A morte e a sociedade nas danças macabras medievais

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A morte e a sociedade nas danças macabras medievais Death and society in medieval macabre dances Juliana Schmitt* *Doutora em Literatura pela Universidade de São Paulo (USP), São Paulo (SP), historiadora com especialização em História da Arte pela Universidade Estadual de Londrina, Paraná (PR), e mestre em Moda, Cultura e Arte pelo Centro Universitário Senac, São Paulo (SP). Docente na Faculdade Paulista de Artes e no Centro Universitário Belas Artes de São Paulo, São Paulo (SP). Pesquisa temas relacionados à História da Morte. É autora de Mortes Vitorianas: corpos, luto e vestuário (Editorial Alameda, 2010).

Resumo Gênero literário e iconográfico surgido na Baixa Idade Média, a dança macabra destaca o caráter infalível e universal da morte. O artigo analisa elementos importantes dessas obras, como a representação dos diferentes tipos humanos da sociedade medieval, a exposição do cadáver, a personificação do evento da morte como um defunto e o anonimato da autoria dessas imagens e versos. Os afrescos de Saints-Innocents, em Paris, e de La Chaise-Dieu, as gravuras publicadas por Guyot Marchand e o poema castelhano La Danza General de La Muerte serão os exemplares utilizados como apoio à essa investigação.

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eados do século XV: no interior da França, na pequena cidade de La Chaise-Dieu, dentro da Igreja abacial de Saint-Robert, um artista anônimo inicia uma grande obra, um afresco monumental, que ocuparia uma parede de mais de 20 metros de extensão. Uma dança macabra. A data precisa do começo dos trabalhos ou o tempo que levou para concluí-la, são incógnitas. Suas referências e suas motivações são também desconhecidas, assim como sua identidade, sua ocupação, sua posição na ordem – se é que tinha alguma. Os temas macabros estavam em plena expansão pela Europa naqueles anos. Sabe-se que o fim da Idade Média, em especial a partir da Peste Negra, assistiu ao surgimento de novas considerações a respeito da morte. Uma curiosidade quase obsessiva pelo cadáver invade o imaginário medieval, resultando na produção de imagens e textos que devassam o corpo, insistindo em seu aspecto de deterioração – por vezes dando especial ênfase à podridão e à repugnância desse processo. É desse contexto que, acredita-se, surgem as danças macabras. Elas seriam obras textuais e/ou iconográficas, em diversos suportes, que apresentam um desfile de personagens mortos e vivos. Esses últimos representam a sociedade, em suas mais diversas figuras hierárquicas, em seus diferentes ofícios e estados. Os mortos – mostrados como cadáveres em decomposição – conduzem a fila, cuja direção é o óbito. O objetivo do tema é afirmar o caráter inexorável e universal da morte e a importância de se estar sempre preparado para sua imprevisível chegada. Enquanto documento histórico, tem valor inestimável ao retratar a sociedade medieval, fornecendo detalhes sobre seus membros. No tocante à história das mentalidades, contam sobre a maneira como o medievo encarava a vida – e o seu fim.

Palavras-chave: Imaginário Macabro; Cadáver na Arte; Danças Macabras; História da Morte; Idade Média.

Origens do macabro Abstract Artistic gender born in the late Middle Ages, the Dance of Death highlights the infallibility and the universality of death. This article analyzes these pieces’s important elements, such as the representation of different human types from the medieval society, the exposure of the rotten corpse, the personified Death and the lack of authorship in these works. The frescoes of Saints-Innocents and La Chaise-Dieu, the engravings published by Guyot Marchand and the spanish poem La Danza General de La Muerte will be used as examples for this investigation. Keywords: Macabre Imaginary; The corpse in the art; Dance of Death; History of Death; Middle Ages.

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O imaginário macabro nasce e se desenvolve no contexto medieval, mais especificamente, em seus momentos finais, na chamada Baixa Idade Média. Ele representa uma certa concepção da existência humana, e se manifesta, via de regra, na iconografia e na literatura do período. Se até o século XIV, aproximadamente, predominava na cristandade a noção que contrapunha alma e corpo, sendo a morte uma libertação da alma (imaterial e imortal) de seu invólucro terrestre – e, portanto, passagem para uma outra existência, mais importante e plena, -, os séculos seguintes testemunharam uma mudança de fundo na maneira em que o medievo percebia o óbito. Como se houvesse uma maior valorização do “aqui e agora”, a morte passava a ser vista, também e cada vez mais, como um fim. Não que deixasse de ser uma travessia; a fé na continuidade da alma permanecia. Mas perdia espaço para uma maior crença na vida material. A existência tornava-se, assim, menos “transcedental” e crescia, nos homens, a percepção de si enquanto indivíduos atuantes em uma realidade empírica. A vida deixava, gradualmente, de ser, apenas, preparação para o grande trespasse. Tanto valor quanto o “além”, passava a ter também o que se era, o que se tinha, o que se fazia e o que se deixava no mundo. A noção de identidade pessoal progredia na medida em que práticas relativas à privacidade, como a confissão, o diário e a escritura de cartas pessoais, entre outras, emergiam. A arte dedicava-se cada vez mais ao retrato, a Igreja incentivava a confissão - a narrativa dos próprios pecados. Os cuidados com o corpo aumentam1, uma vez que se reconhece, nele, o vínculo com essa existência terrena valorizada. Se o corpo material era tão importante quanto a alma que ele continha, naturalmente ele Poéticas Visuais, Bauru, v 7, n. 1 , p. 14-28, 2016.

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passava a ser alvo de grande curiosidade – mesmo depois de morto. “A morte tornou-se o lugar em que o homem melhor tomou consciência de si mesmo”, afirma Philippe Ariès (2003, p. 58). A ciência, gradativamente, começava a estudar a anatomia humana e realizar análises e dissecações, o que era, até então, proibido pela Igreja. O destino do cadáver tornava-se uma preocupação e o fim da Idade Média testemunhou o surgimento das primeiras identificações lapidares, que traduziam o desejo em se individualizar o local da sepultura para que a memória corpórea permanecesse, e consequentemente, sua lembrança física no mundo. Os ofícios dos mortos, que escondiam os corpos em mortalhas e esquifes, deixavam agora o defunto exposto, para que fosse reconhecido e homenageado2. Por extensão, o período teria desenvolvido um interesse obsessivo pelos processos de decomposição. Nas palavras de Johan Huizinga: “É como se o espírito do final da Idade Média não pudesse enxergar a morte sob outro aspecto além do da deterioração.”(2010, p. 221). Não foi à toa. Em uma época castigada por fomes e epidemias, era fácil um homem presenciar uma morte terrível e projetar, nela, seu próprio fim. O século XIV, em especial, acumulou catástrofes e perturbações sociais, além de uma profunda crise econômica e demográfica. Frequentes guerras, entre elas a dos Cem Anos, e a chegada da Peste Negra no continente europeu, desestabilizaram o Ocidente medieval, desencadeando um novo olhar sobre a morte. Sabe-se que o surto de peste bubônica, em particular, causou um grande impacto às sensibilidades da época. A quantidade assustadora de vítimas dizimadas pelo flagelo (mais de 25 milhões em dez anos, um terço da população européia), que atacava indiscriminadamente, que não cedia ou amenizava diante de nenhum remédio conhecido e ceifava populações inteiras em poucos dias, fazia da morte um evento cotidiano. Pode-se imaginar como as histórias sobre as valas comunais dos cemitérios transbordando de cadáveres fétidos e das pilhas de corpos putrefatos acumulando-se nas cidades e vilas em toda a Europa, tenham ficado de herança para as gerações seguintes. Em apenas 5 anos, todo o continente estava infectado, desde sua chegada pelo Mediterrâneo, em 1348. A epidemia não cessou plenamente e focos da doença reapareciam esporadicamente em diversos lugares durante os três séculos seguintes, relembrando a sua rapidez e crueldade. Como consequência destes complexos processos sociais, culturais, mentais, o corpo morto passava a ser reinterpretado. De acordo com Jean Delumeau, “com um realismo mórbido, os artistas se esforçam em traduzir o caráter horrível da peste e o pesadelo acordado vivido pelos contemporâneos. Insistiram nos trespasses fulminantes e naquilo que o contágio tinha de mais odioso, inumano e repugnante.”(2009, p. 191). Esse fascínio pela morte física era particularmente observável na presença da representação dos processos post-mortem na iconografia e na literatura - o que se convencionou chamar de “macabro”: “o adjetivo que para nós adquiriu uma nuance de significado tão nítido e próprio, a ponto de, com ele podermos marcar toda a visão de morte do fim do período medieval.”(HUIZINGA, 2010, p. 231) Assim, segundo Ariès, “costumam-se chamar “macabras” as representações realistas do corpo humano durante a sua decomposição. O macabro medieval começa depois da morte e pára no esqueleto dessecado” (1989, p. 118), ou seja, é a morte úmida, o estágio de “transi”, como passou a ser denominado essa condição transitória da dissolução. Seja como cadáver repulsivo, corpo ressequido ou esqueleto, o morto era mostrado e descrito de uma maneira sem antecedentes. Insiste-se na exposição da podridão, em especial do abdômen – estufado ou aberto, abarrotado de vermes exaltados ou vazio, com as peles penduradas.“Isso significa que se quer mostrar o que não se vê, o que se passa debaixo da terra e que é, na maioria das vezes, escondido dos vivos.” (ARIÈS,

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2003, p. 140). Encontra-se exemplos da estética macabra em esculturas tumulares do período, em poemas como os Versos da Morte, do monge Hélinand de Froidmont, no Contemptus Mundi do papa Inocêncio III, nos temas do Debate entre a alma e o corpo e no Encontro dos três mortos com os três vivos, nas Danças Macabras, nos Ars Moriendi, nos Triunfos da Morte e nos Livros de horas medievais. As Danças Macabras Denomina-se “Dança Macabra” toda obra textual (normalmente em estrutura de poema) ou iconográfica (independente do suporte) – ou ambos -, que apresenta um desfile de personagens em que, parte deles está morta, parte, viva. Ele pode se configurar como uma fila ou uma procissão, uma ciranda ou uma cena dançada. É presidida por uma representação da morte personificada, que pode ser múltipla (a mesma personagem que reaparece várias vezes) ou um grupo (vários cadáveres, seus enviados). A morte ou os mortos geralmente aparecem como “transis”, isto é, como cadáveres em decomposição, ou, o que seria mais comum a partir do século XVI, como esqueleto. Em movimento, ela segura ou encaminha, um por um, os vivos. Estes representam a sociedade e são colocados em hierarquia descedente. Cada qual simboliza uma categoria social, um estágio da vida, um estado emocional, um gênero. Seu contato com um morto significa que está sendo levado a óbito. Muitas começam e terminam com a presença de um pregador, o que atribui às Danças um aspecto de sermão. Fica claro que, ali, há algo a ser aprendido. Uma característica essencial é que os vivos devem exemplificar figuras existentes na realidade medieval. Não são representação metafóricas ou fantasiosas, mas verossímeis e presentes na sociedade. Assim, entram em cena autoridades laicas como o imperador, o rei, o príncipe, duque, conde, cavaleiro; eclesiáticas como o papa, o cardeal, o bispo, o abade, monges de ordens diversas, pároco, mendicante. Membros das camadas intermediárias, integrantes da sociabilidade urbana, também apareciam, como o burgomestre, o comerciante, o artesão, o trovador; assim como o lavrador, representando a gente simples do campo. Outras categorias diversas como o jovem apaixonado, a criança, o velho, o louco, a mulher (geralmente os personagens eram masculinos, logo, os poucos femininos se destacavam), o cego, o ermitão, etc, também entravam. O elenco variava muito – o que é revelador sobre as escolhas que os autores faziam, das figuras consideradas relevantes para representarem a sociedade, ou mais apropriadas ao local onde faria a obra. No caso dos textos (ou da presença deles junto com imagens), a dança deve ter configuração de diálogo,entre os vivos e os mortos, como no exemplo retirado da dança macabra de Berna, na Suiça, um afresco com versos, pintado entre 1516 e 1519 (e já destruído): La mort dit au Comte: Comte puissant, regardez-moi, Laissez en repos tous vos équipements, Recommandez votre pays aux héritiers,

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Car vous avez maintenant la mort sous la main! Réponse du Comte: Je suis de noble maison La mort m’est maintenat une triste nouvelle, J’aurais voulu jouir plus longtemps de ma seigneurie, Oh, mort veux-tu vraiment mettre fin à ma vie?3 É comum, também, a participação de cadáveres que tocam instrumentos musicais – destacando o elemento rítmico do gênero. Nesse sentido, a legitimidade do termo “dança” se daria muito mais pela presença dos transis músicos entre os personagens representados (às vezes abrindo ou fechando o desfile) e, especialmente, pela postura dos mortos que, excitados pela sua função, estão sempre em movimento – ao contrário dos vivos que congelam. Essa inversão é, em si mesma, uma sátira: os mortos, animados, parecem muito mais vivos que seus pares. As expressões “Dança da morte”, “Dança dos mortos” ou “Danças macabras” são empregadas indistintamente para denominar o tema, apesar de portarem uma pequena diferença conceitual. Essa seria no sentido de estabelecer a identidade precisa do(s) personagem(ns) morto(s): se se trata de um grupo de mortos que representam a morte ou personificam o evento da morte, ou se é “a” própria Morte, individualizada. Neste caso, a Morte chama à sua dança fatal os vivos; no anterior, o morto que aparece diante do vivo seria, dependendo da interpretação e, às vezes, do que sugere o texto, um personagem aleatório e anônimo, ou uma espécie do duplo do vivo, seu espelho, que reflete o futuro. A nomenclatura das danças em outras línguas revela esses usos distintos: no alemão, as mais frequentes são Totentanz ou Todestanz; Dance of death em inglês, Danza de la muerte em espanhol, Dansa de la morte no italiano. No francês, assim como no português, prevaleceu a expressão Danse macabre/Dança macabra. Independente do termo, tratam todos do mesmo gênero. A dança de Saints Innocents e a dança de Guyot Marchand O exemplar mais relevante das danças foi um afresco pintado no cemitério de Saints Innocents, em Paris, em 1424. É considerada a primeira obra registrada do gênero, reunindo texto e imagem. Sua grandiosidade causou um grande impacto à época: na parte interna de um dos muros que cercava o terreno, na pintura de 20 metros de extensão, cerca de 30 personagens eram chamados à dança da morte. Cada um era acompanhado por seu par, um cadáver ressequido, e, abaixo, pelos versos do poema. A obra localizava-se abaixo de um dos carneiros do cemitério, as galerias construídas sobre os muros para receberem os ossos que não estivessem completamente limpos mas que deveriam ser retirados das fossas comunais para abrir espaço para novos corpos. A visão das pilhas de ossos ainda cobertos de pele ou restos de carne combinada à presença do afresco provavelmente intensificava o efeito da obra. Saints-Innocents era o principal cemitério da capital francesa. Localizado no coração da cidade, no 1er arrondissement, era intensamente utilizado, já que vinte paróquias da região tinham o direito de realizar seus sepultamentos no local, além da igreja de Saints-Innocents da qual era anexo e do Hôtel-Dieu, o hospital para onde iam as vítimas de epidemias e os cadáveres anônimos para serem reclamados. Estima-se que centenas de pessoas passavam por ali diariamente,

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já que era muito frequentado por toda população, além de ser um espaço de sociabilidade e de comércio – como relata Huizinga: “em meio ao constante enterrar e desenterrar, era um lugar para passear e um ponto de encontro. Havia lojinhas junto aos ossuários e prostitutas sob as arcadas. (…) Até festividades aconteciam ali.”(2010, p. 240). Supõe-se que naqueles anos anteriores à confecção do afresco, suas valas comunais estivessem abarrotadas, pois concentravam os mortos vítimas da peste de 1421, da grande fome de 1417 e da guerra contra a Inglaterra, que perdurava. Estima-se cerca de 100 mil mortos enterrados lá em 1418, segundo dado fornecido por Hélène e Bertrand Utzinger (1996, p. 83). Inspiração não faltava, portanto, ao artista anônimo que empreende a grande pintura mural a partir de novembro de 1424. Apesar de destruída (parte em 1529, totalmente em 1669), a obra foi demasiadamente documentada e comentada, inspirando a confecção de outros afrescos logo depois de terminada, na Páscoa de 1425. De Paris, a dança de Saints-Innocents passa muito rapidamente para a Inglaterra. O poeta e monge beneditino John Lydgate (que esteve na capital francesa em 1426 e conheceu a dança original) teria feito sua primeira tradução por volta de 1430 (The Daunce of Death) e, em 1440, John Carpenter, um burguês enriquecido de Londres, patrocina um afresco pintado em um muro do cemitério do claustro de Saint-Paul, com os versos de Lydgate escritos abaixo. A dança de Saints-Innocents foi também bastante reproduzida em versões impressas e gravuras que viajaram a Europa. A Biblioteca Nacional da França possui pelo menos 13 manuscritos de supostas cópias dos versos da Dança de Saints-Innocents. O mais antigo (Ms. fr. 25550 fol. 235) é anônimo e entitulado “Les vers de la danse macabre de Paris, tels qu’ils sont présentés au cimentière des Innocents”. Esses textos passaram a ser impressos e vendidos na década de 1480. Entre essas publicações, a mais famosa e provavelmente a maior responsável pela difusão do afresco parisiense, é um conjunto de xilogravuras acompanhadas de versos, publicado pelo editor parisiense Guyot Marchand em 1485. Acredita-se que seja um registro bastante fiel tanto do texto quanto da pintura, reproduzindo os mesmos personagens na mesma configuração. Apenas um exemplar desta edição foi conservado e encontra-se na Biblioteca Municipal de Grenoble. A “dança de Marchand”, como passou a ser chamada, teve diversas edições nos anos seguintes – a primeira já em 1486, aumentada em dez novos personagens, e acrescida da história do Encontro entre os três mortos e os três vivos, de uma Dança macabra das mulheres e dos versos de um poema do gênero Vado mori. Uma verdadeira “coletânea macabra” de grande sucesso comercial, o que comprova a força do tema à época. Tamanha repercussão gerou inúmeras cópias e reinterpretações do modelo de Marchand, sendo as mais importantes a Danse Macabre a Paris por Pierre Le Rouge a mando de Antoine Vérard, editor parisiense, que as publica em 1491, e Simulachres & histoires facées de la Mort, de Hans Holbein, o jovem, composta entre 1523 e 1526 e publicada pela primeira vez em Lyon, pelos editores Melchior e Gaspar Trechesel, em 1538. É principalmente por causa da versão de Guyot Marchand para a dança de Saints-Innocents, apoiada pelos registros manuscritos dos versos, que é possível elaborar um esboço daquela obra seminal do cemitério. Tratava-se, então, de uma dança dos mortos e não da Morte. Um narrador-pregador abria os trabalhos, destacando seu caráter universal e inevitável4: O creature raysonnable Qui desires vie eternelle. Tu as cy doctrine notable: Pour bien finer vie mortelle. Poéticas Visuais, Bauru, v 7, n. 1, p. 14-28, 2016.

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La dance macabre sapelle: Que chascun a danser apprant. A homme et femme est naturelle, Mort nespargne petit ne grand. Ele explica, em seguida, seu funcionamento: cada vivo, um morto faz avançar; e os primeiros a entrarem na dança são os “grandes” da sociedade: En ce miroer chascun peut lire Qui le convient ainsi danser. Saige est celuy qui bien si mire. Le mort le vif fait avancer. Tu vois les plus grand commancer Car il nest nul que mort ne fiere: Cest piteuse chose y panser. Tout est forgie dune matiere. Na sequência, quatro cadáveres tocam seus instrumentos, cujo som dará ritmo ao desfile. Eles também declamam seus versos. Ao leitor, que é também o espectador da cena, o primeiro morto adverte que todos, bons ou maus, participarão da dança um dia; seus corpos servirão de comida aos vermes, assim como o dele e de seus companheiros músicos: Vous par divine sentence Qui vives en estatz divers Tous: danseres ceste danse Unefoys. et bons: et pervers. Et si seront manges de vers Voz corps. helas: regardez nous Mors. pourris. puans. descouvers Comme sommes: telx seres vous. Um morto introduz o primeiro vivo a ser conduzido ao trespasse, a figura mais importante da cristandade: o papa. Le mort Vous qui vivez: certainnement Quoy quil tarde ainsi danceres: Mais quant: dieu le scet seulement Advisez comme vous seres. Dam pape: vous commenceres Comme le plus dige seigneur:

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En ce point honore seres Aux grans Maistre est deu lonneur Herdeiro da Igreja de São Pedro, o “deus na terra”, nem mesmo o papa escapa à morte. Não só é necessário que ele acompanhe seu morto, como deve inaugurar a procissão: Le pape Hee: fault il que la dance mainne Le premier: qui suis dieu en terre Jay eu dignite souverainne En leglise comme saint pierre: Et comme autre mort me vient querre Encore point morir ne cuidasse: Mais la mort atous maine guerre Peu vault honneur qui si tost passé A autoridade laica maior, o imperador, é o próximo da fila. O morto ordena que ele abandone os acessórios símbolos de seu poder: o globo de ouro, o cetro, o brasão (“Laisser fault la pomme dor ronde / Armes: ceptre: timbre: baniere”), pois ele já não governa nada. Este chega à conclusão que, apesar de sua hierarquia, os grandes nada têm de vantagem diante da morte (“Et morir me fault pour tout gage / Quest ce de mortel demainne / Les grands ne lont pas davantage”). O mesmo se passa com o restante do elenco, que intercala leigos e cléricos, e é formado, após o imperador, pelo cardeal, o rei, o patriarca, o condestável, o arcebispo, o cavaleiro, o bispo, o escudeiro, o abade, o meirinho, o astrólogo, o burgomestre, o cônego, o comerciante, o cartuxo, o sargento, o monge, o usurário, o médico, o apaixonado, o cura, o lavrador, o advogado, o menestrel, o franciscano, a criança, o padre e o ermitão. Ao fim, os conselhos do “rei morto” àqueles que acompanharam o desfile (“Vous: qui en ceste portraiture / Venez danser estas divers / Pensez que humaine nature: / Ce nest fors que viande a vers”), lembrando que tudo na terra é transitório (“cest tout vent: chose transitoire”), e, sendo a morte certa, é necessário “mener vie humble et religieuse”. Cada figura era sempre acompanhada de seu morto. Abaixo da gravura, as 2 estrofes em 8 versos octossilábicos, a primeira com a convocação do cadáver, a segunda com a resposta ao chamamento. Contabilizam, ao final, 92 estrofes. Dessas, chama a atenção as palavras proferidas por um dos últimos personagens, a criança. Ela sequer aprendeu a falar, apenas balbucia; é recém-nascida ainda, mas evoca a mais pungente lição das danças: ninguém está imune à morte. Lenfant A. a. a. ie ne scay parler Enfant suis: iay la langue mue. Poéticas Visuais, Bauru, v 7, n. 1, p. 14-28, 2016.

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Hier nacquis: huy men fault aller Ie ne faiz que entrée et yssue. Rien nay mesfait. mais de peur sue Prendre en gre me fault cest le mieulx Londenance dieu ne se mue. Ainsi tost meurt jeune que vieulx. Com a publicação por Marchand dos supostos versos e personagens da dança original de Saints-Innocets, o gênero ganha um modelo, um formato razoavelmente padronizado que foi replicado em diferentes suportes (manuscritos, afrescos,gravuras, esculturas) e difundido por toda Europa Ocidental no final do século XV e no decorrer do século XVI. Autores como Utzinger (1996), Infantes (1998) e Corvisier (1998) apontam que a Alemanha é o território que possui o maior número de exemplares documentados (pelo menos 36). A França vem na sequência, com cerca de 28. Onze danças são italianas, doze provêm da Suiça, 5 da Austria. Na Inglaterra são também 5, enquanto que na Grã-Bretanha, por volta de 14. Quatro danças, apenas de textos, são espanholas. A Polônia, a Dinamarca, a Estônia e a Finlândia participam desta lista contando com 1 ou 2 danças, cada. Destes exemplares, alguns tornaram-se popularíssimos, devido ao grande impacto que causaram à época, ajudando a disseminar a cultura do macabro. Infelizmente, grande parte desse inventário já não existe mais ou encontra-se bastante degradada. O exemplar de La Chaise-Dieu Dos afrescos feitos logo após a dança do cemitério parisiense que resistiram aos séculos, podendo ser visitados ainda hoje, os pesquisadores consideram aquele pertencente à abadia de La Chaise-Dieu o que mais se aproxima da aparência do original. Trata-se de uma obra interminada e, mesmo assim, majestosa: possui 26 metros de extensão por 1,50 de altura e é dividida por pilares em três grandes painéis (o que lhe dá um aspecto de tríptico), que ocupam uma parede interna da Igreja. Seus 23 personagens, devidamente acompanhados de seus parceiros defuntos, estão separados em grupos correspondentes à sua posição social. Abaixo do espaço preenchido com imagens, há mais cerca de 15 centímentros de massa branca – reservados, supostamente, para inserção de texto, o que nunca ocorreu. Não há consenso sobre a data precisa de sua produção. Apesar de a abadia da pequena comuna francesa ser uma das mais respeitadas do reino à época, a administração jamais registrou informações oficiais sobre sua confecção . A análise indumentária considera que tenha sido feita até, no máximo, a década de 1480, considerando-se elementos como as mangas longas cujos punhos esbarram no chão, frequentes no século XV e que não eram mais usadas no XVI. Também a presença dos sapatos pontudos que portam quase todas as figuras, denominados à la poulaine – grande voga desde meados do século XIV que teve seu apogeu entre 1410 e 1470 até que foi proibido pelo decreto suntuário de 1480, sendo rapidamente substituído por calçados amplos de ponta achatada (o que sugere que a obra foi feita antes desta data). Assim, o caso da dança macabra de La Chaise-Dieu é extraordinário por não haver

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dados escritos sobre ela, tampouco nela. Por esse mesmo motivo, a caracterização dos vivos é aspecto a ser valorizado, pois, ao fim, se tornou a única maneira de identificá-los. Diversos detalhes indumentários foram acrescidos, a fim de serem facilmente reconhecidos por seus observadores; o artista preocupou-se também com suas fisionomias, acrescentando barbas, cabelos compridos e expressões. As quatro primeiras figuras são, sem dúvidas, as que se vestem de maneira mais luxuosa em todo o afresco. Estão aí o Papa, que porta um manto escuro e a coroa papal, tripartida, o Imperador, com capa longa em amarelo e uma pequena bolsa, presa em seu cinturão. Sua identidade é assegurada pelo uso da coroa fechada, símbolo do poder imperial, tal como o globo encimado por uma cruz, que segura na mão direita. A identidade da terceira figura também é obtida exclusivamente por seu traje em vermelho e seu galero de abas largas e longos cordões: a indumentária típica dos cardeais. O mesmo ocorre com o rei, cuja coroa e manto inteiramente ornados com flores-de-lis garantem o reconhecimento de sua posição. Portando sua armadura, formada por gibão revestido com couraça ou de placas de metal, cuissard de couro com joelheiras e perneiras, a sexta figura desse painel assusta-se com a chegada repentina da morte. Deixa cair sua grande e pesada espada. Pelo conjunto de seus adereços e pela posição que ocupa na dança, trata-se do condestável: o homem mais importante da hierarquia militar, atrás apenas do rei. Usa ainda um protetor de pés em metal, em formato a la poulaine; e, na cabeça, um toucado decorado com plumas na parte da frente. Personagem fundamental das danças macabras, o cavaleiro simboliza a nobreza de raízes bélicas e grandes privilégios hereditários, pertencente ao estrato superior da sociedade medieval. Nada disso, no entanto, o protege dos transis que lhe empurram e roubam sua espada. Porta um traje civil bastante elegante: um pourpoint robusto e saiado com mangas bufantes fechadas no punho. Meias compridas, sapatos pontudos à poulaine e um tipo de toucado imponente completam a composição. O segundo painel, dedicado às classes médias, chama à dança tipos urbanos como o comerciante, que coça a barba ruiva em atitude reflexiva, veste mangas bufantes com nesgas e carrega um saco de moedas. Também o sargento, portando uniforme e bastão. Além deles, figuras religiosas de ordens diversas e, no meio, uma personagem que parece ser uma mulher (a única): de traje longo, cabeça coberta por véu e feições delicadas. Diante dessa figura, o cadáver que a conduz cobre o rosto com o sudário – talvez para proteger-se de seus encantos. A “gente simples”, último escalão da sociedade, é mostrada no último painel. Vê-se o jovem poeta apaixonado, com seus fartos cabelos cacheados enfeitados com pequenas flores, que também segura na mão esquerda. A mão direita levantada, com a palma virada para seu rosto, demonstra seu atabalhoamento ao ser interpelado pela morte. Um jovem religioso dedicado aos estudos, usa tonsura e túnica longa com capuz. Os óculos sobre o nariz não escondem sua aflição ao ser confrontado com um cadáver que tentar arrancar o grosso livro que segura. Além deles, aparece o músico que, agarrado pela mão direita, deixa tombar ao solo seu instrumento, uma viela de roda, assim como o camponês, figura fundamental nas danças. Seu traje é o mais simples de todos: túnica curta com mangas, cuja barra foi erguida e presa no cinto, braies rasgadas e esburacadas nas coxas e perneira de tecido, cobrindo as panturrilhas. O sapato está amarrado nos calcanhares. Na cabeça, usa um tipo de gorro do qual saem duas Poéticas Visuais, Bauru, v 7, n. 1, p. 14-28, 2016.

