Um diário partilhado entre dois amigos (Zé Tavares, em Tondela, Sara Figueiredo Costa, em Lisboa), durante osEncerrado dias de clausura e agitação da COVID-19. Diário
Quando tudo amainar, talvez tenhamos de pensar seriamente em discutir o reforço do investimento no Serviço Nacional de Saúde - todos, mesmo aqueles que acham que a política é para os outros. 16 março 2020
Os relatos de médicos, enfermeiros e outros profissionais de saúde que vão chegando de Itália assustam. Os equipamentos de protecção individual não chegam para quem está na linha da frente do combate. Os ventiladores não chegam para quem precisa de ajuda para respirar. Cada vez há mais pessoas doentes. Há médicos a terem de escolher quem vive e quem acabará por morrer. Por cá, parece que ainda estamos longe disso, mas se não conseguirmos inverter a curva do crescimento exponencial do número de infectados – ficando em casa sempre que não seja mesmo, mas mesmo, essencial sair – estamos tramados. Não é alarmismo, é matemática. Como escrevia o médico Bruno Maia, num texto partilhado há dias no Facebook, “no fim disto tudo, depois das insónias, das hérnias discais, do peso perdido, dos cabelos caídos ou brancos, das enxaquecas crónicas ou outras sequelas, provavelmente vamos pedir-vos para olharem para o SNS com outros olhos. E que finalmente percebam que ele precisa mais dos 3000
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milhões de euros do que o Novo Banco!” É isto. Quando tudo amainar, talvez tenhamos de pensar seriamente em discutir o reforço do investimento no Serviço Nacional de Saúde todos, mesmo aqueles que acham que a política é para os outros. Para já, todo o apoio aos médicos, enfermeiros, auxiliares e todas as pessoas que estão nos hospitais, nem sempre com as melhores condições, a tentar evitar o pior. E se não for absolutamente essencial sair, fiquem em casa, pela vossa saudinha e pela nossa.
Istambul na Penha de Franรงa: em dias de confinamento, a voz do vizinho misterioso que canta como um muezzin.
24 marรงo 2020
Comecei a ouvi-lo no mês passado. Bebia um café na varanda, depois do almoço, quando um canto que me parecia igual ao do muezzin chamando para a oração na mesquita se espalhou por esta zona do bairro. Era um canto belíssimo, como costuma ser o dos muezzins, mas estranhei a sua presença num local onde não há qualquer mesquita. A coisa durou uma meia hora, não podia ser o chamamento para a oração. Repetiu-se nos dias seguintes e concluí que algures nos prédios das traseiras há um vizinho que canta em língua árabe, talvez canções religiosas, talvez não só. Agora que passámos a estar todos fechados em casa, a voz do meu vizinho continua a ecoar depois do almoço e a Penha de França parece, de repente, um ponto perdido no tempo, o caminho
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entre o labirinto de ruas de uma qualquer medina, uma página da Istambul de Orhan Pamuk à hora a que a mesquita Süleymaniye abre as portas. Não é uma daquelas performances à janela, que depois acabam em vídeos na internet, para entreter pessoas em quarentena. Parece-me que o vizinho canta dentro de casa e o som projecta-se por uma das janelas abertas. Já o fazia antes de estarmos todos a braços com um apocalipse virulento. Quando o escuto, quase consigo acreditar que continuará a fazê-lo depois. E agradeço-lhe, pelo som e pela esperança.
