se você registrar uma reclamação, o outro lado vai, ao menos, ouvir; podem não gostar de você, mas ainda estarão cientes de que você é uma pessoa. As ferramentas que funcionam no Estágio 1, como negociação, mediação e arbitragem, por vezes com a interferência benéfica de uma terceira parte, são relativamente bem conhecidas e não requerem muitas explicações. Estágio 2: Satyagraha. Como sabemos, contudo, os conflitos nem sempre são tão administráveis. Há vezes (muito frequentemente, aliás) em que as pessoas a que nos propomos persuadir não são atingíveis através da razão. É então que a Satyagraha se torna necessária. Ela significa, quase sempre, que estamos dispostos a assumir algum sofrimento ao invés de impô-lo sobre os outros, a fim de despertá-los. Como Gandhi colocou, “As coisas de fundamental importância para as pessoas não são asseguradas apenas pela razão, elas devem ser conquistadas através do sofrimento... Se quisermos que algo realmente importante seja feito, não devemos meramente satisfazer a razão, devemos mover também o coração” (20). Gandhi se refere a isto como a “lei do sofrimento”. O sofrimento — seja ele suportar um abuso físico ou renunciar a um prazer ou algo parecido — é uma parte crítica da persuasão nãoviolenta em conflitos mais sérios. Estágio 3: O Sacrifício Final. O estágio 3 é, na verdade, uma extensão do estágio 2, mas nele as coisas atingiram uma intensidade de vida ou morte. Tentamos as técnicas usuais da


13 satyagraha: greves, desafio às ordens, desobediência civil e assim por diante, mas nosso “parceiro de conversação”, nosso oponente, não respondeu (ao menos, não visivelmente). Contudo, nós ainda não esgotamos todos os recursos do caminho da não-violência. Se não podemos conviver com uma injustiça, podemos arriscar nossas vidas para corrigi-la. Escolhi estas palavras muito cuidadosamente. Não é nossa morte que pode despertar um oponente obstinado, mas sim nossa disponibilidade para nos arriscarmos a morrer. Foi este o caso no momento crítico durante o estágio final da luta pela liberdade na Índia, por exemplo, e funcionou. Há duas coisas a serem levadas em consideração aqui. Primeiro, a não-violência é, em geral, muito mais segura do que a violência. Praticamente ninguém morreu durante uma ação de pacificação civil desarmada, por exemplo, enquanto milhões morreram usando os métodos “normais” de luta armada ou guerra. Segundo, se recorrermos à não-violência porque ela é mais segura, estaremos subtraindo dela parte de seu poder. O poder pleno da não-violência decorre de a praticarmos porque acreditamos que é o certo a fazer, sem considerarmos os custos. Claramente, conforme a curva de intensificação em nossa figura indica, quanto mais cedo agirmos num conflito, mais opções teremos e menos dor deveremos suportar para resolvê-lo. Mas nem sempre esta escolha será possível. Há tanta violência nos meios de comunicação (ao menos no mundo industrializado) e nosso conceito de potencial humano é, correspondentemente, tão baixo, que os conflitos podem rapidamente sair do controle. Não podemos nos permitir ignorar os casos que requerem uma resposta mais corajosa. Quando Nada Mais Funciona Quando um oponente se tornou tão alienado que mesmo a satyagraha bem executada não foi capaz de despertar sua consciência (ao menos, não visivelmente) e o mal não pode, ainda assim, ser tolerado, os satyagrahis (atores não-violentos), com frequência, decidiram arriscarse a fazer o sacrifício derradeiro. Ao fazê-lo, eles reconheceram-se manejando o poder definitivo da força da alma e, na maioria das vezes — ainda que nem sempre — sobreviveram para contar a história. Consideremos meu amigo David Hartsough, agora um famoso ativista pela paz, então uma pessoa branca de 15 anos de idade sentada num balcão de lanchonete na Virgínia, para enfrentar a discriminação racial. Depois de um dia e meio sem comida, ele foi arrancado subitamente da sua banqueta e ameaçado por um homem branco enraivecido, que apontou uma enorme faca para seu peito e rosnou: “Bem, amante de negros, você tem um minuto para cair fora antes que eu enfie isso no seu coração.” David permaneceu calmo (ele estava recitando o Pai Nosso para si mesmo durante horas). Tentando olhar nos olhos do homem, apesar do ódio que via neles, ele se ouviu dizendo: “Irmão, faça o que achar que deve fazer, mas vou tentar amá-lo de qualquer forma.” Depois de um longo momento, a faca começou a tremer. Então, o homem lentamente baixou sua mão e saiu da lanchonete. Alguns passantes notaram que ele tinha lágrimas nos olhos. Lembremos que soldados vão para batalhas aos milhões, totalmente preparados para arriscarem suas vidas, frequentemente por causas duvidosas; não deveríamos estar prontos para fazermos o mesmo? Nossa coragem tem um poder transformador muito maior do que a força armada, vindo de uma pessoa não armada que está disposta a arriscar-se, mas não a infligir risco. Isso às vezes é chamado de “poder da vulnerabilidade”. Conforme mencionei, muito menos pessoas foram mortas na prática da não-violência ativa do que nas lutas


14 armadas. Mesmo assim, não há como evitar completamente esse risco em conflitos sérios — uma razão boa o suficiente para usarmos a não-violência nos estágios iniciais de um conflito, se isso for possível! *** QUATRO Colocando a Energia Não-Violenta em Ação Há infinitos modos criativos de se empregar a energia não-violenta e, ainda que todos partam do princípio de que não devemos e não precisamos nos colocar contra o bem-estar de ninguém — nossas necessidades verdadeiras nunca estão em conflito —, alguns dos mais eficientes podem não ser óbvios. Vimos, por exemplo, que os meios corretos sempre devem ser proporcionais, ou seja, devemos confrontar a violência com uma força não-violenta equivalente, apropriada à situação. Meios corretos também incluem a arte de fazer acordos, que requer uma compreensão de quais princípios são negociáveis e quais não são. Finalmente, devemos ter em mente objetivos específicos e entender como pretendemos atingir estes objetivos. Ter em mente estes princípios nos ajudará a nos assegurarmos de que estamos construindo um movimento não-violento corretamente, desde suas bases. Proporcionalidade A força social da não-violência deve ser aplicada em proporção ao grau de hostilidade que ela está enfrentando. Para tirarmos total vantagem do poder dos meios corretos, portanto, precisamos saber em quais dos três estágios se encontra determinado conflito. Reagir exageradamente no começo de uma luta — por exemplo, fazendo uma greve de fome, que é um dos mais drásticos passos na satyagraha, antes de dar a nosso oponente a chance de ser persuadido — pode ser tão ineficiente quanto continuar a protestar quando as coisas já passaram do ponto no qual uma manifestação teria chances de obter o efeito desejado. É senso comum o fato de que conflitos podem se intensificar. Mas algo que, com frequência, não reconhecemos, é o fato de que a não-violência também pode se intensificar. Como King disse em seu sermão Natal e Paz, em 1967: “A nossa capacidade de infligir sofrimento deve equivaler à nossa capacidade de suportar o sofrimento”. O grau de força da alma deve ser equivalente ao grau da força ameaçadora, ou de desumanização. Por exemplo, o período que precedeu a Guerra do Iraque, em 2003, levou milhões de pessoas ao redor do mundo às ruas, em protestos veementes. Quando o presidente George W. Bush levianamente desconsiderou os manifestantes como sendo um “grupo focal”, ele estava, de fato, sinalizando que o desentendimento havia atingido o estágio 2: hora de satyagraha. Não que os protestos e petições estivessem equivocados. Nós certamente devemos dar uma chance às negociações de boa-fé, mesmo quando duvidamos de que nosso oponente responderá a elas. Elas aumentam a legitimidade de nossa campanha, nos colocando em uma posição de resistência mais fortalecida, se e quando for necessário, enquanto encorajam alguma re-humanização, que dará frutos a longo prazo. Mas também precisamos estar prontos para tomar ações concretas quando ficar claro que nosso oponente não está escutando.


15 A Arte dos Acordos Em qualquer atividade, de gerir um negócio a planejar uma economia, é importante distinguirmos entre objetivos e estratégias. Isso é especialmente crucial na satyagraha, pois queremos manter a habilidade de tecer acordos tanto quanto possível. Assim, devemos identificar os princípios básicos que não podemos sacrificar por nenhum motivo — como verdade, dignidade humana e liberdade — e distingui-los de coisas que são negociáveis, como quem ganha crédito pelo quê. Frequentemente, quando descobrimos que não estamos dispostos a fazer acordos, é porque estamos aprisionados em símbolos — marchas que vão de um lugar arbitrário a outro, fitas de determinada cor — que podem tornar uma situação que de outra forma seria manejável em uma luta por poder, seja contra nosso oponente ou dentro de nossas próprias fileiras. Durante uma manifestação do movimento Occupy na Filadélfia, em 2011, por exemplo, os manifestantes foram abordados por representantes das prestigiosas igrejas negras da cidade, que queriam se juntar ao movimento e pediam apenas que os manifestantes evitassem fazer ou falar certas obscenidades em público. Infelizmente, os manifestantes se recusaram a fazer este acordo. Eles confundiram uma tática — ou, na verdade, apenas um desejo pessoal de blasfemar em público — com seu objetivo geral de assegurar a justiça econômica, se apegando a algo que deveria ter sido negociável e, assim, perdendo potenciais aliados poderosos para seu movimento. Devemos sempre nos lembrar de que não estamos engajados numa luta por poder, seja lá o que o outro lado possa estar pensando, mas em um processo de aprendizado que tem o potencial de beneficiar a todos. Nosso objetivo último, se isso é algo possível, é restaurar relações. Acima de tudo, lembrar que não há, na verdade, conflito, mas apenas necessidades compartilhadas, irá nos ajudar a priorizar e a manter nossos olhos no prêmio que é mais importante para ambas as partes. Por exemplo, o primeiro projeto do grande ativista italiano Danilo Dolci, que abandonou sua carreira lucrativa como arquiteto em Milão para trabalhar com os pobres da Sicília, foi construir uma represa perto da cidade de Jatto, muito contra a vontade da máfia siciliana. Apesar da oposição, Dolci foi bem-sucedido. Quando um mafioso veio até ele e, malhumorado, admitiu: “Bem, Danilo, você ganhou. Agora você tem toda a água.”, Dolci respondeu: “Não, nós ganhamos. A água será para vocês e suas famílias também.” Ao manter essa atitude, Gandhi tentou observar o que ele chamou de princípio do “nãoconstrangimento”. Quando seu oponente está preocupado, como o governo sul-africano ficou durante uma greve ferroviária em 1913, você se afasta. A surpreendente demonstração de cortesia de Gandhi teve um efeito eletrizante em sua relação com o governo e seu desejo de estabelecer acordos foi provavelmente fundamental no sucesso da satyagraha de oito anos de duração que ele empreendeu pelos direitos da comunidade hindu naquela região. Sempre aprendendo através de suas próprias experiências, ele fez a mesma coisa aproximadamente trinta anos depois, quando os britânicos estavam preocupados com a Segunda Guerra Mundial — novamente com ótimos resultados. O Que Queremos, Realmente? Gandhi dominou a arte dos acordos de tal forma que seus próprios aliados com frequência se mostravam alarmados com a possibilidade de ele estar sendo conivente demais. Eles não entendiam que sua disponibilidade para conceder todo o resto era o que os estava ajudando a