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fitas que se amarram sob o queixo, com um pequeno chapéu por cima. Sua foice cai no chão após a investida de um dos cadáveres, mas ainda leva a enxada no ombro. Ora, a morte não poupa ninguém e mesmo os pobres e as crianças são seus alvos. Esta é uma das lições da dança macabra. O último personagem no afresco é um bebê, ainda enfaixado. Na Idade Média, o óbito infantil era frequente e o artista, sensibilizado pela dura realidade de seu tempo, evoca uma morte respeitosa, que, na medida possível, chega de mansinho e sem terror. O transi responsável por carregar o pequeno inocente, se abaixa e esconde sua repugnância com a mortalha. Assim, presume-se que a dança de La Chaise-Dieu seja dos mortos, uma vez que os transis, em alguns momentos, interagem entre eles ou carregam o mesmo vivo. A maneira como foram representados merece comentários: são extremamente zombeteiros. Com a possível exceção daquele que leva a criança, todos são assustadores e mesmo agressivos, empurrando suas vítimas ou fazendo com que tropecem, gargalham tresloucadamente, levantam os joelhos, se contorcem. A graça conferida a eles pelo autor anônimo revela muito de crítica social, além de falar dos diferentes tipos humanos da hierarquia medieval e a maneira como eram vistos. A Danza General de la Muerte A mesma polêmica a respeito da datação correta ocorreu com a Danza General de la Muerte, manuscrito em castelhano antigo, doado à Biblioteca do Mosteiro El Escorial, em Madrid, no ano de 1576 (Ms. b.IV.21, fol. 109-129). Não há informação alguma sobre sua procedência, autoria ou data de composição, que se estima por volta de 1440-1450. No entanto, existem fortes indícios de que se trata de uma transcrição, pois lê-se em sua primeira linha: “Dança general. Prologo enla trasladaçion”, o que pressupõe que esse manuscrito não passe de uma tradução ou de uma cópia de um outro original, do qual não se têm notícias. A obra é excepcional no sentido de ser uma das raras danças apenas literária, sem qualquer tipo de iluminura ou ilustração. Além do texto de apresentação, em prosa, na primeira página, tem 79 estrofes de 8 versos dodecassilábicos. Trata-se de uma dança da Morte e não dos mortos. O esquema é o de praxe nas obras do gênero: a Morte convida um personagem para entrar na dança, este, surpreso, tenta se esquivar e argumentar. Na estrofe seguinte, ela critica seu comportamento e assinala ser esse seu momento derradeiro; no último verso, intima o próximo da fila. Seus 33 personagens, intercalados entre laicos e religiosos, indicam os tipos mais representativos da sociedade medieval – como de costume nas Danças. Entre eles, está o Papa, primeiro a ser convocado, guia para os outros. Seu poder incomparável não o livra da morte; deve livrar-se de sua capa e começar a saltar ao ritmo da dnaça, sem mais demoras5: E porque el Santo Padre es muy alto señor, y en todo el mundo non hay su par que desta mi danza será guiador, desnude su capa, comience a sotar; non es ya tiempo de perdones dar,

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nin de celebrar en grande aparato, que yo le daré en breve mal rato: danzad, Padre Santo, sin más detardar. Apesar de todas as honras e benefícios que goza, o Papa admite por fim que nem ele poderia escapar à morte. Depois de se queixar, evoca Jesus e a Virgem no instante derradeiro: Dice el Padre Santo ¡Ay de mí, triste, qué cosa tan fuerte! a yo, que tractaba con grand prelacía, haber de pasar agora la muerte y non me valer lo que dar solía. beneficios y honras y grand señoria tuve en el mundo, pensando vivir; pues de ti, muerte, non puedo fuir. valme Iesucristo, y tu, Virgem Maria. Na estrofe seguinte, a Morte faz pouco caso das lamúrias do Papa (“Non vos enojedes, señor Padre Santo,de andar em mi danza”) que deve ir sem mais protestos (“aquí moriredes sin ser más bollícios”). No último verso, ordena a presença do Imperador em seu baile, e que este esteja com expressão contente (“¡Danzad, Imperante, con cara pagada!”)! O Imperador, apavorado, não compreende de imediato quem o obriga a dançar contra sua vontade. Reconhece a Morte, contra a qual ninguém pode se defender, homem grande ou coitado, rei ou duque. Neste momento, pede por socorro mas é tarde: já sente-se confuso, com a consciência alterada. Dice el Emperador ¿Qué cosa es esta que tan sin pavor me lleva a sua danza a fuerza, sin grado? Creo que es la muerte, que non ha dolor de hombre que sea grande o cuitado, non hay ningun rey nin duque esforzado, que della me pueda ahora defender: ¡acorredme todos! mas non puede ser, que yo tengo della todo el seso turbado. Mesmo sendo uma figura muy grande e poderosa no mundo, que a tudo governou com grande tirania, a Morte recomenda ao Imperador que não mais se preocupe pois não há mais tempo para tal: nada nem ninguém pode livrá-lo. Ao término da estrofe, chama o próximo da fila, o cardeal. Poéticas Visuais, Bauru, v 7, n. 1, p. 14-28, 2016.

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Dice la muerte

Lo que dice la muerte a los que non nombró

Emperador muy grande, en el mundo potente, non vos cuitedes, ca non es tiempo tal que librar vos pueda imperio nin gente, oro nin plata, nin otro metal; aquí perderedes el vuestro cabdal, que atesorastes con grand tirania, haciendo batallas de noche y de día. morid, non curedes. ¡Venga el cardenal! (…)

A todos los que aquí non he nombrado, de cualquier ley y estado o condición, les mando que vengan muy toste priado a entrar em mi danza sin excusación.

Com a única exceção do monge, que declara “muerte, non me espanto de tu fealdad”, todos os outros personagens temem a Morte e lamentam o encontro abrupto com ela. O arcebispo exclama: “¡Ay muerte cruel! ¿Qué te merecí,/ o por qué me llevas tan arrebatado?viviendo en deleites, nunca te temí;/ fiando en la vida, quedé engañado.”. O duque pede mais tempo (“espérame un poco, muerte, yo te ruego”); o bispo chora de tristeza (“Mis manos aprieto, de mis ojos lloro,/porque soy venido a tanta tristura”). O cavaleiro pondera: a ele não parece apropriado largar suas armas para dançar (“A mí non parece ser cosa guisada / que deje mis armas y vaya danzar”). Mesmo na hora de morrer, a principal preocupação do comerciante é com seus negócios (“¿A quién dejaré todas mis riquezas / y mercadurías que traigo en la mar?”), assim como o usurário (“Non quiero tu danza nin tu canto negro,/mas quiero, prestando, doblar mi moneda”). O lavrador humilde nem sabe como reagir ao chamado – ele, que nunca tirou as mãos do arado (“¿Cómo conviene danzar al villano / que nunca la mano sacó de la reja?”). Mas a Morte na Danza general aparece como senhora absoluta do destino da humanidade. Não é piedosa, usa armas e armadilhas e, em inúmeras passagens do poema, chega mesmo a ser fria e direta quanto à sorte de suas vítimas, parecendo negar, em alguns momentos, a idéia cristã do trespasse, do passamento. Na obra, ela é castigo (“esto vos ganó vuestra madre Eva /por querer gostar fructa devedada”); sua dança não é prazeirosa, é, antes, denominada “danza mortal” (verso 57), “danza baja” (verso 138), “danza sin piadad” (verso 153), “danza negra” (verso 235), “danza de dolores” (verso 268). Ainda assim, ela é sarcástica e exige constantemente que seus convidados dancem com animação e com a feição alegre. Nenhuma circunstância permite livrar-se dela: nem o poder temporal do rei, nem o poder religioso do papa, ainda menos o dinheiro do burguês – “Yo soy la muerte cierta a todas criaturas”, anuncia em seu primeiro verso. Tampouco a idade serve de excusa – do ancião ao jovem, todos são levados. Diante dela, a nostalgia, a resignação e o medo são sentimentos comuns, que igualam os homens. Tanto é que, ao final, ela se remete a todos aqueles que ainda não entraram em sua dança, mas que o farão quando menos esperarem: que respondam ao chamado prontamente, sem delongas:

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A caracterização da Morte personificada é sui generis na Dança espanhola e merece comentário. Além de portar objetos diversos como “lazos”, “redes”, “arco”, “frecha”, “charanbela” e “bozina”, e de ter “mano dura” e “duros dientes”, tem uma aparência terrível, é “cruel” e “muy braba”. Com astúcia, chega repentinamente, às vezes “sin facer ruído”. Presenteia suas vítimas com “bubas y landres”; estas ficam com o “seso turbado”, pois sua chegada é “cosa muy fuerte”; um “pierde el entendimiento”, outro é acometido por inesperada cegueira, a muitos falham os sentidos. A Danza general originou outros manuscritos, entre eles uma dança impressa em Sevilha, em 1520, depositada na Biblioteca de Alexandria. Seu texto é similar ao texto da primeira, com a diferença de ter mais 23 personagens e consequentemente, ser mais longo (as 79 estrofes se convertem em 139). A Dança Sevillana, como passou a ser chamada, refletiria, portanto, uma sociedade urbana que, em menos de um século, se tornou ainda mais complexa, contando com novos e representativos tipos sociais que sequer foram mencionados na obra anterior. Considerações Finais A dura lição das danças macabras não era desconhecida do medievo: é preciso rejeitar os bens terrenos e se preparar para a morte que pode chegar a qualquer instante, para qualquer um. Esse era um dos ensinamentos mais repetidos da cristandade. A novidade trazida pelas danças é mostrar o momento crucial do encontro com a morte. Nesse cenário, o que se vê figurar na dança macabra é o homem. Sua reação diante do fim da vida. Medos, fraquezas, vaidades, seu apego pelo mundo e pelos outros. As particularidades de sua identidade. Suas diversas ocupações, estados de espírito, idade, condição social, gênero. Mais: o homem vivo diante do homem morto, como em uma projeção: seu inevitável futuro de carnes podres, o esqueleto à mostra, peles rasgadas, face irreconhecível. O que se observa na dança macabra é, também, a sociedade. Sua organização interna, seus diferentes grupos com sua respectiva relevância na lógica social. As hierarquias concedidas às atividades políticas e econômicas – os lugares que nelas ocupam os que se dedicam à agricultura, ao artesanato, ao comércio, ao dinheiro, ao governo, à guerra, à religião. Sua sensibilidade diante do mais fraco ou do mais poderoso, da mulher, da criança. Seu modo de ver a diversidade. As realidades locais também aparecem nas danças. Certos personagens ou expressões presentes em uma obra revelam seu pertencimento e importância a um território específico. O condestável, personagem frequente das danças francesas, não é citado nas espanholas (que, Poéticas Visuais, Bauru, v 7, n. 1 , p. 14-28, 2016.

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por sua vez, dão espaço ao rabino judeu ou ao alfaqui muçulmano). Uma dança italiana destaca as ocupações urbanas e omite o trabalhador do campo – o oposto ocorrerá nas obras feitas em igrejas rurais, nas quais os tipos citadinos são menos apreciados. Mesmas categorias sociais podem ocupar postos diferentes de um lugar para outro, variações que as danças também contemplam. As danças macabras também refletem um tempo em que a sociedade medieval se torna mais complexa. No século XV, a tradicional divisão em três ordens já não dá mais conta dos grupos que surgem entre elas, em especial, fruto das recentes dinâmicas urbanas. Daí a dificuldade, por parte de seus autores, em fixar com exatidão a posição de personagens como o escrivão, o procurador, o padeiro, o arrecadador de impostos, o ladrão, o mendicante. Elas exprimem, por outro lado, uma nova consideração acerca dos homens de armas, que, neste cenário, perdem espaço para os trabalhadores manuais. Também as hierarquias laicas e eclesiásticas não eram parelhas. Neste sentido, não causa estranheza que se encontre um cavaleiro antes de um abade, um menestrel antes do cura, uma criança antes de um franciscano. Como definir com precisão o valor de um professor, de um advogado ou de um médico? E mais, como reconhecê-los nas danças iconográficas, sendo que usam, todos, trajes longos como os homens da Igreja? Os obstáculos não paravam aí, já que figuras como “a criança”, “o jovem”, “a mulher”, “a viúva”, “o cego” poderiam pertencer a qualquer categoria social. Onde encaixá-las? A percepção dos autores das danças era, portanto, peça chave na confecção destas obras. Observadores argutos de seu tempo, usavam seus talentos para ensinar a sua gente e para explicar sua comunidade para as gerações futuras. É através de seus olhos que temos, hoje, esses registros preciosos do mundo medieval. Notas de rodapé 1.Sobre esse assunto, ver: VIGARELLO, Georges. O limpo e o sujo. Uma história da higiene corporal. São Paulo: Martins Fontes, 2002. 2.Sobre as práticas funerárias da Idade Média, ver o capítulo “A morte de si mesmo”, In: ARIÈS, 2003, p. 46-63. 3.retirado da tradução para o francês de UTZINGER, 1996, p. 296. 4.Todos os excertos provém da reprodução dos versos da Danse Macabre de Guyot Marchand em UTZINGER, 1996, p. 277-299. 5.Todos os trechos do poema foram retirados de SOLÁ-SOLÉ, 1981.

Referências ARIÈS, Philippe. História da morte no Ocidente. Rio de Janeiro: Ediouro, 2003. ARIÈS, Philippe. O homem diante da morte. Volume I. Rio de Janeiro: Francisco Alves Ed., 1989. DELUMEAU, Jean. História do medo no Ocidente. 1300-1800: uma cidade sitiada. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. HUIZINGA, Johan. O outono da Idade Média. Estudo sobre as formas de vida e de pensamento dos séculos XIV e XV na França e nos Países Baixos. São Paulo: Cosac Naify, 2010. SOLÁ-SOLÉ, Josep M. La Dança General de la Muerte. Edición crítica, analítico-cuantitativa. Barcelona: Puvill Editor, 1981. UTZINGER, Hélène et Bertrand. Itinéraires des Danses macabres. Chartres: Éditions J.M. Garnier, 1996. Recebido em 17 de junho de 2015

Aprovado para publicação em 26 abril de 2016

O atelier, a pintura e o discurso da fotografia no século XIX (Algumas pontuações) The studio, the painting and the speech of photography in the nineteenth century (Some considerations) Rosemari Fagá Viégas* & Jéssica Fagá Viégas** *Graduada em Administração pela Escola Superior de Administração de Negócios (1975), mestra e doutora em Ciências da Comunicação e pela Universidade de São Paulo, USP, São Paulo, SP. Foi docente do Mestrado em Comunicação, Educação e Administração da Universidade São Marcos, Sâo Paulo, SP. Exerceu cargos de direção e gestão em Instituição Pública e editora- gráfica em revistas científicas. Organizou e participou de projetos acadêmicos e institucionais. Atualmente, é professora titular da Faculdade São Sebastião, São Sebastiaõ, SP. Avaliadora adhoc do MEC/INEP desde 1998. ** Graduada em Turismo pela Universidade São Marcos, mestra em Interdisciplinar em Educação, Administração e Comunicação pela Universidade São Marcos, São Paulo, SP, atuando principalmente nos seguintes temas: turismo, meio ambiente e metodologia. Professora titular das Faculdades Borges de Mendonça e Decisão. Membro do Núcleo de estágios e estudo dirigido – NEDE das Faculdades Borges de Mendonça.

Resumo

O presente texto pretende estabelecer relações entre a fotografia e a pintura no espaço de trabalho e de criação do artista, no século XIX. A abordagem se dá pelas interações entre a pintura e a fotografia; como as duas técnicas colaboram entre si e evoluiem uma com a outra no espaço do atelier. Nessa reflexão, pontua-se como as técnicas pictóricas e fotográficas transformaram-se mutuamente. Observam-se ainda que os pintores recolhem fotografias das paisagens e dos modelos para em seguida pintá-las no conforto dos seus ateliês. A pintura passa a fazer uma exploração mais plástica dos enquadramentos e assume um olhar mais casual em relação aos objetos – todas essas características advindas do compartilhamento de ateliers e práticas entre pintores e fotógrafos. Palavras-Chave: Pintura; Fotografia; Atelier; Século XIX. Abstract Abstract: This text aims to establish relationships between photography and painting in the workspace and the artist creation in the nineteenth century. The approach is given by the interactions between painting and photography; as the two techniques evoluiem and collaborate with each other in the studio space. In this reflection, it scores as the pictorial and photographic techniques have become each other. It is also note that painters collect photographs of landscapes and models to then paint them in the comfort of their studios. The painting starts to make a more plastic exploitation of frames and takes a more casual look in relation to objects - all these features arising from the workshops and sharing practices among painters and photographers. Keywords: Painting; Photography; Atelier; XIX Century.

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E

m 1826, Joseph Nicéphore Nièpce, inventor francês, produziu o que se reconheceu como a primeira fotografia numa placa de estanho coberta com derivado de petróleo fotossensível chamado Betume da Judeia. Essa imagem abalaria todo um sistema de representação da realidade que vigorava desde as pinturas rupestres. Oito horas de exposição à luz solar, proporcionou a emergência da fotografia e transformou radicalmente a pintura. A partir do processo de heliografia (gravura com a luz do Sol), a técnica se desenvolveu a passos largos e concomitantes, isto porque, paralelamente, Louis Jacques Mandé Daguerre, pintor e cenógrafo, confeccionou com uma câmera escura com efeitos visuais dispostos em um espetáculo denominado “Diorama”. Notemos que o método de câmera escura já era empregado desde a Antiguidade e o Renascimento: Aristóteles, Leonardo e Veemer fazem referência ao método de capturar imagens para fins astronômicos e na produção de desenhos e pinturas. O quê Daguerre fez foi apefeiçoar o mecânismo óptico que permitiu a captura da imagem.

Fig. 1. Atribuída a Joseph Nicéphore Niépce, primeira fotografia permanente, 1826.

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Durante alguns anos, Daguerre e Nièpce trocaram correspondências e firmaram sociedade. Após a morte de Nièpce, em 1833, Daguerre desenvolveu um processo – o daguerrotipia – com vapor de mercúrio que reduzia o tempo de revelação de oito horas para minutos. No auge da Revolução Industrial, seu inventor descreveu o processo na Academia de Ciências e Belas-Artes, na França, e logo depois reinvidicou a patente do invento na Inglaterra. As potencialidades técnicas e científicas do daguerrótipo se mostravam promissoras para as novas necessidades sociais que a presença da máquina demandava à época. Apesar de ser mais rápido do que a heliografia, o daguerrótipo necessitava ainda de um determinado tempo para fixar a imagem, por tal razão os fotógrafos deslocavam-se para lugares distantes a fim de realizar os registros; esses locais eram, geralmente, cemitérios ou cidades vazias, isto porque assim as imagens ficariam livres dos vultos que poderiam surgir com a movimentação de pedestres ou veículos durante o tempo de exposição da placa fotossensível. Foi nesse momento que ocorreu a popularização dos daguerreótipos, dando origem às especulações sobre o “fim da pintura”. A pintura como representação da realidade perdia para a capacidade objetiva da fotografia que impressionava pela apreensão dos detalhes, pela rapidez na capatação da imagem e por sua reprodutibilidade (ou seja, de uma única imagem era possível multiplicar muitas outras). O século XIX foi marcado por essa oposição entre fotografia e pintura: questionada a atividade pictórica, mantinha seu estatuto artístico a duras penas; já a fotografia não era encarada como arte, mas sim, como processo mecânico, uma vez que captava as imagens através de fenômenos físico-químicos – os fotógrafos eram vistos como técnicos e não como artistas. A imagem fotográfica constituía, gradativamente, uma nova visualidade; um novo discurso para a representação da realidade. Por sua vez, com a existência da fotografia, os pintores poderiam romper a barreira da representação e, de modo intenso, exercitariam seu intelecto e sensibilidade. As pinceladas ficaram mais fluídas e espontâneas, visto que a reprodução fidedigna estava a cargo da fotografia. Sua exploração plástica, seus enquadramentos passaram a ser mais casuais em relação aos objetos e, movimentos como o expressionismo, o surrealismo, o dadaísmo e o cubismo tiveram forte influência da imagem técnica, transformando nas vanguardas históricas que revolucionaram as artes e, especialmente a linguagem pictórica. Porém, no ínicio da atividade fotográfica, por suas qualidades técnicas, a fotografia era extensivamente empregada em registros científicos, porém, no campo artístico a resistência de muitos pintores colocava um intenso debate. Alguns artistas decretaram o “fim da pintura”, outros empregaram a fotografia como instrumental para captar o instante com objetividade e outros ainda libertaram-se do ato de mímese. Nesse limiar, uma série de pintores, conhecidos como os miniaturistas (especialistas em retratos em pequenas dimensões para serem enviados por cartas), teve sua atividade reduzida – alguns deles, ainda se dedicaram a pintar pormenores minuciosos nas fotografias que agora eram enviadas nas cartas. Todo esse debate e as mudanças que decorrem dele se dá no espaço do atelier. O discurso fotográfico “liberava a pintura de toda uma série de servidões constrangedoras e a remetia a uma interpretação não tanto subjetiva quanto psicológica e analítica do universo”1 iria ao encontro do processo que se instala nas artes com o domínio da técnica e Poéticas Visuais, Bauru, v 7, n. 1, p. 29-36, 2016.

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da prática fotográfica. Muitos artistas optaram pelo abandono da função meramente mimética da pintura e iniciou-se a revisão dos cânones pertinentes à perspectiva clássica. No fundo, despertou-se para uma busca por outros caminhos de expressão, especialmente por se darem conta de que a fotografia passou a realizar o ideal da arte renascentista, a partir de um ponto de vista central e monocular. Segundo Susan Sontag, “a fotografia, assumindo essa tarefa de retratar realisticamente, até aí monopolizada pela pintura, libertou-a para a sua grande vocação modernista: a abstração”2. De fato, a pintura e a fotografia sempre estiveram ligadas intimamente e compartilham desde o nascedouro da fotografia dos ateliês dos pintores – lugares de trabalho artístico, onde a criatividade, a experimentação, a manipulação e a pesquisa encontram espaço. Aqui devemos lembrar que Daguerre era pintor e grande parte de suas experimentações para desenvolver o processo da heliografia deve ter se dado entre as paredes de seu atelier. Com o incremento e a expansão da técnica fotográfica, os pintores passaram a recolher fotografias de passagens e dos modelos para depois pintá-los nos seus ateliers. Os mecanismos da fotografia auxiliavam os pintores na composição, nos melhores enquadramentos e aperfeiçoamento do desenho. Nesse momento, o atelier serve como laboratório de experimentações tanto para artistas como para fotógrafos (não raro existiam pessoas que uniam as duas aptidões). As fotografias em estúdio adotavam as mesmas poses dos retratos solenes das pinturas a óleo; a caracterização do espaço constituído pelo agrupamento dos corpos que se sobrepõem, ou ainda, o tema da natureza-morta ao compor cenários tais quais as pinturas de gêneros (retratos, autorretratos, natureza-morta e pintura histórica). Os retratos fotográficos, devido ao tempo de exposição, traziam uma aparência sólida, sóbria e eterna, assim como retratos desenhados ou pintados.

Fig. 2 Desenho de Courbet, 1850. Foto de August Belloc, 1855. Fonte: Introdução aos Novos Média. Pintura e Fotografia. In: https://digartmedia.wordpress.com/2010/03/08/pintura-e-fotografia/. Acesso 26 mar. 2015.

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É inegável a presença da imagem técnica da produção de pintores, tais como Gustave Coubert que transpunha à pintura imagens extraídas de fotografias. Os recortes das cenas selecionadas pelo artista deixavam clara a influência direta da fotografia em suas escolhas. À época, o artista foi atacado pela crítica, principalmente por se aproximar em excesso da fotografia. Ele buscava a representação exata do que via, em detrimento ao romantismo que vigorava entre os pintores naquele momento. Para Coubert, “o pintor perfeito deve ser capaz de destruir a sua melhor composição dez vezes de seguida e de cada uma das vezes, pintá-la de novo para demonstrar que não depende nem da sua decisão nem do acaso”3.

No mesmo momento, a maioria dos pintores buscavam referências à realidade externa de seus modelos (pessoas, objetos ou paisagens), entre essas produções pictóricas estão as de Jean-Auguste-Dominique Ingres, Théodore Géricault, Honoré Daumier, Eugène Delacroix, Claude Monet, entre outros. Ou ainda, citemos as primeiras obras de Édouart Manet que têm o apelo da fotografia de estúdio. O Balcão, apresentado no Salão de Paris de 1869 (e que hoje, encontra-se no Museu d’Orsay, em Paris), torna-se exemplar dessa produção que se centra nas cenas da vida burguesa. Tais quais os retratos fotográficos, elaborados, em estúdio, as personagens são representadas numa atitude fixa, a cena aparenta narrativa ou história. A posição dos personagens de Manet poderia estabelecer referências com a fotografia de Maurice Nadar. A posição hierárquica de seus personagens e a certeza de que são membros da burguesia à época é nítida na cena retratada.

Fig. 3. Édouart Manet, O Balcão, 1868. Museu d’Orsay, Paris (França).

Nesse ponto, é importante assinalar que foi o atelier/estúdio de Nadar que abrigou, em abril de 1874, a primeira exposição de um grupo de pintores rejeitado pela crítica. Eram eles: Monet, Renoir, Pissarro, Sisley, Cézanne, Berthe Morisot e Dega – os impressionistas. Não é gratuitamente que o movimento foi fortemente influenciado pela técnica fotográfica. A intenção de captar o instante, a luz e as variações do tempo. Os efeitos ópticos ocasionados pelo resultado da pesquisa fotográfica tiveram denso apelo entre esse grupo de pintores; sobre sua composição de cores e sobre a ideia relativa à formação de imagens na retina do observador.

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Fig. 4. The former painter Charles Crodel with a sketch-book, photograph by Nadar, Marseille, 21 rue de Noailles, 1905. Poéticas Visuais, Bauru, v. 7, n. 1, p. 29-36, 2016.

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Cícero Dias: “Eu vi o mundo ...” Apontamentos sobre sua trajetória

O atelier, como espaço privado de criação dos artistas (concepção que temos até a atualidade), é concebido em torno do ideário romântico e realista. A própria noção de atelier é uma construção histórica que surge, a partir do renascimento e que se altera de acordo com as demandas sociais da modernidade: um lugar estratégico e de trabalho para as inovações, onde o anônimo do artesão transforma-se em artista reconhecido socialmente. O atelier, na história da arte, é instrumento operacional relevante para a construção de “um mundo da arte”, compartilhado por pintores e fotógrafos. Aos poucos, nesse “mundo da arte”, os fotógrafos iniciaram a reinvindicação à expressividade artística. Admitiu-se que na imagem fotográfica, encontravam-se, indissociavelmente incorporados componentes de ordem material que são os recursos técnicos, ópticos e químicos indispensáveis para a materialização da fotografia e, os de ordem imaterial, que são os mentais e culturais. Estes últimos se sobrepõem hierarquicamente aos primeiros e, com eles, se articulam na mente e nas ações do fotógrafo ao longo de um complexo processo de criação4. Em síntese, no século XIX, no espaço do atelier fotógrafos e pintores puderam mediar experiências e desenvolver técnicas e discursos a partir de atributos originários de cada uma das linguagens. O contexto social e científico que fez emergir o discurso fotográfico provocou forte impacto na pintura, gerando discussões sobre a visualidade do “real”, resultando na reconfiguração de muitos parâmetros artísticos. A convivência nos ateliers entre fotógrafos e pintores teve grande significado, contribuindo, em última instância, para desencadear a arte moderna. A prática fotográfica e a própria fotografia foram altamente popularizadas e consumidas, passando a atender a múltiplas demandas dentro dos complexos mecanismos da indústria cultural que então se esboçava. Notas de Rodapé 1. FRANCASTEL, Pierre. A realidade figurativa: elementos estruturais de sociologia da arte. São Paulo: Perspectiva, 1993, p. 130. 2. SONTAG, Susan. Sobre fotografia. Trad.: Rubens Figueiredo. São Paulo: Companhia das Letras, 2004, p. 89. 3. STREMMEL, Kerstin. Realismo. Koeln: Taschen, 2005. p. 7 4. KOSSOY, Boris. Fotografia e História, São Paulo: Ateliê Editorial, 2003, p. 43.