No momento em que sugeriu que inspirasse para a posição da vaca e expirasse para a do gato, comecei a rir-me e lixei a respiração toda. 2 abril 2020
Mexo-me pouco nos últimos anos e andar a pé com frequência (e às vezes de skate) é o meu único exercício físico. Fechada em casa desde o dia 12 do mês passado, comecei a pensar que devia exercitar os músculos, não só para contrariar os problemas de costas que parecem estar a acentuar-se com a pouca mobilidade, mas também para tentar acalmar os efeitos de alguma dedicação excessiva à confecção de bolos caseiros. A verdade é que, com excepção das caminhadas e do skate, não gosto muito de fazer exercício físico. Descarreguei uma aplicação de yoga que prometia sessões curtas e eficazes. Não imaginei o que se seguiria... No ecrã, uma senhora deitada no chão com as pernas abertas flectidas e as solas dos pés unidas mandavame respirar. Eu só sentia dores nas virilhas, mas respirei com ela. Depois, mandou-me pôr de gatas e eu obedeci. No momento em que sugeriu que inspirasse para a posição da vaca e expirasse para a do gato, comecei a rir-me e lixei a respiração toda. Ela insistia, “inspira, vaca, expira, gato”. Não havia condições. Quando
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dei por mim deitada de costas a tentar imitar, torcendo o pescoço em direcção ao ecrã, uma posição chamada “bebé feliz”, percebi que nunca seria capaz de fazer yoga. Com as gargalhadas, tive de inspirar e expirar muito mais vezes do que aquelas que a senhora continuava a recomendar, sob pena de sufocar. A dada altura, fui obrigada a tirar os óculos para evitar a confusão visual acentuada pelas lágrimas que iam surgindo com tanto riso. No final, enquanto ela se despedia com um “namaste”, eu rebolava no chão a tentar dominar a risota. Balanço geral: estiquei alguns músculos que já não sabia que tinha, mas sobretudo exercitei os abdominais. Acho que não era esse o objectivo, mas não deixo de recomendar o exercício. Foram quinze minutos de absoluta hilariedade e sempre que estiver irritada, passarei a recorrer à memória da vozinha serena e apaziguadora a dizer “inspira, vaca”. Não vai falhar.
“Os Dias da Rádio”, entre o cinema e a memória desse objecto mágico que nos acompanha e nos forma.
4 abril 2020
Um dos filmes de Woody Allen de que mais gosto é “Os Dias da Rádio”. O tom melancólico daquela viagem pela memória tem os tropeções inevitáveis de quando se olha para trás, mas não prescinde de reparar nos conflitos, na comédia do quotidiano que todos protagonizamos e no modo como certas figuras que podemos nunca conhecer pessoalmente também se agregam à nossa história, àquilo que somos ou vamos sendo. Que tudo isso assente no papel da rádio agrada-me ainda mais. Sempre gostei de ouvir rádio e houve um tempo em que quis fazê-la. Era miúda e passava horas no quarto, com um microfone feito em pau de vassoura, algodão e plástico – que a minha irmã inventou – e um gravador de cassetes e dali saíam emissões contínuas que nunca chegavam a parte alguma. Nessa altura havia rádios pirata, até Cavaco Silva as ter proibido. Também isso foi importante: a criança que eu era assumiu Cavaco como inimigo do mundo livre e a adulta em que me transformei mais tarde nunca se afastou dessa assunção. Vem isto tudo a propósito da rádio e do papel que continua a ter. E agora, com Diário Encerrado
tanta gente isolada, pareceme que o papel é ainda mais relevante. Ouço na TSF que a Câmara Municipal de Vila Nova de Gaia incluiu a distribuição de aparelhos de rádio nas suas medidas de combate a esta pandemia: «”A radio é neste momento o instrumento mais poderoso que temos para combater o isolamento social e de levar alguma alegria e esperança a quem, sozinho em casa, combate a tristeza e esta surpresa que nos aconteceu a todos”, destaca o presidente da câmara de Gaia em declarações à TSF.» E leio, no Diário de Notícias, que uma rádio on-line do Pólo Norte, que contava apenas com 3 seguidores, passou a ter 40.000 depois de Nuno Markl ter falado nela numa emissão do programa “Como É Que o Bicho Mexe”, que Bruno Nogueira faz diariamente no Instagram. Em agradecimento, o radialista Cal Lockwood passou uma música de Mário Laginha. Joe Needleman, o personagem de Woody Allen, havia de gostar desta história.
Entre sonhos alucinantes e mĂşsica do David Bowie, Ă espera que os astronautas nos safem desta.