16 conquistar o principal ponto — a liberdade da Índia — e que ele estava meramente distinguindo os objetivos gerais das estratégias imediatas. Em 1925, por exemplo, ele foi libertado de uma longa sentença de prisão, apenas para descobrir que seu partido havia sofrido uma séria divisão durante sua ausência. O grupo que se opunha a sua posição sobre uma questão importante era agora quem segurava as rédeas. Como eles haviam ganho por meios legítimos, Gandhi não tentou bloqueá-los. Ao contrário, ele cedeu ponto por ponto, mantendo seus olhos no único objetivo que eles tinham em comum: trabalhar juntos pela independência. Muitos, não compreendendo essa lógica, apelidaram sua ação de Rendição de Patna. Mas essa “rendição” teve um estranho efeito que não passou despercebido por seu secretário, Pyarelal: “Quanto mais ele se anulava, mais eles precisavam dele, e seu peso e influência nas assembleias cresciam. Sua completa autoabnegação deu a ele um poder que nenhuma posição oficial no Congresso ou fora dele poderia ter dado.” (21) Podemos contrastar isto com um evento ocorrido na Polônia em 1980, conforme o movimento Solidariedade ganhava proeminência. Seu líder, Lech Walesa, estava no ato de assinar um acordo muito importante com o governo, quando um colega entrou correndo na sala e disse a ele que acrescentasse uma nova questão — a anistia para os grevistas que haviam sido presos em protestos anteriores. Walesa concordou em acrescentar esta exigência ao acordo e o governo imediatamente se retirou dele, estendendo, assim, a luta do povo polonês por mais diversos e duros anos. Claramente, então, nossa habilidade de tecermos acordos dependerá da formulação e da aderência a objetivos específicos. As seguintes orientações devem ser mantidas em mente ao escolhermos estes objetivos. •

• • •

O objetivo deve contribuir para o bem-estar de todas as partes e deve ser sempre possível identificar seus resultados. Lembremos que dissuadir um opressor de sua opressão é tanto uma questão de seu bem-estar quanto do nosso. O objetivo nunca deve ser frívolo ou servir meramente a interesses individuais. As demandas devem ser concretas, factíveis e realistas: só em raras exceções elas podem ser simbólicas. Acrescentar novas demandas a uma lista de objetivos quando nossa campanha já ganhou algum terreno, ainda que seja tentador, altera nossa interação com o oponente, de uma negociação para um jogo de poder. Este princípio é, por vezes, chamado de “sem assuntos novos”.

Construindo Direito: o Segredo do Programa Construtivo O derradeiro objetivo de toda satyagraha não é, simplesmente, desmontar um sistema opressor, mas, ao mesmo tempo, substituí-lo por algo mais positivo. Novamente, isso é estratégico, assim como uma questão de princípios: nada ajuda mais a desestabilizar um regime indesejado do que construir um desejável. Não há nada mais potente do que a elevação coletiva para superar a dependência e a opressão. Este aspecto da não-violência é, geralmente, chamado de programa construtivo. A longo prazo, um programa construtivo oferece a cola que mantém os movimentos coesos e crescendo a partir da energia espontânea que pode surgir frente a uma injustiça severa e prevenindo a dispersão dessa energia quando a injustiça é reparada ou quando o movimento encontra uma resistência inesperada. Estas são vantagens estratégicas que se apoiam no fato


17 de que a não-violência, como uma força positiva, presta-se muito mais, por sua natureza, a “cooperar com o bem”, como diria King, do que a “não cooperar com o mal”, ainda que isto também tenha seu lugar. Outras vantagens estratégicas seguem este princípio. Por exemplo, trabalhar juntos por um objetivo primordial cria laços efetivos e duradouros entre pessoas (22). O trabalho construtivo também pode dar mais confiança ao público, que pode estar assustado até mesmo pela resistência não-violenta a uma autoridade estabelecida, e pode minar um regime opressor sem provocar a reação que a confrontação provoca. Mais importante, um programa construtivo bem desenvolvido constrói a infraestrutura para uma nova sociedade antes que a sociedade antiga caia em ruínas, evitando a emergência de um vácuo de poder que novos elementos opressivos, com frequência, se apressam em ocupar. Portanto, os programas construtivos devem ter um lugar de honra mesmo em insurreições. Tanto historiadores quando ativistas têm negligenciado essa dimensão nada dramática, mas natural e muito eficiente, da não-violência (ainda que, pelo menos entre alguns ativistas, isso esteja começando a mudar). Foi Gandhi quem deu ao princípio seu nome, e sua longa luta na África do Sul e na Índia, o mais longo e contínuo esforço não-violento já conhecido, é um modelo no que se refere a ele. Gandhi recorreu à natureza positiva inerente à não-violência ao enfatizar o trabalho construtivo dentro de uma comunidade como sendo um complemento e, por vezes, a vanguarda, em um confronto. Ainda que tendamos a pensar em eventos dramáticos como a Satyagraha do Sal ou o movimento pela independência como sendo a história da satyagraha na Índia, Gandhi uma vez explicou a um amigo que “Minha verdadeira política é o trabalho construtivo.” (23) A não-violência confrontativa, ou o que gosto de chamar de “programa obstrutivo”, pode ser muito eficiente, mesmo dramática, mas requer que mantenhamos o ritmo e a solidariedade do grupo até que o momento oportuno se apresente. Ela também requer que façamos progresso sem provocar a hostilidade indevida de nossos oponentes e que demonstremos nosso compromisso subjacente com o bem-estar de todos, evitando, assim, deixar o mínimo traço de amargura. Nada disso é muito fácil. Afinal, a opressão opera com a falsa premissa de que os oprimidos são indefesos e dependentes e a não-violência confrontativa nem sempre nos ajuda a nos convencermos, a nossos aliados e, no momento certo, ao opressor, de que podemos nos governar e cuidar de nós. Muito comumente o remédio para estas dificuldades é encontrado em projetos proativos, sustentáveis e concretos. Por exemplo, a política israelense, desde 1948, tem deliberadamente evitado a emergência de iniciativas de desenvolvimento locais por parte dos palestinos, com o objetivo de alimentar sua dependência de Israel (24). Foi por isso que as escolas “ilegais”, os mercados de troca e muitas outras coisas que as pessoas fizeram entre elas durante a primeira Intifada palestina, que demonstraram a falsidade dessa suposição, foram um apoio vital para a insurreição. Da mesma forma, uma das primeiras campanhas que Dolci conduziu com camponeses sicilianos foi um programa construtivo chamado “greve ao contrário”. Moradores voluntários das vilas começaram a construir uma estrada para eles mesmos, algo que a burocracia do estado não só havia adiado, como havia se oposto a realizar. A polícia logo veio para impedir o trabalho e prendeu Dolci e outras pessoas. Com o tempo, contudo, a estrada foi construída e as pessoas descobriram como poderiam assumir o desenvolvimento da comunidade com suas próprias mãos.