Referências

ARGAN, Giulio Carlo. Arte moderna, São Paulo: Cia das Letras, 1993 BENJAMIM, Walter. A obra de arte no tempo de sua técnica de reprodução – Sociologia da Arte, Rio de janeiro: Zahar, 1969. CANTON, Katia. Retrato da Arte Moderna. São Paulo: Martins Fontes, 2002. DUBOIS, Philippe. O ato fotográfico e outros ensaios. Trad.: Marina Appenzeller. Campinas: Papirus, 2007. 10ª ed FRANCASTEL, Pierre. A realidade figurativa: elementos estruturais de sociologia da arte. São Paulo: Perspectiva, 1993 GOMBRICH,Ernst.H. A História da Arte, Rio de Janeiro: Zahar, 1978 HAUSER, Arnold. História Social da Arte e da Literatura, São Paulo: Martins Fontes, 2000. Introdução aos Novos Média. Pintura e Fotografia. In: https://digartmedia.wordpress.com/2010/03/08/ pintura-e-fotografia/. Acesso em 26 mar. 2015. JUCHEN, Marcelo. E fez-se a luz: contribuições do medium fotográfico para a instauração do realismo literário. Contingentia, UFRGS, no. 1, v. 4, 2009. In: http://www.seer.ufrgs.br/contingentia/article/view/8659/5030 KOSSOY, Boris. Fotografia e História, São Paulo: Ateliê Editorial, 2003 SONTAG, Susan. Sobre fotografia. Trad.: Rubens Figueiredo. São Paulo: Companhia das Letras, 2004 STREMMEL, Kerstin. Realismo. Koeln: Taschen, 2005. Recebido em 17 de junho de 2015

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Cícero Dias: “I saw the world ...” Notes on his trajectory. Dalmo de Oliveira Souza e Silva* *Graduação em Pedagogia pela Faculdade de Filosofia e Letras Nove de Julho, e em Letras pela Universidade Federal de Alagoas; mestrado em Artes pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, e doutorado em Artes pela Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, com bolsa Sandwich (Daad) na Universidade de Augsburg/Alemanha. Atualmente é professor titular do Centro Universitário Álvares Penteado e da Universidade Metodista de São Paulo. Pesquisador da Cátedra de Gestão de Cidades da Umesp.

Resumo O texto discute o modernismo brasileiro a partir da trajetória de Cícero Dias, artista nascido num engenho da cidade Jundiá/PE. Grande parte de sua vida residiu em Paris, onde estabeleceu amizade com os pintores Henri Matisse, Picasso, Fernando Léger e o poeta Paul Éulard, porém, manteve em seu percurso estético os temas referentes à realidade nordestina, evidenciando um modernismo distinto ao desenvolvido no eixo Rio-São Paulo. . Palavras-chave: Cícero Dias; Percurso Estético; Modernismo Brasileiro. Abstract The paper discusses the Brazilian modernism from Cicero Dias trajectory, artist born in a mill town Jundiá / PE. Much of his life he lived in Paris, where he established friendship with the painters Henri Matisse, Picasso, Léger Fernando and the poet Paul Éulard, however, kept its aesthetic route the issues affecting the northeastern reality, showing a distinct modernism developed in the axis Rio-São Paulo. Keywords: Cicero Dias; Aesthetic Rute; Brazilian Modernism.

Aprovado para publicação em 28 junho de 2016

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A realidade nordestina torna-se bastante especial quando é retomado o processo de ocupação e de colonização dessa região. Diferentemente de São Paulo (ou de áreas semelhantes a esta), a região do Nordeste, em especial, Recife foi marcada profundamente pelos engenhos de cana-de-açúcar que geraram grandes riquezas em quase todo o período colonial brasileiro. O surto industrial, ocasionado pelo café, que atingiu as cidades paulistas com tamanha intensidade não foi sentido na região nordestina, onde a cultura do açúcar ordenava as regras sócio-econômicas. As representações dos artistas de origem nordestina, de modo geral, realizam leituras baseadas em suas memórias da unidade de produção açucareira (engenhos, canaviais e arrabaldes próximos a “casa grande”1). Um desses artistas e, possivelmente, um dos mais interessantes, é Cícero Dias – caracterizado por ser um pintor das “coisas de sua terra” (Recife), mas que nem por isso deixou de aderir às vanguardas europeias. Cícero Dias produz uma arte envolvida com a “força dos canaviais”. Sua pintura possui os tons vermelhos e verdes do nordeste; a identificação com a vida dos engenhos e da proximidade junto ao mar e, a vivência de quem não se esquece de onde nasceu. Como é possível realizar uma produção artística tão comprometida com aspectos regionais e, ao mesmo tempo, promover e aderir a movimentos internacionais – considerados como ousadias estéticas? Através do estudo dirigido à vida e à obra de Cícero Dias se compreendem os caminhos do modernismo brasileiro, visualizando o diálogo entre o regional e as vanguardas internacionais.

“Eu Vi o Mundo ... ele começava no Recife” (detalhe do painel), 1926-1929. Museu Nacional de Belas-Artes, Rio de Janeiro/RJ.

A

lgumas investigações abordam o modernismo brasileiro atribuindo grande ênfase às manifestações artísticas concentradas no eixo Rio-São Paulo. Essa atitude necessidade de atenção, visto que o fator geográfico tende a polarizar a criação artística nacional. Após as comemorações dos 90 anos da Semana de Arte – ocorridas em grande parte em 2012 - surgem novas pesquisas que resgatam outras realidades ligadas ao modernismo distintas às grandes metrópoles – e que igualmente compõem o universo estético do país – pode mostrar as diversas facetas do fenômeno da arte moderna entre os nossos artistas. De fato, os primeiros movimentos para a emergência do modernismo brasileiro surgem de um grupo seleto de artistas radicados em São Paulo. Contudo, não se desconsidere nomes como os de Vicente e de Joaquim do Rego Monteiro que não eram de famílias paulistas, mas sim membros da elite nordestina e que estes contribuíram para formação do ideário moderno no contexto nacional. Apesar de serem educados na Europa e da maior parte de sua produção ter sido realizada em Paris, esses artistas traziam consigo sua terra de origem e cada um, ao seu modo, desenvolveu sua poética.

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O jovem artista pernambucano era uma grata surpresa aos modernistas. Os comentários de Mário de Andrade sugeriram que seu painel “Eu vi o mundo ... Ele começava no Recife” provocou escândalo na alta sociedade brasileira, pois esta ainda não tinha se acostumado totalmente com a ousadia da linguagem modernista e não estava preparada para compreender a verdadeira extensão dos nus provocativos observados na tela de Cícero Dias2. A adesão ao modernismo foi instintiva para Cícero Dias. Iniciado na pintura por uma tia, ainda no Engenho de Jundiá (onde nasceu), desenvolveu sua formação artística no Mosteiro de Sain-Benoît, no Rio de Janeiro. Ainda na década de 1920, o artista exercitava, em seu trabalho, traços semelhantes aos desenvolvidos por Marc Chagal e Paul Klee, em Paris – isso sem conhecer ou ir até às correntes franceses. Em 1928, ocorreu a primeira exposição individual de Cícero Dias, no Rio de Janeiro3. No evento, muitas pessoas influentes do cenário cultural brasileiro estavam presentes, entre eles: Graça Aranha, Tristão de Ataíde, Di Cavalcanti, Murilo Mendes, Antonio Bento, entre outros4. A mostra de Cícero Dias aconteceu como evento paralelo ao I Congresso de Psicanálise da América Latina. Silva Jardim (um dos críticos envolvido no evento) considerou sua exposição como a primeira manifestação surrealista ocorrida no país. À época, a criação artística e os sonhos eram vistos como manifestações legítimas do inconsciente e as imagens oníricas eram consideradas como a melhor expressão para fatos de origem inconsciente. A obra de Dias correspondia de modo imediato a essas expectativas.

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Artista atuante em seu meio social, Cícero Dias sempre foi um boêmio. Suas relações pessoais provocaram marcas em sua arte. Por essa razão, contraiu desafetos no cenário nacional e internacional – exemplo disso foram suas relações pouco amistosas com André Breton e Oswald de Andrade. Profundamente envolvido com ações políticas, Cícero Dias fez parte da Frente Única Sindical, juntamente com outros jovens idealistas que não escondiam os planos de salvar a nação brasileira. Eram portadores da mensagem comunista em um período no qual Getúlio Vargas dirigia o país ao encontro da ditadura do Estado Novo (com cores fascistas). Como resultado de suas ações políticas, o artista teve seu atelier saqueado diversas vezes e o exílio voluntário, em 1937, em Paris, foi medida imposta para escapar à perseguição de Getúlio Vargas aos comunistas. Com o auxílio de Paulo Prado, importante incentivador dos artistas modernistas, Cícero montou seu atelier em Montparnasse – o bairro dos boêmios e dos artistas franceses e alguns brasileiros. A partir de então, Cícero Dias não retornaria mais ao país – a não ser para passar temporadas em férias ou realizar exposições esporádicas. A vida parisiense o tomou por completo. O convívio nas rodas boêmias, nos cafés e bares de Paris, permitiu que este conhecesse artistas e intelectuais, entre eles: Henri Matisse, George Braque, Fernand Léger, Paul Éulard e André Breton. A aproximação íntima com Pablo Picasso o deixou lado a lado com as criações artísticas da vanguarda francesa e a amizade com Éulard o colocou no meio da resistência antinazista, no período mais acirrado da II Guerra Mundial5. Outro fator marcante em sua produção artística: a partilha de experiências com poetas e escritores. O artista desenvolveu laços de amizade com intelectuais, como: Paul Éulard, José Lins do Rego e muitos outros. Além de ter sido o ilustrador da primeira edição de Casa Grande e Senzala de Gilberto Freyre. Em muitos depoimentos, Cícero Dias reafirmou sua afinidade com a poesia: Minhas emoções maiores no ato de pintar tiveram sempre ligações com a poesia. Procurava transmitir para as telas o humanismo que Rimbaud me transmitia, o humanismo de Murilo Mendes, a sensibilidade de Carlos Dummond de Andrade, a força telúrica de Mário de Andrade, o lirismo puro de Bandeira. Em suma, eu lia poesia para pintar como poeta.6

O depoimento do artista esclarece sua intenção em transformar a palavra escrita em elemento plástico e pictórico, sobressaindo, dessa atitude, a experiência e a emoção das palavras traduzidas em cores e formas. Para o pintor sua obra necessitava transmitir mensagens. Essas mensagens diziam coisas da sua realidade primeira – a Recife de seus tempos de juventude. O movimento contrário também é verdadeiro, pois José Lins do Rego se sentia à vontade para dizer que “vejo os seus quadros como se andasse no meu engenho”.7 Existiu assim uma correspondência entre a obra literária de Lins do Rego e a pintura de Cícero Dias. É como se ambas fossem complementares! O diálogo estabelecido entre o literário e o pictórico é fator primordial para a compreensão de seu percurso estético. Em mais de uma oportunidade, a obra de Cícero Dias

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informou sua dualidade entre o regional/internacional, pois conseguiu ser a visão exata da literatura regional de um escritor como José Lins do Rêgo, ao mesmo passo, em que pôde ser acolhida pelo cosmopolita Paul Éulard. A movimentação entre o regional e o internacional fez com que o público de Cícero Dias obtivesse uma posição dinâmica frente às duas realidades. Assinale-se que mesmo vivendo em Paris, a poética visual desse artista não se remete às experiências vividas na França. O assunto de suas telas é predominantemente brasileiro (e em particular, nordestino). Contudo, o desenvolvimento de sua arte estava atrelado aos movimentos da vanguarda francesa. Cícero Dias empregou recursos do surrealismo e do abstracionismo em elementos plásticos nordestinos8. Mesmo em sua produção abstrata, a presença do Recife esteve registrada nas cores do canavial (verdes e vermelhos). As vindas ao Brasil serviam para reavivar sua memória poética – presa nas vivências da infância no Engenho de Jundiá ou na beira do Capiberipe. Isto o clima e a atmosfera moderna de Paris não puderam alterar em seu exercício pictórico. As telas de Cícero foram representações de imagens reais e anteriores, observadas pelas reminiscências da memória. Imagens que acabaram transformando-se em função da mescla de outras já vividas ou imaginadas e que ressurgiam espontaneamente. Uma produção caracterizada pela força, a surpresa e a amplitude emocional – fatores difíceis em outros artistas nacionais, isto porque muitos sofreram uma retração criativa por pressão de fórmulas adotadas pela modernidade no século XX. Cícero Dias conheceu diversos movimentos e linguagens artísticas. Segundo o próprio artista, o abandono de cada um desses movimentos se deu a partir do momento em que os incorporava aos seus trabalhos – deles restando apenas uma ou outra contribuição (uma espécie de deglutição criativa). Surgiu, então, uma permuta incessante entre o presente/passado e entre o regional/cosmopolita, resultando em uma mistura entre as cores do Brasil e as linguagens estéticas internacionais. O mundo para Cícero Dias pode ter tido início no Recife, mas possuiu um prolongamento até Paris. De lá, este artista refletiu incessantemente sobre o nordeste brasileiro e sobre sua luminosidade. Voltado aos movimentos internacionais, esse artista acompanhou todos os “ismos” na arte e observou a substituição destes por arte cinética, ecológica, conceitual, entre outras linguagens, além das que se caracterizam por ser antiarte. Nunca perdeu sua coerência interna, absorvendo de cada uma dessas correntes artísticas aquilo que achava melhor para a construção de sua pintura, guardando seu tom de modernidade – sem esquecer os temas brasileiros.

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Mesmo morando em Paris, este pintor conservou em suas telas a luz dos trópicos. Os tipos populares do nordeste, retratados sobre a extrema luminosidade do sol de Recife fizeram parte de seu vocabulário criativo. E se apresentaram em permanente contraste com o azul sertanejo ou com os verdes dos canaviais – que permaneceram em todas as fases de sua arte9. Não se pode esquecer o vermelho “sangue de boi”, a demonstrar uma fidelidade à luz brasileira e a realidade do país - fato mencionado algumas vezes por Paul Éulard, em 194810.

glaterra o poema Liberté de Paul Éulard e assim contribuir para a reação francesa na Guerra. ABRIL CULTURAL, A pintura no Brasil, Rio de Janeiro: Abril Cultural, s/d, p. 70.

Em síntese, Cícero Dias soube conciliar o regional e o cosmopolita de maneira especial em sua produção artística. Os diversos relacionamentos travados entre artistas e intelectuais, de certo modo, permitiram com que Cícero, através de sua arte, estabelecesse um diálogo constante entre a temática regional e as linguagens artísticas de vanguarda do século XX. Para o artista, a vida e a poesia, visto que era amigo de poetas e franco admirador da emoção transmitida pela palavra, deviam ser refletidas em suas telas e estas deviam falar de coisas do Recife – imagens guardadas na sua memória. O nordeste brasileiro, rico em formas e cores, era a realidade de sua infância e continuou sendo a de sua obra. Por isso, não importavam os experimentalismos do surrealismo ou do abstracionismo (visto como instrumentos) para que Cícero Dias mostrasse seus elementos regionais. O importante era criar algo original – que transmitisse suas emoções11. O artista afirmava: “Pintar é uma emoção. A realidade tanto pode estar nos abstratos quanto nos expressionistas. Pinto com o pensamento voltado para o nordeste.12”

7. O Estado de S. Paulo, 03 ago. 1963.

Notas de rodapé 1. A sociedade constituída pelo açúcar apresentava uma estrutura centrada na figura do patriarca (dono de engenho) cercado por seus familiares (lembrando que é uma família extensiva), agregados (apadrinhamentos) e empregados (antes da mão-de-obra livre e assalariada, escravos). As relações de poder social giram em torno da sede do Engenho (“a Casa Grande”). 2. “Eu vi o mundo ... Ele começava no Recife”, painel realizado em 1926, medindo 2,5 metros de altura por 15 metros de largura. Exibido no Salão Nacional de Belas Artes, este painel foi mutilado em 3 metros, em uma de suas extremidades (por conter nus frontais considerados escandalosos para a época). 3. Com o auxílio de seus amigos Di Cavalcanti e Murilo Mendes, Cícero alugou uma sala na Av. Rio Branco e promoveu sua primeira individual com a presença da intelectualidade brasileira, na época. ABRIL CULTURAL, A pintura no Brasil, Rio de Janeiro: Abril Cultural, s/d., p.70. 4. Cícero foi preso pelos nazistas e levado a um campo de concentração, onde permaneceu por pouco tempo. Em liberdade, ligou-se a elementos da Resistência Francesa e passou a viver entre Lisboa e a França. Um dos seus grandes feitos foi conseguir contrabandear para a In-

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5. Depoimento em O Estado de S. Paulo, 24 abr.1999. 6. Idem.

8. “Inicialmente surrealista, lembrava Marc Chagall. Depois, passou por um período abstracionista, conservando sempre as cores dos canaviais que constituíram seu mundo de criança. Uma fase posterior será, por assim dizer, uma volta ao passado, um figurativismo ingênuo, não contaminado pela paisagem francesa – quase sempre inspirado nos temas de sua adolescência: o Capiberipe, o Recife, as cantigas do carnaval.” ABRIL CULTURAL, A pintura no Brasil, Rio de Janeiro: Abril Cultural, s/d, p. 70. 9. I – fase (1927-1937): predomínio das aquarelas e óleos, marcados por um simbolismo explícito e inequívoco. Uma busca da realidade interior do homem, transitando entre o real e o imaginário. Também demonstrou, nesse momento, preocupações comuns ao surrealismo, com distorções que indicaram um deslocamento em direção ao mundo o inconsciente e do sonho. II – fase (1936-1960): experiências entre a figuração e a abstração. O contato com os artistas da Escola de Paris provocou em sua arte grande impacto, a participação no grupo Espace o fez adotar a forma geométrica, aos poucos esse rigor formal foi sendo substituído pelo abstracionismo informal. III – fase (1961-2001): a figura da mulher era transformada em seu emblema. A produção mais recente aborda temas como as praias, o sol, a lua e os canaviais de Recife. 10. O Estado de S. Paulo, 23 nov.1967. 11. Segundo seus críticos, Cícero Dias constitui um exemplo raro de pintor que mais que se esforce é incapaz de imitar qualquer outro, como se sentisse a obrigação de ser original. Ele mesmo afirma: “Sou instintivo. Apenas pinto aquilo que conheço, defendendo as cores com as quais tenho intimidade. A Europa não exerceu influência sobre minha arte”. Folha de S. Paulo, 25 set.1984. 12. Jornal da Tarde, 18 nov. 1981. Referências ABRIL CULTURAL, A pintura no Brasil, Rio de Janeiro: Abril Cultural, s/d. FONTES, Luiz Olavo. Cícero Dias, anos 20. São Paulo: Index, 1993. Poéticas Visuais, Bauru, v 7, n. 1, p. 37-44, 2016.

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MESTRE DO DESENHO BRASILEIRO: VINTE E SETE ARTISTAS REPRESENTATIVOS, São Paulo: FIESP, 1983.

Ilustração: O texto não-verbal em livros infantis Illustration: Non-verbal text in children’s bookss

Sites:

Carlos Henrique Marinelli* & Maria Luiza Calim De Carvalho Costa**

http://www.cicerodias.com.br http://www.estado.estadao.com.br httpp://www.itaucultural.org.br

*Graduado em Educação Artística, Habilitação em Artes Plásticas pela Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação (FAAC) da Universidade Estadual Paulista, Unesp, Bauru, SP. ** Mestra e doutora em Comunicação e Poéticas Visuais pela Universidade Estadual Paulista, Unesp, Bauru, SP. Professora aposentada do Departamento de Arquitetura, Artes e Comunicação da Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação da Unesp, Bauru, SP.

Jornais e Revista: Veja, 31 jan. 2001, p. 122. O Estado de S. Paulo, 24 abr.1999. Folha de S. Paulo, 25 set.1984. Jornal do Brasil, 22 set.1984. Folha de S. Paulo, 20 mar.1984. O Estado de S. Paulo, 23 nov.1967. O Estado de S. Paulo, 03 ago.1963. Recebido em 17 de junho de 2015.

Resumo

Aprovado para publicação em 29 abril de 2016

O presente artigo apresenta o processo de leitura em seus vários níveis, dá ênfase à vertente da leitura da imagem nos livros infantis direcionados ao pré-leitor e ao leitor inicial. No livro-imagem, o texto narrativo é baseado nas ações que envolvem as personagens, tempo, espaço e conflito. A pesquisa teórica fundou base para a produção de um livro-imagem de autoria do pesquisador e descreve todo o processo criativo até sua finalização como produto físico. Palavras-chave: Leitura; Imagens; Criança; Livro-Imagem. Abstract This article presents the reading process in several levels, emphasizes the aspect of the image reading in children’s books aimed at the pre-reader and the initial reader. In the book-image, the narrative text is based on actions involving the characters, time, space and conflict.The theoretical research founded basis for the production of a image-book authored by researcher and describes the entire creative process to its completion as a physical product. Keywords: Reading; Images; Child; Image-Book.

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Introdução

O

artigo descreve o processo de leitura com ênfase na instauração da leitura de imagens. Alguns aspectos sobre o uso da imagem são evidenciados ressaltando seu uso no contexto histórico. Na primeira parte da pesquisa encontra-se um estudo sobre o processo de leitura, onde Jouve (2002) ressalta que esta só é possível com o funcionamento do aparelho visual e funções cerebrais. Martins (1982) fala sobre o ato da leitura estar usualmente relacionado à escrita e evidencia alguns outros aspectos presentes no processo da leitura. Manguel (1997) diz que a leitura vem bem antes da escrita e que lemos a nós mesmos e ao mundo para entendermos o que somos e onde estamos. Goes (2009) entende o reconhecimento dos signos e a assimilação do que é lido no presente com o que foi lido no passado, ou seja, um processo de assimilação através do repertório construído com o tempo. Trevizan (2000) traz a relação entre o leitor, texto e autor, evidenciando que cada um desses elementos tem a mesma importância na definição do sentido do texto, sendo cada um deles dependente do outro e onde a leitura pressupõe o diálogo efetivo entre ambos. Jouve (2002) porém, fala sobre o afastamento da vida real no momento da leitura; o leitor toma pra si a narrativa, se apropria do discurso e neste momento o leitor consegue “viajar” através da imaginação, se desprendendo da realidade e habitando onde o imaginário o levar. Ainda no viés do imaginário, Martins (2009) refere-se ao adulto e o abandono das capacidades lúdicas e imaginativas pertencentes à infância e ressalta o quanto é comprometedor para a leitura e criatividade. Lago (2009) e Alencar (2009) evidenciam a importância da ilustração e sua funcionalidade tanto em aspectos estéticos quanto a função facilitadora conduzindo o pequeno leitor pelo discurso narrativo. Na segunda parte do trabalho, falaremos especificamente sobre o livro-imagem, sendo este o vértice da pesquisa e direcionado às crianças não leitoras ou pré-leitoras, geralmente dispensando o intermédio de um adulto. Os livro ilustrados são ferramentas para brincar (LEE, 2011) sem a obrigação de entender a história a partir de informações lógicas e que lê-los é um exercício ao imaginário. Jouve (2002) e Sisto (2009) falam do resgate das sensações da infância quando se lê um livro infantil, desconsiderando que este seja apenas para o público infantil. Linden (2006) fala das propriedades encontradas no livro-imagem, onde a estética, o humor e narrativas cativantes seduzem a criança despertando o interesse pela leitura. A terceira e última parte é exclusivamente dedicada à produção de um livro infantil destinado à criança não leitora. Um livro de imagens que sintetiza todo o conhecimento que a pesquisa proporcionou e busca explorar a fantasia, a poesia do olhar infantil e a ludicidade. Nesta parte do trabalho há a descrição do processo criativo: a construção de uma ideia, a evolução para uma narrativa e as etapas para a confecção deste livro. A proposta do livro finalizado é enfatizar a compreensão de um discurso narrativo a partir da ilustração exclusivamente. 1. O que é leitura? “... é o leitor que deve atribuir significado a um sistema de signos e depois decifrá-lo.” (MANGUEL, 1997, P. 19). Ao contrário do que pensamos a leitura não é proveniente de um texto como estamos acostumados e entendemos como conceito. A definição de texto que temos é aquele verbal, uma coletânea de palavras capaz de nos conduzir a um entendimento pré-definido; texto na verdade vai muito além, texto é todo conjunto de elementos que dá possibilidades de deciframento. Man-

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guel (1997) diz que todos nós lemos a nós mesmos e ao mundo à nossa volta para vislumbrar o que somos e onde estamos. Diz ainda que lemos para compreender ou para começar a compreender, e, que não podemos deixar de ler, pois a leitura é como respirar, uma função essencial. Desde nossos primeiros contatos com o mundo percebemos aspectos físicos e afetivos, sendo essas percepções um meio de decodificação de tais aspectos, proporcionando assim, o início do processo de leitura. Tanto Martins (1982) quanto Jouve (2002) falam dessas percepções; Martins cita alguns aspectos físicos como o calor e aconchego de um berço, um ato carinhoso de envolver com os braços, som estridente, luz e penumbra, entre outros. Jouve por sua vez ressalta a leitura provocada pelas emoções, afirmando que se a recepção do texto recorre às capacidades reflexivas do leitor, influi igualmente sobre a afetividade, estando as emoções de fato na base do princípio de identificação. A leitura vai, portanto, além do texto (seja ele qual for) e começa antes do contato com ele. O leitor assume um papel atuante, deixa de ser mero decodificador ou receptor passivo. E o contexto geral em que ele atua, as pessoas com quem convive passam a ter influência apreciável em seu desempenho na leitura. Isso porque o dar sentido a um texto implica sempre levar em conta a situação desse texto e de seu leitor. E a noção de texto aqui também é ampliada, não mais fica restrita ao que está escrito, mas abre-se para englobar diferentes linguagens (MARTINS, 1982, p. 32).

Manguel (1997) fala-nos também sobre a importância da leitura no âmbito de sua existência, destacando que “ler” vem antes de escrever; afirma ele ainda que uma sociedade pode existir sem escrever, mas jamais existe sem ler. Assim sendo, a escrita é um produto da leitura, ela é a representação daquilo que já identificamos (lemos) em algum momento da vida. Apoiando-se em Gilles Thérien, Jouve ressalta a complexidade no processo da leitura, e, segundo ele o processo da leitura se fragmenta em cinco dimensões, sendo eles: - Processo neurofisiológico, o processo, o processo, o processo argumentativo e o processo simbólico. A força do olhar consiste em descobrir, perceber, aprender, apreender e devolver. É este o processo ao se ler imagens; tanto o adulto quanto a criança se apropria desses fenômenos de reconhecimento e apropriação de signos para que significados sejam assimilados. A leitura então passa pela etapa de deciframento de códigos integrando sentidos numa forma de olhar tátil. Góes (2009) propõe que ler é: relacionar cada texto lido aos demais anteriores, ou seja, entre cada texto há o reconhecimento de significados, a assimilação entre eles, seja ele atual ou passado; sempre haverá uma troca de informação entre tudo que é apreendido. Se ler é relacionar cada texto lido aos demais anteriores para reconhecê-los e existe uma correlação de dois tipos de textos para que haja entendimento de um pelo outro, estes dois tipos de texto nada mais é do que o texto lido e o texto vivido, sendo este segundo o acúmulo de informações adquiridas durante a vivência do leitor; em outras palavras, o texto vivido é o repertório individual do leitor, que através dele possibilita ao leitor a capacidade de assimilação, admiração, onde o olhar aprende e apreende. Desse modo o leitor torna o sujeito de sua própria história, onde o ato da leitura transforma o leitor passivo em leitor ativo, um coautor, doador de sentidos. Sem que percebamos, ocorre um distanciamento do imaginário para que haja o desenvolvimento da racionalidade ao decorrer da vida e esta transição infere diretamente na prática da leitura; Martins (2009) fala enquanto ilustrador que, morremos de medo de fazer papel de ridículo, Poéticas Visuais, Bauru, v 7, n. 1, p. 45-64, 2016.

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porém não percebemos que tão ridículo quanto esse medo, é o papel que fazemos na edificação do mundo. Em toda criança se repete, lá pelos seus oito, dez anos, o mito da expulsão do paraíso. Coitadas, lá vão elas pro mundo real receber uma carga de regras, padrões, crenças, ideias predefinidas.Vão fazer parte da consolidação de mercados, da edificação do business, pagarão contas, impostos, obrigações e deveres. (MARTINS, 2009, p.51).