5 abril 2020
Vejo os médicos, enfermeiros e auxiliares na televisão, em hospitais portugueses e de vários outros países. Já não são pessoas que salvam vidas em hospitais, são astronautas pairando numa nuvem de camas, fios, máquinas e tecidos envolvendo pessoas deitadas, umas mais despertas do que outras. Uma nave de loucos em modo de ficção científica. Imagino como será respirar debaixo daquilo tudo, sabendo que só uma simples máscara é suficiente para me fazer sentir com pouco ar. No ecrã, elas e eles movemse com desenvoltura, uma coreografia que não terá sido ensaiada, mas que resulta harmoniosa. As imagens sucedem-se nos vários canais e na internet, contribuindo para informar sobre o que se passa, permitindo-nos ter alguma noção do que é estar num hospital numa altura destas – sobretudo, creio, ajudando a cimentar nas nossas cabeças a certeza de que é preciso não sair de casa, a não ser que seja mesmo imprescindível. Essas imagens instalam-se nos neurónios também de outros modos, mais insidiosos. Já apanhei várias vezes as partes mais escorregadias do Diário Encerrado
meu cérebro a congeminarem cenários hospitalares durante o sono. Astronautas cujos olhos não se vislumbram por trás das viseiras ligam máquinas que ajudam a respirar enquanto se movem pelo espaço, orientados por uma Pina Bausch enlouquecida, enquanto eu vejo tudo a partir de uma cama de hospital, ansiosa por saber se os meus pulmões vão continuar a cumprir o seu enche-esvazia ou se ficarei para sempre a pairar no escuro denso de uma qualquer galáxia. Acordo para descobrir que respiro, afinal, e volto a pensar nos astronautas, sem conseguir evitar que o “Space Oddity”, de David Bowie, ecoe nas minhas sinapses. Debaixo de cada fato há gente, claro, talvez com sonhos parecidos com os meus, mas sem hipótese de os enfrentar longe do cenário hospitalar. Espero que se mantenham saudáveis e que resistam ao cansaço. E, já bem acordada, espero ainda que quando isto passar ninguém se esqueça de quão importante é o trabalho de todas essas pessoas e do serviço público onde agora as vemos todos os dias, desejando que a viagem sideral seja um sucesso.
Se a minha bisavĂł fosse viva, talvez sobrevivesse ao vĂrus, mas nĂŁo sobreviveria Ă necessidade de ser tratada por terceiros.
13 abril 2020
A minha bisavó nunca acreditou que o ser humano tinha pisado a lua. Nascida no século XIX, viu passar guerras, epidemias, racionamentos e revoluções. Não se surpreendia com o facto de tudo poder mudar de um dia para o outro, mas custavalhe aceitar certos progressos científicos. Os milagres de Fátima eram, obviamente, um facto indiscutível, pessoas numa nave deambulando pelo espaço e pousando na lua era, também obviamente, uma fantasia. Lembro-me muitas vezes da minha bisavó, com quem tive a sorte de conviver até aos meus doze anos. Nestes dias de reclusão e notícias devastadoras 24 horas por dia, lembro-me dela sempre que leio uma das muitas reportagens que vão povoando os jornais do mundo sobre os muito velhos que sobrevivem à Covid-19. Ada Zanusso, em Itália, com 104 anos e uma biografia que inclui duas guerras mundiais e a epidemia da gripe pneumónica. A mulher de 101 anos que quis permanecer anónima, em Espanha. William Kelly, de 95 anos, no Reino Unido, que ainda combateu na II Guerra Mundial. Se a minha bisavó fosse viva, o que nesta altura do campeonato era claramente Diário Encerrado
uma impossibilidade biológica (teria mais de 120 anos...), tenho a certeza de que não embarcaria nas teorias conspirativas de o vírus ser uma invenção, uma maquinação estrangeira, o plano maléfico de algum laboratório. Chegar à lua era impossível, mas uma epidemia era coisa mais do que verosímil para ela. Difícil seria convencê-la a ir para o hospital se tivesse o azar de ser contaminada. É que as epidemias bem podiam existir e ser eficazmente resolvidas, mas deixar que um médico ou enfermeiro tomasse conta de si é que não! Sobretudo, porque isso podia implicar tirar a roupa em frente a um desconhecido e isso era uma impossibilidade muito maior do que chegar à lua. Se a minha bisavó fosse viva, talvez sobrevivesse ao vírus – nunca teve doenças e morreu aos 98 anos, com uma dieta que incluía sopas de cavalo cansado, queijo em doses generosas e outros mimos capazes de fazer tremer qualquer nutricionista –, mas não sobreviveria à necessidade de ser tratada por terceiros.