18 O exemplo siciliano demonstra outro aspecto dos programas construtivos: é, com frequência, o próprio sucesso destes programas que atrai a repressão. O oponente pode entender o poder revolucionário de tais iniciativas comunitárias e fazer todo o possível para prejudicá-las. Ele pode ter menos pretextos para atacar estes programas e seus participantes, mas pode perceber mais necessidade de fazer isso. Não devemos nos sentirmos surpresos, ou mesmo aborrecidos, portanto, quando nossos programas construtivos sofrerem tais ataques. É da natureza da satyagraha, seja ela construtiva ou obstrutiva, provocar uma resposta a fim de expor a violência escondida em um sistema injusto. Por mais lamentáveis que sejam, estes ataques podem deixar claro aos observadores — e mesmo aos próprios opressores — que o que os opressores estão fazendo não está correto. Idealmente, uma campanha não-violenta começa pelo empoderamento individual, buscando, em seguida, por opções construtivas dentro da comunidade e finalmente, se necessário, confrontando forças obstrutivas, a partir de uma posição de poder. Os mesmos princípios podem ser aplicados por indivíduos em inúmeras situações. É interessante que os movimentos Occupy nos Estados Unidos, que começaram como protestos em setembro de 2011, tenham tomado algumas ações construtivas altamente criativas após estes processos terem sido reprimidos pela polícia. No final de 2012, por exemplo, Occupy Sandy e Occupy Oklahoma ofereceram um imenso apoio a vítimas de furacões — um apoio mais eficaz, podemos dizer, do que o de agências como a Cruz Vermelha e a Agência Federal de Gerenciamento de Emergências. O movimento Occupy também criou uma cooperativa econômica, assim como o Strike Debt e o Rolling Jubilee, que compram os débitos das pessoas e os cancelam. Em outras palavras, o movimento recorreu a programas construtivos quando seu programa obstrutivo foi frustrado e isto ocorreu a eles meio que naturalmente porque, além dos protestos, eles já tinham criado elementos construtivos, como cozinhas coletivas e processos de tomada de decisão altamente democráticos. Em situações menos drásticas atualmente, inúmeros projetos difusos, aparentemente não relacionados, indo da agricultura comunitária ao esforço extremamente importante de reforma dos meios de comunicação, estão silenciosamente construindo a espinha dorsal da revolução não-violenta — se e quando escolhermos incorporá-los a uma estratégia abrangente. Há também um movimento crescente em direção à justiça restaurativa como uma resposta construtiva ao nosso imensamente desumanizador e ineficaz sistema de justiça (25). Mais confrontativo, mas ainda dentro de parâmetros legais, é o movimento crescente para reverter a doutrina da Suprema Corte dos Estados Unidos que considera que as corporações têm os mesmos direitos que os seres humanos (e, por implicação, que os seres humanos não têm mais direitos do que entidades abstratas, como corporações). Estes projetos, em particular, consideram a si mesmos como componentes particularmente efetivos de uma estratégia construtiva. Regimes opressores podem aguardar que uma marcha ou um protesto se diluam, mas não podem sobreviver a uma indústria caseira quando estão tentando explorar um povo ou a uma escola livre, quando estão querendo doutrinar os cidadãos. Frequentemente, devido a sua orientação violenta, os opressores nem mesmo percebem que ações construtivas constituem uma ameaça até que seja tarde demais. O vice-rei da Índia, Lord Irwin, se gabou de que não estava “perdendo o sono” em relação à Satyagraha do Sal — e, então, a Grã-Bretanha perdeu todo o Império. Neste caso — e, talvez, apenas neste caso — a ignorância geral do mundo sobre a não-violência acabou se tornando uma vantagem!


19 Em um mundo ideal, mudanças revolucionárias poderiam ser conquistadas apenas através de programas construtivos; mesmo a ameaça da satyagraha poderia não ser necessária. O mundo atual, contudo, está muito longe de ser o ideal. Ele contém muita exploração e opressão, assim como violência física e estrutural de várias formas. Em tal mundo, a fórmula ideal para a libertação é reduzir ao mínimo possível os conflitos inerentes através de programas construtivos e isolar e confrontar o restante através do embate não-violento. Seja construtivo sempre que possível e obstrutivo quando necessário, sempre se assegurando de que sua abordagem está sendo inspirada pelas intenções corretas e realizada usando meios corretos.

CINCO Espreitando o Coração da Satyagraha Vimos que a não-violência e a satyagraha começam em nós, que precisamos nos preparar e treinar para que possamos abordar qualquer conflito com a intenção correta. Da mesma forma, a satyagraha somente será bem-sucedida se empregar os meios corretos, incluindo resposta proporcional, objetivos bem definidos e programa construtivo, conforme necessário. Contudo, alguns aspectos da satyagraha devem ser observados. Por exemplo, como devemos reagir quando nossa abordagem não-violenta parece não estar alcançando resultado algum e, igualmente importante, como devemos nos comportar quando temos sucesso? Quantas pessoas são necessárias para que um movimento seja bem-sucedido e quão importantes são os símbolos para ele? Finalmente, muitos de nós podem se perguntar se é possível utilizar mal a não-violência ou se a satyagraha sempre requer sofrimento da parte de quem a emprega. Um exame destas questões nos ajudará a definir com mais clareza o coração da satyagraha. Vendo os Resultados Reais Um ato não-violento sempre terá um efeito útil, sempre impactará de forma positiva nas mentes e nos corações das pessoas. Sendo assim, ele é diametralmente oposto à violência, que sempre deixa um legado de dor, amargura e alienação. Há uma semelhança entre a nãoviolência e a violência, contudo, pois ambas podem ou não ser eficientes em alcançar os resultados que queremos. Na maior parte das vezes em que achamos que estamos vendo a satyagraha ou não-violência falhando, é devido ao fato de que o grau de profundidade da não-violência sendo oferecido não corresponde à intensidade da violência. Um protesto espontâneo sem nenhum treinamento ou estratégia é apenas a ponta do iceberg; simplesmente nos abstermos de uma agressão física é apenas uma condição que possibilita o poder total da não-violência. Assim, quando os esforços preliminares falham, não devemos concluir apressadamente que a nãoviolência não funciona. Como um ativista turco recentemente admitiu, “Nós falhamos com o método, não foi ele que falhou conosco.” Outra razão para que pensemos, por vezes, que a não-violência falhou, é que não notamos que ela opera sob a superfície, com frequência levando a resultados mais significantes do que os que havíamos intencionado. Como o historiador B. R. Nanda escreve, “O fato é que a satyagraha não foi criada para atingir determinado objetivo ou para esmagar o oponente, mas para colocar em ação forças que irão, em última instância, levar a uma nova equação; em tal estratégia é perfeitamente possível perder todas as batalhas e, ainda assim, ganhar a guerra” (grifo do autor) (26).


20 Um exemplo dramático disso ocorreu durante a famosa Satyagraha do Sal, que teve o objetivo de quebrar o monopólio governamental sobre o sal, que impunha severas restrições aos indianos pobres e que veio a simbolizar o poder colonial britânico sobre a Índia. Em 21 de maio de 1930, por volta de duas mil pessoas foram até a refinaria de sal Dharsana para retomar “ilegalmente” o sal que vinha de suas próprias praias. Onda após onda de voluntários disciplinados e desarmados, vinte e cinco de cada vez, andaram em direção à entrada da refinaria e foram espancados até caírem, a maioria deles, sem sequer levantar um braço para se proteger. Ao final daquele dia, 320 voluntários foram hospitalizados e dois deles logo morreram devido ao espancamento selvagem. O sacrifício dos voluntários indianos não “funcionou” em termos de objetivos a curto prazo: a refinaria de sal não foi liberada e as taxas não foram revogadas (27). Ou seja, a batalha foi perdida. Mas quando anos de preparação não-violenta foram colocados à prova e a disciplina das pessoas se manteve, a “guerra” foi ganha. Como o poder colonial recorreu ao ferro e ao bastão, enquanto os manifestantes resistiam com coragem e resiliência, se negando a odiar, o regime perdeu sua legitimidade. A real natureza dele foi exposta e a Índia ficou em posição de conquistar sua liberdade. Era apenas uma questão de tempo. De fato, quando a independência veio, dezessete anos depois, a Índia e a Grã-Bretanha foram capazes de terminar essa relação de exploração de forma cordial. Diferentemente do que ocorreu no final da maioria das situações de colonização, as duas nações se separaram com amigas. Como o historiador britânico Arnold Toynbee notou, Gandhi tornou impossível aos britânicos continuarem governando a Índia, mas tornou possível a eles deixarem o governo sem rancor e sem humilhação (28). Esta é uma descrição clássica do efeito das ações nãoviolentas, mas nada disso estava aparente naquele dia de maio na refinaria de sal Dharsana. Esta não é a única vez na história da não-violência na qual fracassos aparentes acabaram por conter, em si, as sementes de um sucesso maior. Devido ao intervalo de tempo entre as ações não-violentas e seus efeitos, contudo, podemos ignorar facilmente a conexão entre eles e essa é uma das razões pelas quais muitas pessoas falham em abarcar o poder na não-violência por si só. Na não-violência, lembremos, estamos buscando mais do que apenas um resultado imediato e evidente. Pode ser muito importante, no momento imediato, interromper uma guerra iminente, bloquear um acordo de “livre comércio” malicioso ou remover um ditador do poder, e falhar em conseguir estes resultados imediatamente pode causar um desapontamento. Contudo, já que o conflito não-violento não é apenas uma luta entre ganhar e perder, e já que estamos mais interessados em resultados a longo prazo, não devemos perder as esperanças após um contratempo. Ao praticar a não-violência, devemos aprender a confiar que os resultados a longo prazo — como um regime menos opressor, a reconciliação entre as partes ou a justiça para todos — irão, inevitavelmente, acontecer. Reconhecidamente, este tipo de fé não é fácil de se atingir. Quando sessenta manifestantes não-violentos foram mortos em Sharpeville, Africa do Sul, em 1960, os líderes do Congresso Nacional Africano decidiram que a não-violência não era suficiente para superar o regime do apartheid. Eles, em seguida, perderam trinta anos tentando lutar contra o regime com atos de violência, antes que Nelson Mandela fosse libertado da prisão e eles recuperassem seu empenho não-violento. Da mesma forma, é muito difícil não perder a fé após uma repressão brutal, do tipo da que teve lugar na Praça Tiananmen, mas conhecer a lógica mais profunda da não-violência pode auxiliar. Também pode ajudar mantermos em mente as palavras do historiador Theodore Roszak: “As pessoas experimentam a não-violência por uma semana, e quando ela não ‘funciona’, elas voltam à violência, que não tem funcionado por séculos” (29).