Martins (2009) relata experiências como ilustrador e o processo de retrocesso para resgatar o lúdico pessoal também perdido durante seu desenvolvimento. Segundo ele foi um processo difícil, havendo a necessidade de se desprender das “regras, normas e estatutos”; correndo por fora dos padrões reacionários e estacionários, regressivos e repressivos. Martins deixa muito evidente esse resgate da criança de 50 anos atrás para que pudesse ilustrar como gostaria de ler, para que a compreensão fosse como de uma criança e não óbvia e objetiva como a de um adulto, sem ao menos se deliciar com as personagens, com as cores e com a atmosfera lúdica da imagem. Trevizan (2000) faz um questionamento sobre o que é ser leitor, a existência do leitor ideal e se existe uma leitura errada. Trevisan aborda também o contexto escolar e como a leitura é entendida, sendo esta, uma simples compreensão do sentido literal das palavras, aquele contido no dicionário e atribuído aos signos no texto. Em resposta ao questionamento, a autora afirma a existência do leitor ideal e ressalta que este não pode restringir o ato da leitura ao movimento único de decifração linguística da mensagem do texto, mas deve compartilhar o movimento receptivo pelo reconhecimento do uso social e ideológico dos signos, ativado pelo autor, na construção da mensagem. Diz ainda sobre a inserção de autor e leitor a determinado contexto, momento e espaço sociais, sendo eles os elementos determinantes dos efeitos de sentido de um texto. Sobretudo, a decifração de um texto implica não somente no entendimento sobre os signos, mas também na competência intelectual do leitor, descobrindo ainda as estratégias e mecanismos sociais de construção final da mensagem; por trás desse processo, algumas perguntas ficam nas entrelinhas de forma a conduzir o leitor ao entendimento: Quem diz? Para quem diz? Quando diz? Onde diz? Com que ponto de vista ideológico – contextual diz? Trevizan (2000) considera este processo um exercício de preenchimento ativo dos espaços vazios, ou seja, das malhas de um texto. É evidente, no entanto, que um leitor faz a leitura que pode, ou seja, a leitura que lhe é possível executar, conforme suas disponibilidades receptivas, utilizando-se, assim, de seu próprio patrimônio de saber ( ECO, 1980 Apud TREVIZAN 2000, p. 125). No âmbito da imaginação, a leitura suscita em nós uma série de sensações e impressões capazes de libertar a consciência da realidade, levando a uma sensação de liberdade e criatividade. Este fenômeno acontece em dois tempos: “aniquilação” do mundo em que o sujeito está inserido (a realidade) e criação de um mundo novo em seu lugar. Jouve (2002) nomeia esta experiência de libertação e preenchimento, onde a leitura é capaz de desprender o leitor da realidade trazendo para o campo da imaginação assumindo a “realidade” da narrativa, ou seja, liberta-se da realidade, preenchendo com a fantasia do imaginário. Baseado em Jauss, Jouve considera a leitura como experiência estética e de caráter tanto de libertação “de” alguma coisa quanto de libertação “para” alguma coisa; por um lado desprendendo o leitor das dificuldades e imposições da vida real, por outro, ao inserir-se no universo do texto, renova sua percepção de mundo. Quando Jouve diz que ler, de certa forma, é reencontrar as crenças, e portanto, as sensações da infância, ele se refere ao resgate do imaginário, das crenças infantis reativadas em certas condições, da criança que renasce. Se ler nos remete ao passado, é em duas modalidades que isso

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acontece: primeiramente pela identificação de algumas situações ficcionais que nos permite reviver os cenários fantasmáticos da infância e em segundo quando um detalhe no texto desperta imagens íntimas, chamadas de “lembranças-tela”. Alencar (2009) por sua vez, levanta uma questão muito importante sobre a ilustração na literatura infanto-juvenil. Ele destaca a importância da ilustração e a falta dela, que, muitas vezes vistas como secundária. Diz ainda que é muito comum ouvir opiniões, onde a ilustração é apenas um arejamento para o texto verbal ou atrativo para a criança. A ilustração não apenas pode tornar um texto mais atrativo, mas também pode exemplificar um conteúdo, complementar quando o texto diz algo e a ilustração o completa, substituir o texto verbal, ampliá-lo, interrogar, negar, oferecer outras possibilidades de leitura, ou seja, a ilustração interfere no desenvolvimento cognitivo, cultural, artístico, sensibilidade e interioridade do leitor. O autor ressalta ainda a educação do olhar e sua condição fundamental na formação do leitor. Mesmo num mundo metralhado pelas informações visuais, através de livros infantis, uma boa educação do olhar quando criança pode garantir um ótimo desenvolvimento do repertório estético e um vocabulário visual; sendo esses, o combustível para uma boa leitura.

Quem tem bons estímulos visuais desenvolve a sensibilidade, aguça o gosto estético, experiência emoções diversas

suscitadas pelas imagens, bem como alimenta a alma, pois a sedução das imagens é um convite ao mergulho, ao aprofundamento, a ser feito sozinho ou com a ajuda de um mediador. (ALENCAR, 2009, p. 29).

Sobretudo, Lago (2009) acrescenta alguns aspectos relevantes ao processo da leitura e a importância da imagem neste momento. Diz ela que a leitura exige recolhimento, concentração e que muitas vezes torna-se difícil para leitores iniciantes, sendo assim, cabe a ilustração a função facilitadora, independente das várias características empregadas a ela; ou seja: interpretar, reproduzir, traduzir, ornar, iluminar, entre outras mais. A ilustração neste momento tem sim a função da sedução, trazendo esse leitor iniciante pra dentro do livro através do encantamento visual, podendo assim habitar no discurso narrativo. Entretanto, a ilustração por si só é capaz de possibilitar leituras. Se formos considerar a história da imagem e da leitura, o homem se expressou através da imagem, fez registros, muitos deles antes de surgir a escrita, que por sua vez nada mais é que a combinação de imagens assimiladas de valores simbólicos. Sendo assim, retomando a ilustração e suas características no processo da leitura, devemos enfatizar os livros de imagem, que quase ou totalmente ausente de textos verbais criam um discurso narrativo apenas pela estética imagética. Lago (2009) faz uma importante observação sobre essa questão, a divisão entre texto e imagem, sendo que desenhamos com a tipologia e escrevemos com a ilustração. Ou seja, tudo é escritura. 2. Livro Imagem E se formos questionados sobre o que é o livro ilustrado? Não há uma designação específica para o livro ilustrado. Na França recebe o nome de “álbum” ou “livre d’images”, em Portugal “álbum ilustrado”, em espanhol “álbun” e em língua inglesa “picturebook”, “picture book” e “picture-book”. Álbum, como é mais conhecido o livro ilustrado na França, Espanha e Portugal, difere-se daquele álbum que conhecemos como caderno ou arquivo pessoal com a função de registro com fotos, desenhos, anotações, etc. Segundo Linden (2006), a história do livro ilustrado ainda está por ser escrita. Suas próPoéticas Visuais, Bauru, v 7, n. 1, p. 45-64, 2016.

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prias origens permanecem indefinidas. Porém ao longo de sua evolução, o livro ilustrado infantil conheceu grandes inovações. A imagem foi gradativamente conquistando um espaço determinante, assim como aspectos físicos do livro participam da narrativa, não aprisionando o leitor apenas ao texto e imagem. Como citado acima, a história do livro ilustrado ainda está por ser escrita, porém quando Linden questiona a categoria a qual o livro ilustrado pertence e baseada em David Lewis, a conclusão que se chega é que não se define como um gênero, mas um “tipo”, até mesmo pelo fato de abordar temáticas que o levariam para outras categorias como contos de fada, histórias policiais ou poesia. Sendo assim, o livro ilustrado mais se define como uma linguagem que incorpora ou assimila gêneros do que propriamente uma categoria. Sabe-se que os livros ilustrados são direcionados às crianças não leitoras ou pré-leitoras, às vezes necessitando de um adulto intermediando a leitura, porém há discussões sobre sua funcionalidade; Lee (2011) levanta uma questão em relação ao livro-imagem; diz que geralmente os leitores ficam desconfortáveis com o mesmo, pois, literalmente não há nada “para ler”. A leitura desse livro exige participação ativa, assim, se o adulto hesita em tentar ler o livro-imagem, a criança toma a frente e começa a contar a história com suas próprias palavras. Os livros ilustrados são ferramentas para brincar. Não há motivo para estar desconfortável e entender a história de fato com base em informações limitadas ou extremamente lógicas oferecidas pelas imagens. O livro oferece esse jogo de decifrar um enigma; tem a função de explorar e ampliar o curso de nosso próprio pensamento e não oferecer possibilidades para uma “resposta certa”. Se os livros ilustrados são de fato produzidos para o público infantil, em específico o não leitor ou não, é impossível negar que ao lê-los, reencontramos as sensações e crenças infantis, resgatamos o imaginário e o renascimento da criança como vimos nas palavras de Jouve (2002) e nas considerações de Sisto (2009) quando fala da sensação que o conjunto das imagens provoca e continua ecoando na mente mesmo depois do livro fechado. O livro infanto juvenil tem certo poder de sedução que segundo Linden (2006) esse fato acontece de imediato, seja pelas imagens notáveis, pelas narrativas cativantes, pela originalidade de produção ou ainda pelo humor. Sabemos das diversas funções atribuídas à ilustração; ela pode completar um texto verbal, ela pode confirmar o que o texto diz ou até mesmo contradizer o texto. O livro ilustrado de imediato evoca duas linguagens: o texto e a imagem. Sendo assim, no livro infantil as imagens podem articular com o texto, ou seja, não serem redundantes à narrativa, onde se opera um processo de apreensão em conjunto do que é apresentado; melhor dizendo, a lógica da narrativa é construída pela complementaridade de texto e imagem, sem que uma linguagem repita o que a outra diz. À esta articulação é dado o nome de revezamento, definição atribuída por Barthes (1982) e posteriormente explicitado por Joly (1996); é um termo que justifica a complementaridade entre a imagem e as palavras. Alguns aspectos são dificilmente representados na imagem fixa, dois deles são a temporalidade e casualidade. Portanto existe uma condensação do tempo nesta imagem, o que exige do leitor uma decomposição da narrativa no ato da leitura necessitando do texto verbal para que haja a contextualização e entendimento da imagem por completo; ou seja, as relações temporais e casuais passam a ser função do texto verbal, onde ambos (imagem e texto) concluem o contexto proposto pela imagem. A imagem fixa pode contar uma história através de narrativas formadas por uma sequência de imagens fixas ou animadas, onde podemos citar as fotonovelas, histórias em quadrinhos e filmes. Linden (2006) fala da importância da imagem, salientando que seu alcance é universal,

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porém não exige menos do ato da leitura, pois assim como o texto (verbal) a imagem requer atenção, conhecimento dos códigos e uma verdadeira interpretação. 3. Livro Imagem: Processo de Criação. Várias foram as ideias para a criação do livro, assim como, na mesma proporção foram as mudanças de ideias. Não achei necessário o que conhecemos como “brainstorming” ou tempestade de ideias em português; algumas ideias foram surgindo, anotadas e repensadas; muitas delas vetadas inicialmente por acabar fugindo da proposta ou se distanciando do público ao qual o trabalho tem como objetivo em atingir. Foi a partir do impasse entre texto-imagem e o estudo feito sobre suas características é que a ideia começou a se concretizar. Tanto o texto verbal quanto o imagético podem compor uma narrativa, juntos ou individualmente. Se levarmos em consideração o texto verbal sendo composto por frases; as frases compostas por palavras e as palavras compostas por letras, podemos considerar também que a letra isoladamente não passa de uma imagem, um símbolo visual e gráfico. Foi através desse raciocínio que surgiu a ideia na construção da personagem para o livro. Entre todos os caracteres: letras, pontos, acentos e outros muitos não tão utilizados pela escrita foi que optei pelo ponto de exclamação; por suas diversas funções que exprimem surpresa, felicidade, indignação, admiração, susto ou frases exclamativas, imperativas e seu uso após interjeições, mas também pela identidade visual (forma). Além de suas funções, o ponto de exclamação tem um formato neutro, discreto, ao contrário da interrogação sobrecarregada de curvas, o que causaria excesso de expressividade. Tendo a exclamação um aspecto mais neutro, posso trabalhar a expressividade em algumas características da personagem; o olhar por exemplo. Inicialmente a ideia era que a personagem quisesse fugir do livro, porém essa intenção da personagem não seria possível sem o texto verbal. Sendo assim, para não começar uma nova narrativa do zero, incluí outra personagem que interagisse com a principal sendo possível então o andamento do discurso narrativo por outro viés.

Figura 1 - Criação de cenas. Poéticas Visuais, Bauru, v 7, n. 1 , p. 45-64, 2016.

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Previamente definida a ideia, um storyboard foi feito, porém de forma ainda que grotesca e simplificada, sem muitos detalhes, apenas para orientar na divisão de cenas. Esse “roteiro ilustrado” permitiu ver algumas impossibilidades no desenvolvimento do livro e me orientou em algumas mudanças necessárias; outras impossibilidades, porém, foram surgindo durante o processo e ilustração das cenas. Após transcrever essas cenas, consegui organizar melhor alguns detalhes inicialmente não perceptíveis.

Figuras 3 e 4 - Estudos personagem coadjuvante.

Figura 2 - Estudo de expressões (olhos).

Após a transcrição das cenas, passei para as personagens e estudos sobre expressão facial e corporal de cada uma delas. A personagem principal não exigiu tanto estudo sobre expressão corporal, pois a expressão mais significativa para esta personagem fica por conta dos olhares e estes sim, necessitaram de estudos mais elaborados. Diversas são as emoções que a personagem expressa: Irritação, susto, tristeza, surpresa, indignação, confusão, desconfiança, entre outras. Como já dito, esta personagem exige pouca expressão corporal, havendo a necessidade apenas de estudos rápidos ou até mesmo definidos no momento da ilustração nos Softwares Corel versão 15 e Photoshop CS2. As mãos da personagem em sua gestualidade complementam as expressões provocadas pelo olhar. A cor da personagem acompanha sua originalidade (preta), sendo ela um signo impresso chapado e posteriormente ganhando a tridimensionalidade no decorrer da narrativa. Ainda tratando das personagens, a coadjuvante e não menos importante não faz uso de expressões faciais; suas aparições em cena exploram mais as poses da personagem sem que haja também muita expressividade corporal. A combinação de posições e ambientes em que aparece é que caracteriza a personalidade da personagem. Para a coloração desta personagem, me baseei mais na tridimensionalidade, trazendo um aspecto mais realista, porém trabalhando para que as cores de personagens e cenários não se confundissem.

O ponto de exclamação nas ilustrações assume um caráter mais masculino; sua postura mais grosseira e fisionomia trazem esse perfil à personagem. A mosca, porém, apesar de um nome feminino, traz uma personalidade neutra, suas atitudes não tendem a nenhum gênero. Além de cenário e personagens, vários outros elementos compõem as ilustrações. Para que esses elementos participassem das ilustrações, alguns outros recursos foram necessários além da ilustração manual e digital. Neste momento do trabalho, a fotografia foi fundamental para complementá-lo; alguns objetos manipulados pelas personagens necessitavam de posicionamento específico, portanto a simulação, fotografia e edição em softwares permitiram essas possibilidades. Alguns desses elementos foram repetidos nas ilustrações e passaram pelo processo de edição (posicionamento e cor) para que parecessem diferentes.

Figura 5 - Processo de fotografia (Avião amassado).

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A página 37 talvez seja a que mais utilizou recursos de edição de imagens. Usou a pintura, a ilustração digital, fotografia e aplicação de efeitos como mostram as imagens a seguir:

Figura 6 - Tratamento de imagem novelos.

Figura 9 - Passo a passo simulação de movimento. 1 – Desenho em lápis de cor, 2 – Aplicação de efeito de desfoque, 3 – Fotografia do objeto.

Figura 7 – Processo de sobreposição de imagens (p 31). Algumas páginas receberam um recorte além da ilustração; este recorte simula de que a página tenha sido rasgada completando o discurso narrativo proposto pela página. As páginas 23, 24, 25 e 26 também fazem uso do mesmo efeito e pra isso uma folha de papel foi aquarelada como todas as páginas, rasgada e então fotografada para produção das composições.

Figura 10 - Simulação de corpo da personagem principal.

Figura 8 - Base para as páginas “rasgadas”.

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O título do livro leva o nome da personagem secundária. A história traz como coadjuvante uma mosca que interage com a personagem principal (exclamação). A narrativa mostra situações de conflitos entre as duas personagens, situações de perseguição, seguindo um pouco a linha de desenhos animados já conhecidos pelo público infantil como “Tom and Jerry” e “Papa-Léguas”. Quem inicia a história é a personagem coadjuvante (Mosca) que logo cria uma situação de interação com a personagem principal. Esta segunda surge após a Mosca pousar sobre um impresso qualquer, que, ao decorrer da narrativa, percebemos que a Mosca, não está pousada sobre um impresso apenas, mas também sobre o rosto da personagem principal lhe causando grande incomodo e irritação. Neste momento é que a personagem principal se move pra fora do impresso, iniciando uma grande e turbulenta perseguição como podemos Poéticas Visuais, Bauru, v 7, n. 1, p. 45-64, 2016.

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acompanhar nas imagens e descrições a seguir ou acessando: http://www.youblisher.com/p/ 1172803-A-Mosca/.

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muito no produto final; para o livro, a opção pelo couchê fosco foi feita para que no ato da leitura, a luz não interferisse através de reflexos dificultando a leitura. A capa, além do papel fosco, pode receber algum tipo de revestimento, o que ajudaria na conservação do material; para esta característica, a laminação fosca foi o mais conveniente, pois deixaria a capa mais protegida e também facilitaria a leitura impedindo os reflexos como já citado. Considerações Finais

Para uma suposta publicação, algumas características e aspectos físicos são essenciais para diagramação, impressão e acabamento do livro. Como o livro é direcionado ao pré-leitor e ao leitor inicial, algumas questões quanto a manipulação e durabilidade do livro também são imprescindíveis. Com formato quadrado, nas dimensões 205x205mm, o livro contém quarenta e duas páginas incluindo capa e contra capa. O tipo de acabamento pode variar dependendo do material impresso. Se for impresso em papel de gramatura mais baixa, a encadernação fazer uso do método de grampo, também conhecido como lombada canoa, onde as lâminas de impressão dobradas ao meio são intercaladas uma dentro da outra para posteriormente receberem o grampo. Porém, como o livro é manipulado por crianças e quase sempre envolve brincadeiras durante a leitura, faz-se necessário maior durabilidade do material; sendo assim, o acabamento mais apropriado seria a encadernação colada, mais conhecida como lombada quadrada, utilizando o processo de colagem (cola quente ou hot melt) para unir as lâminas impressas. Este tipo de acabamento é adequado para produtos com maior número de páginas. A impressão foi realizada em processo off set, 4x4 cores (Frente e verso) e em papel couchê fosco 150g para miolo e 230g para capa. A escolha do tipo de papel também pode influenciar

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O objetivo desse trabalho foi compreender o processo de leitura a partir das imagens deixando claro que a leitura não se limita ao deciframento da escrita. Entendido então que para que a leitura aconteça, alguns processos são indispensáveis durante o processo, onde o funcionamento fisiológico e funções cerebrais são ativados estimulando o processo cognitivo, a percepção e o deciframento. Também pudemos desconstruir o estereótipo de leitura usualmente relacionada a escrita e entender que leitura é um ato de reconhecer e decifrar signos, sejam eles quais forem. O trabalho privilegiou a criança não leitora como público alvo dessa prática; abordou também o uso do imaginário como principal contribuinte para o processo da leitura, onde a criança cria associações entre a imagem e o universo lúdico para que haja contextualização. Se a leitura da imagem foi a base do trabalho, o livro-imagem constituiu-se o foco apresentado pela pesquisa. Podemos considerá-lo o vértice de todo o trabalho, pois envolve o processo de leitura, o leitor e a imagem. Através dele conhecemos o que é ilustração, suas variadas funções e a capacidade de conduzir o leitor à leitura através das imagens e a função facilitadora. O conteúdo teórico da pesquisa contribuiu para a construção de um conhecimento específico, o qual sustentou a criação de um livro-imagem onde busquei atender às especificidades do publico alvo. Uma dose de atrevimento juntamente com a curiosidade e vontade de produzir um material interessante me fez seguir em frente com a proposta da pesquisa; a insegurança foi presente em vários momentos, mas tentei acertar em todos os aspectos levantados e evidenciados pelo trabalho. Não considero o início de uma carreira, mas como primeira experiência me deixou o gostinho de novas possibilidades. Claro que novas pesquisas e estudos seriam necessários, mas essa pesquisa aguçou em mim a vontade de produzir material que explore a fantasia e a poesia do olhar infantil contribuindo para seu desenvolvimento intelectual e cultural. Referências ALENCAR, J. “A ilustração na literatura infantil: da alma das imagens à alma dos leitores”, In: Góes, L. P., Alencar, J. (orgs.). A alma da imagem: A ilustração nos livros para crianças e jovens na palavra de seus criadores. São Paulo: Paulus, 2009. p. 26-45. BARTHES, R. O óbvio e o obtuso. Lisboa, Edições 70, 1982. 261 p. GÓES, L. P. “No início era a imagem: retrospectiva sobre a importância da imagem na história da humanidade”, In: Góes, L. P., Alencar, J. (orgs.). A alma da imagem: A ilustração nos livros para crianças e jovens na palavra de seus criadores. São Paulo: Paulus, 2009. p. 6-25. Poéticas Visuais, Bauru, v 7, n. 1, p. 45-64. 2016.

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Arte como exercício de Relações-Públicas

JOLY, M. Introdução à análise da imagem. 2. Ed. Campinas, SP: Papirus, 1996. 152p. JOUVE, V. A leitura. São Paulo: Editora UNESP, 2002. 161p.

Art as a Public Relations Exercise

LAGO, A. “Ponte das intencionalidades”, In: Góes, L. P., Alencar, J. (orgs.). A alma da imagem: A ilustração nos livros para crianças e jovens na palavra de seus criadores. São Paulo: Paulus, 2009. p. 35-45.

Marlon José Alves dos Anjos*

LEE, S. A trilogia da margem: O livro-imagem segundo Suzy Lee. São Paulo: Cosac Naify, 2012. 192p. LINDEN, S. V. Para ler livro ilustrado. São Paulo: Cosac Naify, 2006. 184p. MANGUEL, A. Lendo imagens. São Paulo: Cia das letras, 1997. 358p. MARTINS, C. “Leituras”, In: Góes, L. P., Alencar, J. (orgs.). A alma da imagem: A ilustração nos livros para crianças e jovens na palavra de seus criadores. São Paulo: Paulus, 2009. p. 46-55. MARTINS, M. O que é leitura. São Paulo: Brasiliense, 1982. 93 p. SISTO, C. “Um pouco de tudo: os materiais, as texturas, o impacto”, In: Góes, L. P., Alencar, J. (orgs.). A alma da imagem: A ilustração nos livros para crianças e jovens na palavra de seus criadores. São Paulo: Paulus, 2009. p. 77-91. TREVIZAN, Z. O leitor e o diálogo dos signos. São Paulo: Clíper Editora, 2000. 156p. Recebido em 14 de agosto de 2015

Aprovado para publicação em 31 de julho de 2016

*Mestrando do programa de Pós-Graduação na área de Arte Visuais da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – Campus São Paulo, na linha de pesquisa: Processos e Procedimentos Artísticos. Especialização em Antropologia Cultural na Pontifícia Universidade Católica do Paraná, interrompida, 2013. Graduado em Pintura na Escola de Música e Belas Artes, 2011. Colunista colaborador da revista virtual R.Nott Magazine.

Resumo O presente artigo aborda a teoria institucional desenvolvida pelo filósofo e professor norte-americano George Dickie, que defende o princípio da existência de múltiplos fatores que influenciam o artefato na obtenção de ser legitimado como arte. Dickie alega que não existe uma definição para o conceito arte que seja homogênea, pois a probidade em detrimento da afirmação de que um objeto é arte parte do contexto e do espaço cultural em que o objeto é instaurado. Para o filósofo, generalizações, classificações e caraterizações de sistemas artísticos constituem meras formas de organizar um todo complexo baseado na ideia de unidade e identidade. Neste sentido, a arte pode ser entendida como uma convenção institucional alimentada por relações socioculturais. Palavras-chave: George Dickie; Arte; Falsificação; Instituição Arte; Convenção. Abstract This article discusses the institutional theory developed by philosopher and American professor George Dickie, defending the principle of the existence of multiple factors that influence the artifact in getting to be legitimized as art. Dickie argues that there is a definition for the concept art that is homogeneous, because probity over the claim that art is an object of the context and cultural space in which the object is established. For the philosopher, generalizations, classifications and characterizations of artistic systems are merely ways of organizing a whole complex based on the idea of unity and identity. In this sense, art can be understood as an institutional convention fueled by socio-cultural relations. Keywords: George Dickie, Art, Forgery, Art Institution, Convention.

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campo de manifestações aceitas como artística é amplo, acolhe os mais diferentes objetos das mais diversas maneiras. Inúmeros são os objetos que acolhem o conceito arte, tornando-se membros de uma classificação sociocultural e econômica. Esse panorama demonstra versatilidade devido à pluralidade dos itens que constituem uma singular noção de familiaridade; ocupam esse panorama desde pinturas sacras da idade média a um urinol do século XX, desde objetos requintados a componentes do cotidiano. Os motivos que legitimam a classificação são os mais diversos, por vezes resultados ideológicos, de cunho político, filosófico, moral\imoral etc. Arte significa o “Conjunto complexo dos padrões de comportamento, das crenças, instituições e outros valores espirituais e materiais transmitidos coletivamente e característicos de uma sociedade”, para darmos a palavra ao Novo Aurélio. (2010, p. 201). Assim sendo, não há um determinante comum. A própria diversidade das obras inviabiliza uma opinião que não seja plurimensional de modo que o problema central consiste em explicar a interpolação entre o uso de alguns tipos de conceitos a vigor da aplicação correta para acepção correta ou indexamento. Uma vez aceita a obra como participante desta classificação, podemos dizer que ocorre transmutação no valor subjetivo e material do objeto. Destarte, a água benta não é somente água comum, por impossível que seja distingui-las, adquire valor alicerceado na convenção, da mesma forma que Brillo Box1 não é uma caixa de sabão, seu conteúdo não funciona na remoção de sujeiras de vestimentas – pelo menos não espera que isso seja feito, assim como ninguém urinará no Fountain2. A diferença não reside simplesmente no fato que se passava entre a Brillo Box de Andy Warhol (1928-1987), exposta na galeria e as mesmas embalagens de sabão em pó armazenada em depósitos. (DANTO, 2005). A caixa de sabão ou o urinol são objetos simples que foram usados para obter objetos complexos. Para George Dickie (2008), uma obra de arte é, antes de mais nada, um estatuto em virtude da posição e do lugar que as obras ocupam no interior de uma prática estabelecida. Percebemos, neste sentido, que as obras não se distanciam tanto do mundo, visto que objetos idênticos contêm significados diferentes e objeto diferentes podem conter significados iguais. Torna-se relevante que tais objetos não são feitos pela ótica ou pela sua materialidade, mas sim pela maneira como as teorias e o espaço ao redor os influenciam, moldando a maneira como olhamos para eles e para o mundo. (DANTO, 2005). O argumento dos objectos indistinguíveis de Danto mostra que as obras de arte existem num

contexto ou enquadramento, mas não revela a natureza dos elementos que compõem o enquadramento. Além disso, são possíveis vários enquadramentos diferentes. Cada uma das teorias tradicionais da arte, por exemplo, implica o seu próprio enquadramento peculiar. (DICKIE, 2008, p. 139-140)

No âmbito da arte, teorias servem para firmar ou infirmar obras em razão de se centrarem em seus objetos, aparentemente, despejam todo o peso do seu sistema de pensamento sobre ponto de interseção com a arte e os demais assuntos de interesse, retendo apenas o que é pertinente à sua problemática. Neste sentido podemos identificar uma perspectiva prevalente, que é a da arte sujeita a censura e ao controle. (DANTO, 2014). Grosso modo, pode ser entendida como uma arquitetura paradigmática que priorizou o valor da autoria em detrimento do valor artístico das obras, que torna a autoria ocupa o centro da atribuição do valor. Ademais, exclui-se a abordagem da obra enquanto instrumento coletivo, na tendência de assegurar empórios ou acervos de obras de arte, corporificam processos que primam pela individualidade e a unicidade da obra em de-

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trimento da feição plural que possa existir na mesma. A construção da história, da estética, dos valores culturais e econômicos se fazem a partir dos artefatos produzidos. A arte é noção sólida e privilegiada, possui também limites imprecisos. Para George Dickie: “Uma obra de arte é um artefacto do tipo criado para ser apresentado a um público do mundo da arte”. (DICKIE, 2008, p. 145). Esse autor defende que a obra de arte seja artefacto. Produto realizado pela humanidade com algum uso ulterior. Ao se utilizar desta expressão, pretende minimizar restrições que pode ocorrer com a palavra “objeto”, em se tratando de arte, “por exemplo: um poema não é um objeto físico, mas é, ainda assim, um artefacto. Além disso, coisas como espectáculos – por exemplo danças improvisadas – são também (feitas pelo homem) e, por tanto, são artefactos.” (DICKIE, 2008, p. 131). A frase supracitada envolve ainda a noção de sistema, que pode ser definido da seguinte forma: Um artista é uma pessoa que participa conscientemente na produção de obras de arte. […]

Um público é um conjunto de pessoas cujos membros têm suficiente preparação para compreender um objecto que lhe é apresentado. […] O mundo da arte é a totalidade de todos os sistemas do mundo da arte. (DICKIE, 2008, p. 145).