A pensar no quão importante é lavar as mãos, lembrando que tanta gente pelo mundo fora não tem água para o fazer.
18 abril 2020
Enquanto lavo as mãos, tentando não desprezar nenhuma porção de pele, penso no médico húngaro Ignaz Semmelweis, que descobriu, no século XIX, a relação entre as mãos lavadas e a descida das infecções em ambiente hospitalar, sobretudo junto das mulheres que tinham acabado de parir. O Google dedicou-lhe a página há umas semanas, lembrando a importância da água e do sabão nestes tempos de pandemia. É estranho imaginar que antes de Semmelweis, médicos e enfermeiros manipulavam os corpos dos pacientes sem esse cuidado básico de higiene, mas era isso que acontecia frequentemente. E era por isso que tantas mulheres adoeciam com uma misteriosa febre pós-parto, muitas vezes fatal. Parece que a descoberta de Semmelweis não foi muito bem recebida na altura, nem bem explicada pelo próprio, e só depois da sua morte teve o reconhecimento
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devido (o Público de 5 de Abril tem um artigo de Megan Flynn, do Washington Post, que conta a história com detalhe). Ironia da vida, o médico que percebeu a importância de manter as mãos limpas morreu com uma infecção generalizada, resultante de uma ferida infectada numa das mãos. Lavo as mãos pela terceira ou quarta vez – vim da rua, do mercado, e há que passar pelos não sei quantos passos de desinfestação antes de poder respirar fundo – e penso em Semmelweis, pensando também nas tantas pessoas que, no mundo, não têm acesso a água limpa e sabão. É um dos gestos realmente importantes para abrandar esta pandemia, protegendo-nos e aos que estão à nossa volta, requer apenas duas substâncias que no meu quotidiano privilegiado são perfeitamente banais e milhões de pessoas que vivem no mesmo planeta que eu estão impedidas de o fazer.
Anda tudo a partilhar sonhos esquisitos no Twitter e o Dr. Freud havia de querer ter uma conta‌
20 abril 2020
Acordo muitas vezes com a firme convicção de andar a sonhar bizarrias como ninguém. Pura ilusão. Parece que andamos quase todos a ter sonhos em catadupa, narrativas atravessadas por enredos disparatados envolvendo epidemias, pão caseiro, famílias disfuncionais, tudo em cenários saídos de uma trip de LSD. Também há extra-terrestres e conspirações virais, mas isso já deve ser um outro campeonato. Psicólogos e especialistas do sono acalmam os sonhadores em declarações a vários jornais que, nos últimos dias, têm escrito sobre esta nossa nova fase onírica colectiva: é normal ter sonhos mais vívidos numa altura destas, como se o cérebro usasse o sonho como modo de lidar com a nova realidade de confinamento, medo de contágio e preocupação em relação ao futuro. Se Freud fosse vivo, imagino que incluiria na rotina diária da sua quarentena uma visita ao Twitter, acompanhando a etiqueta #quarendreams, onde centenas de pessoas partilham os sonhos que vão tendo por estes dias. Gosto particularmente do registo de um homem que sonha consigo Diário Encerrado
próprio a descobrir a cura para a Covid-19, mas depois entorna leite com chocolate em cima da solução... Parece que não há nada a temer, portanto. Ainda que um monstro de quinze patas que parece uma nave, mas na realidade é uma aranha, e ainda por cima com uns olhinhos parecidos com os daquela pessoa que vos atazanou a infância, deambule pelo corredor da vossa casa distribuindo fatias de pão de espelta com veneno, e ainda que nas vossas estantes haja médicos e enfermeiros ligando e desligando máquinas que são ventiladores, mas também são as bilheteiras automáticas do metropolitano que agora não convém utilizar, é tudo normal e compreensível. Eu agradeço sempre que especialistas da área da mente e do comportamento me asseguram que não estou a enlouquecer. Não quer dizer que acredite, mas parece que durmo um bocadinho melhor.