21 Lidando com o Sucesso Sabermos que a não-violência é, com frequência, um projeto a longo prazo pode evitar a depressão e a desmoralização, quando ela parece ter (temporariamente) falhado. Contudo, é igualmente importante evitar a euforia quando a não-violência não falhou, em parte porque, como vimos, quantificar o sucesso ou o fracasso na não-violência é uma tarefa sutil. Para uma pessoa não-violenta, sucesso é simplesmente permanecer na não-violência, mesmo diante de uma grande provocação. Mas as campanhas não-violentas certamente também podem ter, e têm, um sucesso aparente. Estudos recentes mostram que as insurreições não-violentas funcionam duas vezes melhor do que as violentas e em um terço do tempo (30). De fato, conforme a história gradualmente corrige seu viés inconsciente em direção à violência, mais e mais histórias de resistência coletiva bem-sucedidas estão vindo à luz. Por exemplo, sob a jurisdição de Vichy no sul da França, o ministro protestante André Trocmé e sua esposa, Magda, organizaram toda a comunidade de Le Chambon-sur-Lignon para que resgatasse judeus e outros refugiados durante a Ocupação, salvando milhares de pessoas. A coragem dos resistentes impressionou tanto o oficial no comando da Ocupação que ele se recusou, com grande risco para si mesmo, a permitir que o destacamento local da Gestapo atacasse os centros de resgate. Ao mesmo tempo, um evento altamente traumático — e grandemente instrutivo — estava ocorrendo em Berlim. No primeiro fim de semana de março de 1943, judeus com “parentes arianos” — principalmente maridos de mulheres não-judias — foram capturados para serem deportados para os campos de concentração. Contrariamente a todas as expectativas, as esposas e mães destes homens, num número próximo de seis mil mulheres, se reuniram em frente ao centro de detenção da Rosenstrasse, demandando o retorno de seus amados e se recusando a ir embora. Em poucos dias, a Gestapo se rendeu e soltou os homens, alguns dos quais tiveram que ser rapidamente resgatados dos campos aos quais já haviam sido enviados. Praticamente todos estes homens sobreviveram à guerra. Mais espantosamente ainda, como os oficiais da Gestapo em outros países tinham populações similarmente “misturadas” sob sua jurisdição e tinham Berlim como parâmetro, esta breve manifestação acabou por salvar dezenas de milhares de vidas (31). Em outras palavras, mesmo uma das mais fracas formas de não-violência — uma manifestação espontânea e breve feita por pessoas destreinadas, com pouco ou nenhum conhecimento sobre como a não-violência atua e sem um plano a ser implantado após sua ação imediata — funcionou efetivamente contra um dos regimes mais opressivos da história moderna. Com algum treinamento e estratégia, os resultados poderiam ter sido ainda mais impressionantes. Estes dois exemplos, particularmente o último, refutam uma objeção extremamente comum aos argumentos a favor da não-violência, de que ela nunca teria funcionado contra os nazistas. Na verdade, ela funcionou espetacularmente — quando foi utilizada. Quando tais sucessos ocorrem, há coisas que podemos fazer para manter o caráter nãoviolento da interação e nos assegurarmos de que nossos esforços não serão desperdiçados. Já notamos a importância de não acrescentarmos questões novas, o que transforma a conversa em uma luta de poder. Ainda mais importante, contudo, é evitarmos o triunfalismo semelhante ao de um jogador de futebol correndo pelo campo com os braços para o alto para comemorar um gol.


22 Durante as intensas negociações em Montgomery, Alabama, que seguiram o boicote dos ônibus que durou um ano, um advogado da companhia de ônibus da cidade manifestou sua preocupação de que ceder às demandas dos manifestantes abriria as portas para que eles “saiam por aí cantando a vitória que eles conquistaram sobre os brancos, e isso nós não vamos apoiar”. Refletindo sobre isso, King relembrou seus companheiros de que “através da nãoviolência nós evitamos a tentação de assumirmos a psicologia dos vencedores”. Esta psicologia pertence à antiga dinâmica do eu-contra-você que vê a vida como um conflito entre partes separadas, frequentemente sobre símbolos. A psicologia não-violenta, em contraste, evita transformar os sucessos em “vitórias” que polarizam e alienam os oponentes. Lembremo-nos da observação de Toynbee sobre o fato de Gandhi ter tornado impossível aos britânicos continuarem a governar a Índia, mas (ou melhor, parcialmente porque) ele tornou possível a eles saírem do governo sem rancor e sem humilhação. A ideia final que devemos manter em mente enquanto lidamos com o sucesso de uma ação não-violenta é que, por vezes, este sucesso deve ser visto meramente como um começo. É bem possível que a ação não tenha terminado. Muitos movimentos, na euforia do sucesso, ou simplesmente devido à exaustão, se dissolvem antes que o problema real seja solucionado — qual seja destruir a própria ideia da opressão, não apenas sua aplicação sobre um determinado grupo ou pessoa. Os registros atuais da não-violência estão repletos de reveses decepcionantes que se seguiram a sucessos evidentes: pensemos nas Filipinas, na Sérvia, no Egito, no Iêmen e na Ucrânia, para nomear alguns deles. Similarmente, ainda que a primeira Intifada na Palestina (1987-1993) tenha chegado a um fim com a assinatura dos acordos de Oslo, estes acordos ficaram bem aquém de significarem a liberdade para o povo palestino. Quase parece que, nesta atuação, nada falha mais do que o sucesso! Mas, antes que pulemos para esta conclusão, lembremos que estes movimentos, com frequência e compreensivelmente, não se completaram. Com vimos, isto pode ser evitado com um elemento construtivo robusto, conjugado com instituições alternativas prontas a se moverem em direção ao vácuo. Quase sempre, a persistência obstinada, aquilo que os ativistas latinoamericanos chamam de firmeza permanente, deve continuar mesmo para além da vitória. Se nos mantivermos fiéis a regras como a de “sem assuntos novos” e evitarmos a psicologia dos vitoriosos, nos posicionaremos de forma a desfrutar de um sucesso que apenas a nãoviolência pode nos proporcionar e que ninguém pode tirar de nós. A Importância (ou Não) dos Números Por ser a não-violência, afinal, uma força da alma, construída primariamente a partir do “poder pessoal” de um indivíduo, cada pessoa possui um papel mais central na ação não-violenta do que em outros tipos de ação relacionada a conflitos — especialmente a ação militar, que, na verdade, tenta negar o papel do indivíduo através do uso de uniformes, da doutrinação, de uma cadeia de comando restrita e assim por diante. Há momentos, é claro, em que os números ajudam. Um Ferdinand Marcos ou um Hosni Mubarak conseguem reprimir poucas centenas de pessoas reunidas em uma praça, mas não conseguem ignorar alguns milhões — especialmente se aquelas pessoas ainda permanecerem lá após a aplicação de seu poder de fogo contra elas. Durante a bem-sucedida insurreição nas Filipinas, o termo “poder do povo” foi cunhado para expressar o poder coletivo da população mobilizada. Mas um participante, o cardeal Jaime Sin, fez esta sagaz observação: “Foi incrível. Foram dois milhões de decisões independentes. Cada uma daquelas pessoas disse, em seu coração, ‘Eu farei isso’, e foi para as ruas” (grifo do autor)


23 (32). Em outras palavras, até mesmo o poder do povo é constituído por aquilo que chamo de poder pessoal, o desejo comprometido de indivíduos corajosos. Na não-violência — que, sempre que possível, se apoia na persuasão, e não na coerção — a clareza da mensagem pode substituir os números. Mesmo o grande escritor norte-americano Henry David Thoreau percebeu isso. Ao falar sobre a escravidão, ele disse: “De uma coisa estou certo: se mil homens, ou cem homens, se dez homens que pudessem ser assim chamados – se apenas dez homens honestos – ah, se um único homem honesto... deixasse de ter escravos, abandonando assim sua coparticipação, e por isso fosse preso na cadeia local, isso seria a abolição da escravidão na América. Pois não importa quão pequeno possa parecer o ponto de partida: o que é bem feito é para sempre.” (33) O fato é que tal indivíduo com visão e determinação frequentemente irá angariar apoiadores quando isso for necessário. Esta é parte do princípio que Gandhi chamou de lei da progressão, que ele ilustra com uma imagem vívida: “O Ganges não deixa seu curso em busca de tributários. Da mesma forma, o satyagrahi nunca abandona seu caminho, que é afiado como o gume de uma espada. Mas, assim como os tributários espontaneamente se juntam ao Ganges conforme ele avança, o mesmo ocorre com o rio que é a satyagraha.” (34) Assim, os números são importantes na satyagraha — exceto quando não são. E quando eles são importantes, a pessoa certa pode, quase sempre, reuni-los. Vale a pena manter isso em mente, porque quando não estamos muito cientes de nossa própria força (o que costuma acontecer), nós naturalmente buscamos por força nos números. Isso é natural, mas não deve nos distrair de explorar nosso poder interior. Enquanto os britânicos estavam preocupados com a Segunda Guerra Mundial, Gandhi sentiu que não poderia suspender a luta pela independência, mas, ao mesmo tempo, estava relutante em romper com seu princípio de não-constrangimento, que ele mencionou em relação a sua luta na greve ferroviária de 1913 na África do Sul. A solução? Ele indicou uma pessoa, seu seguidor confiável Vinoba Bhave, que era considerado seu sucessor espiritual, para desempenhar a desobediência civil e ir para a cadeia. Assim, os britânicos compreenderam que a satyagraha não estava sendo interrompida, mas tiveram que apreciar a cortesia de sua suspensão temporária enquanto eles estavam preocupados e não podiam dirigir toda sua atenção para a “conversa” sobre a libertação. Notem que essa tática não foi um símbolo vazio: Vinoba era uma pessoa real, não-cooperativa com as leis reais e pagando uma pena real para sinalizar ao regime que a luta pela liberdade não estava suspensa. De qualquer modo, ele era apenas uma pessoa. Os números são essenciais, por vezes, mas a clareza do propósito e o comprometimento são essenciais sempre. Se um movimento permanece no seu curso, pessoas se juntarão a ele quando forem necessárias. Quão Úteis são os Símbolos? Símbolos, como números, são de uso limitado na satyagraha — lembremos que satyagraha significa “agarrar-se à verdade”. E, assim como superestimamos a importância dos números, tendemos a fazer uso excessivo dos símbolos. Talvez o exemplo mais trágico de uso de símbolos que deu errado seja o massacre de 4 de junho de 1989 na Praça Tiananmen, em Beijing. Estudantes, trabalhadores e muitos apoiadores se reuniram em grande número para demonstrar sua solidariedade e seu desejo por mudanças. Contudo, por carecerem de uma estratégia a longo prazo, a praça em si e sua recusa a deixá-la se tornaram um símbolo de sua