Essa forma de proposta impinge regras da receptação de um sistema particular que compõe a instituição arte, ou se preferirem, o mundo da arte. Os artistas são considerados sujeitos que exercem, isoladamente ou em grupo, atividades reconhecidas como artísticas, consumando-se apenas no olhar do outro, ou seja, dependem da prática sociocultural que a instaura, fecundando o fenômeno artístico, a obra é, nesta perspectiva, um artefacto criado com discernimento, por alguém, no objetivo de apresentá-lo ao público. Assim, é um artefacto candidato à apreciação do mundo da arte. (DICKIE, 2008). Há uma relação em detrimento da estética, a instituição absorve o que a interessa, a arte que lhe é compatível, destarte, visto desse modo, a exibição é o ato por meio do qual alguém assume a responsabilidade e o poder de dizer o que é arte. O público deve estar preparado em algum grau para compreender este objeto, que por sua vez deve estar enquadrado nas regras de apresentação que compõem os sistemas particulares deste jogo. (DICKIE, 1984). Essa é uma concepção que pode elencar de maneira hierárquica e habilita alguém, ou grupos, com o poder de julgamento. Em decorrência disso a validação institucional da manifestação artística é considerada e legitimada institucionalmente por alguns que são socialmente autorizados a atribuir os valores artísticos a artefacto ou manifestações. Ao contrário, pode a candidata a apreciação obter o estatuto arte, como resultado de produzir no interior do mundo da arte o artefato, sendo considerada arte em virtude da posição ou lugar que ocupa. (DICKIE, 2008). Nesse sentido as instituições estariam aptas a acolher os produtores para ocupar o mundo da arte. Uma instituição que funciona no nível da prática, onde as obras têm o seu lugar próprio, que compreende artistas, historiadores, espaços de exibição, críticos, público em geral, assim como as teorias que funcionam como condicionantes para algumas obras, também qualifica seus quadros antecessores, atribuindo o reconhecimento como precursores que ocorre por analogia ou influência. É o que Dickie chama de “ação de conferir estatuto de arte”. (OLIVEIRA, 1998, p. 103). Se aceitarmos as afirmações de Dickie, torna-se plausível dizer que toda a história da arte, em seus esforços, primou pela ordem e pela classificação a fim de coordenar a produção dos autores tidos como artistas. Cada época prezou por valores específicos que definiam e diferenciavam tais artefactos, elegendo e destacando determinadas obras e artistas, ou mesmo descartando ou Poéticas Visuais, Bauru, v 7, n. 1, p. 65-80, 2016.

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excluindo os demais candidatos que não se encaixassem nos cânones de produção cultural de uma dada época ou instituição. Cita-se também que a manutenção do inventário pode ser uma constante, resgatando obras do anonimato e corrigindo erros gerados por perspectivas herméticas. Outrossim, obras de arte montam um tecido temporal em que foi priorizado a ordem e a classificação. Uma obra de arte não é uma entidade que tenha existência independente. É, em essência, um conjunto de relações que se sincretizam, criando diferenças e conexões, constituindo um elemento que deve ser definido por suas relações ou pelas suas possibilidades de conectividade. Essas conexões são ordenações distintas, a ordem agrupa elementos que constroem uma noção comum. Sendo a ordem uma categoria que se localiza entre classes e familiaridades, ordenar faz com que a obra possa relacionar-se consigo mesma, com precursores e sucessores, e com o mundo. Ordem é o oposto de aleatoriedade, significa o fim da estrada para as possibilidades. Mesmo um encadeamento temporal é ordenação. Edificar a ordem constitui, em outras palavras, manipular as probabilidades dos eventos. Essa ordem cronológica permeia a história da arte sendo perceptível sua presença nas seguintes definições: períodos, gêneros, estilo, movimentos, manifestação, ismo etc. Cada uma dessas demarcações carrega em si julgamentos probos e réprobos em relação a obra, ao fazer artístico e, porque não dizer, o que é entendido por arte. Assim, cada século teve como obsessão cultural (valor) determinadas características. Nas palavras do filósofo alemão G. Hegel (1770-1831), zietgeist3, expressão que alude que cada período compreendeu o conceito de liberdade, criatividade, possibilidade, entre outras, a sua maneira e a sua efetividade, onde nenhum conceito pode ter sido hegemônico no percurso da história. Desse modo, resta-nos ter em mente que essas ordenações acabam por não contemplar toda a miscelânea de objetos artísticos em seu período de nascença, resultando em reconhecimento póstumo de obras e de artistas. Em consequência disso: Vale lembrar que Vicent van Gogh (1853-1890) obteve reconhecimento entre os negociantes de arte após a sua morte. Isso ocorreu também com os compositores Franz Schubert (17971828), cuja maioria das obras ouvidas hoje nunca foram executadas na vida do autor; Johann Sebastian Bach (1685-1750), que produziu mais de mil composições que só seriam reconhecidas após a sua morte. Os motivos para falta de sucesso são os mais diversificados: falta de divulgação, fronteiras ideológicas e até atrito entre os costumes e as tradições de uma dada época. Temos como herança os vínculos entre história, conhecimento e liberdade. Entretanto, esses elos foram desacreditados pelas múltiplas reinvenções de tradições, imposições de identidades nacionais e explicações seculares da história que encobriam políticas voltadas ao atendimento de interesses específicos, podendo a história ser entendida como um recorte particular, compondo um caleidoscópio. Poderíamos dizer que a história da arte, com seus paradigmas, elegeu objetos artísticos, transferindo valores ou desvalores aos artefatos. A arte opera com sistemas e conceitos brevemente estabelecidos, excluindo ou acolhendo objetos artísticos, sendo perceptível que nem todas as obras de arte encontrem seu valor adequado no momento em que o autor está ativo em vida. O impressionismo é um movimento de valor incontestável na história da arte, manifestação essa que encontra eco em nossos dias. É inegável a influência deste movimento na arte mundial, porém, a história do aparecimento das primeiras obras é famosa e sabemos que o reconhecimento do valor artístico do estilo foi tardio, constituiu um erro ou incapacidade da crítica de absorver tal novidade, sendo necessário o passar do tempo para que os sistemas da arte assimilassem o discurso de alguns artistas.

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A ideia de preservação ocupou o espaço de tal forma que não deixou lugar para a “superação”, reduzindo-se a preservar a tradição. O alto investimento na ideia de preservação interrompe a característica evolucionalista das obras. Durante séculos as obras de arte tencionaram as fronteiras do limite, extrapolando moral e dogmas, gerando dissabores e conflitos na história individual ou coletiva. Inobstante isso, a massificação cultural sempre esteve disposta a alocar e classificar, por mais diferente e subversora que fosse as obras ou os movimentos artísticos surgindo, assim, a condição de apreciação do objeto que capacitaria o estado de visualidade. A perspectiva acima desenvolvida demonstra a prostração frente a cânones e padrões, pois, se aceitarmos a condição de candidato da obra, percebemos que está condição obriga a obra a submeter-se, sendo o julgamento que se faz necessário para eleição do objeto artístico impõe certa conduta. Neste sentido, a arte, em vez de ser um “gênio do sujeito” é, por vezes, exercício de relações-públicas, ou seja, uma convenção institucional que impulsiona o artefato que se candidatou para obter o estatuto arte, contemplando-o com a possibilidade de ser visto e comercializado. Existir amparado pelo estatuto arte significa ser percebido. O fato de instituições ocultarem partes de suas coleções evidencia uma conduta seletiva, na qual as reais motivações que capilarizam esse hábito permanecem uma incógnita. Segundo a jornalista Kimberly Bradley, em coluna para a BBC, a mera falta de espaço adequado para alocar toda uma coleção ou a fragilidade de peças antigas, são, por vezes, empecilhos que obrigam que a grande maioria das peças que constituem as coleções de instituições fiquem ocultas por décadas, longe do olhar do público. Bradley, que entrevistou vários curadores responsáveis por coleções de renome, afirma que não é mostrado para o público nem dez por cento de alguns emblemáticos artistas que permanecem em acervo. Segue alguns exemplos utilizados pela jornalista: no Museum of Modern Art (MoMa), em Nova Iorque, 24 de 1.221 obras de Pablo Picasso constitui a amostra permanente que podem ser vista pelos visitantes; apenas uma das 145 peças do artista conceitual Ed Ruscha pode ser vista; 9 de 156 obras do Surrealista Joan Miró são expostas. Ainda, segundo Bradley, as obras são preservadas e escondidas da opinião pública em meticulosas organizações de armazenamento. O percentual mais alarmante refere-se aos seguintes acervos: A Tate, em Londres, mostra cerca de 20% de toda a sua coleção; O Louvre, na França, mostra 8% e o Guggenheim, em Nova Iorque 3%. (BRADLEY, 2015). Talvez, nem mesmo a conduta ilícita formalize o real motivo que justifique o exílio de obras, talvez a resposta seja intangível a ilicitude e acentue aspectos torpes do mundo da arte. Ainda convém lembrar que as motivações que possibilitam que obras originais permaneçam em acervos e possam nunca ser expostas por gerações são diversas. Em ambos os casos, as motivações que orientam o ocultamento de obras podem ser distintas, todavia, é inavegável que a ideia de preservação se faz presente, seja na preservação dos acervos, contra obras fraudulentas ou indesejáveis, seja na obediência da demanda de um público. Recai sobre as obras o peso do mercado, onde obras destacam-se pelo sucesso de venda e com isso, algumas instituições podem querer ser livres de obras falsificadas para garantir a integridade duradoura no mercado de arte. Quiça, esse não reconhecimento e o desejo de exílio de obras decorrem da torpeza do meio artístico que se vale dos falsificadores para enganar os incautos que veem na arte um mero investimento? Cumpre informar que a falsificação de obras de arte é um tema singular, não meramente por representar cerca de 40% das obras de arte que são comercializadas no presente ou devido a arqueólogos na atualidade assumirem que, pelo menos a metade das produções culturais antigas são falsas ou erroneamente atribuídas (SCHÁVELZON, 2009), mas por somar a obra questões capazes de problematizar à acepção do conceito arte, visto que, quando descoberta a verdadeira Poéticas Visuais, Bauru, v 7, n. 1 , p. 65-80, 2016.

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autoria, e não se tratando do que todos pensavam, a obra sofre radical transfiguração. Isso pode demonstrar a hegemonia instaurada no mundo da arte. Sob o signo dogmático da autenticidade, nenhuma ou poucas obras forjadas, quando descobertas, apresentam resiliência. (COLETTE, 2015). Não obstante, este modo restringe a compreensão ou entendimento das obras de arte às fronteiras da legalidade, se valendo de tribunais, onde não apenas o falsário pode ser convertido em culpado, mas também a obra. Andrey Furlaneto assina matéria que carrega como título Sob Suspeita de Falsificação, Christie’s retira dez obras brasileiras de leilão. Segundo o autor, bastou apenas alguns telefonemas para que atenuasse a dúvidas sobre a autenticidade das obras. Essa dúvida fez com que tais itens fossem retirados do catálogo e da possibilidade de comercialização. As obras em questão tiveram seu valor monetário e artístico reduzidos. Se antes tidas como objetos artísticos, com lances iniciais na casa dos trinta mil dólares, após os telefonemas os artefatos foram privados de suas capacidades. (FURLANETO, 2013). É notável que obras que tenham a autenticidade questionada simplesmente são retiradas das galerias, impossibilitadas de participar de exposições, despidas do valor que um dia as instaurou. O que fazer quando se descobre que uma tela, antes tida como inestimável, em realidade é falsa, ou melhor, não foi feita pelo autor que todos pensavam? Como pode um objeto ser considerado obra de arte em dado momento e em seguida, não? Há probidade em dissociar os atributos constitutivos da obra, por não se tratar do que todos pensavam? Será que a história da arte, a crítica e o mercado da arte, em eterno condicionamento, numa atitude de purificação, supostamente definiram conceitos não artísticos a fim de conferir valor às obras? Se a impossibilidade em manter o estatuto arte à obra não for diretamente relacionado ao objeto em si, mas sim a conduta do falsário, subsiste o problema: qual a relevância da intenção do autor para a crítica e o mercado? Qual a relevância de sua conduta, proba ou réproba, no contexto de sua obra? Se não podemos ignorar a intenção do autor para compreender a sua obra, acabamos por influenciar o entendimento da mesma. No sentido em questão, “[…] se o mundo não se importava com a homossexualidade de Leonardo, a sífilis de Baudelaire, o fato de Gauguin ter abandonado a esposa” (WYNNE, 2008, p.80) porque deveriam se importar com a conduta do falsário frente a obra gerada? Devemos ter consciência de que esse desvaler decorre de uma preocupação/ solução econômica e não artística. Desta forma, estariam partes do mundo da arte interessado em higienizar os espaços em detrimento a obras fraudulentas na finalidade de pasteurizar as coleções e espaços artísticos, excluindo elementos espúrios? Se uma obra obtém o estatuto arte pode ser comercializada por um alto valor monetário. E o coletor que adquire a obra, buscando autentificar o trabalho, e com isso, aderir mais valor a obra, envia-a para um comitê de peritos. Para seu desgosto, o trabalha não apenas recebe atestado de reprovação em exame de autenticidade, mas a comitê exige que o trabalho seja queimado. Em 1992, o britânico Martin Lang, colecionador particular de arte adquiriu uma suposta pintura do pintor russo Marc Chagall (1887-1985) por cem mil libras, a conselho de um negociante de arte, que trabalhava em uma casa de leilão. Ofereceu a pintura para escrutínio aos produtores da série televisiva da BBC, Fake or Fortune? que, em cada capítulo, analisa a proveniência ou atribuição de obras notáveis. A série é apresentada pela jornalista Fiona Bruce e o historiador de arte Philip Mould, com pesquisa de Bendor Grosvenor. (BBC, 2014). A pintura foi levada para a comissão de peritos em Marc Chagall, na França, comitê coordenado por duas netas herdeiras legais do artista. Martin Lang firmou um termo com as herdeiras no qual a comissão poderia solicitar apreensão da obra ou quaisquer outras medidas estipuladas na lei se a obra fosse confirmada

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como uma falsificação. (BBC, 2014). Após exames criteriosos, foi reprovada a autenticidade da obra. A pintura apresentava dúvidas de proveniência, continha pigmentos anacrônicos, tons de azuis e verdes que eram excessivamente modernas para época que estava assinada na obra. Junto a essas evidências, foi ressaltado que havia falta de compatibilidade estilística com o autor russo no conjunto gráfico da obra. Por estes motivos, concluíram que a pintura teria sido feita a partir dos anos 1930. O comitê Chagall solicitou, então, que a pintura fosse destruída (queimada na frente do magistrado francês). (BBC, 2014). A revista internacional de arte Apollo, abriu espaço para estudiosos se posicionassem sobre o caso. Sofia Komarova, diretora da galeria Artvera, em Genebra – galeria especializada em comercializar arte moderna europeia e Russa – pronuncia-se a favor da decisão do comitê. Estou espantada que a discussão está tão focada no comitê Chagall e sua decisão. Eles estão, na realidade, fazendo seu trabalho. Se eles estão certos de que a pintura é falsa, qual é o problema com a limpeza no mercado de arte? O que acontece com itens falsificados como LVs ou Rolexes retidos nos aeroportos? Eles são destruídos. […] É realmente desconcertante que este processo possa parecer incomum. (KOM ROVA, 2014, s/p, tradução nossa4)

De fato, a destruição de objetos que entrassem em discordância com a ideologia do estatuto, de uma determinada época, não é inédita. Aceitar como incomum tal ato demonstra falta de conhecimento sobre episódios ocorridos ao decorrer dos séculos. Queimar objetos serviu como purgação das impurezas que compõe um corpo que idealiza ser puro, ao eliminar incompatibilidade com o sistema. Norteado por esta ideologia, para mencionar um exemplo, acreditasse que os nazistas incendiaram mais de cinco mil obras durante o regime. Em 1941, com a propaganda nazista focada na destruição da “arte degenerada”, Marc Chagall – provavelmente temendo seu destino e de suas obras – fugiu para frança, assim, podemos aludir a existência de algo simbólico na decisão do comitê. (SPÄTH, 2014). De acordo com o advogado britânico Pierre Valentin, antigo advogado interno da casa de leilão Sotheby e, mais recentemente, parceiro da firma de advogados Withers LLP, a destruição de obras falsificadas a mando de tribunais é uma prática de longa data na França e em outros países. Já algum tempo o tribunal de Paris ordenou a destruição de obras de arte por julgarem-nas fraudulentas. Além das obras serem consideradas falsas, o que por si só desqualifica a obra, ao serem destruídas, nítida tentativa de eliminar a prática dos falsários, apregoa um julgamento inquestionável no qual, tribunais judiciários decidem se uma obra deve existir ou não. Neste sentido, o comprador é duplamente prejudicado, uma vez pela obra que o enganou e outra devido a compulsória destruição. (VALENTIN, 2013). Valentin menciona dois casos que tiveram o mesmo destino. Duas pinturas supostamente atribuídas a Joan Miró (1893-1983), que foram declaradas falsificações pela associação com os direitos morais sobre a obra de Miró – ADOM, associação gestada por seus herdeiros legais até 2063. De acordo com a lei intelectual legal espanhola (1987), tendo os herdeiros a decisão final sobre a autenticidade da obra do artista, podendo influenciar no destino que terá a obra fraudulenta, como atesta o caso: No primeiro caso (Lotz-v-A.D.O.M., 12 de junho de 2013), o Sr. Lotz, um cidadão austríaco, comprou uma aquarela em papel assinado “Miró” de um negociante dos EUA através da Artprice. O Sr. Lotz apresentou a aquarela para A.D.O.M., a associação com os direitos morais sobre obras de arte de Joan Miró. Em abril de 2009, a A.D.O.M. pronunciou a aquarela como sendo falsa e ela foi, a seu pedido, apreendida pela polícia. A A.D.O.M. pediu permissão à Poéticas Visuais, Bauru, v 7, n. 1, p. 65-80, 2016.

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primeira Corte para destruir a aquarela, permissão que foi devidamente concedida. O Sr. Lotz apelou. O Tribunal de Recursos reconheceu a autoridade da A.D.O.M. para opinar sobre a autenticidade de obras de arte atribuídas a Miró. O Tribunal observou que a A.D.O.M. tinha explicado por que, em sua opinião, a arte não era um trabalho original do artista. Seguiu-se que o primeira corte tinha direito para confirmar que a aquarela era uma falsificação, e ordenar a sua destruição. O tribunal observou que apenas a sua destruição poderia eliminar o risco de que a falsificação pudesse ser oferecida no mercado aberto como uma autêntica obra do artista. Duas semanas mais tarde, a mesma Corte ouviu um apelo de Daniel Cohen contra a primeira decisão judicial que ordenou a destruição de um desenho assinado “Miro” (Cohen -vA.D.O.M., 26 de junho de 2013). O Sr. Cohen tinha recebido o desenho como um presente de casamento de seus pais, que o tinham comprado em uma galeria de arte na Filadélfia. O Sr. Cohen o tinha deixado em consignação para venda em Aguttes, uma casa de leilões franceses, que por sua vez apresentou a obra à A.D.O.M. para autenticação. A A.D.O.M. declarou que era uma falsificação, e a apreendeu. A primeira corte ordenou a destruição do desenho. O Sr. Cohen apelou, alegando que o desenho era sua propriedade, pedindo-o de volta. O Tribunal de Recurso recusou, alegando que apenas a sua destruição impediria que fosse comprado e vendido no mercado aberto. (VALENTIN, 2013, s/p, tradução nossa5).

A obra, em vez de existir durante os anos na ignomínia da história da arte, teve a permissão legal de confisco e queima por contrafação. Mesmo que seja de conhecimento comum que atribuições, por especialistas ou por herdeiros legais, nem sempre envolvem conjecturas, pois na história da arte são vários os exemplos de atribuições equivocas. Eliminar as obras reconhecidas como falsas não minimiza a dúvida na autenticidade de uma obra, e essa ação não se presta a reprodução. Alguns comitês ao redor do mundo optam por carimbar no verso da obra símbolo que discrimine a falsificação da abra autentica, junto é enviado declaração de atestado de desaprovação de autenticidade, entregando a obra a ignomínia. Neste processo, o proprietário continua com a posse em seu poder. Compreendendo essa prática como menos intrusiva, e tendo a como referência, a destruição sistemática de obras declaradas como falsificações pode parecer desproporcional e não parece compatível com os direitos de propriedade. A revista internacional de arte Apollo, também abriu espaço para estudiosos que reprovassem a sanção irrevogável do tribunal francês, Aaron Rosen, professor no King’s College London, propõe argumentação contrário a proposta da diretora da galeria Artver. Convém lembrar que Sofie Komarova aprogoa ser necessária a destruição de obras falsificadas, pois corresponde uma modalidade legal com a finalidade de exonerar o prejuízo moral e ou monetário ao mercado, que possam ser causados por obras fraudulentas: […] é extremamente difícil ter certeza que qualquer trabalho, este inclusive, é falso. Estamos dispostos a ver uma obra destruída se até mesmo uma mínima parcela de dúvida existir? Ademais, seria sábia tal sentença, mesmo que fizéssemos um caso irrefutável? […] Além disso, pode fazer mais bem para a prevenção preservar as fraudes. Em primeiro lugar, obras sendo destruídas voluntariamente servem apenas para desencorajar futuros proprietários e concessionários em busca de tais avaliações. Enquanto isso, colocar a pintura à disposição dos estudiosos, curadores e outros especialistas poderia render lições úteis para a detecção de falsificações futuras. (ROSEN, 2014, s/p tradução nossa6)

Contudo, “se o sistema não pode ser garantido, cem por cento livre de erros, então não devemos ter o sistema”, declarou em 2011, sobre a pena capital, o então governador de Illinois, Estados Unidos, Pat Quinn, depois de diversos tribunais terem concluído que treze homens inocentes foram condenados à morte. (DN, 2011, s/p). Há uma lição para o mundo da arte nesse evento. É temerário infligir sanções irrevogáveis em julgamentos, principalmente se a base das acusações é subjetiva.

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Ainda assim, o aspecto mais inquietante talvez seja: será que influenciou na decisão da corte e do comitê de peritos, o fato de ser um colecionador particular o proprietário da obra, em vez de, uma prestigiada coleção ou instituição a portadora da propriedade apresentada para o escrutínio, junto a conjunto de advogados para apoiá-la? Subsististe a mensagem aos concessionários: tentativa em preservar uma única autoridade em autenticação? Pode esse evento ter contextualizado o temor dos representantes do mercado de obras de arte, que numa tentativa em manter ou preservar a seguridade do mercado de arte, influenciaram na decisão tomada pela corte e pelo comitê de peritos, e numa punição exemplar, demonstraria que a seguridade das transações do mercado de arte não seria perturbada? Obras de arte não deixam de ser investimentos com alto desempenho frente a espetacularização. Nesta perspectiva, se uma quantidade significativa de obras falsas puder atrair atenção, assim como obras de arte que ocupam espaço nos repositórios ou reservas técnicas, poderíamos dizer que, elas aparecerão em local de destaque, tendo a exposição amplamente divulgada. A condição de apreciação constitui clara definição e, neste cenário, obras fraudulentas e originais escondidas podem vir à tona e ser recebida pelo estatuto arte. Em consequência disso, transparece tentativa em manipular o evento que oscila entre sensacionalismo e o escancarado, o primeiro, parte da ideia do sensacional, do exagero, do apelativo. O segundo, explora a ideia de depreciação proferida por alguém superior, assim, expõe o assunto de forma anedótica ou descrente. No entanto, ambos aparecem metamorfoseados em notícias. Há sempre explicações e justificativas para ambos os casos, há um tênue limite que separa o interesse no evento que é convertido em espetáculo. Para demonstrar a incoerência da arte hermética em seus conceitos, tomemos como exemplo os trabalhos supostamente falsificados que saem do anonimato e tornam-se ícones da história da arte. Ao ter revelado sua origem, rapidamente sua importância transmuta de parâmetro, passa então de obra de arte para um trabalho de menor valor. A queda do valor leva junto a ampla divulgação da obra, com o passar dos anos cada vez menos comentada. Desta forma, contextualizando a arte como uma convenção institucional, os participantes do mundo da arte também se apresentam como escroque e não apenas o falsário. Vicent van Gogh (1853-1990), o mais celebrado e mistificado artista, gênio incompreendido que vendeu pouco em vida e cujas obras atingem hoje preços recordes, museus e galerias do mundo inteiro recebem milhões de pessoas quando sua obra está em exposições, está associado, principalmente, a série girassóis. “Você sabe que Jeannin tem a peônia, Quost tem o hollyhock, mas eu tenho o girassol, de certa forma” revelou para seu irmão Theo, na carta 573. (GOGH, 2011, carta 573 apud BROOKS, 1996-2016). Para Vicent, os girassóis, mais do que uma identificação, simbolizam a gratidão, em meio a um grito de angustia, como definiu a sua irmã, na carta 856. (GOGH, 2011, carta 856, apud BROOKS, 1996-2016). Segundo o historiador holandês Jan Hulsker (1907-2002), um dos principais estudiosos mundiais em Vincent van Gogh, que publicou o catálogo Raisonné de sua obra, em 1978, revisto em 1989 e novamente revisto e ampliado em 1996, sugere que a série de girassóis talvez mais do que qualquer outra de suas pinturas, fizeram dele conhecido em todo o mundo. Muitas vezes são as únicas obras com a qual ele é identificado. (HULSKER, 1996, p. 352). Segundo o escritor canadense David Brooks (1961-), que estudou por décadas a obra de van Gogh, responsável por um catálogo Raisonné virtual do artista, o artista holandês teria pintado onze Girassóis em toda a sua vida, dos quais, apenas dez podem ser visitados atualmente, um foi destruído pelo fogo durante a segunda guerra mundial. Especialistas discutem a possibilidade Poéticas Visuais, Bauru, v 7, n. 1, p. 65-80, 2016.

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de algumas destas obras serem, em realidade, falsas. O mais controverso “Van Gogh” é a pintura conhecida como os girassóis Yasuda, um dos seis estudos mais ou menos idênticos dos girassóis em um vaso. Uma versão está no Museu Van Gogh em Amsterdã; um segundo está na National Gallery, em Londres; a terceira versão está na Filadélfia; na Philadelphia Museum of Art; a quarta está nos Estados Unidos em posse de uma coleção particular; duas versões na Nation Gallery, uma das duas obras foi posta em leilão, em Londres pela Christie’s em 1987 e comprado pela Yasuda Fire and Marine Insurance Co. por US $ 39,9 milhões, alcançou o maior valor pago por uma obra até então. (BROOKS, 1996-2016, s/p).

FIGURA 1: Vazo com quinze girassóis – Autenticidade sob suspeita – Óleo Sobre Tela, 100.5 x 76.5 cm. Arles: January, 1889. F 457, JH 1666, Tokyo: Sompo Japan Museum of Art. Fonte: http://www.vggallery.com/painting/p_0457.htm

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O especialista em van Gogh, Martin Bailey, afirma que, quando a obra foi associada como uma falsificação, milhões de dólares entraram em jogo, assim como a reputação da casa de leilão que comercializava a obra, os encargos mais extremos vieram de Benoit Landais . Seu sucesso em manchetes foi convidativo a uma indústria de amadores entusiastas que argumentavam, uns com os outros, sobre a obra enigmática. O motor do mundo da arte entrou em movimento. Especialistas foram atraídos para a briga. Suspeitas sobre falsificações de Van Gogh atingiram obras em alguns dos melhores museus do mundo e provocou debates entre especialistas. A opinião entre a autenticidade das obras foi dividida, e sobre algumas obras, como o Yasuda Girassóis, ainda recai a dúvida. Em resposta a estas dúvidas crescentes, muitos museus retiram as obras suspeitas de Van Gogh da vista do público ou manifestam a “autenticidade inquestionável” das obras. O Museu Van Gogh, por exemplo, retirou quatro obras de exposição e submeteu-as a completa bateria de exames para testar a autenticidade das obras. (BAILEY, 2013 apud GAYFORD, 2013). Contudo, o Yasuda Girassóis tem levantado suspeitas, não só porque a pintura não é mencionada nas cartas de Van Gogh ou no inventário de suas pinturas que foi elaborado logo após sua morte, mas porque sua proveniência pode ser rastreada até Émile Schuffenecker (1851-1934). Desde o final dos anos 1920, Schuffenecker é suspeito de ter imitado e realizado falsificações das obras de outros artistas contemporâneos, incluindo Vincent. (GAYFORD, 2013). Émilie Schuffenecker foi um pintor que conheceu Paul Gauguin (1848-1903), quando ambos estavam trabalhando no mercado de ações, em Paris. Como Gauguin, Schuffenecker abandonou o comércio de ações e dedicou-se à arte. Ficou conhecido por ser um colecionador precoce das obras de Van Gogh e outros pintores. Émile também é conhecido por ter feito cópias de obras de artistas ao seu redor. Alguns esboços e desenhos provam que Schuffenecker estudou cuidadosamente obras de Van Gogh que estiveram em sua posse. O Museu Van Gogh tem uma cópia realizada por Schuffenecker, em pastel, do autorretrato de Vincent com orelha enfaixada. Sabe-se também que produziu um esboço de L’Arlésienne, que foi recentemente descoberto na Frick Art Reference Library, em Nova York. Vale informar que Schuffenecker modificava e finalizava as obras de Van Gogh que considerasse incompletas. Isso por si obriga a pensar que, em se tratando de autenticidade nas obras de van Gogh, deveríamos primeiro recorrer a porcentagem de original numa obra. (BAILEY, 2013 apud GAYFORD, 2013). O que torna especialmente difícil em detectar muitos falsos Van Gogh, segundo o jornalista Timothy Ryback, é que algumas dessas obras foram pintadas durante a vida do artista ou imediatamente após a sua morte e, assim, entrou no mercado em simultâneo com muitos originais. Isso leva a pensar que a suposição geral de que o gênio de Van Gogh não foi reconhecido até pelo menos quinze anos após a sua morte não é verdadeira. Após o falecimento de Vincent, em 1890, Theo recebeu muitas cartas de condolências, inclusive de vários artistas: Paul Gauguin, Camille Pissarro (1830-1903), Claude Monet (1840-1926), Armand Guillaumin (1841-1927), Georges Seurat (1859-1891), Paul Signac (1863-1935) e Henri de Toulouse-Lautrec (1864-1901). Dentro de uma década após a sua morte, colecionadores e o público em geral começaram a apreciar suas obras. Ocorreram grandes exposições do artista holandês e o comércio de suas obras floresceu, junto trouxe uma enxurrada de obras falsa para o mercado. Acredita-se que umas das primeiras exposições da obra de van Gogh tenham sido realizadas Poéticas Visuais, Bauru, v 7, n. 1, p. 65-80, 2016.