Uma entrada partilhada com a ACERT, que teve direito a animação do Zé Tavares e a música do Miguel Cardoso (fica registada agora em modo estático). 25 abril 2020
Será a primeira vez em vários anos que não desço a Avenida da Liberdade no dia 25 de Abril. Desde que me lembro, isso aconteceu apenas duas vezes. Numa delas, estava a viver em Santiago de Compostela e, depois de tentar comprar cravos vermelhos no Mercado de Abastos (onde só havia cravos cor-de-rosa), acabei a celebrar a revolução num bar chamado Avante, onde dezenas de galegos cantavam, emocionados e algo alcoolizados, a “Grândola, Vila Morena”. Na outra, estava num avião a caminho da Colômbia, em trabalho, e não consegui mais do que pensar na multidão que estaria na avenida enquanto me agarrava aos braços da cadeira, forçando-me a acreditar que o avião não havia de cair. Este ano, celebrarei em casa, usando a varanda para descobrir se a vizinhança é dos nossos ou da reacção quando, às 15 horas, se ouvir a “Grândola, Vila Morena”. Espero não me desiludir. Isto do confinamento tem as suas dificuldades quotidianas, obviamente mitigadas pelo facto de viver numa casa confortável e não me faltar comida e outras coisas essenciais – parece básico, mas não é, de todo, universal. O confinamento num dia em que o que se quer é estar na rua, abraçar amigos e celebrar a democracia que foi conquistada a Diário Encerrado
duras penas depois de décadas de fascismo, é coisa um bocadinho mais difícil de aceitar. De certo modo, é como celebrar a liberdade sem a liberdade de celebrar. Mas talvez também seja celebrar a liberdade cumprindo uma das ideias de Abril, a que assume a comunidade e o colectivo como elemento fundamental da sociedade (aqui, há espaço para agitação ideológica e saudável discussão – eu digo que é fundamental, mas não único), a que dá importância àquilo a que chamamos bem comum. “A paz, o pão, a habitação, saúde, educação...” Este ano, atender ao colectivo é usar a consciência para não colocar ninguém em risco, nem nós, nem aqueles que partilhariam a descida da avenida connosco, menos ainda os que, não estando lá, podiam ser atingidos pelas ondas de choque que um surto ali nascido certamente provocaria. É por isso que fico em casa, nos outros dias, sim, mas neste dia 25 com a consciência mais ancorada nesta ideia de contribuir para aquilo que é de todos. A enxada será ou não será da “comprativa”, podemos discuti-lo acaloradamente, mas a responsabilidade é, não tenho dúvidas, de toda a gente. Mesmo de toda a gente. Até dos sacanas dos vizinhos que vão torcer o nariz à “Grândola”.
Fartinha de manuais de instruçþes para o confinamento, à espera da hora de beber um copo de vinho.