24 desobediência e uma distração do objetivo legítimo, que era a reivindicação por reformas democráticas. Todos sabemos o resultado. Por outro lado, se os resistentes tivessem saído da praça e voltado para suas universidades e vilas para educar as pessoas e dar passos concretos e factíveis em direção à mudança, o movimento democrático na China e as corajosas pessoas que o representavam poderiam ainda estar vivos. Isso não significa que manifestações e ocupações não sejam nunca eficazes. Quando dezenas de milhares de manifestantes indígenas tomaram não-violentamente o congresso equatoriano, em 2000, houve um efeito notável, ainda que os líderes do movimento tenham sido vencidos e perdido poder em questão de dias. Dois anos depois, contudo, após uma organização de base extensa e discreta, um destes líderes foi eleito presidente. O levante do Equador foi similar ao da Praça Tiananmen, mas houve três diferenças que provavelmente contribuíram para o sucesso do primeiro. Primeiramente, os manifestantes não ocuparam um mero símbolo de poder, mas um lugar de poder. Em segundo lugar, eles agiram quando estavam fortes o suficiente para tomar o poder, não simplesmente reivindicá-lo. E terceiro, eles foram capazes de seguir em frente após o término da ocupação — ou seja, a ocupação teve um passado e um futuro e era parte de uma campanha maior, que poderia empregar uma variedade de táticas, tanto as confrontativas quanto outras. A tenacidade certamente pode fazer diferença entre o sucesso e o fracasso da não-violência, como de qualquer outra coisa. Esta persistência, no entanto, deve ser reservada para o real e apenas raramente para símbolos de algo real. Na famosa Marcha do Sal de 1930, Gandhi mostrou um grande domínio do controle da expressão simbólica, andando mais de duzentas milhas até o mar para romper com as leis injustas através da ação mais simples possível de colher uma pitada de sal. Mas frequentemente se esquece que ele se dirigiu ao mar real pra colher sal real — um ato que era construtivo e concreto — e, neste caso, ilegal. Similarmente, sua Grande Marcha na África do Sul, quinze anos antes, não foi apenas um protesto; ele tinha que mover três mil mineiros em greve e suas famílias, que agora não tinham casas, para seu ashram, ou comunidade espiritual. Novamente, a ação era tecnicamente contra a lei. Nenhuma destas marchas, em outras palavras, foi meramente simbólica; elas foram ações muito concretas que também tinham certa ressonância simbólica. Assim, ainda que símbolos possam realçar ou nascer de ações concretas, eles nunca devem tomar o lugar delas. A Não-Violência Pode ser Mal Utilizada? A não-violência, quando praticada corretamente, não pode ser mal utilizada. Infelizmente, contudo, o nome não-violência pode sofrer abusos — e isso acontece com frequência. Quando um grupo de proprietários de armas na Califórnia se referiu a sua recusa a registrar seus rifles de assalto com uma “desobediência civil”, por exemplo, eles esqueceram que possuir uma arma mortal constitui o extremo oposto da civilidade ou da não-violência. É também possível que táticas não-violentas — ou melhor, táticas que também encontram espaço na não-violência — sejam usadas em um contexto violento. Em 1991, manifestantes tentaram entrar no estado de Gujarat, na Índia, para protestar contra a construção de barragens no rio Narmada, um processo que já havia alagado centenas de vilas e tido consequências ambientais e sociais destrutivas. Mas os oficiais do governo gujarati, que tinham suas próprias razões escusas para quererem as barragens, convocaram alunos das escolas locais para barrarem a marcha, enquanto cantavam canções gandhianas!


25 É por isso que é tão importante impedir que as pessoas que ainda acreditam na violência turvem as águas de um movimento não-violento. Nas manifestações atuais ou em outras ações não-violentas, isso é tão importante quanto sermos capazes de nos mantermos firmes em nossos objetivos essenciais, enquanto abrimos mão de todo o resto. Durante o fundamentalmente não-violento movimento Occupy, por exemplo, houveram aqueles que acreditaram que seria OK usar “um pouco” de violência — quebrando uma vidraça aqui ou pondo fogo numa lixeira ali — em nome do que chamaram de “diversidade de táticas”. Mas essa é uma corrupção da não-violência. Mesmo quando se tira a questão da arena moral e se olha para a questão da efetividade, especialmente a longo prazo, fica claro que mesmo “um pouco” de violência torna um movimento não-violento ambíguo e, portanto, fraco. Em outras palavras, a diferença entre violência e não-violência não é de “diversidade”, como a diferença entre pardais e curruíras. Ao contrário, elas são opostas e têm efeitos opostos. E não-violência, de qualquer forma, não é uma tática, mas um poder de vida. O Papel do Sofrimento na Satyagraha No campo de concentração de Auschwitz, em 1942, dez prisioneiros poloneses foram deixados para morrer de fome em uma cela subterrânea, pois um outro havia escapado. Para surpresa de todos, um novo prisioneiro se apresentou e pediu para morrer no lugar de um daqueles homens desafortunados. Era o padre Maximilian Kolbe, agora conhecido como o santo de Auschwitz. Ainda que ele tenha sido, de fato, morto alguns dias depois, seu sacrifício inspirador fez uma enorme diferença no ânimo dos prisioneiros, provavelmente salvando centenas que, de outra maneira, teriam sucumbido ao desespero e, assim — naquelas condições insuportáveis — à morte. No momento em que um conflito requer satyagraha (ou seja, no momento em que atinge o estágio 2 de nossa figura no capítulo 3), algumas pessoas já devem estar sofrendo, mas seu sofrimento, suportado com relutância, não está despertando os corações de seus oponentes. De fato, se deixada como está, uma situação injusta pode passar a parecer normal, apenas um exemplo de como a vida é, ou mesmo culpa da própria vítima. Consideremos os sofrimentos prolongados dos palestinos nos territórios ocupados, os albaneses em Kosovo na década de 1990, ou os milhões de pessoas vivendo em pobreza desesperada atualmente. Estas pessoas estão entre as inúmeras vítimas desafortunadas da violência estrutural — sofrimento imposto por estruturas sociais ou políticas injustas e não por forças e violência externas, ainda que com frequência estas estejam presentes também. Quando acontece de não podermos mais aceitar tamanha opressão, temos a opção de nos tornarmos um para-raios para o sofrimento que ela está impondo, com a finalidade de despertar as outras pessoas e acabar com a situação opressiva. A ação do padre Kolbe é um exemplo disso. Da mesma forma, os estudantes envolvidos na malfadada conspiração da Rosa Branca montada contra o regime nazista em Munique no auge da Segunda Guerra Mundial esperavam que o risco que estavam assumindo tivesse um efeito similar, quando distribuíram panfletos convocando a resistência passiva, ainda que não soubessem direito com o que tal resistência se parecia e provavelmente não tivessem percebido ela é apenas um dos aspectos da não-violência real, ou satyagraha. Eles sabiam que estavam enfrentando a morte quase certa — e, de fato, apenas um deles escapou a esse destino — mas argumentaram, “melhor um fim aterrorizante do que um terror sem fim”. Este é o cálculo moral que podemos ter que fazer, em casos de opressão extrema.


26 O Jejum na Satyagraha A morte é menos provável nos conflitos não-violentos do que nos violentos, mas como padre Kolbe e os conspiradores da Rosa Branca nos mostraram, por vezes é necessário colocarmos nossas vidas em risco. O jejum, especialmente sem prazo determinado, ou “jejum até a morte”, como Gandhi o chamava, é uma das formas que esse remédio drástico pode tomar. Jejuar como parte de um ato de persuasão no estágio 3 de um enfrentamento não-violento, especialmente se o jejum puder terminar na morte de alguém, pode ser um modo poderoso de despertar as demais pessoas para a injustiça de uma situação e o desejo de assumir qualquer sofrimento para corrigi-la. No entanto, este método pode coagir, ao invés de persuadir, tornando-o contrário ao espírito da satyagraha. Desta forma, o jejum como um ato de satyagraha (e não como um ato de autopurificação) pode ser adotado apenas como último recurso e, mesmo assim, sob condições muito específicas. •

Primeiramente, o jejuador deve estar certo de que ele ou ela é a pessoa certa para fazer tal sacrifício. Isso requer controle de seus próprios desejos, mesmo do desejo de viver, e não deve ser motivado pelo ódio ao oponente. Segundo, a ação deve ser dirigida às pessoas que podem ser alcançadas por tal ato. Se elas não tiverem nem sequer esse grau de preocupação ou não entenderem a lógica do sacrifício (o que é, com frequência, o caso no Ocidente), jejuar é uma técnica equivocada. Terceiro, o jejum deve ser empregado para atingir um objetivo realista. Um desejo geral pela “paz mundial” ou algo semelhante, ainda que seja nobre, não é atingível através do jejum se, como na maioria dos casos, os jejuadores não tiverem ganho, previamente, um lugar poderoso na imaginação de milhões de pessoas. Quarto, o jejum só deve ser realizado no contexto de uma campanha verdadeiramente não-violenta. O jejum dos prisioneiros do Exército Republicano Irlandês na prisão de Long Kesh, por exemplo, não cumpria nenhum destes critérios; assim, apesar da sua coragem e sacrifício, dez pessoas perderam suas vidas sem resultar em nenhuma mudança social visível. Finalmente, lembremos que o jejum não deve ser cogitado até que todas as outras opções tenham se esgotado.