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por Schuffnecker, em 1901. (RYBACK, 2000). A disputa sobre a atribuição da obra em questão permanece ativa, no entanto, os proprietários, parecem não se abalar pois a obra encontra-se exposta no Sompo Japan Museum of Art, em Tóquio, como um legítimo van Gogh. Vale lembrar que o primeiro caso de falsificação comprovado de “Van Gogh” ocorreu na década de 1930, protagonizados pelos irmãos Wacker, desde então, falsificações da obra do pintor holandês vem aumentando. (ARNAU, 1961). A crescente preocupação com falsificações de van Gogh tem gerado uma indústria de autenticadores. Eles se envolvem em debates públicos, jornais, documentários, apresentando análises técnicas detalhadas, e regularmente enfrentaram curadores de museus e casas de leilão com suas descobertas. O debate em curso já dura décadas e não apresenta provas de que ira terminar cedo. (GAYFORD, 2013). Dado o exposto, a falsificação pode ser entendida como uma arte obediente à medida do gosto, consequentemente naturalizada por incautos ou conhecedores que se serviram de lucros gerados por transações bem-sucedidas, na crença de um bom negócio. Entende-se, também, que a falsificação pode nunca ser aceita. Entretanto, quando aceita no horizonte da criação, a obra é um empreendimento relacional, facilmente identificável por ataques virulentos que geram deficit a convicções no mercado e no julgamento de especialistas em arte. Assim sendo, a falsificação denuncia a alta imunologia cultural corresponde a alta vulnerabilidade contagiosa. Quiçá, a falsificação apenas alimenta os mais profundos desejos de compradores ou de pesquisadores com a ilusão de possuir algo genuíno. Se especialistas são autorizados a atestar obras falsas e juntos a tribunais podem sancionar ou vetar a existência da mesma, a falsificação, em resposta, trás em si a ambiguidade, discurso intrínseco que atesta improbidade e os abusos no mundo da arte, capaz de contextualizar a convenção institucional. O embate com esses pontos são imperativos para compreensão da empreitada, qual seja, comentar reflexivamente o objeto falsificado para que se compreenda que arte e falsificação partilham elementos comuns, em outras palavras, o que caracteriza a arte, como um candidato a apreciação e promulga a possibilidade de ser visto e legitimado, também caracteriza o falso: a convenção.

Notas de rodapé 1. Brillo Box é em sua aparência uma réplica/cópia de uma caixa de sabão utilizada nos anos sessenta, também uma obra de feita por Andy Warhol em 1964. 2. Título da obra de Marcel Duchamp realizada em 1917 que constitui no deslocamento de um objeto industrial – um urinol – para condição de objeto artístico, ao ganhar assinatura e coloca de destaque, apresentado. 3. Espírito da época ou espírito do tempo. Termo atribuída ao filósofo Georg Hegel, mas ele nunca realmente usou a palavra. Em suas obras, tais como palestras sobre a filosofia da história, ele usa a frase der GeistseinerZeit (o espírito de seu tempo), por exemplo, “nenhum

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homem pode superar seu próprio tempo, para que o espírito de seu tempo também é o seu próprio espírito” MAGEE, Glenn Alexander, “Zeitgeist”, o dicionário de Hegel, Continuum International Publishing Group, p. 262, 2011. 4. I am startled that the discussion is so focused on the Chagall committee and their decision. They are actually doing their job. If they are certain that the painting is a fake, what is the problem with cleansing the art market? What happens to fake items like LVs or Rolexes withheld at airports? They are destroyed. […] It is truly bewildering that this process might sound unusual. 5. In the first case (Lotz -v- A.D.O.M., 12 June 2013), Mr Lotz, an Austrian national, bought a watercolour on paper signed “Miro” from a US dealer through Artprice. Mr Lotz submitted the watercolour to A.D.O.M., the association with moral rights over artworks by Joan Miro. In April 2009, A.D.O.M. pronounced the watercolour a forgery and, at their request, it was seized by the police. A.D.O.M. sought permission from the first court to destroy the watercolour. Permission was duly granted. Mr Lotz appealed. The Court of Appeal acknowledged A.D.O.M.’s authority to opine on the authenticity of artworks attributed to Miro. The Court noted that A.D.O.M. had explained why, in their view, the artwork was not an original work by the artist. It followed that the first Court had been right to confirm that the watercolour was a forgery, and to order its destruction. Only its destruction would remove the risk that the forgery might be offered on the open market as an authentic work by the artist, observed the Court. Two weeks later, the same Court heard an appeal by Daniel Cohen against the first Court decision ordering the destruction of a drawing signed “Miro” (Cohen -v- A.D.O.M., 26 June 2013). Mr Cohen had received the drawing as a wedding present from his parents. They had bought it from an art gallery in Philadelphia. Mr Cohen had consigned it for sale to Aguttes, a French auction house, who in turn submitted it to A.D.O.M. for authentication. A.D.O.M. declared it a forgery, and had it seized. The first Court ordered the destruction of the drawing. Mr Cohen appealed. He claimed that the drawiang was his property, and he asked for it back. The Court of Appeal refused, on the ground that only its destruction would prevent it from being bought and sold on the open market. 6. It is extremely difficult to be utterly certain that any work, this one included, is a fake. Are we willing to see a work destroyed if even a sliver of doubt exists? Moreover, would such a sentence be wise even if we could make an irrefutable case? […] Besides, it may do more good to fraud prevention to preserve it. Destroying works willingly proffered for examination will only discourage future owners and dealers from seeking such evaluations in the first place. Meanwhile, making the painting available to scholars, curators and other experts could yield useful lessons for detecting future forgeries. 7. Para mais informações sobre o debate, consultar: NOCE, Vincent. A PROPOS D’UN TABLEAU PRÉSENTÉ COMME UN VAN GOGH. 2014. Disponível em: http://next.liberation. fr/culture/2004/04/12/a-propos-d-un-tableau-presente-comme-un-van-gogh_475761

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FURLANETO, Andrey. Sob Suspeita de Falsificação: Christie’s retira dez obras Brasileiras

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WYNNE, Frank. Eu fui a lenda do falsário que enganou os nazistas. 1ª Ed. São Paulo: Editora Companhia das letras, 2008. Recebido em 22 de junho de 2016.

Aprovado para publicação em 18 de novembro de 2016.

Design e produção artesanal.

Estudo de caso: Desenvolvimento de pequenos objetos de madeira a partir de madeira reciclada para a produção artesanal pelos usuários da Associação Arte e Convívio. Design and craftsmanship. Case study: Development of small wooden objects from recycled wood for artisanal production by members of the Associação Arte e Convívio. Kelvin Borges Mendonça* & Cláudio Roberto y Goya** * Aluno de Graduação do Curso de Design, com ênfase em Projeto de Produto pela Universidade Estadual Paulista (Unesp - câmpus de Bauru). Participa do Projeto de extensão Labsol - Laboratório de Design Solidário. ** Arquiteto pela Universidade de São Paulo (1986) e doutor em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade de São Paulo (1999). Professor assistente da Universidade Estadual Paulista (Unesp) no curso de Design. Coordenador do Curso de Design da Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação (FAAC) da Unesp, câmpus de Bauru. Desde março de 2007 coordena o Laboratório de Design Solidário da FAAC da Unesp-Bauru, onde pesquisa tecnologias sociais relacionadas ao Design e atende comunidades em atividades de extensão, em 2010 a 2013 assumiu a coordenação da Incubadora Tecnológica de Cooperativas Populares da Unesp-Bauru(SP).

Resumo Trata-se de um trabalho empírico de caráter prático, onde após revisão bibliográfica, envolvendo áreas como, o design, pesquisa cultural e de mercado, moda, e química/ambiental, tendo como base conceitual a Sustentabilidade, o Ecodesign e a Economia Solidária, utiliza-se a Metodologia do Projeto em Design do Produto (BAXTER, 2011) procurando suprir a demanda da Associação e o desenvolvimento de produtos tendo em conta as características sócio-culturais em que se insere a AAC. Será utilizada a metodologia de projeto em Design para o desenvolvimento de produtos, valorizando o artesanato e as características regionais, gerando um desenvolvimento sustentável e valorizando os produtores e seus produtos. Palavras-chave: Labsol; Madeira; Design; Sustentabilidade; Ecodesign. Abstract It is an empirical work of a practical nature, where after literature review, involving areas such as design, cultural and market research, fashion, chemical / environmental, and as a conceptual basis for Sustainability, the Ecodesign and Solidarity Economy, it uses the Project Methodology Design product (BAXTER, 2011) trying to meet the demand of the Association and the development of products taking into account the socio-cultural characteristics in which it operates AAC. It will be used to design methodology for design for product development, valuing the craftsmanship and regional characteristics, generating sustainable development and enhancing the producers and their products. Keywords: Labsol; Wood; Design; Sustainability; Ecodesign.

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Introdução

O

Projeto de Extensão Labsol, Laboratório de Design Solidário, pertencente ao Departamento O Projeto de Extensão Labsol, Laboratório de Design Solidário, pertencente ao Departamento de Design da FAAC, da Universidade Estadual Júlio de Mesquita FilhoUNESP -Campus de Bauru , possui como principal proposta, o desenvolvimento de ações conjuntas entre o design e o artesanato como patrimônio cultural. O Labsol trabalha partindo de um tripé constituído pelos conceitos de Sustentabilidade, Ecodesign e Economia Solidária e atende grupos e comunidades de artesãosorientando e qualificando seus produtos, além de promover projetos e ações que agregam e melhoram os seus processos produtivos, tendo em conta a cultura e a comunidade local. Entende-se Sustentabilidade como a capacidade do ser humano interagir com o mundo, preservando o meio ambiente e não comprometendo os recursos naturais das gerações futuras, junto a isso o Ecodesign, desenvolve produtos, sistemas e serviços que reduzem o uso de recursos não-renováveis e/ ou minimizem o seu impacto. Seguindo a mesma linha, a Economia Solidária é uma forma de produção, consumo e distribuição de riqueza centrada na valorização do ser humano e não do capital, que tem base associativista e cooperativista e é voltada para a produção, consumo e comercialização de bens e serviços de modo autogerido, envolvendo a dimensão social, econômica, política, ecológica e cultural. Isto porque, além da visão econômica de geração de trabalho e renda, as experiências de Economia Solidária se projetam no espaço público, no qual estão inseridas, tendo como perspectiva a construção de um ambiente socialmente justo e sustentável. Esses elementos são a base na qual é fundamentado o Labsol. É importante localizar na relação entre economia solidária e saúde mental, a centralidade do trabalho, em suas dimensões enquanto recurso terapêutico, direito humano, como produtor de subjetividade e como possibilidade concreta de cidadania e de emancipação como instrumento de inclusão social dos usuários dos serviços. O Sujeitos com sua história marcada por internações, conquistam o direito de trabalhar, assumindo seu papel de cidadão nas relações de produção e reprodução da vida. Ainda há precariedade que ainda existe no campo das políticas públicas de saúde mental e do trabalho no âmbito da economia solidária,no que tange aos direitos ao trabalho coletivo e autogestionário. Atualmente a condição de inclusão social é dada pela Lei 9.867, de 10 de novembro de 1999 (Brasil, 1999) que regulamenta o funcionamento das cooperativas social como modalidade de trabalho dos que estão em situação de desvantagem social, em um trabalho assistido, mediado por assistência oferecida pelo Estado. Dentre os diversos projetos que estão em andamento no ano de 2015/2016, encontra-se a Associação Arte e Convívio de Botucatu/SP. Vem desde a sua fundação em 1995, buscando o reposicionamento de seus associados em relação ao trabalho e, acima de tudo, maior convivência, respeito e consciência política através da participação em diversos Conselhos Municipais (Saúde, Assistência Social e do Deficiente). Está situada no centro do município, com facilidade de acesso ao transporte urbano, cinema,centros culturais e comércio.A AAC vem quebrando preconceitos ainda muito latentes na sociedade. Promove oficinas de inclusão produtiva, tirando seus participantes da inatividade e

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dando a essas pessoas uma nova perspectiva de vida, mostrando aos familiares e à sociedade que eles ainda são capazes. Tem por objetivo incentivar a inclusão de seus participantes no mercado de trabalho formal ou informal; melhorar a assistência e adequar os recursos humanos; oferecer aos participantes a oportunidade de criar espaços de convivência, reflexão e discussões políticas. O desenvolvimento de uma cultura empreendedora para o artesanato é importante porque essa atividade é a principal manifestação cultural do país. Ela está presente em 64,3%[1] dos municípios brasileiros e envolve 8,5 milhões pessoas que produzem 2,8% do PIB brasileiro. Essa participação no PIB é relevante, mas pode aumentar ainda mais, se o artesanato evoluir de atividade provisória e complementar à geração de emprego e renda, para se tornar empresa competitiva orientada para negócio. (JOSÉ DE MORAES FALCÃO/SEBRAE. Artesanato: as mãos visíveis do mercado. Visão do empreendedor. 2008. Disponível em:< http://www2.rj.sebrae.com.br/boletim/artesanato-as-maos-visiveis-do-mercado/>. Acesso em: 11 abr. 2014.). O desenvolvimento de uma cultura empreendedora para o artesanato é importante porque essa atividade é a principal manifestação cultural do país. Ela está presente em 64,3%[1] dos municípios brasileiros e envolve 8,5 milhões pessoas que produzem 2,8% do PIB brasileiro. Essa participação no PIB é relevante, mas pode aumentar ainda mais, se o artesanato evoluir de atividade provisória e complementar à geração de emprego e renda, para se tornar empresa competitiva orientada para negócio. (JOSÉ DE MORAES FALCÃO/SEBRAE. Artesanato: as mãos visíveis do mercado. Visão do empreendedor. 2008. Disponível em:< http://www2.rj.sebrae.com.br/boletim/artesanato-as-maos-visiveis-do-mercado/>. Acesso em: 11 abr. 2014.). A madeira é um material que viabiliza a modelagem em estruturas geométricas, planas, orgânicas e tridimensionais.Sua superfície é de fácil pintura, o que permite a adição de cores, e desenvolve texturas interessantes ao produto final, podendo ser reciclado continuamente, reintegrando-se à cadeia de produção, e após término de vida útil e descartado, sua decomposição no meio ambiente é de certa forma rápida. O artesanato é hoje uma segura opção de trabalho, operando com independência dentro de um mercado em escasso em oferta de emprego. Basta verificar o volume de vendas cada vez maior de artesanato, tanto no país, quanto para o exterior. Atividade que dá emprego a 8,5 milhões de pessoas e fatura R$ 28bi por ano, o artesanato deixa informalidade e gera divisas. Ele acaba de entrar na pauta das matérias de atualidade. [...] A partir de uma pesquisa feita com 210 cooperativas e associações de artesanato espalhadas pelo país, os dados demonstrando o tamanho do mercado brasileiro de produtos artesanais, surpreendeu até o governo, que decidiu, no ano 2005, mapear o setor. Não é para menos, informações do Ministério do Desenvolvimento, apontam o artesanato como responsável pelo movimento de R$ 28bi por ano no Brasil. Essa quantia corresponde a cerca de 2,8% do PIB.(SEBRAE. Loja de artesanato.Ideias de Negócio. s.d. Disponível em: < http:// www2.ms.sebrae.com.br/uploads/UAI/fichastecnicas/artesanato.pdf>. Acesso em: 11 abr. 2014.). Objetivos A partir da demanda da Associação, procura-se suprir as necessidades atuais do grupo, dentro delas destacam-se: 1. Desenvolver produtos de madeira que possibilite a utilização, fabricação e a geração de renda. Poéticas Visuais, Bauru, v 7, n. 1, p. 81-92, 2016.

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2. Desenvolvimento de produtos, visando a estética, procurando agregar valor ao produto tornando-o mais atrativo ao mercado, tanto conceitualmente, quanto na sua produção e acabamento. 3. Atender essas necessidades respeitando Tripé do Labsol e o conceito de sustentabilidade e não agressão ao meio ambiente, que é também a base da Associação Arte e Convívio. 12

trabalho desenvolvem-se técnicas e habilidades na produção do produto. E os ensinamentos são transmitidos para as gerações seguintes, derivados de influencias históricas, sociais e/ou culturais. Partindo das definições acima, pode-se estabelecer um vinculo entre Artesanato e Design. Respaldados conceitos apresentam objetivos semelhantes, possibilitando uma aproximação entre as duas atividades. Classificando-as como “criadoras de objetos” de várias funções e derivações sociais, que tem por finalidade transmitir uma mensagem ou conceito. Porém divergem-se quanto a sua forma de produção. Tal interação entre Design e a produção artesanal é discutida por Adélia Borges em seu livro,Design+Artesanato. São Paulo: Terceiro Nome, 2011. “A aproximação entre designers e artesãos é, sem dúvida, um fenômeno de extrema importância pelo impacto social e econômico que gera e por seu significado cultural. Ela esta mudando a feição do objeto artesanal brasileiro e ampliando em muito o seu alcance. Nessa troca, ambos os lados têm a ganhar. O designer passa, no mínimo, a ter acesso a sabedoria empírica, popular, à qual não teria entrada por outras vias, além de obter um mercado de trabalho considerável. O artesão, por sua vez, tem ao menos a possibilidade de interlocução sobre a sua prática e de um intervalo no tempo para refletir sobre ela.”(BORGES, 2011, p. 137). 2. Sustentabilidade

Visita a Associação Arte e Convívio e levantamento da demanda

(atividade já realizada)

X

Fundamentação Teórica 1. Design e o Artesanato Segundo Schneider, professor de história e cultura entende-se Design como: visualização criativa e sistemática dos processos de interação e das mensagens de diferentes atores sociais; é a visualização criativa e sistemática das diferentes funções de objetos de uso e sua adequação às necessidades dos usuários ou aos efeitos sobre os receptores. (SCHNEIDER, 2010, p.197). Segundo a definição adotada pela UNESCO, em 1997, Artesanatos são: “Produtos artesanais são aqueles confeccionados por artesãos, seja totalmente à mão, com uso de ferramentas ou até mesmo por meios mecânicos, desde que a contribuição direta manual do artesão permaneça como componente mais substancial do produto. Essas peças são produzidas sem restrição em termos de quantidade e com o uso de matérias primas de recursos sustentáveis. A natureza especial dos produtos artesanais deriva de suas características distintas, que podem ser utilitárias, estéticas, artísticas, criativas, de caráter cultural, simbólicas e significativas do ponto de vista social”. ( UNESCO 1997, apud BORGES, pág. 21).

O artesanato é uma atividade hereditária, na qual a relação estabelecida entre homem e

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“ Faz referencia às condições sistêmicas, segundo as quais em nível regional e planetário, as atividades humanas não devem interferir nos ciclos naturais em que se baseia tudo o que a resiliência do planeta permite, e ao mesmo tempo, não devem empobrecer seu capital natural, que será transmitido ás gerações futuras. “(MANZINI E VEZZOLI, 2008, p.27). O desenvolvimento sustentável é aquele que atende às necessidades do presente sem comprometer a possibilidade de as gerações futuras atenderem a suas próprias necessidades. Essa preocupação tornou-se frequente nas ultimas décadas, repercutindo mundialmente, principalmente entre os países mais industrializados. (Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento – CMMAD 1988). Entende-se, portanto, que sustentabilidade é a capacidade de determinado grupo, de manter-se em um meio evitando acarretar estes impactos e perturbações graves. Na proposta organizacional humana, que haja harmonia na convivência entre a natureza e o homem, obstando danos a biodiversidade e ecossistemas locais e planetários. 3. Ecodesign Entende-se o ecodesign como o estudo e analise para utilização dos recursos e materiais renováveis,não renováveis e resíduos derivados destes, aplicados na produção de novos produtos com a finalidade de ampliar a vida útil, retorná-los ao mercadoe minimizar o impacto aferido ao meio ambiente. Poéticas Visuais, Bauru, v 7, n. 1, p. 81-92, 2015.

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Ainda segundo MANZINI e VEZZOLI (2008, p.18), Ecodesign é “uma aptidão projetual, que concebe os aspectos do projeto, considerando também o impacto ambiental”, e (p.91) “considera-se o produto desde a extração dos recursos necessários para a produção dos materiais que o compõem (nascimento) até o último tratamento (morte) desses materiais após o uso do produto”. Pode-se relacionar-se ao Life Cycle Design (Ciclo de Vida do Produto), a busca pela redução dos “inputs” e “outputs” durante o ciclo de vida de determinado material ou produto, promovendo modificações nos processos de fabricação e desenvolvimento dos mesmos, reduzindo os impactos ambientais por eles causados. Esse declínio ocorre devido a fatores decididos durante a pré-produção, produção, distribuição, uso, reutilização e descarte do produto. Adentrando ao contexto do ciclo de vida, considera-se a possibilidade de reciclagem e/ou reutilização de seus materiais e/ou componentes, promovendo um acréscimo de tempo na vida útil dos materiais e produtos já produzidos. 4. Economia Solidária A Economia Solidária “ é uma economia de mercado com base associativista e cooperativista, voltada para a produção, consumo e comercialização de bens e serviços, buscando a valorização do ser humano e não do capital, dentro de um processo de democratização econômica” SINGER, Paul.(2002). Contextualiza-se então a Economia Solidária como uma nova forma organizacional econômica que parte do ideal do trabalho coletivo, voltado para a subsistência a partir de uma produção, venda, compra e troca que beneficie a todos os participantes, não havendo relações verticais ou de exploração de mão de obra, por mais valia, subjugação econômica e industrial. Dentro desse meio as decisões são tomadas em conjunto buscando o benefício mútuo, pois é fundamentada nos conceitos de cooperação, preservação dos recursos naturais e igualdade de poder na tomada de decisões da empresa, e consequente responsabilidade para com a comunidade local onde o empreendimento está inserido. 5. Contexto Histórico A madeira é um material polivalente usada para a construção desde tempos remotos. O Homem tem-lhe associadas memórias e sensações. Ela carrega História e Técnica. Depois de um século XX repleto de novas possibilidades construtivas e de novos materiais, no qual por vezes os velhos materiais eram esquecidos, e numa sociedade cada vez mais atenta e preocupada com o meio ambiente, parece surgir um interesse pelo Passado, numa tentativa de contextualizar um Presente cada vez mais fugaz e passageiro. A madeira, enquanto material de construção, principalmente nas últimas duas décadas tem sido alvo de um crescente interesse. Por um lado por a tecnologia associada ter avançado para campos que possibilitam a aplicação deste material em escalas até então impensáveis. E por outro lado numa crescente atenção às implicações no meio ambiente das nossas ações e tomadas de decisão. Os países nórdicos têm forte tradição no uso da madeira. A sua história construtiva é rica em exemplos que aplicam a madeira das mais variadas formas, nas mais variadas funções. (CSUS-

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TENTAVEL. Pdf. Dissertação. Disponível em: <http:// http:// http://www.csustentavel.com/wp-content/uploads/2013/11/A-tradição-da-madeira-na-actualidade.pdf>. Acesso em: 2013). No Brasil, a riqueza do bioma regional e, mais recentemente, as políticas de proteção ambiental e incentivo ao reflorestamento criaram facilidades para o desenvolvimento bem-sucedido desse setor. Seja por criar forma estéticas requintadas, seja por privilegiar a funcionalidade de suas criações, nossos designers de móveis se destacam no cenário internacional. 6. O descarte da madeira na industrial atual Um dos grandes problemas com relação à madeira está no seu correto descarte. Prefeituras de cidades de todo o país sofrem com o acúmulo de entulho gerado pelo descarte incorreto de madeira nas ruas, praças, terrenos baldios e até mesmo nos rios. A madeira existente em armários velhos, pedaços de mesas, sofás e uma infinidade de outos detritos, além dos resíduos produzidos por empresas, são sempre passíveis de reaproveitamento e de reciclagem, mas, pedaços de mesas, sofás e uma infinidade de outros detritos, além dosresíduos produzidos por empresas, são sempre passíveis de reaproveitamento e de reciclagem, mas, para que isso aconteça, o seu descarte deve ser feito de maneira correta. Essa madeira, antes ignorada, também pode ganhar forma nas mãos de artistas, arquitetos e designers que conseguem transformá-la em novos móveis de decoração, utilizando técnicas construtivas que demonstram grande preocupação com a qualidade final dos produtos, aliadas à consciência ecológica. Muitas empresas também utilizam a reciclagem da madeira, criando parcerias com outras empresas e cooperativas de catadores para o recolhimento e processamento deste resíduo. Essas parcerias são ótimas maneiras de promover o cooperativismo social [...] (como é o caso do Labsol que busca desenvolver relações harmônicas com comunidades e associações, prezando pela sustentabilidade, ecodesign, economia solidária e devolvendo à sociedade as oportunidades e conhecimentos gerados dentro do meio acadêmico como forma de retribuição ao apoio e confiança creditados a Universidade). Em São Paulo, a prefeitura resolveu intervir no descarte incorreto da madeira realizado pela população. Para isso criou os Ecopontos, que, na verdade, são pontos de entrega voluntária de pequenos volumes de entulhos recicláveis. O limite diário de descarte estabelecido nestes locais é de um metro cúbico por pessoa. o que equivale a caixa d’água de 1.000 litros. (FRAGMAQ. Blog. Meio ambiente. Disponível em: <http:// http://www.fragmaq.com.br/blog/meio-ambiente/ descarte-de-madeira/>. Acesso em: 3 dez. 2012). 7. Discussão e Materiais Trata-se de um trabalho envolvendo áreas como o design, pesquisa cultural e de mercado, e moda, tendo como base conceitual a Sustentabilidade, o Ecodesign e a Economia Solidária, utiliza-se a Metodologia do Projeto em Design do Produto (BAXTER, 2011) afim de suprir a demanda da Cooperativa através do desenvolvimento de novos produtos tendo em conta as características sócio-culturais em que se insere a Coopeg . Com a visita já realizada à Associação Arte e Convívio e a avaliação das demandas necessárias, foi feito o levantamento bibliográfico e a procura por madeiras descartadas. Dentre os materiais já recolhidos estão três tipos principais de madeira de descarte utilizadas ( eucalipto, pinus Poéticas Visuais, Bauru, v 7, n. 1, p. 81-92, 2016.

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e grevílea) . Realizou-se também a pesquisa para desenvolvimento de novos produtos e a confecção de modelos e protótipos.

aplicado. As lixas têm graduações chamadas de grã, grão ou grana. As granulações mais usadas em uma marcenaria variam de 60 até 600. Para obter um resultado satisfatório, comece com uma lixa de grana mais grossa e termine com uma mais fina. Quanto maior a numeração, mais fina é a lixa.

8. Madeiras e acabamento

8.4.4. Acabamento Para iniciarmos o acabamento, a peça deverá estar totalmente pronta, isto é, não deverá ter mais nenhuma ação sobre ela, a não ser o próprio acabamento.