2 maio 2020
A internet já tinha essa presença intensiva de manuais de instruções para quase tudo (os meus sobrinhos chamam-lhes tutoriais, pelo que suponho que “manual de instruções” já seja léxico da meia idade...). A receita do arroz de cabidela ou da broa de Avintes, o modo de trocar um pneu de bicicleta, os acordes do “Smells Like Teen Spirit”, está lá tudo e, mesmo quando nos dá para praguejar contra a omnipresença dos ecrãs, dá muito jeito. Nas últimas semanas, o espaço virtual começou por ser um lugar de solidariedades várias, avançando para ser uma velha cabine telefónica global com a vantagem do ecrã, e sendo depois escola, trabalho e lugar de acesso à cultura para muito mais gente do que antes desta pandemia. Só que de repente, a coisa resvalou para um certo tonzinho autoritário disfarçado de benevolência moral, com a lista constante e actualizada de tudo o que devemos e não devemos fazer quando estamos fechados em casa. Crie uma rotina, não beba muito vinho, fale com familiares e amigos,
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faça exercício físico, não tenha pensamentos depressivos (esta é a minha favorita, como se dizer a alguém para não ter dores apagasse realmente essas dores), faça o seu próprio pão. E lave as mãos várias vezes. Não passe o dia de pijama ou a adiantar o relógio para assumir sem culpas que já são horas aceitáveis para beber um copo. E não se esqueça de não ingerir muito açúcar nem gorduras, de aproveitar para remodelar a casa, de espalhar boa disposição por todas as divisões (mesmo que esteja em tele-trabalho, a acompanhar uma ou mais crianças no ensino à distância e a aturar familiares que não se importava de exportar para a Sibéria, ajudando dedicadamente a economia nacional a não ficar totalmente estraçalhada). Há dias em que temo que a internet me queira pegar ao colo, dar-me banho e colocar-me uma auréola devidamente santificada sobre a cabeça e um pinzinho na lapela a dizer “palavra de escuteiro em quarentena”. Ainda não são horas de beber vinho, mas também já não falta tudo.
Tudo apertado nos transportes públicos, o único sítio onde parece não ser importante cumprir a distância física que se impõe.
4 maio 2020
Várias pessoas regressam hoje ao trabalho, coisa que tantas outras nunca puderam deixar de fazer nas últimas semanas. Nas cidades maiores, nomeadamente em Lisboa e no Porto, contando com os seus arredores, isso implica recorrer a transportes públicos que estão sempre cheios, muito cheios. Agora que a preocupação é a de manter o afastamento, seria uma boa oportunidade para discutir o porquê desse excesso de pessoas ou, melhor dizendo, dessa carência de transportes. Na verdade, o problema é anterior e a exigência de transportes públicos em condições não deveria ser associada à pandemia – temos direito a eles, para isso pagamos impostos, passes e bilhetes e é dever do Estado assegurá-los. Qualquer pessoa que apanhe um comboio na linha de Sintra em direcção a Lisboa, por exemplo, a horas matutinas sabe que não é assim que as coisas acontecem. O mesmo se pode dizer do metropolitano lisboeta a certas horas, ou dos autocarros, ou dos barcos, e desconfio que o cenário será igual noutras cidades. Para ajudar à festa diária, durante o Estado de
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Emergência, as transportadoras decidiram reduzir a frequência dos seus transportes porque tinham “menor procura”. Não se percebe que menor procura é esta quando se lê a reportagem do Público (de dia 28 de Abril) que puxa para título a frase de uma das pessoas entrevistadas, “Tenho mais medo de andar nos transportes do que no hospital”: «Àquela hora da manhã, os autocarros cheios de passageiros que iam chegando à estação fluvial do Barreiro transportavam muitos do que corriam para apanhar o barco. Elsa Pessoa diz que estão a fazer horário de Agosto, o que faz com que os primeiros autocarros da manhã fiquem “lotados”, tornando impossível manter o distanciamento social recomendado pelas autoridades de Saúde.» Se vamos todos ser muito conscientes, manter o distanciamento e cumprir as regras de segurança, é capaz de ser boa ideia começar por exigir às empresas de transportes que façam a sua parte. E, já agora, que continuem a fazêlo depois da pandemia.
O mundo a partir de um livro de cozinha, porque precisamos de comer, sem dĂşvida, mas nĂŁo deixamos de precisar de histĂłrias.