Quando estes requisitos estão presentes, jejuar pode resultar em maravilhas. Gandhi era um mestre famoso desta técnica. Seu “jejum épico” em 1932 fez com que os britânicos revogassem a separação de eleitorados entre as castas hindus e seu jejum do “milagre de Calcutá”, em 1946, acabou com uma revolta popular que a polícia e o exército foram incapazes de controlar. Mesmo assim, Gandhi veio a perceber que, no final, alguns de seus jejuns haviam sido coercitivos e, portanto, de seu ponto de vista, falhos. Assumindo o Controle Na satyagraha, não buscamos o sofrimento por ele mesmo, nem buscamos nos tornar mártires. Mas compreendemos a profunda diferença entre o sofrimento passivo do qual milhões de pessoas são vítimas, sem nenhum efeito notável, e a disponibilidade de nos sacrificarmos, como fez o padre Kolbe, por uma causa maior — quando não há outra forma. É este último tipo de sofrimento, que King chamou de “sofrimento imerecido”, que engaja o poder da não-violência.


27 Embates não-violentos, especialmente num conflito em estágios finais, podem ser duros. Então, é bom nos lembrarmos de que, no longo prazo, o sofrimento assumido voluntariamente em um conflito não-violento será bem menor que o sofrimento causado tanto pela aceitação de uma situação injusta quanto pelo uso da violência para enfrentá-la. Por exemplo, ainda que por volta de mil pessoas tenham morrido durante a luta pela independência da Índia, particularmente no massacre de Amritsar, em 1919, milhões de pessoas morreram como vítimas passivas, como as que pereceram durante a “fome de Bengali”, em 1943, quando quase toda a produção de arroz do país foi confiscada pelo exército britânico. Da mesma forma, como apontou King, mais pessoas foram mortas durante seis noites de tumulto em Detroit do que durante seis anos de desobediência civil no Sul dos Estados Unidos. Há duas regras de ouro em relação ao sofrimento, quando ele se torna inevitável. A primeira é: quanto mais cedo respondermos a um conflito ativa e não-violentamente, menos teremos que sofrer para resolvê-lo. E a segunda: quanto mais estamos preparados para sofrer voluntariamente, menos teremos que sofrer involuntariamente. *** SEIS O Que Aprendemos? A não-violência é uma capacidade inata da natureza humana. Não é um mandamento moral; muito menos uma abstração filosófica. A não-violência, ao menos a que apresentei aqui, é uma energia que opera em e com todos os seres vivos. Ela pode ser compreendida, prevista e controlada, como muitas outras forças na natureza. Provavelmente, a coisa mais importante que precisamos saber sobre ela é que ela não é a ausência de algo, mas sim uma força positiva. É a força do amor, ainda que, por vezes, possa não aparecer desta forma. O movimento pelos direitos civis nos EUA, King explicou, não causou rompantes de raiva, mas “expressou raiva sob disciplina para obter o efeito máximo”. Essa disciplina de conservação da raiva não é um ato de repressão. Quando a aplicamos corretamente, ela permite que a raiva seja convertida em um poder criativo. A não-violência é o poder liberado pela conversão de um impulso negativo. Esta transformação de energias negativas, ou disruptivas, dentro dos seres humanos não é apenas um processo de crescimento individual; ela pode ter um efeito assombroso sobre um oponente — um efeito ao qual ameaças e armas não podem se comparar. Durante a bemsucedida Revolução Popular das Filipinas, em 1986 — que é apenas um exemplo dentre os vários que podemos citar — soldados desafiaram as ordens de seus superiores e se recusaram a atirar nos manifestantes pacíficos. Em muitos casos, eles foram vistos chorando e desertaram (35). Ao observar este efeito, Kenneth Boulding, um dos fundadores da pesquisa moderna sobre a paz, cunhou o termo “poder integrativo”, que ele comparou com o “poder de ameaça” e o “poder de troca” (36). O poder integrativo é aquele que é libertado quando assumimos um compromisso de prestarmos testemunho à verdade de nossa interconexão, mesmo quando nosso oponente está reagindo violentamente a essa verdade e, talvez, a nós mesmos. O oponente vê a si mesmo como radicalmente separado de nós, enquanto nós podemos ver a unidade que ele perdeu de vista e, assim, podemos ajuda-lo a vê-la também. O resultado,


28 Boulding aponta, é que ambas as partes terminam mais próximas. Quando controlamos os impulsos de divisão dentro de nós para esse propósito, “controlar” não significa “reprimir”. Esta dinâmica era bem familiar para Gandhi: “Tenho aprendido através da amarga experiência a lição suprema de controlar minha raiva; da mesma forma que o calor conservado se transmuta em energia, nossa raiva controlada pode ser transmutada em um poder que pode mover o mundo.” (37) King adicionou mais clareza a esse processo de transmutação em sua afirmação citada acima (e digna de ser repetida), sobre os ativistas dos direitos civis controlarem a raiva e a liberarem sob disciplina para obterem o efeito máximo. Visto desta forma, se torna intrigantemente claro que o poder da não-violência está latente dentro de nós, esperando para ser liberado, se restringirmos a tendência a agirmos a partir de um lugar de raiva ou medo. Se definirmos a não-violência como sendo a força liberada pela conversão de um impulso negativo, como o medo ou a raiva, que destroçaria as pessoas se expressado de forma crua, podemos, inversamente, definir estas forças negativas e suas expressões como violência. Um Modo de Ser Então, a não-violência não é uma abstração moral ou filosófica. Ela também não é um conjunto de táticas, um simples método. Pessoas lutando por sua liberdade causaram mudanças impressionantes apenas se negando a pegar em armas. Como um manifestante iemenita disse a um amigo meu, em 2012, “Eles não podem nos vencer, porque deixamos nossas armas em casa!” Mas mudanças mais profundas e duradouras acontecem quando deixamos nosso ódio em casa. Uma vez que tenhamos dominado esse truque — e espero que esse livro tenha oferecido alguma compreensão sobre como fazê-lo — poderemos ver a violência em nosso mundo atual sob uma luz mais otimista e desafiadora. Toda essa raiva, seja ela alimentada pelos meios de comunicação, pela imensa desigualdade de nossa economia ou por qualquer outra coisa, é matéria-prima para a não-violência! Expressá-la em sua forma crua seria um desperdício. Muitas pessoas pensam na não-violência como uma tática a ser adotada quando elas não têm uma escolha melhor, porque qualquer violência da parte delas seria combatida com uma repressão feroz, ou porque elas simplesmente não têm as armas necessárias, e se reservam o direito de retornar à violência se não obtiverem sucesso. Sejam quais forem os méritos desta abordagem — que é sempre melhor e pode requerer mais coragem que a violência — eu espero ter deixado claro que iremos muito mais longe se nos apegarmos à não-violência como um princípio, um modo de ser no mundo. Nesta abordagem, a não-violência não é o recurso dos fracos pois, na verdade, ela solicita um tipo incomum de força; não se trata de reprimir algo, mas do engajamento de uma força positiva. Quanto mais somos capazes de agir — e ser — sem ódio, quanto mais somos capazes de resistir a algo que alguém está fazendo sem desejar a esta pessoa nenhum mal, quanto mais somos capazes de “liquidar o antagonismo, não os antagonistas”, nas palavras de Gandhi (38), mais disponível esse poder ou força se torna. De uma forma que nós ainda não entendemos, a atitude e a visão de mundo baseadas na interconexão libertam energias que levam a mudanças mais profundas e mais permanentes. Dizer que a não-violência não é meramente uma estratégia não quer dizer que estratégias não sejam necessárias. Como vimos, isso está bem longe da verdade. Mas há uma característica


29 notável da não-violência que não pode ser reivindicada pelo militarismo ou pela violência: a manutenção do princípio é, também, uma estratégia eficiente. Ao contrário da violência, que carrega a ideia desesperada de que meios errados podem levar a um fim correto, na nãoviolência nós não precisamos escolher entre a coisa certa e a coisa mais eficiente a fazer. A longo prazo, elas são a mesma coisa. Se renunciarmos a uma oportunidade de humilhar alguém, por exemplo, simplesmente por acreditarmos no princípio de que todo mundo merece respeito, teremos uma estratégia quase infalível para trazer essa pessoa para mais perto de nós. Como afirma o ganhador do prêmio Nobel da Paz Adolfo Perez Esquivel, “a ação não-violenta implanta, antecipadamente e dentro do próprio processo de mudança em si, os valores para os quais ela finalmente nos conduzirá. Assim, ela não fomenta a paz através da guerra. Ela não busca construir destruindo.” (39) Um Movimento Varrendo o Mundo Em 1939, Gandhi escreveu: “Meu otimismo reside na minha crença nas infinitas possibilidades do indivíduo de desenvolver a não-violência. Quanto mais a desenvolvemos em nosso próprio ser, mas contagiosa ela se torna, até que toma nossos arredores e assim, gradualmente, ela poderá varrer o mundo.” (40) Nos anos subsequentes a essa frase de Gandhi, ainda que tenham sido violentos, o mundo também começou a testemunhar tal despertar. De fato, há estimativas que dizem que mais da metade da população do mundo hoje vive em uma sociedade que foi significantemente afetada por um movimento não-violento (41). A história moderna da não-violência tem sofrido várias mudanças qualitativas que são, potencialmente, de imenso auxílio para que ela possa “varrer o mundo”. Primeiramente, estamos aprendendo que cada cultura tem seus modos locais de responder criativamente ao conflito e estas abordagens podem ser mobilizadas no contexto de um enfrentamento nãoviolento prolongado. Por exemplo, populações indígenas, que desempenham um papel crucial nas lutas ambientais, estão começando a se organizar e a formar redes entre elas. Em segundo lugar, hoje sabemos que a não-violência pode se sustentar sem que haja um líder carismático, se não houver alguém assim disponível, o que é o caso na maior parte das vezes. No entanto, os movimentos podem ser ajudados materialmente pela intervenção de equipes de paz ou o auxílio de um terceiro experiente. Além disso, e talvez este seja o desenvolvimento mais importante de todos, as pessoas estão aprendendo como nunca antes a ensinar a outras o que elas aprenderam a partir dos sucessos e das falhas de seus próprios movimentos. Por exemplo, o Centro para Ações e Estratégias Não-Violentas Avançadas enviou veteranos da bem-sucedida operação Otpor, que depôs o presidente Slobodan Milosevic em 2000, para o Egito e outros locais que enfrentavam questões semelhantes. Em terceiro lugar, a maioria dos movimentos que foram, de uma forma ou de outra, nãoviolentos, desde os anos de Gandhi e King — e eles são muitos — têm sido quase exclusivamente obstrutivos, como a cascata de insurreições chamada de “revoluções das cores” na Europa Oriental e a Primavera Árabe que se seguiu. Poucas têm sido quase exclusivamente construtivas; o exemplo maior e mais dramático disso é o MST, ou Movimento dos Trabalhadores Sem Terra, no Brasil, que oferece terras e sustento para dezenas de milhares de famílias e cria comunidades no processo — mas ainda não encontrou um meio criativo de lidar com a resistência dos proprietários de terra. Com poucas exceções, como a primeira Intifada na Palestina, que foi de 1987 a 1993, não vimos uma campanha longa que, como a luta indiana pela independência, pudesse operar em ambos os modos e tivesse mecanismos para decidir estrategicamente quando ser obstrutiva e quando ser construtiva.