8.1. Eucalipto: Nome científico: EUCALYPTUS CITRIODORA - HOOK. - MYRTACEAE; Características: madeira de cor castanha pálida, textura fina, com gosto e cheiro indistintos; Durabilidade natural: Resistente ao apodrecimento e durável ao ataque de cupins; Tratabilidade: O cerne é difícil de ser tratado, entretanto, o alburno é permeável; Uso: A madeira é usada na fabricação de mobiliário, construção civil pesada marítima e embarcações. 8.2. Pinus: Nome científico: PINUS ELLIOTTI - ENG. - PINACEAE; Características: Amarela pálida, textura fina, com gosto e cheiro resinosos; Durabilidade natural: Baixa resistência ao ataque de fungos e insetos; Tratabilidade: Alta permeabilidade às soluções preservantes; Uso: Construção civil, mobiliário de utilidade geral, embalagens, paletes e aplicações diversas. 8.3. Grevílea: Nome científico: GREVILLEA ROBUSTA - A. CUNN - PROTEACEA; Características: Castanha clara, textura média, lembrando o carvalho; Durabilidade natural: Moderadamente resistente a fungos e cupins; Tratabilidade: Alta permeabilidade às soluções preservantes; Uso: Construção civil leve, em marcenaria, decoração externa, móveis e compensados de uso geral. 8.4. Acabamento 8.4.1. Pré-acabamento O objetivo dessa fase é fazer um desbaste considerável, eliminando marcas deixadas pelas máquinas de corte ou desbastes, retirando desigualdades, desníveis, farpas e ondulações, preparando a superfície para o acabamento. No entanto, para obter superfícies mais planas possíveis, é necessário o uso de plaina ou grosa, raspadeira e lixa. 8.4.2. Emassamento O emassamento se faz necessário, quando se quer corrigir pequenos defeitos nas peças a serem utilizadas. Pode-se citar, como exemplos, o preenchimento de um buraco ou uma porção lascada sobre a superfície, ou ainda imperfeições geradas por nós da madeira ou em rachaduras. Para o emassamento, podem ser utilizadas massas prontas comerciais, que são vendidas, inclusive, em diversas tonalidades de madeira. Ou mesmo massas preparadas na própria marcenaria. 8.4.3. Lixamento O processo de lixamento se inicia no pré-acabamento e termina no acabamento. Um lixamento efetuado de forma correta permite reduzir também a quantidade de material de acabamento a ser

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8.4.5. Seladora/cera O objetivo da seladora é fechar os poros da madeira, proporcionando uma proteção à madeira quanto à ação de produtos, que serão aplicados posteriormente para deixá-la com o aspecto desejado. A primeira demão já é suficiente para fechar os poros da madeira. 8.4.6. Envernizamento Os vernizes são feitos de matérias resinosas ou gomosas que, em dissolução em um líquido apropriado, e aplicadas nas superfícies da madeira, formam estratificações, protegendo-a do ar e da umidade, ao mesmo tempo em que lhe dá durabilidade, beleza e brilho. Devem ser aplicados sobre a superfície da madeira após a aplicação de um selador ou fundo. Existem dois tipos de vernizes: à base de óleo e à base de álcool. Os vernizes oleosos, por serem mais resistentes a intempéries, são usados em ambientes externos e os de álcool em ambientes internos. Tratamento adequado aumenta a vida útil da madeira. Alguns produtos, no entanto, podem mudar o aspecto das peças. Dentre as várias possibilidades, o tipo de acabamento mais adequado para a madeira depende da finalidade de uso da peça, o que determinará a sua durabilidade. É preciso atentar para a preparação da superfície, a diluição do material e a quantidade a ser aplicada. Muito comuns, o stain e o verniz têm como diferença entre si o fato de o primeiro penetrar na fibra da madeira e o segundo criar uma camada protetora sobre a peça. O stain geralmente desbota após cerca de dois anos, exigindo, para a manutenção, lixamento e limpeza antes da reaplicação. Já o verniz precisa de remoção completa da camada. É indicado produtos à base de água, menos poluidores e mais ecológicos que os à base de solventes. Além disso, os primeiros são menos prejudiciais ao aplicador e desgastam menos pincéis e rolos de pintura. 9. Parecer Parcial Em um primeiro momento é feito uma seleção minuciosa das melhores madeiras descartadas, em seguida inicia-se os desenhos e as medições na peça escolhida. Após isso, a madeira é cortada e lixada seguindo as medidas preestabelecidas. Ao fim, é feito pequenos acabamentos e furos para agregar mais valor ao produto final e depois pronto para a venda. A modelagem em madeira maciça é mais viável que em compensados de madeira, oferecendo um melhor acabamento ao produto final. 10. Resultados e conceitos Os resultados obtidos possibilitaram o desenvolvimento de produtos com valor agregado, qualidade visual, material e acabamento. Tendo como visão alterar de maneira benéfica a produção e a vida Poéticas Visuais, Bauru, v 7, n. 1, p. 81-92, 2016.

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dos trabalhadores da Associação.Os conceitos escolhidos para os produtos são variados, para atingir um número maior de pessoas como crianças, jovens e adultos. Sendo assim, ocorre mais procura e visibilidade para os trabalhadores da Associação Arte e Convívio. Além disso, foi desenvolvido um espaço para café reaproveitando pallets descartados, o que trouxe maior harmonia ao ambiente de convívio dos trabalhadores, visitantes e funcionários. Os conceitos escolhidos para os produtos são variados, para atingir um número maior de pessoas como crianças, jovens e adultos. Sendo assim, ocorre mais procura e visibilidade para os trabalhadores da Associação. 11. Parecer final Por meio da captação de conhecimento popular, o Labsol busca desenvolver técnica e estetica dos objetos para lhes agregar maior valor e qualidade. Ao mesmo tempo que o conhecimento popular serve como base para desenvolver o conhecimento científico aproximando comunidade e universidade. Devolvendo à sociedade as oportunidades e conhecimentos gerados dentro do meio acadêmico como forma de retribuição ao apoio e confiança creditados a Universidade. Equipamentos empregados: Serra circular para divisão de partes e proporções dos objetos, serra de fita e lixadeira orbital para obter as formas desejadas, lixa manual com gramatura de 80, 150, 220, 400 para acabamento e furadeira de bancada para os detalhes circulares. Metodologia Trata-se de um trabalho empírico de caráter prático, onde após revisão bibliográfica, envolvendo áreas como, o design, pesquisa cultural e de mercado, moda, e química/ambiental, tendo como base conceitual a Sustentabilidade, o Ecodesign e a Economia Solidária, utiliza-se a Metodologia do Projeto em Design do Produto (BAXTER, 2011) procurando suprir a demanda da Associação e o desenvolvimento de produtos tendo em conta as características socioculturais em que se insere a Associação Arte e Convívio. Será utilizada a metodologia de projeto em Design para o desenvolvimento de produtos, adaptando métodos, processos e reutilização da madeira descartada, refinando seu acabamento e agregando valor ao produto final. O processo dar-se-á através da pesquisa empírica com variadas técnicas do preparo ao acabamento da madeira, além do emprego de vernizes que servirão como base para proteger a madeira de intempéries, conciliando os processos de produção e a matéria prima local à demanda de mercado, reformulando o processo de produção, produtos e técnicas, valorizando o artesanato e as características regionais, gerando um desenvolvimento sustentável e valorizando os produtores e seus produtos. Por meio da captação de conhecimento popular, o Labsol busca desenvolver técnica e esteticamente os objetos para lhes agregar maior valor e qualidade. Ao mesmo tempo em que o conhecimento popular serve como base para desenvolver o conhecimento científico aproximando comunidade e universidade. Devolvendo à sociedade as oportunidades e conhecimentos gerados dentro do meio acadêmico como forma de retribuição ao apoio e confiança creditados a Universidade.

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II. Referências Bibliográficas ZNETTI ,Eloi; FRAGA ,Ronaldo e ;BORGES,Adélia. ARTESANATO, intervenções e mercados – caminhos possíveis. SAMPAIO ,Helena (coordenação)São Paulo: Artesol, 2077, 71 páginas. CAVALCANTE ,Claudia . ARTESANATO, produções e mercado. Uma via de mão dupla. São Paulo: Artesol, 2002. BARDI, Lina Bo. Tempos de grossura: o design no impasse. São Paulo: Instituto Lina Bo Bardi e P.M. Bardi, 1980. BAXTER, Mike . Projeto de Produto, Guia prático para o design de novos produtos . Tradução ItiroIida. Editora Blucher, 2011. BORGES, Adélia. Design+Artesanato. São Paulo: Terceiro Nome, 2011. FREITAS, Ana Luiza Cerqueira de. Design e artesanato: uma experiência de inserção da metodologia de projeto de produto. São Paulo: Blucher Acadêmico, 2011. FROTA ,Lélia Coelho . Pequeno Dicionário da ARTE DO POVO BRASILEIRO, séc. XX .Editora Aeroplano GUIMARÃES, LiaBuarque de Macedo. Design e Sustentabilidade. Brasil: produção e consumo, design socioténico, FEEng - Porto Alegre – RS KAZAZIAN, Thierry. Haverá a Idade das Coisas Leve: Design e Desenvolvimento Sustentável. São Paulo: Editora Senac, 2005. MANZINI, E.; VEZZOLI, C. O Desenvolvimento de Produtos Sustentáveis.São Paulo: USP. 2008. MELLÃO, Renata. entreVistas , vol. II design+artesanato. São Paulo –2012 ,Editora A CASA do museu do objeto brasileiro. MENGOZZI, Frederico. Artesanato no Brasil = Craft in Brazil.São Paulo: Reflexo Texto e Foto, 2000. Edição bilíngue: português/inglês. RIBEIRO, Berta G. et. al. O artesão tradicional e o seu papel na sociedade contemporânea. Rio de Janeiro: Funart, 1983. SINGER, Paul. Introdução à Economia Solidária. São Paulo: Fundação Perseu Abramo. CURSOSCPT. Site. Marceneiro. Disponível em: <http://www.cpt.com.br/cursos-marcenaria/ artigos/marceneiro-aprenda-as-melhores-tecnicas-de-pre-acabamento-e-acabamento-para-moveis/>. Acesso em: 2 jun. 2013. EQUIPEDEOBRA. Site. Madeira. Disponível em: < http://equipedeobra.pini.com.br/construcao-reforma/51/acabamentos-para-madeira-saiba-o-que-levar-em-consideracao-265478-1. aspx/>. Acesso em: set. 2012. III. Agradecimentos Agradeço ao CNPq pela bolsa de iniciação, aos integrantes do Labsol, que trabalhando em grupo obtém excelentes resultados. Em especial, ao Prof. Dr. Claudio Roberto y Goya, por toda a ajuda prestada, orientação e disponibilidade durante a realização deste trabalho. Poéticas Visuais, Bauru, v 7, n. 1, p. 81-92, 2016.

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Reconheço também a importância de todos que ajudam e contribuem para o sucesso do Projeto de Extensão Labsol, e dos vínculos e laços criados com as comunidades com as quais já trabalhamos. A reciprocidade das trocas de conhecimentos e técnicas práticas e teóricas solidificaram uma ponte ligando o mundo acadêmico à sociedade civil, beneficiando mutuamente os dois setores, ampliando o horizonte de novas oportunidades e quase sempre criando vínculos de amizade.

Carlos Navarro: No uso da máquina da memória para uma escrita interior

Carlos Navarro: the use of the memory machine for an innter written. Khetllen Da Costa Tavares * & Luciane Viana de Barros Páscoa **

Recebido em 26 de setembro de 2016.

Aprovado para publicação em 31 de outuro de 2016.

* Licenciada em Artes Visuais pela Universidade Federal do Amazonas – UFAM, mestranda regular no programa de Pós-Graduação em Letras e Artes da Universidade do Estado do Amazonas e bolsistas da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas – Fapeam. Manaus, Amazonas, Brasil e área de pesquisa Teoria, Crítica e Processo de Criação. ** Doutora em História Cultural pela Universidade do Porto (2006), mestre em História pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1997), graduada em Artes Plásticas (Licenciatura) pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (1992), graduada em Música (Licenciatura) pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (1993). É Professora da Universidade do Estado do Amazonas, onde atua como membro permanente do Mestrado em Letras e Artes, e no curso de Música. Manaus, Amazonas, Brasil e área de pesquisa em Fundamentos e Críticas da artes.

Resumo A fim de analisar poéticas fotográficas desenvolvidos em Manaus sob o eixo da memória como forma de resistência, elegeu-se a produção de Carlos Navarro, fotógrafo envolvido desde 1986 com a documentação do patrimônio material e imaterial desta cidade. Com intuito de compreender as relações entre fotografia e memória expressas na poética deste fotógrafo, foi escolhido o ensaio Decadência Urbana, para análise visual dos itens contidos na imagem. Adiante, notou-se nesta a degradação das relações sociais associadas ao patrimônio arquitetônico em Manaus, por meio de aspectos visualizados nos ângulos de construção da foto, nas distorções de matizes, ou no uso do desfoque que sugerem reflexões sobre temporalidade. Palavras chave: Carlos Navarro; Fotografia; Memória; Patrimônio; Manaus. Abstract In order to analyze photo-poetics developed in Manaus in the memory axis as a form of resistance was elected the production of Carlos Navarro, photographer involved since 1986 with the material and immaterial heritage documentation in this city. In order to understand the relationship between photography and memory expressed in the poetics of this photographer, Decadência Urbana essay was chosen, for visual analysis of the items in the image. Forward, was noted in this the degradation of social relations associated with the architectural heritage in Manaus, through aspects displayed in the photo construction angles, the distortions of hues, or the use of blur to suggest reflections on temporality. Keywords: Carlos Navarro; Photography; Memory; Heritage; Manaus.

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Introdução

A

relação entre a fotografia e a memória faz-se presente desde a invenção da tecnologia, esta instaurada pela objetividade intrínseca ao equipamento na representação da natureza. Associada ao desejo do homem em guardar as lembranças do tempo vivido, expresso no uso da fotografia como forma de apreensão do tempo passado foi recorrente em períodos de transição. No Brasil, na passagem do século XIX para o XX, muitos fotógrafos propuseram documentar as memórias de determinados grupos. Dentre estes destacaram-se: Militão Augusto de Azevedo responsável por documentar o desaparecimento de aspectos coloniais na cidade de São Paulo durante o final do século XIX, consequentes das reformas realizadas pelo governo, assim como Augusto Malta que fotografou as transformações da cidade do Rio de Janeiro no início do século XX. Os fotógrafos que desenvolveram a produção durante a fotografia oitocentista marcada pelo registro das transformações físicas e sociais pelas quais as cidades brasileiras viviam, utilizaram a câmera como instrumento de registro documental, tornando a fotografia suporte de memória. Em meio às multiplicidades de propostas quanto ao uso da fotografia na contemporaneidade e a subversão do caráter de testemunho e verdade por meio da imagem fotográfica, observa-se os projetos que propõe novas formas de evocar questões de memória por meio do fazer fotográfico. Nesse cenário, verificam-se singularidades na articulação do tema por fotógrafos e artistas visuais que utilizam a fotografia na construção do discurso, assim, o artista apresenta indicações de fragmentos com intuito de suscitar o exercício da memória por meio da imaginação, muitas vezes restringindo o acesso do espectador ao elemento visual, diferente de fotógrafos que se concentram em explorar as características dos elementos visuais contidos na imagem. Há também, a associação de uma memória privada expressa nos álbuns de família estendida ao público, para o entendimento de uma coletividade em determinado período. Com o intuito de observar como trabalhos relacionados com a evocação da memória são desenvolvidos em Manaus, elegeu-se a produção de Carlos Navarro, fotógrafo envolvido desde 1986 com a documentação do patrimônio material desta cidade. Contudo os trabalhos dele se estendem ao registro da memória coletiva, por meio do olhar individual do autor, de maneira que registra as vivências de determinados grupos. Vale ressaltar que associado ao ato fotográfico encontra-se o processo subjetivo do autor expresso na imagem, sendo assim, no trabalho de Navarro pretende-se partir do público para o privado. Para tanto, buscou-se os estudos de André Rouillé, Boris Kossoy, Katia Canton e Phippe Dubois, sob a perspectiva das subjetividades presentes no uso da memória por meio da fotografia. Para Dubois (2009, p.316): “a arte da memória é exatamente como uma escrita interior”, e a fotografia segundo o autor seria “uma máquina da memória”. Sendo assim, pode-se pensar que os fotógrafos ao produzirem imagens desenvolvem um diário visual por meio da câmera, ao pressupor este diário como forma íntima de escrita. A partir dessa relação, pretende-se observar a correspondência do uso da memória na produção de Carlos Navarro em consonância com a trajetória pessoal do fotógrafo, este com quase 50 anos de produção, dos quais 43 vividos em Manaus. Sua poética tem como principal eixo a memória como agente de resistência, por meio do registro do patrimônio material e imaterial, ao eleger elementos que se encontram à margem da visibilidade social. Por fim, propõe-se compreender as relações entre fotografia e memória expressa na produção de Carlos Navarro, e também identificar os elementos de memória observados no ensaio

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Decadência Urbana, por meio da análise visual dos itens contidos na imagem e estabelecer possíveis correspondências de memória com o processo poético do autor. Fotografia e Memória Ao pensar na relação entre fotografia e memória é comum associar-se ao registro documental da imagem fotográfica, contudo neste estudo a discussão reside na preocupação em registrar memória como forma de resistência seja contra ao tempo, seja contra poderes públicos. Tal anseio sugerido nas imagens por meio das lembranças, impressões subjetivas do autor expressas do coletivo ao individual, logo desencadeiam a escrita interna. A memória consiste em um processo de atuação e elaboração que necessita de constante renovação, ao relacionar tal mecanismo com a criação da imagem fotográfica Flores (2009, p.125) diz que: “[...] a fotografia realiza uma operação similar à da memória ao fixar algo tão frágil como um percepto. Ambas, fotografia e memória, têm como objetivo principal armazenar algum tipo de essência imaterial, instantânea e volátil.” Dessa forma, a atuação do fotógrafo permeia esse limiar de armazenar o imaterial no material. Também, compreende-se a fotografia como máquina da memória, pois Dubois (2009, p.316-7) explica que: A fotografia: uma máquina de memória, feitas de loci (o receptáculo: o aparelho de foto, sua objetiva, sua janela; caixa negra, recorte e retângulos virgens de películas; de uma bobina a outra, desfile ordenado das superfícies vazias receptoras) e de imagines (as impressões, as inscrições, as revelações, que vão e vêm, sucedem-se nas superfícies, desenrolam-se em “cópias de contato”), uma mnemotécnica mental. Logo, a máquina constitui-se do material com a tecnologia e do sensível com as impressões, dessa forma permitiria o autor construir uma narrativa daquilo que se viveu. A fotografia atua na mente das pessoas como um passado preservado de um momento, de maneira que a imagem dribla a ação do tempo na memória, guardando a representação de fragmentos de instantes únicos da existência de cada um (KOSSOY, 2002). Diante da efemeridade do tempo, apenas a fotografia sobrevive, pois de acordo com Kossoy (2002, p.139): “As personagens retratadas envelhecem e morrem, os cenários se modificam, se transfiguram e também desparecem. O mesmo ocorre com os autores-fotógrafos e seus equipamentos”. Sendo assim, atentou-se ao fotógrafo como autor do registro de memória, pois acredita-se que este propõe sua permanência no tempo através da fotografia, assim testifica sua passagem no mundo. Compreende-se que a intenção de permanência está contida no fio condutor do processo de criação, pois de acordo Flores (2009, p.125): “a fotografia e a memória é uma luta contra o tempo e a morte”. Portanto, assim como o ato da procriação visa à continuidade de uma espécie, também, acredita-se que o artista pretenderia prolongar sua memória, por meio da criação da obra de arte, visto que a obra e o autor estão intimamente relacionados. E ao articular determinado mecanismo com a poética em estudo, observa-se que Carlos Navarro (2015) aos 70 anos de idade, dos quais 50 foram dedicados à fotografia, ao falar do momento em vive expôs a preocupação em: “Ocupar o pouco tempo que ainda me resta [...] É questão de tempo também, na fotografia cada fase tem um tempo e a gente vai vivendo as fases”. Sendo assim, nota-se o envolvimento dele com questões de tempo, memória e permanência, estas também sugeridas nas imagens. Ao observar os discursos artísticos em torno da memória, elegeu-se como um dos principais vetores o tempo, pois com a velocidade de informações e o estreitamento entre as distâncias territoPoéticas Visuais, Bauru, v 7, n. 1, p. 93-110, 2016.

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riais na vida contemporânea, há cada vez mais um encurtamento do tempo, interferindo nas experiências vividas, em que a vida se restringe ao presente, de maneira que o passado é logo esquecido. A partir dos anos 90, os artistas brasileiros se voltam para o uso da memória como agente de resistência, associados ao prolongamento do tempo. Tais trabalhos segundo Canton (2009a, p. 21) agem como: “forma de resistência à fugacidade que teima em nos situar num espaço de fosforescências, de uma semiamnésia gerada pelo excesso de estímulos e de informação diária.” Tal achatamento do tempo, poderia suscitar a reflexão de fotógrafos através do registro de áreas em transformação, com intuito de registrar antes que se dissipe, pois estes garantem que existirá ainda um rastro, a noção de memória mesmo diante da aceleração tecnológica. Assim, o fotógrafo atua como colecionador de imagens. A presença de trabalhos artísticos que visam alargar o tempo contrapõe-se a voracidade do cotidiano, pois o tempo contemporâneo para Canton (2009a, p.20) configura-se em: “Turbulento, nesse tempo parece fugaz e raso. Retira as espessuras das experiências que vivemos no mundo, afetando inexoravelmente nossas noções de história, de memória, de pertencimento.” No vídeo de Bill Viola, artista que desenvolve vários projetos utilizando a videoarte, entre estes The Passing (1991), feito em memória da mãe Wynne Viola, na escala de tons de cinza no qual o som é a respiração da mãe doente, com a duração de 54 minutos. Assim, suscita a reflexão e contemplação, ao driblar a rapidez das relações no contemporâneo, logo a resistência ao tempo leva a preservação da memória. (CANTON, 2009a). Também, há projetos em torno da memória que partem do privado para o público ou vice e versa. A artista Rosângela Rennó na instalação Bibliotheca discute elementos de memória a partir de álbuns de família que ela adquiriu em diversos lugares do mundo, os quais foram expostos em mesas-vitrines, porém espectador não tem acesso a eles. Diante disso, Rennó fez descrições sobre os conteúdos expressos em cada um, de maneira que o elemento visual não é revelado, logo foco está na sugestão de memória, no exercício de imaginação do espectador que criará a sua narrativa, a partir das próprias experiências. Assim, induz cada indivíduo a evocação de sua memória, partindo do geral para o específico, ao fim, a experiência torna-se mais sensitiva que visual (VELASCO, 2011). Enquanto isso, na produção de Carlos Navarro observada no ensaio Decadência Urbana, o fotógrafo transita do público para o privado, pois a partir de temáticas sociais nota-se a relação com ideias que permeiam a trajetória do fotógrafo. Além disso, as reflexões propostas no ensaio em torno da memória acontecem a partir do exercício da imaginação por meio dos elementos visuais que são sugeridos, mas não são registrados em sua totalidade nas imagens. Deste modo, observam-se as diferentes maneiras de articulação do uso da memória por parte de artistas e fotógrafos na arte contemporânea, elegendo o tempo como fio condutor desses processos de resistência, para contrapor-se a voracidade com que se dissipam as noções de memória, história e pertencimento.

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A Memória na poética de Carlos Navarro

Figura 1. Autor desconhecido. [Sem Título]. 2015. 1 fotografia, color. Altura: 1165 pixels. Largura: 964 pixels. 300 dpi. 129 KB. Fomato JPG. 1 CD-ROM. Acervo do Artista. Carlos Alberto Navarro Infante (Fig.1) relatou que nasceu em Caracas (Venezuela) em 1945, iniciou como fotógrafo amador em Barcelona (Espanha) no ano de 1966, onde a sua curiosidade foi despertada em torno das técnicas de revelação laboratorial em preto e branco. Consequentemente montou o próprio laboratório de forma artesanal, adiante trabalhou como ajudante de laboratório, onde teve acesso às etapas de revelação a cores e posteriormente assumiu o cargo de gerente de laboratório. Em 1972, através do anúncio de jornal, candidatou-se a uma vaga de técnico de laboratório a cores, da empresa Sonora, a qual exigia que o funcionário pudesse capacitar mão-de-obra, instalar e manter o funcionamento do laboratório em Manaus (Brasil), assim o fotógrafo foi contratado e em 1973 mudou-se para a capital amazonense, onde permanece desde então (NAVARRO, 2015). Navarro iniciou na empresa Sonora como gerente operacional, técnico eletrônico e instrutor de recursos humanos para a fotografia, tornou-se pioneiro no norte do Brasil em fotografia a cores. Em 1982, optou por sair da empresa para atuar como fotógrafo autônomo, assim dedicou-se a área de processamento fotográfico, registro de eventos e instrutor técnico, também adentrou na fotografia artística, na qual realizou várias exposições de caráter local e nacional, assim como, recebeu prêmios e homenagens ao longo da carreira. Em 2005, ingressou na fotografia digital, iniciando um novo estágio em sua produção fotográfica. Carlos Navarro desenvolve projetos que evocam a memória como agente de resistência, por meio do registro do patrimônio material e imaterial, expressos em ritos e costumes desenvolvidos por determinada parcela da sociedade, que mantém fazeres propícios ao desaparecimento nas futuras gerações. O desejo em registrar a memória cresce na produção do fotógrafo nos últimos anos, devido ao próprio processo que ele se encontra, pois de acordo com Navarro (2005): “Eu estou perdendo muito a memória, têm muitas coisas que estão fugindo da cabeça pela idade. Então, o que eu puder fazer para documentar, ensinar, transferir, eu faço”. Assim, a preocupação com o tema pode vir da voracidade com que o tempo interfere no processo de memória do autor, e o uso da fotografia driblaria o mecanismo da perda. Os artistas que priorizam a memória como centros da obra compartilham com o espectador Poéticas Visuais, Bauru, v 7, n. 1, p. 93-110, 2016

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impressões de si mesmos, determinada atitude segundo Canton (2009a, p. 22) seria: “[...] um testemunho de riquezas afetivas que o artista oferece ou insinua ao espectador, com a cumplicidade e a intimidade de quem abre um diário”. Dessa maneira, Carlos Navarro poderia estar compartilhando suas memórias afetivas nas imagens, mesmo advinda do registro da memória coletiva de determinados grupos. Nota-se nas imagens o uso da memória por meio da representação daqueles que vivem nos limiares da sociedade: carregadores, pescadores, ambulantes, temas que se interligam por propor o resgate da memória coletiva e individual. Ao discutir determinados temas, observa-se na obra do fotógrafo fragmentos de caráter político, que se entrelaçam com a trajetória de Navarro. Assim as imagens do fotógrafo configuram-se meio de contestação social, atitude presente na vida de Carlos Navarro desde a juventude, quando se envolveu nos movimentos de contestação política, por meio da luta armada nos anos 1960 na Venezuela. Nesse período aconteceu o despertar pela fotografia, pois viu na câmera uma ferramenta na luta por igualdade de direitos sociais e civis. Navarro (2015) relatou que: [...] E aos 17 anos quis fazer o mundo mais humano, e as diferenças sociais das classes mais amenas para todas as pessoas, fiz parte da classe estudantil, e ingressei na Juventude comunista em 1963 até 1966, fiz parte da guerrilha urbana em Caracas e depois da guerrilha rural da montanha na Venezuela até 1965, aonde fui preso na cadeia política. Em 1966, fui exilado na Europa e decidi ficar na cidade de Barcelona (Espanha) como exilado político. Em tal cenário um dos principais instrumentos dos guerrilheiros eram as armas, que os ajudavam na resistência ao governo e na luta pela garantia dos direitos sociais a todos. Durante o convívio, surgiu o interesse de alguns fotojornalistas em registrar o cotidiano desses jovens. Segundo Navarro (2015): “Na época das guerrilhas rurais, tivemos a visita de vários jornalistas para documentar a vida dos guerrilheiros, e isso me chamou a atenção, pela fotografia”. A primeira motivação pela fotografia veio através do retrato que um fotojornalista fez de Carlos Navarro, a imagem o tocou de tal modo que o desejo de fotografar surgiu. A correspondência entre a câmera e arma faz-se presente na teoria da fotografia, para Sontag (2013, p.25): “Assim, como a câmera é uma sublimação da arma, fotografar alguém é um assassinato sublimado”. Tal pensamento é compartilhado por Navarro (2015), que diz: Hoje eu continuo com a minha ideia, com o meu ideal, e continuo fazendo o mesmo que eu fazia na guerrilha, só que hoje, eu utilizo uma câmera. Antigamente eu usava um fuzil, uma arma, hoje eu tenho uma lente. Não mudou, mudou a forma operacional, porém o ideal é o mesmo, o conceito é o mesmo. O ideal socialista do fotógrafo consiste em: “fazer a vida das pessoas um pouco melhor em sua estrutura através do conhecimento” (NAVARRO, 2015). Desse modo, leva-se a reflexão sobre a transição que o fotógrafo apresenta, pois em meio à luta armada reverteu a estratégia para o uso da fotografia como mecanismo de contestação. Para Navarro (2015): “Uma câmera é mais poderosa que uma arma, uma arma pode derrubar um, dois, três ou quatro, uma imagem derruba uma instituição, um estado. A imagem é mais poderosa [...]”. Visto que, o caráter contestador da fotografia reside nas potencialidades da imagem em chocar o outro, que justifica o maior alcance, além disso, a aceitação da câmera pelas pessoas permite o fotógrafo ter acesso a determinados lugares, que a luta armada não alcançaria. Diante disso, observam-se na obra de Carlos Navarro fragmentos de caráter político entrelaçados com sua memória afetiva.