7 maio 2020
Os livros de cozinha que agrupam receitas, por vezes organizadas por tema, ingrediente, geografia, serão úteis quando se anda entre tachos e panelas, mas são quase sempre enfadonhos. Prefiro os livros que contam uma ou várias histórias, ainda que através das receitas que incluem. Um dos meus favoritos é “Jerusalem”, de Yotam Ottolenghi e Sami Tamimi (edição Ebury Press), e basta ler a introdução para perceber quantas histórias se guardam entre indicações de como fazer hummus ou grandes travessas de borrego com alcachofras. Yotam Ottolenghi e Sami Tamimi cresceram em Jerusalém, entre os anos 80 e 90 do século passado. Yotam Ottolenghi no lado ocidental e judeu da cidade, Sami Tamimi no lado oriental e muçulmano. Com a cidade assim dividida, não espanta que não se tenham conhecido nessa altura e é possível que, mesmo acidentalmente, nunca se tenham cruzado. Muitos anos depois, em Londres, onde os dois passaram a viver e a trabalhar, tropeçaram um no outro por acaso e
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descobriram essa terra comum, raiz da infância de ambos. Conversando sobre essa raiz, não foi difícil acabarem a conversar sobre comida – e sobre o modo como se preparava, as festas em que estava presente, os mercados, os ingredientes e as suas origens. “Jerusalem” tem receitas deliciosas – e falo por experiência própria, porque já testei várias e algumas adoptei como hábito – mas tem sobretudo aquilo que faz de um livro um acesso directo ao mundo, a um pedaço de mundo, às memórias, às conversas partilhadas, àquilo que nos confirma a humanidade. Precisamos de comer, sem dúvida, mas não deixamos de precisar de histórias.
FĂŠrias com os fuzileiros e o telemĂłvel a servir de trela, assim se anuncia o VerĂŁo.
10 maio 2020
Temos o Verão debaixo da língua. Sabemos pronunciálo, temos a certeza de nos lembrarmos da palavra, mas ela teima em não sair. Já os meios de comunicação, não falam de outra coisa. Andamos a ver se não pensamos muito no que vai ou não poder acontecer a partir de Junho, mas não há jornal ou noticiário que não aponte possíveis caminhos para as idas à praia daqui a um mês. O último artigo que li falava de zonas delimitadas por cordas no areal, com corredores individuais até à água, fuzileiros a patrulhar praias não-vigiadas e drones a sobrevoar toda a gente. Tudo o que se deseja num dia de praia, portanto... A juntar a isto, há as notícias das aplicações de telemóvel que, em troca dos nossos dados, avisarão se estamos a aproximarnos de alguém infectado, ou potencialmente infectado, com o novo coronavírus. Para já, asseguram-nos que não há partilha de dados pessoais entre o utilizador e a aplicação (como se uma aplicação instalada no nosso telemóvel não interagisse com tudo o que está guardado no aparelho), mas só a ideia de andarmos na rua a receber sinais sonoros e a ouvir os Diário Encerrado
que tocam nos telemóveis alheios parece-me um belo início para um daqueles filmes apocalípticos de domingo à tarde, com potencial para acabar tudo à chapada ou à pedrada, e isto porque temos a sorte de não viver nos EUA e não andamos todos armados. É tudo tão igual ao romance de George Orwell que fazer a comparação com o “1984” se torna banal, mas é mesmo difícil fugir a essa comparação. Temo que, como no livro, já se prepare um dicionário da novilíngua pósCovid 19 e que os lexicógrafos responsáveis não saibam o que fazer a palavras como “direitos” ou “privacidade”, e muito menos a expressões complexas como “bom senso” ou “algum juízo nessas cabeças não vos ficava mal”.
Desde o dia 14 de Março que andamos nisto: todos os dias, um escreve, o outro ilustra, quem quiser lê o resultado no Facebook ou no Instagram. Para assinalar os dois meses de Diário Encerrado, reunimos neste pequeno volume digital algumas das entradas que mais gostámos de escrever ou ilustrar.
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