30 De qualquer modo, há uma crescente consciência desta possibilidade, e quando este tipo de movimento acontecer mais uma vez, numa progressão que vai do empoderamento pessoal até a elaboração de um programa construtivo, chegando à satyagraha, se necessária (e, provavelmente, ela será), poderemos começar a ver o poder total da não-violência para mudar o mundo. Finalmente, a ciência moderna tem mudado drasticamente seu foco, de uma ênfase no materialismo racional (e na separatividade e falta de sentido que tal perspectiva implica) para um panorama mais robusto da natureza humana e do mundo, que é surpreendentemente consistente com as sabedorias tradicionais atemporais. Esta visão de empatia e cooperação inatas, confirmada tanto pelas sabedorias quanto pela ciência, abre caminho para uma história cultural da qual a não-violência fará parte integrante — da mesma forma que, hoje em dia, a violência faz parte integrante, ainda que como uma visitante indesejada. “Aqueles que se sentirem atraídos pela não-violência”, escreveu Gandhi, “devem se juntar ao experimento”, e se torna mais claro a cada ano que passa que nada menos do que a sobrevivência da vida na Terra poder estar correndo risco. Espero que o vislumbre da história e do potencial da não-violência que ofereci neste livro, ainda que breve, sirva para mostrar que, ainda que ele peça por trabalho e sacrifício, podemos usar este poder para redirecionar o destino humano para um objetivo maior. Este é o principal desafio de nosso tempo.


31 Destaques: uma referência útil

“A não-violência é a lei da nossa espécie.” [página 1] “O que satyagraha faz, nestes casos, não é suprimir a razão, mas libertá-la da inércia e estabelecer sua soberania sobre o preconceito, o ódio e outras paixões mais básicas. Em outras palavras, se pudermos colocar de uma forma paradoxal, ela não escraviza, mas impele a razão a se tornar livre.” [página 7] “Não devemos nunca tentar humilhar ou aceitar humilhação, pois ela prejudica a todos.” [página 8] “Quanto mais respeitamos a humanidade de nosso oponente, mais efetivamente podemos nos opor à sua injustiça.” [página 9] “A real não-cooperação é não-cooperação com o mal, não com aquele que o comete.” [página 9] “Já que toda violência começa com a falha ou recusa de considerar a outra pessoa como totalmente humana, a atuação mais profunda da não-violência deve envolver o (re)despertar da humanidade do oponente.” [página 9] “A meditação é um grande instrumento de humanização.” [página 10] “A não-violência é o poder liberado pela conversão de um impulso negativo.” [página 26] “Tenho aprendido através da amarga experiência a lição suprema de controlar minha raiva; da mesma forma que o calor conservado se transmuta em energia, nossa raiva controlada pode ser transmutada em um poder que pode mover o mundo.” [página 28] “Não nos esqueçamos de que nossa libertação pessoal da raiva e do medo advinda da prática da não-violência não é um benefício pequeno.” [página 10] “As coisas de fundamental importância para as pessoas não são asseguradas apenas pela razão, mas devem ser conquistadas através do sofrimento... Se quisermos que algo realmente importante seja feito, não devemos meramente satisfazer a razão, devemos mover também o coração.” [página 12] “Seja construtivo sempre que possível e obstrutivo quando necessário.” [página 19] “Gandhi tornou impossível aos britânicos continuarem governando a Índia, mas tornou possível a eles deixarem o governo sem rancor e sem humilhação.” [página 20] “As pessoas experimentam a não-violência por uma semana, e quando ela não ‘funciona’, elas voltam à violência, que não tem funcionado por séculos.” [página 20] “Os números são essenciais, por vezes, mas a clareza do propósito e o comprometimento são essenciais sempre.” [página 23] “Ainda que símbolos possam realçar ou nascer de ações concretas, eles nunca devem tomar o lugar delas.” [página 24] “Quanto mais cedo respondermos a um conflito ativa e não-violentamente, menos teremos que sofrer para resolvê-lo.” [página 27]


32 “Quanto mais estamos preparados para sofrer voluntariamente, menos teremos que sofrer involuntariamente.” [página 27] “Na não-violência nós não precisamos escolher entre a coisa certa e a coisa mais eficiente a fazer.” [página 29]


33 Notas

1. [Nota do autor] Gandhi estava, essencialmente, traduzindo uma frase comumente presente nos épicos e em outras obras de literatura indianos: ahimsa paramo dharma, “não-violência é a lei suprema”, o princípio fundamental que sustenta o universo. 2. Christian Peacemakers Teams, Year in Review February, 2010. 3. YOUNG, Andrew. A Way Out of No Way. Nashville: Thomas Nelson, 1996. 4. [Nota do autor] Muitas destas evidências estão reunidas por Jeremy Rifkin em The Empathic Civilization. New York: Penguin/Tarcher, 2009 5. [Nota do autor] Muitas destas evidências estão reunidas por Jeremy Rifkin em The Empathic Civilization. New York: Penguin/Tarcher, 2009 6. KING Jr. Martin Luther. Stride toward freedom: the Montgomery story. New York: Harper & Brothers, 1958. 7. [Nota do autor] Veja, por exemplo, o documentário de Gene Sharp Where There Is Hatred (New York: Maryknoll World Productions, 1990) ou Waging Nonviolent Struggle Boston: Porter Sargent, 2005 8. [Nota do autor] Leitores interessados podem encontrar muitas táticas na parte 2 do trabalho clássico de Gene Sharp, The Politics of Nonviolent Action (Boston: Porter Sargent, 1973), ainda que, de um ponto de vista principiológico, algumas de suas 198 táticas não se adequem perfeitamente, como as que envolvem envergonhar um oponente. Para situações menos dramáticas que enfrentamos na vida, as técnicas da Comunicação Não-Violenta apresentadas no livro de Marshall Rosenberg, Comunicação Não-Violenta: técnicas para aprimorar relacionamentos pessoais e profissionais (São Paulo: Ágora, 2006), são muito úteis. 9. GANDHI, M.K. Hind Swaraj or Indian Home Rule. Ahmedabad: Navajivan, 1938. p.70 10. GANDHI, M.K. Satyagraha in South Africa. Ahmedabad: Navajivan, 1928. p.433 11. LYND, Staughton; LYND, Alice. Nonviolence in America. New York: Orbis, 1995. p.399 12. PARLAMENTO das Religiões do Mundo, Declaração de Ética Mundial. Chicago, 1993. p.5. Disponível em: https://www.weltethos.org/1-pdf/10stiftung/declaration/declaration_portuguese.pdf 13. BOSE, N.K. Selections from Gandhi. Ahmedabad: Navajivan, 1948. p.221 14. Hadice de Jábir ibn Abdullah 15. GANDHI, M. K. Collected Works of Mahatma Gandhi. 16. SUMMY, Ralph. Nonviolence and the case of the extremely ruthless opponent. Pacifica Review 6, n.1, maio 1994, p.1-29 17. [Nota do autor)] Estas cinco práticas são a base de uma campanha estratégica completa, baseada em princípios não-violentos, oferecida com o nome de Metta Roadmap em mettacenter.org/roadmap