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Para Salkeld (2014, p.36): “a câmera mostrou ser uma poderosa arma na conquista de mudanças sociais, indo mais além de uma mera testemunha de eventos e ações e possibilitando que a opinião pública fosse mobilizada de forma a originar respostas”. Logo, o uso da fotografia como agente de contestação social em que o fotógrafo por meio do discurso crítico denuncia a realidade social de determinados grupos, faz-se tradição na história da fotografia. Vale ressaltar que Navarro iniciou na fotografia na década de 1960 e na década seguinte mudou-se para o Brasil, assim faz-se necessário entender o contexto que envolveu o percurso criativo do autor. Segundo Ferreira (2009) no final dos anos 60, notava-se a repreensão realizada sob os sindicatos de zona rural, com a dissolução das organizações estudantis, inquéritos militares nas universidades, censura, invasão de igrejas, aspectos que levaram a formação de uma cultura de esquerda no país, e a politização da arte. Também, presenciou-se o conflito entre capitalismo e comunismo, pelos regimes militares em vários países da América Latina, em tal cenário, a fotografia tornou-se recorrente nos trabalhos artísticos, pois os artistas buscavam atingir a ditadura militar, de forma sutil para evitar a censura (AMARAL E TORAL, 2009a). Carlos Navarro transitou por diversas ditaduras: Caracas (Venezuela) sob o comando de Raul Leoni, depois em Barcelona (Espanha) com Francisco Franco, e por fim em Manaus (Brasil) com Emílio Medici na frente dos anos mais violentos da ditadura no país. Navarro (2015) relatou como viveu nesse período: Na Venezuela foi um pouco diferente, houve um consenso dentro de guerrilha que não ia mais dar certo a luta armada, não era um caminho certo porque o estado estava muito melhor estruturado em termos bélicos, então e chegou-se ao consenso, a uma anistia da parte do governo. Então muita gente abandonou, entraram para legalidade através dos partidos e abandonaram, porém, antes disso morreu muita gente, tanto pelo Estado como pelas guerrilhas. Na Espanha era ditadura do general Francisco Franco e depois vim para outra ditadura era do Garrastazu Médici, depois foi o Figueiredo. Essa ideologia eu ainda continuo com ela, porém da forma que eu queria que fosse implantada não era o caminho correto. A partir do depoimento do fotógrafo observam-se os embates na luta armada, que levaram a mobilização por meio dos partidos políticos, como forma de prosseguir com os ideais. Para Fernandes Junior (2003) o final da década de 1970 foi marcado pela luta na reorganização política da sociedade e pelo fim da censura, que propiciou a criação das primeiras agências de fotógrafos, assim o foco desses trabalhos residia na constante crítica político-social, e no esforço para legitimar o direito autoral, dessa forma, a fotografia contribuiu para reativação da consciência moral e política daquele período. Na arte contemporânea os alvos foram diluídos para diferentes campos, pois se direcionou a luta pelos direitos humanos e a cidadania, expresso no engajamento com questões do meio ambiente, pobreza, qualidade de vida, étnicas, sexuais, defesa aos direitos da mulher entre outras (AMARAL E TORAL, 2009b). Segundo Canton (2009b, p.26) os artistas transformam-se: “em agentes políticos, que cada vez mais quebram a distância entre arte e cotidiano”. Assim, nesse cenário os trabalhos artísticos aparecem de maneira mais fluida aliada ao caráter existencial dos indivíduos. Portanto, verifica-se que pelo discurso do fotógrafo a motivação primária da carreira em diminuir as diferenças entre as classes, permanece no percurso poético do autor ao registrar lugares, grupos sociais a margem. Junto a isso, articula questões de memória em torno da impermanência, o esquecimento, a degradação das relações sociais, trabalhistas associada ao abandono patrimonial, sobretudo no ensaio Decadência Urbana. Tal posicionamento de Navarro está em Poéticas Visuais, Bauru, v 7, n. 1, p. 93-110, 2016

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consonância com a fotografia contemporânea, que não retrata apenas a realidade, mas a cria e a subverte, justapõe e seleciona camadas de vivência com intuito de gerar possibilidades de construção de sentido, a fim de contrapor-se à corrente (DIEGUES, 2014). Decadência Urbana Na década de 1970 Carlos Navarro mudou-se para Manaus, devido aos estímulos econômicos a empresas, por meio da Zona Franca de Manaus (ZFM), inicialmente idealizada sob a lei nº 3.173 6 de junho de 1957 no governo de Juscelino Kubitscheck, com o objetivo geopolítico de desenvolver a Amazônia. Adiante sob o Decreto-Lei Nº 288, de 28 de fevereiro de 1967, a legislação ampliou e reformulou o modelo, com incentivos fiscais por 30 anos para a implantação do polo industrial, comercial e agropecuário na Amazônia, elegeu-se Manaus como centro desse sistema. Naquele mesmo ano, o governo federal definiu por meio de decreto-lei a Amazônia Ocidental, tal medida objetivava a ocupação da região e elevar o nível de segurança para manutenção da integridade desse território (SUFRAMA, 2014). Entre as justificativas apontadas, Oliveira (2003, p.68) ressalta que: “o primeiro destinado a refazer e reforçar os laços da região com o conjunto do país. E o segundo, destinado a abrir a Amazônia ao desenvolvimento extensivo do capital.” Contudo, a promessa de crescimento veio acompanhada de transformações, que modificaram cidade repentinamente, através do grande êxodo rural de pessoas vindas do interior do estado, assim como de outras regiões do Brasil, devido à promessa de melhores condições de vida por meio dos empregos disponíveis. Nesse período os limites expandiram-se, também em consequência os anseios não correspondidos, observou-se o aumento da criminalidade, desemprego, violência urbana, favelas. Além disso, ocorreu a demolição do patrimônio histórico e artístico de Manaus, à proporção que o projeto da ZFM avançava a cidade transformou-se dos palacetes aos prédios, logo o patrimônio era desqualificado junto ao poder público (NASCIMENTO, 2014). Carlos Navarro vive em Manaus há 43 anos, assim cidade faz parte de diferentes maneiras na poética do fotógrafo. A relação iniciou-se de maneira cautelosa, visto que desde Barcelona, o fotógrafo ouviu relatos sobre o misticismo que envolve a região. Quando chegou à cidade, sentiu o impacto da temperatura e desenvolvimento urbano, fatos que a princípios interferiam para a decisão de sua permanência. Contudo, ao estabelecer os laços afetivos por meio da família em Manaus, o fotógrafo foi se integrando à cidade, ao ponto de frisar sobre a relevância que esta tem em sua poética. Navarro (2015) explicou que: E pra mim pelo menos, essa aprendizagem que eu fiz na Espanha foi uma graduação profissional, minha formação que pode ser considerado um doutorado, mestrado foi aqui em Manaus. Então a experiência que eu tinha na Espanha (Barcelona), e eu a princípio não sabia que eu tinha essa experiência, esse conhecimento, quando eu vim pra Manaus, que eu comecei a por em prática esse conhecimento por necessidade, pelas condições que eu estava longe e tudo isso. Foi quando me deu uma formação mais avançada [...] Assim, compreende-se que o florescer do conhecimento adquirido com o acúmulo de experiências vividas acontece em Manaus, fato que o integrou no cenário de produção local como produtor de imagem e colaborador da formação de muitos profissionais atuantes no mercado fotográfico da cidade. Da memória coletiva por meio da catalogação de patrimônio arquitetônico de Manaus, Carlos Navarro faz o regaste da memória visual. O interesse do fotógrafo pelo registro do pa-

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trimônio arquitetônico começou ainda em Barcelona, através do registro dos monumentos da cidade. Em Manaus, iniciou-se quando trabalhava na empresa Sonora, período que fotografou o Palácio Rio Negro que se encontrava em reforma naquela época, além disso, fotografou outros patrimônios arquitetônicos como, Teatro Amazonas, Biblioteca Pública, Palácio da Justiça, Ponta Negra, Vila Olímpica, Sambódromo (NAVARRO, 2015). Quanto a produção de imagens direcionada para elementos de memória em Manaus, o fotógrafo expôs que: Eu sempre aqui no Estado trabalhei o material e imaterial, tudo que é memória, e nós como fotógrafos temos essa responsabilidade moral, de documentar o que está em volta de você, pode ser patrimônio, costume, tradições, cultura, família, então eu tenho essa preocupação. Então, eu dedico, sempre dediquei a essa parte arquitetônica [...] Então, nós como fotógrafos temos essa responsabilidade dentro de uma sociedade de preservar esses monumentos, esses lugares (NAVARRO, 2015). Diante disso, o fotógrafo acredita contribuir com futuras gerações deixando registro visual de memória, de uma Manaus que se transforma sem deixar resquícios do que antes esteve ali. Ao olhar a imagem produzida pelo outro é possível estabelecer uma relação de proximidade com a visão do autor. Seduzir-se com a foto, segundo Flores (2011, p.137): “é aceitar seus atributos aparentes de exatidão, verdade e naturalidade, renunciar à crítica e à imaginação verdadeira e confundir a memória social com a própria memória”. Ao relacionar a realidade da matéria expressa nas coisas com a realidade imaterial constituída pelas lembranças, o fotógrafo atribui subjetividade a memória no registro da imagem fotográfica. Segundo Rouillé (2009, p. 223) na junção delas reside: “A percepção, que procede da memória, é, ao mesmo tempo, dirigida para as coisas e projetada no passado; devido a isso, ela é extremamente subjetiva”. Portanto, se sugere que a partir do registro da memória coletiva, pode-se associar a memória individual. O ensaio Decadência Urbana vem sendo desenvolvido há mais de dez anos, reúne grande acervo de imagens feitas com a fotografia analógica e digital, em torno do patrimônio arquitetônico em Manaus. O uso da fotografia para este fim é recorrente, pois através dela é possível cristalizar um fragmento de espaço e tempo da realidade. Nesse mecanismo, a memória coletiva é construída através da documentação fotográfica de “[...] monumentos, arquitetura, de suas vistas e paisagens urbanas, rurais e naturais, de suas realizações materiais, de sua gente, de seus conflitos e de suas misérias” (KOSSOY, 2014, p.132). No ensaio, há o registro de construções históricas tanto que fazem parte do circuito turístico do Centro Histórico de Manaus, quanto de lugares mais a margem da visualidade. A decadência que o fotógrafo sugere nas imagens do ensaio está em torno da degradação patrimonial associada às relações dos transeuntes com os espaços de memória em estado de degradação. Assim, suscitam-se sensações de invisibilidade e impermanência por meio das imagens, além disso, propõem gerar reflexões sobre descaso e abandono dessas construções, com intuito de suscitar a preservação de memória individual e coletiva. A fotografia de Navarro está ligada ao documental com viés experimental, sobretudo em Decadência Urbana, o fotógrafo subverte a mimese do aparelho fotográfico, chegando a alguns momentos a abstração. Segundo Navarro (2015) nos últimos 5 a 6 anos, modificou o formato do ensaio, por meio do uso da cor evidenciado, através da saturação de matiz, a fim de retirá-la do campo realístico e adentrar no simbólico. Ressalta-se que a experimentação estética está a serviço do regaste da memória, pois mesmo com a visível degradação do patrimônio arquitetônico em Manaus, poucas ações são realizadas para que ocorram as qualificações necessárias permitindo o uso dos espaços. Assim, Poéticas Visuais, Bauru, v 7, n. 1, p. 93-110, 2016

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o fotógrafo questiona as práticas vigentes, forçando a percepção do espectador, ao evidenciar os transeuntes desses espaços. Contudo, para gerar tal sentido necessita-se que o receptor tenha o conhecimento, o olhar crítico. A relação Navarro com o poder público em Manaus apresenta-se em diferentes facetas, pois o fotógrafo iniciou a serviço do governo registrando lugares visualizados como cartões postais da cidade, em que a imagem apresentada está de acordo com os interesses políticos e econômicos do governo. Tal serviço, o coloca próximo aos patrimônios permitindo ir a lugares de difícil acesso, situação vivenciada pelo fotógrafo nos anos 1980, quando fotografou a reforma do Teatro Amazonas. Em meio a isso, Navarro faz os projetos estéticos pessoais com maior liberdade de expressão, em que mostra outra faceta do governo com o patrimônio arquitetônico, sobretudo com aqueles localizados a margem da visibilidade turística. Diante da grande quantidade de acervo do ensaio em estudo, necessitou-se delimitar o número de imagens, sendo assim foram escolhidas as que apresentavam a estética experimental. Também, buscaram-se imagens em que fosse possível a partir dos elementos visuais estabelecerem conexões entre o uso da memória e poética do fotógrafo, ao fim chegou-se ao número de duas fotos.

Os rastros dos elementos em cenas sugerem o limiar entre a ausência e a presença, que se associa com o exercício da memória, o qual transita entre o acontecimento e a lembrança, esta que se aproxima do ficcional. O personagem em primeiro plano, possivelmente um carregador devido o objeto geométrico que carrega na cabeça, foi representado em perspectiva a qual lhe atribui imponência, diferente das condições de serviço que se encontra. Segundo Navarro, a foto foi feita no Mercado Municipal Adolfo Lisboa em Manaus, onde frequentemente observam-se carregadores comuns a representação na imagem em questão. Analisa-se o efeito visual da cena alcançado pelo desfoque, caracterizado pela pouca nitidez do objeto registrado, como forma de reflexão sobre a passagem do tempo, este primordial para a execução desta foto. Tal efeito concretizado devido às “exposições longas mostram todos os movimentos do assunto durante o período em que o obturador da câmera permanece aberto” (PRÄKEL, 2013, p.123). Assim sugere-se que Navarro ao reduzir o tempo da captura da cena, contrapõe-se ao ritmo acelerado do lugar, também preserva a identidade dos personagens ampliando as reflexões sobre o tema. Ao compreender a cidade como um lugar de troca, em que predomina a circulação de mercadorias, observa-se que os indivíduos se confundem com estas. De acordo com Veloso (2012, p.306): “Os próprios indivíduos tornam-se predominantemente mercadorias – são trabalhadores cuja a vivência do tempo e do espaço é determinada pela produção econômica”. Sendo assim, o fotógrafo no ensaio expõe essas relações ao representar os indivíduos em diferentes situações como esta que interfere no ritmo da vida social das cidades industriais.

Figura 2- NAVARRO, Carlos. Decadência Urbana. 2012. 1 fotografia, color. Altura: 2592 pixels. Largura: 3888 pixels. 300 dpi. 289 KB. Fomato JPG. 1 CD-ROM .Coleção do Artista. Na figura 2 o caráter figurativo foi desconstruído de tal forma que se aproxima da abstração, pois os elementos não foram registrados em sua totalidade, como aparições que se devaneiam no quadro da cena. Também, visualiza-se o jogo de cores frias visto no uso dos azuis, cinzas e ocres em contraponto com cores vibrantes em tons avermelhados, amarelos e magenta em áreas menores. A relação das cores frias dominantes na cena associada à imagem do trabalhador evidencia a degradação das condições trabalhistas, que o personagem enfrenta no cotidiano laboral vinculado à invisibilidade social que estão imersos.

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Figura 3. NAVARRO, Carlos. Decadência Urbana. 2012. 1 fotografia, color. Altura: 2592 pixels. Largura: 3888 pixels. 300 dpi. 289 KB. Fomato JPG. 1 CD-ROM .Coleção do Artista. Poéticas Visuais, Bauru, v 7, n. 1, p. 93-110, 2016

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Na figura 3, observa-se o céu em ocre, as construções em azul, assim como os pedaços de concreto no primeiro plano, o azul caracterizado por ser cor fria sugere ao estado de inércia, morte, logo, o pulsar de vida encontra-se paralisada. O entulho em primeiro plano coloca o espectador em meio aos detritos, como se o soterrasse, também os pedaços sugerem os rastros de construções decompostas, associa-se a um ciclo da matéria. O lugar retratado na imagem está localizado na Rua Governador Vitório, próximo à Praça Dom Pedro II situada em um perímetro à margem do foco turístico do Centro de Manaus. Frequentado por carregadores informais, ambulantes, dependentes químicos, prostitutas, dentre outros transeuntes ligados a atividades ao entorno do local. Tais características o evidenciam o caráter underground dentro desse circuito histórico. Na cena visualiza-se em primeiro plano os detritos e ao fundo o Cabaré Chinelo, esta composição, segundo Navarro (2015) visa: “mostrar uma forma de abandono, decadência do poder público, em não se preocupar em manter limpo, organizado, e a recuperação de seus prédios. Então, essa foto é um alerta para a sociedade e os órgãos públicos”. Assim, na dialética entre forma e conteúdo estabelecida pelo fotógrafo em cada imagem, apresenta sutilmente o caráter de denúncia do descaso com o patrimônio arquitetônico em Manaus, e com a memória afetiva. Nos anos 1940 a 1950 esta área integrava o cenário da prostituição na cidade, a atividade ocupava grande parte territorial em vista as dimensões da cidade, contudo os bordéis foram reduzidos, segundo Peres (1984, p.131): “à rua Henrique Antony, à época abrangia, também a Itamaracá, parte da Frei José dos inocentes e alguns quarteirões da Saldanha Marinho, Lobo d’Almada e da Joaquim Sarmento”. A Rua Frei José dos inocentes fica próxima à rua em que foi feito o registro da figura 3, sendo assim, observa-se as identidades que estão arraigadas ao espaço. A estrutura da construção representada à esquerda do quadro recebeu inicialmente o nome Hotel Cassina construído no fim do século XIX, fruto econômico do período gomífero vivenciado pela cidade, posteriormente na fase de declínio recebeu o nome de Cabaré Chinelo. No início era um lugar de lazer da classe mais abastada, porém o que restou no contemporâneo foram apenas ruínas consequência do abandono do espaço, porém com programa de aceleração do crescimento (PAC) do governo federal, existe a estimativa que o lugar seja transformado em um centro de arte popular (OSSAME, 2013). As noites do Cabaré Chinelo eram regadas a bebidas, bailes e a mulheres que lá trabalhavam “transformavam-se em estrelas de perdição, incendiavam rixas e dores de cotovelos de vez em quando o chinelo se rasgava em pancadaria da grossa” (MELLO, 1984, p. 249). Passado o tempo o estabelecimento de três andares veio à decadência, paralelo a esse processo erguia-se o prédio da prefeitura, que segundo Mello (1984, p. 251): “terá os seus motivos, que serão talvez os do seu próprio desmotivo, para deixar o casarão morrer.” Portanto, observa-se a intervenção do poder público em determinar as normas de uso daquele espaço que atualmente são consumidas pela avidez do tempo, ampliando o nível de degradação do espaço associado a memória afetivas das pessoas que viveram ali.

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Figura 4. Detalhe da Figura 3. NAVARRO, Carlos. Decadência Urbana. 2012. 1 fotografia, color. Modificada pelo autor. Na figura 4, detalhe da figura 3, nota-se a presença de pessoas na cena registrada de forma sutil em meio à dimensão do quadro representativo, estas representadas na mesma escala tonal das construções, sugerindo simbiose entre os transeuntes e as construções, entre orgânico e concreto. Na dialética entre estas relações presume-se tanto a interação da população com o lugar, como também a invisibilidade, esquecimento, abandono que permeiam o cotidiano dessas pessoas. Também, visualiza-se o entrelaçamento de diferentes tempos na imagem, pois as construções deterioradas carregam consigo a marca de temporalidades contemporâneas com resquícios de séculos passados. Diante do uso do registro da ruína das construções, segundo Veloso (2012, p.332) tal elemento: “tornou-se uma alegoria significativa que aponta para o tempo solapado pelas tecnologias digitais, o espaço higienizado e controlado, o eterno presente do consumo”. Características evidenciadas também nos fragmentos de objetos industriais, propagandas nas quais se presencia o reflexo da globalização. Vale ressaltar que as fotografias ao serem interpretadas são efêmeras, de acordo com Kossoy (2014, p. 153): “Ao longo de suas trajetórias, a sua significação muda, oscilando de significado de acordo com a ideologia de cada momento e a mentalidade de seus usuários”. Portanto, as interpretações realizadas a partir das imagens em estudo, foram desencadeadas das articulações propostas segundo o que se observa nos elementos das cenas, associadas à trajetória do autor. Contudo, se expressa o caráter mutável e aberto a outros olhares. A partir das últimas décadas do século XX vem sendo proposta a recuperação do patrimônio arquitetônico em Manaus, por meio de iniciativas do governo e prefeitura. Diante desse processo, relaciona-se que da mesma forma que a cidade foi embelezada no final do século XIX, de acordo com o padrão de modernidade daquele período, assim também acontece no momento atual com os projetos de valorização de centros históricos (MESQUITA, 2005). Diante do tempo em que a imagem foi feita despertou-se a curiosidade em voltar ao local do registro para observar estado atual. Ao realizar a visita, observou mudanças significativas em Poéticas Visuais, Bauru, v 7, n. 1, p. 93-110, 2016.

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torno das construções representadas na fotografia de Navarro, assim com o entorno, que não apresenta mais a grande quantidade de entulhos observados na figura 5. Dessa maneira não foi possível fazer a foto na mesma perspectiva do fotógrafo, pois a inserção de um contêiner num local, não permite grande circulação na cena.

Em Navarro, observa-se o resgate da memória por meio do enfoque a degradação do patrimônio arquitetônico em Manaus, expresso nas ruínas das construções abandonadas no Centro Histórico. Também, insere-se nos processos artísticos atuais ao produzir fotos com indicações documentais singulares à estética comum ao gênero. A escrita interior por meio da fotografia, comparada a quem escreve um diário, estaria presente na poética de Carlos Navarro, por meio das imagens que contém elementos presentes na trajetória do fotógrafo desde a juventude, como o engajamento social, a atuação como agente de resistência ao poder público, a fim de minimizar diferenças sociais para garantir igualdade a todos. Porém, se na juventude recorreu a luta armada, com a inserção da fotografia buscou a contestação por meio da imagem. Diante da fase que o fotógrafo vive, o processo poético modificou-se com a inserção de questionamentos sobre o tempo, estes que transparecem na poética de Navarro, por meio dos desfoques, dos rastros que sugerem, mas não revelam o referente. Assim, a cristalização do instante através da imagem, seria um modo de permanência, diante da voracidade com que o tempo dissipa a memória.

Figura 5. Rua Governador Vitório em 2016. 1 fotografia, color. Altura: 2592 pixels. Largura: 3888 pixels. 300 dpi. 289 KB. Fomato JPG. Acervo pessoal do autor.

Por meio das imagens em estudo nota-se a presença da contestação política e evocação da memória entrelaçando o individual e coletivo. O interesse do fotógrafo pelo registro de grupos sociais que estão à margem, contribui para que essas pessoas não sucumbam no esquecimento, logo reivindica a existência que lhe foi negada. Dessa forma, “trata-se não somente de registrar a quedas de utopias, um fracasso da modernidade, mas criar vínculos com espaços e pessoas que não correm no ritmo frenético da chamada contemporaneidade” (DUARTE in DIEGUES, 2014, p.251). Aspectos visualizados no ensaio através dos ângulos de construção das fotos, nas distorções de matizes e no uso de desfocados que sugerem reflexões sobre a passagem do tempo.

Ao fim, ressalta-se o caráter efêmero da cidade, assim lugares que antes abandonados paulatinamente podem voltar ao uso da população, através das devidas qualificações desses espaços. No entanto, faz-se imprescindível que os discursos artísticos estimulem os processos de resistência e contestação social por meio da memória. Dessa maneira, estima-se que os espaços públicos voltem a serem ocupados e o sentimento de pertença amplie-se entres os habitantes.

Assim, através das intervenções nas imagens, Navarro estimula o embate com outro, seja este o poder público ou a sociedade, ao mostrar o abandono do patrimônio arquitetônico, relacionado com as mazelas das classes sociais menos favorecidas. Tais aspectos, encontrados na Manaus pós - Zona Franca marcada pela atitude governamental, responsável por ampliar a degradação física e de convivência nesses espaços abandonados. Bem como, o descaso da sociedade pela memória afetiva desses lugares que em outros tempos fizeram parte do imaginário e da vivência da população.

Considerações finais

Para Oliveira (2003, p.137): “toda sociedade produz um tipo de espaço que garante a sua produção e reprodução”. Logo, compreende-se que a Decadência Urbana que Navarro revelada nas imagens reflete atual sociedade, esta que despreza seus fragmentos de história, memória e identidade. Segundo Loureiro (1995), tal atitude demonstra o sentimento de inferioridade impregnou-se na população em relação ao estrangeiro, de tal modo que desqualifica a cultura local, portanto reduz a sensação de pertença que amplia o descaso e abandono com o patrimô-

O uso da fotografia no registro da memória faz-se tradição na história da fotografia, bem como, o ato de contestação dos fotógrafos ao dar visibilidade a determinados grupo sociais à margem. A exemplo da documentação que Militão Augusto de Azevedo e Augusto Malta retrataram a memória de um espaço em transformação na passagem do século XIX para o XX.

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nio. Apesar disso, estima-se que por meio da recuperação desses espaços, a população possa sentir-se novamente pertencente aos espaços públicos, que outrora foram ocupados, assim incentivando a afetividade para com a cidade. Portanto, ao fim os anseios daquele jovem comprometido em diminuir as diferenças sociais, pode dissipar-se com a finitude intrínseca ao ser humano, todavia a escrita interna persistirá por meio da imagem produzida. Visto que, o espaço se transforma, os fazeres se dissipam, mas a fotografia será o fragmento da memória marginal, será a subversão contra o tempo e o esquecimento.

KOSSOY, Boris. Realidades e ficções na trama fotográfica. 3ed. Cotia SP: Ateliê editorial. 2002. ______________. Os tempos da Fotografia: o efêmero e o perpétuo. 3ed. Cotia, SP: Ateliê Editorial. 2014. LOUREIRO, João de Jesus Paes. Cultura amazônica: uma poética do imaginário. Belém: CEJUP, 1995. OSSAME, Ana C. Cabaré vai virar centro de artes. set.2013 Disponível em: <http://acritica.uol. com.br/vida/Cabare-virar-centro-artes_0_985101500.html>. Acesso em: 20 dez. 2015. PERES, José. Evocação de Manaus: como vi ou sonhei. Manaus: Impressa oficial, 1984. MELLO, Thiago de. Manaus, amor e memória. Rio de Janeiro: Philibiblion, 1984. Coleção ofício de viver.

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São Paulo: Editora Senac de São Paulo, 2012.p.305- 340.

Recebido em 31 de agosto de 2015.

Aprovado para publicação em 21 de maio de 2016.

Destaques

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Leni Riefenstahl e o documentário como instrumento de construção da ideologia da Propaganda Nazista Alemã Leni Riefenstahl and the documentary as instrument of Nazi German Ad ideology´s construction.. João Eduardo Hidalgo* * Doutor em Comunicação pela Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo, USP, São Paulo, SP, e pela Universidad Complutense de Madrid. É especialista em Cinema Espanhol pela AECI- Agencia Española de Cooperación Internacional. Tem experiência em produção dramatúrgica para Audiovisual; em interpretação fílmica, videoarte e performance. Já fez várias exposições individuais de fotografia, dirigiu alguns curtas-metragens e orientou a realização de mais de cinquenta, entre eles registros de performances como de José Bezerra e Duda Penteado. Foi pesquisador da ABPA- Associação Brasileira de Pesquisadores em Artes da ECA, do Centro Mário Schenberg de Documentação e Pesquisa em Artes (ECA/USP). Atualmente é professor da Faculdade de Arquitetura , Artes e Comunicação da Universidade Estadual Paulista, Unesp, campus de Bauru, SP. Faz parte do corpo editorial e de avaliadores dos periódicos: Revista Ciência em Extensão Unesp e Revista Imagofagia (Argentina)

Resumo A atriz e diretora Leni Riefenstahl (1902-2003) foi a maior figura dentro do Cinema Alemão durante o período nazista, que durou de 1933 a 1945. Inicialmente Leni era uma dançarina que acabou seguindo a profissão de atriz e participou de muitas produções alemãs entre 1925 e 1933, e a partir deste ano tornou-se diretora dentro do Ministério da Propaganda, chefiado por Joseph Goebbels (1897-1945) e logo foi promovida a protegida, e segundo alguns, amante de Adolf Hitler (1889-1945). Este artigo pretende trazer à tona um pouco da historicidade dessa cineasta controversa e, ao mesmo tempo, de talento curioso. Palavras chave: Leni Riefenstahl ; Cinema Alemão; Propaganda Nazista; Ministério da Propaganda; Cinema.

Abstract The actress and director Leni Riefenstahl (1902-2003) was the greatest figure in the German Cinema during the Nazi period, which lasted from 1933 to 1945. Initially Leni was a dancer who ended up following the profession of actress and participated in many German productions between 1925 and 1933, and as of this year became director within the Ministry of Propaganda, headed by Joseph Goebbels (1897-1945) and soon promoted to protected, and according to some, Adolf Hitler’s lover (1889-1945). This article aims to bring to light some of the historicity of this controversial filmmaker and, at the same time, of curious talent. Keywords: Leni Riefenstahl; German Cinema; Nazi propaganda; Ministry of Propaganda; Movie theater.

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