34 18. [Nota do Autor] Recomendamos a meditação sobre citações, conforme ensinada por Sri Eknath Eswaran. Veja eswaran.org ou nosso e-book, Meditation for Peacemakers, em mettacenter.org/research.education/publications 19. MALKIN, John, Engaged Budhism, Peace Begins with You. Shambala Sun, julho 2003. 20. GANDHI, M.K. Young India. 11 de maio de 1931 21. 21. NAYAR, Pyarelal; NAYAR, Sushila. In Gandhiji’s Mirror. Oxford: Oxford India Series, 2004. p.213. 22. O autor faz referência ao The Robber’s Cave Experiment, descrito em SHERIF, Muzafer. In Common Predicament: social psychology of intergroup conflict and cooperation. Boston: Houghton Mifflin , 1966. [Nota da tradutora] Pode-se encontrar referência em português ao experimento em YALOM, Irvin; LESZCZ, Molyn. Psicoterapia de Grupo. Porto Alegre: Artmed, 2006.p.73-74 23. 23. NAYAR, Pyarelal; NAYAR, Sushila. In Gandhiji’s Mirror. Oxford: Oxford India Series, 2004. p.268 24. DAJANI, Souad. Nonviolent Resistance in the Occupied Territories: a critical reevaluation, In: ZUNES, Stephen et al. (ed). Nonviolent Social Movements: a geographical perspective. Malden: Blackwell, 1999. p.53-54 25. [Nota da tradutora] Para informações sobre a situação da justiça restaurativa no Brasil, sugere-se consultar a resolução 225 do Conselho Nacional de Justiça, que normatiza a prática no país: http://www.cnj.jus.br/images/atos_normativos/resolucao/resolucao_225_31052016_ 02062016161414.pdf 26. India News, 01out1994, p.11 27. [Nota do autor] Para uma discussão completa sobre o que chamo de “funcionar” versus funcionar, veja o capítulo 4 do livro de Michael N. Nagler, The Search for a Nonviolent Future, Novato: New World Library, 2004. 28. TOYNBEE, Arnold. India’s Contribution to World Unity. Azad Memorial Lectures, 1960. 29. Citado em KELLY, Petra K. Thinking Green! Essays on environmentalism, feminism and nonviolence. Berkeley: University of California, 1994. 30. CHENOWETH, Erica; STEPHAN, Maria J. Why Civil Resistance Works: the strategic logic of nonviolent conflict. New York: Columbia University Press, 2011). 31. STOLTZFUS, Nathan. Resistance of the Hearth. New York: W.W.Norton, 1996. [Nota do autor] Eu não recomendo o filme baseado nesta história [As Mulheres de Rosenstrasse], pois ele ignora a efetividade da não-violência em favor de uma sexualidade ao estilo de Hollywood. 32. ZUNES, Stephen; KURTZ, Lester R.; ASHER, Sarah Beth (ed). Nonviolent Social Movements, P. 151. 33. THOREAU, Henry David. A Desobediência Civil. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. p.18 34. GANDHI, M.K. Satyagraha in South Africa. Ahmedabad: Navajivan Publishing House, 1950.


35 35. ZUNES, Stephen. The Origins of People Power in the Philipines. In: ZUNES, Stephen et al (ed). Nonviolent Social Movements. p.129-157. 36. BOULDING, Kenneth. The Three Faces of Power. Newbury Park: Sage, 1989. 37. GANDHI, M.K. Young India. 15set1920. 38. Veja nota 13. 39. ESQUIVEL, Adolfo Perez. Christ in a Poncho: testimonials of the nonviolent struggles in Latin America. New York: Orbis, 1984. p.127 40. GANDHI, M.K. Harijan. 28jan1939. 41. DEATS, Richard. The Global Spread of Active Nonviolence. In: WINK, Walter. Peace is the Way. Maryknoll: Orbis, 2000. [Nota do autor] E muito mais aconteceu a partir de então!


36 Para Aprofundar o Aprendizado Livros Ackerman, Peter; DuVall, Jack. A Force More Powerful: a century of nonviolent conflicts. New York: St. Martin’s Press, 2000. Bartkowsky, Maciej. Recovering Nonviolent History: civil resistance in liberation struggles. Boulder: Lynn Rienner, 2013. Chenoweth, Erica; Stephan, Maria J. Why Civil Resistance Works: the strategic logic of nonviolent conflict. New York: Columbia University Press, 2011. Easwaran, Eknath. Gandhi the Man. Petaluma: Nilgiri Press, 1997. _______________ Nonviolent Soldier of Islam: a man to match his mountains – Badshah Kahn. Petaluma: Nilgiri Press, 1984. Gandhi, M. K. All Men Are Brothers. Ahmedabad: Navajivan, 1960. ___________ An Autobiography: the story of my experiments with the truth. Boston: Beacon Press, 1927. ___________ Hind Swaraj or Indian Home Rule. Ahmedabad: Navajivan, 1938. ___________ Satyagraha in South Africa. Ahmedabad: Navajivan, 1950. ___________ Vows and Observances. Berkeley: Berkeley Hills, 1999. Gandhi, Rajmohan. Gandhi, His People, and the Empire. Berkeley: University of California, 2008 (essa é, provavelmente, a melhor biografia disponível) King, Martin Luther, Jr. A Testamento f Hope: the essential writings and speeches of Martin Luther King, Jr. São Francisco: Harper, 1991. Lynd, Staughton; Lynd, Alice. Nonviolence in America: a documentary story. New York: Orbis, 1995. Mahoney, L.; Eguren, L. Unarmed Bodyguards: international accompaniment for the protection of human rights. West Hartford: Kumarian, 1997. McManus, Philip; Schlabach, Gerald. Relentless Persistence: nonviolent action in Latin America. Eugene: Wipf and Stock, 2004. Nagler, Michael. The Search for a Nonviolent Future. Novato: New World Library, 2004. Prabhu, R. K.; Rao, U. R. The Mind of Mahatma Gandhi. Ahmedabad: Navajivan, 1960 (considero essa a melhor coletânea disponível). Roberts, Adam; Ash, Timoty Garton. Civil Resistance and Power Politics: the experience of nonviolent action from Gandhi to the present. Oxford: Oxford University, 2009. Sharp, Gene. The Politics of Nonviolent Action. Boston: Porter Sargent, 1973. Stoltzfus, Nathan. Resistance of the Heart: intermarriage and the Rosenstrasse protest in nazi Germany. New York: Norton, 1996. Wink, Walter. Peace Is the Way: writings on nonviolence from the fellowship of reconciliation. New York: Orbis, 2000.


37 Zunes, Stephen; Kurtz, Lester R.; Asher, Sarah Beth. Nonviolent Social Movements: a geographical perspective. Malden: Blackwell Publishers, 1999. Manuais de Treinamento e Organização Galtung, Johan. Transcender e Transformar: uma introdução ao trabalho de conflitos. São Paulo: Palas Athena, 2006. Hunter, Daniel. Direct Action Manual. Createspace Independent Publishing Platform: 2012. Moyer, Bill. The Movement Action Plan: a strategic framework describing the eight stages of successful social movements. 1987. Disponível online em: http://historyisaweapon.com/defcon1/moyermap.html

Moyer, Bill; McAllister, JoAnn; Finley, Mary Lou; Soifer, Steven. The MAP Model for Organizing Social Movements. Gabriola Islands: New Society Publishers, 2001. Táticas Além da lista clássica de Gene Sharp, veja também o livro de Andrew Boyd e Richard Miller: Beautiful Trouble: a toolbox for Revolution. New York: OR Books, 2012. Assim como no trabalho de Sharp, a maioria das táticas, embora não todas elas, podem ser aplicadas com intenções não-violentas. Videos Documentários sobre levantes não-violentos recentes A Force More Powerful. York Zimmerman, 2000. Pesquisa em três partes sobre vários movimentos-chave de resistência e insurreição. Filme e livro disponíveis no International Center for Nonviolent Conflict. Bringing Down a Dictator. York Zimmerman, 2001-2002. Sobre a deposição do presidente Milosevic pelo levante estudantil Otpor em 2001, na Sérvia. Pray the Devil Back to Hell. Passion River Films, 2009. História inspiradora sobre o bemsucedido levante feminino na Libéria, que deu o prêmio Nobel a Leemah Gbowee e outras. E, finalmente [embora não seja, obviamente, um documentário] Gandhi. Columbia Pictures, 1982. Tocante e, em grande parte, muito acurado. Na Internet Além de empreendimentos privados como gandhiserve.org e gandhi-foundation.net, o governo da Índia recentemente publicou online um site com a vasta coleção quase completa de escritos de e sobre Gandhi, em gandhiheritageportal.org. A fonte mais completa sobre campanhas não-violentas, atuais e passadas, é o Global Nonviolent Action Database, nvdatabase.swarthmore.edu, hospedado nos servidores do Swarthmore College, sob a direção do professor George Lakey. Blogs e escritos regulares sobre não-violência estão disponíveis em waggingnoviolence.org, popularresistance.org, fnvw.org (Friends for a Nonviolent World), gandhiking.ning.com (Martin Luther King, Jr Research and Education Institute, Stanford) e mettacenter.org.


38

Sobre o Autor

Michael Nagler é um dos acadêmicos e defensores da não-violência mais respeitados mundialmente. É professor emérito de Literatura Clássica e Comparada na Universidade da Califórnia, Berkeley, onde fundou o Programa de Estudos Sobre Paz e Conflito, hoje um dos maiores de sua categoria na América do Norte. Também é fundador e presidente do Metta Center for Nonviolence e autor de Our Spiritual Crisis e The Search for a Nonviolent Future, que receberam o American Book Award de 2002 e foram traduzidos para várias línguas. Seus escritos foram publicados no The Wall Street Journal e outros, e ele tem palestrado e escrito sobre não-violência, meditação e a paz mundial nos últimos trinta anos. Faz parte do conselho do Peace Workers e está entre os primeiros fundadores da Nonviolent Peaceforce, atualmente um serviço global de manutenção da paz através da não-violência que atuou em Mindanao, no Sri Lanka, no Sudão do Sul e em muitos outros locais perigosos para “proteger a vida e promover os direitos humanos” como uma terceira parte imparcial comprometida com os métodos não-violentos. O principal trabalho de Michael hoje, contudo, é com o Metta Center for Nonviolence, que cofundou em 1982. O Metta produz livros, filmes, publicações em blogs e outros materiais, assim como desenvolveu e mantém o modelo Roadmap para uma estratégia não-violenta integrada, conduzindo retiros e transmitindo o programa de rádio Peace Paradigm Radio quinzenalmente a partir de Point Reyes, Califórnia. Entre outros prêmios, Michael recebeu o Prêmio Internacional Jamnalal Bajaj pela Promoção de Valores Gandhianos Fora da Índia, em 2007. Ele é aluno de Sri Eknath Easwaran, fundador do Centro de Meditação Blue Mountain. Michael mora no ashram do Centro, em Marin County, desde 1970 e conduz os programas sobre meditação sobre citações.


39


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.